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Cativeiro & Liberdade, jan./jun.

1997

Editores

Manolo Florentino (UFRJ)


Sheila de Castro Faria (UFF)

Conselho Executivo

Hebe Castro (UFF)


João Fragoso (UFRJ)
Sidney Chalhoub (Unicamp)
Silvia Hunold Lara (Unicamp)
Francisco Carlos T. da Silva (UFRJ)

Conselho Editorial

Ciro Cardoso (UFF)


Stuart Schwartz (Yale)
Douglas Libby (UFMG)
Robert Slenes (Unicamp)
Maria Lígia Prado (USP)
Maria Yedda Linhares (UFRJ)
Sergio Odilon Nadalin (UFPR)
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

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Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

Sumário

Sobre os Autores 4
Abandonados nas Soleiras das Portas: A Exposição de Crianças nos Domicílios de Sorocaba,
Séculos XVIII e XIX
por Carlos de Almeida Prado Bacellar 5
Cultural Contrasts: Jesuit and Tupinambá in the Brazilian Colonial Context
por Monica Grin 35
Entre Duas Estratégias Patriarcais: Casamentos de Libertos na Cidade do Rio de Janeiro, 1803-
1834
por Carlos Lima 48
Dos Usos e Abusos do Mate: Sociedade e Indústria no Paraná do Século XIX
por Magnus Roberto de Mello Pereira 69

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Sobre os Autores
Magnus Roberto de Mello Pereira é professor do Departamento de
História da Universidade Federal do Paraná

Carlos Lima é doutorando em História Social do Programa de Pós-


Graduação em História (IFCS/UFRJ), e professor do Departamento de
História da Universidade Federal do Paraná

Monica Grin é doutoranda em Ciências Políticas pelo IUPERJ e


professora da UFRJ

Carlos de Almeida Prado Bacellar é doutor em História Social pela


USP, e pesquisador do CEDHAL-USP - Centro de Estudos de Demografia
Histórica da América Latina

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Abandonados nas Soleiras das Portas: A


Exposição de Crianças nos Domicílios de
Sorocaba, Séculos XVIII e XIX
por Carlos de Almeida Prado Bacellar
O abandono de crianças é das amas de leite. Ambos se
um fenômeno antigo e recorrente dedicaram a entender o
na sociedade ocidental, e ainda funcionamento de instituições
hoje pode ser presenciado nas que, dentre suas inúmeras
ruas de nossas cidades.1 A atividades, dedicaram-se a
proliferação de estudos sobre o remediar o sempre onipresente e
tema deve-se não somente ao volumoso abandono de crianças.
interesse em melhor conhecê-lo, Em comum, tais vertentes
mas também à preocupação em de investigação encerram duas
entender o porque de sua firme limitações importantes. Em
permanência ao longo dos primeiro lugar, somente podem
séculos. ser desenvolvidas em
No Brasil, os poucos comunidades muito específicas,
trabalhos que se interessaram quase sempre as capitais, onde
pela questão são ainda estabelecidas as poucas e
insuficientes e pontuais, mas esparsas Santas Casas, ou onde
ao menos permitem que se esboce as raras Câmaras Municipais, de
uma panorama provisório da maior pujança econômica, podiam
prática do abandono. se aventurar a cumprir seu
A exemplo dos estudos papel de controlador dos
europeus, as análises se abandonos, conforme previsto em
concentraram na investigação do legislação. Isto significa que
fenômeno sob dois vieses a imensa maioria das vilas e
distintos. Um, mais cidades brasileiras, pelo menos
recorrente, interessado na até a virada do século XIX para
atuação das Santas Casas de o XX, permanece excluída dessa
Misericórdia no recolhimento possibilidade de estudo, visto
dos pequenos inocentes; outro, que jamais contaram com uma
preocupado com a intervenção Câmara com tais preocupações ou
das Câmaras Municipais no com uma Santa Casa instalada e
controle da recepção e envio ativa, e que já houvesse
dos enjeitados para os cuidados decidido operar uma roda de
expostos.2
1
Este artigo, anteriormente publicado Portanto, as pesquisas até
em versão resumida nos Anais do X hoje desenvolvidas
Encontro Nacional de Estudos caracterizam-se pela pouca
Populacionais da ABEP, baseia-se em
três capítulos de nossa tese de 2
A instalação de uma roda de
doutoramento Família e sociedade em expostos não era obrigatória, e
uma economia de abastecimento interno muitas Santas Casas trabalharam
(Sorocaba, séculos XVIII e XIX), São durante décadas antes de tomarem essa
Paulo, FFLCH-USP, 1995. decisão.
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abrangência geográfica, seu caminhar rumo à idade


justamente por se restringirem adulta.
às poucas localidades que Por outro lado, se
dispusessem de instituições considerarmos que a imensa
dedicadas ao trato do exposto. maioria das comunidades jamais
Além disso, os resultados contou com a atuação
obtidos são definitivamente institucional no âmbito dessas
limitados em sua perspectiva crianças abandonadas, a
longitudinal, à medida que constatação é óbvia: um imenso
tanto as Santas Casas quanto as e majoritário universo de
Câmaras prestavam seu socorro crianças, ao não dispor de uma
até uma certa idade das roda, foi, ao longo de centenas
crianças - usualmente até os de anos de nossa história, pura
sete anos - após o que as e simplesmente abandonado
encaminhavam para uma inserção diante das portas das
na comunidade. Disto decorre residências. Uma realidade
que os registros documentais muito específica, assustadora
acumulados por estas por sua possível amplidão e
instituições dão conta somente totalmente esquecida pelos
desse curto intervalo entre pesquisadores.
recolhimento e destinação Essa imensa lacuna no
final, após o período de conhecimento sobre o abandono
1
criação junto à ama-de-leite. pode, no entanto, ser
Deste modo, embora uma preenchida. Os resultados aqui
parcela dos expostos já tenha apresentados são uma sólida
sua história razoavelmente confirmação de que é plenamente
conhecida no que diz respeito possível enveredar pela análise
aos exíguos sete primeiros anos do enjeitado em domicílios,
de sua vida, permanece abrindo novas e ricas
totalmente obscuro o processo perspectivas para a compreensão
de sua inserção na sociedade e desse importante aspecto de
nossa sociedade no passado.
O conhecido método de
1
Mesmo em outros países o panorama reconstituição de famílias de
das pesquisas tem sido Louis Henry, há muito aplicado
fundamentalmente o mesmo, mas algumas com sucesso pela Demografia
tentativas mais ousadas já começam a
despontar, buscando entender o Histórica2, revelou-se um
fenômeno fugidio da exposição instrumento precioso para o
domiciliar. Nesse sentido, vide acompanhamento longitudinal dos
Berrino, Annunziata, “Un fratello per abandonos em uma dada
marito. Gli esposti in una comunità localidade. Ao se reconstituir
ottocentesca” in Meridiana, Roma,
Istituto meridionale di storia e
parte considerável das
scienze sociali, 9:103-126, maggio famílias, torna-se igualmente
1990, e também Cavallo, Sandra, possível, através de diversos
“Strategie politiche e familiari
intorno al baliatico. Il monopolio
2
dei bambini abbandonati nel Canavese Vide, por exemplo, Henry, Louis,
tra Sei e Settecento” in Quaderni Manuel de démographie historique,
Storici, nº 53, 1983. Gènève, Droz, 1967.
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cruzamentos de fontes e de um interessados em abandonar seus


rigoroso controle de dados, filhos, senão deixá-los diante
recuperar em detalhes toda a de porta alheia. Felizmente,
amplitude do fenômeno do os registros de batismo,
abandono em famílias, casamento e óbito, somados aos
conferindo um sabor e uma maços de população, puderam,
dimensão inéditos à discussão. através da reconstituição de
Essa análise foi realizada famílias, iluminar diversos
para a vila paulista de aspectos dessa realidade.2
Sorocaba, bastante conhecida, A presença de expostos nos
desde princípios do século registros de batismo de
XVIII, por sua intensa Sorocaba demonstra cabalmente
atividade de comercialização do que a crianças eram
gado muar e, portanto, efetivamente abandonadas, mesmo
intimamente relacionada às sem contar com um amparo
áreas açucareiras (Oeste institucional. Inicialmente, a
Paulista) e mineradoras, bem freqüência de tais abandonos
como ao abastecimento das era insignificante, mas cresceu
cidades de São Paulo e Rio de ao longo do século XVIII até
Janeiro. Paralelamente, o alcançar o patamar dos 10% no
abastecimento de gêneros da final do século, para, a
terra também desempenhou seguir, ingressar num movimento
importante papel, transformando de retração contínua até a data
Sorocaba em celeiro para tropas final de investigação, 1845.3
e tropeiros que por ali O movimento das exposições
transitavam incessantemente. caracterizou-se, também, por um
Ponto nevrálgico de uma grande certo dinamismo, com diferenças
e extensa rede de abastecimento pronunciadas entre seu momento
interno, Sorocaba tinha no de pico (10,38% na década de
grande afluxo de homens e 1791-1800) e de baixa (menos de
animais sua marca registrada. 1% em pelo menos quatro
Conquanto fosse de grande intervalos). Esse dinamismo
importância comercial, Sorocaba não se reproduz em outras
não contou, até meados do localidades. Em São Paulo, por
século XIX, com uma
2
Misericórdia efetivamente Os registros paroquiais encontram-
ativa.1 Também não há quaisquer se conservados pela Cúria Diocesana
de Sorocaba. Os maços de população,
notícias de intervenção da também conhecidos como listas
Câmara nesse campo. Assim, não nominativas anuais de habitantes, são
restava alternativa aos recenseamentos promovidos na
Capitania/Província de São Paulo
entre 1765 e 1850, e se encontram sob
1
Fundada em 1808, a Misericórdia a guarda do Arquivo do Estado de São
local praticamente não funcionou até Paulo.
3
1845, data em que finalmente Esse movimento de ascensão e
inaugurou seu hospital. A primeira posterior queda acompanha
notícia de recolhimento de um exposto comportamento semelhante da curva de
data de outubro de 1847, sem batismo de ilegítimos, indicando um
mencionar, contudo, a existência de provável relacionamento entre os dois
uma roda. fenômenos.
7
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exemplo, houve variações entre 1811-1820 4,11


10,74% e 21,42% para o período 1821-1830 3,24
1831-1840 1,54
de 1741 a 1845, jamais 1841-1845 0,18
chegando, porém, a patamares * A série de batismos é
tão reduzidos como os cronologicamente
sorocabanos.1 Já em Vila Rica, incompleta devido ao
o movimento geral foi o extravio dos livros de
contrário, com uma elevação de registro originais
0,45% para 11% no intervalo
1779-1818, o que indicaria, Os dados levantados por
segundo o autor, uma Burmester em Curitiba apontam
progressiva pauperização da para uma prática de
sociedade mineradora.2 Em enjeitamentos em patamares
Ubatuba, por outro lado, a próximos aos de Sorocaba. Pela
presença dos enjeitados nas análise do intervalo entre 1731
séries de batismo era mínima, e 1798, foram encontradas
da ordem de 0,6% para o variações desde 4,1% (1740-49 e
período de 1786 a 1830.3 1750-59) até 14,9% (1790-98).4
Também na Lapa, Paraná, vila
Tabela 1: BATISMOS DE diretamente envolvida com o
EXPOSTOS SOBRE O TOTAL DE tropeirismo, a percentagem de
BATISMOS DE LIVRES, 1679- expostos foi próxima a
1845* Sorocaba, alternando-se entre
Datas % de expostos 3,8% (1780-89) e 7,0 (1790-99),
sobre total de dentro do intervalo maior de
batismos de
livres 1770-1829.5
1679-1700 0,24 De acordo com tais
1701-1710 0,00 números, a média geral para os
1711-1720 0,49 expostos de Curitiba seria de
1731-1740 7,09 9,3%, contra 5,2% (cálculo
1741-1750 3,97 6
nosso) da Lapa. Sorocaba, com
1751-1760 3,55
1761-1770 5,26 sua média geral de 4,1%,
1791-1800 10,38 estaria bastante próxima a esta
1801-1810 7,58 última vila, que tinha papel
muito semelhante ao seu no
1 comércio do gado. Todavia, a
Marcílio, Maria Luiza, A cidade de
São Paulo: povoamento e população,
Lapa não teve os altos e baixos
1750-1850, São Paulo, Pioneira/Edusp, no abandono tão marcantes
1973, p. 159. quanto Sorocaba, embora tenha
2
Costa, Iraci Del Nero da,
“Ocupação, povoamento e dinâmica 4
Burmester, Ana Maria de O.,
populacional” in Costa, Iraci, e Population de Curitiba au XVIIIe.
Luna, Francisco V. (org.), Minas siècle, Tese de PhD pela Univ. de
colonial: economia e sociedade, São Montreal, 1981, p. 262.
Paulo, Fipe/Pioneira, 1982, p. 27-28. 5
Valle, Marília Souza do,
3
Marcílio, Maria Luiza, Caiçara: Nupcialidade e fecundidade das
terra e população. Estudo de famílias da Lapa, 1770-1829, São
demografia histórica e da história Paulo, Tese de doutoramento pela
social de Ubatuba, São Paulo, FFLCH-USP, 1983, p. 320.
6
Paulinas/Cedhal, 1986, p. 210. Burmester, op. cit., p. 262.
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tendido à queda entre 1790-99 passou a tornar-se cada vez


(7,0%) e 1820-29 (4,1%), ou menos usual e o tropeirismo
seja, simultaneamente a atingia seu auge. No momento,
Sorocaba. Quanto a Curitiba, apenas podemos permanecer na
Burmester apenas constata uma constatação de que havia um
grande elevação do abandono padrão regional, muito
entre 1740-49 (4,1%) e 1790-98 provavelmente relacionado a
(14,9%), sem, contudo, alguns aspectos de uma economia
investigar o que teria ocorrido específica, de transporte e
nas primeiras décadas do século comercialização de gado.
XIX. Por fim, temos São Paulo Independentemente das
e Vila Rica, onde o final do variações identificadas, havia
século XVIII e o início do XIX um equilíbrio constante na
presenciaram um crescimento do repartição por sexo dos
fenômeno do abandono. Em suma, pequenos enjeitados. Entre
a exposição de crianças 1737 e 1845, foram
sorocabanas apresentava uma identificados 531 meninos e 521
tendência bastante semelhante à meninas, numa equilibrada razão
identificada para Lapa e para de masculinidade de 101,9.
o pequeno segmento conhecido de Alguns trabalhos sobre os
Curitiba, mas inversa no que expostos na Itália detectaram
toca a São Paulo, Vila Rica e situações diferentes na
Ubatuba. repartição por sexo dessas
É inevitável indagar se as crianças. Hunecke, ao estudar
tendências em comum de Sorocaba o caso de Milão, afirma que
e da Lapa não estariam havia uma predominância de
relacionadas à economia mulheres entre os expostos,
tropeira, comum às duas. Valle pois os meninos seriam mais
tenta relacionar, de modo não preciosos para os pais.2 Carlo
conclusivo, a ilegitimidade e o Corsini, trabalhando com os
abandono, juntos, como dados de Florença, também
conseqüência da passagem de comprovou a ocorrência de
tropeiros pela vila.1 De fato, razões de masculinidade de 95
conhecer o porque dos avanços e (1762-1764) e de 98 (1809-
recuos desse fenômeno requer um 1811).3 Giovanna da Molin
conhecimento muito mais amplo encontrou números semelhantes
da sociedade tropeira,
principalmente na primeira 2
Hunecke, Volker, “Intensità e
metade do século XIX, quando a fluttuazioni degli abbandoni dal XV
presença dos expostos nas vilas al XIX secolo” in Enfance abandonée
et société en Europe, XIVe. - XXe.
siècle, Actes du colloque
1
Nossos ensaios no sentido de international, Rome, 30 et 31 janvier
detectar alguma correlação entre as 1987 (collection de l’École française
sazonalidades dos abandonos e a das de Rome, 140), Palais Farnèse, 1991,
feiras sorocabanas, momento de maior p. 45 a 49.
3
afluxo de homens na vila, resultaram Corsini, Carlo A., “Era piovuto dal
sem qualquer resultado significativo. cielo e la tierra l’aveva raccolto:
Para a realidade da vila da Lapa, il destino del trovatello” in Enfance
vide Valle, op. cit., p. 321. abandonée..., p. 84.
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para Milão (96,7 entre 1660 e através da lista nominativa


1848), Prato (98,9 entre 1751 e para a cidade de São Paulo em
1808) e Siena (77,2 entre 1763 1765, encontrou números muito
e 1768)1 que a fazem indagar se próximos de 44 expostos e 41
as mulheres não seriam expostas.5
consideradas menos úteis No Rio de Janeiro, Renato
enquanto mão-de-obra doméstica, P. Venancio detectou, na Casa
perdendo em preferência para os da Roda, razões de
meninos.2 Nessa linha de masculinidade da ordem de 107,6
raciocínio, a autora adverte (1768-1796) e 109,8 (1840-
que a razão de masculinidade 1845), enquanto que na Roda de
dos expostos era de 97,2 nas Salvador os números eram de
zonas urbanas e 104,9 nas zonas 126,9 (1758-1762), 112,1 (1780-
rurais da Itália, indicando, 1800), 94,2 (1801-1850) e 89,2
talvez, uma preferência pelas (1851-1870).6 Maria Odila da
meninas nas famílias residentes Silva Dias, numa afirmação sem
na área urbana, contrastando sustentação empírica, alega ter
com a maior utilidade dos havido um costume de conservar
meninos no campo.3 as meninas e enjeitar meninos
Os resultados obtidos para ou dar para terceiros criarem.7
grandes núcleos urbanos Salvador e Rio de Janeiro,
europeus dizem respeito a dois grandes centros urbanos,
realidades consideravelmente apresentam razões de
distintas da colônia. Aqui, masculinidade elevadas, embora
alguns estudos de caso o primeiro tenha passado por
detectaram tendências ao uma grande inversão nessa razão
igualitarismo nos abandonos, na virada do século XVIII para
tal como na paróquia da Sé de o XIX, ao passo que o Rio
São Paulo (1763-1770) e em manteve-se estabilizado. Os
Santo Amaro (1760-1810), demais estudos, restritos no
trabalhadas por Renato Pinto tempo e no espaço, confirmam os
Venancio.4 Maria Beatriz Nizza números relativos a Sorocaba,
da Silva, enfocando a questão no sentido de uma equiparação
nos contingentes de expostos
1 homens e mulheres. Estariam
Da Molin, Giovanna, “Les enfants
abandonnées dans les villes
5
italiennes aux XVIIIe. et XIXe. Silva, Maria Beatriz Nizza da, “O
siècles” in Annales de Démographie problema dos expostos na Capitania de
Historique, Paris, EHESS, 1983, p. São Paulo” in Anais do Museu
112. Paulista, tomo XXX, São Paulo,
2
Idem, p. 114. 1980/81, p. 153.
3 6
Idem, p. 115. Venancio, Renato P., Casa da Roda:
4
Venancio, Renato Pinto, Crianças institution d’assistance infantile au
sem amor: o abandono de recém- Brésil (XVIIIe. - XIXe. siècle),
nascidos na cidade de São Paulo Thèse de Doctorat en Histoire, Paris,
(1760-1860), paper apresentado no Université de Paris IV, 1992, p. 175.
7
Seminário permanente de estudo da Dias, Maria Odila Leite da Silva,
família e da população no passado Quotidiano e poder em São Paulo no
brasileiro, São Paulo, IPE-USP/Anpuh, século XIX, São Paulo, Brasiliense,
s.d., p. 5 e 9. 1984, p. 142.
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tais resultados a indicar, ao Vários domicílios


menos para uma certa área da sorocabanos são descritos,
capitania paulista, um padrão pelas listas nominativas, como
de indiferença quanto ao sexo vivendo em situação de pobreza.
do enjeitado? Impossível Francisco Pinto da Silva, sua
afirmar, no atual estágio dos esposa, três filhos e uma neta
conhecimentos. Não obstante, o moravam em um rancho, padecendo
rol de prováveis motivos para de fome e frio3, enquanto
os pais (ou apenas uma mãe) Francisco Paes de Almeida, com
abandonarem um filho em porta sua esposa e duas filhas, tem
alheia ou em Santa Casa um sítio pequeno e quase nada
permanece o mesmo, e merece ser planta, vive miseravelmente.4
rapidamente retomado. Conquanto essas descrições
Em termos mais genéricos, possam ser exageradas ou
uma criança podia ser exposta preconceituosas, sabemos que,
devido à falta de condições efetivamente, havia famílias em
econômicas de seus pais. má situação de vida e que,
Hunecke lembra que a alta dos portanto, poderiam ser
preços sempre foi acompanhada impelidas a abandonar seus
de um aumento no abandono1, filhos.
numa correlação muito pouco Isabel dos Guimarães Sá,
testada em situações analisando a Roda do Porto,
2
coloniais. concluiu que a extrema pobreza
1
e a ilegitimidade eram os dois
Op. cit., p. 38. Na mesma linha, maiores motivos para a
Maurice Capul considera que “os
abandonos de crianças aparecem como a
exposição em uma comunidade em
primeira manifestação da crise que os pais chegavam a voltar
frumentária” por toda a França, para recuperar os filhos
durante os séculos XVII e XVIII. enjeitados.5
Capul, Maurice, Abandon et Alguns autores chegam
marginalité - Les enfants placés sous mesmo a considerar a exposição
l’Ancien Régime, Toulouse, Privat,
1989, p. 103.
como um mecanismo para
2
Renato Pinto Venancio, em sua tese rearranjar a composição dos
(Casa da Roda..., p. 268-271), filhos dentro do domicílio,
ensaiou uma análise comparativa entre visando melhor enfrentar as
preços e abandono, obtendo uma futuras dificuldades com a
significativa correlação entre ambas herança ou com o mercado
as curvas no caso do Rio de Janeiro,
e uma quase total dissociação entre
as duas para Salvador. Este preços no cotidiano pouco
correlacionamento, ao nosso ver, monetarizado das famílias de roceiros
seria fenômeno bem mais facilmente é, no mínimo, assunto discutível.
3
observável nos grandes centros Arquivo Histórico Ultramarino,
urbanos, onde a variação nos preços Lista nominativa de Sorocaba, 1772,
dos gêneros de primeira necessidade 1ª Companhia, fogo 313.
4
afetariam o nível de subsistência dos Idem, fogo 295.
5
setores mais pauperizados da Sá, Isabel dos Guimarães, “Casa da
sociedade. Em paróquias Roda do Porto: reception and
eminentemente rurais, como Sorocaba, restitution of foundlings during the
onde o distanciamento do mercado de eighteenth century” in Enfance
alimentos era substancial, o peso dos abandonée..., p. 559-560.
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nupcial.1 Eventualmente, as essas análises, falta-nos o


instituições que recolhiam essencial: um melhor
crianças atuariam basicamente conhecimento sobre os pais dos
como redistribuidoras do expostos, que, exceto para uns
“excedente” de crianças não poucos casos em Santas Casas,
desejadas pelos pais.2 Outros, permanecem totalmente
alertam para o fato de que a desconhecidos.5
morte ou a doença, Em todo caso, as curvas de
desestruturando a família, era ilegitimidade e de exposição
motivo comumente alegado para o são, para Sorocaba, bastante
abandono.3 relacionadas, ambas
A questão da ilegitimidade apresentando tendência à
também tem sido bastante elevação até fins do século
evocada. Expunham-se os filhos XVIII, quando, então, ocorre
ilegítimos para preservar a uma reversão, seguindo-se uma
imagem da família ou da mãe, ao notável tendência à queda. Essa
mesmo tempo que se enjeitava ligação entre ilegitimidade e
legítimos devido à pobreza ou à exposição também foi detectada
doença dos pais. Brancos, por Renato P. Venancio no Rio
pardos e, menos comumente, de Janeiro, durante a segunda
negros, eram abandonados metade do século XVIII.6
indiscriminadamente.4 O Para Sorocaba, do total de
fundamental é que, em todas 1052 expostos levantados para o
período de 1684 a 1845, obteve-
1
Boswell, John, The kindness of
se o nome dos pais para apenas
strangers - the abandonment of cinco deles, nos únicos casos
children in Western Europe from late de reconhecimento tardio de
Antiquity to the Renaissance, London, paternidade. Curiosamente, dois
Penguin Books, 1991, p. 14.
2
destes expostos foram
Cf. argumenta Louise A. Tilly em reconhecidos após o casamento
Tilly, Louise, Fuchs, Rachel G., et
allii, “Child abandonment in european
entre o tenente-coronel João
history: a symposium” in Journal of Floriano da Costa e sua mulher,
Family History, 17(1):1-13, 1992, p. D. Bárbara Maria da Silva,
3-4. Este artigo traz interessantes ocorrido em 26 de maio de 1823.
contribuições ao debate sobre o Bárbara, sua filha, havia sido
abandono, com especiais referências e exposta em casa de seu próprio
críticas à obra de Boswell.
3
Sonoko Fujita, trabalhando com os pai, aos 22 de setembro de
abandonados legítimos em Rennes no
final do século XVIII, lembra que “a 5
Muitos dos trabalhos relativos às
doença e a morte são as duas Santas Casas e congêneres europeus
principais razões: é interessante detectaram a prática de os pais
notar que a doença é a mais invocada voltarem à instituição para retirar o
quando se trata da mãe, e a morte filho expostos, mas em proporções
quando se trata do pai”. Fujita, geralmente pouco significantes.
Sonoko, “L’abandon d’enfants 6
Embora o mesmo autor, ao analisar
legitimes à Rennes à la fin du Salvador, tenha descoberto uma total
XVIIIe. siècle” in Annales de discrepância entre as duas curvas,
Démographie Historique, 1983, p. 155. indicando as dificuldades em se
4
Cf. Venancio, A Casa da Roda..., p. estabelecer padrões únicos para o
176-181. fenômeno (op. cit., p. 263).
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1821. Josefina, a outra filha, no caso da filha mais nova -


também fora exposta na casa para salvar as aparências.
paterna aos 24 de maio de 1823, Já os filhos das mães
exatos dois dias antes do solteiras devem ter sido
casamento. Em ambos os casos, enjeitados em função da
o pároco ressalta que as pobreza, e posteriormente
meninas “ficaram legitimadas reconhecidos, quando uma
pelo casamento dos pais”. conjuntura doméstica mais amena
Os outros três casos de permitiu sua recepção. Mas o
reconhecimento são que fica patente é que o
completamente distintos: três reconhecimento tardio da
mães solteiras resolveram paternidade era costume
reconhecer a maternidade de extremamente raro -cinco casos
seus filhos. Em comum, as três em 1052-, indicando que os
mães, além de solteiras, não abandonos eram definitivos, sem
tiveram sequer anotado à margem esperança de retorno. Isso
do livro de batismos a data de provavelmente significa que a
efetivação do reconhecimento, exposição não era uma solução
como se fizera com o casamento temporária para um casal ou uma
do tenente-coronel. A mãe solteira contornar um
importância dada à legitimação momento de crise de
via matrimonio contrasta, subsistência ocasional no lar.
assim, com o descuido para com Quem abandonava o fazia para se
o reconhecimento de um filho livrar da criança, mas sempre
ilegítimo de uma mães solteira, buscando sua sobrevivência em
de baixa extração social. casa alheia. Indagar se tal
No caso das duas filhas do ato era uma fórmula de
tenente-coronel, militar de infanticídio velado, ou um ato
carreira e dono de três extremo de contracepção, como
escravos, há uma situação de bem lembra Renato P. Venancio2,
nascimentos ocorridos sob é pertinente, mas,
condição conjugal irregular - infelizmente, de muito difícil
ele estava viúvo de sua resposta.
primeira esposa, mas ainda não O fato é que tais
havia se casado com sua nova crianças, escapando da morte,
parceira, Bárbara. A segunda acabavam sendo recenseadas nos
gravidez desta parece ter domicílios onde haviam sido
ensejado a oportunidade para recolhidas. Esta informação,
oficializar a união, cruzada com os dados agregados
recuperando o status de quando da reconstituição de
legitimidade das filhas, que já famílias, permite uma análise
viviam com o pai.1 A exposição inédita das famílias
fora, portanto, um subterfúgio receptoras, levantando questões
temporário - meros dois dias, cruciais para a compreensão do
fenômeno.
1
Além de já viverem com pai, essas
meninas haviam recebido por padrinhos
de batismo dois ricos personagens
2
sorocabanos. Venancio, Casa da Roda..., p. 227.
13
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

A primeira descoberta pesquisadores pouco conseguiram


inesperada diz respeito à avançar na discussão sobre a
localização geográfica dos distribuição espacial dos
domicílios que acolheram estas domicílios receptores.
crianças. Grosso modo, apenas Nesse aspecto, a única
20% dos mesmos localizavam-se exceção, a nível brasileiro,
em área urbana, contra 80% no consiste num artigo de Maria
meio rural.1 Nenhum autor Beatriz Nizza da Silva, datado
brasileiro jamais sugeriu, de de 1981, onde a distribuição
modo explícito, que a exposição geográfica dos expostos em São
seria um fenômeno passível de Paulo é analisada sob o prisma
ocorrer em tal grandeza no meio da lista nominativa de 1765.3
rural. Pelo contrário, graças Todavia, neste caso a autora
às pesquisas direcionadas para não se preocupou com a
o lado institucional do diferenciação entre rural e
fenômeno, houve uma firme urbano, definindo os “bairros”
descrição de sua ocorrência nos da lista nominativa como área
núcleos urbanos, que atrairia “urbana periférica”, mas que na
as crianças candidatas ao verdade seriam, ao nosso ver,
abandono nascidas no campo ou zonas rurais, ocupadas por
na vila.2 Na realidade, os chácaras e sítios. Assim, o
que é ali definido como
1
Sabemos que, para o período em “cidade” contava com 58
questão, é bastante difícil definir, expostos, enquanto que os
com exatidão, o que era área urbana bairros rurais tinham somente
ou rural; no entanto, consideramos 27. Resultado significativo,
razoável agrupar, com vistas a obter revela uma prática de seleção
pelo menos uma ordem de grandeza, as
rubricas “vila” e “1ª Companhia”, de domicílios diferenciada, com
constantes dos censos, como predomínio do componente
pertencentes à zona urbana, embora urbano. Mas, observados
certamente esta última não englobasse através de um corte
somente o núcleo urbano. cronológico, esses números
2
Na Europa, vários autores
descreveram o papel da atração sobre referem-se a um momento
o meio rural exercido pelas específico, e não devem ser
instituições voltadas para o automaticamente generalizados.4
recolhimento. Giovanna da Molin
lembra, nesse sentido, que “uma das
características das cidades foi a de mortalité des enfants trouvés dans le
ser um verdadeiro ‘depósito’ de Département de l’Ain aux XVIIIe. et
crianças abandonadas provenientes da XIXe. siècles” in Enfance
cidade e de suas cercanias. Uma abandonée..., p. 219). Em Sorocaba,
grande parte das crianças do campo os indícios são de que não havia
expostas foram acolhidas nas zonas influência de atração de qualquer
urbanas” (op. cit., p. 106). Santa Casa na Capitania e Província,
Igualmente Alain Bideau e Guy Brunet e mesmo o núcleo urbano sorocabano
advertem, com propriedade, que embora apenas era referência para o batismo,
“as monografias tendam a mostrar que jamais para o enjeitamento em si.
3
o fenômeno é acima de tudo urbano, se Silva, Maria Beatriz Nizza da, op.
impõe, contudo, o problema da cit.
4
delimitação geográfica da observação” As listas nominativas, consideradas
(Bideau, Alain, et Brunet, Guy, “La isoladamente, comportam inúmeros
14
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

Para Sorocaba, os bairros domicílios chefiados por


rurais de Iperó e Piragibu eram homens, contra um exposto para
aqueles com maior concentração cada 9,9 chefiados por
de exposições, com mulheres.
respectivamente 26,2% e 15,9%, Também é preciso
num total de 42,1%. O que considerar que o predomínio, em
havia nessas áreas que levava números absolutos, de
os pais a deixar seus filhos domicílios encabeçados por
justamente ali ? A área de homens traduziria, na verdade,
Iperó situava-se a oeste da a intenção de escolher casais
vila, enquanto que Piragibu constituídos. Não há um único
ficava a leste, sendo ambas homem solteiro recebendo um
atravessadas pela estrada que, enjeitado, e apenas cinco
vindo do Sul, ligava Sorocaba à viúvos foram escolhidos como
Capital. Cortadas por essa receptores. A regra era a
rota, as duas áreas em questão procura dos casais, talvez numa
reuniam excelentes condições tentativa de oferecer ao filho
para o abandono de crianças: abandonado as melhores
grande afluxo de pessoas ao condições de sobrevivência num
longo do caminho, dificultando domicílio teoricamente mais
a identificação de quem expunha estável.
o filho, e povoamento ralo nas Para os fogos sob chefia
áreas imediatamente limítrofes, feminina, havia uma tendência
ocupadas predominantemente por pela escolha daqueles em que
pequenos lavradores, o que essa mulher fosse viúva. Isto
dificultava os contatos e a indica uma preferência por
rápida circulação de notícias. mulheres mais velhas, talvez
Outra questão fundamental mais atenciosas por já haverem
para a compreensão do fenômeno criados seus filhos.
é a caracterização do domicílio Avançando ainda mais na
em si. Dentre 979 batismos de análise do domicílio receptor,
expostos, 644 (65,8%) crianças é possível obter, através das
foram deixadas em domicílio fichas de reconstituição de
chefiado por homens, contra 335 famílias, as idades médias dos
(34,2%) naqueles chefiados por chefes de família quando da
mulheres. Tal repartição é chegada do exposto. Em outras
significativa, em se palavras, é possível
considerando que, nas listas identificar o momento, dentro
nominativas, encontra-se, no de ciclo de vida familiar, em
máximo, 24,7% de domicílios que era mais provável receber
matrifocais. Uma análise uma criança abandonada. Sobre
pontual, para o intervalo 1808- uma amostra de 267 crianças
1812, mostra que havia um deixadas em domicílios
exposto para cada 17,3 chefiados por homens, e 44
deixadas naqueles chefiados por
erros de registro ou de critérios, mulheres, chega-se a uma idade
sanáveis somente pela agregação de média quando do abandono de
outras listas, possibilitando uma
análise longitudinal. 47,8 anos para os homens e 44,5
15
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

para as mulheres.1 Tais dados maciça presença dos lavradores


são, sem dúvida, notáveis, a (62,0%) vem confirmar o que já
indicar que a exposição de se havia constatado na
crianças era um fenômeno distribuição geográfica dos
marcantemente voltado para o abandonos: a predominância do
mundo dos homens e mulheres rural, do roceiro distante da
maduros, próximos de seus vila, em oposição aos poucos
cinqüenta anos de idade, e que artesãos instalados no núcleo
haviam passado em cerca de 24 urbano.
anos a idade média ao casar.2 Igualmente, o fato de que
Outro fator determinante a maioria absoluta das crianças
para a análise dos domicílios foi exposta em domicílios sem
com expostos é a cor de seus escravos (88,4%) e cujos chefes
chefes. Independentemente do quase nunca dispunham de
sexo, havia uma propensão pelos patentes das milícias (87,1%),
brancos, ou ao menos pelos sugere que os segmentos mais
declarados brancos, que, em humildes da população, que
tese, tendiam a estar melhor dependiam exclusivamente da
colocados no espectro social. mão-de-obra familiar para
Não obstante, é digno de nota subsistir, eram os que mais
que alguns pardos eram forros, recebiam os enjeitados
extremamente pobres, sugerindo sorocabanos.
que nem sempre se visava As indicações são claras
famílias de melhor status no sentido de confirmar que o
social. abandono não visava
Esta constatação pode ser necessariamente colocar uma
reforçada pela observação das criança em uma família de
atividades econômicas posses, que garantisse um
predominantes nesses mesmos futuro promissor. Pelo
domicílios. Do senhor de contrário, buscava-se lares que
engenho ao roceiro sem posses, simplesmente pudessem criar
do negociante ao indivíduo que aquela criança, dar-lhe
vivia a favor, há uma vasta condições de sobrevivência que,
gama de ocupações provavelmente, ela não disporia
representadas, do mais humilde junto aos pais biológicos.
ao mais poderoso. Também entre Senão, como explicar expostos
as mulheres, a prostituta está junto a forros pobres, último
presente ao lado de costureiras escalão dentre os livres?
e fiandeiras. No geral, a Mas é preciso ir ainda
mais além na tentativa de
1
compreender o ato de expor uma
Com medianas de, respectivamente, criança. Não seria preciso,
47 e 46 anos, salientando o pequeno
desvio das séries de idades em talvez, voltar a análise para
relação às médias. um ponto-de-vista
2
Para os casais de livres em diametralmente oposto ao usual,
Sorocaba, a idade média ao casar foi e ensaiar uma explicação para o
calculada em 24,7 para os homens e fenômeno sob o viés do
19,9 para as mulheres. Cf. Bacellar,
op. cit., p. 101. domicílio receptor? Essa
16
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

tentativa pode, e deve, ser estéreis, ou com muito poucos


promovida tomando como base as filhos, podiam optar pela
famílias reconstituídas e recepção de um exposto, que
identificadas como acolhedoras substituiria um filho não
de um pequeno enjeitado, conseguido. Foi com esta
buscando detectar o quão preocupação que João Nunes
passivamente se encontravam Maciel, malsucedido em suas
envolvidas nesse fenômeno. tentativas de gerar um filho,
Embora as histórias deve ter agido, ao recolher
particulares de vida de cada três expostos em seu lar: Ana,
família sejam de muito difícil em 1755, Joana, em 1757 e
recuperação, principalmente em Inácio, em 1761. Também o
se tratando de humildes capitão José Ferreira Prestes,
lavradores e outros estratos importante senhor de engenho
despossuídos, pudemos perceber local, se viu frustado em seus
certos acontecimentos a nível planos de ter filhos. Os
de ciclo de vida familiar que, expostos surgiam, assim,
aparentemente, poderiam estar sucessivamente: 1794, 1819 e
interferindo nas chances de se 1825. Tentativa, aliás,
receber um exposto. Esses infrutífera, havendo as três
acontecimentos, que podemos crianças falecido na infância
chamar de tendências, traduzem - a mortalidade era elevada -
tomadas de decisão no seio da e o velho capitão partiu desse
família, buscando rearranjar mundo sem herdeiros.
suas estratégias frente aos Alguns domicílios chegavam
imprevistos da vida. Esses a recolher grande número de
rearranjos poderiam incluir a crianças. O pequeno lavrador
recepção de expostos, José Tomé Leite, casado e sem
favorecida ou explicitamente filhos, tornou-se constante
promovida pelo casal, que acolhedor de expostos: Maria,
buscava, deste modo, recompor em 1803; José, em 1805;
alguma lacuna doméstica. Isto Antônio, em 1806; Gertrudes, em
significa, em outras palavras, 1810; José, em 1812; e Joaquim,
que a recepção de expostos não em 1812. À exceção do último
necessariamente deveria ser um José, todos os demais faleceram
acontecimento passivo por parte com meses de idade, numa prova
do domicílio receptor, mas das péssimas condições de vida
também, sob algumas condições, que enfrentavam.
um ato consciente de Todos estes exemplos nos
acolhimento de uma criança. sugerem que a falta de filhos
Observando-se o conjunto dos fazia com que os casais fossem
domicílios receptores foi mais receptivos aos expostos.
possível estabelecer Mas não sabemos ao certo se
minimamente algumas tendências estes casais se esforçavam em
relativamente claras. receber tais crianças, ou se,
A primeira dessas pelo contrário, o fato de não
tendências diz respeito à terem filhos constituía um
ausência de filhos. Casais sinal alentador para os pais
17
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

que desejavam abandonar seus eventuais auxílios domésticos.


recém-nascidos. A equação, Nessa segunda hipótese, a
obviamente, não era tão simples aceitação de um exposto poderia
assim. Já vimos que a presença ser interessante para suprir o
de uma mulher no domicílio era domicílio de novos braços,
condição de considerável auxiliares aos muitas vezes já
importância. Abandonar uma alquebrados ou adoentados
criança em casa sem mulher chefes da casa.
seria, no mínimo, um contra- Esta interpretação é, no
senso. Mas a presença de uma entanto, um tanto problemática.
mulher não era sinônimo de A despeito das facilidades em
aleitamento, e aí deveria acolher uma criança, esta não
residir uma marca era sinônimo de trabalho braçal
diferenciadora. pelo menos até certa idade.
O já citado José Tomé Ora, indivíduos envelhecidos,
Leite, apesar de haver recebido dando guarita a crianças por
seis expostos, não teve muito longos anos, lutando contra uma
sucesso com eles. Pelo menos elevada mortalidade infantil,
cinco morreram com poucos na esperança de, no futuro,
meses, numa casa onde sua dispor de mão-de-obra que
esposa não tinha filhos e, amparasse os derradeiros anos
portanto, não dispunha de de vida, não soa exatamente
leite. Além disso, não houve como um projeto viável. Seria
qualquer agregada mulher nas muito mais plausível, nesse
mesmas condições, e o mesmo sentido, que se buscasse
aconteceu com os dois ou três agregar indivíduos adultos ou
escravos possuídos. famílias, que permitissem uma
Alimentados, provavelmente, exploração conjunta e imediata
através de meios artificiais, da terra disponível.
esses bebês não tiveram Mas pessoas mais idosas
melhores oportunidades, sendo recolhendo expostos são
ceifados pela morte implacável. detectáveis na realidade
Uma segunda opção pela sorocabana. Antônio da Costa
recepção de enjeitados poderia Velho e sua esposa Isabel Dias,
estar relacionada ao ciclo de casados em 1739, optam, após o
vida familiar. Pais já casamento da única filha, pela
maduros, cujos filhos já recepção de expostos. A
houvessem trilhado seus primeira criança, batizada
caminhos, poderiam acolher Maria, chega em 1759, quando o
pequenos abandonados, seja por casal contava com
um ato de “desprendimento respectivamente 60 e 37 anos
cristão”,1seja para dispor de aproximados. A seguir, outras
foram recolhidas: Ana do
1
Adotamos aqui a interessante linha Rosário, em 1760, Gerônimo, em
de argumentação de Renato Pinto
Venancio, segundo o qual a recepção bebês denotaria uma falta de piedade,
de expostos “...dependeu da recebê-los seria uma extraordinária
generosidade e da caridade cristãs de demonstração de fé...”. Venancio,
inúmeras famílias. Se abandonar Casa da Roda..., p. 207.
18
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

1762, Pedro, em 1766, e paternidade envolvendo um casal


Antônio, em 1767. Quando o que possuía bens para
velho Antônio falece, em 1769, transmitir aos herdeiros.
todas as crianças ainda viviam Entre as famílias mais pobres,
e passaram a ser recenseados sem posses, mas numericamente
enquanto filhos. dominantes, não havia
Francisco Mendes Ribeiro e necessidade de reconhecer a
sua esposa, Maria Cardosa, paternidade de eventuais
aparentemente adotaram a mesma expostos, pois isso em nada
estratégia. Após terem tido alteraria suas oportunidades de
sete filhos, sendo a última, vida.
Francisca, uma temporã nascida Outra situação propícia à
em 1794, passaram a receber em aceitação de expostos estaria
sua casa diversos expostos. O relacionada ao desejo, tanto
primeiro deles, José, pardo, dos chefes de um domicílio,
chegou em 1808, catorze anos quanto dos pais da criança a
após o nascimento de Francisca. ser abandonada, de aproveitar
A seguir, vieram Francisco, em uma lacuna advinda do óbito de
1813, Joaquim, em 1814, uma criança. Assim, era
Antônia, em 1816, e Francisco, bastante usual surgir um
em 1817. exposto às portas de um casal
Estes casos podem também que acabara de perder um recém-
apontar para uma outra nascido, e cuja mãe,
tendência, o recebimento de obviamente, dispunha de leite
filhos ilegítimos ou naturais para amamentar. O que não
dos filhos já saídos de casa, sabemos, porém, é a origem do
ou até mesmo de um dos cônjuges ato do abandono. Viria da
do casal em questão. Seria a parte dos pais do futuro
exposição, neste caso, simples abandonado, a cujos ouvidos
estratagema familiar para chegaria a notícia da
ocultar ou ao menos disfarçar a disponibilidade de um domicílio
situação incômoda, recolhendo- onde o leite estaria disponível
se os netos à casa dos avós. A devido a um óbito recente? Ou
comprovação de semelhante viria da parte do casal que
hipótese é bastante difícil acabara de perder um filho, e
através da documentação que, talvez por “caridade
compulsada, mas o já citado cristã”, manifesta à vizinhança
caso do tenente-coronel João o interesse em acolher uma
Floriano da Costa é uma exemplo criança ?
nítido desse tipo de situação. A resposta a esta questão
Suas duas filhas, tidas com a é ainda impossível. O
mulher com quem vinha mantendo mecanismo, no entanto,
relacionamento após enviuvar, funcionaria exatamente no
foram expostas junto ao próprio sentido proposto por Louise
pai para evitar maiores Tilly, para quem a exposição
constrangimentos. seria um “mecanismo social para
Infelizmente, este é um redistribuir as crianças
raro caso de reconhecimento de
19
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

excedentes”1, embora não voltaram a batizar outro filho


saibamos exatamente se estas somente em agosto de 1804,
crianças eram incorporadas constituindo uma lacuna de
enquanto filhos, mesmo que praticamente três anos entre
adotivos, ou apenas como ambos. Sugestivamente,
agregados. encontramos o pequeno Manuel
Um caso convincente desse sendo exposto em fevereiro de
tipo de prática é o do casal 1803, como se os pais
Salvador de Oliveira Prestes e biológicos visassem preencher o
Joana Soares. Seu filho lugar vago e a disponibilidade
Salvador, batizado em maio de de leite.
1814, veio a falecer em 30 de Situação semelhante parece
setembro do mesmo ano. Logo a ter vivido o casal Plácido de
seguir, em meados de outubro, Almeida e Ana Maria Nunes.
foi exposto o pequeno Entre os filhos Januário,
Francisco, apadrinhado pelo batizado em dezembro de 1800, e
próprio casal, nitidamente Manuel, batizado e falecido em
aproveitando o óbito de pequeno julho de 1804, ocorria uma
Salvador. grande e suspeita lacuna, em
Outras situações poderiam que veio a surgir o pequeno
ser mais facilmente detectadas Antônio, batizado como
caso as fontes fossem mais enjeitado em maio de 1802.
precisas na indicação dos casos Mesmo quando o bebê recém-
de natimortos ou de mortos nascido não falecia, a certeza
antes do batismo, ocasiões em de que a sua mãe dispunha de
que o mecanismo de substituição leite era claro indicativo de
seria posto em prática. Não que aquele domicílio estaria
obstante, as fichas de famílias apto a receber uma criança.
reconstituídas indicam Neste caso, o interesse seria
comumente a ocorrência de principalmente dos pais do
intervalos mais largos entre abandonado, visto que os
dois nascimentos, muitas vezes ocupantes do domicílio receptor
advindo desse nascimento não estariam, evidentemente,
perdido. Esse intervalo, muito interessados em dividir o leite
sintomaticamente, podia estar da mãe com uma segunda criança.
associado ao aparecimento de um O casal João Antunes
abandonado, como se esta Xavier e Ana Teresa Cardosa
criança estivesse substituindo passaram por essa experiência.
aquela que os registros não Quando batizaram a filha Maria,
detectaram. em 1º de novembro de 1798,
Este parece ter sido o também o fizeram com a exposta
caso de Joaquim José Nunes e Joaquina, da qual foram
sua esposa Joaquina Maria de padrinhos. Dois anos mais
Jesus. Após batizarem a filha tarde, batizaram outra filha,
Rita em setembro de 1801, Ana, aos 7 de dezembro de 1800,
seguida do assento de José,
1 exposto, em 1º de fevereiro de
Tilly, Fuchs et alli, op. cit.,
p.3. 1801.
20
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

O que fica nítido, aqui, e domicílios, as situações de


em muitos outros exemplos que exposições em série reforçam
poderiam ser dados, é que havia ainda mais esta posição.
um espécie de sincronia entre O exemplo de Agostinha
as partes, sem que fique claro Alves de Sousa, apresentado no
qual delas tomava a iniciativa. quadro 1, é impressionante.
Tradicionalmente se tem dado Fiandeira, natural de Curitiba,
ênfase ao abandono como um branca e solteira, Agostinha
evento em que o domicílio surge em Sorocaba por volta de
receptor tomava parte de modo 1805 e desaparece entre 1809 e
inteiramente passivo, como se 1810. Sem maiores recursos,
nada pudesse fazer. Mas, moradora solitária na vila,
diante da constatação de que Agostinha dedicava-se ao
aceitavam aquela criança, e em recebimento contínuo de
se considerando, conforme já expostos. O que impressiona é
apontamos, o fato de que a o ritmo da sucessão de casos: a
grande maioria das famílias morte de um exposto
receptoras ser de extrato imediatamente levava ao
social bastante humilde, é abandono de outro.
preciso lembrar que uma criança Aparentemente sem ser mãe -
a mais era uma boca a mais para inexistem quaisquer registros
alimentar. A decisão de se de batismo de um filho seu -
manter uma criança exposta, a a jovem (31 anos em 1806) não
concorrer no sustento dos dispunha de leite para
demais integrantes do amamentar as crianças, que
domicílio, deveria ser morriam na exata medida em que
consciente, seja pela “caridade chegavam.
cristã”, seja por um dos
motivos acima apontados. Esta seqüência de
Nessa linha de raciocínio, exposições nos leva a indagar
o enjeitado não necessariamente se Agostinha não seria uma ama-
deveria ser “encontrado” diante de-leite profissional, paga
da porta, mas poderia ocorrer para exercer essa atividade. A
da chegada acertada entre as sucessão de crianças em sua
partes. Obviamente não nos é casa parece indicar nesse
possível estabelecer ordens de sentido, e o fato de surgir nas
grandeza dessa modalidade de listas nominativas enquanto
exposição que denominaríamos fiandeira não exclui essa
“ativa”, nem ao menos para possibilidade, já que a
afirmar que ela seria atividade como ama-de-leite
majoritária ou não. Mas, de seria paralela. Mas a aparente
fato, os registros apontam inexistência, ao que se saiba,
sugestivamente para certos de documentação referente a
casos em que se torna bastante qualquer atividade da Câmara
difícil acreditar na não sorocabana no que toca ao
existência de um interesse pagamento de amas, é um
ativo por parte do domicílio elemento contrário à hipótese
receptor. Em determinados formulada. E o fato de
21
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

Agostinha ser solteira, sem


filhos, e, portanto, sem leite,
enfraquece ainda mais a
proposição.

22
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

Quadro 1: OS EXPOSTOS EM CASA DE AGOSTINHA ALVES DE SOUSA, SOLTEIRA,


1805-1809
Nome do Data de Data de óbito Idade de óbito
exposto batismo declarada
Maria 10.01.1805 28.01.1805 12 dias
Ana 24.02.1805 27.05.1805 1 mês
João 19.12.1805 28.12.1805 12 dias
Joaquim 19.01.1806 desconhecida -
Quitéria 14.03.1806 28.03.1806 1 mês
Umbelina 08.08.1807 20.10.1807 2 meses
Bento 29.12.1808 13.01.1809 15 dias

Quadro 2: OS EXPOSTOS EM CASA DE LUIS TEIXEIRA DA SILVA E SUA


ESPOSA, 1736-1753
Nome do Data de Data de Data de Idade de óbito
exposto batismo casamento óbito declarada
Andreza (1736) - 26.07.1736 15 dias
Manuel 23.11.1740 - - -
João 23.11.1740 - - -
Bernarda 17.09.1741 - - -
Isabel 14.10.1741 - - -
José Leme (aprox. - 1771 (a) ?
de Almeida 1743)
Paulo ? - 09.12.1751 ?
Custódia (1752) - 26.04.1752 inocente
Maria de (aprox. 11.02.1771 - -
Almeida 1752)
Ana de (aprox. 04.11.1766 - -
Almeida 1753)
(a) Leme, Luiz Gonzaga da Silva, Genealogia paulistana, São Paulo,
Duprat & Cia., 1903, vol. 3, p. 338

Mas outro exemplo, agora Casados em novembro de 1728,


de um domicílio de posses, onde não conseguiram ter filhos.
é difícil aplicar o argumento Embora haja lacunas nos
da ama-de-leite, aponta para a registros paroquiais do
mesma prática de diversas período, foi possível recuperar
exposições. Trata-se do pelo menos parte da provável
guarda-mor e arrematador do extensa lista de expostos às
registro de Sorocaba, Luis portas do casal.
Teixeira da Silva, e sua Segundo o quadro 2, o
esposa, Maria de Almeida Leite. casal teve pelo menos dez
23
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

enjeitados em casa. Dois somente confirma o


deles, Manuel e João, foram desprendimento dos pais que
batizados na mesma data. Duas abandonavam, a total falta de
expostas sobreviveram até a perspectiva ou mesmo interesse
idade adulta, e se casaram com em reaver essa criança, mas
homens de fora da vila. José, também o aceno de uma família
outro dos expostos, chegou a que se mostrava propensa a
ser ordenado padre antes de abrir as portas para essa
falecer. Tamanha sucessão de infeliz pequena criatura, mesmo
abandonos somente se justifica sob o grave risco de não poder
pelo interesse do casal em lhe oferecer condições mínimas
adotar crianças no lugar dos de sobrevivência.
filhos que não tiveram. Mas a Em última instância,
ausência de leite deve explicar teríamos um verdadeiro embate
a elevada mortalidade dessas de estratégias familiares. De
mesmas crianças, que um lado, os pais que
desapareciam quase que na mesma abandonavam, premidos por
proporção em que surgiam. circunstâncias que lhes impedia
Assim, o interesse de de manter o filho, forçados à
ambas as partes deve ser sempre adoção de uma estratégia de
considerado quando se discute o sobrevivência, onde o recém-
abandono em domicílios. Embora chegado devia partir. De
a oferta de domicílios aptos a outro, famílias que podiam
sustentar uma criança, contando simplesmente se deparar com o
com uma mulher e seu leite, bebê à chorar diante de suas
fosse ampla, somente alguns portas, ou que buscavam
deles eram alvo efetivo de um incorporar essas crianças
abandono. Sua localização devido a necessidades
geográfica podia facilitar o particulares.
ato de enjeitamento anônimo, na Admitidos portas adentro,
calada da noite, e aqui temos esses bebês penetravam no
um primeiro fator delimitador. ambiente mais restrito da vida
Mas, para além disso, nem doméstica. A grande dúvida
sempre o óbvio era a regra. consiste em identificar com que
Escolhia-se famílias humildes, qualificação se dava essa
em detrimento de outras de inserção. Através das listas
posses. Escolhia-se até mesmo nominativas é possível perceber
forros, socialmente casos em que eram tratados
desclassificados, mas que aos enquanto verdadeiros filhos, ao
olhos dos pais que abandonavam passo que também era usual
estariam suficientemente serem considerados meros
qualificados para receber seus agregados. Na verdade, somente
filhos. a observação longitudinal,
E, o que mais nos acompanhando a permanência
surpreende, escolhia-se até desses expostos no domicílio,
mesmo lares onde não havia uma permite que se tenha melhor
mulher disponível para apreensão de seus estatutos no
amamentar. Tal constatação não interior do domicílio.
24
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

O acompanhar do passar dos abandonadas naquele domicílio


anos para os enjeitados não é específico.
tarefa fácil. Inicialmente, a Tudo indica, portanto, a
pequena amostragem de ocorrência de alguma espécie de
abandonados diante do elevado circulação de expostos, que os
contingente populacional dados disponíveis não
investigado transformou a permitiram caracterizar. A
operação de identificação e economia tropeira de Sorocaba,
acompanhamento individual de caracterizada por intensa
cada uma dessas crianças numa circulação dos indivíduos,
atividade de grande talvez justifique em parte essa
envergadura. Crucial foi, aparente mobilidade.
nesse sentido, a constatação de Em todo caso, e a despeito
que nem sempre os expostos eram dessa dificuldade de
localizados no domicílio onde rastreamento, é possível
deveriam estar, conforme acompanhar muitos dos expostos
declaravam os registros de até a idade adulta. Sua
batismo. Em diversas inserção no domicílio pode ser
oportunidades, expostos foram analisada, e este é um dos
descobertos em datas pontuais, grandes trunfos do método
com muitos hiatos entre uma adotado.
aparição e a seguinte. Isto A condição do enjeitado
causa a forte impressão de que dentro do núcleo doméstico pode
estes expostos não permaneciam transparecer pela observação de
constantemente no domicílio que havia uma efetiva
onde foram inicialmente transmissão de sobrenomes entre
abandonados. a família receptora e os
Na maioria dos casos, um expostos. O quadro 3 apresenta
pequeno sítio ou a humilde alguns dos vários casos em que
residência urbana, no caso dos pelo menos um sobrenome
artesãos, eram o único bem familiar foi utilizado pelo
possuído pela família, e o abandonado ao casar.
expostos ali deveria Claro que não pretendemos
permanecer. É fato, porém, que, afirmar, com isto, que as
com freqüência inusitada, até crianças em questão estavam
mesmo durante a infância e a sendo incluídas na família. O
adolescência, expostos sobrenome poderia ter sido
desapareciam do domicílio onde recebido através da cerimônia
haviam sido deixados. de apadrinhamento, por ocasião
Justificar tais do batismo, quando o próprio
desaparecimentos como fugas ou casal receptor comumente estava
simples saídas do fogo seria no papel de padrinho da
uma opção, mas contradiz o fato criança. Em todo caso,
de que essas mesmas crianças, constatamos que pelo menos 58%
embora não fossem ali dos padrinhos de expostos eram
recenseadas, declaravam, anos integrantes da família,
mais tarde, terem sido enquanto que raramente era
convidado um agregado e jamais
25
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

um escravo.45 Havia, portanto,


certa preocupação quando da
escolha dos padrinhos, o que
poderia indicar o interesse em
eventualmente criar algum laço
entre a família acolhedora e a
criança recolhida.
Como, no entanto, melhor
qualificar essa inserção dentro
do ambiente doméstico? As
opções são restritas. Por um
lado, as listas nominativas
podiam, eventualmente, se dar
ao trabalho de qualificar os
indivíduos relativamente ao
chefe do domicílio. O pequeno
abandonado podia ser
denominado, portanto, filho,
agregado, ou exposto
propriamente dito. No mais das
vezes, contudo, havia o
descuido em precisar essa
qualificação, impedindo que se
trabalhe quantitativamente tal
gênero de informação.

45
Como nem todos os laços de
parentesco dos padrinhos puderam ser
exaustivamente pesquisados, muito
provavelmente esta percentagem
cresceria após uma análise mais
detida.
26
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

Quadro 3: A TRANSMISSÃO DO SOBRENOME PARA OS EXPOSTOS


Nome do chefe do Nome da esposa, ou Nome do exposto segundo o
domicílio, quando da chefe de registro de casamento
homem domicílio
- Escolástica Barbosa Escolástica Maria Barbosa
Salvador Fernandes Ana Maria Soares Custódio Soares
Cardoso
Roque Soares Rosa Maria de Jesus Elias Soares
José Pereira do Joana Maria Galera Floriano Pereira
Prado
Manuel Martins ? Américo Martins
Domingos Dias de ? Ana Pedrosa de Proença
Proença
João Pereira Ana Corrêa da Luz Isabel Pereira de Jesus
Pacheco
Daniel Alves ? Gabriel Alves da Silva
Tomás de Lara Rosa Barbosa Gertrudes de Lara

A outra opção para se declarado exposto. Doze dessas


examinar o possível status do uniões foram celebradas com os
exposto é por meio de seu dois cônjuges enjeitados, o que
próprio casamento. Quando eleva o total de casos para
atingiam a idade adulta e 285. Dentre estes, havia uma
subiam ao altar, estavam nítida predominância de noivas
caracterizando uma aliança com expostas, 181 (63,5%), sobre os
outra família, a da noiva. noivos expostos, 104 (36,5%).
Esta escolha conjugal pode ser Esta proporção vai de encontro
observada sob o ponto de vista à igualdade entre os sexos
de ambas as famílias, na identificada quando do
tentativa de identificar a abandono, mostrando que, por
transferência ou não dos status ocasião do matrimônio, as moças
familiares de origem. Nestes expostas tinham maiores
casos, os bens patrimoniais são possibilidades de casar. Ou,
um excelente termômetro para se pelo menos, maiores chances de
medir as similitudes entre os alcançar uma união conjugal
bens de pais e filhos. Pelo diante do altar, já que não é
acompanhamento longitudinal de possível medir as uniões
duas gerações torna-se possível informais. Eram,
verificar se o exposto, ao aparentemente, mais valorizadas
constituir família, mantinha ou enquanto cônjuges, mas não
não o status sócio-econômico do sabemos o porque.
domicílio onde vivera. Uma análise mais detida
Para efeito de análise, sobre as opções conjugais
foram identificados, para o desses expostos pode fornecer
período entre 1679 e 1830, 273 algumas pistas para se buscar
assentos de casamento em que explicar a presença majoritária
pelo menos um dos cônjuges era de expostas a contrair
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

matrimônio. Infelizmente a considerando, portanto, filho.1


maior parte dos casos diz Seria interessante conseguir
respeito às famílias de maiores localizar o testamento do
posses, onde se dispõe de capitão, de modo a descobrir o
elementos concretos para destino de seus bens e o
estimar as condições de vida de tratamento dado ao simples
cada casal. agregado abandonado.
Alguns casos são bastante Outro caso interessante é
elucidativos, merecendo nossa o de Gertrudes, exposta na casa
atenção. do guarda-mor Antônio João
O capitão Jacinto José de Ordonho e de dona Ermenegilda
Abreu e sua esposa, dona Ferreira Prestes, grandes
Gertrudes Maria de Madureira agricultores, possuidores de
Almeida, eram membros de mais de quarenta escravos.
poderosas famílias dominantes Gertrudes, nascida e exposta
de Sorocaba. Grandes por volta de 1790, era
proprietários, chegaram a claramente considerada
possuir mais de vinte escravos, agregada. Sua cor, parda, a
conquanto jamais tenham se diferenciava da família branca
envolvido profundamente com a que a abrigara. Casou-se, em
agricultura de exportação. Por 1804, com Custódio Pereira,
volta de 1784, após dez anos de jovem filho de humildes
casados, ainda não haviam tido agricultores, e constituíram um
filhos. Recebem, então, nesse lar extremamente simples. Na
ano, um exposto, logo batizado colheita do ano de 1807, por
de Apolinário. Nos anos exemplo, declararam haver
seguintes, de acordo com os colhido somente três arrobas de
maços de população, Apolinário algodão, enquanto que em 1810
seria ora denominado exposto, teriam produzido apenas doze
ora agregado, ou então apenas alqueires de milho e quatro
restava sem especificação. arrobas de algodão.
Finalmente, em 1806, Gertrudes, após enviuvar,
Apolinário, adotando o casou-se novamente, em 1818,
sobrenome Roiz, casou-se com com José Pedroso, igualmente
Maria Gertrudes Paes, filha do pequeno lavrador. A ligação da
alferes Bernardo Antunes de jovem com a rica e poderosa
Moura, lavrador sem maiores família do guarda-mor parece
destaques. pouco ter colaborado para seu
Este novo casal parece conforto: era, na verdade, uma
nada ter herdado de simples agregada, pessoa de
consistente, embora o capitão nível social inferior, exposta,
não tivesse filhos. Surgem, que não fora incorporada à
após casados, como simples família, mas sim ao domicílio.
agricultores, sem escravos. Em contraposição, há o
Sintomaticamente, a Genealogia exemplo de Escolástica Maria da
Paulista, em seu verbete Silva, que também assinava
referente ao capitão, ignora a
existência de Apolinário, não o 1
Leme, op. cit., vol. 2, p. 326.
28
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

alternativamente Almeida Leite, casamento, sem dúvida, pois o


exposta em casa de dona Maria tenente tinha padrão sócio-
de Almeida Leite. Recolhida em econômico superior ao de seu
1751, sempre foi tratada sogro Manuel, transformando o
enquanto agregada dentro de um matrimônio em uma forma de
domicílio de razoáveis posses, ascensão social para a jovem
incluindo cerca de meia dúzia Esméria.
de escravos. Ao casar, Também Ana de Almeida,
contudo, em 1778, com Domingos abandonada em 1752 na casa de
de Oliveira, “o moço”, filho de Luis Teixeira da Silva, já
Domingos de Oliveira Falcão, citado por seus diversos
proprietário de sesmaria e expostos, conseguiu um bom
também de cerca de meia dúzia casamento. Seu marido era o
de escravos, Escolástica português João Rodrigues de
conseguiu constituir uma Medeiros, que, trabalhando como
família com alguma posse. condutor de tropas, mantinha
Inicialmente, logo após o dois ou três escravos para
matrimônio, surgiram como auxiliá-lo.
agregados do velho Domingos, Essas posições de bons
plantando em suas terras, a casamentos não eram, contudo, a
favor. Com o passar dos anos, regra. No universos dos
o casal chegou a possuir cinco expostos masculinos, a
escravos, o que caracterizava realidade aparentemente era
um lavrador acima da grande mais amarga. Elias de Camargo,
massa de roceiros desprovidos exposto na casa do todo-
de cativos. A boa situação poderoso tenente-coronel
econômica, contudo, não foi Paulino Aires de Aguirra,
suficiente para que merecessem negociante de fazenda seca e
ser citados na Genealogia senhor de engenho com até 71
Paulista, que se limitou a escravos, parece não ter
relatar que Domingos de recebido qualquer apoio
Oliveira havia se casado, mas material ao casar. Abandonado
sem informar com quem. Um por volta de 1765, Elias nem ao
claro caso de censura a menos é citado uma única vez
posteriori de uma condição como integrante do domicílio em
malvista pelo autor.1 questão. É bastante provável
Igualmente bem sucedida que, tratado enquanto mero
foi Esméria Rita do Vale. agregado, tenha sido instalado
Batizada como exposta na casa na extensa fazenda de criar
de Manuel do Vale Pereira, gado que o tenente-coronel
carioca instalado em Sorocaba, possuía em Itapetininga,
e sem filhos, casou-se com o ficando, desta forma, ausente
tenente Francisco Vicente dos recenseamentos de Sorocaba.
Torres, viúvo, lavrador de Certo é que, em 1786, ao se
médio porte, dono de cerca de casar com Ana Maria Soares,
meia dúzia de escravos. Um bom filha do alcaide José Nardi,
Elias transforma-se em pequeno
1
Leme, op. cit., vol. 8, p. 542. lavrador, sem escravos, que
29
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

também produz telhas para tal, não passava de mais um


sobreviver. que, sem vínculos de
Com a morte súbita dessa consangüinidade, se punha sob
sua esposa, ao que tudo indica as asas de um grande
sem deixar filhos, Elias se proprietário.
casa novamente, em 1788, com Eventualmente, um casal de
Dometila Maria Soares, filha de grandes proprietários sem
humilde lavrador. Mas sua filhos podia alçar um enjeitado
situação permanece a mesma, à categoria de filho adotivo,
obrigando-o a agregar diversos mas a raridade de tais
indivíduos a seu fogo, de modo ocorrências em domicílios de
a ampliar a força de trabalho, alto estrato social era a
pois os filhos dessa segunda aparente regra. Contudo, a
união eram ainda bebês. Jamais maioria esmagadora das famílias
parece ter herdado algo do envolvidas nesse fenômeno era
tenente-coronel, e o fato de notoriamente pobre, e os ricos
também não ser mencionado na eram em número bastante
Genealogia Paulistana fortalece reduzido. Ademais, raros eram
a convicção de que nunca passou aqueles domicílios que detinham
de um agregado qualquer, ao posses mas que se deparavam com
qual o tenente-coronel não problemas de falta de
tinha qualquer obrigação de herdeiros, constituindo um
auxiliar. Por fim, ambiente onde o exposto poderia
constituindo o único caso em ser privilegiado no papel de
que foi possível localizar um filho adotivo.
testamento de um chefe-de- Consequentemente, o volume
família acolhedor de um principal da corrente de
exposto, Elias também é expostos se direcionava para os
ignorado quando o velho domicílios numericamente
tenente-coronel expressou suas predominantes, que não
últimas vontades, como se não dispunham de maiores recursos
houvesse existido, isto é, não além de sua própria força de
estando incluído nem entre os trabalho manual. Ali
herdeiros legais e nem entre os abandonadas, as crianças, mesmo
beneficiados com a terça.1 sendo aceitas como filhos
Estas pequenas histórias adotivos, não tinham nada para
nos dizem, em resumo, que herdar. As fichas de famílias
abandonar uma criança em dos expostos que se casaram e
domicílio de posses não que eram oriundos de domicílios
garantia para ela um futuro humildes atestam que é
melhor. Embora o exposto fosse extremamente difícil discernir
aceito no domicílio, muitas alguma diferença de tratamento
vezes era integrado na entre filhos legítimos e
categoria de agregado. E, como crianças abandonadas. Ambos
podem ser observados
1
Inventário e testamento do tenente- constituindo domicílios sob as
coronel Paulino Aires de Aguirre, mesmas duras e despojadas
AESP, Inventários e Testamentos, nº
de ordem 570. condições, que não nos permitem
30
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

perceber diferenças de doze anos de casados, mantendo


oportunidades. o mesmo nível de vida, recebem
Os exemplos nesse sentido à porta a jovem Maria,
são inúmeros. Ana Maria, enjeitada, que não chega a
parda, exposta na casa de sobreviver muito além dos três
Lázaro Dias Arenço, carapina e meses de idade.
lavrador muito pobre, casou-se, De uma maneira geral,
em 1802, com o também pardo portanto, a condição de pobreza
Manuel Machado, filho de um da grande maioria das famílias
modesto agricultor. Ambas as que recebia estas crianças
famílias não dispunham de torna infrutífera qualquer
terras próprias e dependiam de tentativa de indagar, com base
favores alheios para poder nas condições materiais de
cultivar suas roças. Assim, o vida, quão comum era a
jovem Manuel, encabeçando o seu incorporação do exposto
próprio domicílio, começou a enquanto membro integrante da
vida como jornaleiro, enquanto família. Fossem ou não
não conseguia também se expostos, a vida de casado
estabelecer como lavrador. seria exatamente a mesma: sem
Em outra situação, Miguel bens, sem terras próprias,
Alvares, exposto em casa de vivendo da pequena lavoura ou
Francisco Alvares Rodrigues, do artesanato. A identificação
casou-se com a jovem Bernarda da possível aceitação do
Maria, filha de José Alvares e pequeno enjeitado na família
de Ana Maria. Ambas as permanece no campo dos
famílias residiam em Iperó, e eventuais sentimentos afetivos,
eram lavradores pobres, sem na equiparação de tratamento
terras próprias, plantando a entre eles e os filhos
favor. Residiam em casas legítimos.
cobertas de palha, e, Na pior das
aparentemente, eram todos situações, encontramos uma
brancos. O novo casal assim exposta, Maria de Ramos,
constituído instalou-se no parda, “forra”1, que,
mesmo bairro, trabalhando abandonada na casa de Antônio
humildemente a terra, como Leme Bicudo, em Itu, acabou por
sempre o fizeram seus se estabelecer em Sorocaba,
antecessores. onde, em dezembro de 1795,
Por fim, um último caso: casou-se com o escravo
Salvador Pires de Lima, exposto Floriano, negro. A partir de
na casa do pobre lavrador
1
Domingos Marques, de Iperó, A menção à condição de forra para
casou-se com Custódia Maria expostos aparece oito vezes, das
quais seis são especificadas como
Pires, filha do tecelão pardas. Não sabemos ao certo o
Salvador João, também morador motivo de tal declaração. Talvez
em Iperó. O destino da nova fosse feita alguma relação com a cor,
dupla é padrão: estabelecimento pois oficialmente era proibida a
nas cercanias dos parentes, libertação via exposição, numa forma
de impedir que escravas abandonassem
lavrando pequenas roças. Após seus filhos.
31
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

então, ela passou a viver como segunda esposa, Ana Joaquina,


agregada do proprietário de seu fora abandonada na casa de
marido, de modo a preservar a Inácio Pereira da Silva, também
união. Outros casos moradores no Iperó. Este
semelhantes sempre implicaram segundo matrimônio em nada
na coresidência dos cônjuges, alterou a situação da família,
fazendo do enjeitado um que surgiria recenseada, em
agregado. 1810, com a declaração de que
Em outras situações, Joaquim vivia de seus jornais.
ocorriam também uniões entre Em suma, quer fosse
expostos. O pardo Manuel considerado um agregado ou um
Eugênio, que havia sido exposto filho adotivo, o exposto
na casa de Maria Efigênia, permanecia, quase sempre, no
casou-se, em 1805, com a mesmo patamar generalizado de
exposta Rita Manuela, também pobreza que dominava a paisagem
parda, que fora abandonada na da Sorocaba colonial. A
casa de Andreza de Almeida. miséria que obrigava os pais a
Ambos, provenientes de abandonar uma criança em muito
domicílios chefiados por pouco se diferenciava das
mulheres solteiras, foram condições de vida de um roceiro
criados no meio urbano. Após o ou de um pequeno artesão.
casamento, o novo lar foi Bastava um ano de más
também estabelecido na vila, e colheitas, e o tênue limite
Manuel passou a exercer a entre o roceiro e a mendicância
ocupação de latoeiro. podia ser facilmente
Indivíduos expostos, ultrapassado.
apesar de pobres, em nada Este jogo complexo de
diferiam do restante das redistribuição informal de
pessoas de seu meio. Escolher crianças era provavelmente
para cônjuge um exposto em nada muito mais volumoso, a nível
alterava o destino do novo brasileiro, do que aquele
casal, inevitavelmente também praticado pela via das
pobre. Assim, Joaquim da Silva instituições. A presença
Franco, filho de um pequeno incômoda do primeiro,
sitiante e taberneiro, casou-se domiciliar, levou à
em 1792 com Margarida da estruturação das formas
Conceição, exposta da casa de organizadas de amparo. Mas a
Pedro Vas Munis. O novo casal ocorrência do abandono em casas
estabeleceu-se no bairro de de Sorocaba mostrou-se
Iperó, onde tiveram seus filhos fortemente marcada por uma
durante os sete anos de duração brutal queda ao longo da
da união. Em 1798, a lista primeira metade do século XIX,
nominativa os denominava num comportamento oposto ao
“vadios”. A morte de ocorrido nas rodas de expostos
Margarida, em 1803, levou seu em geral, onde o volume de
marido a se recasar, e crianças sempre cresceu durante
novamente escolhendo uma o mesmo período. As
exposta para cônjuge. A interrelações entre essas
32
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

tendências opostas permanecem à sobrevivência, sua discussão


espera de novas análises, que aprofundada permite aumentar o
também procurem desvendar ainda conhecimento sobre os segmentos
mais esse quase totalmente mais despossuídos de nossa
desconhecido universo do população do passado, na busca
abandono domiciliar. Fenômeno de um melhor entendimento dos
marcantemente relacionado às sérios problemas estruturais de
difíceis condições de nossa sociedade do presente.

33
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

34
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

Cultural Contrasts: Jesuit and Tupinambá in


the Brazilian Colonial Context
por Monica Grin
“This same Cunhambebe had a during the sixteenth century,
great vessel full of human and the way in which the
flesh in front of him and was Jesuits developed their
eating a leg which he held to cognitive and representative
my mouth, asking me to taste methods to know the “other” by
it. I replied that even beasts juxtaposing Indian
which were without ethnographies and Christian
understanding did not to eat doctrine, is the theme of this
their own species, and should a paper.2
man devour his fellow It should be stated that
creatures? But he took a bite , this process of cross-
Jau wara sehe: “I am a tiger contamination and communication
[jaguar]; it taste well”, and between different symbolic
with that I left him”. “selves”, entailed both
persuasion and violence. This
Hans Staden (1557) experience essentially effected
and lacerated inner convictions
and world views. Doubts,
Introduction:1 paradoxes, ambivalence, and
uncertainties were vivid
The colonial encounters components of the colonial
between Europeans and context.
indigenous people in early The major obstacle to
modern times and their impact understanding historically the
on both culture have defied the many dimensions of the
imagination of several colonization process in Brazil
historians, anthropologists, lies in the lack of documented
and ethnohistorians. The Tupinambá3 primary sources,
contact experience, as the term
itself denotes, can be 2
In Louise Burkhardt’s “Doctrinal
understood as a dynamic and Aspects of Sahagun’s Colloquies”, it
dialectical process in which is possible to find some questions
the “self” and the “other”, which have motivated my approach. Her
work explores the intersections
their prejudices, symbologies, between ethnography and Christian
beliefs, and expectations were world view in Sahagun’s works as a
continually challenged, result of the colonial context and
changed, and reconstructed. its interactional setting or
The encounter between the dialogical frontier between
Mesoamerican and European cultures.
first Jesuit missionaries and See J. Jorge Klor de Alva et al., The
the Tupinambá Indians in Brazil Work of Bernardino Sahagun, Austin,
1988, pp. 65-82.
1 3
Paper presented at Brown University, Although there were many Indian
November 1994. ethnic groups in Brazil at the times
35
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

written documents which could asymmetric dualism: Hellenes


reveal, in some way, the vs. Barbarians, Hebrews vs.
contact experience from the Gentiles, and the civilized vs.
native’s point of view. The the heathen. The second
colonization process in Spanish strategy, influenced by the
America, in contrast, seems to colonial context, differs from
be far better documented by the first in that it does not
Indian sources (Lockardt, view Indians or Portuguese
1994:139-152), in spite of some (Christian Europeans), as two
academic reservations “irreducible totalities”.
concerning their authenticity Rather, these two groups are
(Clendinnen, 1988:169 and defined through a kind of moral
Tedlock, 1993), than the gradation structure: from the
Brazilian experience. imperfect to the perfect
In this paper, I will Christian.
examine the contact between the Many Jesuit
Jesuits and the Tupinambá from representations of Indians
the Jesuits’ point of view. during the colonization process
This kind of approach means, consisted in answering the
moreover, that just one challenges posed by
possible representation, among “otherness”: through a sort of
many other possible dialogical confrontation
representations, will be between the Christian world
considered. view and the empirical
I shall explore the main observations of Indian and
features of Tupinambá Indians Portuguese colonists behavior
which appear explicitly or in the colonial locus. Since
implicitly in the Jesuits’ these answers were aimed at
primary sources. Therefore I European audience, 2 one can
intend to emphasize at least agree that they are also an
two possible representational attempt to demonstrate the
strategies from Jesuit human nature of Indians and
sources.1 The first and more thereby justify the value of
obvious strategy operates missionary work.
within the tradition of western Three Jesuit works are of
particular interest here: the
letters from Father Manoel da
of the contact, Tupinambá, appear in
the Jesuits’ representations more Nóbrega to the Portuguese crown
frequently. The ethnographies of and the Society of Jesus (1549-
Florestan Fernandes and Viveiros de 1558), and Diálogo Sobre a
Castro, which I intend to work with,
have as their subject matters
2
Tupinambá or remainders of this The major part of Jesuit primary
Indian “family”. sources used in this paper are
1
It is important to point out that letters to the Portuguese crown and
in Jesuit sources these two the Society of Jesus. For this
strategies are not characterized by a reason, the questions presented in
linear or a temporal perspective. these letters appear in disconnected
Instead, they appear in many ways in way. It indicates that there is not
Jesuit sources. just one discursive plot.
36
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

Conversão dos Gentios (The European “self” in early modern


Dialogue on the Gentile time promoted a sort of
Conversion); letters from “accumulation of
3
Father José de Anchieta to temporalities”, or
Father Ignácio de Loyola (1554- accumulation of prejudices
1557); and Father Simão de involved in those historical
Vasconcelos’s work Crônica da asymmetric pairs.
Companhia de Jesus (Chronicle The discovery of the New
of Society of Jesus, first World meant not just the
edition in 1663).1 annexation of new territory but
also the possibility of
The Paradoxes of Jesuit producing new Christians. From
Representation of Tupinambá the perspective of Christian
doctrine, the old oppositions
The first attempts to would be converged and
translate the encounter with reappraised through an elastic
Tupinambá Indians in the and qualitatively new
beginning of the Brazilian opposition: Christian vs. the
colonization process preceded “not yet converted.” In this
the arrival of the first way, heathen, pagan, or
Jesuits in Brazil. The semantic gentile, after conversion,
framework to set up to identify could be included in the
the “alien”, the unknown either eschatological framework of the
positively (noble savage)2, or Christian redemption. The
negatively (wild animal), was heretic, not the heathen,
elaborated through conceptual represented the real danger to
pairs historically Christian missions in the new
transferable: Hellene vs. world. In this semantic design,
Christian, Hebrew vs. Gentiles “everyone was a potential
and Christian vs. heretic. The Christian, as an addressee of
dualism entailed in the the missions; but once one
representation of “other” by became a Christian, it was
impossible to revert to being a
1
These documents were found in the Heathen; the backslider became,
John Carter Brown Library and the rather, a heretic. [...]
Rockfeller Library at Brown Expressed temporally, the
University. Heathen was ‘not yet’ a
2
The image of Tupinambá Indians
brought to Europe by Vespúcio, Christian, whereas the heretic
Caminha, Yves d’Evreux, Andre Thevet was ‘no longer’ a Christian”
and Jean de Lery fascinated (Kosseleck, 1985:182).
Renaissance Europeans such as Eramus The first Jesuit
of Rotterdam, Thomas more, Rabelais, representations of Tupinambá
Montaigne, and later Montesquieu,
Rousseau and Voltaire, among others.
3
See John Hemming, Red Gold, The Reinhardt Kosseleck, “The
Conquest of the Brazilian Indians Historical-Political Semantics of
(Cambridge, 1978), pp. 1-23; and Asymmetric Counterconcepts”, in
Stephen Greenblatt, “Introduction”, Futures Past: On the Semantics of
in Marvelous Possessions: the Wonder Historical Time, (Cambridge, 1985),
of the New World, (Chicago, 1991). p. 164.
37
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

Indians are manifestations of Indian humanity. Through,


that semantic structure, Indian humanity conversion
especially. However, in their mission could be realized by
first efforts to identify the conciliating the Indian image
Tupinambá, they employed pre- with their Christian potential.
Christian classifications of This paradox can be found in
“otherness.” Negative terms almost all Jesuit
referring to the native people representation of Tupinambá
were common, such as “they are Indians. The major difficulty
so Barbarian and so indomitable for the Jesuits was the
that they seem to have an question of why, when mankind
animal nature”(Anchieta, becomes sons of God one part of
[1554], 1956, II, p.114). Terms it was completely wild; where
like idolaters, devil, animal, can the origin of this
dog, Negro, devourer, abandonment and the
barbarian, sanguinary, cruel, degeneration of Indians be
immoral, and demon, among found in the Judeo-Christian
others, are often found in the cosmogenesis?1
Jesuits’ letters to the Society In Nóbrega’s Tupinambá
of Jesus as well as in representation, the logic of
Vasconcelos’ Chronicle. Christian ethnocentrism directs
Accordingly, it is his narrative. One interesting
plausible to deduce from Jesuit aspect of Nobrega’s letters is
works juxtapositions of his basic belief in the success
different historical of Jesuit missions, mainly as a
preconceptions in their attempt moral and salvationist tool to
to identify the “other”. I turn redeem all of mankind. He
now to examine two important believed that the Society of
aspects of Tupinambá cosmology Jesus was entrusted to
-- cannibalism and cosmogenesis undertake one of the most
-- represented and related to important tasks demanded by
Western preconceptions by Divine Providence: that of the
Jesuits. conversation of a countless
The letters of Manoel da number of gentiles left out,
Nobrega to the Society of Jesus until that moment, of Christian
comprise an interesting if civilization.
confusing, Tupinambá According to him, “[ I
ethnography, in which there must turn myself known by these
appear many preconceptions with people and communicate to them
regards to Indian cosmology and the wealth of God’s passion
social organization. [...] It seems to me the major
Moreover, the reproduction
of western prejudices created 1
These Questions appear more clearly
an ambivalent veil. This in Vasconcelos’ Chronicle o. the
paradox the one hand, Society of Jesus when he attempts to
identifies the “other” as anti- localize the Indian’s place in the
human, wild and barbarian and Christian cosmogenesis. This
representation will be examined in
on the other acknowledges this paper.
38
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

enterprise” (Nóbrega, [1549], a successful and rapid Indian


1956, I: 113-114). This conversion.
optimistic expectation Although considering
momentarily relieved the cannibalism a practice that
cultural gap between Christian God’s word could defeat, (“They
values and the “wild” behavior wish to be Christian like us,
of the native people. However, and the only thing that
to make the conversation more separates them from us are
efficient, it would be their bad habits [...] Blessed
necessary to identify the God, in each place which we
unfamiliar symbolic actions of have visited near city, many of
the native people. In this them are leaving to kill and to
process, more eccentric Indian eat human flesh” (Nóbrega,
practices were outlined, among [1549], 1956, I:139”)) after
them cannibalism. some years, Nóbrega himself
admits the difficulty in
Cannibalism I eradicating cannibalism among
Indians: “[...] We see that
From the Jesuits’ they are dogs because they kill
perspective anthropophagy, more and eat one another, and pigs
than any other practice, in their vices and way of life
contradicted the natural and [...] For fathers who came
divine laws. Along those lines, hoping to convert all Indians
cannibalism, seen as a anti- in an hour, they see that they
natural and anti-Christian cannot convert them in a year,
practice inspired the most because of their bestiality”
absorbing Jesuit narratives. (Nóbrega, [1557], 1956, II:320-
They tried to represent such an 21). For this reason, the
exotic practice for an European Jesuit representation of
audience, and simultaneously cannibalism is dubious. One can
they intended to understand it deduce from the sources an
within the framework of the optimistic expectation of the
conversional possibilities. success of converting the
“They eat human flesh, they eat Indians from cannibals to
their own brothers, sons, Christians, as well as a kind
fathers and even mothers, of disillusionment with regards
because they are vindictive, to the efficacy of this
1
they bring hate in their heart conversion. Nonetheless, it
and they are in war amongst is interesting to see the
themselves permanently”
1
(Nóbrega, [1549], 1956, I: It is interesting to compare to
111). The association between different phases of Nóbrega’s works.
In Diálogo Sobre a Conversão do
anthropophagy and anti- Gentio, Nóbrega constructs an
Christian feelings like hate imaginary dialogue between two
and revenge was a naïve fathers: one an optimist in
interpretation. However, this relationship to conversion; the other
interpretation supported the a pessimist. This dialogue reveals a
kind of decline in the initial
idealism and the expectation of missionary idealism.
39
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

emphasis on cannibalism in considered a warrior, a brave.


Jesuit descriptions, The captives are conducted to
considering their disregard for the village and are given to
the place that cannibalism oldest women, who take care of
holds in Tupinambá cosmology. them. They are nourished and
Anchieta’s letter of March fattened until the day of their
1555 to Father Inácio de Loyola death. When this day comes, the
depicts Tupinambá cannibalism neighborhood is invited to a
as “Dionisiac orgy”: cannibal ceremony. All are
“[...] All the maritime coast gathered in the yard; the
an extension of 900 miles, is warrior coming completely
inhabited by Indians who, adorned, from head to toe. The
without exception, eat human captive arrives also adorned
flesh; in it they gain so much and is conducted by the oldest
pleasure that they often run women to the yard. The ceremony
300 miles when they go to war. starts when his head is broken.
If they capture 4 or 5 enemies, After it, his blood and bowels
nothing is more important. They are separated and his flesh is
return and with great sliced by the Principal of the
vociferation and celebration village to be divided among the
and wine they eat in such a others. All parts of the
voracious way that they eat captive’s body are aten”
even the captive’s nails. They (Vasconcelos, [1663], 1977:
pride themselves in the 101).1
victory. Even the captives The Jesuits employed many
consider this kind of death interpretations of
noble, worthy and glorious. anthropophagical acts. Some
[...] They live without law or associated it with warfare and
authority, eating each other vengeance, others to the
and dominated by an insatiable pleasure of eating of flesh
passion by which they devour purely macabre rituals which
even their relatives must be punished by a death
consanguineous” (Anchieta, sentence. However, all
[1555], 1956, II, 113-14). condemned the eating of human
Vasconcelos in his flesh as unnatural and
Chronicle give a “thick disgusting (Hemming, 1978:
description” of cannibalism’s 113).
ceremony, intersected by
prejudices against and moral 1
In Crônica da Companhia de Jesus,
judgment of this practice. Vasconcelos presents an impressive
Paraphrasing Vasconcelos’ description of aspects of the
description, Indians’ way of life. Their
cosmogenesis, cosmology and social
“Those who fall down in war are organization are represented in a
eaten at once by the oldest narrative, where Christian doctrinal
(human flesh is tasty for conceptions are compounded with
them). The captives are Indian symbologies. As a chronicle,
conducted under great clamor. the representation of Indians follows
a linear logic more visible than the
He who captures an enemy is Jesuit letters examined here.
40
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

As described by Jesuit Tupinambá modus vivendi and


sources, cannibalism is a good cosmology were.
example of a misconception In contrasting these two
originated by the symbolical kinds of representations, I do
gap between different cultures not intend to deduce the “true
and expectations. many aspects representation”, or even
of Tupinambá cosmology are falsify the Jesuit one. Instead
placed into the limits of this contrast is an attempt to
Christian world view. To move emphasize how the Indian was
out from this framework meant reinvented under the Christian
to doubt the plausibility of world view, not just to
conversation. In short, to conversional goals, but also
Jesuits like Anchieta, “they because the complexity of
resumed their vice and eating Tupinambá did not reside in his
of human flesh”. From that social organization, but in his
perspective, the Jesuit’s cosmology. In this case, the
primary sources are themselves cosmology presupposed the
documents inscribed by the social order.
challenge of the contact; that According to Florestan
is the unexpected, the Fernandes, the Tupinambá were
unexplained, and the organized around periodic
contingent. displacement for searching for
food in order to survive. The
Cannibalism II tribe was a complex entity that
included local groups united by
Misunderstandings of kinship, religious ties, and
Tupinambá cosmology and the cosmology. The individuals were
controversial conviction based free, but some actions like
on the Christian ethnocentrism displacement, women “trade”
promoted, certainly, a deep between different parentage,
devastation of the social and war expeditions, and cannibal
symbolic basis of Tupinambá sacrifice of enemies, the
life. While the Jesuit actions were regulated by
ethnography depicts the Indian common interests. They lived in
modus vivendi as disorganized, small villages with few Indian
nonsensical life style,1 the houses (malocas) and with a big
present ethnographies, in yard inside where cannibalistic
dialoging with historical ceremonies, meeting among
sources (including Jesuit ones) chiefs, and religious
try to understand how the ceremonies conducted by
spiritual leaders (pajés), took
1 place. They were polygamous,
Vasconcelos’ Chronicles depict in
detail all aspects of the everyday and the meaning of polygamy in
life of Indians. Although recognizing their culture was associated
the Brazilian Indian ethnic mosaic, with social reproduction, with
when he deals with their social
organizations or cosmologies he
considers them as a singular entity
(Vasconcelos, [1663], 1977:97-112).
41
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

enemies, parentage alliances, light on these questions. His


and cannibalism.1 main assumption is that while
In short, Tupinambá social the Tupinambá society was an
organization possessed an amorphous one, its cosmological
intrinsic normative logic which representation is extremely
was not featured in the Jesuits complex:
representations. One can ask How to account for the
why this social organization, coexistence of, on the one
endowed by a normative logic hand, a ‘loosely structured’
was not recorded by Jesuits, organization (few social
and why was Tupinambá social categories, absence of global
organization so scarcely and segmentation, weak
fragmentarily depicted? institutionalization of
The inner relationship interpersonal relations, lack
between natural, supernatural of differentiation between
and cultural ontologies in public and domestic spheres)
Tupinambá cosmology, wherein with, on the other hand, an
they were linked by extensive taxonomy of the
anthropophagy ritual, was the spiritual world (not easily
Tupinambá feature which escaped reducible to homogeneous
from the rational Jesuit principles)? [...] Societies
approach. Shamanism, polygamy, such as the Araweté reveal how
sacrificial war, utterly trivial any attempts
actual/spiritual cannibalism are to establish functional
were fundamental to the consistencies or formal
reproduction of Tupinambá correspondences between
society. morphology and cosmology or
Viveiros de Castro’s between institution and
ethnography of the Areweté (a representation”. (Viveiros de
remainder of the Tupi-Guarani Castro, 1992:2-3).
linguistic family) casts some In Jesuit sources a kind
of estrangement related to the
1
It is important to point out that frequency with which the
Fernandes’ethnography is based on Tupinambá were in war with
historical sources and groups of the same linguistic
anthropological theoretical and cultural background, who in
assumptions. His approaches, even
though functionalist, were able to
many cases had broken off
develop an interesting and profitable alliances and coresidential
dialogue with historical sources. relations, is remarkable.
Among others, his sources are: Furthermore, the Jesuits were
Jesuits, Hans Standen’s xylographies confused and shocked by the
of Tupinambá (1557), Jean de Lery
(History of a Voyage to the Land of
complicity between victims and
Brazil, Otherwise Called America), executioners in cannibalistic
Alfred Med Metraux (La Civilization ceremonies. The illogical
Materielle des Tribus Tupi-Guarani), appearance that the Tupinambá
Andre de Thevet (Le Brésil et les modus vivendi had to Jesuits
Brésiliens. Le Français en Amérique promoted representations
Pendant la Deuxieme moitie du XVe.
Siècle). sometimes simplified or
42
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

disordered, altering the qualities). In this way, the


harmony of Tupinambá symbolical victim indeed often is someone
logic. from a Tupinambá group. The
One of the most complicity between victim and
interesting and intriguing the death ritual, which
aspects of Tupinambá cosmology intrigued so much the Jesuits,
is the interrelationship among is part of a chain which never
war, enemy/captives, and can be broken. If it is broken,
anthropophagic ritual. Warfare the cycle of vengeance is
does not have any other use interrupted, disarranging
than to captured enemies for Tupinambá cosmology,
cannibalistic rituals. They “[...] The relationship to the
didn’t make war on other groups enemy is anterior and superior
in order to enslave enemies, to to society’s relationship to
spoil their goods, or even to itself. [...] Free and fierce,
capture their women. From that inconstant and different, the
perspective, the enemy is Tupinambá were servants of
central in Tupinambá society. warfare: this pushed them into
Vengeance, for example, was a the future. Inhabitants of a
fundamental element in the society without corporations -
reproduction of cannibalistic incorporeal, so to speak - and
acts and communication between cannibal (thus incorporating),
the natural and the its being was time (Viveiros de
supernatural. In Tupinambá Castro, 1992:301),
logic, vengeance assured pride The Jesuits’ interventions
for captor/captive, and into the Tupinambá social order
eater/eaten. It also assured had a harmful effect on the
the reëstablishment of whole Tupinambá cosmology. In
ancestors’ integrity nourishing their initial optimism, the
their memories. At the same Jesuits’view of Tupinambá was
time, vengeance upholds the that of a blank page on which
maturity of the killer, which Christian values should be
gives him immortality after inscribed. Nóbrega wrote,
life. Only the killer can marry “Here, few words are enough,
and have children (Viveiros de because they are blank paper.
Castro, 1992:273-305). We can inscribe everything on
To Fernandes, the them, and the virtuous and the
ingestion of a victim’s flesh zealous are needed to ensure
was a procedure that benefited that the Creator knows of these
a supernatural entity, by which creatures of his” (Nóbrega,
Fernandes recognizes a [1549], 1956, I:142).
religious function of direct Nóbrega also established a
communion with the sacred. set of norms to be applied to
Another aspect of cannibalism Indians: 1) forbid them to eat
is that it promoted a human flesh or to make war
transposition of the victim’s without permission from the
qualities to those who ate governs; 2)make them keep only
flesh (in general, warrior’s one wife; 3)dress them, for
43
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

they have plenty of cotton, at historical model, but also


least after they are proposes a pedagogy based on
Christians; 4) remove their lessons taken form recent
sorcerers; 5) maintain justice colonial history. I turn to
between them and the Christian; examine some aspects of that
6) make them live quietly reconstruction.
without moving to another place After a long description
unless they move in among about the natural traits of
Christians, having sufficient Brazilian lands, Vasconcelos
lands allocated to them and started his description of the
Fathers of the society of Jesus people who inhabited this land.
to instruct them” (Nóbrega, One of the most interesting
[1549] apud Hemming, 1978:113). aspects of his chronicle is an
These laws, which were imaginary dialogue between the
intended to destroy the first explorers and the
apparent signs of Tupinambá Indians, where some questions
culture actually had a direct were formulated by explorers to
and devastating impact on their Indians: “when did you come to
cosmological structure, or this land? Who were their
symbolical order. ancestors? Which part of the
world were they from? How were
Tupinambá Cosmogenesis by they [ancestors] able to come
Jesuits’ point of view here, if in that time ships did
not exist? Why did you not
Vasconcelos’s Chronicle of conserve their colors and their
the Society of Jesus, can be languages? How did you
grasped as a foundational degenerate from their costumes,
narrative of the new putting in doubt that you are
Christians, the Indians, human individuals? and what is
represented with Christian your religion?” (Vasconcelos,
values. Notwithstanding, the [1663], 1977:80).
task of making plausible the The answers supposedly
inclusion of “otherness” in the given by Indians in that
Christian cosmogenesis also had dialogue, implies the Biblical
the effect of redefining or narrative sequence. There was a
readapting some biases which superior identity (Tupã/God)
otherwise denied the Indian who knew the secrets of mankind
human nature. Vasconcelos’ and communicated directly with
Chronicle proposes possible wise men (Pagés/Prophets). This
answers to questions like: if entity was told to a Pagé of
we are all God’s sons, why was the great flood which only some
one part of mankind made wild? chosen peoples would be the
and where can the origin of survivors of the flood. Their
this abandonment be found in ancestors were whites, and the
the Judeo-Christian Indian red color was a result
cosmogenesis? of long exposure to sun.
This reconstruction not Different Indian tongues would
only suggests and inclusive
44
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

be an effect of separation and organize the Brazilian Indian


rivalries among them (Babel).1 ethnic mosaic. However, this
Nevertheless, as a set of information about “the
complement for Indians answers, native of the land”, only
Vasconcelos interposes his own served to reinforce their
interpretation based on those wildness as a kind of moral
questions. It is possible to degeneration in order to affirm
deduce an attempt to persuade their rehabilitation by Jesuits
their readers that even from that “fallen condition.”
recognizing the “fallen On the other hand, the western-
condition” of the Indians Christian symbology itself is
(Ham’s descendants), they must reviewed through the colonial,
be regarded as object of or new world, experience.
Christian proselytism. To The readaptation of
demonstrate it, Vasconcelos Biblical genesis, for example,
constructs a narrative which to incorporate Indians into
starts from the possibility of Universal Christianity, had
human regression to an animal instead the function of
state: “all these [Indian] reordering the colonial modes
nations gentiles are ferocious, of perception from society and
wild, and brutal. Living in its “citizens”. Or, of changing
nature without faith, without the perception from
law, without king (common differentiated ontological
checks of all rational being), context to a differentiated
without policies, without moral context. From that
prudence, without humanity” perspective, the Jesuit
([1663], 1977:97) and concludes pedagogy should perform two
by affirming the plausibility roles: first, to withdraw the
of their rehabilitation. “After Indians from their heathen
all, it is clear that wild condition, transforming them
[Indian] customs are not into new Christians and second
natural but corruptions of to prevent the old and new
nature, and lack good education Christian from becoming
in faith [...] The Amerindians heretics.
are rational beings, of the The arrival of the first
same nature and species of as Jesuits on the colonial scene,
all others. They are able to and their unavoidable
receive sacraments [...] become comparisons between [not-yet-
loyal Christians ([1663], Christian] Indians and
1977:114-16). [already-Christian] colonists,
In Vasconcelos’ Chronicle altered their previous
it is interesting to see missionary strategies. The
(disregarding his value contingents events impeded the
judgments) his detailed Indian coherent application of the
ethnography when trying to preconceptions brought from
Europe. The previous conviction
1 that their function would be to
See, Vasconcelos, Chronicle of the
Society of Jesus, [1663], 1977:80-97. convert heathens was defied by
45
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

the unexpected need to moralize to answer to the challenges of


old Christians. In the letter the new world.
to Coimbra, Nobrega wrote that, Tedlock, referring to
“until now we could not convert Landa and Sahagún, observes
the gentile, for the Christian that the confrontation between
were [in great abuse]and they different cultures can be also
absorb us with their “extirpation of the cultures”
confessions.” (Nóbrega, (1993:148). Following this
[1551], 1956, I:89). observation, I suggest that the
In answering this result of the interactional
challenge, the Jesuits had to process between Jesuits and
bridge the gap between their Tupinambá was the emergence of
expectations and the reality in a Jesuit epistemology which
which they had to operate. In operated directly on the
this process, their reports context or culture that they
constitute a kind of wanted to understand. This
epistemology of the colonial approach, actually means
context. Their task was not altering and reforming
only to identify and convert according to Christian
the “otherness”, but also to “truths”, and the Tupinambá
moralize, educate, and cosmology/social organization
distinguish the good Christian was the target of this active
from the heretic. epistemology.

Conclusion Bibliography:
-BOSI, Alfredo, Dialética da
This interpretative Colonização. São Paulo, Cia.
exercise of some colonial das Letras, 1992.
contact features, deduced from -Clendinnen, Inga, Ambivalent
Jesuit sources, was only an Conquests. Cambridge, Cambridge
attempt to show one possible University
dimension of the interplay Press, 1987.
between Jesuit proselytism and -Fernandes, Florestan, A
the Tupinambá modus vivendi. In Organização Social dos Índios
that cultural confrontation, Tupinambás, São Paulo, Difusão
not only the Tupinambá Européia do Livro, 1963 [1949].
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social organization were Possessions, Chicago, Chicago
spoiled, but also the Jesuit University Press, 1991.
world view was also affected. -Hemming, John. Red Gold, The
In many ways, the Jesuits Conquest of the Brazilian
experienced unexpected Indians, 1500-1760, Cambridge,
situations and contingencies Harvard University Press, 1978.
that the Christian doctrine -Kosseleck, Reinhardt, Future
itself was unable to respond Past: On the Semantics of
to. As a result, redefinitions Historical Time, Massachussets,
and innovations were elaborated The MIT Press, 1985.

46
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

-Pagden, Anthony, European Cambridge University Press,


Encounters with the New World, 1994.
New Heaven, Yale University -Tedlock, Dennis. “Torture in
Press, 1993. the Archive: Mayans Meet
-_____________, The Fall of Europeans”, in: American
Natural Man, Cambridge, Anthropologist, 95, 1993.
Cambridge University Press, -Viveiros de Castro, Eduardo.
1982. From the Enemy’s Point of View.
-Sahlins, Marshall, Islands of Chicago, The University of
History, Chicago, The Chicago Press, 1992.
University of Chicago Press,
1985.
-Schwartz, Stuart B., Implicit
Understanding, Cambridge,

47
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

Entre Duas Estratégias Patriarcais:


Casamentos de Libertos na Cidade do Rio de
Janeiro, 1803-1834
por Carlos Lima
A historiografia a diferenciados a este respeito
respeito dos libertos na segundo critérios que veremos
sociedade escravista brasileira adiante (REIS, 1986). Mieko
produziu versões conflitantes Nishida também enfatiza, no ato
sobre a inserção dos forros no da alforria, o que ele
tecido social.1 A perspectiva representava, na Bahia do
clássica é a de Kátia Mattoso. século XIX, em termos de manejo
Os libertos aparecem ali como da etnicidade, portanto de
“ponte nas relações sociais”, passado africano e cativo
profundamente marcados por seu (NISHIDA, 1993, pp. 361-91).
passado escravo, de modo a se Paralelamente,
esperar que dados sobre suas desenvolvem-se pesquisas que
experiências revelem atitudes tendem a aproximar as vivências
de um grupo extremamente dos forros ao mundo dos homens
identificado ao dos cativos livres. Lembre-se a respeito a
(MATTOSO, 1982, p. 176). Um análise de Marvin Harris no
estudo como o de João José sentido de que a própria raiz
Reis, versando a conjuntura de do comparativamente elevado
revolta africana e islâmica na número de alforrias no Brasil
Bahia entre 1790 e 1835, tende devia-se à precariedade do
a sobrepor à condição jurídica potencial demográfico de
considerações étnico- Portugal, e portanto à
religiosas, de modo que necessidade de inserção
libertos africanos aparecem funcional de uma elite não
profundamente solidários frente branca constituindo setores
aos escravos também africanos e intermediários e executando
em oposição frontal em relação funções próprias ao mundo dos
ao conjunto dos nascidos no homens livres. Subjaz à
Brasil, fossem escravos, argumentação de Harris a noção
libertos ou livres, não de que a inserção funcional dos
bastante deverem ser forros nos esquemas próprios
aos livres fazia-os assumir
1
professor da UFPR. Doutorando em comportamentos mais próximos
História Social pelo IFCS/UFRJ. O dos destes2. Herbert Klein tira
presente trabalho constitui versão
ligeiramente modificada de texto conclusões neste sentido:
apresentado ao X Encontro Nacional da
2
ABEP, em outubro de 1996. Alguns dos Vide HARRIS, 1967. A correção por
comentários então feitos foram parte de Ciro Cardoso de um certo
incorporados ao texto. Devo agradecer viés funcionalista da versão de
especialmente a Sheila de Castro Harris acaba por fornecer uma imagem
Faria e José Luís Petrucelli pelos mais adequada do problema. Não se
mesmos. tratava de que os forros teriam sido
48
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

“A partir de dados quanto a sociedade concentrava também na


casamento e legitimidade, é paróquia as maiores escravarias
evidente que os homens livres da cidade1. Nestes termos, as
de cor tiveram um estilo de interações entre libertos e
vida familiar mais próximo do escravos poderão igualmente ser
normal, em termos da sociedade observadas de perto. Em
branca, se comparados aos terceiro lugar, a paróquia
escravos” (KLEIN, 1978, p. 22). concentrava imigrantes, e
Defendemos aqui que a notadamente, mas não
análise do tema dos casamentos exclusivamente, reinóis. Não se
é estratégica para nos deve pressupor que se tratasse
aproximarmos da questão. apenas da Corte, ou de
Partimos dos casamentos elementos abastados enraizando-
envolvendo libertos realizados se na sociedade brasileira a
na paróquia de São José da partir de 1808, com a ida da
cidade do Rio de Janeiro entre monarquia para a cidade do Rio.
novembro de 1803 e julho de Havia imigrantes portugueses
1816, bem como entre agosto de pobres, chegados especialmente
1819 e novembro de 1834. do Norte do Reino e buscando
A paróquia em questão fortuna, mas também a formação
possuía características que a de famílias, no Brasil.
fazem estratégica para nosso Aportavam do mesmo modo ilhéus,
estudo. Primeiramente, abrigava caracteristicamente
a elite da cidade, de modo a pauperizados, para além do fato
constituir palco privilegiado de que se concentravam em São
para observar, ainda que com os José muitos artesãos e
limites da documentação que migrantes internos. Em suma, um
manejamos, as interações entre pouco de tudo.
libertos e homens e mulheres As 368 uniões analisadas
livres. Mas, em segundo lugar, conformaram pouco mais de 15%
a presença da elite da do total de casamentos
ocorridos na paróquia no
convocados a preencher posições período, mostrando claramente o
funcionais pela carência de brancos. caráter senhorial desta última.
Tratava-se de que a escassez de As vantagens do manejo deste
imigrantes livres aumentava as tipo de dados já foram
chances de que forros pudessem mencionadas2.
ascender em termos sociais e
ocupacionais. A diferença parece
1
pequena, mas de fato se está diante Em 1821, 42.6% dos 19811 habitantes
da diferenciação entre uma imagem de da paróquia eram escravo. Cf. SILVA,
assimilação dos libertos ao mundo dos 1975.Maria Beatriz Nizza da - Análise
homens livres e uma versão de da Estratificação Social (O Rio de
competição por posições. Segue-se que Janeiro de 1808 a 1821) - São Paulo,
a postura de Harris supõe de modo FFLCH/USP, 1975.
2
mais disciplinado uma assimilação do Nota-se, por outro lado, que há um
comportamento dos livres pelos intervalo cujos dados não coletamos,
forros, ao passo que a colocação de intervalo este estendido entre agosto
Cardoso não passa necessariamente de 1816 e julho de 1819. Mas não há
pela questão dos comportamentos. Cf. razão para que se pressuponha alguma
CARDOSO, 1985, p. 63. especificidade do período descoberto,
49
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

Voltando à problematização desprestígio conferido pelos


da historiografia, a hipótese homens livres aos crioulos que
defendida aqui é a de que o aos africanos. Maior prestígio,
conjunto dos forros não pode no interior das escravarias, ou
ser considerada em termos seja, a olhos cativos,
unívocos. Ele aparecerá neste atribuído aos africanos.
trabalho como diferenciado e
estratificado, e de acordo com UM MERCADO MATRIMONIAL
mais de um critério SEGMENTADO
subjetivamente assumido pelos A primeira noção que
atores. Como será visto, ele ressalta da tabela 1, que
englobava um segmento vivendo fornece a incidência de cada
bastante nitidamente em tipo de aliança como
articulação com o conjunto dos percentagem do total de
homens livres da paróquia, alianças, é a participação
notadamente mesmo seus ex- relativamente alta de uniões
senhores. Mas congregava também isogâmicas. Quase metade dos
uma comunidade “liberta” casamentos que envolveram
fortemente ligada aos esquemas forros foram internos aos
cativos de circulação na cidade grupos de condição jurídica,
e de estabelecimento de procedência e “raça”1.
interações quotidianas. Exemplifica-o a união entre
Certamente, os critérios de Joaquim Ramos Barreto, preto
estratificação dos cativos forro, e Joana Rita de Jesus,
produzidos pelos senhores, ou também preta forra. Ambos eram
pelos livres em geral, tendiam referidos como originários do
a privilegiar o primeiro grupo. gentio da Guiné, tendo antes,
Os escravos provavelmente enquanto cativos, pertencido a
conferiam prestígio à segunda senhores diferentes. Casaram-se
atitude. Neste último caso, as em 14 de janeiro de 18042.
noções veiculadas aqui se Conforme argumentaremos mais
aproximam das atitudes de intensamente a seguir, tal
escravos africanos descritas padrão era indicativo da
por Reis (1986) para a cidade pertinência a um mundo marcado
de Salvador e para Florentino e muito de perto pela escravidão,
Góes para o agro fluminense quer como passado e “marca”,
(FLORENTINO e GÓES, 1995), em
períodos semelhantes aos aqui 1
Neste estudo, a palavra raça sempre
considerados. Menor receberá aspas. Há problemas de
registro da cor da pele, e falaremos
deles a seguir. Além disso, sua
e a carência de dados sobre um consideração sempre cruzava-se à da
período de três anos no interior de procedência.
2
um balizamento que abarca mais de Vide seu assento em Arquivo da Cúria
trinta não interfere seriamente nas Metropolitana do Rio de Janeiro -
constatações e conclusões. Foram Livro de Assentos dos Matrimônios de
realizados testes que mostraram que a Pessoas Livres, Paróquia de São José,
inclusão de anos incompletos não livro 3, fl 1v. Este caso antecipa a
introduziu desvios significativos natureza de parte crucial das uniões
devidos à sazonalidade. analisadas.
50
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

quer como solidariedade interna matrimônio. No mínimo, afirme-


a uma comunidade escrava e no se que se conformava um mercado
limite africana. matrimonial segmentado. Isto
Mas é também perceptível a porque vigia mais de uma norma,
tendência a que a presença de ou mais de um critério de
uniões isogâmicas de forros estratificação. Por ora, basta
fosse maior, quanto maior fosse observar as alianças realizadas
seu desprestígio a olhos por mulheres forras.
livres. Cerca de dois quintos Elas tinham muito maior
dos casamentos envolvendo facilidade em casar-se com
libertos foram uniões indivíduos livres do que os
isogâmicas entre mulatos forros homens. Mais de um terço dos
e entre crioulos libertos. Mas casamentos de forras foram
apenas as alianças entre pretos hipergâmicos. Mas apenas algo
forros compuseram um quarto do em torno de 15% dos de libertos
total. Mulatos forros do sexo masculino também o
normalmente tinham mais foram. Mais da metade (55.4%)
facilidades em casar-se para o das mulatas forras uniram-se a
alto que crioulos e homens livres (Tabela 4), ao
especialmente pretos forros. passo que apenas 30% dos
Inversamente, o fato de ser mulatos forros se uniram a
africano e negro levava o mulheres livres (Tabela 3).
liberto à isogamia, como no A princípio isto parece
casamento exemplificado acima. ratificar a idéia de um grupo
Não devemos nos deixar liberto coeso quanto às
levar pelas aparências e perspectivas, mas diferenciado
afirmar que se tratasse apenas no tocante às oportunidades.
de desigualdade de Mulheres forras, especialmente
oportunidades no interior de um as mulatas, teriam apenas tido
mercado matrimonial. Manejamos melhores chances que os mulatos
esta expressão como metáfora e mesmo que as negras libertas,
para referir um conjunto de já que a paróquia recebia
preferências e de grandes levas de imigrantes,
possibilidades de implementá- quer internos, quer reinóis,
las. A hipótese sobre a quer ainda provenientes das
vigência de um único mercado Ilhas. Isto significa que a
matrimonial - que rejeitamos - classe de idade apta ao e
postula a existência de um desejosa do casamento achava-se
único corpo de preferências e certamente inflada de homens.
uma hierarquização dos libertos Um caso que o exemplifica é o
em função de suas capacidades de Luiza Rosa da Silva, mulata
maiores ou menores de realizá- forra nascida na cidade do Rio
las. Defendemos que se estava de Janeiro. Casou-se em 20 de
diante de duas perspectivas janeiro de 1805 com José
diferentes, de duas atitudes Correa, soldado do Regimento de
opostas em relação ao problema
das solidariedades e alianças a
serem estabelecidas através do
51
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

Artilharia, nascido em Minas Mas ainda assim fica demarcado


Gerais de família legítima1. o fato de que havia alguma
Assim, uma forte lógica, desvinculada das razões
desigualdade de oportunidades - de masculinidade dos diversos
o que ratificaria a idéia de grupos de condição jurídica,
que existia um único mercado levando mulheres forras a
matrimonial - separaria homens buscarem cativos como
e mulheres, em favor destas parceiros. Elas tinham melhores
últimas2. Ainda assim, é possibilidades com os livres.
preciso retornar aos dados Elas também, entretanto,
produzidos no contexto deste escolhiam cativos, em diversos
estudo para que se tenha uma casos.
visão diferenciada. Descartamos que se
Percebe-se que a tratasse somente de uma maior
percentagem correspondente às oportunidade das mulheres no
uniões que congregavam uma mercado matrimonial,
liberta e um escravo era oportunidade esta desperdiçada
ligeiramente maior que as por fatores aleatórios quando
aliando um liberto e uma forras se uniam a escravos.
escrava. Em outros temos, as Enxergamos antes uma primeira
mesmas mulheres forras que demonstração de que o conjunto
tinham melhores oportunidades dos libertos não formava de
no mercado matrimonial dos fato um grupo social. Não se
livres casavam-se também com orientava por uma única
escravos, e faziam-no em maior perspectiva, ou por uma única
escala que os libertos homens. pauta de comportamentos.
A situação então se invertia. Tampouco formava uma
Entre os escravos, eram os comunidade, isoladamente.
homens que tinham A Tabela 2, que agrupa as
possibilidades um pouco maiores alianças em função apenas da
de casar-se para cima. É condição jurídica, permite uma
correto pensar que isto devia visualização mais clara do
ser creditado ao fato de que os processo. Também abarca um
filhos eventuais das uniões de número de casos ligeiramente
homens forros com escravas maior, à medida que nem sempre
seriam escravos, ao passo que os assentos continham
os de forras com cativos do procedência e cor dos forros.
sexo masculino não o seriam. As mulheres forras afortunadas
diante das necessidades dos
1
Arquivo da Cúria Metropolitana do homens livres, pautavam-se
Rio de Janeiro - Livro de Assento dos fortemente pelas possibilidades
matrimônios de Pessoas Livres, de ascensão social vinculadas
Paróquia de São José, livro 3, fl
17v. ao casamento com os que nunca
2
Isto não obstante a constatação de haviam sido escravos. Mais de
Karasch no sentido de que quase dois um quarto dos casamentos
terços dos cativos alforriados considerados uniam um homem
mediante escrituras públicas (de livre e uma liberta. Menos de
fato, 64%) eram mulheres. Cf.
KARASCH, 1987, cap. 11. um décimo dos mesmos aliavam
52
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

uma mulher livre a um forro. libertas o fizeram com mulatas.


Tais porcentagens são bastante Já as mulheres livres que se
significativas. casavam com libertos
Muitas mulheres, selecionavam ainda mais seus
entretanto, orientavam-se por parceiros não-livres. Quase
outra norma de convivência, dois terços das mulheres livres
assumindo perspectivas casadas com libertos o fizeram
inscritas fortemente no com pardos.
interior da comunidade escrava Mulheres livres que se
da cidade. Os casamentos entre casavam com libertos
forras e escravos do sexo selecionavam mais tais libertos
masculino eram oito vezes mais de acordo com a cor da pele:
numerosos que os unindo um 70% delas uniu-se a mulatos. O
forro e uma escrava. As mesmo não se aplicava - ao
alianças isogâmicas dos menos não com a mesma
libertos e especialmente das intensidade - aos homens livres
libertas - majoritárias - devem que se casavam com forras. Ou
ser assim interpretadas. Ainda seja, mulheres livres, quando
mais devem sê-lo as alianças de se casavam com libertos, o
libertos com escravos. faziam com mulatos, em quase
Por ora, cabe retornar à todos os casos. Mulheres forras
questão do fenótipo e da de todas as cores tinham maior
procedência, observando as possibilidade de ascensão, em
tabelas 3 e 4, que tratam das confronto com os homens forros.
mesmas alianças expressas na A maior presença de negras e
Tabela 1, mas agora dando a africanas nas uniões livres-
percentagem de cada tipo de libertas mostra um maior acesso
casamento em relação, das mulheres a posicionarem-se
respectivamente, ao total de no mercado matrimonial dos
homens e mulheres em cada livres, permitindo que
segmento de cor, procedência e barreiras relacionadas à cor da
condição jurídica. pele fossem superadas. Já as
Já argumentamos no sentido possibilidades deste tipo de
de que os padrões de mobilidade ascensão, no tocante aos homens
através do casamento forros, restringiam-se aos
enraizavam-se na “cor” da pele, mulatos, ou aos que eram
ao menos até o ponto em que registrados enquanto tais.
possamos dar crédito aos
registros em relação ao COM OS SENHORES, PARA O ALTO
problema do fenótipo. Os Continuamos a argumentar
casamentos hipergâmicos eram no sentido de que as alianças
sempre mais importantes quanto que envolviam forros e livres
mais clara fosse a cor da pele posicionavam os primeiros como
indicada. Mas é preciso compartes dos homens livres.
ressaltar que a variável gênero Nestes termos, atentamos para a
deve ter sido mais decisiva. relação entre as alianças
Pouco mais de metade dos homens realizadas pelos libertos e as
livres que se casaram com características de seus ex-
53
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

senhores, nos casos em que Ainda assim, nos parece alta a


dispomos ao menos dos nomes participação, entre os forros
destes. Isto já é muita coisa, casados, de libertos de
já que a sociedade em questão senhores privilegiados,
valorizava os títulos de indicando que a condição
distinção - Dona, para as superior dos ex-senhores teve
mulheres; capitão, doutor, ou algum impacto nas chances de
reverendo, no caso dos homens; mobilidade ascendente de seus
isto para além dos títulos ex-escravos.
propriamente de nobreza. Observar a questão em
Inicialmente, consideramos relação às libertas,
o próprio ato de casar-se como distribuídas segundo as
indicativo de ascensão social alianças de que puderam
por parte dos forros da participar, reforça a posição
paróquia. Observar, de posse que assumimos. Isto se faz
disto, os antigos senhores através da Tabela 6, que
destes libertos mostra o quanto confronta a participação de
tal ascensão podia dever-se a indivíduos dotados e
eles próprios, senhores. A destituídos de títulos de
Tabela 5 mostra que, em distinção entre os ex-senhores
percentagens bastante de libertas, segundo o tipo de
semelhantes para homens e casamentos em que tais libertas
mulheres, possuíam títulos de se puderam envolver.
distinção entre um quinto e um Quando se atenta para as
quarto dos ex-senhores de libertas de ex-senhores dotados
libertos que logravam casar-se de títulos, nota-se que
formalmente. Infelizmente, não logravam com maior facilidade
é possível comparar a casar-se com livres. Isto
participação de libertos de indica que, até certo ponto, os
senhores dotados de títulos com libertos podiam circular no
a deste tipo de senhor no mundo e valores dos livres,
próprio ato da alforria, à afastando-se neste caso da
medida que os cartórios vivência escrava. Não era a
normalmente não respeitavam tão relação destas libertas com a
escrupulosamente quanto a massa escrava que as
Igreja a prática da distinção1. posicionava e identificava, mas
antes a interação com os ex-
1
Mary Karasch, que estudou as senhores. O destino das
alforrias passadas no cartório do 1º libertas mencionadas
ofício da cidade entre 1807 e 1831, solidarizava-se aqui aos de
afirma que, dentre os senhores do seus antigos proprietários, e
sexo masculino que libertaram não aos daqueles com quem
cativos, 41 eram comerciantes; 36,
artesãos; 23, o que ela chama de haviam compartilhado o
militares; 19, portadores de cargos cativeiro. Note-se que a
no Estado; 14, padres; 7, fazendeiros questão, colocada como o foi
e 86, pequenos lavradores. Quanto às
senhoras do sexo feminino que
libertaram no período - 42% do total notarial o estado civil. Vide
-, só se conhece pela documentação KARASCH, 1987, cap. 11.
54
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

aqui, indica montantes mínimos Ou então pode-se supor que a


deste processo, à medida que comunidade escrava ou africana
nem sempre uma condição que se tem buscado entrever
privilegiada entre os livres podia incluir contatos
era consagrada com títulos de estreitos, e eventualmente
distinção. alianças, com sujeitos e
O indício, no entanto, é famílias livres ou então já
forte. Agregue-se a mais afastadas de um passado
probabilidade de que os escravo. A primeira hipótese
plantéis de senhores dotados de desvincula os nubentes em tela
títulos fossem maiores, em da comunidade escrava e
média, já que sua posição vincula-os às estratégias de
privilegiada em termos de embranquecimento. A segunda
prestígio tendia a refletir-se pode mesmo ampliar a imagem que
na posse de riqueza, ou vice- se tem daquela comunidade.
versa. Plantéis maiores Ainda assim, a presença
tenderiam a facilitar importante de alianças com
casamentos no interior dos imigrantes do Reino ou das
mesmos (SLENES, 1988; FARIA, Ilhas não deixa dúvidas a
1992), e isto poderia afetar respeito da segmentação do
também os libertos oriundos de mercado nupcial.
tais escravarias. Tal, Observem-se agora as
entretanto, não se dava. diferenças de comportamento de
É preciso verificar as libertos e libertas no
características dos indivíduos casamento com livres. A
livres que se casavam com participação de ilegítimos foi
libertos de ambos os sexos semelhante nos dois casos -
(Tabela 7). Os dados aqui sempre cerca de um terço. A de
apresentados sugerem, é certo, mulatos foi bem maior no caso
que algum reparo deve ser feito dos maridos livres de forras -
em relação à idéia antes um terço contra um sexto. Já a
exarada no sentido de que os de expostos foi parecida nos
casamentos entre livres e dois casos, levemente superior
forros devem ser interpretados entre as mulheres livres
como signos da aproximação casadas com forros. Os
destes últimos em relação às migrantes internos também se
perspectivas dos homens livres. mostraram presentes em
Nota-se que muitos de tais proporções assemelhadas nos
casamentos uniam libertos a dois casos. Quanto aos maridos
indivíduos ainda marcados pela livres de libertas, tem-se que
escravidão de seus estavam presentes, e de modo
antepassados. Nestes casos, relativamente marcante, os
pode-se pensar mais em uma imigrantes reinóis e
estratégia intergeneracional, originários das ilhas. Os dados
em que famílias aliavam-se de são parcos, mas permitem
modo tal que se livrassem de verificar que os indícios de
estigmas relacionados à condição subordinada na
condição de escravo ou liberto. sociedade e os de posição
55
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

relativamente mais benéfica se Concluindo esta seção,


misturavam quanto aos cônjuges afirmamos entretanto que
livres de libertos, em ambos os residia nelas, libertas, a
gêneros. Contudo, os melhor possibilidade de ascensão, e
posicionados no mercado não no passado de suas
matrimonial dos livres se famílias, no interior do
casaram mais com libertas que cativeiro. Observando-se, na
com libertos, como se vê pela Tabela 8, os casamentos de
participação de imigrantes libertas com homens livres, de
reinóis e das ilhas neste caso. um lado, e com forros e
Deve-se observar os escravos, de outro, percebe-se
casamentos unindo forros com que não havia diferenças
livres que reunissem vários marcantes no tocante ao grau em
signos de posição próxima ao que tais libertas provinham de
passado escravista, ou seja, famílias legitimadas. 20% das
livres que fossem ilegítimos, libertas casadas com libertos
mulatos ou negros e filhos de ou escravos eram nascidas de
libertas. Quatro forras uniões legitimadas, ao passo
casaram-se com homens livres que 18% das unidas a cônjuges
nestas condições. Três libertos livres o eram.
do sexo masculino uniram-se a Assim, as condições das
mulheres livres dotadas de tais famílias de origem das libertas
atributos. Primeiramente, estes não tinham impacto apreciável
números são baixos em sobre seus destinos, ao menos
comparação com os totais de não no tocante a terem ou não
casamentos entre livres e sido capazes de legitimar suas
forros. Em segundo lugar, os uniões. O grau em que provinham
homens estão melhor de famílias legitimadas ou não
representados nestes casamentos era semelhante para libertas
unindo libertos com livres ascendentes, isogâmicas ou
bastante desprestigiados. Era hipogâmicas. Se alguma
mais comum para as mulheres diferença tiver de ser
forras uma possibilidade como a considerada relevante, ela
aproveitada por Vitória Maria realçará a condição superior -
da Conceição, preta forra de ou seja, mais legítima - das
nação Mugumbe (sic), ex-escrava origens das libertas que não
de Antônio José da Costa ascendiam socialmente.
Barbosa. Em abril de 1812, Agregando a estas considerações
casou-se com Manoel Dias, as feitas anteriormente, tem-se
oriundo de família legítima e que os destinos das libertas
nascido na freguesia de Santa eram mais afetados pelas
Eulália, termo da Vila de características de seus ex-
Guimarães, em Portugal.1 senhores que pelas de suas
famílias de origem, mostrando-
1
Vide seu assento em Arquivo da Cúria se assim o quanto sua vivência
Metropolitana do Rio de Janeiro - passava a articular-se mais à
Livro de Assentos de Matrimônios de dos homens livres que à dos
Pessoas Livres, Paróquia de São José,
livro 3, fl 138v. cativos. Em outros termos, os
56
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

doadores das forras que se exatamente o inverso do


casavam com livres parecem ter ocorrido com os provenientes da
sido menos seus pais e irmãos e África Oriental, representados
muito mais seus ex-senhores. A nos casamentos de São José por
família, portanto, assumia uma mulher, tão somente2.
significados diversos, conforme Notemos agora os
se tratasse de uniões casamentos realizados por
realizadas para cima ou para cônjuges africanos libertos.
baixo, ou segundo se pautassem Trata-se da Tabela 10. Eles nos
pela mobilidade ou pela mostram o fortíssimo impacto de
comunidade. critérios africanos na escolha
de parceiros. Percebe-se a
COM OS CATIVOS, NO SENTIDO DA forte endogamia em relação às
ÁFRICA procedências africanas: mais de
Foi dito acima que as quatro quintos dos casamentos
uniões em que ambos os cônjuges entre pretos forros na paróquia
eram forros devem ser uniram indivíduos que
interpretadas como governadas selecionaram parceiros em
por uma lógica própria à função de afinidades africanas.
comunidade cativa. O caráter Algumas observações devem
das alianças envolvendo forros ser feitas a respeito.
de procedência africana conta Primeiramente, o que
esta história de modo claro. visualizamos através do modo
Antes, porém, de examiná-las, como os dados foram organizados
deve-se conhecer a composição, não são regiões de nascimento
por procedência, do grupo dos dos ex-cativos. São, antes,
africanos forros que se casaram grandes regiões de embarque.
(Tabela 9). Não se trata, portanto, de
Predominam os procedentes casamentos entre sujeitos
da África Ocidental Atlântica, marcados pelas mesmas
compondo quase a metade dos identidades do ponto de vista
nubentes africanos. Mas nota-se étnico. Caso desagregássemos os
a participação acima de toda a dados segundo as procedências
expectativa dos provenientes da declaradas no documento, tal
África Ocidental, muito acima procedimento nos poria em
de sua participação na contato apenas com portos de
população escrava da cidade1, embarque, e assim mesmo tal não
ocorreria em relação à
1
A partir de diversas fontes, Karasch totalidade dos casos. Ainda não
estima a participação dos delimitaríamos identidades.
provenientes da África Ocidental na Além do mais, deve ser lembrada
população escrava africana da cidade
do Rio de Janeiro da primeira metade
do século XIX em alguma percentagem socialmente em escala mais ampla.
situada entre os 0.8 e os 6.6%. Ver a Isto precisa ser objeto pesquisas
respeito o capítulo 1 de KARASCH, mais aprofundadas.
2
1987. Ou eles obtinham a alforria em Já estes representariam entre 17.9
maior grau que os outros africanos, e 26.4 da população escrava africana
ou, alforriados, casavam-se em maior da cidade do Rio do período. Vide
número. De qualquer modo, ascendiam KARASCH, 1987, cap. 1.
57
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

a conhecida advertência no estratégias familiares,


sentido de que podiam ocorrer provavelmente tendo em vista a
disjunções muito fortes entre a obtenção da alforria3.
região ou porto de embarque dos O significativo é que, se
cativos na África e suas os casamentos em que ambos os
procedências efetivas do ponto cônjuges eram libertos, ou em
de vista étnico1. Mas há que um deles era escravo,
análises que enfatizam, se não radicavam fortemente na lógica
identidades referenciadas da comunidade escrava,
àquelas grandes regiões, pelo escapavam totalmente da esfera
menos o fato de que traços de influência de seus senhores
culturais importantes podiam e ex-senhores. A Tabela 11
atravessar as mesmas2. Ficamos fornece a participação, nos
portanto com a sugestão de que casamentos entre libertos ou
tais traços culturais, mesmo entre libertos e escravos, dos
que ausente o conjunto de que realizados entre provenientes
faziam parte nos locais dos mesmos plantéis.
originários dos africanos, A esmagadora maioria dos
norteavam a seleção de parceiros provinha de plantéis
parceiros entre os libertos diferentes. Tal dado não pode
africanos do Rio de Janeiro. ser tomado como indicativo de
Outro dado significativo, um afastamento em relação aos
embora aqui os números sejam laços estabelecidos no
mais renitentes, é o dos oito cativeiro. Isto porque, no
casos em que um liberto ou mundo urbano do período, o
liberta africana casava com um plantel não era o local
escravo ou escrava africana e privilegiado da interação entre
no qual conhecemos a cativos, dado tudo o que já se
procedência de ambos. Destes escreveu sobre “a maior
oito, apenas um foi de união liberdade de circulação dos
entre indivíduos de escravos nas cidades”. Mas
procedências africanas indica intensamente um
diferentes. Os números são afastamento em relação à esfera
pequenos, mas a maioria folgada de influência dos senhores.
mostra tendência clara no A comunidade cativa,
sentido de que o casamentos fortemente vigente no mundo
entre libertos e escravos fosse urbano brasileiro do início do
algo realizado no interior de século XIX, parece ter escapado
uma comunidade africana. Talvez da ingerência senhorial direta,
consistisse em parte de ao contrário dos mecanismos de
ascensão social factíveis a
1 libertos, fortemente enraizados
Vide a respeito GÓES, 1993, pp. 33-
51.
2 3
Quanto a isto, vejam-se SLENES, Alida Metcalf afirma que boa parte
1991-1992, no que tocava à África da vida familiar dos cativos em
Ocidental Atlântica e REIS, 1986, Santana do Parnaíba no século XVIII
como um estudo que pressupõe algo prendia-se a estratégias no sentido
parecido no tocante à África de lográ-lo. Vide METCALF, 1983, pp.
Ocidental. 162-188.
58
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

nas atitudes dos senhores de que manejamos distinguiam


escravos. aparentemente com cuidado entre
mulatos e negros. Reservavam
CONCLUSÕES também com bastante disciplina
Mostrou-se claramente que a palavra crioulo para escravos
a linha de diferenciação entre ou libertos nascidos no Brasil,
libertos inseridos em uma utilizando a palavra preto para
comunidade africana e forros os nascidos na África. Há
integrados plenamente às poucas exceções a tal regra. No
práticas dos homens livres entanto, a serem justificáveis
passava pelo fenótipo, embora os cuidados sugeridos pela
as diferenciações entre homens historiografia citada, o
e mulheres quanto a isto fossem raciocínio aqui realizado não
mais pronunciadas. Ainda assim, ficaria totalmente prejudicado.
pode-se afirmar que mulatos A clivagem entre inseridos no
ocupavam o cume da mundo africano e inseridos no
estratificação dos libertos no mundo dos homens livres ficaria
momento em que esta se fazia de pé. É altamente provável que
através dos critérios dos os hábitos de padres de
livres. Negros, por outro lado, paróquias diversas fossem
tendiam a formar uma comunidade diferentes quanto a isto.
separada, marcada e Permanece de pé, portanto,
hierarquizada segundo a idéia de uma segmentação do
mecanismos próprios. mercado matrimonial. Isto
São necessárias, contudo, faculta redimensionar uma
algumas precauções. Trabalhos afirmação corrente a respeito
recentes mostraram o quanto era da sociedade e especialmente
precário o registro da cor da das cidades brasileiras do
pele nos documentos brasileiros período. Costuma-se referí-las
dos séculos XVIII e XIX. como comportando segmentos
Afirma-se que a cor indicada profundamente diferenciados do
referia menos um fenótipo que ponto de vista dos
um posicionamento na hierarquia comportamentos. De um lado, uma
vigente entre os livres. O elite estável e apta a
registro da cor conotaria menos monopolizar toas as posições
a segregação de acordo com a valorizadas. De outro, um
cor da pele, e mais o segmento marginalizado composto
preconceito em relação a uma pela maioria da população. Isto
posição SOCIAL subordinada. se refletiria nas práticas
Afirmação semelhante se faz em associadas ao casamento e à
relação ao uso das palavras formação de famílias. Pensa-se
preto e crioulo. Denotariam num pequeno grupo patriarcal, é
menos procedências - como foi certo, e portanto disposto a
considerado aqui - e mais a alianças para baixo, mas
condição ou não de liberto sobretudo tido como o único
(Vide CASTRO, 1994; FARIA, capaz de manter-se na norma
1992; EISENBERG, 1989). A derivada do Catolicismo
questão é a de que os registros dominante. Por outro lado,
59
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

nesta imagem os subalternos de tais inserções, embora


aparecem como absolutamente realizados diante de altares
anômicos e marginalizados. Um católicos. Em terceiro lugar, a
trecho de Oliveira Viana idéia da falta de oportunidade
exemplifica a colocação: de escolha de parceiros
“Entre nós, (...) o indivíduo nupciais, que certamente tem
das camadas inferiores está, no algum valor, para algum âmbito
ponto de vista da solidariedade limitado, não responde a tudo.
parental, completamente Segue-se que os excluídos da
desamparado: da dissolução legalização de suas uniões
familiar, em que vive, não é podiam ser tanto indivíduos a
possível surgir uma quem realmente estavam vedados
concentração gentílica, capaz os acessos, quanto sujeitos
de constituir-se em centro portadores de outras
poderoso de defesa individual. perspectivas, lógicas e normas
Só a alta classe rural goza, de convivência. Desse modo, a
principalmente no passado, área coberta pelas uniões
destas vantagens tutelares” informais, ao invés de se
(OLIVEIRA VIANA, 1973, p. 147). identificar à anomia, recobria
Os dados e a análise que certamente outras apreensões do
foram expostos aqui destoam mundo.
desta caracterização. Por fim, há aquilo que os
Primeiramente, não se dados e análises antecedentes
verificava a existência de uma nos ensinam a respeito dos
única norma em tal sociedade. próprios libertos. Mostramos
Vimos um mercado segmentado, ou que a questão étnica achava-se
seja, uma situação de acesso a profundamente implicada à do
parceiros nupciais cindida estabelecimento da vivência dos
entre perspectivas diversas. Em forros, ou ao menos de grande
outros termos, muitos dos que parte deste conjunto. Mas
se considera excluídos da Genovese ensina que a questão
possibilidade da vida no da origem étnica das
interior do mundo legalizado e instituições partilhadas pelos
regrado na verdade pautavam-se cativos ou libertos nas
por suas próprias regras de Américas não dá conta
existência social, e podiam totalmente do problema das
fazê-las exprimirem-se no setor relações entre senhores e
legalizado da formação de escravos, ou entre livres e
famílias. Em segundo lugar, não-livres de modo mais geral.
mostrou-se que prováveis normas Alguma importância é dada por
africanas de convivência podiam ele à natureza das
penetrar o círculo daquilo que instituições1, mas a dinâmica
recebia sanção religiosa e das relações mencionadas
oficial. Afinal, tratamos de
casamentos endogâmicos em 1
Pensamos especialmente em seu
relação a inserções culturais capítulo a respeito das vicissitudes
africanas, e portanto do Cristianismo no Sul escravista dos
Estados Unidos. Vide GENOVESE, 1988,
preservadores no Rio de Janeiro v. 1, cap. 3.
60
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

radicava na luta pela e aos libertos, sendo estes em


atribuição de significado a parte produto de tal
elas. Assim, se parte dos preservação, como foi visto
libertos se direcionava para aqui.
práticas em relação ao De outro, a presença de
casamento assimiláveis às dos mecanismos de mobilidade
homens livres, não se deve de ascendente - igualmente
modo algum assumir sem expressa nos matrimônios -
precauções que estes libertos assentava em bases semelhantes,
teriam sido mais cordatos e mas também na dinâmica das
submissos. Inversamente, a interações entre cativos e
presença da comunidade africana libertos com os diversos grupos
não indica sem peias a de uma sociedade que se mostra,
ocorrência de resistência ao da perspectiva atual, bastante
escravismo. mais complexa que aquilo
As relações entre as descrito por esquemas
práticas associadas ao tradicionais, do tipo dos que
casamento de escravos e viam apenas um ínfimo grupo
libertos, de um lado, e a senhorial colocado ferreamente
questão do estabelecimento das acima de uma imensa massa de
condições políticas para a cativos e marginalizados.
manutenção de uma sociedade As diversas alternativas
escravista, de outro lado, sociais e mesmo étnicas
devem ser vistas de outro verificadas em função destes
prisma. A questão passava pela dinamismos exibiam-se com força
conformação patriarcal que tal nas cisões que marcavam o
sociedade assumia, articulada à conjunto dos libertos. Esta é a
negociação das condições do conclusão central deste
cativeiro. isto implicava na trabalho.
formação de uma comunidade
escrava e na preservação de
perspectivas específicas a eles

Tabela 1: Distribuição das alianças matrimoniais envolvendo forros, segundo


condição jurídica, procedência e cor (paróquia de São José do Rio de Janeiro,
1803-1834)
homens
livres* mulatos crioulos pretos escravos*
forros forros forros
livres* - 6.8 1.9 1.3 -
mulatas 13.3 10.4 0.3 0 0
forras
mulheres crioulas 6.5 3.9 9.1 2.6 0.6
forras
pretas 6.5 1.3 7.1 24.3 3.6
61
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

forras
escravas* - 0.3 0 0.3 -
Fontes: Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro - Assentos de
Matrimônios das Pessoas Livres, paróquia de São José, livros 3, 4 e 5.
N=308
% de casamentos hipergâmicos de mulheres = 38.9
% de casamentos hipergâmicos de homens = 16.8
% de casamentos isogâmicos = 43.8
*Apenas os(as) que se casaram com libertos(as)
Obs: As células cujos dados se acham grifados representam as uniões isogâmicas

62
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

Tabela 2: Distribuição (%) das alianças matrimoniais envolvendo forros, segundo


a condição jurídica (paróquia de São José do Rio de Janeiro, 1803-1834)
homens
livres* forros escravos*
livres* - 9.9 -
mulheres forras 27.6 57.7 4.1
escravas* - 0.5 -
Fontes: Vide tabela 1
% de casamentos hipergâmicos de mulheres = 28.1
% de casamentos hipergâmicos de homens = 14.0
% de casamentos isogâmicos = 57.7
* Apenas os(as) que se casaram com libertos(as)
Obs: Vide observação na tabela 1

Tabela 3: Casamentos envolvendo libertos: Percentagem de cada tipo de aliança,


segundo condição jurídica, procedência e cor, sobre o total de homens de cada
categoria (paróquia de são José do Rio de Janeiro, 1803-1834)
homens
livres* mulatos crioulos pretos escravos*
forros forros forros
livres* - 30.0 8.6 3.4 -
mulatas 50.6 45.7 1.7 0 0
forras
mulheres crioulas 24.7 17.1 49.1 9.2 15.4
forras
pretas 24.7 5.7 38.6 86.2 84.6
forras
escravas - 1.4 0 1.1 -
*
total de homens na 81 70 57 87 13
categoria
Fontes: Vide tabela 1
*Apenas os(as) que se casaram com libertos(as)
Obs: Vide observação na tabela 1

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Tabela 4: Casamentos envolvendo libertos: Percentagem de cada tipo de aliança,


segundo condição jurídica, procedência e cor, sobre o total de mulheres em cada
categoria (paróquia de São José do Rio de Janeiro, 1803-1834)
homens mulheres por
categoria
(n.)
livres* mulatos crioulos pretos escra-
forros forros forros vos*
livres* - 70.0 20.0 10.0 - 30
mulatas 55.4 43.2 1.3 0 0 74
forras
mulheres crioulas 28.6 17.1 40.0 11.4 2.9 70
forras
pretas 15.1 3.0 16.7 56.8 8.3 132
forras
escravas - 50.0 0 50.0 - 2
*
Fontes: Vide tabela 1
*Apenas os(as) que se casaram com libertos(as)
Obs: Vide observação na tabela 1

Tabela 5: Participação dos ex-senhores com títulos de distinção entre os ex-


senhores dos libertos casados (paróquia de São José do Rio de Janeiro, 1803-1834)
nubentes N. de ex-senhores com N. de ex-senhores com % dos ex-senhores
nome conhecido títulos com títulos
forros 134 30 22.4
forras 211 43 20.4
Fontes: Vide tabela 1

Tabela 6: Distribuição dos casamentos de libertas segundo a condição jurídica dos


noivos e a condição privilegiada ou não de seus ex-senhores (Paróquia de São José
do Rio de Janeiro, 1803-1834)
Libertas de ex-senhores Libertas de ex-senhores destituídos de
dotados de títulos de títulos de distinção
distinção n. %
n. %

casadas com 15 34.9 44 26.3


homens livres
casadas com
forros ou 28 65.1 123 73.7
escravos
total 43 100.0 167 100.0
Fontes: Vide tabela 1

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Tabela 7: Algumas características dos cônjuges livres de libertos, números


absolutos de parceiros livres em cada caso (Paróquia de São José do Rio de
Janeiro, 1803-1834)
categorias homens livres casados mulheres livres casadas
com forras com forros
família de origem ilegítima 34 11
mulatos 16 12
negros 6 6
filho(a) de liberta 14 7
expostos 8 4
migrantes internos* 35 11
reinóis e ilhéus 13 -
total dos casamentos unindo 100 36
estas condições jurídicas
Fontes: Vide tabela 1
*Esta categoria exclui reinóis e ilhéus. Os africanos estão excluídos por
definição: os africanos não-brancos eram sempre escravos ou forros.

Tabela 8: Participação (%) de libertas provenientes de uniões legítimas e


consensuais entre as libertas que se casavam, segundo a condição jurídica de seus
noivos (Paróquia de São José do Rio de Janeiro, 1803-1834)
libertas casadas com libertas casadas com forros
homens livres ou escravos
nascidas de uniões legítimas 18.5 20.6
nascidas de uniões consensuais 81.5 79.4
Fontes: Vide tabela 1
Obs: Os responsáveis pelos registros não informavam sobre legitimidade ou não dos
africanos de modo geral, razão pela qual foram excluídos dos cálculos acima.

Tabela 9: Distribuição (%) por sexo e procedência dos pretos forros casados,
segundo grandes regiões africanas de embarque (Paróquia de São José do Rio de
Janeiro, 1803-1834)
grandes regiões de procedência homens mulheres
Angola 24.1 33.5
Congo 5.7 8.5
Áf. Ocidental 9.0 13.2
Áf. Oriental - 0.5
não identificados 1.9 3.8
total geral 97 212
Fontes: Vide tabela 1

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Tabela 10: Uniões entre forros de procedência africana: Distribuição das alianças
entre grandes regiões africanas de procedência (Paróquia de São José do Rio de
Janeiro, 1803-1834)
homens
Angola Congo Áf. Áf. Oriental
Ocidental
Angola 49.3 2.6 5.2 0
mulheres Congo 5.2 11.7 1.3 0
Áf. Ocidental 5.2 0 19.5 0
Áf. Oriental 0 0 0 0
Fontes: Vide tabela 1
% de casamentos endogâmicos de forros africanos = 80.5
N = 77

Tabela 11: Participação, nos casamentos que envolveram libertos, dos realizados
entre indivíduos provenientes do mesmo plantel (Paróquia de São José do Rio de
Janeiro, 1803-1834)
tipos de aliança indivíduos provenientes indivíduos provenientes de um mesmo
de plantéis diferentes plantel
forro/forra 95 9
forro/escrava 2 -
escravo/forra 12 1
totais 109 10
Fontes: Vide tabela 1

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Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

68
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

Dos Usos e Abusos do Mate: Sociedade e


Indústria no Paraná do Século XIX
por Magnus Roberto de Mello Pereira
A hegemonia da indústria A questão da indústria do
sediada em São Paulo autorizou mate, da qual o presente artigo
aos pesquisadores que se procura fazer uma síntese, é um
dedicam à história regional desses casos de
daquele estado a darem às suas industrialização “inexistente”.
publicações títulos Não podemos deixar de mencionar
generalizantes como História da que a própria existência de uma
Industrialização do Brasil ou indústria do mate foi destruída
História do Trabalho no pelas barganhas de mercado
Brasil.1 Para fazer jus ao conduzidas pelo cafeicultores
título, tais autores costumam paulistas durante a República
incluir em seus textos rápidas Velha.
pinceladas sobre outros Note-se que tal destruição
estados, imaginando que com não foi conduzida em nome da
esse expediente editorial nascente indústria paulista mas
conseguem ultrapassar o quadro pelos interesses da
restrito da história paulista cafeicultura, ansiosa por
ou paulistana. Já, aqueles que conquistar os mercados
se dedicam ao estudo da platinos, até então dominados
industrialização de outros pelo mate. Durante as primeiras
estados estão excluídos do décadas do século XX, a
mercado editor nacional, por Argentina conduziu um bem
produzirem “história regional”, sucedido processo de
cujo interesse é considerado “substituição de importação” do
como algo restrito e de mate brasileiro, passando a
interesse meramente local. produzir e beneficiar o mate em
seu próprio território. O
1
estado central brasileiro, nas
O presente artigo traz alguns dos mãos dos cafeicultores
resultados das pesquisas
desenvolvidas em minha dissertação paulistas, consentiu que isto
de mestrado, defendida nos Cursos de fosse feito. A grande arma
Pós-graduação em História da UFPR em brasileira era o consumo do
1989, sob a orientação da Professora trigo argentino. Os
Ana Maria de Oliveira Burmester. cafeicultores paulistas
(PEREIRA, Magnus R. M. Fazendeiros,
industriais e não morigerados; negociaram o acesso
ordenamento jurídico e econômico da preferencial deste trigo ao
sociedade paranaense. 1829-1889. nosso mercado, em troca de
Curitiba: UFPR, 1989. policopiado) preferências concedidas ao café
Com algumas pequenas correções e
alterações, a mesma dissertação foi
brasileiro, omitindo-se em
publicada em 1996. (PEREIRA, Magnus relação à questão do mate.
R. M. Semeando iras rumo ao Assim liberada, a Argentina
progresso. Curitiba: Editora da acabou excluindo os produtores
UFPR, 1996.)
69
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

paranaenses do mercado platino. do século XIX que, quando


A compensação oferecida aos pensamos a história social e
paranaenses foi a inclusão do econômica do período, somos
mate num acordo de preferências quase obrigatoriamente levados
negociada com os Estados a adotá-las como princípio
Unidos. Uma espécie de piada explicativo.
amarga, pois, como sabemos, os O desenvolvimento da
americanos não bebiam indústria na região, quando
chimarrão. Estes acordos colocado no contexto
selaram o início da decadência brasileiro, pode ser
da economia erveteira considerado suigêneris, pois
paranaense, bloqueando um ele não se prende ao processo
processo auto-sustentado de de substituição de importações
industrialização que se que teve o seu centro em São
iniciara havia um século. Paulo. No decorrer do século
XIX, a fração da burguesia
1 - SÓ O MATE FAZ VIVER paranaense que se dedicava ao
Em 1854, Zacarias de Góes comércio exterior promoveu um
e Vasconcelos, o primeiro processo auto-sustentado e
presidente da recém emancipada relativamente autônomo de
Província do Paraná, conseguiu tecnificação do beneficiamento
expressar, em uma frase apenas, da erva-mate, que se aproximava
o que era a sociedade do modelo paradigmático da
paranaense à sua época: industrialização européia.
Disséreis, ao ver a ânsia O estudo desse processo
com que todos, ricos e pobres, torna-se instigante quando são
velhos e moços, homens e examinadas as condições em que
mulheres, ocupam-se e tratam da ocorreu. Sob diversos ângulos,
congonha, disséreis, repito, a sociedade paranaense do
que só o carijo* faz viver, e século passado não pode ser
que sem um engenho de socar considerada como um contexto
mate não se pode fazer propriamente favorável à
fortuna.1 emergência de um processo auto-
Em decorrência dessa sustentado de industrialização.
predominância do mate, as Durante a primeira metade do
questões correlatas da formação século XIX, o Paraná era, antes
da indústria ervateira e do de mais nada, uma região
livre-mercado permeiam de tal eminentemente agrária. Além da
forma a documentação paranaense exploração do mate, as
atividades econômicas quase que
1
exclusivas eram a agricultura
PARANÁ. Relatório do Presidente da de subsistência e uma forma de
Província do Paraná, o Conselheiro
Zacarias de Góes e Vasconcelos na pecuária voltada mais ao
abertura da Assembléia Provincial em comércio de passagem e à
15 de junho de 1854. Typographia invernagem (engorda) do que
Paranaense: Curitiba, 1854. p.73. propriamente à criação. O
* O Carijo é uma armação de varas quadro urbano regional era
sobre a qual são colocados os ramos
do mate para secá-los ao fogo. constituído de núcleos
70
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

extremamente modestos, onde se correspondente burguesia são


concentravam o comércio questões controversas entre os
varejista, uma pequena estudiosos da história e da
burocracia, alguns artesãos e economia regionais, não
umas tantas prostitutas.1 obstante as evidências do
Apesar desse panorama quadro que procuramos esboçar.
pouco sugestivo, a burguesia Por outro lado, para a geração
comerciante regional conseguiu, mais antiga, quase toda oriunda
a partir do domínio do mercado dos 'quadros orgânicos do
de exportação, transformar os mate', essa indústria era um
processos de produção do mate fato tão verdadeiro e vivido
numa indústria bastante que não cabiam maiores dúvidas
tecnificada, mesmo diante dos a respeito. Os intelectuais do
padrões mundiais da época. mate sentiam-se de tal forma
Concomitantemente, essa camada integrados a um processo sócio-
burguesa emergente conseguiu econômico universal que não
rearticular em seu benefício o lhes passavam pela cabeça
conjunto das relações sociais dúvidas sobre o caráter
da região. Como veremos industrial da economia da
adiante, em decorrência da região.
exploração do mate em larga A produção bibliográfica
escala, generalizaram-se no paranaense entre os anos de
Paraná as relações sócio- 1850 a 1940 constitui, na
econômicas de livre-mercado. verdade, uma imensa
Não que a pecuária e o bibliografia orgânica do mate.
tropeirismo dos Campos Gerais Nela, a erva-mate é esmiuçada
deixassem de configurar uma de todas as formas possíveis.
economia de mercado. Porém, a Durante quase um século, o mate
exemplo do que ocorria na foi, no Paraná, o objeto
maioria das outras economias privilegiado do conhecimento. A
regionais brasileiras, apenas erva-mate teve os seus mais
uma pequena parcela da íntimos recônditos invadidos
população participava da faceta pela ação esquadrinhadora do
mercantil desta economia. A conjunto das modernas ciências.
grande maioria das pessoas a A botânica, a zoologia, a
ela ligadas participava do química, a bioquímica, a
mercado apenas episodicamente. história, a antropologia, a
entomologia, a medicina e a
NEM POR ISSO MENOS BURGUESIA agronomia 'usaram e abusaram'
A existência de uma do mate. Temístocles Linhares,
'indústria ervateira' e de sua um desses 'intelectuais
orgânicos', reuniu uma
1
Ver, por exemplo, as descrições que bibliografia que, longe de ser
Saint-Hilaire fez de Curitiba, completa, enumera mais de 1100
Paranaguá, Castro, etc. em 1820. títulos sobre o assunto, na sua
SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem a
Curitiba e Província de Santa
Catarina. Belo Horizonte: Itatiaia,
1978.
71
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

maioria publicados no Paraná e dependente da América Latina.


na Argentina.1 Por outro lado, o Paraná do
A partir da década de século XIX não preenchia os
1950, a produção da ciência requisitos considerados
econômica, quase toda ligada à 'necessários e suficientes' à
sua vertente cepalina, passou a industrialização, o que
ver no passado industrial do contradiz certas concepções
mate apenas um arcaísmo unilineares dos manuais da
distante. Os autores desta história econômica. Entre os
escola chegam mesmo a duvidar economistas, apenas Francisco
das características industriais Magalhães Filho assumiu, com
do parque fabril ervateiro. todas as letras, a existência
Para eles, a indústria do mate de uma burguesia industrial
era uma espécie de falsa paranaense no século XIX,
indústria, pois dedicava-se considerando que esta deveria
apenas a um beneficiamento ser estudada para a compreensão
muito primário de um produto dos ulteriores desdobramentos
extrativo. Daí ser a burguesia da economia regional. Segundo
do mate considerada como uma esse autor:
pseudo-burguesia. A É óbvio que essa burguesia
desconfiança dos economistas em industrial não era uma
relação ao mate-indústria reprodução idêntica das
parece-nos carecer de burguesias industriais européia
fundamento. Como procuraremos ou norte-americana, nem era
demonstrar mais adiante, o idêntica à burguesia industrial
desenvolvimento da indústria do que se desenvolvia no Brasil em
mate é por demais próximo ao função do processo de
que ocorreu com alguns ramos industrialização por
clássicos da industrialização substituição de importações.
européia para que sobrevivam Mas, nem por isso, era menos
dúvidas. Não fosse pela burguesia industrial.2
utilização simultânea de mão- Um dos raros estudiosos de
de-obra livre e escrava, a fora dos quadros orgânicos do
indústria ervateira, caso mate ou dos órgãos de
localizada na Europa, incluir- planejamento regional do Paraná
se-ia sem qualquer ressalva - onde era grande a influência
entre tantos outros ramos cepalina - a se deter sobre a
industriais que seguiram questão da indústria ervateira
trajetórias similares. O foi Octavio Ianni. Apesar de
desenvolvimento da indústria do pensar o desenvolvimento da
mate causa estranheza por estar indústria do mate de uma forma
'fora de lugar', ou seja, por um tanto mecanicista, ele soube
não coincidir com o modelo
cepalino da industrialização
2
MAGALHÃES FILHO, Francisco.
Evolução histórica da economia
1
LINHARES, Temístocles. História paranaense. Revista paranaense de
econômica do mate. Rio de Janeiro: desenvolvimento. Curitiba, n.28,
José Olympio, 1969. pp.471-516. jan.-fev.1972. p.49.
72
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

perceber algumas de suas do mate tornou-se legalmente


peculiaridades. possível à partir de 1722,
A economia do mate foi um quando os moradores da região
sistema para produzir para os obtiveram autorização da Coroa
mercados externos [....] Mas Portuguesa para comercializar a
não se constituiu, por isso, erva na região platina. Desde
numa economia colonial no então o mate foi um produto
sentido estrito, corrente entre exportado em pequenas
os economistas. Isto se deve ao quantidades para a colônia do
fato de que esse setor da Sacramento e Buenos Aires. A
produção foi vinculado erva era beneficiada por
profundamente aos fatores produtores autônomos e
econômicos e humanos da própria comercializada pela burguesia
zona. Em lugar de ligar-se a mercantil do litoral do Paraná.
capitais estranhos à região ou Todavia, o real desenvolvimento
ao país, o processo de coleta, de uma economia ervateira só
beneficiamento e exportação da ocorreu a partir do início do
congonha estruturou-se século XIX, quando esta
paulatinamente com fatores burguesia envolveu-se com a
deslocados de outros setores da produção, comprando erva pré-
economia regional, ou com beneficiada para moê-la e
capitais oriundos da embalá-la em suas casas de
intensificação da renda no soque. Somente a partir dos
mesmo setor. Em conseqüência, o anos 1820 ou 1830, começaram a
sistema econômico-social ser introduzidos novos
estruturado com fundamento na processos produtivos voltados à
produção do mate teve mecanização e concentração do
possibilidade de desenvolver-se trabalho. Num prazo de 50 anos,
internamente, autofecundar-se, os burgueses do mate teriam em
ou deslocar capitais para a suas mãos um parque fabril
comercialização da madeira, bastante tecnificado.
atividades agrárias, artesanais Dito dessa forma, tudo
ou manufatureiras.1 parece muito simples e natural.
A gênese e o Ianni supôs que a sócio-
desenvolvimento da indústria do economia do mate "teve a
mate podem ser comparados a possibilidade de desenvolver-se
processos semelhantes ocorridos internamente" por não ser
na Europa a partir de sistemas dominada por capitais do
de putting-out.2 A exportação exterior. Porém,
independentemente da vinculação
1
ou não com o capital
IANNI, Octavio. As metamorfoses do internacional, a oportunidade
escravo. São Paulo, Hucitec: 1988.
2.ed. rev. e aum. pp.87-8. que a sócio-economia do mate
2
A industrialização paranaense do teve para desenvolver-se foi
século XIX têm notáveis semelhanças construída no árduo processo da
com o quadro proposto em MARGLIN,
Stephen A. Origens e funções do
parcelamento das tarefas. In GORZ, trabalho. São Paulo: Martins Fontes,
André. (org.) Crítica da divisão do 1980. pp.37-77.
73
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

formação das novas personagens o incentivo à imigração


da história paranaense do européia.
século XIX. A burguesia Ao mesmo tempo, os
industrial do mate, tal como bacharéis dos Campos Gerais
veio a se constituir, não pré- praticamente monopolizaram a
existia à sua indústria. Ela representação política da 5ª
formou-se no mesmo processo em Comarca de São Paulo e, a
que se formaram os produtores partir de 1854, da Província do
rurais de mate e os jornaleiros Paraná. Enquanto burguesia
fabris dessa indústria. bacharelesca, os senhores dos
Essas personagens Campos Gerais articularam os
nascentes que nos contam uma discursos jurídico-
história de gênese e de institucionais que deram os
transformações profundas vieram moldes às legislações locais.
juntar-se a outras, que as Portanto, eles podem ser
precederam e que nos contam uma considerados como os grandes
história de dissoluções: os responsáveis pela constituição
senhores e tropeiros dos Campos formal dos aparelhos de estado
Gerais, seus escravos e sua brasileiros em nível regional.
clientela urbana. No decorrer Da mesma forma, foi de sua
do século XIX, todos formariam responsabilidade a construção
uma trama social de interações da poderosa máquina fiscal que
complexas, na qual é difícil atuava sobre a economia da
perceber o que cada um erva-mate, a qual durou até a
representa. Didaticamente, década de 20 deste século.1 De
pode-se fazer uma divisão posse da máquina legislativa e
grosseira dos papéis de cada fiscal do estado, eles nunca
uma das burguesias regionais. concederam grandes espaços à
Como já dissemos, coube à burguesia do mate, mesmo
burguesia do mate o quando, a partir do final do
reordenamento econômico da século XIX, esta detinha em
sociedade paranaense em torno suas mãos o domínio econômico
do trabalho livre e do livre- da Província. Ainda no início
mercado, com todas as da república, a burguesia
conseqüências que isso
acarretou. 1
Aos senhores dos Campos ver BRASIL. Diretoria Geral de
Estatística. Recenseamento do Brazil
Gerais coube garantir realizado em 1 de setembro de 1920.
continuidade de uma série de Rio de Janeiro: Typografia da
valores e instituições Estatística, 1927. v.5, pp.400-9.
anteriores ao século XIX: a Enquanto o governo de São Paulo, por
exploração do trabalho escravo exemplo, arrecadava sobre a
indústria, em valores brutos,
e a regulamentação moral dos 1.604:215$, o do Paraná arrecadava
mercados de abastecimento. quase o dobro, 3.061:128$. O total
Coube a eles também o projeto de impostos (federais, estaduais e
de substituição das classes municipais) representava 3,8% do
baixas locais, que representou valor da produção industrial em São
Paulo e 10,4% no Paraná. A média
nacional era de 3,6%.
74
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

industrial do mate via-se teria se encarregado de enviar


obrigada a dividir o poder com à Câmara de Paranaguá algumas
os bacharéis dos Campos Gerais, propostas de medidas a serem
herdeiros políticos dos antigos tomadas, visando a impedir a
fazendeiros. prática da adulteração. Vejamos
as mais significativas.
UM AXIOMA COMERCIAL: TODOS 3º - A Câmara nomeará um
QUEREM GANHAR agricultor de boa reputação, e
Entre as diversas áreas de reconhecido mérito entre os
atrito, opondo industriais e seus concidadãos para servir o
fazendeiros, uma nos chama Cargo de examinador de ervas de
particular atenção. Trata-se mate que os condutores
daquela que agregava o trouxerem para a marinha; este
estabelecimento do livre- homem deve ter perfeito
mercado e o papel do estado na conhecimento tanto fisiológico
economia. Desde os seus como botânico a bem de poder
primórdios, a burguesia do mate fazer dito exame conhecendo com
foi eminentemente livre- a vista, gosto e olfato o grau
cambista e sustentou este de madureza que a erva tiver,
posicionamento mesmo em épocas nas diferentes Estações pela
de profundas crises em que o cor, semente e maneira de sua
estado, dominado pelos preparação e beneficiamento a
fazendeiros, procurava fim de não ser introduzida nem
intervir. misturada a falsa com a
Quando, em 1829, por legítima; para este importante
determinação do Regimento das Emprego nem todos podem servir,
Câmaras Municipais do Império, e quem ocupasse deveria ter
os vereadores da 5ª Comarca de certo Salário pago a custa do
São Paulo começaram a discutir Conselho sendo sua moradia na
as propostas dos seus primeiros borda do Campo ou mais
códigos de posturas, a propriamente no lugar do
regulamentação da exploração do Registro do Porto de cima, ali
mate abriu um debate que antes que o Coletor ou Fiscal
envolveu as Câmaras tanto de passasse a guia aos Condutores
Curitiba quanto de Paranaguá. deveria examinar os Cargueiros,
As discussões tratariam e passar bilhete de sua
fundamentalmente do combate à aprovação, fazendo as
adulteração da erva-mate, pela escriturações necessárias nos
mistura de vegetais similares livros para isso destinados,
considerados menos nobres, e do podendo então o Condutor seguir
período de permissão da coleta seu destino.
da congonha. A questão das 5º - A Câmara deverá fazer suas
'falsificações' teve, como posturas impondo penas sobre
veremos adiante, um papel todos aqueles que fabricarem
fundamental no desencadeamento erva falsa ficando estes em
da industrialização do mate. vigia dos Cabos e Oficiais de
Segundo o historiador Quarteirões, para os denunciar
Vieira dos Santos, ele próprio ao Juiz de Paz ou a Câmara, e
75
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

se lhes impor a multa cujas experiências dos Ensaios


recebendo-a os fiscais para feitos de tais inspeções lhes
serem anexas aos mais são manifestas às mesmas
rendimentos da Câmara.1 Comissões, julga ter
Em 1829, a Câmara de demonstrado a inexeqüibilidade
Paranaguá provavelmente pensou com a nulidade de tais
em adotar um regulamento deste inspeções pois a mesma
tipo, baseando-se nas experiência tem mostrado que
recomendações de Vieira dos elas são capazes de autorizar a
Santos. Não foi possível fraude, auxiliar o monopólio, e
localizar tal regulamentação, pear o comércio sem que o exame
mas, uma vez que ela foi produza o desejado efeito.2
enviada como sugestão à Câmara Para eles, a solução para
de Curitiba, consta das atas impedir as adulterações estava
desta última um parecer de em fazer valer as 'leis de
vereadores curitibanos sobre as mercado'. As características
propostas dos seus colegas imperfeitas do mercado local
parnanguaras. Em Curitiba, a seriam as grandes responsáveis
proposta foi examinada por três pelas fraudes, pois "o
vereadores, dois deles comprador de comissão, somente
provavelmente ligados ao atende ao número de Alqueires
comércio do mate: Manoel que compra sem se dar ao
Marques dos Santos e Antônio trabalho de examinar a boa, ou
Antunes Rodrigues. Para estes má qualidade dela, quando muito
vereadores, "as inspeções por leve cerimônia". Para
lembradas São de natureza corrigir este defeito, os
inexeqüíveis e impraticáveis", grandes compradores de
mesmo porque, segundo a Paranaguá, Antonina e Morretes
legislação do império, não deveriam fazer um pacto para
seria "livre a todo indivíduo diversificar o preço pago pela
levar ao mercado qualquer erva, segundo a sua qualidade.
gênero de sua Agricultura, ou Há um axioma em comércio
de sua indústria seja boa ou que todos querem ganhar, e
mal beneficiada?". Eles ganhar o mais que é possível,
simplesmente não confiavam no portanto, [... se] todos os
papel fiscalizador do estado, grandes compradores e os
e, depois de um longo pequenos que sabem e devem
arrazoado, concluíam que: saber distinguir a erva
À vista pois Senhor Presidente, legítima da falsa a bem
destas razões, e de outras beneficiada da mal beneficiada
muitas que a locução omite por regularem absolutamente a erva
ultrapassar os limites de um adulterada, derem maior valor à
Parecer, e que muitas são legítima, bem beneficiada em
óbvias aos Senhores Vereadores, sumo grau à da ínfima
1
SANTOS, Antônio Vieira dos. Memória
2
histórica da vila de Morretes: 1851. Parecer dos vereadores Bandeira,
Curitiba, Museu Paranaense: 1950. Marques e Antunes. In: Vieira dos
pp.209-10. SANTOS, op. cit. pp.214-6.
76
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

qualidade, tudo nos conduz a Todavia, o desdobramento mais


crer que, se banirá não só a significativo da disputa entre
fraude no seu primeiro fabrico produtores autônomos e
como também que ela chegará ao comerciantes já tivera início
seu último grau de perfeição, antes mesmo de todas essas
pois que aquele fabricante que discussões. Em alguns pontos do
dolosamente fabricar a erva de litoral, os grandes
outras plantas estranhas ou comerciantes começavam a
adicioná-las à verdadeira transformar-se em grandes
planta há de perder o seu fabricantes, tomando para si a
trabalho, aquele que fabricar maior parte do processo de
legítima com pouco benefício há beneficiamento da erva-mate.
de vender por ínfimo preço, e
aquele que levar o seu fabrico UM ABUSO A QUE ESTAVAM OS POVOS
ao maior grau de perfeição, ACOSTUMADOS
tanto maior será o seu lucro, e Apesar do parecer
segundo o axioma estabelecido; contrário de alguns vereadores,
todos [....] querem ganhar e o estado, que regionalmente
ganhar mais o que é possível.1 estava nas mãos de um grupo de
O parecer dos vereadores senhores rurais, não se conteve
curitibanos era claramente em regulamentar a economia
favorável ao livre-mercado e ervateira, devido a questões de
contrário à intervenção do ordem moral e pelo impacto que
estado, ainda que fosse para ela causava no ordenamento
coibir fraudes. As forças de sócio-político-econômico da
mercado, expressas no axioma região como um todo.
'todos querem ganhar o máximo Os vereadores de Curitiba
possível', deveriam ser as não criaram um sistema de
únicas responsáveis por impedir inspeção como o proposto por
as falsificações. Porém, como Vieira dos Santos, mas adotaram
percebiam os vereadores, as uma legislação que a "Câmara
leis de mercado não se julgou a única e suficiente
confundiam com leis naturais, para desarraigar o abuso
nem deveriam ser leis do nascido da mal entendida
direito positivo estatal. As sofreguidade em que ardem
leis de mercado deveriam ser geralmente os homens por
instauradas por um pacto entre ganharem muito, com pouco
os grandes comerciantes trabalho".2 Na sessão da Câmara
oligopsônicos, no jargão de Curitiba de 10 de setembro
econômico. Pelo que sabemos, de 1829, quando foi pela
este pacto formal, fundador do segunda vez a plenário, o
livre-mercado do mate, nunca parecer dos senhores Bandeira,
chegou a se dar, mas ao longo Marques e Antunes provocou um
do século XIX ocorreu a
diversificação dos preços da 2
CURITIBA. Ofício do Presidente da
erva segundo a sua qualidade. Câmara de Curitiba ao Presidente da
Câmara de Paranaguá: 15 out.1829.
In: Vieira dos SANTOS, op.cit.
1
Ibidem. p.213.
77
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

acirrado debate onde [....] pedindo o mesmo senhor


transparece a lógica das Marques a palavra por
regulamentações. reconhecer necessidade, e
No seu pronunciamento, o utilidade da referida
Sr. Antunes se fez porta-voz providência propôs que se
dos interesses do mate. O ponto modificasse o tempo marcado
mais polêmico não era tanto o pelo artigo estendendo a oito
combate às fraudes, mas a meses sustentando a sua
delimitação de um período para proposta em que no mês de
a extração da erva-mate. Para Dezembro já aquele arvoredo
os ervateiros, interessava estava em seu completo estado
estender esse período ao máximo de sazonamento que aquele Mês
possível. Os vereadores ligados já não era tão necessário para
ao latifúndio opunham-se a as plantações do país e
tanto, em nome da agricultura finalmente que semelhante
de subsistência e da providência tendia a cortar um
necessidade de incentivar a abuso a que estavam os povos
cultura do trigo, um eterno acostumados e que por isso era
sonho das classes dirigentes necessário, cortar com receio
locais que tornou-se realidade visto que os inimigos das novas
apenas na segunda metade do instituições tirariam daqui um
século XX. Aqui podemos fazer pretexto para atacar o nosso
uma comparação com a Europa do sistema representativo: O
mesmo período, a partir de Senhor Presidente combateu essa
algumas considerações feitas opinião mostrando que para se
pelo historiador Karl Polanyi. reformarem os abusos
Como argumenta o autor, os prejudiciais dos interesses do
senhores rurais, ao usarem seu Município nos tinham dado os
poder político na defesa de uma povos dele seus votos que não
organização agrária mais devia a Câmara transigir com os
tradicional, deram tempo para inimigos das liberdades do
que a sociedade se ajustasse nosso País: que cada qual
aos novos padrões de mercado, procurasse o desempenho de seus
contendo em níveis menos deveres com aquele patriotismo
intoleráveis a desagregação e desinteresse que caracterizam
social que estes provocavam.1 A os membros desta Câmara e que
uma sociedade ativamente não receassem dos tiros de
voltada ao mercado do mate, os calúnia e que por fim nossos
senhores rurais paranaenses concidadãos nos fariam Justiça
contrapunham um universo rural acrescentou que conhecia que no
onde os homens livres mencionado mês de Dezembro
despossuídos se dedicariam à estavam sim já perfeitas e
pequena lavoura, vendendo uns maduras as árvores da congonha
parcos excedentes no mercado. mas que era justamente aquele
mês o mais necessário para a
1
POLANYI, Karl. A grande lavoura; pois além de muitas
transformação; as orígens da nossa plantações que nele se faziam
época. Rio de Janeiro: Campus,
1980.p.169. era próprio Mês de colheita dos
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Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

grãos e da ceifa dos trigos: e economia do mate contra a qual


que ainda apesar de se ter a burguesia ervateira, mesmo
quase abandonado este precioso que majoritária em alguns
ramo da nossa agricultura pela municípios, nada podia fazer.
má estação de alguns anos Em 1875, por exemplo, estavam
todavia ele esperava que ele em vigor nada menos do que uma
reviveria em nosso País. No lei com 5 artigos e um
mesmo sentido falou o senhor regulamento com 24 outros.2 A
Bandeira mostrando que aquele lei e o regulamento detalhavam
Mês era o mais ocupado pelos desde cuidados a serem tomados
lavradores, e que se achavam durante o beneficiamento até
desocupados só aqueles que não penalidades por falsificação,
tinham plantado. Achando-se a passando pela delimitação do
matéria bastante discutida prazo da exploração da erva,
propôs o Presidente que se que foi alterado para o período
passasse o artigo tal qual, ou compreendido entre 15 de
se passaria a emenda do senhor fevereiro e 30 de setembro.
Marques que dizia - oito Meses
de Dezembro até Julho 2- A MORALIDADE DO MERCADO: O
inclusive, venceu-se por sete PREÇO JUSTO
meses principiando de Janeiro Principalmente a partir da
até Julho inclusive. década de 1850, o impacto
S.C.M.C., 10 de setembro de desagregador da economia do
1829.1 mate sobre a tão desejada
Em Curitiba, a burguesia agricultura de subsistência
do mate ainda não tinha a força fazia-se sentir vigorosamente,
que alcançaria nas décadas tornando o mercado urbano um
posteriores e, por conseguinte, espaço de constantes disputas.
seus interesses não conseguiam Ocorria no Paraná um processo
se fazer valer nas votações da de amplitude universal: as
Câmara. Na legislatura disputas em torno da
seguinte, os industriais do continuidade, ou não, das
mate conseguiram ampliar o regulamentações morais do
período anual da exploração do mercado. De acordo com o
mate. O artigo 1º das posturas historiador inglês E. P.
de 25 de outubro de 1833 Thompson:
liberou o mês de dezembro para Os confrontos no mercado,
o corte da erva. em uma sociedade 'pré-
Com a emancipação, em industrial', são evidentemente
1853, os senhores rurais mais universais do que qualquer
apropriaram-se da estrutura experiência nacional, e os
estatal de poder da nova preceitos morais elementares do
província, através do Partido
Liberal, e puseram em vigor uma
detalhada regulamentação da
2
Coleção de leis, decretos e
regulamentos da Província. Doravante
1
Boletim do Archivo Municipal de citada como C.L.D.R.P.
Curityba, v.42, p.91. C.L.D.R.P., 1875. pp.13-4 e 71-4.
79
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

'preço justo' são igualmente Autoridades de outras Vilas,


universais.1 suplantar o comércio franco em
Da mesma forma, pode-se Morretes, fazendo assim
dizer que, a se concordar com esmorecer alguns especuladores
esse autor, os conflitos de que queriam agenciar seu modo
mercado, ainda que apenas de vida.2
verbais, possuíam um teor O estado colonial
universalizante (a idéia de um português vivia as ambigüidades
"preço justo") no estado 'pré- entre dois possíveis modelos de
industrial' em que vivia a mercado. Desejava o comércio
sociedade paranaense desde a franco pelo efeito agregador
virada do século XVIII para o que ele provocava entre as
XIX. Assim, por exemplo, em diversas regiões da colônia,
Morretes, localidade em que mas insistia na construção de
inicialmente se concentrava o sociedades eminentemente
beneficiamento do mate, as camponesas que comercializassem
autoridades coloniais, já em apenas alguns excedentes. A
1804, procuravam regulamentar o decisão de liberar o comércio
comércio de víveres. do mate com o Prata, em 1722,
O doutor Ouvidor e foi um passo pensado no sentido
Corregedor da Comarca Antônio de fortalecer a economia de
de Carvalho Fontes Henrique mercado ampliado, uma vez que
Pereira, em data de 4 de Abril as comunidades rurais, semi-
de 1804, impondo aos isoladas, que eram os
traficantes de negócio em municípios paranaenses, tendiam
Morretes a rigorosa pena de a regredir à pura auto-
vinte dias de Cadeia na Cabeça subsistência e a praticar o
da Comarca, e dela não saírem escambo para a obtenção de
sem primeiro pagarem a multa de alguns produtos europeus.
dez mil réis para as despesas O ouvidor Rafael Pires
da Correição, no dobro pela Pardinho, em suas correições
segunda vez, e no tresdobro (1720-21), soubera perceber que
pela terceira àqueles a miséria em que viviam os
indivíduos que atravessassem a habitantes do litoral do Paraná
fazerem compras de mantimentos era "causada não só da sua
de farinhas, feijão, toucinho, preguiça, mas também por não
carne seca, a fim de os tornar terem mais comércio que as
a revender ao povo e suposto pescarias, farinha de pau,
que, com toda a Justiça, quis emalgôias [amêijoas?] e alguma
dar justíssima providência, e cordaria de imbé, que tudo
evitar algum monopólio, mas o apenas fazem para permutarem
único fim era por todas as com o vestuário que lhes vem
maneiras quererem as nas embarcações dos Santos e
Rio de Janeiro".3 Para o estado
1
THOMPSON, E. P. Tradición, revuelta colonial português, esse
y consciencia de clase; estudios
sobre la crisis de la sociedad
2
preindustrial. Barcelona: Critica, Vieira dos SANTOS, op. cit. p.59.
3
1979. p.132. Vieira dos SANTOS, op. cit. p.27.
80
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

isolamento era motivo de Thompson chamou de "velhas


profundas preocupações, e o regulamentações paternalistas
desenvolvimento dos mercados de mercado", não eram
locais e do comércio exclusivas do Paraná ou do
interregional era visto como o Brasil. Sua origem pode ser
remédio para todos os males. encontrada na legislação
Segundo o ponto de vista das medieval da proibição da usura,
autoridades portuguesas, o e foram transplantadas para cá
comércio teria o poder de por ambas as coroas ibéricas.
provocar a integração Na Europa, elas também
territorial da colônia e, acima continuavam em vigor durante o
de tudo, de encher os século XVIII e só começaram a
deficitários cofres d'El Rey. ser questionadas quando, a
Afinal, numa economia onde partir da metade daquele
prevaleciam a auto-subsistência século, os teóricos da economia
e o escambo, pouco havia a política passaram a defender a
tributar. total liberdade de mercado.
Apesar da insistência dos Significativamente, é de 1776 a
discursos e das medidas Riqueza das Nações de Adam
concretas que foram tomadas Smith.
para o desenvolvimento das Se na Inglaterra a
relações de mercado, o estado legislação contra o
português do século XVIII não açambarcamento só foi revogada
assumia a todos os níveis os nos anos 1770, não era de se
postulados 'científicos' da esperar que, em localidades
nascente economia política. A isoladas como Curitiba ou
administração da colônia era Morretes, isso viesse a
feita à base da concessão de acontecer com maior brevidade.
privilégios e monopólios a esta No Paraná, como no restante do
ou aquela cidade, a este ou Brasil, as regulamentações
aquele comerciante. Tudo municipais do mercado de
dependia de uma concessão real, víveres só entrariam em desuso
da construção de uma estrada ou no final do século XIX. Até lá,
ponte à navegação de um rio, ou vamos encontrar na legislação
mesmo o próprio comércio e de todos os municípios um
beneficiamento da erva-mate. conjunto de dispositivos legais
Decisões de ordem política, que dispunham sobre a
estratégica ou fiscal comercialização de alimentos,
prevaleciam sobre uma suposta principalmente após a grande
racionalidade de mercado. carestia da metade do século.
Resumidamente, esta
UMA CLASSE ASQUEROSA DE legislação previa um período de
NEGOCIANTES ILÍCITOS venda de alimentos no varejo
O mercado de abastecimento antes que eles pudessem ser
urbano também costumava ser negociados no atacado. Previa
alvo de uma série de também a proibição do
regulamentos 'extra- "atravessamento" das colheitas,
econômicos'. Essas leis, a que ou seja, que os comerciantes
81
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

comprassem alimentos ao mercado público o gênero


diretamente dos lavradores nos atravessado para aí ser vendido
campos para depois revendê-los ao Povo pelo preço que foi
nas cidades. Os agricultores é vendido ao atravessador.
que deveriam trazer a sua Curitiba, 20 de outubro de
produção ao mercado das 1829.1
cidades, primeiro vendendo-a O primeiro artigo citado é
diretamente aos moradores, para o único em todo o código de
depois vender o excedente aos 1829 a confirmar, sem maiores
comerciantes. Nas posturas de revisões, um costume que
Curitiba de 1829, existiam três precedia o período
artigos que detalhavam a venda constitucional. Segundo esse
de gêneros alimentares. artigo, a regulamentação moral
Capítulo terceiro - Artigo do mercado, que vinha sendo
primeiro = Continua o uso do praticada nos tempos do ancien-
mercado público de víveres que régime, deveria continuar no
com o nome da casinhas foi século XIX. O livre-comércio só
estabelecido nesta Vila, em poderia ser praticado após o
cujo lugar deverão vender os atendimento das necessidades
Lavradores ao Povo o produto de alimentares do 'Povo'. O
suas Lavouras, quando o não segundo artigo também se refere
tenham feito pelas ruas ao a uma prática já existente. Ele
mesmo Povo, sem que possam estabelece que os agricultores
vender aos atravessadores, e não são obrigados a vender em
taverneiros tais gêneros antes quantidades menores do que 4
da estada efetiva em dito libras (1,8 kg) ou meia quarta
mercado pelo espaço de três (0,57 l). A Câmara não
dias pelo menos = Artigo legislava à toa sobre a
segundo = Aos lavradores em questão. Essa norma pressupõe
dito mercado será livre que já houvesse o costume ou,
venderem seus gêneros até o pelo menos, uma demanda por
peso de quatro libras, e até a parte da população de comprar
medida de meia quarta não menos quantidades ainda menores do
e pagarão para as rendas do que aquelas que a lei acabara
Conselho a estada e uso de de estabelecer. Os vereadores,
pesos, e medidas oitenta réis neste caso, haviam tomado o
por dia e noite = Artigo partido dos agricultores,
terceiro = Os atravessadores e estabelecendo medidas mínimas
taverneiros que comprarem para obrigatórias para a venda.
revender tais gêneros em Posteriormente, em alguns
contravenção ao disposto no municípios, a legislação
artigo primeiro deste Capítulo reduziria esse limite mínimo,
antes do prazo neles além de estabelecer as
estipulado, sendo convencidos quantidades máximas que podiam
perante o Juiz de paz, este
1
lhes imporá uma multa de quatro CURITIBA. Posturas municipais:
a oito mil réis para as 1829-1852, f.5. Manuscrito
pertencente ao acervo da Câmara
despesas do conselho e fará vir Municipal de Curitiba.
82
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

ser vendidas a uma única possibilidade de um levante


pessoa. popular.
Artigo 47. Os gêneros que É de mais!!!
vierem para o mercado pagarão Deus de misericórdia!
por dia e noite e por cargueiro Até quando os malditos
200 rs.: serão retalhados atravessadores zombarão deste
durante as primeiras 36 horas, prudente povo?!!
de 1 decilitro até 40 litros os Consta que no dia 15 ou 16 do
vendidos por medida, e de 1 até corrente, foram atravessados 25
15 quilogramas os que o são a cargueiros de farinha por três
peso: o infrator incorre na desses senhores que capricham
multa de 20$000. Passado o em desrespeitar as ordens da
prazo acima podem ser vendidos autoridade, a um dos quais,
como convier aos interessados. dizem, está confiada a sorte e
Campo Largo, 18 de abril de bem estar dos habitantes deste
1874.1 município!!!
No caso da Inglaterra, a Dizem que é atravessada a pouca
manutenção ou a ampliação de carne verde que aparece,
medidas legais como estas foram ficando imensas famílias sem
conseguidas pela população uma só libra, ao passo que
pobre através de um processo quartos inteiros vão para uma
conflituoso que a opunha aos taverna para vender-se no dia
lavradores e comerciantes. O seguinte por fabulosos
atravessamento de colheitas, a preços!!!
negativa dos comerciantes em E o que há de fazer a polícia,
venderem em pequenas se muitos dos que a deviam
quantidades deram motivos a coadjuvar no empenho de acabar
muitos levantes de com tais abusos são os que mais
trabalhadores. Mesmo no começo animam o monopólio?!!!
do século XIX, quando esse tipo Queira Deus que esses
de legislação não mais estava desalmados não tenham um dia de
em vigor, os juízes, ante a se arrependerem; e queira o
pressão popular, acabavam por mesmo Deus que o esfaimado povo
recorrer a ela, alegando o não lhes diga então - É
recurso ao direito TARDE!!! 2
consuetudinário. Os taberneiros e bodegueiros
No Paraná, não se têm constituíam uma categoria sob
notícias de levantes dessa constante suspeição. As
natureza; porém, em períodos de autoridades consideravam-nos
ascensão de preços, os jornais particularmente suspeitos de
eram usados por certas camadas conivência com escravos e de
letradas urbanas como meio de serem receptadores de objetos
pressão para forçar o roubados. Por outras razões,
cumprimento da lei. Em alguns nos momentos de escassez, a
casos, os anúncios de protesto condenação dos mesmos se
chegavam a sugerir a
2
O Dezenove de Dezembro, Curitiba,
1
C.L.D.R.P., 1874. p.121. 29 ago.1855. p.3.
83
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

generalizava, recaindo sobre que comprassem alimentos


eles a suspeita de serem diretamente aos produtores
atravessadores. No dizer do rurais para revenda. Apenas a
autor, ou dos autores, dos Câmara de Castro procurou
protestos, os comerciantes eram definir legalmente essa
“desalmados”, formavam uma categoria. Seguindo a regra, a
“súcia” de atravessadores. Em legislação daquele município
1858, O Dezenove de Dezembro determinava que os agricultores
publicou, a pedido de M. A. de trouxessem os seus produtos à
Paula, um vigoroso artigo cidade, obrigando-os a vender
contra a liberdade de comércio no varejo durante as primeiras
a retalho. 24 horas. Os atravessadores que
No estado atual dessa comprassem os gêneros
liberdade, sem base legal, diretamente dos produtores
segue-se que qualquer estariam sujeitos a multas de
indivíduo, dos mais 30$000 e a 8 dias de prisão.
inabilitados, com 40 ou 50$000 Porém, diziam os vereadores,
de capital, abre as portas a "não serão reputados
uma taberna, aonde, à sombra atravessadores os que pelos
única do imposto de balcão, sítios comprarem gêneros
arma uma forca caudina, e vai alimentícios para venderem nas
com ela dizimando a fortuna povoações, se os expuserem por
alheia, por meio de roubos, que espaço de 48 horas" vendendo-os
não sendo qualificados tais, em pequenas quantidades.2 A
nem havendo queixa, a polícia Câmara de Castro foi a única a
nada tem com eles que fazer. No institucionalizar esse tipo de
fim do ano, e por essa forma, o comércio durante o período
tal capital tem centuplicado, e imperial. Para os vereadores
o taberneiro tem adquirido tal daquela vila, o lucro obtido na
preponderância, que pode intermediação entre cidade e
arrogantemente zombar das leis campo não era condenável;
e das autoridades. [....] bastava que os comerciantes
Ademais, a liberdade ilimitada garantissem o abastecimento da
de comércio a retalho, não cria população urbana vendendo os
somente uma classe asquerosa de produtos em pequenas
negociantes ilícitos, mas quantidades, independentemente
também ataca a agricultura, de embutirem nos preços o lucro
fonte real de riqueza, do intermediador.
distraindo braços que nela se
deviam empregar, ou à A GRANDE CARESTIA
conveniência do serviço Ao longo do século,
doméstico.1 percebe-se em diversos
Mas o que era um municípios paranaenses um
atravessador? Na maioria dos acirramento das leis
municípios, eram todos aqueles protecionistas. Tal fato pode
ser debitado à rearticulação
1
O Dezenove de Dezembro, Curitiba,
2
17 nov.1858. p.4. C.L.D.R.P., 1859. p.6.
84
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

econômica por que passou a delegados policiais


região. A partir da metade do recomendando a cada um deles:
século, houve um boom dos que empregue todos os recursos
preços do mate no mercado de sua influência pessoal, e
internacional e, com ele, uma mesmo os da sua autoridade,
proliferação de engenhos em dentro dos limites das suas
Curitiba. Na década seguinte o atribuições, para conseguir dos
fenômeno seria acentuado pela moradores do seu distrito, que
saída do Paraguai do mercado se não descuidem, no seu
devido à guerra. Com isso, interesse próprio e comum
aumentou a parcela da população utilidade, de plantar suas
local inserida na economia de roças e tratar da criação
mercado, seja na extração do daqueles animais de que a
mate ou como trabalhadores população costuma alimentar-se;
jornaleiros de engenho, o que fazendo-lhes V. S. ver, que
acabou por desestruturar de vez esse mesmo enorme lucro, que os
a agricultura de subsistência. fascina e monopoliza a atenção
Os pequenos agricultores, além para a erva-mate, tornar-se-á
de não mais produzirem para si ilusório, fictício e
e para suas famílias, deixaram insuficiente, quando a carestia
de atender ao crescente mercado dos gêneros alimentícios os
urbano fazendo disparar os obrigar a pagar por alto preço,
preços dos gêneros alimentícios o mantimento seu e das suas
considerados básicos.1 famílias.2
Devido ao forte impacto Nos meios instruídos, a
que produziu no mercado local, questão do abastecimento toma
a indústria ervateira passou a outra dimensão. Através dos
ser alvo de todas as jornais, a população letrada
condenações. As relações de vai sendo iniciada nos meandros
mercado, há tanto desejadas, na da economia política. Os 'meios
hora em que se efetivavam, eram de comunicação' e os discursos
asperamente criticadas. A do poder público se encarregam
economia de subsistência, que de banalizar a equação
já causara polêmica nos tempos social=econômico.
coloniais, voltava a ser O autor de um artigo de
defendida pelas novas jornal, ao atacar severamente a
autoridades provinciais. O indústria ervateira, advertia
chefe de Polícia (cargo que que suas declarações poderiam
hoje equivaleria a Secretário ser censuradas por alguns
Estadual de Segurança Pública), economistas pois, fora o mate,
preocupado com o não havia outro produto
desabastecimento provocado pelo exportável na região. Porém,
mate, passou uma circular aos continuava o autor:
É um erro grosseiro, supor-se
1
Uma tabela da variação do preço dos que a superabundância de
gêneros alimentícios na década de
1850 pode ser encontrada em: O
2
Dezenove de Dezembro, Curitiba, 22 O Dezenove de Dezembro, Curitiba,
ago.1855. p.3. 24 out.1855. p.4.
85
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

dinheiro é um sintoma favorável mesma forma que os protestos


na estatística dos povos. O nos jornais.
dinheiro deve estar em certa e Independentemente de suas
determinada proporção com a embalagens, os remédios vão
produção do país, e toda vez fazer sentir seus efeitos na
que essa proporção falha, toda legislação municipal. A partir
a vez que o excesso do dinheiro da década de 1860, as posturas
sobre a produção não pode ter de diversos municípios passam a
uma aplicação imediata a delimitar momentos em que a
empresas industriais de economia de mercado deixaria de
reconhecida qualidade, é geral vigorar para os produtos
o sofrimento da sociedade.1 alimentares básicos. Tanto as
O governo provincial posturas de Curitiba de 1861
também se utilizava do quanto as de Ponta Grossa de
vocabulário economicista para 1862 traziam um novo título,
diagnosticar os males sociais discorrendo "Sobre objetos de
provocados pelo boom ervateiro. primeira necessidade por
Zacarias de Góes e Vasconcelos, ocasião de carestia".
em seu relatório como Art. 124. Negar-se alguém a
presidente da Província, vender, a qualquer do povo,
considerava que os recursos e algum objeto de primeira
pessoas concentrados na necessidade no caso de carestia
economia ervateira eram causada por qualquer calamidade
excessivos, considerando que pública; pena de 20 a 30$000.
havia uma "lei econômica" Art. 125. Exportar gêneros de
segundo a qual "todo ramo da primeira necessidade para fora
indústria, a que se aplica da província ou do município,
maior soma de trabalho, e em ocasião de carestia, causada
capital do que ele naturalmente por qualquer calamidade
comporta, tende a decair".2 O pública; pena de 20 a 30$000.
curioso é que, apesar de os Art. 126. A Câmara marcará a
diagnósticos basearem-se nas porção em que se devem ser
'leis' da economia, as vendidos os objetos de primeira
prescrições continuavam a ser necessidade, e a ocasião em que
moralizantes. Os remédios se tiver de ser vedada a saída
sugeridos, apesar de dos objetos para fora da
travestidos de econômicos, não província ou do município.
faziam parte do receituário da Ponta Grossa, 24 de abril de
economia política. A crença no 1862.3
poder auto-regulatório do As mesmas posturas
mercado cessava nos momentos de definiam também quais eram os
dificuldade e apelava-se às gêneros de primeira
questões de ordem ética, da necessidade. Em Curitiba,
pertenciam a esta categoria o
1
O Dezenove de Dezembro, Curitiba,
22 ago.1855. p.3.
2 3
PARANÁ. Relatório do Presidente C.L.D.R.P., 1862. p.89. Ver também,
Zacarias de Góes e Vasconcelos. op. para Curitiba, C.L.D.R.P., 1861,
cit. p.85. p.81.
86
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

feijão, a farinha, o milho, o Curitiba, 10 de maio de 1877.4


toucinho e o charque. Em Ponta Uma ação desse tipo era
Grossa, além desses alimentos, inédita. Até então, os artigos
incluía-se também o arroz.1 A de protesto que apareciam nos
Câmara de Curitiba, em 1877, jornais sugeriam freqüentemente
também incluiria o queijo.2 a ação coordenada dos
comerciantes para o aumento dos
DIE PARANAENSE GEWERBETREIHEIT preços dos gêneros
Produtos como o pão e a alimentícios. Esta era a
cerveja iriam incorporar-se primeira vez em que uma
lentamente aos hábitos categoria assumia publicamente
alimentares da população, tal tipo de prática,
principalmente após o início da transformando o tabelamento em
imigração alemã. No último uma regra explícita de
quartel do século XIX, o hábito comércio. Aquilo que os
de comprar pães e broas nas teóricos do liberalismo
padarias já era generalizado. O consideravam uma deturpação do
pão passou a ser visto como um livre mercado se insinuava como
alimento "indispensável a todas regra. Em 1888, os cervejeiros,
as classes", porém o seu também eles de origem
mercado não era alvo de nenhuma germânica, tabelaram os preços
legislação específica.3 O da cerveja.
tabelamento dos preços do pão
foi resultado de um ATENÇÃO
entendimento entre os diversos Os abaixo assinados cervejeiros
padeiros da cidade, quase todos desta cidade, participam aos
de origem alemã, conforme seus estimáveis fregueses em
publicado n'O Dezenove de particular e ao público em
Dezembro. geral que tendo-se obrigado
entre si solidariamente só
PADARIAS venderão cerveja a partir de 1º
Nós abaixo assinados de julho do ano corrente pelos
participamos ao respeitável preços seguintes:
público desta capital, e cada cerveja dupla 3$000
um a seus fregueses, que do dia cerveja simples 1$500
13 deste mês em diante vendem o a dúzia sem garrafas.
pão pelos preços abaixo, e Para cientificar o público qual
declaram mais que não trocam o o motivo desta resolução
pão do dia anterior. diremos o seguinte: que por um
1 Pão $080 lado o que muito concorre para
5 Ditos $320 isto é que a matéria-prima de
16 Ditos 1$000 cada vez cresce em preço, e por
outro lado somos obrigados,
para satisfazer um pedido
1
C.L.D.R.P., 1862. p.89. e geral, a fabricar uma cerveja
C.L.D.R.P., 1861. p.81.
2
C.L.D.R.P., 1877. p.55.
3 4
O Dezenove de Dezembro, Curitiba, O Dezenove de Dezembro, Curitiba,
26 maio1877. p.4. 12 maio1877. p.4.
87
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

mais forte e a empenhar-nos a consumidores urbanos não


fornecer esta em condições tais apelavam a essas mesmas 'leis',
que em bondade se aproxime mais mas propunham os rigores das
ou menos à cerveja importada leis do estado. "Venha a
mas que em pureza exceda a fiscalização!..."
esta.1
O fato de os padeiros e O MONOPÓLIO DO PÃO
cervejeiros serem de origem O comércio do pão, como o da
germânica explica, ao menos em carne, é objeto do mais
parte, tais atitudes. Quando opressor monopólio, com
eles agiam concertadamente, prejuízo dos consumidores.
padronizando a qualidade, as Ainda há dias, sem combinação
quantidades e os preços, alguma, comprava-se pães de
estavam repetindo certas quase 200 gramas a 60 rs. ao
práticas de mercado das suas passo que hoje, em vista do
regiões de origem. Nos países célebre tratado de 9 padeiros,
de língua germânica, o controle elevaram a 80 rs. e o pão tomou
da produção artesanal pelos proporções mais diminutas.
grêmios e corporações de ofício Sentimos que alguém não se
sobreviveu até a segunda metade lembre de angariar uma
do século XIX. Segundo assinatura, com o fim de
Hobsbawm, o controle estabelecer a antiga venda,
corporativo da produção "deu porquanto além de contar com a
lugar à Gewerbetreiheit - maior parte ou todos os
liberdade de iniciar e praticar consumidores, extinguiria o mal
qualquer forma de comércio - na permitido monopólio. Não seria,
Áustria, em 1859, e na maior também fora do tempo que a
parte da Alemanha, na primeira autoridade competente, de
metade dos anos 1860".2 quando em vez, fiscalizasse o
Algumas atitudes tomadas peso e a qualidade desse
por esses imigrantes em nome de gênero, impondo multa aos
seus costumes gremiais foram padeiros. Se os consumidores
recebidas pela população estão sujeitos à pressão de
letrada curitibana, que usava especuladores, bem cabido é que
os jornais como veículo de fiquem estes debaixo das vistas
protesto, como uma infração às da lei.
leis de mercado. O tabelamento O povo.3
de preços era tido como As exigências de um "preço
"monopólio", uma violação aos justo", que estavam por trás
princípios teóricos da livre dos conflitos entre
iniciativa. Porém, contra estas consumidores e produtores,
transgressões evidentes às acabavam quase sempre em
'leis de mercado', os demanda pela ação mediadora do
estado. Nessa medida, a parcela
1
O Dezenove de Dezembro, Curitiba, paranaense do estado
30 jun.1888. p.3.
2
HOBSBAWM, Eric J. A era do capital:
3
1848-1875. Rio de Janeiro: Paz e O Dezenove de Dezembro, Curitiba,
Terra, 1977. p.55. 12 abr.1877. p.4.
88
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

brasileiro, ao menos ao nível comerciantes. Os imigrantes,


do município, atravessou o transplantados ao novo mundo
século XIX sem renunciar ao como parte de um projeto de
papel de instância reguladora modernidade, traziam consigo
de mercados e preços. práticas medievais fundadas nas
Todavia, apesar dessa corporações de ofícios.
presença estatal, fez-se a Ainda assim, fez-se o
economia do livre-mercado. No livre-mercado. Prova disso é
Paraná, o mercado que foi-se que, quando os vereadores
instaurando no século XIX, legislavam sobre o comércio de
concomitantemente à gêneros de subsistência em
desarticulação das economias de épocas de calamidade pública,
subsistência, não era tão eles tinham como perspectiva
'livre' quanto os modelos não mais uma calamidade
teóricos propostos pelos climática natural. As
epígonos do liberalismo. O calamidades concretas que
mercado cujo poder regulatório desencadeavam a sua ação
daria conta da quase totalidade legisladora eram aquelas que
das relações sociais, elas apareciam como conseqüência dos
mesmas transformadas em humores, das flutuações e das
relações de mercado, permaneceu manipulações do preço do mate
no horizonte como miragem nunca no mercado platino.
alcançada. No mercado concreto
que se formou, as exceções em 3- A FABRICAÇÃO DA FÁBRICA
relação às teorias acabaram O comércio de mate entre o
sendo as regras. Muitas das Paraná e a região platina,
'leis' que regulavam o mercado desde a sua legalização em
concreto expressavam a 1722, esteve nas mãos de um
correlação de forças entre os pequeno grupo de comerciantes
diversos segmentos sociais que que assim controlava esse
nele se enfrentavam. Os mercado. Já a produção estava a
industriais construíram um cargo de uma infinidade de
mercado 'oligopsônico' contra produtores artesanais
seus fornecedores. Os pequenos autônomos. Em princípio,
produtores rurais, na medida em qualquer pessoa adulta estava
que abandonavam a agricultura habilitada a produzir mate. As
de subsistência e tornavam-se técnicas artesanais de
dependentes dos mercados beneficiamento eram de domínio
urbanos de víveres, público e não exigiam
pressionavam pela permanência instrumentos ou edificações
das leis paternalistas. As dispendiosos. Os arbustos do
próprias classes médias mate eram nativos e
urbanas, cuja existência no disseminados nas matas que
Paraná está profundamente cobriam boa parte da região.
vinculada à formação de uma Portanto, em relação à erva-
economia de mercado, clamavam mate ou às populações que dela
em seu nome e em nome de um faziam uso, não havia nada que
povo abstrato pela ética dos prenunciasse o ulterior
89
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

desenvolvimento de técnicas lucros obtidos nesse comércio,


industriais de beneficiamento. inclusive daqueles advindos da
A produção do mate não exigia própria adulteração. Apesar da
'necessariamente' nenhuma pequena quantidade de dados
concentração de capital. empíricos disponíveis, a
Num mercado onde os canais observação da gênese da
de comercialização se indústria do mate no Paraná nos
encontravam nas mãos de uns leva a rejeitar as hipóteses
poucos e a produção estava mais correntes sobre a
pulverizada entre pequenos indústria que privilegiam um
produtores, pode-se supor, com suposto imperativo da eficácia
bastante segurança, que os técnica. A disputa entre
grandes beneficiados fossem os comerciantes e produtores
comerciantes. Porém, mesmo autônomos mostra-nos que os
controlando a parte mais primeiros passos dos
lucrativa do negócio, estes exportadores no universo da
comerciantes envolveram-se produção, representados pela
pouco a pouco no universo da criação de casas de soque, não
produção, montando casas de tiveram como motivação a
soque onde concluía-se o introdução de novas técnicas
beneficiamento do mate e onde produtivas.
embalava-se o produto para Poderíamos, a partir
exportação. A justificativa destes dados, afirmar que, já
apontada para o envolvimento no final do século XVIII,
dos comerciantes na produção ensaiava-se no Paraná a
era a necessidade de controle passagem de um sistema de
sobre a qualidade do produto putting-out para um sistema
final, pois os produtores fabril. A unidade 'fabril' da
autônomos costumavam incluir casa de soque era um primeiro
outras ervas no preparo do resultado, ainda que
mate, entregando um produto de incipiente, da disputa pelos
baixa qualidade que concorria lucros do comércio exterior da
em desvantagem com a erva erva-mate. Tanto é verdade, que
paraguaia no mercado platino. a acumulação obtida pelo
A defraudação de produtos controle da produção e dos
e matérias-primas é um canais de exportação permitiu
procedimento característico no que em poucos anos os
sistema de putting-out. A comerciantes desencadeassem
adulteração era uma das formas alterações bem mais profundas
encontradas pelo produtor nos processos de beneficiamento
autônomo para melhorar seus do mate. A partir da década de
ganhos, o que gerava constantes 1820 ou 1830, foi introduzida a
atritos entre estes e os donos tração hidráulica nas casas de
do mercado de exportação. Neste soque e, com ela, uma
caso, o controle da produção organização hierárquica de
representaria uma disputa entre trabalho indubitavelmente
comerciantes e pequenos fabril, ambas voltadas a
produtores pela parte dos
90
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

propiciar um ritmo de supérflua e cujo resultado é


acumulação ainda maior. tão triste quanto duvidoso.1
Nem por isso cessou a Note-se que o artigo
disputa entre os produtores refere-se apenas àqueles que
autônomos e os comerciantes. lucrariam com a medida adotada,
Durante todo o século passado, os transportadores e os
e mesmo no atual, sobreviveu a proprietários de engenho.
prática de comprar mate Portanto, os produtores rurais,
cancheado por produtores que teriam de arcar com a
autônomos. Um artigo publicado 'limpeza de paus', foram
n'O Dezenove de Dezembro em omitidos. Graças ao domínio que
1958 dá-nos uma idéia da possuíam sobre o mercado, os
pressão que os industriais "engenheiros" agiam
exerciam sobre seus concertadamente para repassar
fornecedores para abocanhar uma aos fornecedores de suas
fatia maior da renda. O jornal matérias-primas o custo de uma
era usado como meio para tornar das operações de
pública a decisão conjunta dos beneficiamento. Mesmo num
proprietários de engenho de período em que a tecnificação
Morretes em comprar apenas erva da produção já ia avançada, não
previamente peneirada. estava claro o que era
Se ponderarmos também pelo lado indústria e o que não era. Uma
econômico, imensas vantagens mesma operação de processamento
nós descobriremos na realização tanto podia ser feita no
de semelhante medida, porquanto engenho quanto pelo cancheador.
vemos que acreditado o gênero e Tal conflito só seria resolvido
elevado seus preços, o tropeiro algumas décadas mais tarde, com
obterá em suas mãos por 10 a utilização de máquinas de
cargueiros de erva igual valor peneirar. Antes disso, o
ao que obtinha conduzindo 20, e coamento da erva utilizava as
não será isto uma economia de mesmas técnicas manuais, tanto
serviço, mulas, camaradas, no interior da indústria como
etc.? Se do tropeiro passarmos fora dela. A utilização da
para o engenheiro, facilmente tração hidráulica mecanizou
se conhece que a maior parte do inicialmente apenas uma das
dia leva o engenho e os operações do beneficiamento do
trabalhadores a socar, mate: o soque. As operações
beneficiar e limpar pau; cesse restantes continuariam a ser
esse abuso, não apareça mais feitas de forma artesanal até
esse maldito cancro da erva- serem mecanizadas nas décadas
mate, e teremos que cada de 1870 e 1880. Daí podermos
engenheiro poderá diminuir concluir que o domínio do
diariamente 2 trabalhadores, universo do trabalho pelos
para assim fazer a mesma
quantidade de erva, que hoje
1
prepara com tanta gente O Dezenove de Dezembro, Curitiba, 8
set.1858. pp.3-4. Ver também sobre o
mesmo assunto as edições de 21
ago.1858 p.3. e de 2 out.1858 p.3.
91
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

comerciantes precedeu a modo de satisfazer a algumas


tecnificação da produção. necessidades consideradas
básicas, a não ser participando
PERSUASÕES E INTIMAÇÕES desse mercado.
Até agora temos abordado o Tanto o sistema colonial
conflito entre a burguesia do português como o neo-
mate e os produtores autônomos. colonialismo inglês bloquearam
Existe, porém, uma terceira o desenvolvimento de uma
personagem envolvido nessa produção artesanal capaz de
história: o trabalhador fabril. suprir aos habitantes
Os autores paranaenses são 'europeizados' as 'mercadorias'
unânimes quanto à precocidade que os diferenciassem das
da utilização do trabalhador populações indígenas. Para a
livre nos engenhos do Paraná. obtenção do vestuário, por
Tanto David Carneiro quanto exemplo, as pessoas deviam
Temístocles Linhares afirmam obrigatoriamente participar do
que a passagem do trabalho mercado internacional, onde
escravo para o trabalho livre imperava a circulação
se deu na década de 1830, monetária. Era preciso dispor
concomitantemente à introdução de produtos negociáveis, direta
da tração hidráulica.1 ou indiretamente, nesse
A literatura mundial sobre mercado. No entanto, muitos dos
o assunto nos mostra o quanto habitantes do sul do Brasil não
foi difícil a generalização do consideravam essas mercadorias
trabalho fabril. Portanto, não de importação como artigos de
é de se supor que, no Paraná, a necessidade patente ou
transformação de pessoas indispensável. Assim mostravam
ligadas ao extrativismo vegetal uma tendência a se retrair
e de lavradores de subsistência desse mercado. Cabia às
em operários tenha sido algo autoridades coloniais zelar
muito fácil. Infelizmente, a para que tal não acontecesse,
documentação disponível guarda inculcando nos habitantes a
um silêncio extremo sobre o necessidade de permanecer no
assunto. Por enquanto, é mercado.
possível apenas fazer De acordo com uma dessas
especulações muito genéricas, autoridades, no final do século
tendo em mente algumas noções XVIII "a necessidade para o
gerais sobre o Paraná no sustento e vestuário, à força
primeiro quartel do século XIX. de persuasões e intimações, fez
A sociedade paranaense, a que o povo se aplicasse à
exemplo da brasileira em geral, lavoura".2 Em seu relato de
foi inserida desde o seu viagem, Saint-Hilaire nos
nascimento no mercado mundial. deixou trechos significativos
Mesmo em períodos de grande sobre as formas de "persuasões
isolamento, não havia outro e intimações", adotadas pelos
funcionários portugueses para
1
Ver LINHARES, op. cit. p.170 e 237-
2
42. Vieira dos SANTOS, op. cit. p.143.
92
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

induzir necessidades que utilização de meios mais


levassem a uma moral do drásticos:
trabalho e ao fortalecimento de Apesar da amenidade do clima os
relações sociais de mercado. habitantes desse distrito não
Entre nós, os europeus, a são menos indolentes do que os
emulação contribui também para das zonas mais setentrionais do
afastar muita gente da Brasil. O digno homem que
ociosidade, mas até agora esse exercia, à época de minha
nobre sentimento - forçoso é viagem, as funções de capitão-
confessar - ainda é bastante mor era obrigado a demarcar a
raro entre os brasileiros. quantidade de terra que cada um
Contudo, veremos a seguir o que devia semear, metendo na
conseguiu o capitão-mor de cadeia, de vez em quando,
Curitiba nesse sentido, ao alguns preguiçosos, a fim de
estimular a vaidade entre as intimidar outros.2
mulheres e seu gosto pelos Ocorria que a agricultura
enfeites. O capitão-mor me de subsistência e a venda de
disse que as terras mais bem uns parcos excedentes não eram
cultivadas do seu distrito eram vistas pela população, de modo
habitadas unicamente por pobres geral, como a alternativa mais
criaturas cujos maridos tinham interessante de participação no
fugido dali para escapar à mercado, mesmo porque os
tirania do Coronel mercados urbanos onde a
Diogo.[Alistamento militar produção agrícola podia ser
forçado.] Cada uma dessas negociada eram extremamente
mulheres, desejando possuir uma restritos.
corrente de ouro, brincos e Desde o século XVIII, a
algumas roupas decentes, punha- extração da erva-mate firmou-se
se a trabalhar para conseguir como a alternativa preferencial
isso. Quando o capitão-mor de obtenção de alguma renda em
notava que alguma delas estava dinheiro. Para uma população
mais mal trajada do que as que nem sempre compartilhava do
outras, procurava fazer com que ideário positivo em torno do
ela se envergonhasse disso, trabalho, sustentado pelas
incentivando-a a trabalhar para autoridades e classes
igualar-se às suas vizinhas.1 dominantes locais, era bastante
Ou seja, quando os compreensível a preferência por
habitantes de Curitiba não uma atividade sazonal como a
demonstravam uma 'vontade extração do mate. Essas pessoas
espontânea' de participar do trabalhavam exaustivamente
mercado mundial ou do mercado alguns meses por ano, o
de trabalho, lançava-se mão de suficiente para ter acesso aos
algumas formas engenhosas de produtos da indústria e do
emulação. Mas, quando a artesanato europeus. No
inventividade era insuficiente, restante do ano, elas
restava a possibilidade de dedicavam-se, quando muito, a

1 2
SAINT-HILAIRE, op. cit. p.80. Ibidem.
93
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

uma agricultura restritíssima e tanto na perfeição de sua


à criação de alguns animais manufatura, e escolha de sua
domésticos, sobrando tempo qualidade como no tempo mais
suficiente para as corridas de apropriado para a colheita
cavalos, os jogos de carta e desta preciosa árvore, teria
bilhar e para os fandangos, as sido assaz vantajoso o seu
diversões prediletas da época. Comércio para estes habitantes,
Do ponto de vista do estado sem os ter por tantas vezes
colonial e dos viajantes exposto à penosa carestia de
estrangeiros, esta era uma vida víveres, à destruição da maior
de ociosidade perniciosa, e melhor parte de seus ervais,
denunciada a cada momento. e ao descrédito deste gênero
Os senhores dos Campos nos mercados estrangeiros e
Gerais que, após a sendo portanto muito urgente
independência, dominavam acautelar tais abusos, que
politicamente a região, também arruinarão este comércio,
não viam com bons olhos este destruirão esta preciosa
estado de coisas. Junto com o planta, e continuarão a expor
mando político, eles haviam este Povo a pesadas carestias
herdado do estado português uma de víveres por isso Proveu =
noção de equilíbrio social, a Capítulo único artigo primeiro
qual tentavam pôr em prática = Que nenhum fabricante de Erva
por diversos meios. O mundo de de mate continue em sua fatura
seus sonhos (do lado de fora além dos meses de janeiro até
das porteiras de suas fazendas, Julho inclusive, tempo em que
é claro, pois do lado de dentro está esta planta em seu
imperavam relações escravistas completo estado de sazonamento,
de trabalho) era o de um e perfeição que sua poda ou
campesinato europeu morigerado. colheita não prejudica a sua
Neste contexto, a exploração vegetação e que deixa livres os
autônoma e sazonal do mate, meses necessários para a
representando um bloqueio à lavoura de raiz = Artigo
implementação de uma economia Segundo = Todo o indivíduo de
camponesa de subsistência, era quem se denunciar, e de fato
constantemente condenada e for convencido da infração do
apontada como responsável pela artigo antecedente ser-lhe-á
pobreza da população. Vejam-se confiscada a erva feita, e
as primeiras posturas pagará uma multa de quatro a
municipais sobre a erva-mate, oito mil réis metade para o
datadas de 1829, mostrando-nos denunciante, e o mais para o
o estado de espírito dos Conselho = Artigo terceiro =
vereadores-fazendeiros em Nos terrenos do Patrimônio
relação à questão: Nacional vulgarmente chamados
Título terceiro = Sendo devolutos, nenhum fabricante de
presentemente o objeto mais erva cortará esse arvoredo pelo
lucrativo da exportação deste tronco mas sim o desgalhará de
Município a Erva de Mate, que maneira que não deteriore sua
se tivesse indo bem regulada vegetação com a cominação de
94
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

pagar uma multa de dois a primeiro boom do mate. As


quatro mil réis para o conselho pessoas falavam em economia,
salva qualquer disposição da trabalhadores, lucros, etc.
Lei sobre tais terrenos = Relações de mercado livre
Artigo quarto = Em poder de vinham-se implementando a todos
quem for achado porção de erva os níveis, independentemente
de mate adulterada por outra das legislações moralizantes.
planta heterogênea, ou seja por O envolvimento da
ele fabricada, ou havida de população livre mais pobre,
fabricante fraudulento, perderá principalmente dos libertos,
a erva que será mandada lançar não deixou de ter as suas
fora, e pagará uma multa de armadilhas. Na medida em que,
quatro mil réis metade para o instada pelo estado português e
denunciante e metade para o depois pelo brasileiro a
Conselho. encontrar uma atividade
Curitiba, 24 de setembro de produtiva, optou pela extração
1829.1 do mate, ela colocou-se à mercê
Os senhores dos Campos dos putting-outers, se é que
Gerais nos sugerem, através assim podemos referir-nos aos
destas posturas, que a economia comerciantes de mate. Quando
do mate se constituiu num esses burgueses começaram a
ambiente semelhante ao que hoje dominar também o universo da
é conhecido por 'capitalismo produção, com isso estavam
selvagem'. A agricultura fora capturando o conjunto de
abandonada, os cancheadores técnicas dominadas pela
cortavam os arbustos do mate população livre, passando a
pelo tronco e estavam circunscrevê-las a um
envolvidos na adulteração determinado lugar onde o ritmo
fraudulenta da erva. e a qualidade da produção
Descontados os preconceitos, os podiam ser controlados. Através
fazendeiros não deixavam de ter do domínio do mercado, foi-lhes
sua parcela de razão. Este foi possível determinar quais as
um momento de acumulação atividades que deveriam se dar
desenfreada. Os engenhos no interior do espaço fabril e
hidráulicos estavam tomando quais as que deveriam
conta do litoral. A exploração permanecer no âmbito do
do mate, até então algo produtor autônomo. Isso
marginal, começava a se promoveu uma separação entre
destacar economicamente. Na esses produtores. Alguns
região de Morretes, o conjunto poderiam se manter como
das relações sociais estava autônomos, outros deveriam
sendo rapidamente reordenado em tomar o caminho do engenho,
nome dos novos esquemas tornando-se trabalhadores
produtivos. Serra acima também jornaleiros. Um artigo
sentiam-se os efeitos deste publicado n'O Dezenove de
Dezembro, onde se criticava a
1 economia do mate, considerava
CURITIBA. Posturas municipais, op.
cit. f.5. esses trabalhadores autônomos
95
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

como um "povo pobre, que forma, aqueles que não


continua a empregar-se em um dispunham de maiores recursos
trabalho quase improfícuo, que eram forçados a se tornar
no fim do ano lhe produz pequenos produtores, vendendo
seguramente menos que o salário algum 'excedente', ou
de um jornaleiro".1 Estreitando trabalhadores jornaleiros. No
os ganhos dos autônomos, os caso do Paraná, a apropriação
donos do mercado devem ter, por resultante da tecnificação
esse 'reforço negativo', industrial não atingiu apenas
estimulado uns tantos a optarem um grupo específico de
pela fábrica. artesãos. Foi além,
Além do mais, o trabalho apropriando-se de práticas e
no engenho era sazonal, visto saberes comuns a toda a
que o mate só podia ser população paranaense da época.
explorado em algumas épocas do
ano. Para esses jornaleiros, a OS LOCAIS E ARTES DE FABRICAR
venda de sua capacidade de Os primeiros passos da
trabalho em alguns meses do ano tecnificação da produção do
provavelmente não se afigurava mate no Paraná costumam ser
como uma situação definitiva, creditados a dois comerciantes
mas apenas como uma maneira platinos que, na década de
episódica, ainda que periódica, 1830, instalaram-se na região
de obter renda em dinheiro - o litorânea: Francisco Alzagaray,
suficiente para comparecer como em Paranaguá, e Manuel Miró, em
consumidores no mercado Morretes.2 Segundo alguns
mundial, encarnado nos produtos autores, eles teriam
equivalentes às correntes, introduzido na região uma série
brincos e vestidos tão de processos desenvolvidos nas
valorizados pelo capitão-mor de missões jesuíticas, entre os
Curitiba. quais o uso de engenhos de
Em seus primórdios, a soque movidos a roda d'água. De
economia paranaense do mate fato, a documentação luso-
parece ter sido constituída por brasileira do século XVIII já
uma categoria de artesãos, que se referia à antigüidade dos
agregava boa parte da população engenhos jesuíticos de
livre da região, dominados por congonha. Portanto, não se pode
comerciantes de exportação. pensar, até o início do século
Assim, em vez de um britânico XIX, num desenvolvimento
cercamento dos campos, parece tecnológico que tenha surgido
ter havido na região um de forma autônoma no Paraná.
cercamento das oportunidades Teríamos, muito provavelmente,
econômicas de mercado, em a importação de um 'pacote
conjunção com medidas que tecnológico' jesuítico,
induziam as pessoas a originário do Paraguai.
permanecerem no mercado. Dessa
2
Ver LINHARES, op. cit. p.76. e
CARNEIRO, David. Fasmas estruturais
1
O Dezenove de Dezembro, Curitiba, da economia do Paraná. Curitiba:
24 jun.1854. p.4. UFPr, 1962. p.84.
96
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

Se a tecnologia de recurso a trabalhadores livres


beneficiamento do mate deve ser encarada antes como
difundida no começo do século uma fraqueza (uma acumulação de
XIX não era de criação recente, capital ainda incipiente) do
no Paraná ela assumiu uma que como um pretenso sinal de
feição nova, quando comparada à modernidade. Seria muito
indústria desenvolvida no difícil imaginar que, para
Brasil colonial. A 'novidade' esses burgueses, as coisas se
do engenho paranaense era a colocassem em termos de uma
vinculação, desde o início, da 'superioridade' histórico-
tração hidráulica com a econômica consubstanciada na
utilização de mão-de-obra livre exploração do trabalho livre.
assalariada. O que, na prática, Como vimos anteriormente, mesmo
estava sendo posto em jogo era o ingresso dos comerciantes na
uma determinada concepção de esfera da produção explica-se
fábrica, onde também mais plausivelmente como parte
trabalhassem homens livres, da disputa por uma maior margem
contrariando a concepção de lucro do que como uma
dominante no Brasil colonial, implementação prática de um
onde o engenho se desenvolvera ideário centrado na valorização
no âmbito quase exclusivo das da eficiência como fim em si
relações escravistas de mesma.
trabalho. Os setores dominantes das
Contudo, essa fábrica que vinha economias regionais brasileiras
sendo instituída no Paraná era tinham em comum a conjugação da
muito incipiente, mesmo tendo- propriedade fundiária com a
se em mente o Brasil da época. exploração do trabalho escravo,
Nada ainda se criara que como era o caso da pecuária dos
suplantasse os engenhos Campos Gerais. A nascente
açucareiros do nordeste, em burguesia do mate, muito
termos de concentração de provavelmente por não ter em
trabalhadores e racionalidade suas mãos uma atividade social
de produção. Porém, enquanto o e econômica dominante, não
engenho nordestino vivia a sua sendo, portanto, terratenente,
decadência, a fábrica seria levada precocemente a
paranaense se desenvolvia na adquirir força-de-trabalho
mesma direção da livre no mercado. Assim, o
industrialização européia que, trabalho entraria desde cedo na
ao fim e ao cabo, se imporia economia do mate como 'custo de
universalmente, tendendo a operação industrial' e não como
eliminar as outras formas de 'capital imobilizado'. Essa
produção 'pré-capitalistas'. 'racionalidade econômica', um
Não podemos com isso supor tanto forçada pelas
que os exportadores de mate circunstâncias, que os
tivessem um compromisso dispensava de imobilizar
apriorístico com a mecanização capital em terras e escravos,
e com a utilização de mão-de- daria aos patrões da indústria
obra livre. A precocidade no ervateira a possibilidade de
97
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

reinversão dos seus lucros na - piloeiros - revolviam o mate


tecnificação da produção.1 dentro dos pilões
Neste período de - ensurroadores - prensavam o
tecnificação incipiente, mate nos surrões decouro.2
representado pela roda d'água, Para os trabalhadores que
os trabalhadores de engenho já exerciam as funções de
estavam submetidos à torrefador, coador e piloeiro,
parcelização de suas tarefas. a remuneração era feita por dia
Deixando de lado o trabalho de de trabalho. Estes eram típicos
cancheamento, executado junto trabalhadores jornaleiros. Já
aos ervais e cujas técnicas os ensurroadores recebiam com
artesanais sobreviveram ao base no número de surrões
século XIX, examinemos um pouco enchidos. Sua remuneração, se é
a vertente fabril da que podemos falar nesses
organização do trabalho. Os termos, era feita 'por peça'.
jornaleiros dos engenhos Por que teriam os donos de
hidráulicos eram contratados engenho introduzido tal
para desenvolver atividades diferenciação? Não eram todos
parcelizadas, e as formas de trabalhadores braçais
pagamento eram diferenciadas executando tarefas semelhantes
conforme a especialidade de quanto à sua natureza?
cada trabalhador. Percebe-se Pode-se encontrar a
com isso que, concomitantemente resposta a tal questão,
à fábrica, desenvolvia-se uma observando atentamente os
certa 'arte de administração de resultados do emprego da roda
pessoal'. A essa altura, os d'água. Uma comparação entre o
patrões locais já tinham trabalho dos piloeiros e dos
certamente compreendido as ensurroadores elucida
vantagens da parcelização. A perfeitamente a lógica de tal
equipe de trabalho nessas diferenciação. Com a tração
fábricas era composta por hidráulica das mãos do pilão, o
trabalhadores especializados piloeiro perdeu o controle
nas seguintes funções: sobre o ritmo de seu trabalho.
- forneiros - responsáveis pela A velocidade da tarefa que
torrefação executava passou a ser dominada
- coadores - peneiravam a pelo contínuo vai-e-vem dos
matéria-prima braços de pilão movidos pela
roda. Mas isso não ocorria no
1
Para alguns autores, a própria caso dos ensurroadores. Esses
sazonalidade das atividades trabalhadores, que operavam em
ervateiras desaconselhava a compra dupla (um segurava o surrão
de escravos, pois estes ficariam aberto enquanto o outro
ociosos uma boa parte do ano.
Durante o século XIX, não se sabia socava), podiam controlar a
fazer germinar artificialmente as intensidade e a rapidez de seu
sementes de erva-mate, o que,
2
portanto, impedia a existência de LINHARES, op. cit. p.165.
plantações para o abastecimento dos Os surrões eram sacos de couro nos
engenhos, desvinculando a atividade quais se acondicionava o mate para
do regime de latifúndio. exportação.
98
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

trabalho. Em princípio, podiam especialmente pelo


encher mais ou menos surrões funcionamento mais racional do
conforme seu próprio arbítrio. sistema de benefício, tudo se
Para eles, portanto, o interligando por condutores que
pagamento por peça deveria levavam a erva do forno de
funcionar como um 'estímulo'. secagem para os pilões, as
Era mais uma forma de indução peneiras, os misturadores e o
ao trabalho em benefício da invólucro.3
acumulação do industrial. No Grande parte dessa nova
entanto, não havia futuro para mecanização racionalizadora
funções dessa natureza; mais introduzida pelos industriais
algumas décadas, e os patrões do mate é creditada ao Engº
encontrariam a maneira de Francisco de Camargo Pinto. O
mecanizar também os processos Imperador D. Pedro II custeou
de embalagem. os estudos de Camargo Pinto na
Europa, onde ele se tornou um
SUBSTITUIR A ATIVIDADE expert em produção industrial.
INTELECTUAL OPERÁRIA Os primeiros resultados de seu
O passo seguinte dado envolvimento com a produção
pelos proprietários das tecnificada do mate já
fábricas foi a introdução de apareciam em 1866, ano de uma
caldeiras a vapor. David exposição na qual ele
Carneiro, sem especificar apresentara:
datas, afirma que o primeiro os seguintes modelos de
industrial a usar energia máquinas aplicados ao mesmo
térmica em substituição à roda fabrico.
d'água foi o Coronel José D'uma roda hidráulica
Munhoz.1 Temístocles Linhares, (melhorada),
por sua vez, diz que essa D'um torrador, de forma
prerrogativa cabe a João cilíndrica,
Antônio Pereira Alves, que em D'uma máquina de peneirar e
1857 instalou uma caldeira em abanar,
sua fábrica de Antonina que D'um engenho de moer (sistema
movia simultaneamente 40 mãos circular)
de pilão.2 No entanto, segundo D'uma prensa aplicada a
os dois autores, o emprego de comprimir o mate nos surrões e
caldeiras não chegava a barricas.4
caracterizar uma mudança Excluindo-se a roda
substancial nos engenhos. Para hidráulica melhorada, que poria
Linhares, a terceira fase da tudo em movimento, existe uma
indústria do mate começaria correspondência perfeita entre
mais tarde. cada máquina e as funções
Ela seria definida não exercidas pelos operários. Para
somente pelo maior emprego do o torrador, um novo torrador de
motor a vapor, mas
3
LINHARES, op. cit. p.171.
1 4
CARNEIRO, op. cit. p.107. O Dezenove de Dezembro, Curitiba, 4
2
LINHARES, op. cit. p.170. maio1878. p.3.
99
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forma cilíndrica. Para os trabalho e dinheiro, a belos


coadores, uma máquina de resultados.1
peneirar e abanar. Para os Entretanto, mesmo para alguns
piloeiros, um engenho de moer, proprietários, as vantagens da
e para os ensurroadores uma mecanização e do trabalho livre
prensa destinada a comprimir o ainda não eram evidentes. Ainda
mate nos surrões e nas segundo Couty:
barricas. A habilidade da cada Uns dizem que esses
um deles, segundo os novos instrumentos não constituem uma
padrões de racionalidade economia. Com escravos e pilões
produtiva, deveria ser preparamos nosso mate sem
transferida às máquinas. David maiores despesas, pois suas
Carneiro sugere que o máquinas, além da compra
engenheiro viveu uma espécie de onerosa delas, necessitam de
drama fáustico, por ter uma enorme força motriz e
consciência dos efeitos sociais operações complicadas. Há
provocados pela introdução dos verdade nessas objeções; é
novos processos mecânicos, que certo que, no engenho do Sr.
aumentavam a monotonia do Correia, é necessária uma
trabalho e a redução dos níveis máquina de oito cavalos (força
de emprego. nominal), ao passo que bastam
Introduzidas as máquinas quatro nas de seus vizinhos, e
de beneficiamento, restava o próprio Sr. Correia o
ainda por resolver a posição reconhece; atualmente e antes
relativa entre elas e o de se animar a aperfeiçoamentos
transporte da matéria-prima possíveis nos aparelhos e em
entre uma operação e outra. Na sua disposição recíproca, sua
década de 1880, encontraremos mão-de-obra é tão cara quanto a
alguns industriais procurando de seus vizinhos: mas ela chega
resolver a questão. O francês a resultados bem melhores.2
Louis Couty, enviado pelo Assim, como vemos neste
Ministério da Agicultura para caso, a instalação de máquinas
estudar a economia do sul da não tinha como objetivo
Brasil, nos deixou um relato primeiro uma economia de mão-
significativo sobre o que vinha de-obra, mas um controle maior
sendo gestado no engenho de dos industriais sobre os
Ildefonso Pereira Corrêa, o
Barão do Serro Azul.
Ele pôs mãos à obra há 1
COUTY, Louis. Le maté et les
vários anos e, experimentando conserves de viande. Rio de Janeiro:
máquinas e mais máquinas, Typografia Nacional, 1880. p.58. A
deixando de lado ou historiadora da economia paranaense
Odah R. G. Costa desenvolveu um
aperfeiçoando as que não lhe interessante trabalho onde o Barão é
dão resultados suficientes, apresentado como um autêntico
nunca se contentando com um burguês schumpteriano. Ver COSTA,
progresso efetivo, se julgasse- Odah Regina Guimarães. Ação
o insuficiente, já pôde chegar, empresarial do barão do Cerro Azul.
Curitiba: Grafipar/SECE, 1981.
não sem grande gasto de tempo, 2
COUTY, op. cit. pp.62-3.
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processos produtivos e o Num prazo de


produto final. aproximadamente 70 anos, a
Desta forma, a fábrica burguesia industrial
deixou de depender do paranaense, herdeira dos
conhecimento e da habilidade putting-outers do início do
que tinha cada operário. O século XIX, conseguiu
produto final passou a depender revolucionar a produção da
de um único trabalhador: o erva-mate e, com ela, toda a
feitor, que detinha o sociedade paranaense.
conhecimento das fórmulas da Primeiramente, transferiram
composição do mate destinado a para suas fábricas os
cada mercado. Mas mesmo esse detentores dos processos
feitor tenderia a desaparecer. artesanais de beneficiamento.
O mate passou a ser separado Posteriormente, retiraram o
através de uma seqüência de controle que essas pessoas
peneiramentos e cada pudessem deter sobre os
granulometria era conduzida a processos de trabalho. Por
um silo correspondente. Antes último, pretenderam substituir
da embalagem, o mate era a "atividade intelectual
recombinado segundo fórmulas operária" pelas máquinas.
específicas. Na medida em que A indústria do mate e suas
essas fórmulas, destinadas a subsidiárias (as metalúrgicas,
cada mercado específico, as barricarias e as
tornaram-se fixas, a indústria litográfias) deram o toque
deixou de depender até mesmo do dominante à sociedade
feitor. paranaense do final do século
O espanhol Antônio XIX e início do XX. Até o ritmo
Prunera, descrevendo em 1913 a da vida cotidiana dos
indústria do comendador Macedo, habitantes de Curitiba passou a
deixou muito claro o sentido de ser regido pela indústria. As
todas essas transformações por máquinas a vapor, com seus
que passaram os processos de “apitos de manhã, ao almoço e à
produção do mate. tarde formavam uma verdadeira
A fábrica ocupa uns 70 sinfonia, pelo seu som
operários, todos maiores de conhecia-se o engenho; este é
idade, e ainda que as operações da Baronesa, este do Miró,
não exijam conhecimentos que aquele do Macedo” 2, [Cuja]
demandem estudos técnicos, pois “chaminé de tijolos, moderna, e
as máquinas cuidam de com uma altura de 36 metros,
substituir a atividade constitui a nota típica da
intelectual operária; nem por
isso, a prática que possuem,
mercantil del estado del Paraná.
deixa de cooperar grandemente s.l.: s.ed., 1913. dat. p.60.
com os esforços que a delicada 2
MIO, João de. Notícias históricas
direção requer.1 sobre a erva-mate e seus engenhos de
beneficiamento. Boletim do Instituto
Histórico, Geográfico e Etnográfico
1
PRUNERA, Antônio de. Relatório Paranaense. v.5, n.3-4, jul.-
geográfico, comercial, industrial y dez.1951. pp.56-7.
101
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indústria; a dominante, como


desafio aos adiantos modernos,
que, com seu aspecto arrogante,
de vez em quando anuvia a
atmosfera com suas baforadas de
fumaça, semeando suas iras rumo
ao progresso”.1
No interior da fábrica
tecnificada de erva-mate, coube
aos operários um ambiente e uma
rotina de trabalho que aparece
nas memórias do arquiteto João
de Mio como um inferno dantesco
onde se movimentavam demônios
verdes.
O horário dos engenhos era das
6 às 6, com uma hora de folga
para o almoço. Os operários,
semi nus, cobertos de pó verde
do mate, sendo eles, na
maioria, gente de cor, pareciam
demônios movimentando-se
naquele turbilhão de pó e
barulho ensurdecedor de pilões
e do rodar das peneiras.2
Fora da fábrica, simulando
um enfado virada-de-século, a
intelectualidade blasé
queixavam-se deste “apito
pavoroso de não sei que maldita
fábrica de qualquer coisa,
[que] grunhe levando o
aborrecimento a todos os lares
desta bela cidade, onde, creio
eu, nem todos são operários da
dita fábrica do apito horroroso
para serem assim tão atrozmente
incomodados”.3

1
PRUNERA, op. cit. p.60.
2
MIO, op. cit. p.57.
3
PACÍFICO PEROBA. Notas de um
ocioso. Diário da Tarde, Curitiba, 8
abr.1902. p.2. apud RIBEIRO, L.C.
Memória, trabalho e resistência em
Curitiba; 1890-1920. São Paulo: USP,
1985. p.38. Dissertação defendida em
1985. policopiado.
102
Cativeiro & Liberdade, jan./jun. 1997

Os autores interessados em colaborar com Cativeiro & Liberdade


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