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ARTIGOS DE: Autran Dourado Maria Vitalina Leal de Matos Benedito Nunes José Augusto Seabra Ernesto Guerra Da Cal TEXTOS INEDITOS DE: Fernando Pessoa CONTO DE: Liberto Cruz POESIA DE: Egito Gongalves Luis Veiga Leitio Ferreira Gullar Gloria de Sant’Anna Fernando J. B. Martinho NOTAS E COMENTARIOS DE: José Filgueira Valverde mimero 20 Julho de 1974 Poesia e filosofia na obra de FERNANDO PESSOA por Benedito Nunes A\ poética de Fernando Pessoa, que absorveu diversos ingre- dientes teéricos, conforme nos mostrou Georg R. Lind’, esté em grande parte subscrita pelos heterénimos, e foi (exceptuado 0 paillismo, anterior a Orpheu) em grande parte elaborada ou em funcéio deles ou paralelamente a eles, como nos casos do Inter- seccionismo e do Sensacionismo. Para nos limitarmos As linhas principais que interessam a este estudo, podemos dizer que essa poética se desenvolveu para cima, até o plano mais geral duma estética ou filosofia da arte, e para baixo, até o plano duma reflexdo, ao mesmo tempo psicolégica, estética e gnosiolégica sobre a sinceridade e 0 fingimento. No meio, acompanhando o processo de desdobramento do préprio poeta e de sua obra (a cena heteronimica), encontram-se a doutrina dos graus da poesia lirica e uma Psicologia da Criagio. © primeiro grau da poesia lirica € a concentragao dos senti- mentos, de expressio espontanea ou reflexiva, em geral mono- cérdica; o segundo é 0 grau da dispersio dos sentimentos perso- nalizados, adquirindo, como na poesia de Swinburne, «tio * Georg Rudolf Lind, Teoria Poética de Fernando Pessoa, Porto, Edi- torial Inova, Lda. monocérdio no temperamento e no estilo»*, 0 estado de persona- lidades miltiplas que se exprimissem diferentemente; no tereeiro, sob 0 foco da inteligéncia que produz reflexivamente o distan- ciamento de sentimentos antes apenas expressados em diversas tonalidades pessoais, a dispers%io se torna puramente imaginéria, a tal ponto que desaparece a unidade de temperamento; e no quarto grau, finalmente, a unidade de estilo desaparece na cxis- téncia ficta de um ou de varios personagens que, diferentes do poeta, jé nao sao ele mesmo, com ele se defrontando como seres outros. Conelui Fernando Pessoa: E assim se teri levado a poesia liriea—ou qualquer outra forma literéria anéloga em sua subst@ncia A poesia Ifrica — até A poesia dramftica, sem, todavia, se Ine dar a forma do drama, nem explicita nem implicitamente*. Como se vé, esses graus sio etapas no caminho do lirico ao dramitico. Além disso, fixam uma tipologia do lirismo, mais classifieatéria dos poetas segundo as suas espécies represen- tativas do que segundo as modalidades de expressio lirica objec- tivamente consideradas. De valor desigual, tais modalidades também se distinguem, conforme o papel desempenhado pela sensibilidade, pela inteligéncia e pela imaginagio, por traduzirem escalas de realizagdo individual e histérica do fenémeno poético. Nao sera dificil reconhecer nos dois primeiros graus da poesia lirica, «em que o poeta concentrado no seu sentimento exprime esse sentimento», o processo romantico que Fernando Pessoa desereveu num dos seus apontamentos‘. E muito menos dificil ser& reconhecermos nos dois tiltimos, acessiveis aos poetas de tipo reflexive, em oposigao aos de tipo instintivo, espontineo ou romantico, o trabalho coordenado da imaginacao e da inteli- géncia, presente, em certa medida, no processo classico, capaz de atingir, eliminando da emogao o elemento individual e transfor- mando o lirico em dramatico, a poesia por exceléncia. * Os Graus da Poesia Liricar, in Paginas de Bstética ¢ de Teoria e Critica Literdrias, textos estabelecidos ¢ prefaciados por G. R, Lind ¢ Jacinto do Prado Coelho, Lisboa, Edicdes Atica, p. 68, e Paginas Intimas ¢ de Auto-Interpretacdo, textos estabelecidos e prefaciados por J. do P. Coclho e GR. Lind, Lisboa, Edicdes Atlea, pp. 106-9. * Paginas Intimas ¢ de Auto-Interpretacdo, p. 10T. < Paginas de Doutrina Estética, seleccho, prefficlo e notas de Jorge de Sena, Lisboa, Editorial Inquérite, pp. 350-352. # fora de divida que Fernando Pessoa repensou critieamente a poética do Romantismo e do Simbolismo. A sua conceituagio de poema lirico, média das muitas definicdes que os seus papéis registram, devolve-nos, corrigida e ampliada, a conceituacio de Wordsworth, segundo a qual a poesia 6 emogio recolhida na meméria, conforme o preficio as Lyrical Ballads: A composigio de um poema Mrico deve ser felta nfo no momento da emogéo, mas no momento da recordacdo dela, Um poema € um produto intelectual, e uma emogéo, para ser intelec- tual, tem, evidentemente, porque nfo ¢, de si, intelectual, que exis- tir intelectualmente, Ora a existéncia intelectual de uma emocdo ¢ a sua existéncia na inteligéncia— isto é, na recordagdo, tinica parte da inteligéncia, propriamente tat, que pode conservar uma emocio'. Numa passagem de seu Krostratus, Fernando Pessoa classi- ficou entre as emogées capazes de produzir grande poesia aquelas que sao falsas, porque sentidas no intelecto’. Sido emogdes que se produzem com o poema, construidas, tal como este, por um tra- balho intelectual de que participam a imaginacio e a inteligéncia légica propriamente dita. A primeira, 0 poeta chamou, num esboco de carta a Adolfo Rocha [Miguel Torga], de «intelectua- lizagio directa e instintiva da sensibilidade»; & segunda, de refle- xfio critica sobre essa intelectualizacio’. Quer isso dizer que reflexao e construeao, insepardveis, dominam a génese e abran- gem 0 resultado do fenémeno poético. Do ponto de vista dessa operatoria reflexivo-construtiva, uma s6 para a poesia orténima e para os heterénimos— nao sendo estes jamais adjacentes & obra poética, mas figuras integrantes dela—, nem a experiéncia do poeta existe independentemente da formacéio do poema, nem © poema existe independentemente dessa experiéncia que o forma. J& nos encontramos aqui nos limites da poética com a esté- tica, A mesma operatéria que o pocta sentimental desconhece, e que condiciona os graus mais elevados de lirismo, determina- ria a diferente altura das artes, umas superiores, outras inferiores. Uma arte 6 tanto mais clevada quanto maior a predo- minaneia na sua forma dos elementos de abstraceio da matéria sensivel*. Artes inferiores sfio as que, como o canto e a danga, * Pdginas de Estética ¢ de Teoria ¢ Critica Literdrias, p. 72, Subli- nhado meu, * Tbid., p. 267. * Tbid., pp. 69-72, * Apresentagio da rev, Athena, in Paginas de Doutrina Estética, p. 121. se destinam a entreter; as superiores, que edueam permanente- mente, influem na evolugio espiritual do homem, que actuam sobre a sensibilidade e a inteligéncia, quer por meio de formas con- cretas, como a pintura, a escultura e a arquitectura, quer por meio de formas abstractas, como a miisica, a literatura e, the last but not the least, a filosofia. Parece que estamos a escutar em tudo isso o refrac da es- tética de Hegel: a arte a servico das necessidades do espirito. E ainda de mais nitido timbre hegeliano se torna essa. classifi- cagio quando constatamos que ela inclui a filosofia, e quando © seu autor nos diz que toda arte, seja qual for o seu lugar natural, deve tender para a abstraccio das artes maiores, isto 6, para a literatura depois da miisica, e para a filosofia depois da literatura. ‘As artes nfo aspiram assim A condi¢io da misica, Até a miisica, nessa réplica a0 Simbolismo, aspira & condicSo de lite- ratura, «Toda arte é uma forma de literatura», registrou Alvaro de Campos, em «Outra Nota ao acaso»”, Mas a inclusio da filo- sofia entre as artes e a sua consequente redugio A literatura, da qual apenas se distinguiria como ™. Fernando Pessoa dedicou, porém, a filosofia, como um dis- cfpulo atento de pensadores que estudou e comentou, um grande niimero de anotagdes, esbogos, artigos e ensaios. Vemo-lo percor- rer, as vezes por conta dum personagem— ; e, sa- bendo que a verdade metafisica eomporta uma exigéncia de Absoluto, acha que o caminho da filosofia deve «partir do desco- nhecido no conhecido para a desconhecido em si mesmo» **. Destacam-se determinadas tendéncias ou simpatias na espe- culagao filoséfica do nosso poeta. Inclinado a um monismo da consciéneia, desconfia a0 mesmo tempo do espiritualismo substan- cialista, e assume, perante a religiio e a légica, uma atitude pragmético-vitalista, mais afinada com Nietzsche do que com William James. Outrossim, os problemas da consciéncia e do ser catalizam, como duas constantes, as investigagdes desse autodi- dacta rigoroso dominado pelo pathos da negacdo e da contradicio. Pela amplitude que aleancou, até em contos policiais, e sobretudo em O Banqueiro Anarquista, esse pathos da negagio e da contra- digdo condicionou-lhe a forma de pensar, e impds ao tratamento das questées metafisicas, quando delas se ocupou, um singular radicalismo, que combina a atitude céptica ou agnéstica com o principio da transcendéncia. Bastar-nos-ia, para ilustrar esse radicalismo, trazer a baila, fora das colectfneas de textos filoséficos de Fernando Pessoa, a sua «Arte de Raciocinar>, onde o detective Quaresma, ao desen- volver toda uma anilise do conhecimento, mostra que ha, acima da inteligéncia concreta do cientista e da inteligéncia abstractiva do filésofo, um terceiro tipo, em nome do qual se podem criticar tanto os pressupostos da ciéneia como as abstracgées da filosofia especulativa. E uma inteligéncia eminentemente negadora e ne- gativa, ainda filoséfica, que converte, porém, toda afirmagio em negacio, e que faz da filosofia uma nio-filosofia. Estabelecer antiteses, firmar contradig6es, sem deter-se no balango kantiano das antinomias ou sem avancar até A sintese hegeliana, negar os contrarios ou afirmé-los ao mesmo tempo, gerando o paradoxo —eis 08 principios da magna arte de negagao do filésofo, que ele proprio assim resumiu & guisa de provivel introdugio a escritos que considerou como portadores de contra-opiniées e exercicios de desmascaramentos: de Sartre, 6 um misto de ser e de nilo-ser. Por fim, para empregarmos categorias que podemos encontrar tanto nos sonetos em inglés como na poesia orténima e heterénima, nossa existéncia se conjuga na diferenca ontolégica impreenehivel, que os heterénimos poéticos intensificam, reabrem * Péginas Intimas © de Auto-Interpretagdo, p. 74, * Textos Filosoficos, vol. If, p. 183, ou tentam suprimir, entre ser ¢ ter, entre o Bu que temos e aquilo que somos, entre o proprius ¢ o alter, 0 Eu ¢ 0 Outro. Conclui o poeta num outro esboco: ‘Tudo 6 ilusdo. A ilustio do pensamento, a do sentimento, a da vontade. Tudo € criag&o ¢ toda a criacko é ilusto. Criar é mentir. Para pensar 0 néo-ser criamo-lo, passa a ser uma coisa, Todos os que pensam ocultisticamente criam em absoluto todo um sis- tema do universo, que fica sendo real. Ainda que se contradigam: ha virios sistemas do universo, todos eles reais *, Somente a consciéneia subsiste na ilusdo geral que implanta a cisio do subjectivo e do objectivo, que separa o ser e 0 nio-ser —no entanto idénticos quando o pensamento os considera —e que descentra o real numa série de aparéncias. Consequentemente, todo sentido que se origina da consciéncia é um sentido ficticio; existe como possibilidade e jamais como realidade. & criagio e mentira. Com isso, 0 vitalismo nietzschiano enxerta-se no pensa- mento de Fernando Pessoa. ‘Ao explicar A Origem da Tragédia, num dos rascunhos para a sua obra em projecto, A Vontade de Poder (Der Wille 2ur Macht), que ficou inconclusa, Nietzsche afirmava que falta ao pessimismo maligno de seu primeiro grande livro a oposigao entre mundo aparente e mundo verdadeiro. S6 ha um mundo ver- dadeiro, que é falso, cruel, contraditério, sedutor, carente de sen- tido (ohne Sinn). Na perspectiva do niilismo— a desvalorizacao de todos os valores — como extremo limite do processo cultural- -histérico que sapou, com o areabougo do pensamento ocidental, metafisico em sua origem e em sua evolucdo, o vinculo platénico da verdade, ligando a ordem superior e visivel das esséncias a0 mundo inferior e visivel das aparéncias, tornou-se necessirio inventar, criar e por conseguinte mentir para se poder viver. «Que se necessita da mentira para viver é mais um aspecto do earacter pavoroso e problematico da existéncia (fiirchtbaren und fragwiirdigen. Charakter des Daseins)>**. A ciéncia, a religiao ‘ea metafisica querem manter a imagem da verdade, e por isso mentem com a mé-fé daqueles que se arrogam a ostentar o que n&o possuem. A mentira leal, e por isso paradoxalmente ver- dadeira, é a arte como afirmacio tragica. Em vez de ocultar a verdade que nao ha, ela afirma a sua «vontade de aparéncia, * [bid., vol. I, p. 44. = Nietzsche, «Die Kunst in der Geburt der Tragedie», Werke, p. 691, IH, Carl Hanser Verlag. de ilusio e de ficcdo». E constitui assim o tnico movimento possivel dentro do niilismo e contra o niilismo. Nessas condigées, a aparéncia deixa de significar apenas a negacio do real; ¢ a verdade, que se torna apar€ncia, assume uma nova significagio. «Chez Nietzsche», resume Deleuze, «nous les artistes = nous les chercheurs de connaissance ou de verité= nous les inventeurs de nouvelles possibilités de vie» **. Ao filésofo e ao poeta, compartindo do sentimento tragico — amor fati—pela aceitacio das aparéncias, restaria, para a busca do conhecimento e da verdade, a ambos comum, sub species artis, a tictica obliqua de, eriando novas possibilidades de vida ou novas Possibilidades de ser, fingir que 0 homem compreende o mundo © se compreende a si mesmo. A mentira vital nietzschiana con- duz-nos ao fingimento, 4 mentira artistica no lirismo do nosso autor. Tematizado principalmente pelo Fernando Pessoa «impuro e simples» do Cancionciro, o fingimento, que nos leva de volta ao problema do conhecimento, da verdade e do ser, no Amago da eriacdo poética, é o elo que liga poesia e filosofia na obra desse extraordinario artista, Segundo os conhecidos versos de «Autopsicografia», 0 poeta € um fingidor, ¢ tanto mais poeta 6 quanto mais completamente finge os seus sentimentos e pensamentos, aleancando a sinceri- dade por meio da insinceridade. Indice da suspensio, da trans- formacio e da construgio da experiéncia na linguagem, sinal daquilo que Fernando Pessoa também chamou de distanciamento, © fingimento, que sera assim um artificio da sinceridade, e como tal desempenhando fungdo estética, tem, por isso mesmo, como ja vira Jorge de Sena*, um significado nio-ético e mais do que psicolégico-empirico: um significado gnosiolégico e ontolégico, a partir do questionamento em torno da consciéncia reflexiva. Ninguém sabe 0 que verdadeiramente sente, afirmou o agu- dissimo poeta, o qual, completando esse seu corte psicanalitico- -existencial em defesa da sinceridade artistica (que nio se di na emogio como eré o artista inferior), acrescentava que <é possivel sentirmos alivio com a morte de alguém querido, e julgar que estamos sentindo pena, porque & isso que se deve sentir nessas ocasides»*'. A sinceridade psicolégica é insincera porque pressu- * Gilles Deleuze, Nietzsche et ta philosophic, p. 117, Presses Univer- sitaires de France. * Paginas de Doutrina Estética, p. 348. * «Nota ao acaso>, in Paginas de Doutrina Bstetica, p. 285. pée, alias num aeto de m4-fé, a impossivel fixidez dos sentimentos que, sempre mutiveis e sempre modificados pela reflexividade, 86 se estabilizam quando se convencionalizam, passando a figurar no sentimentario dum ; «Sempre seris o sonho de ti mesmo / Vives tentando ser.»; «Sou ji quem nunca serei /Na certeza em que me minto»*. Quando, pois, Fernando Pessoa esereveu que «fingir 6 conhe- cer-se>, nao estava apenas indicando um modo de contornar as falsificagdes da vida interior, os disfarces da consciéncia reflexiva, as mascaras de que ela se reveste. Ao mesmo tempo expressio duma ironia tragica, que aceita consagrar as aparéncias, esse fingimento, autognose negativa, anti-scerftica e anticartesiana, mediando a vitoria sobre a sinceridade do pocta ingénuo e do poeta sentimental (e a sineeridade desse tipo é 0 «grande obs- tAculo que o artista tem que vencer>), constitui a tinica atitude consequente em face do ser que reclama a palavra do artista. 0 fingimento interessa ao poeta enquanto poeta, isto 6, enquanto agente da poiesis, que cria ou da forma na linguagem a uma possibilidade de ser. Esta é a sua liberdade e a sua verdade. «, reza o aforismo de Nietzsche que pode servir de intréito & poesia da metafisiea em crise de Fernando Pessoa.

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