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Notas sobre a incompreensão

de
Cecilia Bilanski
(...)
- Num mundo ideal, as crianças poderiam correr pelo corredores, mas…
- Eu já sei… a gente não está no mundo ideal...
(...)

E este foi um fragmento de conversa eu tive, mas


também que inventei, e que fiquei vivendo e
escutando,
e então, ele se repetiu em mim de muitas
muitas formas diferentes
talvez milhares de vezes,
e então, eu fiquei sei lá,
meio assim
revoltada,
muito revoltada!
e as palavras ficaram ecoando
assim bem dentro da minha cabeça como um mantra da incompreensão……………………...
….num mundo ideal
… num mundo ideal as crianças
… num mundo ideal as crianças poderiam
… num mundo ideal as crianças poderiam correr
… num mundo ideal as crianças poderiam correr, mas...
……………………………………………………………………………...
…………………………………………………………………………………..
……….e então eu tentei me apaziguar
e depois de correr bastante (mentalmente, claro!),
e eu vim até aqui para me sentar neste minúsculo banquinho azul
com minha necessidade enorme de entender.

Porque SÓ num mundo ideal nossas crianças poderiam correr?

Será porque o ato de correr dá medo?


Será que é porque os adultos têm medo das crianças quando elas correm?
Ou será porque o movimento descontrolado da corrida nos lembra da nossa própria falta de
movimento?
O que será que os adultos temem quando o movimento, o calor, a aceleração e aquela
intensidade da corrida toma conta de nós?

No mundo dos adultos essa aceleração toma corpo em uma circunstância muito específica,
quase sempre atrelada ao erotismo e à sensualidade. Um corpo em movimento intenso é
para o adulto, minimamente perturbador.

A corrida livre, ou não direcionamento dos movimentos, a experimentação sem finalidade


nos adentra no aión, um tempo, que os gregos definiam com um tempo intenso,
comprometido com o movimento, e onde Heráclito, segundo as palavras de Walter Kohan,
conecta esta definição temporal à infância. Heráclito sugere que o próprio da criança não é
ser apenas uma etapa, uma fase numerável ou quantificável, mas um reino marcado por
outra relação-intensiva com o movimento. No reino infantil, não há sucessão nem
consecutividade no tempo, o que determina o tempo é a intensidade da duração. Portanto,
poderíamos pensar que aquela correria infantil coloca o adulto em questão, em contato com
uma temporalidade, que na maioria das vezes ele aboliu da sua vida. Ela demonstra aquilo
que falta. Pois a sociedade da produção faz habitar o adulto no tempo cronológico, no
tempo das medições, dos limites e do quantificável. Segundo Deleuze, essas duas
temporalidades coexistem, determinando de um lado, o devir e, do outro, a história. Kogan
explica no seu texto:

A história não é a experiência, mas o conjunto de condições de uma experiência e de


um acontecimento que têm lugar fora da história. A história é a sucessão de efeitos
de uma experiência ou acontecimento. De um lado, então, estão as condições e os
efeitos; do outro lado, o acontecimento mesmo, a criação, o que Nietzsche chamava
de intempestivo. De um lado, está o contínuo: a história, chrónos, as contradições e
as maiorias; do outro lado, o descontínuo: o devir, aión, as linhas de fuga e as
minorias. Uma experiência, um acontecimento, interrompem a história, a
revolucionam, criam uma nova história, um novo início. Por isso o devir é sempre
minoritário.

Diante dessa perspectiva, podemos entender o ato de correr dentro de um espaço público
como uma irrupção do devir-criança no espaço previsto e lógico do chrónos. A corrida atua
a modo de uma micropolítica, aquilo que Deleuze define como uma política do
acontecimento, revolucionária, não sendo aquela que atualiza um projeto possível, mas a
que provoca o possível, a experiência; ela cria novos possíveis, novas possibilidades de
vida, uma vida nova, uma nova política. Mas não há como habitar essa nova política sem a
antiga, não há como habitar aión sem chrónos. De forma que, toda política é,
concomitantemente, macro e micro. O ato de correr precisa do repouso, da parada, da pista
de chegada, assim como o silêncio precisa do grito. Na perspectiva de Deleuze, o que
diferencia uma e outra política, não é tanto o tamanho ou a escala, senão a qualidade do
fluxo e a vibração (Deleuze; Guattari, 1997a, p. 95). Enquanto chrónos apresenta uma
qualidade centralizadora e totalizadora, aión tende a escapar à captura, a fugir da
centralização. Toda sociedade, instituição ou indivíduo são atravessados por linhas de um
tipo e de outro de temporalidade.

Podemos então, compreender, que talvez não seja preciso habitar o mundo ideal para que
adultos e crianças possam coexistir em potência entre esses dois tempos. Para permitir que
o choro intenso, as risadas, o grito e a corrida não perturbem nossa adulta política
centralizadora, possibilitando um trânsito mais fluido, entendendo que a contradição
aión-chronos, intensidade e medida, se apresenta como um oxímoro, termo contraditório
necessário para o movimento do pensar e do estar no tempo.

Considero que, as corridas tornam-se vitais para dar potência à infância, que talvez a
educação, estruturada a partir do pensamento de Kohan, não precisa educar mais as
crianças, pois isso é feito há anos, senão que precisa infantilar1 os espaços, pensando em
práticas artístico-pedagógicas que façam sentido para as crianças e não só para os adultos.

As práticas do Piá, trazem essa vocação. Por isso, quando irrompem nas salas, arrebatam
os corredores
se deslizam nas paredes em arrastões coloridos
provocam derramamentos de sentidos e
enchentes de músicas.
Espero que podamos continuar nesse tempo iónico
nos afirmando no passo
a espanejar janelas
explodir silêncios nos pátios
esburacando os terrenos baldios das instituições que nos albergam.

E quem sabe assim, talvez algum dia a gente possa, depois de correr muito, estar no
mundo ideal. E que o mantra seja outro.

….hoje no mundo
… hoje no mundo as crianças
… hoje no mundo as crianças podem
… hoje no mundo as crianças podem correr correr correr correr correr muito.

Escrito em São Paulo, 9 de outubro de 2017


Ensaio de final de processo do Pia, Programa de Iniciação Artistica

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. IV. São Paulo: Editora
34, 1997a.

1
Infantilar: neologismo para evitar o "infantilizar" de sentido usualmente pejorativo. Sandra
Corazza é mestre desta criação.
KOHAN, Walter Omar. Lugares da infância: filosofia. DP&A, 2004.

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