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Categorias da narrativa no conto "Famílias Desavindas" de Mário de Carvalho

● Tempo

O conto “Famílias Desavindas” de Mário de Carvalho fala-nos de um conflito entre duas


famílias portuguesas, de quadros sociais diferentes, ao longo de quatro gerações, numa
passagem do tempo condensada.

Se analisarmos o tempo real da ação, observamos facilmente que o narrador descreve o


conflito desde o “dobrar do século XIX”, o momento em que Gerard Letelessier, depois de
fracassar em Lisboa e no Porto, consegue instalar a sua invenção numa rua do Porto, até à
contemporaneidade, mencionando marcos históricos universais e nacionais.

Antes do semáforo estar funcional e do semaforeiro ser escolhido, o leitor sabe que está
algures em inícios do século XX (“Durante a Primeira Guerra(...)”(l.18)). É introduzida a fase
da escolha do primeiro semaforeiro, Ramon e citada a mudança da função para o seu filho,
que corresponde à época histórica da segunda guerra mundial (“Por alturas das Segunda
Grande Guerra(...)”(l.26)), ou seja do Estado Novo, regime autoritário e fascista. Finalmente,
com a mudança do semaforeiro para o neto e depois para o bisneto, temos o 25 de abril,
onde o país passou de uma ditadura para uma democracia, que perdura até à atualidade,
altura de esperança e mudança no cenário sociopolítico português (“pouco depois da
revolução de Abril”(l.27-28)).

Finalmente o tempo do discurso, que reflete a maneira como os acontecimentos são


narrados e conjugados entre si. Este conto é constituído genericamente por eclipses e
pausas descritivas. Os eclipses são os responsáveis pela passagem rápida do tempo desde
a primeira até à última geração, omitindo as partes da ação que não estão relacionados
com a inimizade das duas famílias. Isto pode ser observado em várias zonas do conto,
“”Durante anos e anos” (l. 26), “Há dias”(l.68). As pausas descritivas, presentesx por
exemplo, nos primeiros três parágrafos do conto, descrevem o cenário inicial de
implementação do semáforo, as características deste e os próprios momentos de conflito
entre as personagens.

● Espaço

Como sabemos, num cenário narrativo podemos confrontar-nos com três tipos de espaço: o
espaço físico, social e o psicológico.

Em relação ao primeiro, este conto passa-se na cidade do Porto, "na infrequentada rua
Fernão Penteada na interseção com a travessa de João Roiz de Castel-Branco" (l.13-14),
"uma dessas alongadas ruas do Porto, que sobe que sobe e não se acaba"(l.1).

Como o conto fala-nos sobre várias gerações de duas famílias de contextos sociais
diferentes, o espaço social altera-se ao longo das épocas. A cidade do Porto, e todo o país,
passou por vários acontecimentos políticos marcantes que se refletiram nas relações
sociais das pessoas, especialmente daquelas que se encontravam em cantos mais
afastados da sociedade. A família Beckett era uma “família de médicos” (l.39), uma
profissão socialmente elevada, especialmente numa altura de guerra e regimes ditatoriais.
Os traços específicos dos seus integrantes, ironicamente revelados pelo narrador, como o
"espírito de missão" do pai, o filho "muito modesto" ou o neto "explicativo" são contrariados
pelas ações maldosas que estes exercem na família de Ramón. Através de uma crítica
humorística, a família Beckett reflete as consequências do seu espaço social mais
privilegiado, como egocentrista, superficial e preconceituoso para com aqueles que lhe
eram inferiores segundo a ideia da sociedade. A família dos semaforeiros, (“A administração
continua a pagar um vencimento modesto, equivalente ao de jardineiro” (l. 28-29)), era mais
humilde, mais popular e com raízes galegas. A desigualdade socioeconómica e os ideias
racistas e xenófobicos que duram até aos dias de hoje, desencadeiam a inimizade,
tornando a rua onde se desenrola a ação no local culminante destes dois espaços sociais,
onde as duas realidades chocam, acentuado pelo decurso do tempo histórico.

Já o espaço psicológico é marcado pela “desavença” entre os doutores e os semaforeiros,


sendo por isso disfórico. Desde o incidente inicial entre Ramon e o Doutor João Pedro
Beckett, alimentou-se um ódio mútuo, criando-se uma atmosfera negativa, com insultos,
tensão e violência.

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