Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
de
Cecilia Bilanski
(...)
- Num mundo ideal, as crianças poderiam correr pelo corredores, mas…
- Eu já sei… a gente não está no mundo ideal...
(...)
No mundo dos adultos essa aceleração toma corpo em uma circunstância muito específica,
quase sempre atrelada ao erotismo e à sensualidade. Um corpo em movimento intenso é
para o adulto, minimamente perturbador.
Diante dessa perspectiva, podemos entender o ato de correr dentro de um espaço público
como uma irrupção do devir-criança no espaço previsto e lógico do chrónos. A corrida atua
a modo de uma micropolítica, aquilo que Deleuze define como uma política do
acontecimento, revolucionária, não sendo aquela que atualiza um projeto possível, mas a
que provoca o possível, a experiência; ela cria novos possíveis, novas possibilidades de
vida, uma vida nova, uma nova política. Mas não há como habitar essa nova política sem a
antiga, não há como habitar aión sem chrónos. De forma que, toda política é,
concomitantemente, macro e micro. O ato de correr precisa do repouso, da parada, da pista
de chegada, assim como o silêncio precisa do grito. Na perspectiva de Deleuze, o que
diferencia uma e outra política, não é tanto o tamanho ou a escala, senão a qualidade do
fluxo e a vibração (Deleuze; Guattari, 1997a, p. 95). Enquanto chrónos apresenta uma
qualidade centralizadora e totalizadora, aión tende a escapar à captura, a fugir da
centralização. Toda sociedade, instituição ou indivíduo são atravessados por linhas de um
tipo e de outro de temporalidade.
Podemos então, compreender, que talvez não seja preciso habitar o mundo ideal para que
adultos e crianças possam coexistir em potência entre esses dois tempos. Para permitir que
o choro intenso, as risadas, o grito e a corrida não perturbem nossa adulta política
centralizadora, possibilitando um trânsito mais fluido, entendendo que a contradição
aión-chronos, intensidade e medida, se apresenta como um oxímoro, termo contraditório
necessário para o movimento do pensar e do estar no tempo.
Considero que, as corridas tornam-se vitais para dar potência à infância, que talvez a
educação, estruturada a partir do pensamento de Kohan, não precisa educar mais as
crianças, pois isso é feito há anos, senão que precisa infantilar1 os espaços, pensando em
práticas artístico-pedagógicas que façam sentido para as crianças e não só para os adultos.
As práticas do Piá, trazem essa vocação. Por isso, quando irrompem nas salas, arrebatam
os corredores
se deslizam nas paredes em arrastões coloridos
provocam derramamentos de sentidos e
enchentes de músicas.
Espero que podamos continuar nesse tempo iónico
nos afirmando no passo
a espanejar janelas
explodir silêncios nos pátios
esburacando os terrenos baldios das instituições que nos albergam.
E quem sabe assim, talvez algum dia a gente possa, depois de correr muito, estar no
mundo ideal. E que o mantra seja outro.
….hoje no mundo
… hoje no mundo as crianças
… hoje no mundo as crianças podem
… hoje no mundo as crianças podem correr correr correr correr correr muito.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. IV. São Paulo: Editora
34, 1997a.
1
Infantilar: neologismo para evitar o "infantilizar" de sentido usualmente pejorativo. Sandra
Corazza é mestre desta criação.
KOHAN, Walter Omar. Lugares da infância: filosofia. DP&A, 2004.