PROFÉTICA
Wâlter Br ueggeman n
15
ep
Temas Bíblicos
CIP-Brasil. Catalogação-na-PublicaçSo
Câmara Brasileira do Livro, SP
Brueggeman, Walter.
B814Í A imaginação profética / W. Brueggeman. — São
Paulo: Ed. Paulinas, 1983.
(Coleção temas bíblicos)
ISBN 85-05-00039-0
17 e 18. CDD-221.15
17. -250
83-0830 18. -253
A IMAGINAÇÃO
PROFÉTICA
Edições Paulinas
$ 2. ZL///- f
Título original
The Prophetic imagination
© Fortress Press, Philadelphia, 1978
Tradução
José Wilson de Andrade
Revisão
José Joaquim Sobral
Xx CMS
b
(T
...... . o dom da intuição
5
PREFÁCIO
8
1
A COMUNIDADE
ALTERNATIVA
DE MOISÉS
10
pretendo demonstrar que nas Escrituras encontram-se óti
mos modelos para descrever o ministério profético.
Um estudo sobre os profetas de Israel deve levar
em conta quer a grande clareza trazida pelos eruditos
contemporâneos quer tudo aquilo que a própria tradição
tem para nos dizer. Parece haver uma certa tensão entre
a tradição e os estudos contemporâneos. A isto temos de
estar atentos. A apatia e a tranqüilidade das igrejas no
momento atual apresentam ótima oportunidade para se
estudar os profetas e nos livrarmos de mal-entendidos,
já por demais gastos. Um mal-entendido dos conserva
dores, evidente em partidários muito importantes, é que
o profeta seja um homem que prevê o futuro, uma pessoa
que prognostica coisas que vão acontecer, muitas vezes
ameaçadoras, e geralmente encontramos uma referência
específica a Jesus. Enquanto ninguém iria negar totalmen
te aqueles aspectos da prática profética, há uma tendên
cia a um tipo de reducionismo mecânico, e, por isso,
insustentável. Se, por um lado, os profetas foram ho
mens que previram o futuro, por outro lado, foram ho
mens preocupados com o futuro, na medida em que o
mesmo contradiz o presente. Já os progressistas, que
abandonaram e deixaram o medo do futuro para os con
servadores, tomaram como direção o presente. De modo
que a profecia é, alternativamente, reduzida a uma justa
indignação, e, no círculo das idéias em que nos movemos,
a profecia é compreendida sobretudo como ação social.
Na realidade, esta compreensão progressista da profecia é
um artifício atraente e um disfarce contra qualquer des
gaste na defesa de qualquer causa. Provavelmente, o
que faríamos de melhor seria deixar o medo do futuro
cas do profeta. Cf. Walther Zimmerli, “Prophetic Proclamation and Rein-
terpretation”, in Tradition and Theology in the Old Testament, Douglas
Knight, Philadelphia, Fortress Press, 1977, pp. 69-100. Joseph Blenkinsopp
em Prophecy and Cannon (South Bend, Ind.: Notre Dame University
Press, 1977), explorou mais amplamente e com autoridade a fundamentação
desta tensão entre o profeta e a tradição.
11
dos conservadores e a crítica ao presente dos progressis
tas corrigirem-se um ao outro. Creio que nenhuma des
tas posições entende adequadamente qual seja, na reali
dade, o ponto principal na questão da profecia israelita.
A hipótese que desejo explorar é a seguinte: A fun
ção do ministério profético é alimentar, nutrir, fazer sur
gir uma consciência e uma percepção alternativa à cons
ciência e à percepção culturais dominantes à nossa volta 2.
Por isto, meu ponto de vista é que o ministério profético
não está ligado, em primeiro lugar, a crises públicas
específicas, mas, sim, em tempo e fora de tempo, à crise
dominante que é duradoura e reconhecível pela prática
de co-optar e domesticar nossa vocação alternativa. Na
turalmente, pode acontecer que esta crise permanente se
manifeste em qualquer oportunidade, em questões con
cretas, mas o que nos interessa é afirmar que a perma
nência de uma crise real se transfere de uma questão
para outra. Este aspecto é muito importante para os pro
gressistas que passam de uma questão para outra sem
perceber a tendência constante de domesticação da visão
em todas elas.
Por outro lado, a consciência alternativa, ao ser
alimentada, ajuda a crítica que procura desfazer a cons
ciência dominante. Para isto, ela tenta fazer o mesmo
que a tendência progressista faz, a saber, lutar pela re
jeição e deslegitimização do presente estado de coisas.
Assim, a consciência alternativa, que está sendo alimen
tada, energiza as pessoas e as comunidades com a pro
messa de uma outra forma de tempo e de-situação para
2 Em termos formais, o argumento é apresentado na sociologia de
Peter Berger e Thomas Luckmann em The Social Construction of Reality,
Garden City, N. Y., Doubleday, 1966; Peter Berger em The Sacred Canopy,
Garden City, N. Y., Doubleday, 1967; e Thomas Luckmann em The In-
visible Religion, New York, Macmillan, 1967. Mas nosso interesse dirige-se
para a essência do ministério profético e não para sua compreensão for
mal. Neste sentido, o assunto foi bem exposto por Douglas Hall em
Lighten Our Darkness, Philadelphia, Westminster Press, 1976.
12
a qual a comunidade de fé deve caminhar. E aqui, ela
procura fazer o mesmo que a tendência conservadora faz,
isto é, viver uma fervorosa antecipação da novidade que
Deus prometeu e que certamente conceberá.
Pensando desta forma, a palavra-chave é alternativa
e todo ministro profético e toda comunidade profética
devem empenhar-se numa luta com esta noção. Mas al
ternativa para quê? Alternativa de que forma? Alterna
tiva até onde? Finalmente, haverá uma alternativa que
evite uma possível domesticação? E, mais concretamen
te, como apresentar e conduzir alternativas numa comu
nidade de fé, a qual de forma alguma compreende que
há alternativas, ou que não está preparada para abraçá-
-las, no caso de se apresentarem? Aqui está uma prática
do ministério para a qual há pouca preparação, mesmo
entre aqueles que a deveriam ter. De modo que minha
insistência programática é que os atos de um ministro
que há de ser profeta sejam parte de um processo do des
pertar, da formação e reformação de uma comunidade al
ternativa. Isto se aplica a qualquer prática do ministério.
E torna-se uma medida de nossa adaptação cultural o
fato de vários atos do ministério (por exemplo, o acon
selhamento, a administração e mesmo a liturgia) de tal
forma tomarem conta de nossas vidas e funções, que es
tas passam a não ser vistas como elementos do ministério
profético, de formação e reformação de uma comunidade
alternativa.
Os indicadores funcionais, críticos e dinamizadores
são importantes. Minha colocação é que a cultura domi
nante, agora e em qualquer tempo, é totalmente despro
vida de crítica, não tolera uma crítica fundamental e sé
ria e levará muito tempo para aceitá-la. Por outro lado,
a cultura dominante é uma cultura exausta, incapaz de
ser seriamente dinamizada pelas novas promessas de Deus.
Sabemos, naturalmente, que nenhum de nós gosta de
críticas, mas sabemos também que ninguém aprecia ser
13
levado, pelo simples fato de isto também exigir algo de
nós. A função do ministério profético é manter juntos o
espírito crítico e o espírito ativo, porque um e outro
isolados, não têm correspondido ao melhor dé nossa tra
dição. Nossa fé tradicional mostra que é justamente a
dialética da crítica e da ação que nos permitem ser pro
fundamente fiéis a Deus. E chegamos mesmo a sugerir
que optar pela crítica ou pela ação é a tentação do progres-
sismo e do conservadorismo, respectivamente. Os pro
gressistas são bons para criticar, mas em geral não têm
uma palavra de promessa para apresentar; os conserva
dores tendem a conjecturar sobre visões alternativas de
futuro, mas a crítica pertinente de um profeta não é, ge
ralmente, bem recebida. Para aqueles de nós pessoalmen
te ligados ao ministério, percebemos que ser chamados
onde existe esta dialética é uma experiência terrível. E
qualquer de nós penderá, provavelmente, para um lado
ou para o outro. Como ponto de partida destas consi
derações, proponho que nossa compreensão sobre a pro
fecia nasce da promessa divina feita a Moisés, a qual
chega até nós pela tradição. De forma alguma minimizo
as eruditas e importantes contribuições referentes aos an
tecedentes não israelitas da profecia israelita. Estas con
tribuições incluem: a) estudos sobre o fenômeno cananeu
do êxtase, ao qual, com certeza, em Samuel 10 e 19
faz-se referência; e, mais recentemente, b) as evidências
trazidas pelos achados de Mari referentes à instituição
da função profética, tanto no culto como na própria
corte3. Estas evidências trazem luz a práticas e assem
3 Os dados referentes ao êxtase profético foram resumidos por
Johannes Lindblom em 'Prophecy in Ancient Israel, Philadelphia, Muhlen-
berg Press, 1962. Cf. V. Epstein, “Was Saul Also Among the Prophets?”
em Zeitschrift für die alttestamentliche Wissenschaft 81 (1969), pp. 287-
304. É bom não esquecer o trabalho comparativo de Thomas Óverholt,
“The Ghost Dance of 1890 and the Nature of the Prophetic Process”,
em Ethno-History 21 (1974), pp. 27-63. A respeito dos achados em Mari,
no tocante à profecia institucional, consultar F. Ellenmeier, Prophetic
in Mari and Israel, Herzberg, E. Jungfer, 1968; John H. Hayes, “Pro-
14
bléias, pelas quais, sem dúvida, Israel sentiu-se atraído
e das quais ter-se-ia ajudado muito. Mas, a tradição mes
ma não é ambígua, quando se chega à grandiosa figura
de Moisés, que fornecerá nossas primeiras compreensões.
Quer dizer, a formação de Israel começa dentro de sua
própria experiência e confissão de fé, e não é uma apro
priação externa de qualquer parte. Esta colocação é fun
damental para a presente discussão porque, de forma se
melhante eu defendo que se a Igreja tem de ser fiel, ela
tem de ser formada e ordenada a partir do interior de
sua própria experiência e confissão e não apropriando-se
de elementos externos à sua própria vida. Tenho certeza
de que esta afirmação contraria a orientação erudita
atual. Por exemplo, Ronald Clements, em seu estudo
mais recente, Prophecy and Tradition* (Profecia e Tra
dição), voltou um pouco atrás em sua posição anterior
de Covenant and Prophecy 5 (Aliança e Profecia). É cor
rente a repetição de uma perspectiva neo-wellhausiana e
que pode ser uma correção importante à síntese de
Gerhard von Rad. No entanto quero afirmar que estare
mos em terreno firme, se tomarmos, como ponto de par
tida, Moisés como profeta, o qual desperta em Israel
uma consciência alternativa.
O ministério de Moisés, como George Mendenhall
e Norman Gottwald demonstraram recentemente, repre
senta uma ruptura radical com a realidade social do Egi
to do faraó6. A novidade e a inovação radicais de Moi-
phetism at Mari and Old Testament Parallels”, em Anglican Theological
Review 49 (1967), pp. 397-409; também Herbert Huffmon, “Prophecy
in the Mari Letters”, Biblical Archaeologist 31 (1968), pp. 101-24 e fi
nalmente seu mais recente sumário “Prophecy in the Ancient Near East”,
em Interpreter’s Dictionary of the Bible, Supplement, Nashville, Abingdon
Press, 1976, pp. 697-700.
4 Ronaíd Clements, em Prophecy and Tradition, Atlanta, John Knox
Press, 1975.
5 Ronald Clements, em “Prophecy and Covenant”, Studies in Biblical
Theology 43, Naperville, 111., Alec R. Allenson, 1965.
6 George Mendenhall, em The Tenth Generation, Baltimore, John
Hopkins University Press, 1963, cap. 7-8; Norman Gottwald, “Domain
15
sés e de Israel neste período não podem ser exageradas.
Dentre nós, a maioria, provavelmente, está tão acostu
mada àquelas narrativas, que se torna insensível à reali
dade revolucionária e social que surge por causa de Moi
sés. Torna-se evidente que a emergência de Israel, pela
mão não pode surgir a partir de qualquer realidade an
terior. É claro que nada semelhante à hipótese quenita
ou ao monoteísmo da 18’ dinastia do Egito nos ajudará.
Enquanto encontramos algumas alusões de que o Deus
de Israel é conhecido como o Deus dos antepassados (cf.
Ex 15,2), no entanto estas alusões são obscuras. De qual
quer forma, a experiência dominante do Êxodo é decisiva
e não uma memória qualquer, da qual encontramos alu
sões na tradição. Contudo, todos aqueles antecedentes são
finalmente compreendidos, pois o aparecimento de uma
nova realidade social não tem precedentes. Por outras
palavras, no século 13 a.C., Israel é nada. E esta nova
realidade social orienta-nos para a categoria da revela
ção 7. Israel só pode ser compreendido em termos de um
novo chamamento de Deus e da afirmação de uma reali
dade social alternativa.
A profecia nasce exatamente naquele momento em
que emerge uma realidade política social tão radical e tão
inexplicável que sua causa só pode ser teológica. Uma
causa teológica sem uma realidade político-social interessa
somente aos estudiosos profissionais da religião e uma
realidade político-social sem motivação teológica não atrai
nossas atenções aqui. Mas passamos sobre uma e outra e
somos levados a falar e admirarmo-nos da vocação pro
fética í.
Assumptions and Societal Models in the Study of Pre-monarchic Israel”,
em Vetas Testamentum, Supplements 28 (1974) e seu livro The tribes
of Yahweh, A Sociology of the Religion of Liberated Israel, 1250-1000 B.C.,
Orbis Books, New York, 1979. Trad. bras. em preparação.
7 Ver a coleção de estudos de Radical Religion 2 (1975) que estão
juntos no livro de Gottwald e que estudam os laços entre as alegações
da sociedade e da revelação.
8 Este aspecto é enfatizado sobretudo por M. Douglas Meeks em
16
(1)0 rompimento radical de Moisés e de Israel
com a realidade faraônica é um rompimento que tem
dois aspectos: por um lado, rompe com o triunfalismo
estático da religião e por outro, com a política de opres
são e de exploração. Em primeiro lugar, Moisés destrói
o triunfalismo estático da religião, expondo e mostrando
que os deuses nem têm poder nem são deuses. Desta
forma, a legitimidade mítica do mundo social do faraó
fica destruída, pois fica demonstrado que um tal regime
faz apelo a sanções que, de fato, nem se quer existem.
As pretensões míticas do império terminam logo que se
manifesta a religião alternativa de um Deus de liber
dade 9. Em lugar dos deuses do Egito, criações da cons
ciência imperial, Moisés fala de Iahweh, o único sobe
rano que age com total liberdade, que está completa
mente fora de qualquer realidade social, que não está
preso a qualquer percepção social, mas age por si mes
mo e com seus próprios objetivos.
Ao mesmo tempo, Moisés desfaz uma política de
opressão e exploração, opondo-lhe uma política de jus
tiça e de compaixão. A realidade emergente do Êxodo,
agora, não é apenas uma nova religião ou uma nova idéia
religiosa ou um sonho de liberdade, mas a emergência
de uma nova comunidade social na história, uma comu
nidade que tem um corpo histórico, que teria de formu
lar leis, padrões de governo e de ordem, normas para
o certo e o errado e sanções de responsabilidade. Os
participantes no Êxodo encontram-se, para própria sur
presa, envolvidos na formação intencional de uma nova
“The ‘Crucified God’ and the Power of Liberation”, Seminar Papers
on Philosophy of Religion and Theology, American Academy of Religion
(1974), pp. 31-43.
9 O tema da liberdade de Deus é, fundamentalmente, todo o pro
grama de Barth. Zimmerli em Prophetic Proclamation and Reinterpretation
trouxe nova expressão àquele programa: “A proclamação profética destrói
e transforma a tradição com o fim de anunciar a aproximação do único
que vive” (p. 100). É trabalho dos teólogos da libertação articular as
implicações sociais desta confissão teológica.
17
2 - A imaginação profética
comunidade social para corresponder à visão da liberda
de de Deus. Esta nova realidade social que é completa-
mente diferente da realidade do Egito durou uns 250
anos em suas formas alternativas.
Não chegaremos a compreender o significado da ima
ginação profética a não ser que percebamos a ligação en
tre o triunfalismo de uma religião estática e uma política
de opressão e exploração. Karl Marx percebeu esta liga
ção muito bem, quando observou que a crítica à religião
— é a última e que antes devem-se criticar as leis, a eco
nomia e a própria política 10. Os deuses do Egito são os
senhores imutáveis da ordem. Eles exigem penas e legiti
mam a ordem de uma sociedade, que era, exatamente, a
do Egito. No Egito, como Frankfort já o mostrou, não
havia revoluções nem ofensas à liberdade. Havia, ape
nas, as acomodações necessárias à ordem política e eco
nômica e esta era, “naturalmente”, a ordem querida pelo
faraó. De modo que a religião dos deuses estáticos não
era nem podia ser desinteressada, pelo contrário, inevi
tavelmente servia aos interesses das pessoas encarrega
das de presidir a ordem e acostumadas a beneficiar-se da
mesma. E o bom funcionamento daquela sociedade era o
melhor testemunho da retidão da religião, justamente
porque os reis prosperavam e as construções continua
vam sendo levantadas.
E o que é maravilhoso na fé profética é que tanto
a religião como a política imperial puderam ser desfeitas.
Com relação à religião, os deuses foram declarados não-
-deuses. Na política, o opressivo trabalho das olarias foi
mostrado como ineficiente e desnecessário à comunidade
humana. O que Moisés introduziu não foi, exatamente,
um novo Deus livre e uma imagem social de libertação.
10 A afirmação de Marx, extraída de “Crítica à Filosofia do Direito
de Hegel” é a seguinte: “Assim, a crítica ao céu transforma-se em crítica
à terra, a crítica à religião em crítica à lei e finalmente a crítica à teologia
em crítica à política” (New York; W. W. "The Marx-Engels Reader,
in R. C. Tucker. Norton, 1972, p. Í3).
18
Mas seu trabalho levou, diretamente, a um engajamento
com a religião da liberdade de Deus e com uma política
de justiça humana. Referindo-nos a Marx, ainda podemos
aprender que, partindo destas tradições, jamais teremos
uma política de justiça e compaixão a não ser que tenha
mos uma religião da liberdade de Deus. Somos feitos,
realmente, à imagem de algum Deus. E talvez nenhuma
investigação teológica seja mais importante para nós do
que descobrirmos a imagem daquele a cuja semelhança
fomos feitos. Nossa sociologia deriva-se e provavelmente
é legitimada e reflete nossa teologia. E se nos reunimos
em volta de um deus estático, de um deus da ordem e
que protege apenas os interesses dos que “têm”, pode
mos ter certeza de que a opressão não estará longe.
Pelo contrário, se é revelado um Deus livre para ir e vir,
livre do regime e até a ele contrário, livre para ouvir
e responder aos clamores dos servos, livre de qualquer
divindade apropriada pelo império e definida pelo mes
mo, então, este Deus influirá decisivamente sobre a so
ciologia, porque a liberdade de Deus pairará sobre as ola
rias e manifestar-se-á como justiça e compaixão.
Tenho a impressão de que, demasiado facilmente
separamos aqueles dois pontos, mas não sem razão. A
tendência progressista tem sido preocupar-se com a po
lítica da justiça e da compaixão e desinteressar-se aber
tamente da liberdade de Deus. Na verdade, tem sido di
fícil para os progressistas pensar na importância da teo
logia, pois ela toda parecia irrelevante. E pensou-se que
o assunto de Deus podia ser deixado livre para outros,
que se preocupassem com tais questões. Como conse-
qüência, surge um radicalismo social sem fundamentação,
semelhante a uma flor sem nutrição, radicalismo sem
sanções mais profundas do que a coragem humana e as
boas intenções. Por outro lado, tem-se tornado uma ten
dência comum em outras áreas, preocupar-se intensamen
te com Deus, mas sem espírito crítico, de tal forma que,
19
I
só se percebe Deus como fonte de bem-estar e da boa
ordem e não se percebe que esta compreensão de Deus
seja, exatamente, também origem de opressão social. De
fato, pode acontecer que os conservadores, negadores da
profecia, não tenham captado a noção de Deus com bas
tante seriedade, para perceber que nossa concepção de
Deus leva consigo notáveis implicações sociológicas. E
entre os progressistas, que imaginam que o conceito de
Deus é irrelevante para a sociologia, e os conservadores,
que desapercebidamente usam a noção de Deus por ra
zões sociais, e ainda porque os dois não percebem como
ambos os conceitos se completam, não há escolha. Mas
há margem suficiente para se insistir no fato de que
Moisés, protótipo do profeta, fez avançar a alternativa
nas duas direções: uma religião da liberdade de Deus,
como alternativa para a religião do triunfalismo imperial
e da ordem estática, e ao mesmo tempo uma política de
justiça e de compaixão, como alternativa para a política
imperial de opressão. O ponto em que a imaginação pro
fética deve se fixar é que não há liberdade de Deus sem
política de justiça e compaixão e nem tampouco existe
uma política de justiça e compaixão sem uma religião da
liberdade de Deus.
O programa de Moisés não é libertar um bando de
escravos como numa fuga do império, apesar de isto ser
bastante importante, especialmente se você estivesse en
tre os do grupo. Pelo contrário, seu objetivo não é nada
menos do que um assalto à consciência do império, ten
do em mente desfazer tanto as práticas sociais como as
pretensões míticas do império. Israel se levanta, não pelo
braço de Moisés, ainda que não sem ele, como uma co
munidade genuinamente alternativa. A tradição profética
sabe que traz em si uma verdadeira alternativa para a
teologia da escravidão de Deus e ao mesmo tempo uma
sociologia da escravidão humana. Esta alternativa confia
da a nós, que recebemos o chamado, está enraizada não
20
na teoria social ou na justa indignação ou ainda no al
truísmo, mas na verdadeira alternativa, a saber, Iahweh
existe. Iahweh torna possível e exige uma teologia alter
nativa ao mesmo tempo que uma sociologia alternativa.
A profecia começa justamente quando se discerne que
ele é, verdadeiramente, a alternativa.
(2) A consciência alternativa que surge através de
Moisés caracteriza-se por um espírito crítico, e dinâmico.
Ampliarei o assunto mais detalhadamente depois, mas
aqui já cabem alguns comentários. A narrativa do Êxodo
tem o objetivo de mostrar a crítica e o desmoronar ra
dical do império egípcio. Ao iniciar-se (Ex 5,7-10), ve
mos os egípcios florescentes e em pleno poder.
Eles mandam e desmandam e a ninguém estão su
jeitos:
21
Do começo até o fim, a narrativa mostra demoradamen-
te como as pretensões dos deuses egípcios são anuladas
por este Senhor, que é livre. A narração mostra, com
um delicioso vagar, como a política de opressão é venci
da pela prática da justiça e da compaixão. Entre o come
ço e o fim está o momento do desmoronamento, que é
o ciclo das pragas, uma narração que não precisa ser re
petida diversas vezes, porque ela dá testemunho do que
não pode ser explicado por parte do império. Acontece
da seguinte forma, nas duas primeiras pragas, referentes
ao curso do rio Nilo e às rãs: o poder de Moisés e de
Aarão entra em conflito com a técnica dos egípcios. Com
as duas pragas entrando em cena, nada se modifica e o
poder do Egito ainda não é ameaçado. O império sabe
dizer: “tudo que vocês podem fazer, eu ainda faço me
lhor”. Então sobrevêm a terceira praga:
22
Mas a desaprovação ainda tem outra dimensão. Plas-
nota que a narrativa da libertação começa com
taras 11 12
uma queixa aflita de Israel, em Ex 2,23-25:
23
expressa resignação, mas expressa um sentido ativo de es
tar sendo injustiçado e com uma expectativa de ser ou
vido e de ter uma resposta. Desta forma, a história de
Israel começa no dia em que o povo não se dirige mais
aos deuses egípcios, que nem os ouvirão nem poderão
dar resposta. A vida de liberdade e de justiça chegará
no dia em que puserem em confronto a liberdade do
Deus livre com a do regime.
A tristeza de Israel é uma autocompaixão, uma quei
xa, mas jamais uma resignação. É, pelo contrário, o iní
cio de uma crítica. Torna-se claro para eles que as coisas
não estão como deveríam estar, que não estão como ti
nham sido prometidas, nem como devem ser e certamente
serão. Fazer do sofrimento comum uma expressão pública
é um primeiro passo importante da crítica destruidora,
a qual permite o emergir de uma nova realidade teoló
gica e social. Aquele clamor com que a história começa
será ouvido por Iahweh à medida que a história progride:
24
Pelo meio do ciclo das pragas, Israel já se desligou
do império e não lhe pede mais nada, nada espera do
mesmo, não o reconhece mais em nada, pois já sabe que
ele não guarda as promessas. Já tem certeza de que coisa
alguma lhe pertence, que dele nada pode ser esperado.
Aqui temos o ponto mais alto da crítica, a qual leva ao
desmoronamento do império faraônico.
Por isso, a crítica avança e constrói. O clamor angus
tiado ensina a afastar-se dos falsos ouvintes e a voltar-se
para aquele único que pode ajudar. A crítica profética,
como foi sugerido por Dorothee Soele 14, consiste na mo
bilização do povo para sentir sua angústia real e contínua
e em conservá-lo longe dos ouvidores de lamentos que
são ineptos para ouvir e indiferentes para responder. É
certo que a história consiste, primeiramente, de falar e
de ter respostas, de chamar e de ser ouvido. Se isto é
verdade, quer dizer que não poderá haver história no
império, porque os gritos jamais serão ouvidos e as res
postas jamais serão dadas. E se o papel do profeta é en
corajar o povo para se engajar na história, então a histó
ria. significa a recordação de clamores que esperam res
posta, ensinando-nos a dirigi-los a quem os leva a sério
e a não olhar para as forças inertes e adormecidas, que
jamais souberam responder.
Curiosamente, a crítica do clamor profético inten
sifica-se na medida em que a narrativa se desenvolve.
Numa passagem do capítulo 11, v. 6, e no 12, v. 30, já
é o império que clama:
14 Soelle, Suffering, p. 73, analisa a passagem dos que estão sem
forças para uma situação de força e acha que o caminho é pela expressão
pública do lamento, da queixa e do protesto. Ao descrever a fraqueza
que sobrevêm ao indivíduo quando lhe falta a palavra, Graham Greene
em The Honorary Cônsul. (New York, Simon and Schuster, 1973, p. 66)
faz as seguintes observações sobre aqueles aos quais falta a palavra:
“Muitos de seus pacientes de classe média estavam acostumados a gastar,
pelo menos, dez minutos para explicar um simples acesso de gripe. Era
sempre no bairro dos pobres que ele encontrava os que sofriam em si
lêncio, os que não tinham palavras para explicar o grau de seu sofrimento,
a própria situação ou estado”.
UMVERSIDASE CATOUCA 25
Haverá então na terra do Egito um grande clamor co
mo nunca houve antes, nem haverá jamais (Ex 11,6).
O faraó levantou-se de noite, com todos os seus servos
e todo o Egito, e houve um grande clamor no Egito,
pois não havia casa onde não houvesse um morto (Ex
12,30).
26
que tudo já tinha sido dado, tudo estava completo e em
sua posse. Se existe algum ponto para o qual somos fa
cilmente cooptados, é justamente este: não acreditarmos
que possa haver novidades, mas que basta movimentar
as peças para produzir novos padrões de vida.
É o profeta, precisamente, que fala contra esta in
terpretação dos dados e que pode orientar dinamicamen
te para um futuro que é genuinamente novo e não deri
vado de dimensões humanas anteriormente existentes.
Vou sugerir três dimensões energizadoras desta narrativa,
que são importantes para a compreensão da imaginação
profética.
Em primeiro lugar, a força provém da aceitação da
impenetrável escuridão 15. Esta escuridão que é aterradora
em seu poder, aparece aqui na dureza do coração. É o
assunto dominante deste texto estranho. A cada momen
to afirma-se, não que o coração do faraó é duro, mas
que Iahweh o endureceu. É o modo particular de Iahweh
terminar com o império. ,É a forma estranha de Iahweh
apresentar a possibilidade da liberdade histórica. Encon
tramos aqui mais do que pode ser entendido, mas o que
houver a mais, começa com a convicção de que Deus
opera por mais de uma via. Os que não têm esperança,
não percebem como a novidade pode vir, como o mal
pode ser superado, ou ainda não compreendem como de
um presente totalitário pode surgir um futuro novo e li
vre. Esta terrível colocação programática afirma que al
guma coisa “está em andamento” na escuridão, que o
mesmo senhor da escuridão não desvela. É estranho que
nem o Egito nem Israel compreendiam o avançar da
15 Hall, em Ligbten Our Darkness explora com eficiência o tema da
escuridão, como sendo a arena do sofrimento, da morte e da liberdade.
Assim conclui seu estudo: “Os seguidores da cruz, os que falam da es
curidão, não encontram luz em absoluto, um puro raio de luz, quer de
Deus quer dos homens. A situação torna-se para eles, como para todos
aqueles que no passado foram assumidos pela lógica da cruz, uma situação
de fé, simplesmente” (p. 225).
27
escuridão! Israel não parece mais confidente do Deus da
liberdade do que o Egito. E quando Israel quer conhecer
demasiado sobre aquela liberdade, logo procede como o
Egito. Contudo, a narrativa mostra que Israel tem con
fiança firme de que aquela escuridão não provém do
faraó. E isto encoraja porque a comunidade alternativa
ousa afirmar o que vai resultar. Ela percebe o que o
faraó não entende. Ela percebe, justamente porque se
submeteu e tal submissão teve início quando o clamor
foi levantado àquele que é o único, livre. Há uma nova
força, ao descobrir aquele que merece confiança, apesar
da escuridão, e no qual se percebe mais força do que
naquele que, de forma ostensiva, administra os dias.
Em segundo lugar, no capítulo 11, v. 7, encontra
mos a afirmação admirável de uma realidade que, certa
mente, ainda traz mais força: “Mas, entre todos os filhos
de Israel, desde os homens até os animais, não se ouvirá
ganir um cão, para que saibais que Iahweh fez uma dis
tinção entre o Egito e Israel”. Talvez nossas formas
acadêmicas não permitam perceber a força contida nesta
passagem. É terrível pertencer a uma “doutrina de elei
ção”, mas observemos que esta “eleição” ou predesti
nação ocorre aqui, não em uma doutrina, mas numa nar
rativa e numa lembrança não comprovada, a fim de que
a deixemos com toda sua audácia. Não se trata de uma
reflexão teológica, mas de uma notícia para aquele mo
mento e para aquela comunidade. O Deus que decidirá
não é o deus cômodo do império, tão próspero e bem
alimentado que se torna neutro e desatento. Pelo contrá
rio, é o Deus vivo para as realidades, o qual não hesita
em tomar uma direção, o qual está sentado no conselho
divino, firme em seu trono e atento a seus interesses
especiais. É a forma de igualar todos os deuses do impé
rio por não tomarem partido e por serem tolerantes a
ponto de rejeitarem as súplicas favoráveis à mudança das
coisas.
28
Devemos, agora, fazer uma pausa com o fim de ob
servar o tipo de reflexão teológica que esta primeira
narração profética traz consigo. Não há muito de uma
teologia sistemática. Profeta algum jamais vê as coisas
sob o aspecto de eternidade. É sempre uma teologia par
cial, sempre dependente do momento, sempre em favor
da comunidade concreta, satisfeito por ver apenas uma
parte daquilo tudo e sobretudo com o risco de contra
dizer o resto da realidade 16. Os impérios preferem teó
logos sistemáticos, que vêem tudo, que compreendem um
e outro lado da questão e que consideram as polêmicas
como indignas de Deus e divisoras do bem público. Que
colocação formidável! Assemelha-se a Andrew Young,
que toma o partido dos vencidos e dos marginalizados,
dos sem forças, que ainda não se tornou cínico com o
“discurso duplo” da fala imperial, o qual ousa falar an
tes das provas e afrontar o pensamento mais sutil. A afir
mação que passa pelo acampamento é que ele está fir
me em seus compromissos e que o faraó não vai gostar.
Vista à distância, esta colocação é teologia profunda.
É a boa nova: Deus está conosco. Num império, os deu
ses não estão com ninguém. São velhas divindades que
não se importam com nada, que num passado já experi
mentaram tudo e agora dispõem de comitês para estu
dar todas as questões. Para Moisés e para Israel, a força
vem, não de uma estratégia sociológica ou de intuiçÕes
sobre a dinâmica social, mas da liberdade de Deus. Por
isso, o pedido que faço aos que serão profetas é que não
negligenciemos, de nossa parte, a procura do conheci
mento de Deus e que saibamos que nosso discernimento
16 Caracteristicamente, os profetas tomam partido por uma teologia
que vem “de baixo” enquanto a consciência régia defende sempre uma
outra que vem “de cima”. Consultar R. M. Brown, “The View from
Below”, A. D. 6 (setembro de 1977) 28-31. Com relação a este assunto,
a Conferência de Detroit sobre “Teologia nas Américas” expressou uma
“Hermeneutic of Suspicion”, uma atitude ligada com a teologia que vem
“de baixo”.
29
de Deus está entre os pontos de ruptura na comunidade
humana.
Em terceiro lugar, o cântico de Moisés é o mais elo
qüente, o mais libertador e livre de todos os cânticos de
Israel. A última realidade energizadora é uma doxologia,
na qual os cânticos se fixam naquele que unicamente é
livre e no ato de que o cântico é próprio para expressar
a liberdade de Deus que é também a liberdade deles. Em
sua recente tipologia, David Noel Freedman coloca este
cântico no começo do período do javismo militante de
Moisés 17. Através de um estudo dos nomes divinos, ele
observa o uso repetido do nome, do mesmo nome da
liberdade que o Egito não pôde tolerar e que também os
servos desta liberdade não puderam antecipar. A pro
núncia do nome já indica um lugar onde a comunidade
alternativa pode viver. De modo que os profetas podiam
refletir sobre o nome de Deus, em que ele consiste, o
que ele significa, onde e por quem ele deve ser pronun
ciado. Há alguma coisa de direto e primitivo sobre o
nome nestes primeiros cânticos de fé e de liberdade. O
Egito acostumou-se a cercar o nome com adjetivos e vá
rias formas de qualificativos, mas a comunidade de jus
tiça que pratica a liberdade de Deus, não pode esperar
por isto tudo.
A profecia não pode ficar muito separada da doxo
logia, porque, ou ela perde o sentido ou torna-se ideolo
gia. Abraham Heschel viu magnificamente como a doxo
logia é o último ato humano pleno de liberdade e jus
tiça 18. A comunidade profética poderia refletir sobre
quais são as pré-condições da doxologia e sobre o que
17 David Noel Freedman, “Pottery, Poetry and Prophecy: An Essay
ou Biblical Poetry”, Journal of Biblical Literature 96 (1977): 5-26; “Divine
Numes and Titles in Early Hebrew Poetry”, in Cross, Werner E. Lemke,
r Putrick I). Miller Jr., Magnalia Dei: The Mighty Acts of God, Garden
C.lly, N. Y., Doubleday, 1976, pp. 55-107.
Abraham Ileschel, Who Is Man? Stanford, Stanford University
( 1965), cap. 6 e passim.
30
acontece, enquanto que as doxologias que ela dirige ao
Único são substituídas pelos jingles da televisão, os quais
nos levam a cantar a ideologia do consumismo para nós
mesmos e para os outros. Num mundo assim, não pode
haver profeta e menos ainda liberdade. Num mundo em
que os jingles substituem a doxologia, Deus não é livre
e o povo não tem noção nem de justiça e menos ainda
de compaixão.
A força da doxologia de Moisés inclui:
a) Um novo nome que redefine toda a percepção
social;
b) A revisão de uma incrível inversão da história,
na qual a realidade imperial é simplesmente
anulada. (É claro que esta não será a história
ensinada na escola da corte).
c) Um pedido de aprovação de liberdade para a
dança, liberdade para os corpos livres, que não
podiam mais ser dominados pelo faraó (15,20).
(Podemos refletir aqui sobre a perda de liber
dade de nossos corpos e sobre as dimensões ideo
lógicas da fúria dominante contra a sexualidade
humana).
d) Finalmente, coroando tudo, a afirmação máxi
ma de uma realidade que o Egito não pôde per
mitir nem tolerar: “Iahweh reinará sempre e
para sempre” (Ex 15,18). (Devemos lembrar
que estes cânticos são sempre polêmicos e o con-
tratema não escrito, mas pronunciado em voz
baixa, será sempre: “não ao faraó”).
31
linguagem da administração, da produção, das datas e
do mercado. Mas esta linguagem jamais permitirá ou
levará à liberdade, porque nela não há novidade. A do
xologia é o último desafio à linguagem da realidade
administrada e ela, unicamente, constitui o discurso no
qual é possível e existe a força da fé 19.
Cumpre agora perguntarmos como a linguagem da
doxologia pode ser praticada no império. E afirmamos
que somente onde houver doxologia haverá o emergir da
compaixão, justamente porque a doxologia é um golpe
de morte à ideologia que seria apresentada. Somente on
de houver doxologia haverá justiça, porque este cântico
transforma o medo em força.
Não vou explorar as segunda e terceira memórias
da permanência de Moisés no Sinai, ainda que isto me
recesse ser feito: o tema do deserto questiona sobre a
saciedade que imobiliza; o tema do Sinai, fala sobre a
liberdade de Deus diante do vizinho. Tomada em con
junto, a tradição mosaica afirma três coisas:
1. A vida alternativa é vivida nesta mesma comu
nidade particular, histórica e que faz história.
2. Esta comunidade levanta a crítica e ao mesmo
tetnpo dinamiza-se através de suas recordações, apresen
tando também descontinuidades e verdadeiras rupturas
com a realidade imperial.
3. Esta comunidade unida em torno de suas pró
prias recordações, sabe que está marcada por um Deus
e à disposição do mesmo, o qual não é cooptado nem
dominado pelo império.
32
2
A CONSCIÊNCIA DO REI
OPONDO-SE
À CONTRACULTURA
33
3 - A imaginação profética
pudesse surgir uma nova realidade. A imaginação profé
tica, no que pode derivar-se de Moisés, preocupa-se com
assuntos políticos e sociais, como também com assuntos
lingiiísticos e epistemológicos — e tudo isto talvez signi
fique apenas empenhar-se em distinções verbais. Mas
acentuo este ponto por duas razões: primeiramente, por
que o objetivo profético é uma mudança muito mais ra
dical tio que social e, em segundo lugar, porque as ques
tões sociais referentes à tradição mosaica são muito mais
profundas do que aquelas às quais geralmente nos refe
rimos como ação social.
A consciência alternativa de Moisés era altamente
radical em suas implicações, tanto no relativo à religião
como à ordem social e política. Em primeiro lugar, de
lem ler a noção da liberdade de Deus é fazer mais do
que qualquer outro movimento religioso tenha podido
lazer. Como observa Karl Barth, a questão entre revela
ção e razão, não se refere a outras ou a falsas religiões
mas, propriamente, “à religião da revelação cristã”. Em
segundo lugar, a noção de justiça e de compaixão huma
nas, raramente é um fator levado em conta na ordenação
de uma comunidade. Na realidade, muitas comunidades
encontram formas de considerá-la como o último pro
blema c jamais o primeiro dentro da realidade humana.
Pode ser que as possibilidades emergentes do ministério
de Moisés sejam demasiado radicais para qualquer comu
nidade histórica, quer em termos de pressuposições teo
lógicas quer em termos de complementação social.
Por analogia, torna-se claro que a militância e a radi
cal idade da comunidade cristã primitiva muito cedo ficou
comprometida. Como John Gager 1 demonstrou, se, em
alguma medida, ela não se tivesse orientado para abraçar
a cultura, provavelmente teria desaparecido como uma
seita extravagante. Talvez se possa concluir que a visão
1 John Gager, Kingdom and Community, Englewood Qiffs, N. J.,
Prcntice-Hall, 1975.
34
que emerge de Moisés seja viável somente numa comu
nidade imaginada, cuja paixão pela fé estivesse aberta
mente ligada à sobrevivência frente a uma cultura do
minante e hostil. Quer dizer, uma visão tão radical co
mo essa seria mais apropriada a um espírito sectário mar
ginal na comunidade. Situações de risco, como esta, na
realidade, provocam radicalismos. E por outro lado, si
tuações de aceitação cultural, geram complacências aco
modadas.
Desta forma, em nossa utilização da intuição socio
lógica referente às dimensões sociais do conhecimento,
da linguagem e do poder, não devemos deixar de lado
nossa própria sociologia e as formas pelas quais ela orien
ta tanto nossa fé como nossa erudição2. Talvez a comuni
dade minoritária de servos e de parteiras podia afirmar a
liberdade de Deus, exatamente porque não havia outra
forma legal de manter-se contra a religião estática e triun
fal, uma vez que qualquer outro deus não livre já tinha
sido cooptado. Talvez a comunidade minoritária de servos
possa afirmar a política de justiça e compaixão, pelo fato
de não haver outra visão social à qual se apegar para
protestar contra a opressão da situação. Como argumen
tou George Mendenhall, o objetivo social de um Deus,
realmente transcendente é ter uma corte de apelação con
tra as mais elevadas cortes e ordens da sociedade domi
nante 3. Assim, um Deus verdadeiramente livre é essen-
2 R. W. Friedericks, em A Sociology of Sociology (New York, Free
Press, 1970), descreveu com perspicácia os interesses dos sociólogos e a
influência de seus interesses na erudição. A relação merece nota para o
assunto que estamos tentando desenvolver. Por isso o modelo sistema e
conflito usado por Friedericks na sociologia apresenta uma correlação com
as tradições reais e mosaica de Israel.
3 Esta idéia, de certa forma peculiar, foi discutida numa conferência
em Saint Louis em 1976, mas o raciocínio de Mendenhall se orienta
neste mesmo sentido, a saber, que a argumentação teológica não pode se
separar do grau de compreensão da tribo ou da cidade. Cf. Mendenhall,
em “Sociology Organization in Early Israel”, em Frank M. Cross, Werner
Lemke, and Patrick D. Miller Jr., Magnalia Dei: The Mighty Acts of God,
Garden City, N. Y., Doubleday, 1976, pp. 132-151.
35
ciai a um povo marginalizado, se eles querem possuir um
fundamento legítimo contra as ordens opressoras do mo
mento. Mas segue-se daí que, para aqueles que estão no
poder e se beneficiam da situação do momento, um Deus
realmente livre não é necessário, nem desejável, e, tal
vez, nem mesmo possível.
Tendo em vista a posição de muitas igrejas na Amé
rica, estes assuntos podem nos trazer matéria para uma
reflexão séria. Parece-nos provável que o radicalismo do
fenômeno mosaico não pode ser separado da colocação
social dos hapiru. Daí segue-se que a liberdade de Deus
e a política de justiça não estão, entre nós, tão facilmente
juntas, em razão de nossa situação social e de nossos cor
respondentes interesses religiosos. Sabemos bastante bem
reconhecer que nossa melhor religião jamais é desinteres
sada. Apenas quero levantar um ponto difícil, isto é, que
a religião mosaica, profética, não é também desinteres
sada. E, de fato, a tradição do ministério dificilmente
pode ser entendida e praticada sem ligação com os inte
resses a que o mesmo está servindo.
Tudo isto é uma forma de introduzir um sério pro
blema na fé e na história de Israel. A revolução, tanto
religiosa como política de Moisés, foi capaz de manter-se
como uma realidade social e viável até o ano 1000 a.C.
Não é um fato, de forma alguma desprezível, quando re
fletimos nas dificuldades de manter os objetivos de re
centes revoluções em nossa própria história, por exem
plo, na americana, na francesa, na russa e na chinesa.
No tempo de Salomão, em 962 (40 anos depois do rei
nado de Davi, ao mesmo tempo, inteligente e ambíguo)
houve uma mudança radical nos fundamentos da vida e
da fé de Israel. Quanto à mudança, não há dúvida de
que começou e tenha sido encorajada por Davi, contudo
a evidência deste fato é mais clara e menos ambígua com
Salomão4. Todo o programa de Salomão aparece como
4 Consultar George Mendenhall, “The Monarchy”, Interpretation 29
36
tendo sido um empreendimento de autodefesa com o úni
co objetivo de defender o rei e a dinastia. Consiste na
quilo que Alberto Soggin chama de um pragrama de sin-
creíismo garantido pelo estado e isto, naturalmente, sig
nifica o abandono do radicalismo da visão de Moisés. In
clui:
1) Um harém, o qual, além de servir como facili
dade para os casamentos políticos, reflete, igualmente,
uma preocupação com a continuidade da fertilidade pes
soal. (A finalidade de um harém, em termos de seguran
ça pessoal, pode ser compreendida pelo contraste com a
sorte das parteiras do período mosaico) (Ex 1,15-22).
2) Um sistema de tributação por distritos, no qual
o deslocamento de clãs e de tribos tornava o controle
estatal mais eficiente. (E com efeito, a erradicação deli
berada da percepção tribal era essencial para o estatismo
de Salomão).
3) Uma burocracia aperfeiçoada, a qual imitando
impérios maiores tinha o fim de institucionalizar a técni
ca. (E, naturalmente, a técnica é, por si, conservadora
e quase imune a questões de justiça e compaixão).
4) Um exército estável, cujo poderio militar não
dependesse mais da opinião pública e nem dos interesses
autenticamente nacionais.
5) Um deslumbramento com a sabedoria, o qual,
além de ser uma imitação dos grandes regimes, represen
tava um esforço de racionalização da realidade, isto é,
submetê-la a quadros mais facilmente manipuláveis.
Tudo isto acontecia durante o período de Salomão,
sob a eficiente proteção do templo de Jerusalém, por
certo, o último grau da influência de Canaã em Israel5.
(1975), pp. 155-70; também Frank M. Cross, Canaanite Myth and Hebrew
Epic, Cambridge, Harvard University Press, 1973, pp. 237-41. Ele refere-se
à corte de Davi com a palavra “rústica”, usada geralmente com referência
a Saul.
5 A evidência do fato é resumida por G. Emest Wrigth, Biblical
Archeology, Philadelphia, Westminster Press, 1957, cap. 3.
37
George Mendenhall6 caracterizou muito bem as reali
zações de Salomão como uma “paganização” de Israel,
quer dizer, uma volta aos projetos políticos e religiosos
da situação imperial anterior a Moisés. Em outras pala
vras, é a afirmação de que o esforço de Salomão não era
somente o abandono da revolução profética, mas um re
torno consciente à realidade pré-profética. (Vale a pena
fixar bem a orientação de nosso pensamento. Os mes
mos progressos que são descritos por Mendenhall como
“paganização”, são aqueles que, num certo contexto, Ger-
hard von Rad7 e outros, entre os quais incluo-me a
mim mesmo, designamos como “iluminismo”. Julgamos
que vale a pena lembrar isto, com o fim de demonstrar
que é possível interpretar os mesmos dados de forma
diferente. Com efeito, minha própria interpretação, na
perspectiva da tradição profética, é muito diferente da
quela que faço em outras circunstâncias, quero dizer, com
uma perspectiva completamente diferente)8.
A mudança operada por Salomão nos projetos não
pode ser supervalorizada. A Davi, que era um gênio,
acontece algo semelhante, com a diferença de que Davi
procura consegui-lo por ambas as formas. Stefan Heyn
observa que em Davi há uma grandeza que Salomão pô
de apenas imitar e mesmo assim muito pobremente9.
De qualquer forma, fica bem claro que Salomão tinha
6 Mendenhall, “The Monarchy”, p. 160.
7 Gerhard von Rad, Old Testament Theology, New York, Harper
and Brothers, 1962, 1: 48-56. O fato é levantado como hipótese por von
Rad, inteligentemente discutido por outros estudiosos, e pode ser defendi
do tanto negativa, como afirmativamente. Cf. James Crenshaw, Studies in
Ancient Israelite Wisdom, New York, KTAV, 1976, pp. 16-20, onde
discute longamente a hipótese da influência que qualificamos de Ilumi-
nista, tanto do ponto de vista positivo como negativo.
8 Ver Walter Brueggemann, em The Man We Trust, Richmond,
John Knox Press, 1972. Acredito que esta interpretação seja essencial
mente correta, mas que a ênfase esteja na interpretação positiva, devo
dizer que isto se deve à ambientação ou, melhor, ao momento em que o
livro foi escrito, a saber, o clima teológico dos anos 60.
9 Ver a delicadeza da distinção feita por Stefan Heyn em The King
David Report, New York, G. P. Putnam, 1973, p. 237.
38
uma visão social contrária à visão de Moisés. A possi
bilidade de uma consciência ou de uma comunidade al
ternativa estava completamente fora de consideração em
Israel, no tempo de Salomão. Principalmente o rei não
tinha esta noção. É provável que aquele espírito crítico
nem sequer podia ser praticado, uma vez que o agente
causador do mesmo desaparecera. E podemos dizer até
que aquelas promessas capazes de dar novas energias são
agora uma posse do rei. Salomão foi capaz de criar uma
tal situação, na qual tudo fora alcançado, na qual não
era mais necessário desejar coisas futuras, uma vez que
tudo já estava presente e centuplicadamente. A tensão
entre um presente criticado e um futuro energizador está
superada. Há apenas um presente não criticado nem
energizador. É claro que a visão mosaica da realidade es
tá quase desaparecida.
Neste contexto, quero explorar três dimensões das
realizações de Salomão, porque são importantes para nos
sa tese geral. Estas dimensões resumem a cultura domi
nante, à qual os profetas geralmente se opõem.
(1) Os empreendimentos de Salomão resultaram
numa incrível riqueza de bem-estar:
A população de Judá e de Israel era grande, tão nume
rosa como a areia que está na beira do mar; comiam,
bebiam e viviam felizes (lRs 4,20).
Salomão estendeu seu domínio sobre todos os reinos
desde o Eufrates até a terra dos filisteus e até a fron
teira do Egito. Pagavam-lhe tributo e serviram a Salo
mão por toda sua vida (lRs 5,1)..
“Salomão recebia diariamente para seu gasto trinta co
ros de flor de farinha e sessenta de farinha comum, dez
bois cevados, vinte bois de pasto, cem carneiros, além de
veados, gazelas, antílopes, cucos cevados” (lRs 5,2-3).
É claro que Israel, agora é uma nova realidade. Ja
mais houvera bens de consumo suficientes para afastar
39
a ansiedade causada pela sobrevivência. A contracultura
de Moisés surgiu num mundo de escassez, quer nos refi
ramos ao pão ázimo comido às pressas (Ex 12,8-11),
quer ao estranho presente do céu, no deserto (Ex 16).
E tudo isso opõe-se àquela consciência de fartura que os
reis sempre tiveram. É difícil conservar a chama de uma
revolução de liberdade e de justiça, quando há abundân
cia. É o que acontece com Israel, no tempo de Salomão.
O alto padrão de vida afirmado no texto citado é plena
mente confirmado pela arqueologia do período. Os arte
fatos, as muralhas e os restos das construções são teste
munha de uma situação social bem ordenada e segura.
JÉ contudo muito razoável conjecturar se tal afluên
cia e prosperidade, da qual se tem testemunho, era par
ticipada democraticamente. O cardápio citado em lRs 4,
representaria apenas os hábitos e oportunidades do sé
quito real, o qual, provavelmente, seria indiferente às
condições dos demais cidadãos. E, naquele tempo, como
ainda hoje, se alguns comem tão bem, significa que deve
estar faltando comida na mesa de outros. Esta informação
de lRs 4, sugere que a fartura se tornara um objetivo
acessível à sociedade da corte. Aquela aliança tão séria
entre irmãos e irmãs tinha sido substituída pelo consu
mismo, no qual os próprios irmãos e irmãs são vistos
como objetos de consumo. E esta é a razão por que numa
sociedade de consumo torna-se difícil conservar uma cons
ciência alternativa.
(2) As realizações de Salomão tornaram-se possí
veis, em parte, pela política de opressão social. Nesta va
mos encontrar, com certeza, as bases do regime e ao mes
mo tempo, a origem da riqueza. Com certeza, a distribui
ção da mesma riqueza seria hierárquica e não democrá
tica. É óbvio que alguns viveríam bem à custa do tra
balho dos outros, pois não devemos esquecer que havia
os que “construíam casas mas não viviam nelas, que plan
tavam as vinhas, mas não bebiam o vinho dali proceden
40
te”. O trabalho forçado era a prática comum naquela
política social, na qual, pelo menos até certo ponto, exis
tiam cidadãos que se beneficiavam de uma economia es
tatal ou corporativa. Frente a esta situação, não é impor
tante, nem mesmo ajuda em coisa alguma, querer saber
com precisão se a política de trabalho forçado atingia a
todos os cidadãos, como é sugerido em lRs 5,13-18, ou,
se o povo de Israel estava isento do recrutamento geral
do império, como parece provável em lRs 9,22. De qual
quer forma, parece claro que a política consistia em mo
bilizar e exigir o trabalho do povo em razão da corte e
de suas extravagantes necessidades.
Sirva de experiência nosso passado ainda recente,
para vermos como um apetite explorador é capaz de de
sencadear um movimento tão insaciável que pouco im
porta a quantidade de bens ou de força ou, ainda, de
segurança a que se tenha chegado. Nada é bastante. A
sublevação de que se fala em 1 Rs 11,28 e a controvérsia
em lRs 12, ao que parece, referente à forma de governo,
ao papel do povo e dos líderes, ambas as passagens mos
tram a luta com uma nova autoconsciência. Nesta mes
ma nova consciência, na qual o regime estava fundado
e pela qual fora também criado, é claro que a política de
justiça e de compaixão desaparecera completamente. A
ordem do estado era o trabalho, e questões de justiça e
liberdade, que tinham constituído o grande interesse de
Moisés, estavam agora necessária e sistematicamente su
bordinadas a outros interesses. Justiça e liberdade foram
simples promessas, e este novo regime não tolera pro
messas porque está em questão um presente que ordena
a opressão e com isso ameaça as mesmas bases da auto-
suficiência.
(3) São características das realizações de Salomão
uma economia rica e uma política de opressão. Mas, por
si mesmas, não teriam prosperado nem permanecido, a
não ser que tivessem recebido uma aprovação teológica.
41
E aqui, minha sugestão é que o terceiro elemento básico
foi o estabelecimento de uma religião controlada, estática,
na qual Deus e seu templo tornaram-se parte da paisa
gem da corte, na qual a supremacia de Deus estava ple
namente subordinada aos projetos do rei. Por este tem
po, há em Jerusalém uma revisão radical da figura de
Deus. Agora, Deus é plenamente acessível ao rei e este
é o patrão do mesmo Deus, de forma que a liberdade de
Deus desapareceu. É quase impossível agora que o Deus
domiciliado (sic) em Jerusalém seja capaz de pronunciar
qualquer palavra independente ou desgastante da posi
ção do rei. E aqui precisamos fazer duas observações.
Em primeiro lugar, concordo com os estudiosos do as
sunto, que acentuam a tensão criada entre as tradições
de Moisés e as da corte. Não acredito que estas tenham
se originado daquelas, pelo contrário, acredito que têm
origem diferente e que levam a visões da realidade tam
bém diferentes. Em segundo lugar, as razões dos desas
tres religiosos nos empreendimentos de Salomão acredito
que tenham sido sociológicas e não históricas. Com ou
tras palavras, Salomão mantinha aquele santuário, não
porque o tivesse herdado dos cananeus ou jebuseus, mas
porque o adotara e o desenvolvera como algo que se
prestava à sua ideologia social. Se o santuário não tivesse
sido herdado dos antigos cananeus, como pode ter acon
tecido, certamente ele o teria importado tão facilmente
como o fez no referente a tantas outras coisas de que
necessitava para satisfazer seus propósitos.
Na fé bíblica responsável, a liberdade de Deus está
sempre em considerável tensão com a acessibilidade do
mesmo Deus10. Esta tensão era forte em Moisés, porque
ele tendia a acentuar a liberdade de Deus à custa da aces
sibilidade divina. Salomão, porém, dissolveu completa
mente aquela tensão por interesse da acessibilidade. De-
10 Consultar Walter Brueggetnann, em “Presence of God, Cultic”,
Interpreter’s Bible Dictionary, Supplement, pp. 630-33.
42
pois disto, desaparece a noção de que Deus é livre e que
ele pode agir de forma diferente e mesmo contra o re
gime. Depois disto, Deus é total e inquestionavelmente
acessível ao rei e àqueles aos quais o rei garante a pro
teção. O rompimento daquela tensão é afirmado num
antigo poema cuja citação merece confiança:
44
qual resulta a vontade do rei completamente livre nos
seus mesquinhos interesses.
Salomão foi capaz de contrariar totalmente a contra
cultura de Moisés.
a) À economia de igualdade ele opôs a economia de
afluência. O contraste é claro e marcante. A experiência
mosaica tinha esta visão: “. . .nem aquele que tinha jun
tado mais tinha maior quantidade, nem aquele que tinha
colhido menos encontrou menos: cada um tinha apanha
do o quanto podia comer” (Ex 16,18). No tempo de
Salomão é diferente. Já não existe a idéia de excesso ou
de acúmulo de bens de consumo, pois tudo isto desapa
rece no momento em que alguém se senta à mesa real de
Jerusalém.
b) À política de justiça ele opôs uma política de
opressão. A visão da experiência mosaica era a seguinte:
45
33,16). Iahweh responde em sua liberdade descompro
metida: “Farei graça a que eu quiser agraciar, e terei
misericórdia de quem eu quiser. . . Não poderás ver a
minha face, porque o homem não pode ver-me e con
tinuar vivendo” (Ex 33,19-20).
Salomão manejou aquilo que se podia julgar impos
sível, pois apropriou-se do “novum” mosaico tornando-o
vazio e sem sentido. No séc. X, Jerusalém se apresenta
como se toda aquela revolução e experiência social passa
da não tivesse acontecido. A longa sequência da história
imperial continuava como se não tivesse sido interrompi
da pela revelação do Deus libertador. Salomão estabe
leceu uma continuidade com a mesma realeza egípcia, à
qual Moisés tinha procurado se opor.
Não é necessário dizer que o regime de Salomão
foi capaz de silenciar o espírito crítico. Há duas formas
de impor este silêncio. A primeira é pela proibição au
toritária apoiada por fortes sanções. O caso de Jeroboão,
narrado em lRs 11,40 sugere a forma de tratar o espí
rito crítico, sempre com o derramamento de sangue com
o qual começou o prolongado reinado. E é curioso que
se levantou uma forte crítica por parte do profeta
Aías, como vem narrado em lRs 11, e no entanto Salo
mão não dá atenção. Simplesmente o profeta é ignorado.
É esta a segunda forma de tratar o espírito crítico, isto é,
desenvolver uma imunidade natural tornando-se impene
trável ao mesmo. O escritor sagrado parece apresentar
uma resposta fria, resistente, de um silêncio deliberada-
mente irônico. O mesmo tipo de resposta está evidente
depois da séria advertência relatada em lRs 9,1-9. A nar
ração responde imediatamente: “Ao cabo de vinte anos,
durante os quais Salomão construiu os dois edifícios. . .
o Rei Salomão deu a Hiram na região da Galiléia, vinte
cidades”. A consciência do rei estava completamente imo
bilizada. A crítica não tinha mais terreno para uma alter
nativa viável e por isso não precisava ser levada a sério
46
Se, naquele tempo, Salomão tivesse a televisão à sua dis
posição, teria conseguido comprar os mais ásperos críti
cos e montar com eles um show de celebridades bem-fa-
lantes.
Não temos evidência completa sobre perda de for
ças do regime. Pois a narração sugere um elevado nível
de energia em todas as formas de desenvolvimento do
Estado, principalmente, na economia e na arquitetura
Mas pode-se, pelo menos, desejar saber sobre a “felici
dade” da comunidade de Salomão (lRs 4,20; 10,8) que
reflete uma felicidade marcada pela fartura. Pode-se,
pelo menos, pensar que tal felicidade marcada pela fartu
ra não é igual àquela outra proveniente da liberdade.
Torna-se evidente que a recusa de qualquer palavra trans
cendente e o desrespeito para com o próximo levam, fa
talmente, ao desaparecimento de qualquer sentimento. E
ali onde o sentimento desapareceu, desaparecerá também
qualquer forma séria de energia humanizadora 11.
Na medida em que não se coloca em dúvida a
data do Eclesiastes, pode-se supor que a tradição estava
intuitivamente certa ao atribuir aqueles ensinamentos a
Salomão 12. Acredito que o cansaço, a fartura, o fastio, a
vaidade expressas naquela parte, referem-se ao tempo de
Salomão. Na medida em que o Eclesiastes reflete uma
11 Jürgen Moltmann, The Experiment Hope, Philadelphia, Fortress
Press, 1975, cap. 6 e, mais extensamente, em The Crucified God, New
York, Harper and Row, 1974, onde mostra mais claramente que o de
saparecimento do sofrimento não é apenas resultado de fatores psicológi
cos, mas de fatores que denotam opressão social.
12 Hans W. Hertzberg em Komentar zum A. T. 17, Gutersloh Gerd
Mohn, 1963, p. 230, entende que há uma ligação direta com o relato do
Gênesis: “Das Buch Qoh ist geschreiben mit Gen. 1-4 vor den Augen
seines Verfassers; die Lebensanschauung Qoh’s ist in der Schõpfungsge-
schichte gebildet”. Hertzberg convictamente levanta a hipótese de que o
relato seja um reflexo do Gênesis 1-4, incluindo o material J, provavelmen
te parte do relato salomônico. O contraste da relação, pelo menos indireta,
entre esta parte e a situação salomônica, é enfatizado pela análise de James
G. Williams em “What Does It Profit a Man?”, em James L. Grenshw,
Studies in Ancient Israelite Wisdom, New Yok: KTAV, 1976, pp. 375-89.
Williams, pessoalmente, não está interessado em defender a hipótese, mas
as circunstâncias por ele apresentadas, são sugestivas.
47
situação de alienação, fala também de uma situação se
melhante à de Salomão. Salomão decidiu opor-se ao mun
do do povo livre de Moisés e conseguiu-o muito bem.
Trocou uma visão da liberdade por outra de segurança.
Expulsou os povos vizinhos com o objetivo de transfor
mar os restantes em escravos. Substituiu convênios pelo
consumismo e todas as promessas ficaram reduzidas a
comunidades comerciais. E todo este comércio diminuiu,
provavelmente, a força verdadeira.
Parece um julgamento duro sobre uma realidade
cultural, a qual pode, por outro lado, fazer reivindica
ções positivas. Mas não estamos interessados num es
tudo da consciência do rei, em si mesma. Estamos con
siderando o significado da alternativa profética, uma al
ternativa para um mundo social sem crítica e sem ener
gia, Ao mesmo tempo devemos, pelo menos, dar aten
ção à contribuição teológica deste período, com o fim
de estarmos atentos para o que aí se encontra, de modo
que não exageremos a perspectiva profética.
Vamos procurar fixar duas grandes contribuições
teológicas deste período, ambas importantes para a fé
bíblica como para a tradição cristã. Primeiramente, há
pouca dúvida de que a fê na criação seja plena e formal
mente articulada pelo “establishment” de Jerusalém 13.
Vista pelo lado negativo, a fé na criação é propaganda
do rei, ousando alegar que o complexo rei-templo-cidade
do rei é garantia quer da ordem social quer da ordem
cósmica e que este centro da realeza protege as pessoas
e o povo dos perigos da anarquia. Vista pelo lado po
sitivo, a fé na criação fala a um povo que deixou de
preocupar-se com problemas de sobrevivência e que se
prepara para pensar mais livremente em outro tipo de
questões importantes, como proporção, simetria e coe
rência. Desta forma, é precisamente a fé na criação que
13 Cf. Bernhard Anderson, Creation versus Cbaos, New York: Asso-
ciation Press, 1967.
48
afasta a Bíblia de um discernimento paroquial das ques
tões humanas. Contudo, do ponto de vista dos profetas,
estamos de sobreaviso. Com efeito, a fé na criação ten
dia a dar prioridade a questões de ordem mais que às
de justiça. Inclinava-se a valorizar desordenadamente a
harmonia e procurava silenciar as desgastantes preocu
pações dos que nada tinham. Pretendia deixar de lado as
durezas históricas dos irmãos e das irmãs e fixar a aten
ção nas amplas questões sobre as quais o rei teria des
taque. A partir deste ponto, a alternativa profética sabe
que a fé na criação leva consigo certos custos e que estes
são pagos pelo povo marginalizado, que não aparece na
ordem que preserva os interesses do rei.
Naturalmente não imaginamos que a fé na criação
tenha aparecido no século X em Israel, pois há, certa
mente, evidências anteriores. Mas parece provável que
no século X, a fé na criação, pela primeira vez, recebeu
sua afirmação programática em Israel. E como a comu
nidade mosaica tinha tentado e conseguido operar uma
profunda descontinuidade com a consciência imperial,
agora a iniciativa teológica exigia uma volta àquelas
mesmas percepções e preocupações imperiais.
Em segundo lugar, este período obviamente já de
lineia a emergência do messianismo, que é a apresenta
ção do rei Davi não apenas como fato histórico impor
tante, mas também como agente necessário dos propósi
tos de Deus. Positivamente o rei Davi é visto como um
advogado dos marginalizados e por isso, potencialmente
é interpretado como um agente da visão mosaica-14. Ne
gativamente e mais realisticamente, à medida que aumen
ta o significado e o poder do rei e que os propósitos de
14 A relação entre estas duas linhas da tradição e estas duas formas de
perceber a realidade é assunto fundamental nos atuais estudos sobre o
Antigo Testamento. Enquanto a tradição defende a continuidade, a linha
da erudição refletida neste trabalho, não apenas faz distinção entre as
duas, mas vê entre as mesmas séria contradição. Esta colocação dá ênfase
à figura de Josias, no qual, ainda que por breve tempo, as duas tendências
estariam juntas.
49
4 - A imaginação profética
Deus assumem um papel duradouro, a visão primeira
transforma-se no bem-estar e na exaltação do rei em si
mesmo, desfazendo-se o papel de advogado dos margina
lizados. O sentido da realeza podia ter tomado uma ou
tra direção, mas na prática, o rei tornou-se, não um pro
tetor dos desprotegidos, mas um agente de exploração
pelo poder. Por isso a consciência profética torna-se sen
sível a qualquer agente histórico que assume uma dimen
são duradoura ou mesmo ontológica.
Tanto a fé em Jerusalém como o messianismo têm
o mérito de terem trazido contribuições positivas para a
vida e a fé de Israel. Ambas podiam ter feito progredir
a visão e as promessas de Moisés. A fé em Jerusalém
poderia ter fundamentado uma visão da ordem social e
cósmica. O messianismo podia ter-se tornado um defen
sor confiante e poderoso dos desprotegidos. Na reali
dade, ambos possuíam tendências reacionárias intrínsecas,
que funcionaram no sentido de exaltar o “status quo” e
de resistir às desgastantes questões da aliança. Desta for
ma o século X, época da monarquia de Israel, não só
econômica e politicamente, mas até teologicamente, to
mou uma direção contrária à revolução pela liberdade de
Deus e pela política de justiça e de liberdade.
É provável que eu tenha esquematizado em demasia
o assunto, mas acredito que esta esquematização está evi
dente no mesmo texto. A emergência da realeza poderia
ter tomado uma outra direção e a tradição apresenta uma
esperança cheia de fé na realeza, ainda que tardia, com
Josias. Mas não continuou assim, o que vem trazer um
problema maior para a fé bíblica. A realeza não teve
consideração pela visão de Moisés. O dom da liberdade
foi superado pelo desejo de ordem. O programa humano
de justiça foi utilizado com o fim de atingir a segurança.
O Deus de liberdade e de justiça foi cooptado para um
perene agora. E em lugar da paixão temos agora apenas
a saciedade.
50
Acredito que a possibilidade de fazer nascer a pai
xão é um programa profético em primeiro lugar, e que
é isto exatamente que a consciência do rei procura elimi
nar. Não precisamos rever a literatura referente à paixão,
mas basta nos referirmos a Soelle, Moltmann, Weisel e
especificamente Heschell15. A paixão, como energia e
prontidão para preocupar-se, sofrer, morrer e sentir, é o
inimigo da realidade imperial. A economia imperial é
orientada para conservar o povo satisfeito de tal forma
que de nada sinta falta. A política tem o objetivo de aba
far o clamor dos deserdados. A religião torna-se uma espé
cie de ópio, para que ninguém perceba a miséria presente
ao coração de Deus. O faraó, rei passivo de um universo
fechado, sem revolução, sern mudança, sem história, sem
promessa ou esperança, é o modelo de rei para um mun
do que jamais apresenta mudanças, através das gerações.
O mesmo universo parado, fechado é o que todo rei de
seja, mesmo Salomão em todo seu esplendor.
Este tipo de consciência do rei não requer muita
interpretação para ser percebida como uma caracteriza
ção de nossa própria situação cultural. Julgo não precisar
insistir demasiado sobre estes assuntos, pois um estudo
cuidadoso destes textos, sem dúvida, oferecerá indica
ções sobre nossa própria situação. Por isso, apresento
este modelo com o objetivo de que ele possa nos ajudar
a compreender nossa situação mais proveitosamente.
Quando há uma economia de afluência, nos senti?
mos tão bem que não vemos o sofrimento e até somos
capazes de fazer festas em torno do mesmo sofrimento.
Quando há uma política de opressão, o clamor dos
marginalizados não é ouvido e suas vozes são desprezadas
como se fosse vozeria de loucos ou de traidores.
Quando há uma religião de imanência e de acessi
bilidade, na qual Deus está tão presente a nós, seu calor,
15 Consultar Dorothee Soelle, em Suffering, Philadelphia, Fortress
Press, 1975; Moltmann, em The Experiment Hope; E. Weisel em várias
51
sua ausência ou seu afastamento não são percebidos e o
problema é reduzido à psicologia.
Provavelmente vocês estão como eu, tão emaranha
dos nesta realidade que outra forma de existir parece até
impensável. A história dominante daquele período, se
melhante à história dominante de nosso próprio tempo,
consiste em pastas, carros de luxo, em conferências para
a imprensa, em quotas de participação e novos sistemas
de armas. Não há lugar para dançar ou para que sejam
permitidos gemidos.
Raras vezes nos lembramos de que na Bíblia as in
formações são muito reduzidas e de que a visão de al
guns fanáticos afirma que o retrato apresentado da rea
leza histórica não tem valor porque não faz justiça nem
a Deus nem aos irmãos e irmãs.
No mundo imperial do faraó e de Salomão, a alter
nativa profética é um mau discurso e que será silenciado
pela força ou ignorado pelo conforto. Mas somos um
povo temeroso, porque julgamos que o mau discurso nas
ce do próprio caráter de Deus, um Deus que não é re
flexo nem do faraó nem de Salomão. É um Deus que tem
o seu próprio nome, que não pode ser pronunciado por
ninguém, a não ser por ele mesmo. Não reflete nin
guém, pois é ele mesmo uma pessoa e refere tudo a si
mesmo. É um Deus não credenciado no império, desco
nhecido, mas cortês, mal acolhido no templo. E sua his
tória começa com a atenção que dá ao clamor dos mar
ginalizados. Ele, diferente dos regentes reais, é aquele
cuja pessoa é apresentada como paixão e ternura, poder
de preocupar-se, capacidade de se enternecer, de sofrer e
de se alegrar. Os profetas posteriores a Moisés sabem
que estas qualidades não serão superadas pelos mecanis
mos ou pela imunidade real, porque ele é realmente
Deus. E os reis devem experimentar isto.
obras; e Abraham Heschel, The Prophets, New York, Harper and Row,
1962.
52
Assim, este é o modelo que eu sugiro para a ima
ginação profética 16. Uma consciência de rei comprometi
da com uma plenitude realizável. Uma consciência pro
fética alternativa devotada ao pathos e à paixão da alian
ça. A consciência do rei com seu programa de saciedade
realizável, redefiniu nossas noções de humanidade e fez
isso com todos nós. Criou uma consciência subjetiva preo
cupada somente com a auto-satisfação. Negou a legitimi
dade de uma tradição que exige que dela nos lembremos.
Negou a legitimidade de uma autoridade que espera de
nós uma resposta e da comunidade que nos chama a
preocupar-nos com a mesma. De tal forma entronizou o
presente que um futuro prometido mas longínquo, ainda
que certo, é impensável.
O programa do rei de plenitude realizável
a) é alimentado por uma mentalidade administrati
va, a qual julga que não há mistérios para honrar, há
apenas problemas para serem resolvidos. Isto em Salo
mão é evidente, pois não foi um tempo de grande lide
rança, de heróicas batalhas, de ousadas iniciativas. Foi
um tempo dominado pela mentalidade administrativa da
contabilidade de custo;
b) é legitimado por um “otimismo da religião ofi
cial” 17, que pensa, naturalmente, que Deus não tem ou
tra preocupação a não ser manter nossos padrões de vida,
com um lugar garantido em seu palácio;
c) requer anulação do vizinho como um doador
de vida em nossa história; imagina que podemos viver
à margem da história, como homens e mulheres auto-su
ficientes.
Seria estreiteza de espírito pensar que da novidade
de Moisés, somente a palavra profética é posta em ação
contra esta realidade constrangedora.
16 Já me utilizei deste esquema de uma forma bem concreta em
“A Biblical Perspective on Hunger”, Christian Century 94 (1977), pp.
1136-41.
17 A frase é de Douglas Hall, em Lighten Our Darkness, Philadelphia,
Westminster Press, 1976, cap. 3.
53
3
A CRÍTICA
DOS PROFETAS
E O ASSUMIR DO PATHOS
55
do que a habilidade de fazer rimas. Não estou preocupa
do com os aspectos formais da poesia, mas com as ques
tões substantivas dos aspectos alternativos que o prosaís-
mo dominante, à nossa volta, não inventa nem permite
inventar. Esta atividade exige que no centro de nossas
pessoas e de nossas comunidades não tenhamos assumi
do plenamente a apatia consumidora desposada pela cons
ciência do rei. Tudo isto requer que não tenhamos aban
donado completamente as promessas feitas por Deus a
nós, pois ele é suficientemente livre para as cumprir.
Não estou me referindo à impetuosa poesia dos pas
tores locais, a qual se torna um assalto à comunidade. O
que quero dizer é que as mesmas realidades existem em
cada família, em cada lar e em cada comunidade. Nossa
suficiência total não nos oferece nem espírito, nem ener
gia, nem coragem para pensarmos livremente sobre ou
tras alternativas de futuro. Quando falamos em “profé
tico”, não precisamos pensar grandemente sobre funções
públicas. A função profética deve ser executada em qual
quer lugar onde haja homens e mulheres que se entrega
ram ao prosaico futuro oferecido pelo rei. Por isso per
guntamos, se estamos dispostos a realizar aquele traba
lho de imaginação alternativa e construtiva; se queremos
conseguir mais do que a maior parte do grupo menos en
gajado e preparado apenas para ser “religioso”, pergun
tamos: por onde começamos?
Aqui está minha proposta:
A consciência do rei traz ao povo um torpor, espe
cialmente um torpor referente à realidade da morte. É fun
ção do ministério e da imaginação profética levar o povo
a ligar-se à experiência do sofrimento e da morte.
Ao tratar das realizações de Salomão, falei do des
tino da consciência do rei como de “torpor”, apesar de
não ter empregado a palavra. A instituição salomônica
trouxe consigo a perda da paixão, a qual perda é inabili
dade de preocupar-se, de sofrer. Basta comparar a tris
56
teza, a angústia e a alegria de Davi (2Sm l,19-27;3,33-
34;12,15-23;18,33;19,4;23,13-17) com a narração uni-
dimensional de Salomão para verificar que alguma coisa
decisiva aconteceu na passagem de pai para filho. Aqui,
falar em torpor significa indiferença, apatia, não-envol-
vimento, negação de entusiasmo, ausência de pathos, ao
passo que na reflexão que encontramos no Eclesiastes, a
mesma experiência é apresentada como vaidade.
57
É inadmissível para o rei imaginar ou experienciar o fim
de suas organizações históricas favoritas, uma vez que
estas se identificaram plenamente com sua pessoa. Na
realidade, elas são sua pessoa tanto quanto ele é uma
pessoa ou tem uma personalidade. E por isso suas organi
zações históricas são envolvidas pela qualidade da dura
bilidade ou até da eternidade. Os reis costumam atribuir
a noção de “eterno” a todo fato histórico a que presi
dem. Por isso, entre nós, não pensamos que nossas ins
tituições públicas possam entrar em colapso e somos le
vados à decepção e nos decepcionamos com nossas aliena.-
ções. E somos induzidos a pôr em prática a mentalidade
do rei, em nossos casamentos, em nossas resoluções mais
sérias, em nossos corpos, em nossa idade e saúde, em
nossas forças e compromissos.
Não há lugar, na esfera pública, para olhar o fra
casso de frente. Ultimamente somos incapazes de enfren
tar a idéia de nossa própria morte. Todas estas negações
a respeito do fim das coisas são normais na comunidade
do rei, porque custa muito enfrentá-las e abraçá-las. A
conclusão, lógica seria que, nós não somos os donos das
coisas, que as coisas não ficarão eternamente como estão
agora, e, finalmente, que as coisas todas não terão a efi
ciência esperada. Mas é função dos reis deixar em tudo
que realizam a palavra “eterno”. E o grande problema
é que se espera dos funcionários religiosos o uso da
mesma palavra, aplicada às coisas, para que se tornem le
gitimadas teologicamente. Mas “eterno” é sempre a pa
lavra do faraó e é contra esta mesma palavra que Iahweh
e Moisés puseram em marcha seu processo de libertação.
Certa vez, na estação de rádio de Saint Louis, uma
senhora encarregada da limpeza, entrou pelo estúdio, du
rante um programa, oferecendo conselhos sobre proble
mas matrimoniais. De uma forma improvisada, ela sim
plesmente forneceu conselhos, segundo sua maneira de
trabalhar. E aconteceu que seus conselhos se tornaram
58
bons e mais inteligentes do que aqueles que eram ofere
cidos oficialmente e, como resultado, ela foi convidada
a fazer parte do corpo regular de programação. A senho-
rita Blue tornou-se um destaque e as palavras com que
ela sempre começava e terminava eram: “Tudo está bem”.
Às vezes, dependendo do humor do anunciante, ela era
convidada a repeti-las diversas vezes, talvez, apenas para
causar riso, provavelmente um pouco de ridículo, sim,
mesmo um pouco de ridículo pessoal, mas também para
praticar a religião da decepção. Partindo da comunidade
do bairro de onde ela fala, podia ser que aquele “tudo
está bem” soasse como uma afirmação confiante, que
torna uma pessoa capaz de lutar. Mas quando a mesma
frase é pronunciada pelos meios de comunicação, torna-se
a afirmação de um “status quo” que serve mais para ne
gar e para entorpecer. É como se um rei dissesse “para
sempre” com o fim de conservar a atenção dos súditos
voltada para as coisas que ele julga importantes.
As palavras da senhorita Blue, agora cooptada, não
são diferentes da escarnecedora palavra de Jeremias, re
ferindo-se ao templo, atônito e decepcionado: “Este é
o templo de Iahweh, Templo de Iahweh, Templo de
Iahweh!” (Jr 7,4). Nem são muito diferentes das de
Toots Shor, o mais famoso dono de bares, que morreu
de câncer. Em seus últimos dias, quando a morte já era
iminente, dizia: “Não quero saber do que possuo”. É um
belo resumo da atitude da consciência do rei: não que
rendo saber. Se não soubermos, talvez nada aconteça
e talvez possamos pretender um pouco mais, ainda. Quan
do tenho de negar sobre mim mesmo, então posso per
mitir-me negar também sobre meu vizinho e não preciso
saber o que ele tem ou não tem. Posso imaginar tanto o
vizinho como a mim mesmo fora da existência histórica,
e “para sempre” torna-se, não mais uma afirmação, mas
uma negação.
59
Robert Lifton4 estudou as atitudes referentes à
morte em nossa cultura, começando com as respostas da
das a respeito dos acontecimentos de Hiroshima e Naga-
saki. Foi mais além e considerou as respostas mais gerais
sobre o viver num mundo, onde a morte é tão visível,
tão diária, tão abrangente e dominante e ao mesmo tem
po, tão despercebida. Lifton concluiu que não temos
forma adequada de nos relacionarmos mesmo potencial
mente, com a realidade da morte, e assim, relacionamos
-nos com ela mediante um torpor que é negação. Além
do mais, diz Lifton, por trás deste nosso proceder ate
morizado, há uma falta de símbolos que sejam profun
dos e fortes o bastante para igualar-se ao terror da reali
dade. O que acontece quando os símbolos são inadequa
dos e as coisas não podem ser trazidas à expressão pú
blica, é que a experiência não é vivenciada. É claro que
a noção de uma falta de símbolos sobre a realidade da
morte é pertinente ao nosso tema. A consciência do rei,
à qual faltam símbolos para a experiência total é a mes
ma consciência que antes anulou os símbolos apresenta
dos. Aqueles símbolos liberariam a experiência e a tor
nariam salvadora, dando expressão, exatamente, àquelas
dimensões da realidade que o rei temia e não podia domi
nar. É uma tendência comum aos reis anular todos os
símbolos que falam daquilo que está para além de sua
jurisdição. E é por isso que o poder do rei, de destruir
símbolos, reduzindo-os, torna necessária a negação sub-
seqüente da experiência simbolizada.
4 Robert J. Lifton e Eric Olson, em Living and Dying, New York,
Praeger, 1974, trataram do fracasso dos símbolos da morte e da destruti-
vidade da mesma falta, quando falha uma simbolização adequada. Por
isso, falam de “entorpecimento psíquico” e de “vazios de símbolos” (p.
137). Chegam à conclusão de que “o tempo em que vivemos é de um
grande entorpecimento e dessensibilização” causados pelas tecnologias de
morte. Cf. Lifton, Survivors of Hiroshima, New York, Random House,
1967, p. 474, “Technology Leads to Disconnected Death”; e History and
Human Survival, New York, Random House, 1961, p. 175, onde Lifton
fala da morte sem símbolos como do “rompimento do sentido de re-
60
Podemos observar que ativistas religiosos, muitas
vezes, com tal negação, tornam-se fácil e involuntaria
mente conspiradores. Tornamo-nos homens e mulheres
bem humorados porque, quem entre nós, não deseja
apressar e facilitar as coisas, com o fim de garantir-se e
de proteger-se contra o medo?
61
numa situação realmente de torpor é elementar e muito
modesta. Tem três partes:
62
ticipar e dos mesmos se apropriar e no entanto não o
podem fazer. É evidente que muita palavra caricatural
mente profética serve mais para encorajar a repressão da
mesma do que para levá-la a cabo. Esta palavra não
requer nem rejeições desgastantes nem certezas sentimen
tais, mas uma articulação honesta de como ela é perce
bida quando olhada desde a perspectiva do amor de Deus.
63
dade de dispositivos que nos prendem uns à custa dos
outros e a terrível prática de afastar da mesa um irmão
ou uma irmã famintos. É função do profeta convidar o
rei a experimentar o que ele tem de experimentar, aquilo
de que ele mais necessita e teme experimentar, principal
mente que o fim da fantasia real está muito próximo.
O fim da fantasia real permitirá ao verdadeiro rei uma
rápida visão daquilo que não é fantasia, mas não pode
mos ver o verdadeiro rei enquanto a fantasia nos aparece
como uma ilusão frágil, perecedora e decepcionante. Exa
tamente no ano da morte do famigerado rei é que o pro
feta e seus seguidores vêem o verdadeiro rei elevado ao
trono e nas alturas (Is 6,1).
Acredito que a linguagem mais apropriada para o
profeta penetrar o torpor e a negação do rei é a da an
gústia, a retórica que unifica a comunidade num lamento
por uma morte que não querem admitir, pois é a morte
deles mesmos.
Fico cada vez mais impressionado com o poder do
profeta de usar a linguagem do lamento e a criação sim
bólica de uma cena de morte, com o objetivo de trazer
à realidade aquilo que o rei deve ver e não o quer. Por
isso acredito que aquela tristeza e aquele lamento, aquele
clamor apaixonado, é a última forma de crítica para anun
ciar o fim certo de toda organização régia8.
s A indiferença e o otimismo oficial têm objetivos ideológicos. Pelo
contrário, a dor e a lamentação pregadas e praticadas pelos profetas
são o início da destruição da realidade do rei. A expressão do sofri
mento é o começo do contrapoder. Consultar G. Müller-Fahrenholz,
“Overcoming Apathy”, The Ecumenical Review 27 (1975), 48-56. Ele
acompanha o estudo de A. Mitscherlich, observando a inabilidade dos
alemães em serem sensibilizados pela catástrofe nazista. A observação
coincide com a conclusão de Lifton. A argumentação de Müller-Fahrenholz
coincide com o ponto de vista que exponho aqui, a saber, que sem dor
não haverá superação da indiferença hem aceitação de novas tarefas. A res
peito do sofrimento como pré-requisito para o protesto, consultar J. L.
Crenshaw, “The Human Dilemma and Literature of Dissent”, em Tradi-
tional Theology, pp. 235-37.
64
Neste contexto, quero lembrar Jeremias, como o ti
po mais claro da imaginação e do ministério profético.
É um paradigma para aqueles que se dirigem à inércia
e à atitude negativa do povo que não quer saber o que
eles ou seus vizinhos têm de saber. Jeremias é freqüen-
temente mal entendido, como se fosse um porta-voz do
dia do juízo ou um pobre homem cheio de ódio, sentado
em algum lugar, chorando. No entanto, sua tristeza pú
blica e pessoal tinha outra razão e servia a outra finali
dade. Jeremias personifica a consciência alternativa de
Moisés em face da negação do rei9. Ele se aflige com a
tristeza de Judá porque sabe o que o rei não quer co
nhecer. É claro que Jeremias não escarneceu Judá, cheio
de ódio, pelo contrário, expressou aquilo que estava ati
vamente presente na comunidade, quer reconhecessem ou
não. Expressava aquilo que a comunidade negava com o
fim de continuar a autodecepção de uma saciedade com
pleta. Afirmava que toda saciedade era um aproximar-se
rápido da própria morte. Jeremias conheceu muito antes
dos outros que o fim estava se aproximando e que Deus
já tinha suportado demasiado uma riqueza indiferente à
pobreza, uma opressão cínica, uma religião presunçosa.
Ele sabia que a liberdade de Deus tinha sido tão farta
mente violada (como no Gênesis 2-3) que o castigo es
tava às portas e não deixaria de chegar. Os profetas não
pedem muito nem esperam muito. Em sua tristeza, Jere
mias pediu apenas que a corte real enfrentasse a ver
dadeira experiência, já tão perto do fim. Tanto o profeta
como o rei sabiam que experimentar a realidade era, de
fato, deixar de ser rei.
9 Cf. William Holliday, “The Background of Jeremiah’s Self-Un-
derstanding: Moses, Samuel and Psalm 22”, Journal of Biblical Literature
83 (1964) 153-64. Menos diretamente consultar Sheldon Blank, “The
Prophet as Paradigm”, em James L. Crenshaw and John T. Willis Essays
in Old Testament Etkics, New York, KTAV, 1974, pp. 111-30. Sobre
o sofrimento como entendido pela tradição a respeito de Jeremias, ver
Peter Weter, “Leiden and Leidenerfahung im Buch Jeremia”, Zeitschrift
für Theologie und Kirche 74 (1977), 123-50.
65
5 - A imaginação profética
Observemos dois níveis na angústia de Jeremias.
O primeiro consistia na mágoa sentida, pois o fim de seu
povo estava iminente. Era uma mágoa verdadeira, por
que ele tinha se preocupado com seu povo e sabia que
Deus também se preocupava com o mesmo povo. A se
gunda dimensão de sua mágoa, mais intensa ainda, é por
que ninguém ouvia nem queria ver aquilo que era tão
claro para ele. Desta forma sua angústia se tornava mais
profunda e mais dolorida, porque ele tinha de enfrentar
regularmente a consciência do rei, a qual repetia: “Paz,
paz”, quando só aparentemente havia paz. Não julgo es
tar exagerando aqui. Penso que quase toda situação do
ministério inclui um comportamento de decepção e um
terrível medo de deixar nosso propósito sem continuida
de, ainda que não se trate mais que de um caso de tirania
num casamento ou da supervisão de algo que odeio e ao
qual tenho aversão. Não aceitamos nada que nos impeça
de consumirmo-nos!
A angústia de Jeremias não é autocompaixão. Ob
servando o que ele observava entre seu povo. Esta angús
tia somente podia ser a resposta. Jeremias via o que to
dos precisavam ver. Bastava que olhassem para ver, mas
não olhavam, negavam e tornavam-se ineptos para ver.
A gente que seguia o rei, durante tanto tempo, tinha vi
vido num mundo protetor e fingido, e agora seu tempo
perceptual estava distorcido, e com o mais apurado olhar
não percebia o que havia para ser percebido. Isaías já o
tinha antecipado:
66
i
a compreender,
que ele se converta e consiga a cura (Is 6,10).
67
Minhas entranhas! Minhas entranhas!
Devo-me contorcer!
Paredes do meu coração!
Meu coração se perturba em mim!
Não posso calar-me,
pois eu mesmo ouvi o som da trombeta
o grito de guerra.
Anuncia-se desastre sobre desastre:
pois toda a terra foi devastada,
de repente foram devastadas
as minhas tendas
em um instante os meus abrigos (Jr 4,19-20).
68
que a criação da ordem social foi um trabalho garantido
pelo rei. O rei é encarregado de ordenar e preservar a
ordem social e por isso, voltar ao caos é anunciar, impli
citamente, o fracasso do reinado e seu fim. Não há mais
criação porque não há mais rei. Aquilo que justificava o
reinado acabou-se. De qualquer forma, os seguidores do
rei, agora, enfrentam um futuro no qual não aparecem
mais.
No poema dos capítulos 8 a 10, Jeremias apresenta
uma grande quantidade de metáforas que têm por fim
acabar com o torpor. Em primeiro lugar, apresenta uma
imagem sobre uma interpretação da situação totalmente
errada. Há tempo para o luto e tempo para a dança, tem
po para chorar e tempo para rir (Ecl 3,4) e no entanto
Judá não sabe que tempo é agora:
69
Quem me dará no deserto
um refúgio de viajantes,
para que eu possa deixar o meu povo
e ir para longe deles! (Jr 8,22-9,1).
70
quer outro, e isto, claro, em nada alivia a situação, pois
ele é o Deus dos fins e ninguém pode evitá-lo.
Jeremias pode sentir empatia para com os servido
res do rei. Aspira pela paz tanto quanto eles. Deseja
que tudo siga normal, mas a morte já mudou tudo. “Es
peramos a paz: nada de bom! O tempo da cura: eis o
terror!” (Jr 8,15). Ele que é o mais eloqüente dos pro
fetas não encontra palavras para expressar publicamente
sua mágoa: “Sem remédio a dor me invade, o meu co
ração está doente” (Jr 8,18). Chegou a perder a capaci
dade de pensar com clareza e de tomar decisões fiéis.
E não se trata de encenação para impressionar o público.
Toda a sua vida, de agora em diante, é exigida para ex
pressar a dor pela morte de Judá. É aquela dor que
Iahweh queria participar com seu povo, mas eles não
podem e, por isso, Jeremias sozinho tem de responder
por seu povo todo.
Em seu longo e eloqüente discurso sobre os reis,
no capítulo 22, o profeta os repreende, castiga, elogia e
até os lisongeia. Depois de tudo, se volta para o trágico
jovem rei Jeconias. O rapaz é inocente, mas deve pagar
pela dinastia e deve suportar em seu corpo o castigo de
toda a família. Ele agora é Judá, Judá exilado e Jeremias
atribui-lhe o papel de partilhar toda a dor de Judá.
No versículo 28, Jeremias começou a lamentar-se
por aquele que é inocente e que é esquecido, sem recla
mação alguma a fazer: “É porventura um vaso sem valor,
quebrado, esse homem, esse Jeconias, ou um utensílio
que ninguém quer?” Depois levanta o mais pungente la
mento de toda a Bíblia. A terra toda pára a fim de sentir
a tragédia: “Terra! Terra! Terra!” E está terminada a
dinastia: “Inscrevei esse homem sem filhos, alguém que
não teve sucesso nos seus dias. Porque ninguém de sua
taça conseguirá sentar-se no trono de Davi. . .” As lágri
mas do coração de Jeremias não falam mais. Perdeu o
poder de exultar ou de regozijar-se. Ele queria muito que
71
este rei pudesse resgatar Judá real, mas agora é muito
tarde.
O profeta reconhece que sua dor pela morte de Is
rael é inadequada, e por isso pede que a dor seja pública:
“Sobre as montanhas eu elevo gemidos e pranto; sobre
as pastagens da estepe um canto de lamentação” (9,9).
E aqui ele repete a expectativa de Amós, a saber, o que
está para acontecer deve ser levado ao conhecimento
público:
Em todas as praças haverá lamentação
e em todas as ruas dirão: “Ai! Ai!”
Convocarão o camponês para o luto
e para a lamentação aqueles que sabem
gemer (Am 5,16).
72
atentam, apenas, contra a tua vida.
Sim, ouço um grito como o de uma parturiente,
aflição como a da que dá a luz pela primeira vez;
é o grito da filha de Sião, que geme,
e que estende as mãos:
‘Ai de mim, que desfaleço
diante dos assassinos!’ ” (Jr 4,30-31).
73
do antigo Israel, justamente porque a situação requeria
ousadia. Imaginemos a impossível volta da sempre lem
brada mãe Raquel, chorando seus queridos filhos. Claro
que só poderia haver dor, porque:
74
no Calvário, como Davi ao lado de Absalão: “Meu filho,
meu filho!” e nada mais pode fazer a não ser chorar14.
A força que impeliu para a morte foi tão violenta que
nada, nem o rei, nem o templo, nem mesmo Iahweh,
podem agora impedir o acontecimento. Posteriormente
será oferecida misericórdia, mas não antes da morte.
Quando muito encontramos aqui um desejo misterioso
por parte de Iahweh, de que a história não siga seu
curso implacável.
A poesia usa agora a linguagem da dor como é ca
racterístico da poesia elegíaca. Há um sentido de abando
no sem conforto, com um desejo de misericórdia, mas
somente um desejo. Israel deve sofrer e não será tão cedo
que outra palavra que não seja sofrimento será ouvida.
Jeremias falou para um povo com olhos bem aber
tos, e no entanto, olhavam e não viam. Estavam tão im
plantados ao seu mundo de fantasias, que se tornaram
estúpidos e não foram capazes de discernir coisa alguma.
E, por isso, o torpor não foi vencido e continuou em seu
mundo de fantasias: “Eles cuidam da ferida do meu po
vo superficialmente, dizendo: Paz! Paz! quando não há
paz” (Jr 6,14;8,11). Imaginavam que sua estupidez a
respeito da Aliança seria sabedoria régia (Jr 8,8) e con
tinuaram seus caminhos régios, mas ilusórios. Os profe
tas pensaram que o jugo seria temporário, mas afinal de
contas, não tão sério ou decisivo (cap. 27-28). Os reis
imaginavam que não ouvir uma palavra de Iahweh ou
queimar um rolo de pergaminho tornaria “inoperante” a
soberania de Iahweh (Jr 36,23-24). Os reis fariam tudo,
menos angustiar-se, porque este é o último ponto da crí
tica e o anúncio decisivo da destruição.
Não precisamos forçar a linguagem de Jeremias com
o fim de torná-la concreta ou mais específica. O profeta
está empenhado numa luta pela linguagem, num esforço
14 Elei Weisel, em Ani M.aamin, New York, Random House, 1974,
faz uma descrição do Senhor, muito dolorida.
75
por criar um tipo de conhecimento diferente, do qual
possa emergir um outro tipo de comunidade. Ele não
estava se referindo a problemas comportamentais. Nem
sequer estava insistindo no arrependimento. Sua única
esperança é que a dor de Deus pudesse penetrar aquele
torpor histórico. Ele é envolvido não pelo pânico ou
pelo terror mas por uma angústia que cresce tanto com
o sofrimento, como por causa do mesmo.
Afinal, o que quer este profeta? Por que toda esta
angústia? Certamente ele não é como aquele pastor “pro-
vocador de lágrimas” e para o qual, um choro bem pre
parado era sinal de um belo funeral. Nem seremos fre
quentadores profissionais de funerais, para os quais as
lágrimas vêm automaticamente a cada versículo do “Ro
chedo dos Tempos”. Sabemos, por nossas próprias má
goas, feridas e solidão, que as lágrimas quebram barreiras
como nenhuma outra força o conseguiría. As lágrimas são
uma forma de solidariedade no sofrimento, quando não
se encontra nenhuma outra forma de ajuda. E quando
alguém recorre claramente ao próprio torpor, à raiva, ao
desgaste e à indignação, torna, então, a ferida mais pro
funda, aumenta o torpor e leva as pessoas a comporta
mentos que não são enraizados na experiência.
Esta forma de negação e não aceitação do torpor só
é superada pelo assumir da negatividade 15, pela pública
aceitação de que estamos cheios de medo e envergonha
dos do futuro que escolhemos. O sofrimento e o arre
pendimento não aceitos apenas imobilizam. No tempo de
Jeremias, o sofrimento e o arrependimento não-aceitos
impediram qualquer novo movimento, quer da parte de
Deus para Judá, quer de Judá para Deus. A promessa
não foi cumprida e não houve possibilidade de novidade
até que o torpor foi vencido. Jeremias pensava que a
15 Douglas Hall, em Ligbten Our Darkness, Philadelphia, Westminster
Press, 1976, esp. cap. 2, fez referência ao tema da negatividade, tanto no
que se refere à teologia da cruz como à nossa situação social.
76
crítica devia ser enfrentada e aceita porque depois viria a
libertação da doença incurável, da aliança quebrada, de
uma energia falida. Esta tradição da fé bíblica sabe que
a angústia é a porta da existência histórica, que assumir
o fim permite novos começos. Naturalmente os reis pen
sam que a porta da angústia não deve ser aberta porque
destrói os reis fraudulentos. Os reis sabem intuitiva
mente, que a decepção, os falsos clamores de prosperi
dade, a opressão, a situação religiosa, tudo entrará em
colapso quando o ar da Aliança os atingir. O enigma e
ao mesmo tempo, a intuição da fé bíblica é o conhecimen
to de que somente a mágoa leva à alegria, somente a an
gústia leva à vida e finalmente que a aceitação dos fins
é que permite novos começos.
Jeremias situa-se a meio caminho na história da dor
de Israel. Antes dele, Amós condenara todos aqueles que
dominados pela ilusão, tinham sido incapazes e não ti
nham tido disposição para o arrependimento (Am 6,6).
Depois de Jeremias vem Jesus de Nazaré, que entende a
angústia como a última crítica que tem de ser dirigida
contra Jerusalém (Mt 23,27; Lc 19,4). Jeremias está a
meio caminho e fala da mágoa de Deus, da qual Israel
tem de participar. Sem esta participação de Israel, não
haverá modificação.
Jesus compreendeu Jeremias. O Eclesiastes afirma
simplesmente que há tempo para chorar e tempo para rir,
mas Jesus observa apenas que aqueles que estão tristes
serão confortados (Mt 5,4). Somente aqueles que acei
taram a realidade da morte receberão uma vida nova.
Está implícito em sua afirmação que aqueles que não
chorarem, não serão confortados, e aqueles que não en
frentarem o fim não receberão o começo. A comunidade
alternativa sabe perfeitamente que não é necessário en
tregar-se à ilusão. Ela pode estar solidária com a morte
e são estes os únicos que têm esperança. Jeremias, fiel a
77
IB
«II!
íi:
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78
4
ENERGIZAÇÃO PROFÉTICA
E O EMERGIR
DA INTUIÇÃO
79
I
zação. Por um lado, quero mostrar como a consciência
dominante (a qual denominei até aqui “régia”) chegará
a um fim, e não tem por que reclamar de nós. Por outro
lado, a função da comunidade profética alternativa é pre
parar uma outra consciência, que possa trazer força à
comunidade no empreender novas formas de fé e de vi
talidade. Uma vez que já refletimos sobre a primeira des
tas funções na história de Jeremias, apresento agora a se
gunda função da profecia, a saber, despertar e comunicar
energias ou simplesmente, energizar. Meu ponto de vista
é o seguinte: A consciência régia desperta no povo um
desespero, diante da nova vida. É papel da imaginação
e do ministério profético levar o povo a engajar-se com a
promessa da novidade que já está em andamento em nos
sa história com Deus.
Pessoas insensíveis não percebem ou não temem a
morte. Por outro lado, pessoas em desespero, não an-
tevêem nem percebem novidades.
80
A ordem atual ou, por outras palavras, o regime presen
te apresenta-se como sendo a situação perfeita e final.
Isto quer dizer que não haverá uma situação futura que
conteste a presente ou que a prometa de outra forma.
De modo que as rotineiras exigências da ordem atual se
transformam em desespero. Esta forma traiçoeira de es-
catologia exige que as pessoas vivam sem esperança. O
presente torna-se infinito em seus projetos, não tem com
promissos com exigência de lealdade e não se acomoda
a suas próprias formas de ser. Segundo um recente co
mercial de cerveja, você é todo-poderoso “quando crê
naquilo que você está fazendo”. Donde se conclui que
uma única “forma é a certa”. Penso que o regime salo-
mônico criou uma situação semelhante à de desespero.
Inevitavelmente tinha de prender-se ao presente desespe
rada e obstinadamente, porque se o presente desapare
cesse não haveria nada mais. O futuro já fora anulado.
No meu pensar, não é artificial imaginar que as palavras
do Eclesiastes 1,9-10 nas quais encontramos uma grande
falta de esperança, se refira à consciência do rei.
83
racionalidade convencional, estaremos fadados ao deses
pero. Sentimos muito bem que nas circunstâncias pre
sentes não há lugar para criar verdadeiras mudanças. E
em breve, a verdadeira vida nova transforma-se numa
construção incompleta, num trabalho de má vontade,
numa fé sem audácia para pedir muito.
Penso que semelhante estado de coisas é evidente
não somente no exílio de Judá, mas é também caracterís
tica de muitas situações do ministério. Quando tentamos
determinar os sintomas do mal do nosso tempo, dos ca
samentos e das ocupações de muitíssima gente, percebe
mos que fomos criados longe da esperança, pelo fato de a
mesma esperança ser muito acanhada em nós. Esta espe
rança é uma inimiga da consciência do rei, com a qual
muitos de nós garantimos uma forma de vida. O proble
ma enfrentado pelo ministério é, se há alguma coisa
para ser dita, feita ou praticada, diante da ideologia da
plenitude da esperança.
85
e prepará-lo para o uso dos instrumentos da esperança.
A segunda é reconhecer a força única das palavras, da
linguagem e do discurso, das próprias expressões para
modelar e definir a realidade. O profeta é aquele que,
usando unicamente estes instrumentos da esperança, lan
ça a contradição contra o suposto mundo dos reis, mos
trando que aquele mundo não corresponde aos fatos,
que nos ensinaram uma mentira, na qual acreditamos
porque houve quem, com sua atividade e sobretudo com
a imprensa, nos dissessse que aquela era a verdadeira
forma de ser. E por isso a apresentação dos símbolos
é um trabalho que não se ajusta a um clérigo tímido, que
simplesmente faz parte do grupo, mas é um trabalho
apropriado para pessoas que conhecem algo diferente e
estão preparadas, na sua angústia e intuição, para ver
que o mundo fechado da realidade administrada é falso.
A imaginação profética sabe muito bem que o mundo
verdadeiro é unicamente aquele que tem sua origem e
sua dinâmica no discurso-promessa de Deus e que este
é verdadeiro mesmo num mundo do qual os reis tenta
ram banir todos os discursos, menos os próprios.
86
risco político e existencial. Por outro lado, a esperança
é subversiva, porque põe limites às orgulhosas pretensões
do presente6, ousando proclamar que o presente com o
qual todos nos comprometemos, é questionável. E por
isso a comunidade no exílio não tinha os instrumentos
da esperança, pois a linguagem da esperança e o ethos
da intuição foram confiscados por serem um estorvo.
É errado pensar a respeito da expressão pública
da esperança como de uma forma de subverter o deses
pero dominante no rei. Não estou me referindo ao oti
mismo, ao desenvolvimento ou mesmo aos avanços pro
gressivos, mas às promessas feitas por alguém que está
longe de nós, acima e diferente de nós e, apesar de tudo
promessas feitas a nosso favor. O discurso sobre a espe
rança não pode ser explicativo nem de uma lógica cien
tífica, mas deve ser lírico no sentido de que atinge a
pessoa sem esperança, em aspectos diferentes. Mais do
que isso, o discurso da esperança deve ser, primeiramen
te, teológico, e isto significa que deve ser feito na lin
guagem da aliança entre um Deus pessoal e a comuni
dade. A promessa pertence a um mundo que fala con
fiantemente e ouve com fidelidade. A promessa não será
reduzida à linguagem “fria” da filosofia ou do discurso
individual da psicologia. Numa palavra, será sobre Deus
e nós, sobre sua fidelidade, a qual proíbe nossa infideli
dade. Aqueles que desejam exercer o ministério profé
tico precisam abraçar esta absurda prática e esta ativi
dade subversiva.
O impulso de tornar pública a expressão da espe
rança está fundamentado numa convicção sobre as pes
soas que têm fé. Fundamenta-se na capacidade de evocar
e expressar a esperança existente em nós (ver lPd 3,15 )•
Ela está dentro de nós e entre nós porque Deus determi
6 A respeito da força subversiva da esperança como meio de des
truição, consultar John Swomley, Liberation Ethics, New York, Mac-
millan, 1972.
87
nou que fôssemos o povo da esperança. Está em nós,
pelo fato de sermos a imagem do Deus das promessas.
É marcada em nós no sacramento do batismo. É repre
sentada pela eucaristia — “até sua vinda”. Está na es
trutura mesma de todos os credos que terminam profes
sando a fé nas promessas de Deus. A esperança é a de
cisão, à qual Deus convida Israel, uma decisão contra
o desespero, contra um destino permanente de caos (Is
45,18), de opressão, de esterilidade e de exílio.
A esperança é a expressão profética principal, não
em razão da dinâmica geral da história ou em razão dos
sinais dos tempos, mas porque o profeta fala para um
povo, que de bom ou mau grado, é o povo de Deus.
Este povo deve ter esperança porque é o povo de Deus,
convidado para a peregrinação de Deus. E da mesma for
ma que Israel é convidado a afligir-se com a aflição de
Deus por causa da infidelidade final, igualmente Israel
é convidado agora a esperar nas promessas de Deus.
Este ato de esperança é a confissão de que não somos
filhos da consciência do rei.
Temos de admitir que a esperança profética pode
facilmente orientar-se para a distorção. Pode tornar-se
tão grandiosa que perca a dimensão da realidade; pode
tornar-se tão vulgar que não cause impacto à realidade;
pode tornar-se “pão e circo” e assim não fará mais que
ajudar e encorajar o desespero geral. Mas o profeta tem
outro objetivo ao dar expressão pública à esperança, a
saber, fazer o povo voltar ao único ponto de referência,
à soberana fidelidade de Deus. Somente esta volta per
mite uma rejeição ao mundo fechado da definição do rei.
Só haverá esperança se se realizar uma mudança, de um
mundo controlado para um mundo de fidelidade à pa
lavra falada e ouvida. Este novo enfoque coloca Israel
numa situação diferente, modifica o exílio, o qual, a par
tir de agora, não é mais um eterno destino, mas um lugar
onde a esperança pode nascer na forma mais admirável.
88
Não existe norma objetiva que possa impedir um profe
ta da esperança de se tornar demasiado imponente ou
vulgar ou ainda simplesmente, um orador em favor de
pão e circo. É provável que a única medida da fidelidade
seja o fato de a esperança vir sempre depois da angústia
e que o orador desta expressão pública deva conhecer
e participar da angústia que permite o aparecer da es
perança. Uma esperança manifestada sem conhecimento e
sem participação na angústia é, provavelmente, uma fal
sa esperança que não atinje o desespero. Thomas Raitt
provou que justamente aqueles que conhecem a morte
mais dolorosamente são os que podem falar da esperan
ça com mais vigor.
89
louvores de Israel; ou ainda, em José rejeitado por seus
irmãos e que, no entanto, ao vê-los, consola-os afirman-
do-lhes que em tudo Deus faz o bem. No caso de Sa
lomão, que nasce do amor vulgar de um casal real, e,
depois de tudo, encontramos palavras que contradizem
as amarguras do exílio.
90
pathos para chegar aos discursos da esperança e da do
xologia.
Admito que Thomas Raitt tenha deixado bem claro
que o segundo Isaías tem como precursores indispensá
veis Jeremias e Ezequiel. Porém, mais do que estes e do
que qualquer outro, o Segundo Isaías é que anuncia a
Israel, no exílio, a verdadeira novidade. Seu anúncio, an
tes de tudo, depende da audácia de sua personalidade e
de sua poesia. Deve ter sido uma personalidade notável,
capaz de dizer coisas que contradiziam toda a percepção
de seu povo. Em segundo lugar, seu discurso prende-se
à realidade de que seu tempo era realmente um tempo
de novidade, durante o qual as verdades antigas estavam
se desmoronando. A Babilônia estava se acabando, a Pér
sia estava surgindo e o poeta conheceu exatamente o
momento histórico. Em terceiro lugar, seu discurso de
pende da realidade e da confissão da radical liberdade de
Deus, liberdade não apenas nos conceitos e nas expecta
tivas de seu povo, mas nas ações passadas do próprio
Deus. Como bem observa Reinhold Niebuhr, Deus tem
coragem de mudar8. Sua liberdade não é qualquer acon
tecimento piedoso ou espiritual, mas é uma liberdade pú
blica e visível. Ao falar do perdão, Raitt diz: “Jeremias
e Ezequiel começaram anunciando uma transformação
revolucionária na vontade e no plano de Deus, com re
ferência à história de seu povo (...) um novo ‘jogo’
ou um novo regime começou (...) Deus está agindo
agora sob novos planos”9. Por isso, estas são as primei
ras palavras do Segundo Isaías aos exilados, palavras de
perdão:
8 A citação é parcial e chistosa e refere-se à biografia de Reinhold
Niebuhr em June Bingham, Courage to Change, New York: Scribner’s,
1961. Esta mesma frase é não somente aplicável ao Senhor de Israel,
mas é também uma importante afirmação profética contra a imutabilidade
de Deus, defendida pela consciência real, a qual aspira a uma perene es
tabilidade.
9 Raitt, A Theology of Exile, pp. 188-89.
91
Consolai, consolai o meu povo,
diz o vosso Deus,
falai ao coração de Jerusalém e dizei-lhe
em alta voz
que sua servidão está cumprida,
que sua iniqüidade está expiada,
que ela recebeu da mão de Iahweh
paga dobrada
por todos os seus pecados (Is 40,1-2).
92
Sobe a um alto monte,
mensageira de alegres novas a Sião;
Eleva a tua voz com vigor,
mensageira de alegres novas a Jerusalém;
eleva-a, não temas; dize às cidades
de Judá;
“Eis aqui o vosso Deus!”
Eis aqui o Senhor Iahweh: ele vem
com poder (Is 40,9-10).
93
gação de legitimidade daqueles que defendem e determi
nam a realidade. Os outros defensores do poder e da rea
lidade, nesta passagem, estão como os antigos egípcios,
mortos nas praias do mar. Este ato público do discurso
poético restabelece o destino de Israel. Um exílio com o
soberano coroado é muito diferente de um exílio sem rei,
pois significa que a dura situação pode ser resolvida.
E que Deus é este, que agora reclama o poder! É
tão terrivelmente másculo como um lutador com as man
gas arregaçadas para a luta e, ao mesmo tempo, maternal
e terno como quem carrega nos braços um cordeirinho.
Para os exilados ele é tudo isto. Haverá o conforto de
grande força, dando ênfase ao forte e haverá conforto na
nutrição, dando ênfase ao com. Agora Israel se encontra
numa situação nova, na qual é possível cantar outra vez.
Alguma vez já estivestes numa situação, na qual, por
causa da raiva, da depressão, da preocupação ou da exaus
tão, não fostes capaz de cantar? Experimentastes, por
ventura, uma situação semelhante? Numa situação dessas
seria necessário dirigir-se à causa da mudança das coisas,
seria necessário chamá-la pelo nome, nela pôr a atenção,
reconhecê-la e dela apoderar-se. O profeta torna possível
entoar cânticos, e o império reconhece que aqueles que
ousam entoar seus cânticos não aceitaram a definição do
rei referente à existência. Se o não cantar é um indicador
de exílio, então estamos nele, porque somos um povo
que raramente canta. O profeta desperta a esperança de
voltarmos a cantar. A fórmula da segunda entronização
é ainda mais familiar:
94
Aquele mesmo que parece ter deixado de proteger, as
sume agora a proteção. Aquele que em Jeremias parecia
amargurado e derrotado, é o mesmo que agora vai inver
ter a história. E o poeta sabe muito bem que a inversão
real do poder só advem através do sofrimento (Is 49,
14-15). O júbilo pertence àqueles que passaram pelo
abandono e pelo sofrimento. É uma curiosa caminhada
para o reinado, mas é como acontece na história de Israel.
O que o Segundo Isaías realiza é dar a Israel for
ças para uma fé nova. Mas é preciso observar a forma
radical, ousada e mesmo revolucionária que esta força
apresenta. Aqui não há truques psicológicos nem mo
mentos de meditação fáceis, porque os problemas não
são privados, pessoais, espirituais ou internos. A única
força séria, energizadora, pedida ou oferecida é o conhe
cimento de Deus em toda sua liberdade, o desfazer das
estruturas exaustas e o destronar das forças cansadas.
(Jesus, em seu discurso sobre o cansaço e o alívio da
mudança de jugo [Mt 11,28-30] é fiel ao Segundo
Isaías). O lamento é pela perda do verdadeiro reinado,
enquanto a doxologia é a aceitação do verdadeiro rei e
a rejeição dos impostores.
Como é dito freqüentemente, sugiro que estas duas
formas de entronização de Isaías em 40,9-11 e em 52,7
são as fontes de onde nasce o resto da poesia. O restan
te é uma exegese do reinado há pouco afirmado. A fun
ção do poeta é levar os exilados a uma decisão sobre a
soberania, porque eles não querem escolher. Pessoas de
primidas não querem agir, pessoas desesperadas pensam
que nada vale a pena. Mas o primeiro passo para sair do
exílio e do desespero é a aceitação de um soberano fiel
e a partir daqui o impulso para a decisão.
Em primeiro lugar, ele põe em contraste os dois ti
pos de deuses numa forma arrogante. A descrição do
primeiro tipo nos desagrada:
95
Bel caiu por terra, Nebo ficou prostrado,
os seus ídolos estão entregues aos animais
selvagens e às bestas de carga,
esta carga que leváveis é um fardo para
a besta cansada (Is 46,1).
98
tempo deste cântico novo surge quando a aliança torna-
-se o início de outra forma de realidade.
b) Uma segunda imagem é a do parto de quem era
estéril. A esterilidade é, entre nós, um tema oportuno,
e mais do que a televisão, a qual é terra não cultivada.
Nossa sociedade está cheia de eunucos de ambos os se
xos, cuja masculinidade e feminilidade são assimiladas
pela mesma sociedade. Não há esperança, não há futuro
e por isso não há filhos. Não há força suficiente para dar
à luz ou para procriar, e quem quer gerar mais filhos
para a Babilônia? Nossa história começa sempre com as
estéreis, como Sara (Gn 11,30), como Rebeca (Gn 25,
21), como Raquel (Gn 29,31), e como Isabel (Lc 1,7).
Dentre estas, quer vivas quer mortas, (Hb 11,12), sem
pre surge o dom admirável. A impossibilidade de dar à
luz é uma coisa curiosa, e sabemos através de toda nossa
ciência que as razões, as mais das vezes, são históricas,
simbólicas e interpessoais. Muitas vezes são as notícias,
— boas notícias, a doxologia, que dão forças para efetuar
e levar um novo futuro à luz.
Uma tal inversão oferece ao poeta oportunidade de
falar a Israel de um novo futuro:
Entoa alegre canto, ó estéril,
que não deste à luz;
ergue gritos de alegria, exulta
tu que não sentiste as dores de parto,
porque mais numerosos são os filhos
da Abandonada
do que os filhos de uma esposa, diz Iahweh (Is 54,1).
As mais antigas promessas estão vivas de novo e
Babilônia não pode mais fazê-las parar. Sempre que os
problemas são postos de tal forma que seja a palavra de
Deus contra Babilônia, não há contestação. Babilônia
não pode fazer parar o poder de Deus. Ele será fiel em
suas promessas, mesmo à estéril Sara.
99
c) Há uma terceira imagem, a da alimentação. Se
comerdes o páo de Babilônia por muito tempo, sereis
destruídos. Houve alguns que apreciaram o pão de Babi
lônia e tornaram-se babilônios, mas os israelitas que se
sentiam exilados não se acomodaram àquele alimento im
perial. É por isso que o poeta, em sua colocação sobre
o pão alternativo, desfaz da arte babilônica de fabricar
o pão:
100
a imaginação de seu povo, e isto transforma o desespero
em energia.
O Segundo Isaías oferece a seu povo um presente
extraordinário. Devolve-lhes a fé, mediante a rearticula-
ção da antiga estória. Dá-lhes a capacidade lingüística de
enfrentar o desespero antes de serem envolvidos pelo
mesmo. Fora da consciência dominante, ele constrói uma
plataforma, sobre a qual é possível uma nova humani
dade. Um cínico poderia dizer que, realmente, nada mu
dou. E, na verdade, nada mudou se se considera mudan
ça apenas a queda dos impérios e que esta deva acontecer
rapidamente. Mas os profetas não são mágicos. Seu sa
ber e seus anúncios são feitos apenas com palavras que
despertam para alternativas e velhos instrumentos não
funcionam bem em situações críticas. Isto acontecerá so
mente com o reconhecimento de que a vida não nos foi
dada totalmente e que há alguém que reservou para si
próprio sua liberdade soberana, independente de nós, e
a nosso favor. Ele mantém sua atividade independente
de nós e da Babilônia. A divindade de Deus mostra-se
como libertação dos exilados e, por isso, Gerhard von
Rad estabelece como o mais importante de todos os tex
tos, dos quais não deveriamos falar antes de nos deci
dirmos a crer, o seguinte:
Não fiqueis a lembrar coisas passadas,
não vos preocupeis com acontecimentos antigos.
Eis que vou fazer uma coisa nova,
ela já vem despontando: não a percebeis? (Is 43,18-19).
Os que ainda não experimentaram conforto, difi
cilmente podem crer que tal coisa seja possível. Mas é
claro que não haverá alegria pessoal nem justiça pública,
nem arrependimento conjunto, nem humanidade fami
liar, enquanto houver novidade que não possamos criar.
Há ainda um segundo texto grandioso, que julgo
muito relacionado com o cansaço entre nós, cansaço de
101
não termos nos decidido ou de termos tomado o caminho
da Babilônia. Primeiramente sobre o Senhor:
102
mos mais seguros. Claro que isto é mais que uma crítica
a Babilônia. É também uma crítica aos que querem reco
nhecer como próprio todo o esforço feito e é também
uma admoestação aos que se estabelecem no exílio como
se fora seu próprio lar.
A novidade provinda de Deus é a única fonte séria
de energia. E esta energia, pela qual o povo aspira é exa
tamente aquela consciência real, que nem Salomão nem
Nabucodonosor pôde dar. O profeta ou a profetisa não
devem subestimar a urgência de seu chamado, certos de
que não há outras fontes de novidade. Tenho certeza de
que isto pode parecer um aproximar-se perigosamente
da passividade, como o faz frequentemente a confiança
e que se pode parecer estar à margem de uma graça sem
valor, como acontece geralmente. Mas é um risco que
deve ser corrido porque os exilados devem aprender que
a esperança não nasce em nós, mas que é dada a nós.
E sempre que nos é dada, ficamos surpreendidos.
Jeremias e o Segundo Isaías juntos, ambos poetas
do pathos e da intuição falam de lamentações e de doxo-
logias. Não podemos separar um do outro. Jeremias in
terpretado sozinho deposita a fé na morte, onde Deus
não pode estar. O Segundo Isaías também leva-nos a
imaginar que há conforto sem lágrimas e sem choro. Mas
é claro que somente aqueles que se angustiam cantarão
novos cânticos. Sem sofrimento o novo cântico será, pro
vavelmente, estridente e apenas mais uma fanfarronada
do rei.
103
5
CRÍTICA E PATHOS
EM JESUS
DE NAZARÉ
105
na realidade, já chegou ao fim. Por isso, Herodes pren
de-se à sua própria decepção e à sua própria recusa, usan
do seus melhores talentos, mas tudo é inútil, pois ele
mesmo não pode deter o fim. Em contraste com isso,
encontramos a compaixão de Raquel, em Jeremias. A fú
ria do rei chega a um fim com dor e lamentação. É fun
ção da tradição profética afligir-se com o fim, o mesmo
fim que o rei não pode enfrentar, não pode deter e pelo
qual não pode se angustiar.
No capítulo 1 de Mateus, os versículos 16-17 re
ferentes ao rei e ao profeta são introdutórios, ao passo
que os versículos 18-23 fazem a ação avançar. E o con
traste é flagrante, o rei está morto e o anjo anuncia o
futuro da criança. É claro que Herodes foi vencido. Não
é realmente rei. Jesus é o rei verdadeiro (2,11) e como
tal, apresenta-se como uma negação total do que não era
rei. O choro de Raquel é causado pelo extermínio ao
qual Herodes parecia querer levar o povo, mas finalmen
te, quem é exterminado é o próprio Herodes. De fato,
a tristeza de Raquel refere-se tanto ao ultimato da crítica
como à novidade que está para surgir desta mesma crí
tica. O fato de Jesus apresentar-se como a alternativa
está assinalado no versículo 23 !. É um nazareno, o que
significa, com certeza, que é um marginal, e no entanto,
o único fiel. Geograficamente é marginal (v. 22), pois
estão separados desde o final da realeza e, também, reli
giosamente é marginal (cf. Nm 6,1-21), pois permane
cerá sempre como uma realidade contraditória e que des
truirá finalmente a situação dominante.
1 O mesmo contraste e a mesma alternativa entre o rei poderoso e o
novo pretendente encontramos na forma atual em Jr 34,35. As duas nar
rações são, certamente, justapostas intencionalmente. Em Jr 34 (não dife
rente de Herodes) os espertos senhores do mundo fazem um jogo mortal
com o próprio mundo e a liberdade e, no fim, são sentenciados à morte
porque o projetado jogo não pode ter sucesso. Em contraste, no capítulo
35, os recabitas que nada têm e nada exigem, exceto a decisão de obe
decer, terminam sendo abençoados. A origem nazarena de Jesus e o modo
de vida dos recabitas sugere um paralelo que não parece meramente casual.
106
De forma semelhante, a descrição de Lucas da re
velação aos pastores, verdadeiros representantes dos mar
ginais, traz uma notícia da substituição do antigo regime.
É por isso que eles se enchem de admiração e medo (Lc
2,17-20). A intromissão representada pelo nascimento
de Jesus causa uma inversão radical:
107
chegada do reino. É claro que está implícito neste anún
cio um outro que lhe é correlato, a saber, que os reinos
terrenos têm seu fim e são substituídos. Em Lc 4,18-19,
ele anuncia que uma nova idade estava começando e,
ao mesmo tempo, este anúncio faz uma severa crítica
a todas as forças e agentes da ordem atual3. Sua mensa
gem era para os pobres e não para aqueles que os conser
vavam na pobreza e se beneficiavam da mesma. Dirige-
-se aos cativos (e lembremos: aos escravos presos), e
não aos que desejavam que aquela situação continuasse
imutável. Lembrou os oprimidos, e estes jamais existi
ríam se não existissem opressores.
Implícitos em sua pregação estavam estes dois anún
cios fundamentais. O ministério de Jesus é, ao mesmo
tempo, uma crítica que conduz a uma demolição radical.
E como é comum, os protetores e aproveitadores da esta
bilidade atual são acentuadamente sensíveis a qualquer
mudança que possa questionar ou desafiar a ordem pre
sente. Muito cedo, Jesus é visto exatamente como um
claro e atual perigo àquela ordem, e aqui está o problema
da novidade promissora do Evangelho. Jamais promete
sem ameaçar, jamais começa sem o término de alguma
coisa e finalmente, jamais oferece prêmios sem fixar al
tos custos. A crítica radical de Jesus pode ser resumida
em alguns fatos mais significativos:
108
mais. Não esqueçamos que em tudo isto estava uma
crítica radical à sociedade. Hannah Arendt4 observou
que o perdoar pecados foi a atividade mais perigosa de
Jesus, porque se uma sociedade não possui um disposi
tivo para perdoar, seus membros estarão destinados a vi
ver sempre sob o peso das conseqüências de qualquer
violação. Por isso a recusa de perdoar o pecado (ou o
domínio do dispositivo do perdão) significa um poder
social muito grande. Se a pretensão de Jesus parece ter
sido impressionante, sob o ponto de vista religioso, a
ameaça às formas aceites do controle social foi ainda
maior.
b) O poder de Jesus de curar e a facilidade com
que o executou no sábado (Mc 3,1-6) preparou a cons
piração que o mataria (v. 6). A violação está relacio
nada não com a cura, mas com o sábado. No capítulo
2,23-28, ele já levantara o problema e aparece clara
mente que para Jesus a guarda do sábado tinha se tor
nado uma forma de escravidão. Não é necessário dizer
que a objeção parte justamente daqueles que controla
vam o sábado e dele se beneficiavam. De forma que o
sábado se tornara um sinal sagrado da situação social e
questionar exatamente aquele dia perturbava toda a si
tuação. Aquele dia que unia toda a ordem social, agora
era motivo de liberdade e liberdade que rejeitava o que
fora estabelecido5.
4 Hannah Arendt, The Human Condition, Chicago, University of Chi
cago Press, 1959, pp. 236-43: “Quem descobriu a função do perdão no
domínio dos negócios humanos foi Jesus de Nazaré” (p. 238). “Sua in
sistência sobre o ‘poder de perdoar’ causa mais impacto no povo do que os
próprios milagres” (p. 239, n. 76).
5 A respeito do Sabá como sinal da liberdade da era messiânica,
consultar Jürgen Moltmann, The Church in the Power of the Spirit,
New York, Harper and Row, 1977, pp. 261-78. Moltmann cita Fromm:
“A morte está suspensa, e é a vida que regula o dia de Sábado”. Cf.
Hans Walter Wolff, Anthropology of the Old Testament, Philadelphia,
Fortress Press, 1974, pp. 135-42, sobre as implicações sociais fundamentais
do dia.
109
c) Jesus estava disposto a comer em casa daqueles
que eram rejeitados (2,15-17), e isto foi visto como
uma ameaça séria à moral da sociedade. Aqueles re
jeitados eram justamente um resultado da organização
legal, determinando o que era admissível e não admis
sível, puro e impuro, certo e errado. Passar sobre estes
limites do certo e do errado significava que na distri
buição do perdão, o errado ter ia o mesmo direito que
o certo. Por conseguinte, quaisquer distinções significa
tivas eram destruídas.
d) Finalmente, as palavras de Jesus sobre o templo
(Mc 11,15-19; Jo 2,18-22) foram um anúncio verdadei
ramente sinistro, pois falou abertamente de sua destrui
ção. E ao fazê-lo, expressou o desejo dos inimigos da igre
ja e do estado. Mais ainda, em sua fala sobre o templo,
fez citações conhecidas de todos e extraídas da pregação
de Jeremias a respeito do mesmo assunto (Jr 7,11),
mobilizando, portanto, uma recordação dolorosa da crí
tica destruidora e, aliás, repetindo-a simplesmente. Ao
criticar o templo, Jesus atingiu o centro da doutrina da
predestinação, a qual pode ser esboçada na tradição de
Sião, num passado longínquo como o de Isaías. Ela as
sume a garantia da existência histórica daquele povo reu
nido em volta deste santuário específico. Desta forma,
Jesus relembra a tradição crítica de Jeremias, opondo-se
à promessa de realeza expressa em Isaías 6.
Estes fatos e, ao mesmo tempo, outras violações de
Jesus às convenções sociais formaram uma crítica incô
moda a respeito da “retidão da lei”. Naquele tempo, a
lei tinha se transformado num instrumento com que os
6 Há pouca dúvida de que, no sermão de Jeremias sobre o templo
(Jr 7), o próprio Jeremias tenha tido de atacar uma sofisticada teologia
do templo encorajada, em parte, por Isaías. A crítica feita às alegações
relacionadas com Jerusalém significavam, inevitavelmente, um conflito com
a consciência do rei. A respeito da régia dimensão da tradição de Jerusa
lém, consultar J. J. M. Roberts, “The Davidic Origin of the Zion Tra-
dition”, Journal of Biblical Literature 92 (1973): 329-44.
110
dirigentes da sociedade civil, e mais ainda da religiosa
controlavam eficientemente não só a moralidade mas tam
bém os valores econômico-políticos que acompanham a
moralidade. Esta crítica de Jesus à “lei” não deve ser re
jeitada como uma ofensa ao “legalismo” em um sentido
moralista, como se encontra, às vezes, numa interpreta
ção paulina reducionista. Pelo contrário, a crítica de Je
sus se dirige aos valores fundamentalmente sociais de
sua sociedade. Na prática, Jesus percebeu, como Marx
explicaria mais tarde, que a lei pode ser uma convenção
social com o fim de proteger a distribuição em vigor do
poder econômico e político 7. Jesus, conforme a tradição
de Jeremias, teve a coragem de articular o fim de uma
consciência que não só não cumpria o que prometia,
mas negava até a benevolência que pretendia oferecer.
Como sempre, é difícil determinar se, de fato, Jesus
causou a destruição do templo ou se apenas expressou,
de algum modo, o que estava para acontecer. Mas Jesus,
como os outros profetas, geralmente é apresentado como
se o fato de ele ter falado sobre a destruição correspon
desse ou se igualasse à mesma. Claro que numa tal con
cepção, assim seria a realidade.
De passagem, podemos observar que, tanto na des
crição do episódio dos vendilhões do templo como na
narrativa do nascimento, em Mateus, encontramos refe
rências à tradição de Jeremias. Além disso, na versão de
Mateus sobre o fato de Jesus ter feito uma refeição em
casa de pessoa vista como pecadora (Mt 2,10-13), como
também quando relata o que Jesus realizou num sábado
(Mt 12,5-6), o profeta Oséias (6,6) é relembrado. E is
to é importante porque a referência traz à memória o
profeta que mais angustiadamente falou sobre a des
truição.
7 A respeito da lei e das convenções sociais relacionadas com a fé
bíblica, consultar a crítica de José Miranda, Marx and the Bible, Ma-
ryknoll, N. Y., Orbis Books, 1974, esp. cap. 4.
111
3) A solidariedade de Jesus com os marginais le
va-o à compaixão. A compaixão constitui uma forma de
crítica radical, pois ela mostra que aquilo que magoa deve
ser levado a sério, não deve ser visto como uma condi
ção normal e natural mas como anormal e não aceitável
para a humanidade. No tempo de Jesus, como no antigo
império do faraó, a compaixão era uma virtude desco
nhecida e não permitida pelo contexto daquilo que era
considerado “legal”. Jamais os impérios foram consti
tuídos ou mantidos em bases da compaixão. As normas
da lei, ou, noutras palavras, os controles sociais, não se
acomodam às pessoas, pelo contrário, as pessoas têm de
se acomodar àquelas normas. Doutra forma, essas nor
mas entrariam em colapso e com elas toda a organização
do poder. De modo que a compaixão de Jesus é com
preendida não apenas como uma reação emocional pes
soal, mas como uma crítica pública com a qual ele, por
conta própria, ousa agir contra todo torpor do seu con
texto social. Os impérios mantêm-se pelo torpor. Os im
périos, em seu militarismo, supõem um torpor a respeito
dos custos humanos da guerra. As economias totalitárias
também supõem uma cegueira referente ao custo em ter
mos de pobreza e exploração. Governo e sociedade de
dominação vão muito longe com o fim de fazer com que
tal torpor permaneça intacto. Jesus, com sua compaixão,
penetra o torpor e dá o primeiro passo para tornar vi
sível a anormalidade daquilo que se tornara coisa comum.
Por isso, a compaixão que poderia ser vista simplesmen
te como uma generosa boa vontade é, de fato, uma ver
dadeira crítica ao sistema, às forças e às ideologias que
produzem a ferida. Jesus penetra na ferida e a assume
em si mesmo.
A palavra característica usada para significar com
paixão é splagchnoisomai, e significa deixar as próprias
entranhas serem tomadas pelo sentimento ou situação do
112
outro*. E Jesus, na verdade, incorpora em si mesmo a
ferida que o marginal experimenta, assumindo-a em sua
própria pessoa, em sua história pessoal. A ferida de que
falamos provém do fato de serem declarados não-per-
tencentes ao que é tido como normal, e Jesus liga-se com
eles justamente em situações consideradas anormais. Mais
concretamente, sua crítica, como uma ferida assumida, é
expressa nos doentes (Mt 14,14): “Assim que desem
barcou, viu uma grande multidão e, tomado de com
paixão, curou os seus doentes”. Aos famintos:
113
8 - A imaginação profética
cansada e abatida como ovelhas sem pastor (Mt
9,35-36).
114
( Lc 10,33)9. Em segundo lugar, na estória do filho pró
digo, é o pai que se compadece (Lc 15,20). Está claro,
nestas duas parábolas, a pessoa-chave de cada uma delas
personifica a consciência alternativa, a qual é uma crítica
à consciência dominante. Tanto o samaritano como o
pai do pródigo são uma composição de Jesus contra a
cultura dominante e por isso são uma ameaça séria à
mesma. O samaritano com seu modo de agir está conde
nando a forma dominante de desprezar o marginalizado.
Os que vão passando, naturalmente portadores da tra
dição dominante, são inativos, indiferentes, e por isso,
nada vêem. O samaritano apresenta um comportamento
diferente e substitui o antigo sistema, no qual o margi
nalizado simplesmente não ,tinha vez. A substituição da
indiferença pela compaixão, por outras palavras, o fim
de uma indiferença cínica e o começo da observação de
uma dor, são sinais de uma revolução social. De forma
semelhante, o pai que prontamente abraça o filho, que
não foi recebido, está condenando a “retidão da lei” pela
qual a sociedade é regida e pela qual os rejeitados sociais
são menosprezados para sempre. Assim as duas estórias,
quando consideradas como crítica destruidora e radical,
apresentam ambas a interiorização da pena e a trans
formação externa. A capacidade de sentir-se atingido com
a mágoa das pessoas marginalizadas significa um fim im
posto aos sistemas sociais que tinham anulado o sofri
mento do próximo com uma indiferença profunda e no
tável.
Na Igreja primitiva, Jesus é relembrado e apresen
tado como a personificação fiel de uma consciência alter
nativa. Com sua compaixão, ele assume a dor dos rejeita
dos pela cultura dominante e, como uma dor personi
ficada, ele tem autoridade para mostrar com sua própria
9 Em várias discussões sobre a parábola do Bom Samaritano é evi
dente tanto o valor como a falha na estruturação da crítica, cf. Semeia 2
(1974).
115
morte o fim da cultura dominante. Fica bem claro, que,
se há uma coisa que a cultura dominante não pode to
lerar ou cooptar, é a compaixão, a capacidade de solida
rizar-se com as vítimas da ordem presente. A ordem pre
sente e natural das coisas pode orientar a caridade e os
bons desejos, mas a solidariedade não resiste à dor e à
tristeza. Por isso as estruturas de poder e de competição
ficam estáticas diante daquele que assumiu os gemidos
dos feridos.
A dor de Jesus anuncia o fim do mundo social
dominante. A consciência imperial vive por sua facili
dade de silenciar os gemidos de dor e passar adiante
como se fossem coisa normal, como se ninguém estivesse
sofrendo e se não houvesse manifestação desse sofrimen
to. Se os gemidos tornam-se audíveis, se são ouvidos nas
ruas, nos mercados e nas cortes, então a consciência do
dominador está posta em perigo. É por isso que os ge
midos do povo no Egito (Ex 2,23-25;3,7) anunciaram a
grande novidade social. De maneira semelhante, Jesus
tinha o poder de expressar aquela mesma tristeza que
tinha sido emudecida e por isso a novidade apareceu e
apareceu exatamente quando a tristeza pôde ser expres
sa 10. O sofrimento tornando-se audível e visível produ
ziu a esperança, pois a expressão da dor é a porta da no
vidade. Concluindo, a história de Jesus é a história de
sua participação na dor e de sua expressão através de
suas palavras e gestos.
A crítica de Jesus, como incorporação da angústia,
está evidente em dois outros lugares, onde sua dor é in
confundível. Provavelmente devem ser considerados jun-
Ifl Esta posição pertence, naturalmente, ao núcleo da fé profética e
da teologia da libertação. Um pouco diferente, mas expressando a mesma
realidade, encontramos em Paul Elmem, “Death of an Elfking”, Christian
Century 94 (1977): 10-57, ao comentar a morte de Robert Lowell: “.. .se
gredo conhecido pelos poetas e pelos rouxinóis, a saber, que a dor pode
ser controlada quando sua expressão perfeita é encontrada”. Este segredo
é totalmente negado aos administradores do império.
116
tos. Em primeiro lugar, na narração da morte de Lázaro,
Jesus é apresentado como aquele que tem poder de curar
e de trazer à vida aqueles que estejam mortos. É a ênfase
principal da narração, mas esta passagem de João em 11,
44, está envolvida por duas outras. Primeiro, o poder de
Jesus está evidente no contexto de sua dor:
Quando Jesus a viu chorar e também os judeus que a
acompanhavam, comoveu-se interiormente ,e ficou con
turbado. E disse: “Onde o colocastes?” Responderam-
-lhe: “Senhor, vem e vê!” Jesus chorou (Jo 11,33-35).
Não é o Senhor majestático, imutável; pelo contrá
rio, é aquele que sente a paixão, que participa da an
gústia do irmão ou da irmã. O fato de Jesus chorar, de
comover-se interiormente e se perturbar forma um no
tável contraste com a cultura dominante. Os que preten
dem manter firme o controle social não têm esta força, e
menos ainda a apresentam assim. Mas nesta cena, Jesus
não está interessado no controle social, mas em destruir
o poder da morte e o faz, entregando-se à pena e à dor
naquela situação, a mesma pena e dor que a sociedade
dominante devia rejeitar.
Façamos uma digressão para comentar uma outra
história sobre um outro Lázaro, relatada por Lucas em
16,19-31. Lázaro nos é apresentado como contraste total
do homem rico. Entre outras coisas, o contraste enfatiza
a indiferença do rico para com o sofrimento de Lázaro:
Havia um homem rico, que se vestia de púrpura e
linho fino, e cada dia se banqueteava com requinte.
Um pobre, chamado Lázaro, jazia à sua porta, coberto
de úlceras. Desejava saciar-se do que caía da mesa do
rico (...) e até os cães iam lamber-lhe as úlceras (Lc
16,19-21).
Claro que o contraste abrange diversos níveis. Mas,
entre outras coisas, a narração sugere que o homem rico
117
está obcecado por causa de suas riquezas e que sua si
tuação social não tem futuro. Além daquilo, nada mais
haverá para ele. Contrastando com ele, o pobre Lázaro,
livre das riquezas e da situação social, está coberto de
dor e sofrimento, e Jesus diz que ele é o que possui o
futuro. O contraste, no contexto de nossa discussão, re
fere-se, por um lado àquele que está obcecado e cujo fu
turo é um pouco mais do presente, e por outro lado, ao
que está sofrendo e no entanto recebe promessas do Pai.
Na narração de João sobre a ressurreição de Lázaro,
notamos a profunda compaixão de Jesus participando
da dor dos outros. Notamos também sua ação poderosa
de restituir a vida, uma ação que parece comandada pela
capacidade de participar do sofrimento alheio. O outro
fator que devemos observar, é que o poder de inverter as
coisas desperta a hostilidade aguda e imediata dos deten
tores da ordem antiga: “Que faremos? Este homem rea
liza muitos milagres (...) Os chefes dos sacerdotes e
os fariseus, porém, já tinham ordenado que quem sou
besse onde Jesus estava, o indicasse, para que o prendes
sem” (Jo 11,47-57). Jesus apresenta sinais, promete
alternativas e sugere novidades. Suas promessas repre
sentam uma ameaça muito bem percebida pela ordem
antiga. Jesus traz novidade para a situação, mas apenas
no que se refere ao sofrimento. O caminho da mudança
não é aprendido através da psicologia, mas, como o de
monstra a narração integralmente, pela aceitação da an
gústia e do sofrimento. A ordem antiga, que não aceita a
novidade, continua impedindo-a, pela negação do sofri
mento. Onde o sofrimento e a morte da ordem antiga
não é enfrentado, nem assumido e expresso, a ordem
antiga se prolonga um pouco mais, apesar de estar morta.
A outra situação que provocou as lágrimas de Jesus
e que deve ser relacionada com o sentimento e o poder
de Jesus é a visão sobre Jerusalém: “E, como estivesse
perto, viu a cidade e chorou sobre ela, dizendo: ‘Ah! se
118
neste dia também tu conhecesses a mensagem de paz!
Agora, porém, isso está escondido a teus olhos’ ” (Lc
19,41-42). Aqui ele chora sobre Jerusalém, a cidade
querida de Deus e local de todo um futuro. Suas lágri
mas sobre Jerusalém como sobre Lázaro são a partici
pação numa angústia de morte. A diferença está no fato
de que todos sabiam que Lázaro estava morto e Jesus
ressuscitou-o para a vida. A tristeza fora pela morte de
Lázaro, ao passo que, com referência a Jerusalém, todos
sabiam e viam que estava de pé e, no entanto, ele chorou
pela morte da cidade. A tristeza por causa da cidade tem
algo de irônico, porque Jerusalém é a principal respon
sável pela cegueira e é a primeira a negar tal tristeza.
Com efeito, os senhores de Jerusalém querem, de modo
especial, evitar a dor do acontecimento e sobretudo não
querem reconhecer a chegada do fim. A mágoa de Jesus
como a de Jeremias (e notemos que Lucas em 19,3 faz
eco a Jr 6,6) é porque este centro de tantas promessas
está agora no fim e arrasado. E é por isso que as palavras
de Jesus são palavras de destruição. Na descrição corres
pondente de Mateus, a expressão da tristeza sobre Jeru
salém é precedida de uma série de exclamações de angús
tia (Mt 23,13-33), que tem a mesma finalidade de anun
ciar a dor pela morte 11. A compaixão de Jesus tem dois
aspectos. Por um lado, é um ataque frontal à cultura do
minante. Ele se aflige pela morte do velho mundo e da
antiga cidade, mesmo quando muitos ainda não sabiam
119
que ela estava morta. Sua crítica não é ditada pelo ódio,
mas pelo sentimento de amor, porque ninguém mais do
que ele ama aquela cidade. No entretanto, ele percebia
muito bem o conflito mortal entre sua própria missão e
a cultura dominante em Jerusalém; de há muito ele sabia
que acabaria morrendo nas mãos de Jerusalém.
A compaixão de Jesus não é apenas crítica do que é
mortal, pois sua crítica e sua solidariedade apresentam
evidências do poder de transformar. De modo que, o
assumir a morte de que morria seu povo resulta na res
surreição de Lázaro, na cura dos doentes, na alimentação
das multidões famintas, no cuidado para com um homem
ferido, na recepção do filho pródigo e, finalmente, em
boas novas para os que estavam perturbados e sem ajuda.
Portanto, a crítica de Jesus apresenta e oferece a possi
bilidade de um começo de alternativa.
(4) A crucifixão de Jesus é a crítica decisiva feita
por ele à consciência régia. E não deve ser considerada
à maneira liberal, como o sacrifício de um homem nobre,
nem facilmente deveriamos explicar o fato por uma teo
ria de culto ou de expiação sacerdotal. Pelo contrário,
deveriamos ver na crucifixão de Jesus o último ato da crí
tica profética pelo qual Jesus anuncia o fim de um mundo
de morte (o mesmo anúncio que já encontramos em Jere
mias) e assume a morte em sua própria pessoa. Por isso
é que dizemos que a crítica final consiste em Deus mes
mo assumir a morte que seu povo merecia 12. A crítica
consiste, não em opor-se mas em unir-se. E esta crítica
final não significa uma indignação triunfante, mas uma
paixão e compaixão que completam e irresistivelmente
destroem o mundo da competência e da competição. O
12 A cruz é, portanto, um anúncio de que Deus abandonou toda a
teologia do triunfo e da glória. Examinar os argumentos de Douglas Hall
em Libhten Our Darkness, Philadelphia, Westminster Press, 1976, e de
Jürgen Moltmann em The Crucified God, New York, Harper and Row,
1974, esp. pp. 145-53. Encontramos na cruz a expressão plena da insis
tência dos profetas contra a consciência do rei.
120
contraste é completo e total pois este homem apaixonado
está colocado no centro da Jerusalém obcecada. E unica
mente a paixão pode sensibilizar aquela cegueira.
a) Nos “prenúncios da paixão” em Marcos, já per
cebemos que a crucifixão representa a crítica radical de
Jesus:
121
9 - A imaginação profética
vamos fazer uma pausa para procurar importantes con-
tinuidades entre os dois. Moisés também destruiu o im
pério e declarou que aquilo não era poder (lembremos
Ex 8,18), desrespeitando as exigências da situação im
perial e confiando plenamente no Senhor da justiça e da
liberdade. De forma semelhante, a autoridade dominante
é destruída pela invocação de um Deus ao qual, publi
camente, não se dava crédito.
A reação dos discípulos deixa bem claro que as pa
lavras de Jesus, referentes à paixão, tenham constituído a
crítica final à consciência régia. Em primeiro lugar, em
Mc 8,32-33, Pedro, como parte da comunidade, rejeita
as palavras de Jesus como sendo demasiado radicais e é
logo repreendido asperamente. Em segundo lugar (9,
32), os mesmos discípulos não as compreendem, ficam
atemorizados e questionam. Finalmente (10,35-37), eles
reagem indicando que não entendiam nada, em razão da
ingênua discussão surgida entre eles sobre o poder e au
toridade deles mesmos. A crítica de Jesus é muito forte,
não apenas com relação às autoridades imperiais, mas
com relação a seus próprios seguidores. Nenhum de nós
estaria preparado para uma crítica tão severa.
b) As palavras de Jesus na cruz, como foram pre
servadas nas diversas tradições, são a expressão de uma
consciência alternativa. O apelo inicial de perdão para
seus inimigos é um ato de crítica (Lc 23,34), pois de
nuncia a loucura da cultura dominante. Ele apresenta um
apelo favorável à temporária insanidade mental de me
tade daquele mundo que o condenara. A esta altura, fa
çamos referência à perspicaz interpretação de Paulo
Lehman ”, segundo a qual, no julgamento de Jesus dian
te de Pilatos, na realidade, o réu é Pila tos e não Jesus.
O grito de Jesus no alto da cruz, pode ser considerado
13 Paul Lehmann, The Transfiguration of Politics, New York, Harper
and Row, 1975, pp. 48-70.
122
como uma decisão (por parte do Juiz) de que o acusado
(a situação antiga) não deve ser condenado porque é
insano.
Em segundo lugar, seu grito de desespero (Mc 15,
34) é um anúncio de abandono. Todas as conhecidas
formas de comunicação perderam o sentido e surge ago
ra uma perigosa situação de fé. E Jesus experimenta o
resultado da crítica. As certezas antigas, a consciência do
significado das coisas, tudo desapareceu 14.
Em terceiro lugar, a crítica final termina em sub
missão (Lc 23,46), a última coisa possível num mundo
de autoridade e de controle. E neste mesmo mundo de
controle, Jesus apresenta uma nova forma de fidelidade,
que subverte completamente as formas dominantes.
Finalmente, sua promessa de paraíso (Lc 23,43),
são palavras que negam a legitimidade daquele mundo
que o matava. E ele se pronuncia a partir de um sistema
de valores diferentes. Aquele mesmo que foi chamado de
criminoso é bem-vindo no paraíso. Os condenados são
bem-vindos. A nova maneira de Jesus agir e de falar
anuncia que agora entra em vigor uma forma diferente
de julgar as coisas. É a confirmação final de que a lei
antiga está anulada e não tem mais sentido.
Poderiamos não dar muita atenção a estas palavras
na cruz, se isoladas, porque cada uma tem seu desenvol
vimento complexo na história da tradição, a qual, indu
bitavelmente, é partú da história da liturgia. No entre
tanto, tomadas em conjunto, elas formam uma declara
ção que refuta completamente as pretensões dos que es
tão no poder. Estas declarações (uma afirmação de insa
nidade mental, um grito de abandono, um gemido de
submissão e a declaração de uma nova forma de pre
14 O argumento do cap. 3 de Lifton nos complementa aqui. O colapso
total está relacionado não com os artigos da lei visível, imperial, mas
é a ruína do próprio sistema de símbolos. A -separação de um sistema
de símbolos nos deixa abandonados e é o ponto mais severo desta crítica.
123
miar) são a refutação de um mundo que agora chegou
ao fim. A ordem antiga pode ser caracterizada como
loucura mascarada de autoridade, como falsa segurança
aparentando bem-estar, tentativa desesperada de man
dar sem se submeter, terrível sistema de prêmios e cas
tigos. Por isso, cada palavra de Jesus é uma contestação
que põe em dúvida toda a ordem antiga. A narração da
paixão de Jesus vem oferecer confirmação à crítica pro
fética. Toda ela sugere, de uma forma sempre renovada,
a penitência da Quaresma.
c) Esta tradição teológica de vida em forma de
morte e de força em forma de sofrimento é algo mais
do que a cultura dominante podia receber ou aceitar.
Esta visão alternativa é muito clara na teologia da cruz,
tanto na narração de Marcos como no pensamento de
Paulo. Poderiamos citar diversos textos, mas queremos
relembrar apenas um antigo hino utilizado por Paulo:
124
Esta tradição de crítica total refere-se à auto-anu-
lação de Jesus, ao domínio pela perda de domínio, à
plenitude de vida que advem pela auto-anulação. Esta
auto-anulação não pode ser comparada com a autonega-
ção a que se chega pela meditação. Trata-se de uma idéia
política, isto é, de uma vontade que realmente quer en
tregar o poder. É aquilo mesmo que os reis não podem
fazer e por isso continuam reis. Por isso.a autocom-
preensão do rei é totalmente refutada. Aquele que vo
luntariamente se anulou, que entregou o poder por obe
diência, este é o único verdadeiramente poderoso, aque
le que pode transmitir humanidade, justamente onde mais
tem autoridade de fazê-lo.
(5) A crucifixão, portanto, não é um acontecimen
to estranho na história da fé, apesar de ser o fato deci
sivo. Antes, é a expressão completa da destruição pratica
da e relatada na tradição profética, desde o confronto de
Moisés com o faraó. Como na história de Moisés, de mo
do semelhante, a pregação e a morte de Jesus contrariam
a política de opressão com uma política de justiça e com
paixão. Como no caso de Moisés, semelhantemente a
pregação e a morte de Jesus se opunham à economia de
afluência e se orientavam para uma economia de parti
cipação humana. Como no caso de Moisés, também a
pregação e a morte de Jesus contradiziam a religião do
Deus preso com a liberdade de Deus em dar vida a
quem ele queria, mesmo que fosse frente à morte.
A cruz é o derradeiro símbolo da crítica profética,
porque significa o fim daquela lei que trazia a morte a
todos. A crucifixão unifica a estranha liberdade de Deus,
sua justiça e seu poder. Esta liberdade (leiamos religião
da liberdade de Deus), esta justiça (leiamos economia
de participação) e este poder (leiamos política de justi
ça), tornam a era antiga impotente e levam-na à morte.
Sem a cruz, provavelmente a imaginação profética seria
uma voz tão estridente e destrutiva como aquela mesma
125
que ela criticava. A cruz é a certeza de que a eficiente crí
tica profética é feita não por alguém de fora, mas por
um que abraçou o sofrimento, que passou pela morte e
que sabe quanto padece quem é criticado.
A crítica profética objetiva criar uma consciência
alternativa com seu discurso e seu campo de percepção.
Esta consciência alternativa, se não for superficial e ex
terior, está relacionada com a cruz. Douglas Hall mos
trou como devemos pensar a este respeito, sugerindo que
a crítica criativa deve ser eticamente pertinente e esta
belecida em nossa própria aceitação da negatividade 15.
Este tipo de crítica profética não oferece alternativas
superficiais, não afeta certezas nem propõe uma política
social salvadora. Pois sabe muito bem que somente aque
les que choram podem ser confortados e, por isso, em
primeiro lugar procura saber como lamentar séria e sin-
ceramente um mundo que está morrendo. Jesus com
preendeu e assumiu a angústia que Jeremias sentiu tão
dolorosamente.
126
6
A ENERGIZAÇÃO
E A INSTITUIÇÃO
EM JESUS DE NAZARÉ
127
também o profeta do exílio (o Segundo Isaías) conse
guiu superar aquele desespero pela pregação a todos da
esperança. Se Jeremias apresentou o sofrimento como
ponto mais alto de sua crítica, o Segundo Isaías levou
Israel a sentir um novo começo histórico pela ação de
Deus com sua liberdade gratuita e soberana. Se quere
mos compreender a energia comunicada pelos profetas,
devemos compreender também que sua palavra caracte
rística é a esperança e não o otimismo *. A finalidade
desta palavra é permitir que a comunidade se entregue
a um entusiasmo não frustrado pelo desespero da mesma
comunidade, para a qual tudo já tinha desmoronado.
Na tradição profética, quando falamos da manifes
tação final de força, temos de nos voltar para Jesus de
Nazaré. Já vimos que, com suas ações e palavras e espe
cialmente com sua crucifixão, ele se lançou à destruição
da consciência régia e levou seus seguidores a enfrentar
o sofrimento daquela destruição. Em oposição a isto, na
realidade, o centro de trabalho de Jesus, não foi a des
truição, mas a inauguração de algo novo. Suas idéias e
ações opunham-se a todos os dados visíveis, à dúvida e
à resistência dos mesmos para os quais ele tinha vindo.
Este último ato de coragem deu às pessoas uma perspec
tiva de futuro, quando perceberam que aquele presente
horrível era ao mesmo tempo um fim e a única forma
possível de existência. Esta perspectiva nova, na qual nin
guém acreditava, nascera de um entusiasmo vacilante,
pois se percebia que não derivava, mas extrapolava e
estava muito além da compreensão (F1 4,7) e do poder
humanos. E esta deve ser a função de todo aquele que se
propõe a ser profeta, apresentar a novidade como não
sendo derivada, mas como se fosse uma extrapolação da
1 Sobre a diferença entre esperança e processo ou otimismo, consultar
Douglas Hall em Lighten Our Darkness, Philadelphia, Westminster Press,
1976, cap. 1 e 3; Jürgen Moltmann em Theology of Hope, New York,
Harper and Row, 1967, cap. 2.
123
lógica humana. Esta deve ser a reivindicação de todo
aquele que quer ser profeta, afirmar que a novidade é
possível somente porque Deus é Deus e fiel a suas pro
messas. Por isso, o propósito deste capítulo é simples
mente demonstrar que Jesus de Nazaré é a plenitude e a
quinta essência da tradição profética. Ele expôs publi
camente a novidade.proposta por Deus. A resposta a este
trabalho e à pessoa de Jesus foi o entusiasmo, pois é
admirável que na história não encontremos nada que o
tenha ultrapassado. Comunicou uma força que foi única,
para transmitir aquela novidade.
(1) O nascimento de Jesus é apresentado, especial
mente por Lucas como um impulso decisivo para a nova
realidade social. A Igreja primitiva deve ter lutado para
encontrar a forma de transmitir a história de Jesus. O
começo tinha de ser certo, porque ali havia algo tão novo
que dificilmente podia ser expresso e esta expressão de
via corresponder à realidade da novidade. O nascimento
é apresentado pelo cântico dos anjos contra os governan
tes do momento. Estes governantes tinham decretado um
censo acompanhado por todas as formas de controle, mas
um censo em si não transmite força ou novidade2. Nin
guém contava nem podia contar com a força e novidade
vindas de Deus. A ação severa e firme do censo foi
interrompida, no entanto, pelo inesperado cântico dos
anjos, os quais entoaram um cântico novo a um novo rei.
Não havia forma alguma de introduzir esta narrativa a
2 Em Israel, o censo é visto como uma forma do aparato real arre
gimentar o povo contra a liberdade e a justiça. É o que é lembrado em
2Sm 24. Provavelmente por isso mesmo, o autor das Crônicas (lCr 21)
atribui este ato político a Satanás. E, de fato, há algo de satânico
nesta forma de exercer o domínio. Frank M. Cross, em Canaanite Myth
and Hebrew Epic, Cambridge, Harvard University Press, 1973, pp. 227-40,
relaciona o censo com o desenvolvimento da ideologia régia. Assim, não
é difícil compreender porque, mais tarde, o censo político será visto como
diabólico. E daí também a compreensão de que os interesses sócioeconô-
micos sejam diabólicos.
129
não ser pondo a canção nos lábios dos anjos, que eram
os servos do trono de Deus. A própria lírica da lingua
gem dá idéia de um conhecimento da insensível vulgari
dade do rei. Começa com um cântico que se opõe a um
decreto. Toda a história antiga é feita por decretos, mas
a nova se introduz de outra forma. O nascimento de um
novo rei determina nos céus e na terra um novo começo,
mas de forma muito diferente. A versão de Lucas está
de acordo com a do Segundo Isaías, a saber, uma fórmula
de entronização e um novo cântico para um novo rei.
O nascimento do novo rei, do qual Roma não soube
com antecipação e ao qual Herodes não pôde impedir,
é o começo de uma nova história, que leva em si o fim
de toda a história régia antiga. É notável que o nasci
mento deste novo rei seja marcado pelo perdão de anti
gas dívidas, uma anistia de antigos crimes e pelo começo
de um novo movimento de liberdade (cf. Lc 4,18-19).
O começo lírico foi recebido somente por aqueles
que eram dignos de recebê-lo, os pastores, que eram
justamente os representantes da marginalização social.
Não encontramos sinal algum de que aquele cântico te
nha sido ouvido pelos diretores do censo. Eles continua
ram. Continuaram contando, na suposição de que todos
os números vêm em seqüência e que portanto chegam a
uma soma final. Este começo não está entre aqueles que
controlavam o sistema antigo, pelo contrário emerge en
tre as vítimas do mesmo. Começa com uma mulher es
téril (Isabel), com uma virgem pura e cheia de fé (Ma
ria ), com um homem idoso e mudo (Zacarias), numa
palavra, com os rejeitados da sociedade (os pastores).
É uma passagem onde surge a intuição, porque todas as
pessoas citadas, são pessoas que conheceram a intensi
dade do sofrimento. Assim, a intuição surge entre eles e
não no meio daqueles que ainda não tinham experimen
tado a morte da idade antiga.
A novidade anunciada e vista não se ajusta às con
130
dições sociais antigas porque são estas justamente que
agora estão sendo destruídas. E por isso não é fácil clas
sificar o acontecimento como costumam fazer os reis.
Não será imobilizado pela racionalidade do rei, antigo ou
contemporâneo. Pelo contrário, há um preocupar-se, um
admirar-se e um intuir. Os pastores despertam para a
glorificação e o louvor de Deus (Lc 2,20), Maria fica
cuidadosamente meditando sobre aqueles acontecimen
tos (v. 19) e os outros ficam maravilhados com as pa
lavras dos pastores (v. 18). O louvor, o meditar e o
maravilhar-se correspondem ao fato, porque não era es
perado nem podia ser compreendido nos esquemas con
vencionais. Há pois aqui uma crítica porque implicita
mente, os senhores da ordem antiga estão destruídos.
Claramente eles já não governam mais e o impulso agora
é em direção ao futuro. Começou uma ordem nova e no
va sobretudo para os que até ali tinham sido vítimas.
Todos que gemeram sob o jugo dos antigos reis, agora
são os convidados.
O mesmo poder dinamizador do nascimento de Je
sus encontra-se nos poemas e nos cânticos que Lucas nos
apresenta a respeito do mesmo nascimento. Os cânticos
referem-se a promessas que foram guardadas mesmo quan
do tudo parecia ter fracassado. É isto que distingue muito
bem a força do Evangelho. Promessas aparentemente fra
cassadas são cumpridas justamente quando pensávamos
que já tivessem sido abandonadas. O cântico de Maria
(1,46-55) é justamente a respeito da inimaginável mu
dança do homem quando tudo parecia impossível (v.
37). O cântico com que Zacarias começa a falar, é um
cântico de novas possibilidades tardias, mas não demasia
do: possibilidades de salvação, de perdão, de misericór
dia, de luz e paz. O sistema antigo nada oferecera, a não
ser escravidão, culpa, condenação, escuridão e hostili
dade e ninguém podia perceber a possibilidade de mu
dança. O nascimento de Jesus não será explicado mas
131
será cantado e o cântico chegará aos ouvidos reais. O cân
tico desprenderá uma energia que o rei não poderá pro
duzir e menos ainda impedir. A transformação será in
confundível. Línguas que há tempo estavam mudas, sem
esperança, puderam falar outra vez3. A novidade ope
rada por Jesus não serã explicada, porque explicá-la se
ria colocá-la entre as antigas classificações do rei. E de
qualquer forma, a esperança dinamizadora vem sobretu
do para aqueles que não foram preparados para explicar
ou compreender tudo. A esperança vem para aqueles
que se decidem pela intuição daquelas coisas que eles
não podem nem explicar nem compreender.
(2) O ministério de Jesus é, naturalmente, a força
que orienta os inícios radicais, exatamente quando nada
parecia possível. Tudo depende do ministério e a narra
ção se refere ao ministério. O nascimento é apenas uma
esperança, mas o ministério se empenha seriamente em
levar as possibilidades de esperança ao mundo do deses
pero. Jesus se apresenta e desperta confiança como aque
le que, unicamente, era diferente. Suas palavras e ações
ferem,, mas aqueles que se prepararam e o receberam,
que não se incomodaram com as graças que ele concedia
e nem com a redefinição da realidade, todos esses não se
sentiram ofendidos. A ofensa não era contra eles, mas
contra a antiga ordem, cujo desaparecimento de há muito
tempo eles tinham percebido e afirmado.
O que as pessoas notaram é que a vida se modi
ficara estranha e inexplicavelmente. A modificação não
acontecia por si, porque os meios de que Jesus se servia,
eram uma violação da ordem como os resultados obtidos
eram uma violação da racionalidade. Tanto os meios co
mo os fins foram interpretados como escândalos. A es
tranha novidade sobreveio de uma forma que nem espe
132
rou pela sanção do rei nem aconteceu como acontecem
as coisas da área administrativa.
Lucas, de modo especial, soube que os fatos reali
zados por Jesus tiveram lugar entre as vítimas margina
lizadas da sociedade. Marcos foi mais sensível ao fato
de que a dureza do coração faz o trabalho de Jesus parar
e que, onde não existia fé, ele não operava (Mc 6,5-6).
Era possível resistir à nova força, mas havia muitos que
estavam livres para abraçá-la e não necessitavam de re
sistir à mesma,. Todo o movimento despertado por Jesus
é sintetizado numa admirável simplicidade:
Os cegos recuperam a vista, os coxos andam, os le
prosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos res
suscitam e aos pobres é anunciado o evangelho (Lc
7,22).
A seguir a resposta dos que valorizaram a ordem
antiga e opuseram resistência ao novo:
O chefe dos sacerdotes e os escribas procuravam fa-
zê-lo perecer bem como os chefes do povo (Lc 19,47).
Ao se retirarem, os fariseus com os herodianos imedia
tamente conspiraram contra ele sobre como o matariam
(Mc 3,6).
E os escribas que haviam descido de Jerusalém diziam:
“Beelzebu está nele”, e também: “É pelo príncipe dos
demônios que ele expulsa os demônios” (Mc 3,22).
13?
Então ficaram com muito medo e diziam uns aos ou
tros: “Quem é este a quem até o vento e o mar obe
decem?” (Mc 4,41).
E numerosos ouvintes ficavam maravilhados, dizendo:
“De onde lhe vem tudo isto? E que sabedoria é esta
que lhe foi dada? E como se fazem tais milagres por
suas mãos?” (Mc 6,2).
E ficavam atônitos:
134
Que resumo curioso, este! Acostumamo-nos à ativi
dade de Jesus entre os cegos, os aleijados, os surdos,
apesar de esta atividade não ser conforme com nosso
mundo orgulhoso. Sobretudo, vivemos num meio no
qual os cegos não recebem a visão, os aleijados não ca
minham, nem os surdos ouvem. Não vivemos naquele
tempo e as histórias de Jesus se tornaram tão antigas e
naturais para nós, que perderam o encanto. Contudo,
junto com estas coisas comuns (comuns para Jesus) há
a lepra e ó na cura do leproso que Jesus contradiz as
normas da sociedade, no referente à pureza e impureza
legais. E ao provocar a reflexão sobre a pureza e im
pureza legais, Jesus estava questionando todas as distin
ções morais, nas quais a. sociedade estava embasada.
Uma vez contestadas as distinções morais, todas as san
ções para atenuar as injustiças econômicas e políticas per
dem o sentido. A relação é mais surpreendente, porque
juntamente com estas curas “convencionais”, encontra
mos a maior e mais inconcebível energia de qualquer
pessoa humana viva. Nem Lucas, nem a Igreja primitiva,
nem nós mesmos entendemos o que isto significa. Em
nada ajudará raciocinar, defender, explicar ou calcular,
porque ficamos sempre no reino do lirismo. No entanto,
somos convidados a louvar, porque somente o louvor
pode falar adequadamente sobre a novidade que se en
contra em Jesus. O estranho fato de a vida surgir da
morte, deveria ter sido a última palavra, mas a síntese
de tudo está na realidade diária, porque o último ato é
a reabilitação econômica4. Os pobres têm suas dívidas
canceladas e suas propriedades restauradas. O último ato
messiânico é o fim do confisco do rei. Este último e
4 Ao comentar as bem-aventuranças, José Miranda em Marx and the
Bible, Maryknoll, N. Y., Orbis Books, 1974, p. 217, faz esta observação
sobre a dimensão socioeconômica das mesmas: “Fico sem saber se há mais
fé e esperança em crer no ‘Deus que faz viver os mortos’ (Rm 4,17) ou,
como Lucas, crer no Deus que ‘cumulou de bens a famintos e despediu
ricos de mãos vazias’ ”! (Lc 1,53).
135
perigoso ato político é mais radical do que o fato de a
vida surgir da morte. Por todos os aspectos imaginários,
Jesus está restaurando as vítimas da consciência régia.
Se os administradores da pureza e da impureza, os ins
petores das infrações legais e os senhores da morte têm
suas sentenças anuladas, então eles não estão mais no
poder. Claro que esta doxologia contém uma crítica que
se encontra em Mc 7,23. As ações de Jesus são um es
cândalo, porque invadem a propriedade privada, ofen
dem a razão e a ordem pública estabelecida.
Mas a narrativa passa tão rapidamente quanto pos
sível da crítica para o vigor. Não pretende demorar-se
com aqueles que não enfrentam a novidade e não se
preocupam muito com o que é antigo e está acabado.
Ela volta-se para o futuro. É um futuro orientado para
onde ninguém jamais pensou, um dinamismo que segue a
tradição de Moisés e do Segundo Isaías, ainda que mais
radical em sua concretude histórica:
136
sentimento pelo que ele diz e faz. De qualquer forma,
seu ministério desperta um entusiasmo e um dinamismo
que tinham desaparecido num passado desamparado. Tan
to os seguidores como os inimigos de Jesus experimen
tavam sentimentos semelhantes. Aproximava-se uma si
tuação nova, não planejada, a qual levava a pensar num
futuro totalmente diferente daquele que a dominação
régia pretendia.
137
10 - A imaginação profética
justaposição daqueles prenúncios de infortúnio e ao mes
mo tempo de promessas de bênçãos é adequada. Os pre
núncios de infelicidade constituem a crítica mais radical,
pois são prenúncios e antecipações de morte. As exclama
ções citadas por Lucas e pronunciadas contra os ricos (v.
24), os saciados (v. 25), os que riem (v. 25), os que
gozam da aprovação social de todos (v. 26) significam
que a sentença de morte está pendente sobre aqueles
que vivem saciados e confortavelmente nesta vida, sem
tomar consciência ou abrir o espírito para um novo fu
turo que advirá. Em nítido contraste, as bênçãos são
palavras de uma energia nova, pois prometem um bem-
-estar futuro aos desesperados. No mundo efêmero da
riqueza, da saciedade, do riso estulto, os que vivem na
pobreza, na fome e na tristeza são abandonados. São
impessoais e condenados a não ter história. Não possuem
existência pública e por isso o bem-estar público não os
atinge. Contudo, as bem-aventuranças abrem novas pos
sibilidades. Por isso, a palavra de Jesus, como a de toda
a tradição profética, parte do infortúnio para a bem-aven-
turança, da crítica para a força no agir. A comunidade
alternativa a ser formada de pobres, de famintos e de
aflitos é convidada a desprender-se do modelo de vida in
feliz e deixar-se atrair por outro tipo de vida, a abraçar o
mundo das bem-aventuranças.
A esperança que Jesus anuncia é séria e difícil.
Apresenta um contraste violento com a esperança fácil e
livre de sofrimento do modelo da consciência da corte.
A esperança é fácil e mesmo fútil para aqueles que vivem
entre as riquezas, na saciedade, no riso, mas é difícil
para aqueles aos quais as riquezas foram negadas, aos
quais a saciedade foi impedida e aos que não têm motivo
para o riso. A singularidade desta dinâmica dos profetas
está no fato de ela ser dirigida justamente aos conside
rados como não-pessoas e portanto, condenados a não
terem história. O que oferecemos aqui não é uma refle
138
xão moral geral, mas concreta; a um grupo específico,
com uma justificação direta de uma forma alternativa de
vida. Por isso é que, segundo Lucas, a pregação de Jesus
é feita “erguendo, então, os olhos para seus discípulos”
(Lc 6,20). Os discípulos são exatamente os primeiros
que se desprendem da antiga ordem, já criticada pela
falta de dinamismo. Seus discípulos são aqueles que re
negaram riquezas, evitaram a saciedade, não viram sen
tido no riso fácil, são aqueles que foram capazes de des
prender-se do modelo de vida das maldições que levam
à morte, que puseram fim ao deslumbramento pela or
dem antiga e que agora acreditam nas palavras de Jesus,
que, para eles abrem perspectivas futuras, que jamais se
riam oferecidas pela consciência da corte.
Estas três afirmações das bem-aventuranças consti
tuem uma relação mais longa de Mateus e expressam
com clareza a repetição da mesma crítica e com a mesma
energia. A ameaça de morte é feita àqueles que têm
riquezas, as quais são reflexo do mundò do faraó e de
Salomão, o que quer dizer que se utilizam dos bens de
seus irmãos e irmãs. Esta forma de exploração e de con-
fiscação conduz à morte. É uma crítica profética já anti
ga, mas sempre correspondida por notáveis acontecimen
tos. O futuro prometido por Deus é daqueles que, não
apenas resistiram às práticas da exploração, mas foram
vítimas das mesmas. Não pertencerá aos que viveram na
saciedade, mas aos que dela foram violentamente priva
dos. Pertencerá aos que experimentaram o sofrimento.
Será negado aos que foram cínicos, duros, se auto-iludi-
ram a ponto de alegrarem-se com a situação presente e
são incapazes de sentir angústia pela ruína para a qual
se dirige a comunidade da corte.
O ensinamento de Jesus nestas palavras duras cons
titui dois pontos centrais da tradição profética. O pri
meiro é que a palavra é dirigida e recebida por umn
comunidade minoritária, formada por um grupo marginu-
139
lizado. A crítica profética dirige-se à comunidade domi
nante, mas não será ouvida (Is 6,9-10). A palavra pro
fética de coragem jamais é dirigida à comunidade domi
nante, mas apenas àqueles aos quais não se reconhece
a falsa coragem e a força da consciência régia. O segundo,
que é uma palavra profética de promessa, refere-se a uma
volta radical, o rompimento com a velha racionalidade,
uma verdadeira descontinuidade entre o que foi e o que
será. Por isso, a doutrina de Jesus supunha um contraste
entre aquilo a que nós nos apegamos e o futuro pelo
qual aspiramos. O ministério de Jesus, como o do Se
gundo Isaías, acontece no limite entre o que, por um
lado, prende e, por outro, liberta. Se apenas aquilo que
prende for positivo, então as palavras serão somente crí
ticas, mas se houver libertação, então será provável que
as palavras transmitam força. As obras maravilhosas de
Jesus — como dar alimento à multidão, curar doentes,
expulsar demônios, perdoar pecados — foram realiza
das não em favor dos que estavam presos à ordem antiga,
mas daqueles que ansiavam pela libertação, porque a lei
antiga os iludira ou os oprimira.
As bem-aventuranças foram proferidas habilidosa-
mente, com a finalidade de chamar a atenção para os
contrastes. As maldições descrevem a consciência régia e
numa situação em que há, sobretudo, a força do medo.
Mas aqueles que romperam com aquela consciência, aque
les cujas vidas se orientaram contra aqueles valores e que
sabem que a comunidade régia é incapaz de cumprir o
que promete, são esses que preparam um novo futuro.
Para estes, uma palavra de Deus sem restrições. A força
desta palavra de bênção vem do fato de Deus possuir
futuros alternativos, de ele ser livre para concedê-los e
de os mesmos não serem, nem derivados e menos de
terminados pelo presente. Assim, o ensinamento de Jesus
é fiel ao trabalho de Moisés que fez nascer uma comu
nidade cuja origem não estava em nenhuma outra. O en
140
sinamento de Jesus reflete a alegria do Segundo Isaías
que despertou uma comunidade, que não se originava da
realidade babilônica. Como o Segundo Isaías, Jesus pode
organizar um futuro que é completamente diferente de
um presente insuportável. Mas voltemos a lembrar que o
referido futuro é energizador somente para aqueles para
os quais o presente já se tornou insuportável. Para estas
pessoas e para uma comunidade assim constituída, o so
frimento torna-se uma promessa, a reprovação uma ener
gia e a condenação uma forma de esperança. Os que
acreditam no futuro preparado por Deus são capazes de
entoar cânticos, de dançar, de realizar curas e de perdoar
pecados. Todas estas ações, a cegueira não as pode im
pedir e são o prêmio dos fiéis àquele futuro.
As pessoas que recebem a graça de Jesus experi-
mentam-na como força. Até ali eles tinham levado vidas
irrelevantes, pois sabiam que os reivindicadores do título
de rei, ou não tinham autoridade para isso ou eram in
capazes de comunicá-la a qualquer um. Pelo contrário,
a sensível solidariedade de Jesus com os pobres, os con
siderados inúteis e os sofredores, era vista como uma
autenticidade e uma força que jamais tinham visto. Viam-
-no ser radicalmente desinteressado e por isso profunda
mente favorável a nós. Era esta exatamente a lição que
Moisés dava a Israel sobre Iahweh. Completamente di
ferente do faraó e de seus deuses, Iahweh era desinteres
sado e por isso sua interferência tem força e autoridade.
A autoridade de Jesus, o poder de estranhamente trans
formar as situações, provinha exatamente de sua pobreza,
da fome, e de seu pesar pelo sofriménto de seu povo.
Sua pobreza podia tornar muitos ricos (2Cor 8,9). Sua
fome tinha poder de satisfazer outros. Sua capacidade de
sentir os sofrimentos dos outros tinha a força de levar
alegria e plenitude a outros. Em sua pessoa, a qual, aos
olhos dos falsos reis, não era uma pessoa, ele possuía
o poder de dar um futuro a seus seguidores.
141
(4) Esta forma de pensar sobre a força soberana
de sua compaixão gratuita, nos leva diretamente à res
surreição de Jesus, que é o último fato dinâmico do novo
futuro. A violência da sexta-feira preparara o desespero
do sábado (Lc 24,21) e não havia razão para esperar
um domingo depois daquela sexta-feira. Não há explica
ção para a ressurreição, se tomarmos como ponto de re
ferência a realidade existente anteriormente. A ressurrei
ção só pode ser aceita, afirmada e celebrada como um
ato novo de Deus, a quem unicamente se pode atribuir o
poder de criar novas perspectivas para seu povo e deixá-
-lo maravilhado, apesar do desespero anterior.
Por isso, minha preocupação é mostrar que a res
surreição é digna de fé e ao mesmo tempo só pode ser
compreendida de acordo com o poder surpreendente e
característico das promessas dos profetas. A ressurreição
de Jesus não pode ser vista, à maneira dos bons liberais,
como um desenvolvimento espiritual da Igreja. Nem tam
pouco deve ser apresentada como uma extravagância da
história de Deus ou como um ato isolado de seu poder.
Pelo contrário, é o último ato profético e dinamizador
com o qual se inicia uma nova história. Uma nova his
tória aberta a todos mas, de modo particular, recebida
pelas vítimas marginalizadas na antiga lei. O Senhor to-
do-poderoso da Igreja não é uma figura divina no céu
mas é o cordeiro sacrificado, que se afastou da vontade
régia e por isso foi castigado.
Sem diminuir a singularidade histórica da ressurrei
ção, podemos afirmar que ela apresenta aspectos antigos
de um futuro alternativo contido nas palavras proféticas.
A ressurreição de Jesus tornou possível um futuro aos
deserdados. E a comunidade alternativa de Moisés rece
beu de Deus um novo futuro, o qual trouxe liberdade
aos servos fiéis à palavra do mesmo Deus. Esta palavra
destruiu um futuro (o do faraó), mas criou outro (o de
Israel), fez a comunidade empenhar-se tanto numa críti
142
ca radical como num esforço de energia extrema. A res
surreição de Jesus tornou possível um futuro, como o
fizera o Segundo Isaías anunciando a novidade. Aqueles
que em Babilônia não constituíam um povo, nem tinham
história, recebiam uma volta à pátria, como os pobres,
os famintos e os aflitos que aparecem na história de Jesus.
A ressurreição é um fato genuinamente histórico,
no qual, aquele que é morto triunfa. Mais ainda, esse
fato genuinamente histórico tem dimensões históricas im
portantes, como é reconhecido, especialmente, em Ma
teus. De um lado, aparece como ameaça ao regime (Mt
28,11-15), ao mesmo tempo que, de outro lado, Jesus
ressuscitado anuncia sua nova autoridade régia. Agora
ele é o rei que destrona aquele que antes era rei. Sua
ressurreição é o fim dos que não tinham história, como
era ensinado pela escola do rei. Uma história nova co
meça para os que estavam fora da história. E esta histó
ria traz às pessoas novas identidades (Mt 28,19), nova
ética (v. 20) e começa exatamente à beira do mar, como
outrora, entre escravizadores mortos, começou a nova
história do novo povo (Ex 14,30).
143
7
UMA OBSERVAÇÃO
SOBRE A PRÁTICA
DO MINISTÉRIO
145
quais não há abertura nem tolerância para o ministério
profético.
Muitas outras coisas ainda poderíam ser ditas além
das que já tentei dizer no presente trabalho. Procurei
deixar claro que o ministério profético não consiste em
ações espetaculares de cruzadas sociais ou em medidas de
indignação desgastante. Pelo contrário, o ministério pro
fético consiste em apresentar uma percepção alternativa
da realidade e em levar as pessoas a ver a própria histó
ria à luz da liberdade de Deus e de sua vontade de jus
tiça. Os problemas da liberdade de Deus e de sua von
tade de justiça não são sempre, necessariamente, expres
sos como grandes problemas do momento. Contudo, eles
são percebidos sempre e quando as pessoas procuram vi
ver juntas e preocupar-se com o próprio futuro e a pró
pria identidade. Sendo assim, deste nosso estudo, sur
gem as seguintes conclusões:
1) O papel do ministério profético é despertar uma
comunidade alternativa, que conhece alternativas dife
rentes para diferentes situações.
2) A prática do ministério profético não é algo de
especial feito duas vezes por semana. Pelo contrário, ela
deve ser realizada em e com todos os atos dô ministério
— tanto no aconselhamento como na pregação, na litur
gia como na educação. Refere-se a uma posição e atitude
ou a uma interpretação do mundo, da morte, da palavra
de vida que pode levar luz em cada situação.
3) O ministério profético procura atingir o torpor
com o fim de perceber este corpo de morte ao qual esta
mos presos. É claro que, às vezes, o torpor desperta-nos
para a raiva e o ódio, mas é mais provável que o faça
quando atingido pela angústia e pelo pranto. A morte,
que é a nossa condição, não exige indignação, mas sim
angústia e sofrimento. A participação pública do sofri
mento é uma forma de mergulharmos na realidade e
deixarmos a morte continuar.
146
4) O ministério profético tenta aprofundar o deses
pero, de modo que se comece a acreditar e a querer abra
çar o novo futuro. Há um desejo de viver num mundo
que se tornou enfadonho. E sabemos que o único ato
que nos comunica vida é uma palavra, um gesto, um
ato de fé em nosso futuro e sua afirmação desinteressada.
Numa sociedade que tem grandiosas iniciativas,
atualização contínua e inúmeras outras coisas, perdeu-se
a capacidade de lamentar a morte do velho mundo. Igual
mente, estruturada na autogratificação, a capacidade de
receber com cânticos de agradecimento o novo mundo
que nos é oferecido, quase não existe. Contudo, angústia
e louvor a Deus são formas da crítica e da força dos pro
fetas, que devem ser mais procuradas, sobretudo, em
nosso tempo.
Em terceiro lugar, enquanto faço estas reflexões
sobre o ministério, e especialmente sobre meu próprio
ministério, tenho certeza de que os verdadeiros obstá
culos não estão na minha compreensão ou na receptivi
dade das pessoas. Sei que eles advêm de minha própria
insegurança a respeito desta percepção. Sou um burguês
e um empedernido como qualquer outro ao qual eu pos
sa levar o ministério. E, como muitos outros, não tenho
certeza total de que a estrada do rei não seja, de fato,
a melhor e nem de que o séquito do rei não seja o que
governa os realmente honestos. Eu, como muitos outros,
sinto-me inseguro a respeito da comunidade alternativa,
inclusive, a dos pobres, dos famintos, dos que sofrem,
repito, sinto-me inseguro se elas são mesmo a onda do
futuro de Deus. Mas, “como ao povo, assim acontecerá
aos sacerdotes” (Os 4,9). A verdade é que a situação no
ministério é muito semelhante entre muitos de nós e que
fora do ministério não há ninguém sem angústia. E esta
reflexão nos traz clareza mostrando que teremos de pra
ticar o ministério, apesar de nossos egos conflituados.
Profeta algum, nem o próprio Jesus (cf. Mc 14,36),
147
trouxe uma mensagem que não fosse de conflito. Este
realismo o encontramos no fim das bem-aventuranças
(Lc 6,22-23). Ele nos relembra mais uma vez que esta
fé radical não é uma realização nossa, pois se o fora,
nós a quereriamos e nem a realizaríamos. Mas, ela é um
dom e temos que esperá-la com receptividade, temos de
vigiar e orar.
Talvez nossa própria situação fale do que estamos
sugerindo. Por causa de nossa pequena capacidade de
sentir a morte em nossas vidas e de nos entusiasmarmos
com o novo futuro, por causa disso é provável que pro
gridamos e regridamos. Não somos melhores a esse res
peito do que os filhos da comunidade do rei e por isso
mesmo devemos nos empenhar num esforço de nos tor
narmos aqueles que somos chamados a ser. Chego a pen
sar que não há melhor síntese do ministério profético
do que a palavra de Jesus: “Bem-aventurados vós, que
agora chorais, porque haveis de rir” (Lc 6,21) ou esta
outra: “Bem-aventurados os aflitos porque serão conso
lados” (Mt 5,5).
A preocupação de Jesus é o prêmio de seu reino e
ele o prometia aos que eram convidados. Mas ao mesmo
tempo, era muito claro ao afirmar a necessidade de sofrer
no mundo presente *. Jesus tem uma visão das coisas,
podemos dizer, totalmente dialética. Ele não é como os
conservadores para os quais há apenas um mundo — o
presente — mas também não é como os idealistas que
anseiam pelo futuro sem se preocupar com o presente.
Há muito que ser feito no presente. O trabalho angustia
do tem de ser realizado no presente para que alcancemos
o futuro. Temos de nos lamentar por aqueles que descon-
1 Este é o argumento de George A. Benson em Then Joy Breaks
Tkrough, New York, Seabury Press, 1972, a nível de vida pessoal. Assim
ele começa seu último capítulo: “A ressurreição de Cristo é a transfor
mação do tempo e o modelo da alegria cristã” (p. 123). O livro todo é
sobre o sentido da cruz na vida de cada dia.
148
nhecem a transitoriedade de sua situação. Temos de nos
lamentar com aqueles que conhecem a dor e o sofrimento
e, no entanto, não possuem força ou liberdade para os
transformarem em discurso. É um discurso difícil pois
exige o trabalho angustiado como condição para o prê
mio. Deve anunciar que aqueles que não se preocuparam
bastante com o sofrimento não receberão o prêmio.
O pranto é exigido de outra forma também. Não
é uma exigência formal e externa, mas realmente é a úni
ca porta e a única entrada para o prêmio. Neste contex
to, não é apenas uma afirmação nítida, mas é o sumário
de toda a teologia da cruz. Esta forma de desprendi
mento angustiado leva a uma aspiração fecunda e a acei
tação convicta da transitoriedade do presente leva-nos à
novidade do futuro. Em nossas vidas pessoais chegamos
quase a este conhecimento, quando experimentamos um
pouco do processo do sofrimento 2. Mas ainda nos falta
aprender a aplicá-lo à realidade da sociedade. E final
mente, temos de aprendê-lo de Deus, que, de formas a
nós desconhecidas, sofre e espera até o cumprimento
final de suas promessas para então regozijar-se plena
mente.
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ÍNDICE
7 Prefácio
9 1 — A comunidade alternativa de Moisés
33 2 — A consciência do rei opondo-se à
contracultura
54 3 — A crítica dos profetas e o assumir do pathos
79 4 — Energização profética e o emergir da intuição
104 5 — Crítica e pathos em Jesus de Nazaré
127 6 — A energização e a intuição em
Jesus de Nazaré
144 7 — Uma observação sobre a prática
do ministério
?!