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Palestra: Época de João: A preparação do caminho

Na Comunidade de Cristãos, costumamos tratar das festas sob o ponto de


vista da vivência de Cristo no ritmo anual. Além da visão comum da festa,
como costumamos vivenciá-la no Brasil, de uma forma bastante
extrovertida, com muita alegria, danças, comidas típicas, fogueira. Tudo
isso é muito bom e fará falta neste ano, por conta da situação excepcional
em que estamos vivendo. Mas hoje eu quero enfatizar o significado interior
da festa e sua relação com o ritmo anual do Cristo. Além disso quero
estabelecer uma relação entre os temas principais de João Batista e nossa
situação atual, bem como nossa preparação de caminho para o futuro pós-
pandemia.
Os grandes eventos da história da humanidade foram marcados por algum
precursor. Eram grandes iniciados que traziam como tarefa a preparação de
caminho para o grande evento. Eles encarnavam o que era necessário para
transmitir às pessoas as bases para o que deveria ser renovado na
humanidade. Se consideramos que a principal inflexão de direção na
história da humanidade foi a vinda do Cristo e o Mistério de Gólgota, então
podemos dizer que João Batista, foi o principal precursor entre os
precursores. Trata-se do precursor arquetípico, por assim dizer. Sua missão
já estava presente antes mesmo de nascer. Lembremos do encontro de
Maria e sua prima Isabel em que esta se ilumina do Espírito Santo quando
o feto de João Batista se move em sua barriga ao receber Maria grávida de
Jesus. Depois do nascimento eles vão se separar. João, cedo na vida adulta
se retira para a vida no deserto,onde tem contato com os essênios. Sua
preparação iniciática é feita sobretudo no deserto. “Conforme está escrito
no profeta Isaías: Eis que envio ante a tua face o meu mensageiro, que há
de preparar o teu caminho;  voz do que clama no deserto: Preparai o
caminho do Senhor, endireitai as suas veredas;  assim apareceu João, o
Batista, no deserto, pregando o batismo de arrependimento para remissão
dos pecados”. (Marcos 1, 2-4). A ideia de deserto é bastante comum entre
os grandes iniciados. No caso do Batista, é aquele que tem uma relação
muito íntima com a natureza. Ele é essa figura do homem primordial,
veste-se com peles de camelo, alimenta-se de ervas, mel silvestre e
gafanhotos. Se tomarmos o termo original em grego para deserto
“Eremos”, temos a mesma raiz da palavra eremita. Trata-se do âmbito da
solidão, do deserto da alma. Trata-se de uma preparação distante do meio
social comum. Eis o aspecto dos grandes iniciados que necessitam de uma
preparação especial para sua tarefa futura, mesmo quando ainda nao tem
uma clareza de qual será tal missão. Assim foi com Paulo antes de iniciar o
seu apostolado. Nos conhecemos hoje o que é solidão, porque nos
desenvolvemos para uma individuação que não estava disponível para a
maioria das pessoas antigamente. A solidão de João não tinha uma
conotação negativa, mas uma necessidade pelo clamor do processo
iniciático.
Outro elemento importante é o termo “batismo de arrependimento”. Nos
não gostamos do termo arrependimento por ter uma conotação negativa de
culpa, remete aos nossos erros do passados dos quais devemos nos
arrepender, e também da ideia de dever que aparentemente tolhe nosso
sentimento de liberdade. Mas se buscamos também o termo original grego
para essa palavra: “Metanoia”, que significa, “para além do pensar”, uma
transformação de nossa concepção ou postura na vida, baseada na forma de
pensar, então a ideia toma uma nova dimensão, pois marca uma possível
transformação fundamental do indivíduo. Esse clamor de João, quando ele
volta do deserto e se reúne novamente com a sociedade, com os judeus e
começa a batizar, é um convite às pessoas para que se convertam, para que
sigam um caminho novo e se preparem para a vinda do Messias.
Quanto ao batismo, temos o fato de João ter batizado o próprio Jesus no
momento em que este recebe o Cristo. Sabemos pela Antroposofia que o
Cristo só viveu no corpo de Jesus por três anos – os seus últimos três anos
de vida, pois esse era o período em que um ser espiritual tão elevado
poderia permanecer no corpo de um ser humano na Terra. João ainda não
sabia o significado dessa vinda, pois se recusou a princípio a fazer o
batismo, mas Jesus insistiu, pois foi a partir desse momento que desceu o
Espírito Santo e Jesus recebeu o Cristo. Mas antes disso João dizia: “Eu
batizo com água. Virá ainda quele que batizará com o fogo ou o Espírito
Santo”. É importante distinguir. Qual é a diferença entre o batismo com
água que João praticava e o novo batismo com o fogo, que Jesus trará. O
que era esse batismo com água? Ele tinha essa força de ligação com a
tradição em mais de um sentido, não só na sua ligação com a Terra como
homem primordial, mas também com sua relação com a iniciação antiga,
tal como era praticada em tempos desde as épocas culturais anteriores nas
escolas de mistério, em que o hierofante colocava o discípulo por três dias
numa condição de quase morte, porque ali havia o que acontece com o ser
humano quando ele morre e, a partir da morte, há uma separação do corpo
etérico do corpo físico e então ele tem uma visão panorâmica de sua vida
pregressa. O iniciado no seu processo de quase morte tinha então uma
dimensão do que fora sua vida até aquele momento e renova seu propósito
quanto ao futuro. O batismo de João, de certo modo reproduzia essa
vivência ao mergulhar o batizando em água até seu quase afogamento. Isso
provocava algo semelhante à iniciação antiga, pois o batizando como que
renascia da água para a nova vida: eis o batismo da metanoia. É curioso que
haja relatos hoje em dia nas chamadas vivências de quase morte que nos
dão uma ideia desse tipo de vivência. Eu li recentemente um desses relatos
que trouxe uma metáfora muito interessante. Trata-se do livro “Dying to be
Me” de Anita Moorjani. A autora relata sua vivência de quase morte
quando, após quatro anos de tratamento de câncer, se encontrava em estado
terminal em que os médicos consideravam sua morte iminente. Ela entrou
em estado de coma, mas manteve a memória dessa experiência. Tratava-se
de um estado em que tinha plena consciência de tudo que se passava ao seu
redor, sem limitação no espaço e tempo. A metáfora que ela usa foi a de
que sua vida até então fora como se vivesse num grande armazém
totalmente escuro, em que tinha à disposição somente uma pequena
lanterna. A luz  dessa lanterna só lhe permitia reconhecer as coisas num
foco  muito pequeno e pontualmente. Na vivência no estado de quase
morte, ao contrário, vivenciava o armazém totalmente iluminado e assim
podia perceber que ele era muito mais amplo e rico do que jamais
imaginara. Ele sentia ao mesmo tempo uma grande alegria e compreendeu
pela primeira vez, não só o porquê de sua doença, mas também  que
precisava retornar e tinha certeza que podia se curar. Ela retornou e, de
fato, em pouco tempo recuperou-se totalmente da doença. Ela voltou ao
armazém escuro, mas desta vez sabia da realidade por trás das sombras e,
principalmente, que sua missão era transmitir aos demais sobre essa
realidade. Isso nos lembra do batismo com água de João Batista, mas trata-
se de uma vivência excepcional em nossos dias.  A nova iniciação é bem
distinta por que, em primeiro lugar o ser humano só terá essa separação do
corpo etérico quando ele de fato morre. O que se espera do novo batismo
em Cristo é que a nova iniciação cristã seja uma vivência a partir do Eu.
Essa mudança é potencial, pois dependerá do quanto o ser humano
individual estabelece uma relação com o Cristo e, a partir da
autoconsciência, desperta para Eu, que está intimamente ligado com o
sangue. Daí o fogo. Essa chama do Eu que desperta para o Cristo. O Batista
como preparador de caminho anunciava o que viria a ser o batismo com o
fogo, pois aquele que viria, o Jesus Cristo traria ao ser humano o que lhe
permitiria desenvolver esse Eu, a autoconsciência. A vivência de
Nicodemos no Evangelho de João também alude a isso ao perguntar a Jesus
sobre o que é necessário para alcançar a vida eterna e este lhe responde que
é necessário nascer da água e do espírito. Isso nos indica que nascer pela
água ainda é necessário, pois aponta para nossa condição natural na Terra,
mas não basta porque a partir do momento que temos a noção de termos
um Eu, uma interioridade espiritual que é a semente para o Eu Sou trazida
pelo Cristo, despertamos para a possibilidade de transformação consciente,
ou seja em liberdade.
Um outro elemento tem haver com o fato de os discípulos de João,
incitando-o a uma disputa com Jesus, lhe falavam que aquele a quem ele
havia batizado, batizava batizava mais do que ele junto com seus discípulos
do outro lado do Rio Jordão. João responde que ele deve diminuir e Jesus
Cristo deve crescer. Se pensarmos em sua morte trágica e prematura,
percebemos que sua missão já havia sido cumprida, mas isso não significa
que sua atuação havia terminado. Lembremos de uma das imagens de
Mathias Grünewald no Retábulo de Eisenheim, em que aparecem
simultaneamente as figuras de João Batista e João Evangelista.
Realisticamente isso era impossível, pois o Batista já havia sido decapitado.
Grünewald teve a inspiração ou percepção espiritual de que O Batista
estava ali espiritualmente presente e que, de alguma forma, acompanhava
também os caminhos do Evangelista. Não foi casual que Lázaro após sua
iniciação pelo Cristo tomasse o nome de João quando passa a ser o
discípulo que Jesus amou. Assim, temos o fenômeno de que mesmo após
sua morte, João continua sua missão, mas agora sob o efeito da iniciação
Cristã. Isso nos serve de exemplo de como nós também podemos nos tornar
precursores de nós mesmos, na medida em que algo em nós deve diminuir
para dar lugar ao nosso Eu superior, ou em outras palavras, dar lugar ao
Cristo em nós.
O João Batista foi o último dos profetas. No Antigo Testamento há menção
a vários profetas que anunciavam a vinda do Cristo. Por isso João Batista
foi o primeiro e o último profeta do Novo Testamento. Isso para nós é
muito interessante, pois nós hoje não precisamos mais de profetas. Na
verdade podemos dizer que nós somos profetas de nós mesmos.
Nós podemos ver hoje, quando vivenciamos a época de João, não só nas
festas externas onde vemos o fogo fora e ele remete ao nosso fogo interior
que queremos desenvolver nessa elevação do eu menor para o nosso Eu
maior. Voltamos  a sentir esse espelhamento entre a festa de João e a festa
do Natal. No ritmo anual, quando nos aproximamos do Natal, nos
aproximamos da época em que o céu está mais próximo da Terra: a
inspiração cósmica do Cristo nas Noites Santas, que nos proporcionam
forças que nos revigoram. Elas continuam e vão se arrefecendo até a época
da Ascensão. A partir da festa de João, no ritmo anual do Cristo, temos ao
contrário uma expiração, e aí precisamos de buscar elementos para nos
fortalecer durante o seguinte semestre que seria o grande Advento em
comparação ao pequeno Advento a partir de Novembro. Ele é o período da
grande espera ou período de  preparação de caminho para a vinda da época
de inspiração nas próximas Noites Santas ente o Natal e a Epifania, período
tão forte e tão rico.  Assim temos a possibilidade, a oportunidade de tomar
consciência de que, nessa respiração anual do Cristo, precisamos nos
preparar para o nascimento do Cristo em nós. Nós temos também nossa
preparação interior. O que devemos diminuir em nós, para abrir espaço
para a atuação do Cristo em mim? Por isso podemos ser profetas de nós
mesmos. Essa força espiritual que nos alerta – a mudança de perspectiva –
a nova Metanoia.
Essa ideia para nós hoje tem um significado bastante relevante. Estamos
vivendo uma época fundamental na história da humanidade, pois esta crise
da Pandemia, aponta para um despertar da Consciência. O que provocou
essa crise foi uma série de contradições: a usurpação da natureza, a visão
materialista de mundo, o conflito e as diferenças de renda e de
oportunidade entre as pessoas, o consumismo por um lado e a fome por
outro. Tudo isso são sintomas de um mundo em convulsão que precisa
mudar. O mundo pós-pandemia não pode ser mais igual ao mundo de antes,
pois se as contradições continuarem, teremos novas crises e talvez piores
do que esta. Mas não sejamos ingênuos de pensar que tal mudança se dará
automaticamente após o início da nova “normalidade”. Não podemos ficar
na expectativa de mudanças externas. Tudo dependerá das transformações
que formos capazes de efetuar individualmente. A crise é um alerta. Uma
oportunidade de aproveitar o isolamento social para usá-lo como
preparação de caminho. Não precisamos de vivências de quase morte para
tomar consciência de que temos usado sim uma lanterna pequena que
ilumina insuficientemente em pequenos focos, mas que focam no lugar
errado. Na medida em que internalizamos os motivos da época de João para
preparamos o caminho para o Cristo em nós nesse semestre que se
aproxima, o grande advento, semeando e cultivando para que quando
tivermos um novo momento de inspiração entre Natal e Epifania, saibamos
o que precisamos mudar no mundo. Viver em função do eu pequeno, do
egoismo significa estar aprisionado. Abrir espaço para o Cristo em nós nos
permito conquistar a liberdade e agir conforme valores condizentes com a
nova humanidade. É nesse sentido que, a exemplo de João Batista, somos
precursores do ser humano do futuro. Essa humanidade do futuro só
florescerá na medida em que os indivíduos despertarem para isso

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