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Introdução

Uma Reflexão Sobre a Desleitura

Este livro oferece instrução na prática da crítica poética, em como


ler um poema, com base na teoria de poesia apresentada em meu
livro anterior, A Angústia da Influência. A leitura, como o título
indica, é um ato tardio e inteiramente impossível que, guando
forte, trata-se sempre de uma desleitura. O sentido literário tende
a se tornar mais indeterminado à medida que a linguagem literária
e torna mais sobredeterminada. A crítica ode não ser sem re um
ato e av laçao, mas e sempre um ato de decisão, e o que tenta
decidÍr é o significado.
Como meu livro anterior, Um Mapa da Desleitura estuda a
influência poética, termo que continuo não usando como a passa-
em de imagens e idéias de poetas para seus sucessores. A influên-
cia, como a concebo, significa que não existem textos, apenas
relações entre os textos. Estas relações dependem de um ato crítico,
uma desleitura ou desaeroeriação, gue um poema exerce sobre
outro, e isto não difere em ênero dos necessários atos críticos que
todo leitor forte realiza com to o texto que encontra. A relação de
mfluência governa a leitura assim como governa a escrita, e a
eitura, portanto, é uma "desescrita" assim como a escrita é uma
leitura. Com o prolongamento da história literária, toda eoesia
se torna necessariamente crítica em verso, bem como toda crítica
torna poesia em prosa. -
O leitor forte, cUJasleituras terão importância não só para ele
como também para outros, partilha assim dos dilemas do revisio-
- ta, que deseja encontrar sua própria relaçâo original com a
dade, seja em textos ou na realidade (que, de qualquer forma,
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ele trata como textos), mas que também deseja abrir os textos
recebidos aos sofrimentos dele próprio, ou ao que chama de
sofrimentos da história. Este livro, enquanto um estudo da deslei-
tura criativa ou da tardividade da leitura poética, também é um
prolegômeno a estudos posteriores do revisionismo e às ambiva-
lências da formação do cânone que emergem do revisionismo.
O que é revisionismo? Como a origem da palavra indica, é um
redirecionamento ou uma se nda vi -o, ue leva a uma reestima-
tiva ou uma reavaliação. Podemos arriscar a fórmu a: o revisiomsta
se esforça por ver outra vez, de modo a estimar e avaliar diferente-
mente, de modo a então direcionar "corretivamente". Nos termos
dÍaléticos que empregarei para interpretar poemas neste livro,
rever é uma limitação, reestimar é uma substituição e redirecionar é
uma representação. Desloco estes termos do contexto da Cabala
postenor ou lunânica, que considero o modelo máximo do revi-
sionismo ocidental, do Renascimento até o presente, e que preten-
do estudar em outro livro [Cabala e Crítica].
A~, que s!gnifica "aquilo que é dado", é uma tradição
especial de ima ens, arábolas e semiconceitos relacionados a
Deus. eu pnncipal estudioso do século XX, Gershom Scholem,
considera-a uma variedade de "misticismo", e certamente ela se
misturou com e fomentou uma miríade que experimentou extraor-
dinários estados de consciência. Mas a descrição que Scholem faz
da Cabala acentua seu trabalho de interpretação, de substituições
revisionárias do si nificado das Escrituras or meio de técnicas de
a erturll. odos os textos cabalísticos são interpretatlvos, ainda qu!Z
Íntensamente especulativos, e o que interpretam é um texto central
que pOSsUIautoridade, prioridade e torça perpétuas ou que, com
eleIto, pode ser chamado de texto em Sl. O 2ohar, o mais influente
dos livros cabalísticos, é o verdadeiro precursor da poesia forte
pós-iluminista, não em seu conteúdo grotesco ou em sua forma
amorfa, mas em sua postura em relação ao texto precursor, seu gênio
revisionário e domínio das necessidades perversas da desapropria-
ção. A psicologia da tardividade, que Freud em parte desenvolveu
mas em parte camuflou ou evitou, é invenção da Cabala, e a Cabala
permanece sendo a maior fonte isolada de material capaz de nos
ajudar a estudar o impulso revisionário e a formular técnicas para
a prática de uma crítica antitética.
Isaac Luria, mestre da, especulação teosófica do século XVI,
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formulou uma teoria regressiva da criação ao revisar a antiga teoria


da criação emanativa da Cabala. A dialética luriânica da criação
tem sido estudada de modo iluminado r por Scholem, principal-
mente em seu recente livro Kabbalah, e recomendo-o ao leitor
como subsídio para as partes teóricas de meu livro. Mas tudo que
é estritamente necessário para meus propósitos atuais são algumas
observações sobre o sistema luriânico ..
A história da criação luriânica hoje me parece o melhor
paradigma disponível para o estudo do modo como os poetas
lutam entre si na disputa pela Eternidade que' é a influência
poética. A história de Luria, em todas as versões, tem três estágios
centrais: Zimzum, Shevirath hakelim e Tikkun. Zimzum é o retraimen-
to ou contração do Criador de modo a possibilitar a criação de algo
que não é ele mesmo. Shevirath hakelim é a quebra dos vasos, uma
visão da criação como catástrofe. Tikkun é a restituição ou restau-
ração - a contribuição do homem para a obra divina. Os dois
primeiros estágios encontram equivalentes em muitos teóricos da
desconstrução, de Nietzsche a Freud até todos os nossos intérpre-
tes contemporâneos, que fazem do tema da leitura o que Nietzsche .
bem-humoradamente chamou de "no máximo um rendezuous de
pessoas", ou o que eu chamaria um novo ser mítico - o que Paul
de Man, em particular, claramente representa - o leitor como
uper-homem, o Überleser. O leitor fictício de certa forma simulta-
aeamente complementa de maneira negativa e ainda transcende
o eu de modo exuberante, como Zaratustra realizou de forma tão
contraditória. Tal leitor, tornado ao mesmo tempo cego e transpa-
rente pela luz, autodesconstruído e ainda assim totalmente cônscio
da dor de sua separação do texto bem como da natureza, certa-
mente mais do que se equipara aos esforços revisionários de
contração e destruição, mas sem alcançar a restauração antitética
que integra cada vez mais o peso e a função de qualquer poesia de
.alor que deixamos ou ain,pa podemos receber.
O equivalente estético mais próximo da contração luriânica é
itação, no sentido de que certas imagens limitam o significado
mais do que o restituem ou representam. A quebra dos vasos
uivale à quebra estética e à substituição de uma forma por outra,
o que, imagisticamente, é um processo de substituição. Tikkun, a
restituição luriânica, já é quase um sinônimo da própria repre-
tação .

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