Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
E MECÂNICA
À ARTE ELETRÔNICA
Antecedentes no século XIX
A exploração das novas tecnologias de comunicação social tornou-se
uma razão de peso maior para os rumos da arte no período que se esten
de das quatro últimas décadas do milênio ao início deste século. Ela se
difunde no mesmo ritmo dos vertiginosos avanços que se sucedem num
campo que é inseparável de toda a estrutura de produção da sociedade.
O aproveitamento dos meios eletrônicos e informacionais pela arte
a atualiza, fazendo-a compartilhar da mais profunda compreensão do
mundo gerado por esses meios. Norbert Wiener nos diz que só é possível
existir um entendimento da sociedade "através de um estudo das men
sagens e das facilidades de comunicação de que se disponha" (WIENER,
1968, p.16), afirmação à qual acrescenta sua previsão de que "no futuro
o desenvolvimento dessas mensagens e facilidades de comunicação, as
mensagens entre o homem e as máquinas, entre as máquinas e o homem
e entre a máquina e as máquinas estão destinadas a desempenhar um pa
pel cada vez mais importante" (idem). A consciência desse processo de
investigação dos espaços-tempos que dominam cada vez mais o nosso
cotidiano, enunciado pelo criador da cibernética, tem sido demonstrada
pelos artistas nos últimos anos.
A máquina-que alcançara um estágio inédito de desenvolvimento
no Renascimento, pela conexão estabelecida entre conhecimento teórico
e experimentação, com resultados que foram alvo de exemplar divulga
ção científica, na forma de reconstituição de inventos dos artistas-en
genheiros, às vezes depurados pela história 1 -representou, na época
Ver GALLUZZI, Paolo. Gli ingegneri dei Rinascimento: da Brunelleschi a Leonardo da Vinci.
nça: Palazzo Strozzi, 1996.
2. Zanini aqui se refere à sátira utópica Erewhon (1872), do escritor britânico Samuel Butler.
3. O autor aqui faz referência aos livros de Speng!er, um crítico das técnicas: A decadência do
Ocidente (1918) e O homem e a técnica (1931). Refere-se ainda à célebre conferência de Martin
Heidegger "A questão da técnica", proferida em 1953, posteriormente publicada em 1954.
A tradução em português vem sendo recorrentemente publicada em revistas acadêmicas.
24
Várias novas técnicas permearão as artes plásticas no avanço do
industrialismo, um relacionamento dos mais difíceis, palco de controvér
sias na sociedade que se urbanizava e começava a conhecer a prolifera
ção das imagens. Essa questão, envolvendo elitismos (como o de lngres)4
e a tendência à democratização do acesso à produção artística, é tratada,
em amplo espectro social da arte, no âmbito da França, pelo historiador
Gérard Monnier5 • O autor se refere aos vastos cenários pictóricos que
são os panoramas, ou seja, as representações da cidade, episódios mi
litares e outros temas tratados em trompe /'rei/, instalados em espaços
de forma circular cujo centro era ocupado pela plateia (MONNIER, 1995,
p.116). No caso do diorama e suas variantes luminísticas e ilusionistas,
podemos ver antecedentes ao cinerama e a outras modalidades atuais
de espetáculo6 • Entre as formas de reprodutibilidade que prosperaram
na atmosfera do progresso industrial, situa-se, na área de escultura, a
"máquina de redução", que, como já diz o nome, tornava menor o formato
das peças originais, em vários materiais, para fins de difusão e comércio7
(MONNIER, 1995, p.157).
Contudo, nesse contexto da primeira Revolução Industrial, foi de
impacto o aparecimento da fotografia, herdeira da câmera escura, pri
meiro instrumento de reprodutibilidade automática da imagem. A inven
ção punha inexoravelmente em xeque o entendimento tradicional da arte.
Entretanto, a questão que de imediato se colocou (e se colocará em per
durável controvérsia, que se arrastou até a segunda metade do século
XX) era se a fotografia pertencia ou não ao universo das belas-artes. Nas
palavras de Walter Benjamin, em seu texto clássico sobre as artes visuais
"A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução"ª, afirma que
"gastaram-se vãs sutilezas a fim de se decidir se a fotografia era ou não
arte, porém não se indagou antes se essa própria invenção não transfor
maria o caráter geral da arte" (BENJAMIN, 1983, p.13), erro que, ele acres
centa, cometeram mais tarde os teóricos de cinema. O que o membro da
Escola de Frankfurt pôs em evidência, como se sabe, foi a perda da "aura"
4.. Zanini faz aqui uma referência ao pintor francês Jean-Auguste Dominique lngres (1780-
'-'1167), que assumia uma posição contrária às inovações da pintura que rompiam com os
<.,-íncipios clássicos por ele seguidos.
� MONNIER, Gérard. L'art et ses institutions en France: de la Révolution à nos jours. Paris:
,&allimard, 1995.
·&.Importante notar o gesto contemporâneo de Zanini ao destacar o panorama como uma
'1Drma artesanal que, de algum modo, antecedeu o cinema e as instalações audiovisuais
· a,m suas potentes formas de imersão. Para conhecer a história dos panoramas e as
1•culações contemporâneas, conferir GRAU, Oliver. Arte virtual-da ilusão à imersão. São
. Paulo: Unesp/Senac, 2007. O autor desenvolve uma completa trajetória dos panoramas
'ecle outros procedimentos e técnicas de imersão. Vale a pena ainda conferir SCHWARTZ,
:Vanessa. O espectador cinematográfico antes do aparato do cinema: o gosto do público
.-,a realidade na Paris fim de século. ln: CHARNEY, Leo e SCHWARTZ, Vanessa (orgs.). O
: cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2001.
'I. Monnier aqui se reporta à obra coletiva La sculpture française au XIX• siécle, publicada
, .-ando da exposição no Grand Palais, em Paris, 1986, com curadoria de Anne Pingeot.
a. Zanini aqui se refere ao texto de Walter Benjamin publicado na coleção "Os pensado-
11e5" (Abril, São Paulo, 1983, p.13), que trazia o titulo "A obra de arte na época de suas
licnicas de reprodução". Todas as citações dizem respeito a essa edição. O titulo mais
conhecido no Brasil foi o publicado em BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. São Paulo:
Brasiliense, 1993.
da obra de arte, provocada pelo "valor de exibição" (BENJAMIN, 1983,
p.14). Divulgada um quarto de século depois de sua morte, a reflexão de
Benjamin trouxe compreensão sobre as relações emergentes da arte com
a sociedade das tecnologias industriais. Estudos recentes, entretanto, re
veem a questão da "aura", considerando que os próprios meios de difu
são da obra de arte, cada vez mais massificados, contribuem para o culto
dos originais preservados em museus e coleções9 •
A disposição de que a imagem fotográfica não corresponde ao uni
verso poético surgiu drasticamente em Charles Baudelaire. Em "Carta ao
sr. diretor da Revue Française sobre o salão de 1859", o poeta e crítico con
siderou a fotografia incapaz de ir além da condição de "serva das ciências
e das artes" (BAUDELAIRE, 1873, p. 261). O crítico limitava o alcance da
nova imagem: "que ela orne a biblioteca do naturalista, exagere os ani
mais microscópicos, fortaleça com algumas informações as hipóteses
do astrônomo ( ... ), nada melhor do que isso". Mas "se lhe for permitido
invadir o terreno do impalpável e do imaginário, aquilo que não vale senão
pelo fato de o homem acrescentar-lhe a sua alma, aí então, desgraçados
de nós!" (ibidem, p. 262). Fixado no entendimento do aparelho como tão
somente apto à reprodutibilidade mecânica da realidade, considerou a fo
tografia "refúgio de todos os pintores fracassados" (ibidem, p. 260).
Mas uma afirmação da criatividade possível com a primeira mídia saída
da máquina declarava-se já naquela época, no conflito entre fotógrafos e
pintores. Como afirma Aaron Scharf, abordando o conflito que os dividia:
9. A obra de Benjamin tem sido largamente estudada e entre os que revisam suas reflexões
está András Sándor. Conferir SÁNDOR, András. Art as the Concept of the Arts in the Age
of Mechanical Reproduction. ln: VAYER, Lajes. Prob/emí dí melado. Atas do XXIV Congresso
Internacional de História da Arte (C.I.H.A., 1979), Bolonha: CLUEB, vol. X, 1992.
10. A tavoletla foi um dispositivo desenvolvido pelo italiano Filippo Brunelleschi (1377-1446)
para demonstrar a perspectiva. Para tanto, o arquiteto florentino pintou o exterior da igreja
de San Giovanni e fez um furo na altura da linha do horizonte, coincidindo com seu pon
to de vista. Diante da igreja colocava-se, com uma das mãos, o pequeno quadro, posi
cionando o olho no furo, com a outra mão segurava-se um espelho. Com isso a igreja era
refletida, dando a impressão de se ver a cena real ao se olhar para o quadro no espelho.
11. Conferir RAGGHIANTI, Cario L. Estetíca índustríale. Sele Arte, Milão, nº 14, set.-out., 1954.
26 WALTER ZANINI
pintura chegara a extremos no duvidoso gosto pompier12 , cedia a concei
tos de valorização da forma e à subjetividade de expressão, para os quais
não faltaram adeptos no decorrer do século XIX. Seria talvez necessário
lembrar a opinião segundo a qual essa mudança provocada pela invenção
da fotografia não se fizera tão rapidamente, como vários autores afirmam.
Meyer Schapiro recorda que seis décadas depois da descoberta da nova
técnica, tornada pública em 1839, comprovava-se o recrudescimento do
realismo na arte (em termos de luz, atmosfera e movimento). Tal fato, para
Schapiro, "fala contra a opinião segundo a qual a arte moderna originou
-se como uma resposta à fotografia" {SCHAPIRO, 1978, p. 142). Na trans
formação da Kunstwollen 13 , entre o final do século XIX e o início do século
XX, deve ser considerada, sem dúvida, a existência de várias razões con
ceituais, amplamente conhecidas, que remetem à essência dialética do
universo da arte. Mas, pouco ou nada reconhecida pelos historiadores e
críticos de arte, a influência da fotografia na profunda transformação so
frida pela pintura é fenômeno mais aceito desde os anos de 1960.
Cabe mencionar a imensa relevância da fotografia para o conheci
mento e a divulgação da arte. André Malraux, em As vozes do silêncio [Les
voix du silence], no início dos anos 1950, demonstrou toda a importância
dessa contribuição, mesmo após a chegada do tempo dos museus. Vi
sando suprir lacunas impreenchíveis neles existentes e dar maior acesso
público à arte, propôs o museu imaginário, afirmando: "As artes plásti
cas inventaram a sua imprensa" (MALRAUX, 1951, p.14). "Incomparável
auxiliar" (ibidem, p. 25), a fotografia, no seu contínuo aperfeiçoamento
técnico, "estende o nosso conhecimento mais do que satisfaz a nossa
contemplação: porém ela estende esse conhecimento como o fez a in
venção da gravura" (ibidem, p. 28). De toda a evidência, a contemplação, a
rigor, exige a visita ao original. Para Malraux, com razão, "a história da arte,
há cem anos, desde que ela escape aos especialistas, é a história do que é
fotografável" (idem, p. 28) 14• Ele previa assim a existência dos museus vir
tuais, que, na dimensão ciberespacial, introduzem novas e revolucionárias
possibilidades de divulgação15 •
12. Pompíer é uma denominação, inicialmente mais irônica, que indicava certo estilo român
rIco tardio. O nome vem dos capacetes dos bombeiros (em francês, pompier) franceses, que
se parecem com elmos antigos.
·3, Termo alemão que significa, literalmente, "vontade da arte". No entanto, trata-se de
.:ma noção complexa desenvolvida pelo historiador da arte austríaco Alais Riegl (1858-
-1905), que, de alguma forma, abriu caminho para as reflexões de Panofsky e Cassirer ao
;ierceber a produção artística marcada pelos aspectos do tempo histórico. De Riegl foi
:iublicado no Brasil, com tradução de Werner Rothschild Davidsohn e Anat Falbel, O culto
TIOderno dos monumentos (Perspectiva, 2014), que traz uma densa introdução de Annatere
sa Fabris sobre o livro e o pensamento de Riegl.
•4. Uma nota aqui indicava: "Ver Berger, Rosalind Krauss, Battcock, p. 56, New Artists Video.
Malraux e cibercultura, ver Pierre Lévy, p.154". Possivelmente essa passagem seria poste
·1ormente desdobrada. Podemos aferir pelas evidências que ele estava indicando: Modos de
,er (John Berger, 1972), "Photography's Discursive Spaces: Landscape" (Rosalind Krauss,
Art Journal, vol. 42, nº-4, The Crisis in the Discipline (1982), pp. 311-19) e Gregory Battcock
:New Artists Video, E. P. Dutton, 1978). Zanini indicava ainda Cibercultura, de Pierre Lévy (34
Letras, 1999)-uma passagem na página 154 que trata da ampliação do acesso à arte pelo
JSO das novas mídias.
15. Conferir HABER, Alicia. Nouve/les de /'!COM, vai. 54, n21, 2001, p. 6.
16. Ver THUILLIER, Jacques. lmpressionnisme: une révision. Revue de l'Art (25), Paris, 1974, pp. 4-7.
17. Referência ao importante ensaio "La doute de Cézanne" (1945) [A dúvida de Cézanne],
de Merleau-Ponty, que analisa a obra do pintor. No Brasil, o ensaio foi publicado em O olho
e o espírito (São Paulo: Cosac Naify, 2004).
18. Aqui Zanini se refere ao crítico de arte francês Charles Blanc (1813-82), que desenvolveu
diversas reflexões e teorias em torno do uso da cor.
19. Conferir HERBERT, Robert L. Seurat (catálogo de exposição); prefácio de Françoise Cachin.
Paris: Réunion des musées nationaux/Musée d'Orsay, 1991, p. 440. O autor insere textos sobre
as leituras artísticas, estéticas e científicas de Seurat entre as páginas 433 e 448.
28 WALTER ZANINI
técnica "pontilhista" (toques calculados de pinceladas justapostas), de
onde resultou sua poética estrutural. No embasamento em disciplinas no
vas da percepção, é um iniciador, em seu tempo, das conexões entre a arte
e a ciência.
As ideias do círculo pós-impressionista que se formou com Seurat e
outros pintores, sobretudo Paul Signac, além do crítico Félix Fénéon, alar
garam-se em penetrantes repercussões internacionais, como no futurismo
italiano em formação pelo trâmite de seu divisionismo. Distantes de Cézan
ne e Seurat foram os caminhos de Paul Gauguin e de Vincent van Gogh. O
primeiro, em imagens concisas, herméticas e de imersões primitivistas, é
assimilado pelo fauvismo e pelo expressionismo, vanguardas nas quais in
tervém também a sensibilidade dramática de Van Gogh. Reúnem-se a eles,
na influência sobre o expressionismo alemão, o belga James Ensor e o suí
ço Ferdinand Hodler, ambos de inícios impressionistas, e principalmente o
norueguês Edvard Munch, em sua emotividade receptiva a Van Gogh. Outro
componente dessa heterogênea atmosfera pictórica e de reação ao impres
sionismo é o da imanência espiritual do simbolismo, relacionada à literatura
e à poesia (Paul Verlaine e Stéphane Mallarmé), tendência de valores de
siguais, particularmente em dívida com Gauguin. No transcendente imagi
nário da corrente, anunciaram-se elementos da abstração e do surrealismo.
Haverá vanguardas conectadas a emergentes tecnologias e outras que per
manecerão à margem dessa influência, como o expressionismo.
Art Nouveau
Contrastante com as condições mutáveis da pintura no transcorrer do
século XIX, a arquitetura na Europa chegara à Bel/e Époque esteticamente
submissa a tradições. A passividade historicista dominava a mente dos
arquitetos. Em contraste com a sua inoperância generalizada, os enge
nheiros demonstravam-se em consonância com o desenvolvimento da Re
volução Industrial. O século XIX, não raro, foi tachado como destituído de
arquitetura e também lembrado como um século de engenheiros. Eles se
notabilizaram pela audácia de suas pontes de arcos de ferro de extensões
cada vez maiores-material que por excelência elegeram-no final dos Se
tecentos e das plataformas ferroviárias no novo século, inicialmente na
Inglaterra, destacando-se em seguida por outras obras que exijiam cons
tantes e novas soluções tecnológicas, de que o Crystal Palace20 é um pri
meiro grande exemplo. Josef Paxton, um jardineiro construtor de estufas,
foi o autor dessa gigantesca estrutura limpa e transparente pré-fabricada
em ferro e vidro (mais de quinhentos metros de comprimento) que abrigou
a "Exposição Universal" de Londres de 1851.
Na economia de suas formas, o Crystal Palace se tornou uma antevisão
da arquitetura do século XX. A Torre Eiffel, de Gustave Eiffel, e a Galeria das
Máquinas, do engenheiro Victor Contamin, para a qual contribuiu Ferdinand
Dutert, em Paris, a algumas décadas de distância, confirmavam o papel so
berano da engenharia. Contudo, sem maiores intenções revolucionárias, nas
20. Zanini aqui faz referência ao Palácio de Cristal, construção monumental de ferro e vidro no
1-tyde Park, em Londres, desenvolvida para a "Exposição Universal" de 1851. Posteriormente, foi
transportado para outro parque, sendo destruído por um incêncio em 1936.
três últimas décadas do século XIX alguns arquitetos britânicos deram con
sistência ao chamado English Domestic Reviva/, modestas mas convincentes
construções de espírito simplificado e racionalizado, precedendo rumos do
modernismo funcional do continente.
Seria da Inglaterra que outros fatores ainda trariam uma cota das
mais importantes para o desencadeamento no continente, no final do
século, de um amplo movimento de renovação das artes aplicadas e de
corativas, em conexão com a arquitetura. A continuidade de estilos so
breviventes do passado seria posta em xeque por uma criatividade de
fantasiosos recursos de caráter ornamental, extremamente individualiza
dos e manifestos como uma tendência de abrangência internacional que
refluiu na própria Inglaterra. A mais usual de suas várias denominações
nacionais era a de Art Nouveau. Correspondia a um momento de intensi
ficação da vida urbana, marcada pela crescente intervenção da máquina
nas atividades mais comuns, criadora de hábitos de uma realidade nova,
mas com resistências sedimentadas dos meios artesanais.
A renovação nesses domínios da arte na Europa continental entre os
dois séculos, e paralelamente nos Estados Unidos, tem uma grande dívida
com a Inglaterra. Em primeiro lugar, em relação a William Morris, persona
gem-chave da cultura do século XIX, em seu pensamento conjugado à ação
através de escritos, pronunciamentos e oficinas que organizara. Dívida que
inclui o. conhecimento da experiência de corporações de artes e ofícios e
exponencialmente da Arts and Crafts Exhibition Society, criada em 1888.
Mesmo em breves palavras, é imprescindível deter-se em Morris.
Espírito identificado a John Ruskin em princípios morais e estéticos, as
sim como iniciado na sua ideologia socialista, acompanhou-o no interes
se pela arte medieval (devendo-se lembrar o antecedente de Augustus
30 WALTER ZANINI
Welby Northmore Pugin, na defesa do Gothic Reviva!, privilegiado diante
de outras formas de recuperação artística do passado na Inglaterra) e fez
parte, por pouco tempo, da conservadora confraria de artistas pré-rafae
litas, apoiada por seu mentor. Morris foi uma figura multifacetada-pintor,
poeta, conferencista, político militante desenvolvido em leituras de Marx,
designer, empresário-em quem o futuro reconhecerá o pioneiro do design
moderno, assim como o papel importante na sustentação da arquitetura
doméstica, com representantes notáveis em Philip Webb e Richard Nor
man Shaw na reação aos padrões solenes da Era Vitoriana. A influência
de Morris extrapolou em muito a Inglaterra e se fez sentir desde o exemplo
de sua própria casa (Red House), construída em 1859, por Webb, em Kent,
uma discreta releitura do gótico, a que Morris integrou a sua decoração e o
mobiliário. Recorde-se que se acrescentara uma perspectiva nova à histó
ria da arquitetura e das artes tradicionalmente segregadas como menores,
trazendo relevância às suas questões materiais e tecnológicas, nas visões
dos arquitetos e teóricos Gottfried Semper e Eugêne Viollet-le-Duc.
Não vendo mais sentido na arte separada dos objetos circundantes,
Morris destruiu seus próprios quadros. A opção pelas artes decorativas e
aplicadas era para Morris um dever social e a elas se dedicou com verdadei
ra devoção com o objetivo de introduzir qualidades regenerativas ao estado
sofrível a que haviam sido reduzidas em sua massificação descontrolada
pela Revolução Industrial. Uniu-se a amigos, entre eles alguns pré-rafaelitas,
e fundou em 1861, em Londres, a empresa Morris, Marshall, Faulkner & Co.
para produção de móveis, tecidos decorativos, papéis de parede, peças de
metal, tecidos chintz, tapeçarias e vitrais. Mais tardiamente, dedicou-se à
renovação da arte tipográfica em edições de livros. Motivos vegetais eram
a base de seu desenho estilizado, expresso em formas claras e concisas e
em composições ritmadas. Nas suas palavras, a arquitetura, a pintura e a
escultura, particularizadas como artes do intelecto, achavam-se divorcia
das da decoração no seu sentido mais restrito, e sua preocupação era o
"grande corpo da arte por onde homens em todos os tempos haviam lutado
para embelezar o prosaico da vida diária" (BRIGGS, 1962, p. 85). Para Morris,
o trabalho artístico devia ser, acima de tudo, um ato de prazer.
V'v'rlt
r---
'1
'\
,/J
-f·,,;-,4 ,-,..
,<!l-.,
,-.,r,d«,Y. f,. ,Y f-_ 1' -
,ff,;-,4;/�cl-(#,,t<fA',
,•. fl+•
,,;,i-f �- • t-7 1
-
1" -2
"' _..
rz;;,.,-,,,,· �-
. ,;,.; � 1,,.4;. ,,_,. ...,,,-
h,,,(,,,,..,t �
r,4'K .,..,,f
v,$,-
= =�
1'--f ,�.
'r�•Hc ,._; �- (i,J. c...,,/-4, ,""-<'A
� ...,.,...,G.,..,.,�-
21. Pevsner reviu e ampliou parte de suas ideias em outras edições. Conferir o capítulo
"L'architecture et les arts appliqués", catálogo da exposição "Les sources du xx� Siêcle: les
arts en Europe de 1881 à 1914", MNAM, Conseil de l'Europe, Paris, 1960-1961, pp. XLI-LVI; e
Origens da arquitetura moderna e do design [The Sources of Modem Architecture and Design].
São Paulo: Martins Fontes, 2001 (1968). Entre os seus principais seguidores encontravam-se
Walter Crane (1845-1915) e Charles Robert Ashbee (1863-1942), neste último desvelando-se
uma tardia persuasão de receptividade à utilização industrializada.
32 WALTER ZANINI
Na síntese das artes envolvendo a recuperação do artesanato em
William Morris e em fontes especificamente estilísticas de seus continua
dores destaca-se, principalmente, Arthur Heygate Mackmurdo. Fundador
do movimento Century Guild (1882), Mackmurdo foi inovador na tradição
de seu mestre, celebrizado pela xilogravura de motivos curvilíneos da pá
gina de rosto do seu livro Wren's City Churches (1883) (incunábulo a que se
remetem os artistas ingleses do período).
Em outras inspirações, a exemplo dos desenhos e ilustrações de
figuras alongadas de Aubrey Vincent Beardsley, localizam-se os elemen
tos de fundamentação do Art Nouveau. Mas as influências trazidas para o
continente, facilitadas pela revista The Studio, estendem-se à arquitetura
e incluem outras referências, como a de Charles F. Annesley Voysey.
Dois artistas que se re�elaram por formas estilizadas análogas fo
ram o pintor holandês de origem indonésia Johannes Toorop, atraído por
Beardsley, e o pintor, gravurista e escultor belga Fernand Khnopff, ambos
pertencentes ao Grupo dos XX, de orientação simbolista, importante re
ferência da dinâmica cultura modernista assumida em Bruxelas, com ex
posições internacionais, eventos e publicações. Foi também em Bruxelas
que surgiu Henry van de Velde-um dos principais ativadores no impulso
do Art Nouveau (GIEDION, 1978, p.11).
Nos domínios da Arte Pura, corrente que nascia e perduraria como
expressão decorativista, foram colhidos fatores normativos de contempo
raneidade endereçados inexoravelmente ao anti-historicismo. Incluem
-se, entre outros grandes agentes dessa infusão, Paul Gauguin, Edvard
Munch, Georges Seurat, Henri de Toulouse-Lautrec e Ferdinand Hodler.
Antes de mais nada, as caracterizações gerais do Art Nouveau em
seus utensílios domésticos e na arquitetura são de uma linguagem rigo
rosamente fechada em seus intentos formais, predominantemente con
figurados em curvas ondulantes e assimétricas de origem orgânica que
podem evoluir em sentido abstrato. As formas retas e geometrizadas, po
rém, não lhe são estranhas. Aos elementos europeus-a exemplo de in
terpretações rococós ou no que capturam da pintura-somam-se outros,
de origem antiga ou oriental, como assimilações japonesas (ukiyo-e), chi
nesas, malaias (batique).
O estilo acabou irradiando-se como um sopro de novidade a partir
do início da década de 1890 por diversas cidades europeias e suscitou uma
grande variedade de denominações. A de Art Nouveau, derivada da loja pari
siense L'Art Nouveau, aberta em 1896 pelo marchand Siegfried Bing, em Pa
ris, tornou-se a mais frequente. Juntaram-se outras denominações, princi
palmente Jugendstí/ na Alemanha, Sezessionstíl na Áustria, Modernismo ou
Modernista na Espanha, Líberty e Floreale na Itália, Modem Style na Inglaterra
etc. Bruxelas, Paris, Viena, Munique, Dresden e Darmstadt estiveram entre
seus centros mais ativos. A corrente adentrou a Escandinávia, alcançando
a Europa oriental e a Rússia. Teve correspondências nos Estados Unidos e
presença na América Latina.
Num primeiro momento como trabalho de desenhistas de obje
tos utilitários, o Art Nouveau aliou os arquitetos ao seu projeto. Eram
eles igualmente designers e vários deles seus teóricos. Contribuições
pioneiras dessa aliança foram as dos belgas Victor Horta, na mansão
34 WALTER ZANINI
o americano Louis Comfort Tiffany. O Brasil contou com diversos artistas
discípulos de Grasset, como Eliseu Visconti. Sobressaiu ainda, entre os
arquitetos, Victor Dubugras, de nacionalidade franco-argentina, que se
fixara definitivamente no país.
Dominante no cenário artístico por um breve tempo, embora alon
gado em regiões fora de suas áreas de concentração, o Art Nouveau teve,
provindo de seus próprios círculos, o antídoto à sua saturação ornamen
tal, em formas racionais, como as que se declararam em Otto Wagner,
autor do influente livro Moderne Architektur (1896), que estava atento às no
vas condições de vida que se originaram na cidade moderna, e da mesma
forma em Van de Velde, Mackintosh, Hoffmann, Olbrich, Peter Behrens,
Adolf Laos, nomes seminais na abertura à arte de construir que se anun
ciava desde o final do século XIX. Adolf Laos, dentre todos, certamente
foi o mais radical na denúncia do Art Nouveau, tendo recebido fortes in
fluências, de Wagner à Escola de Chicago, e provavelmente de Sullivan,
quando em viagem aos Estados Unidos. Membro da Sezession de Viena ao
lado de Olbrich e Hoffmann, onde partilha as mesmas ideias de Gustav
Klimt, em múltiplas iniciativas, em textos e edificações, é um dos esteios
das transformações profundas que reordenam o espírito da arquitetura
no sentido que assinalará seu "estilo internacional".
ELISEU VISCONTI. FRISO DO TEATRO MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO.
36 WALTER ZANINI
No contexto de renovação da arquitetura da época, ao lado do uso do
ferro e do vidro, outro material de fundamental importância tecnológica para o
futuro próximo da arquitetura, o concreto armado, numa história de múltiplas
experiências, foi aperfeiçoado em 1895 pelo engenheiro francês François Hen
nebique. Sua utilização se tornou amplamente difundida. O engenheiro fran
cês Tony Garnier previa-o para o seu visionário projeto da Cidade Industrial
(1901-04). Auguste Perret adotou-o em seu edifício da rua Franklin, em Paris,
datado de 1903, porém os melhores exemplos viriam mais tarde.
Os meios mecanizados nas artes aplicadas e na arquitetura haviam
se deparado com a intransigência perseverante nas guildas inglesas. No
entanto, havia espíritos convencidos ou que acabaram por se convencer
da impossibilidade de sustar ou ignorar um modo de fazer e um modo de
viver em que se efetivavam as novas condições científicas e tecnológicas
impostas a partir da Revolução Industrial, admitindo o seu aproveitamento
em formas corretivas, como é o caso de Ashbee. De atitude próxima a
Morris, Ashbee evoluiria para a aceitação da máquina, desde "que ela seja
dominada", para afirmar mais tarde: "A civilização depende da máquina,
37
e não é possível a qualquer sistema que pretenda encorajar ou favorecer
o ensino das artes deixar de reconhecer este fato"(PEVSNER, 1962, p. 28).
Na raridade de precursores que acreditavam na intervenção mecânica,
Pevsner rememorou o designer Lewis F. Day, que afirmava: "Queiramos
ou não, as máquinas, os motores a vapor e a eletricidade(... ) virão a ter
alguma coisa que ver com a futura arte decorativa" (idem). Pevsner, em
sua obra, retomou ainda o pensamento do arquiteto John D. Sedding,
citando suas declarações, como: "Não devemos pensar que deixarão
de se usar as máquinas. É impossível organizar a manufatura em qual
quer outra base. Vale mais reconhecer isto de maneira inequívoca(... ) do
que nos revoltarmos contra um fato real e inevitável" (ibidem, pp. 28-9).
Considerando essas preliminares do reconhecimento da existência e
importância da máquina, Pevsner salientou a sua diferença em relação
às iniciativas concretas que ocorreram logo depois na Europa e também
nos Estados Unidos, onde Frank Lloyd Wright já demonstrava toda a sua
confiança e entusiasmo na adoção da máquina pela arte em seu livro The
Art and Craftof the Machine(1901). De sua parte, Giedion relacionou a que
da do "ecletismo ao fato de a indústria haver atingido, enfim, o seu ple
no desenvolvimento e a época estar madura para as grandes mudanças"
(GIEDION, 197 8, p. 8).
Os usos mecânicos do Art Nouveau se fizeram essencialmente no
sentido da divulgação industrial dos produtos e de empregos relativos,
na arquitetura, de materiais como, sobretudo, o ferro, além do vidro e em
seguida o concreto armado. A transferência do trabalho manual para a
esfera da industrialização, pelo projeto específico que percorrerá a natu
reza serial do desenho industrial futuro, tomaria uma direção mais precisa
com o Deutscher Werkbund.
O Deutscher Werkbund
O movimento de integração da arte e do artesanato à produção industria
lizada tomou enorme impulso na Alemanha. Entre outras atitudes e inicia
tivas nesse sentido, a criação do Deutscher Werkbund, em 1907, foi a mais
importante. Citando os estatutos da associação de 1908, Giedion recordou
que a ideia não era nova: "Sir Henry Cole, um dos primeiros reformadores
da indústria na Inglaterra, fundara em 1847 os Art Manufacturers a fim de
elevar o nível do gosto popular ao introduzir a beleza na produção mecâ
nica."22 Prossegue o historiador: "Seus esforços haviam atingido seus fins
na primeira 'Exposição Universal', a Great London Exhibition de 1851 e seu
Palácio de Cristal" (GIEDION, 1948, p.144). 4
A geração que vem depois de William Morris se reconciliou com a �
indústria e retomou as diretrizes de Cole para a criação das guildas de arte
e de artesanato. Em 1907, sessenta anos depois dos Art Manufacturers, as
bases de uma reconciliação definitiva pareciam lançadas: "A porta esta
va aberta a uma colaboração constante entre a arte e a indústria" (idem).
Ressalte-se o que antes havia escrito Pevsner:
38 WALTER ZANINI
..RY VAN DE VELDE. ESCOLA DE ARTES APLICADAS DE WEIMAR, ALEMANHA.
23, Conferir FRAMPTON, Kenneth. História crítica da arquitetura moderna. São Paulo: Martins
Fontes, 1997, entre as páginas 129 e 137. BANHAM, Reyner. Teoria e projeto na primeira era da
máquina. São Paulo: Perspectiva, 2003.
24. "Objetivo" em alemão.
40 WALTER ZANINI
discurso do arquiteto Theodor Fischer (1862-1938), quando da primeira
reunião do Werl<.bund:
42 WALTER ZANINI
em amplo contexto cultural e de referências sociológicas. Em sua análise
como curador, Cassou não poupara críticas aos excessos ornamentais
do movimento, por vezes indo a " níveis de ilegitimidade na arquitetura e
nas artes aplicadas", reconhecendo, entretanto, que se atravessava "um
momento muito importante da história da arte moderna" (CASSOU, 1960).
O Art Nouveau, para Cassou, atendia a uma sociedade que queria tirar o
máximo proveito da existência, na Bel/e Époque, das tensões sociais que
levariam à Primeira Guerra Mundial.
Embora controvertida, fortaleceu-se a presença do Art Nouveau
na contemporaneidade, durante o centenário do movimento, na mos
tra "Anatomy of an Exhibition-Art Nouveau 1890-1914" (National Gallery,
Londres, 2000), com curadoria de Paul Greenhalgh. Um fato inegável na
rápida trajetória do movimento é a evolução consciente de seus artistas
na depuração dos meios ornamentais, engendrando os caminhos do de
senho industrial e da arquitetura moderna.
Entre os séculos XIX e XX, as mudanças de hábito sob a ação das
incessantes novas formas de comunicação-às invenções do telégrafo e
da fotografia na primeira metade do século acrescentava-se a do cinema;
em seguida ao telefone, de pouco anterior, surgia o rádio-, ativadas pelas
dinâmicas de fatores sociais, econômicos e culturais, instigaram o apa
recimento do fenômeno artístico que se tornou universalmente conheci
do como modernismo. A sociedade do capitalismo em desenvolvimento
abria-se a um vigoroso estágio de sua evolução industrial, manifesta em
grandes empreendimentos tecnológicos e nos usos da máquina em co-
O Futurismo 25
O relacionamento entre a arte e a tecnologia, vago e precário no desenro
lar da Revolução Industrial, ganhara entre os dois séculos um estado pro
gressivo, essencial ao processo modernista. Nos incessantes progressos
científicos e técnicos eram alargados os usos da máquina em suas cone
xões com as atividades mais comuns, e a arte não permaneceria estranha a
essa disseminação. Entre as vanguardas históricas, o futurismo italiano foi
a primeira a conscientizar-se da impulsão tecnológica na conformação da
sociedade moderna, configurando-se, na linguagem ideológica e estética
desse desenvolvimento, como um movimento de caráter decorativista que
tivera inícios na atmosfera {in de siecle das metrópoles e sua febre industria
lista, introduzindo-se nas artes aplicadas e na arquitetura, com presença
também na pintura, escultura, gravura e artes do espetáculo.
Fundado na Itália por Filippo Tommaso Marinetti e lançado publi
citariamente em manifesto pelo jornal parisiense Le Figaro em 20 de fe
vereiro de 1909, o Futurismo desenvolveu-se por diferentes etapas. Até
praticamente o final da Primeira Guerra Mundial, seu "período heroico"
era percebido no comportamento desassombrado que implicava a críti
ca violenta às tradições parasitárias, tentando se afirmar não obstante
dificuldades de reconhecimento. Havia no seu ideário não apenas a que
bra da estagnação cultural italiana, mas a estratégia de uma expansão
internacional. Seguiu-se o que foi considerado o "segundo Futurismo",
nos anos 1920 e 1930, uma etapa que, malgrado sem a densidade ante
rior, contribuiu com desdobramentos próprios para a longa continuidade
do movimento.
Frequentemente subestimado por vozes como a de Guillaume Apol
linaire, que o encarava subordinadamente ao cubismo, o futurismo alcan
çou, graças a seus importantes integrantes, a atenção da crítica nacional
e internacional. No entanto, o movimento seria melhor conhecido somen
te depois da investigação historiográfica entre as décadas de 1950 e 1960,
além de outros aportes nos anos de 1970, que permitiram perceber melhor
a globalidade de sua atuação 26 • Fundamental foi o seu resgate-como su-
25. Zanini iniciava o tópico com a seguinte observação, em formato de nota, como outras
que pontuavam o texto e sinalizavam onde seria necessário revisá-lo e ampliá-lo: "Abrir
com o cubismo e referências ao expressionismo. Les demoiselles d'Avignon, 1907. Fascismo
a que não aderiram". Difícil compreender a sinalização de Zanini em relação à última frase;
no entanto, a primeira diz respeito às aproximações que ele percebia entre os movimentos.
26. Enrico Crispolti realizou acurado levantamento da historiografia futurista na Itália e no
exterior, dos seus inícios ao final dos anos 1980, em seu livro Storia e critica dei Futurismo.
Bari: Laterza, 1986. pp. V-XXI e 93-100.
44 WALTER ZANINI
cedeu com o dadaísmo, a que se conecta-por mérito das novas gerações,
que viram nele prefigurações de elementos vitais de seus valores.
Assinalou-se o Futurismo pelo turbilhão de ideias, teorias, traba
lhos e ações a distância dos limites especulativos e fechados nos quais a
arte se produzia no começo do século. Mobilizou-se para abarcar as artes
em geral numa atmosfera fermentada por inconformismo político e social.
Eram evidentes as afinidades entre a ótica futurista e as transgressões da
segunda metade do século XX na procura de conexões entre arte e vida,
nas relações com a ciência e a tecnologia, na abrangência das categorias
artísticas separadas por hábitos ancestrais e pela busca de sua síntese,
na criatividade de uma realidade ambiental ativa, no acercamento dialéti
co do público- apesar das óbvias complexidades históricas que lhes são
próprias. Com os olhos na mutável atualidade que apontava para adiante,
o futurismo repudiou o ambiente retrógrado e passadista em que emer
gia, atitude que repercutiu e se reproduziu nas particularidades de diver
sos centros, principalmente europeus, por onde se difundiu. O combate
à cultura oficial italiana, enrijecida no culto do antigo, atingiria situações
de violência extremada. O manifesto de Marinetti era substancialmente um
libelo de ordem moral diante do status quo, dando margem a uma indicação
resoluta de perspectivas a serem abertas. Pregava, em estilo alegórico, a
destruição das academias "de todas as espécies, das bibliotecas e museus,
o fim das cidades veneradas". Em face do conservadorismo predominante,
exaltava o "amor ao perigo" e o "hábito da energia e da temeridade". Lou
vava "as capitais modernas e suas grandes multidões agitadas pelo traba
lho, pelo prazer, pela sublevação", os cenários alterados pela eletricidade e
pela máquina. É particularmente essencial o trecho em que enaltece "uma
beleza nova: a beleza da velocidade. Um automóvel de corrida com o seu
cofre adornado de grossos tubos semelhantes a serpentes de hálito explo
sivo... um automóvel rugidor, que parece correr sob a metralhadora, é mais
belo que a Vitória de Samotrácia".
Como fenômeno tipicamente italiano-como o cubismo é francês,
e o expressionismo, germânico-, o Futurismo deve ser compreendido no
seu íntimo relacionamento com o período de efervescente nacionalismo
-colonialista e irredentista que atravessava a nação no seu "pós-Ressur
gimento". Sua programática estética revolucionária era permeada pela
disposição de contribuir à reformulação sociocultural do país, retirá-lo de
atrasos, para fazê-lo avançar política e intelectualmente, ser reconhecido
no território dos recém-introduzidos novos progressos tecnológicos. Em
seus múltiplos manifestos, foram comuns enunciados patrióticos exacer
bados, a glorificação da guerra que os conduziu à intervenção no conflito
mundial de 1914, de diretas e trágicas consequências. O grito otimista de
sua utopia, dos mais ambiciosos, era para ser ouvido pelo mundo.
O Futurismo recebeu específicas influências do pensamento pas
sional de Friedrich Nietzsche, contestado, porém, no seu idealismo do
"eterno retorno". Encontrou, por outro lado, suporte à sua inquieta sensi
bilidade na concepção intuitiva da duração de Henri Bergson. Como em
outros setores da modernidade artística, repercutiram no meio futurista
as teorias de Albert Einstein. No seu apoio utópico a reivindicações so
ciais e políticas manifestava-se a aderência ao sindicalismo anarquista
46 WALTER ZANINI
As artes plásticas foram as primeiras a solidarizar-se com a tese
futurista gerada no círculo literário. A adesão dos pintores Umberto Boc
cioni, Cario Carrà, Luigi Russolo, Giacomo Balia e Gino Severini, entre
outros, foi o passo inicial para os propósitos totalizantes do movimento.
O grupo foi adiante com a participação dos arquitetos Antonio Sant'Elia
e Maria Chiattone, dos músicos Francesco Balilla Pratella e Luigi Russo
lo, do fotógrafo Anton Giulio Bragaglia, dos cineastas Bruno Giovanni
Corradini (Bruno Corra) e Emilio Settimelli. Esses e outros setores foram
anunciados por sistemático lançamento de manifestos, procedimento
mantido no chamado "segundo futurismo".
Enquanto Balia era figura perseverante em suas metas, a pintura
acrescentou-se de novos artistas, ligados ao pintor Fortunato Depero, as
sim como pela presença de Enrico Prampolini. O Futurismo desenvolveu
-se até seus tempos tardios em espaços ambientais, no mobiliário, na de
coração e cenografia, abarcando ainda a dança, a moda e um interesse pela
radiofonia. Além da política, tratou de temáticas como guerra e luxúria.
A "mulher futurista" foi objeto do manifesto de Valentine de Saint-Point.
A incorporação das artes plásticas ao movimento foi marcada por
duas proclamações: o Manifesto dos pintores futuristas e A pintura futurista
manifesto técnico, respectivamente em 11 de fevereiro e 11 de abril de 1910,
assinados por Balia, Boccioni, Carrà, Russolo e Severini. Esses artistas
possuíam uma formação impressionista e pós-impressionista obtida nas
circunstâncias diversas de suas carreiras, mas certamente remetendo à
referência maior de Georges Seurat e a uma militância no divisionismo
italiano e sua decomposição de tons puros, expressão que tivera entre
seus principais representantes o pintor e teórico Gaetano Previati, um
antecedente particularmente respeitado pelo grupo.
27. Neste trecho havia outra nota de Zanini sugerindo novas articulações e desdobramen
tos: "Argan, p. 582. Baila, Boccioni, domínio absoluto da máquina-Cubismo essencial
metonímia. Ver Quéau, p. 32, Eloge de la simulation, deplacement par contiguité. Mas cubismo
permanece estático. Ver a seguir". Pela bibliografia manejada ao longo do livro, parece que
Zanini se refere aos livros Arte moderna: do iluminismo aos movimentos contemporâneos (Giulio
Cario Argan, Cia. das Letras, 1992) e É!oge de la simulation: de la vie des langages à la synthese des
images (Philippe Quéau, Champ Vallon/lNA, 1986), indicando um futuro desdobramento em
relação ao uso das máquinas nas simulações e movimentos, bem como na produção das
posteriores imagens de síntese.
28. Em nota, Zanini indica novo desdobramento: "(Crispolti, 14, 317). (livro enc.) Ambiente
Celant-Hulten 521; Balia, arredo 522)". O autor se refere, primeiramente, ao crítico e historia
dor de arte Enrico Crispolti, importante especialista na obra de Baila, e ao seu livro Ricerche
dopo /'Informa/e (Roma: Officina Edizione Roma, 1968), que aparece em outras referências
presentes no livro. O autor também faz menção ao catálogo da exposição retrospectiva de
artistas italianos do início do século XX-"Arte Italiana: Presenze 1900-1945" (Milão: Bom
piani, 1989)-realizada no Palazzo Grassi (Veneza, 1989), com curadoria de Pontus Hultén e
Germano Celant.
48 WALTER ZANINI
UMBERTO BOCCIONI. FORMAS ÚNICAS DA CONTINUIDADE NO ESPAÇO, 1913.
29. Aqui Zanini parece se referir a algumas importantes postulações do historiador de arte
suíço Sigfried Giedion, que escreveu, entre outros, Espaço, tempo, arquitetura (1941) (São Paulo:
Martins Fontes, 2004), aproximando as formulações de Albert Einstein em torno da teoria
da relatividade da produção cubista. Inovadoras mas equivocadas, essas formulações se
esclareceram nas reflexões de Meyer Schapiro em "Einstein e o cubismo: ciência e arte", in:
SCHAPIRO, Meyer. A unidade da arte de Picasso. São Paulo: Cosac Naify, 2002.
50 WALTER ZANINI
utilizando oposições de luzes e sombras. Depois de realizar figurações de
movimentos sequenciais influenciado pela cronofotografia de Étienne-Ju
les Marey, o que permanece na obra de Boccioni são signos em forma de
retas ou arabescos transmissores da sensação da velocidade. Em seguida
às tensões dessas interpretações de rotações mecânicas, entre 1912 e 1914
realizou as álacres e cintilantes composições de formas geométricas, geral
mente trianguladas, de cores puras, intituladas Compenetrações iridescentes.
Numericamente inferior à da pintura, a produção escultural de Boc
cioni, desenvolvida entre 1912 e 1914, parcialmente destruída, é elemento
fundamental do Futurismo. De assento no importante contexto de ideias
da evolução dessa arte na década de 1910, em peças como Desenvolvimen
to de uma garrafa no espaço (1912) e Formas únicas da continuidade no espaço
(1913), a sintetização que imprimiu às formas em interpenetrações dinâ
micas foi repassada à sua pintura tardia.
A exemplo da pintura e da arquitetura, a escultura também é territó
rio teórico de Boccioni. No Manifesto técnico da escultura futurista, lançado
em Milão em 11 de abril de 1912, Boccioni faz uma crítica demolidora aos
clássicos "ideais de beleza" e o seu culto do nu-contumazes na escultura
entre os séculos XIX e XX. Reconhece no impressionista Medardo Rosso o
único artista "que tenha tentado abrir a escultura a um campo mais vasto,
ao restituir com o modelado as influências de um ambiente e as ligações
que o vinculam ao sujeito", uma questão vital para o artista futurista.
Para Boccioni não havia possibilidade de renovação para a escultu
ra (assim como não havia para a pintura) senão "buscando o estilo do mo
vimento, ou seja, tornando sistemático e definitivo como síntese aquilo a
que o impressionismo dera sustento como fragmentário, acidental e, por
tanto, analítico". Assim, por meio da "sistematização das vibrações das
luzes e das compenetrações dos planos se produzirá a escultura futurista,
cujo fundamento será arquitetônico, não somente como construção de
massas, mas de modo que o bloco escultórico tenha em si os elementos
arquitetônicos do ambiente escultórico no qual vive o sujeito" 3º.
De grande importância são suas reflexões sobre a absorção pela es
cultura do entorno arquitetônico a que será relacionada. "Escancaremos a
figura e encerremos nela o ambiente." Assim, abre-se o bloco tradicional,
na "absoluta e completa abolição da linha acabada e da estátua fechada. Do
cerne desse bloco receptivo, sua plasticidade se prolongará pelo espaço,
modelando-o". Do amálgama entre o objeto e o contexto arquitetônico terá
origem a escultura de ambiente. Ela será a tradução em zonas plásticas (uti
lizando-se qualquer tipo de material) dos planos atmosféricos que, circun
dando as coisas, as ligam e interseccionam, visão a que Boccioni dera, em
1911, a propósito da pintura, o nome de "transcendentalismo físico".
Um espaço de energias era posto em evidência na concepção da
escultura expansiva de Boccioni, que se refere às afinidades misterio-
30. Aqui Zanini insere a nota: "Ver Manifesto técnico da escultura, ver BRION, Carrà." Em rela
ção ao Manifesto, podemos inferir que Zanini utilizou as edições disponíveis no catálogo da
exposição "Futurismo e Futurism" (Milão: Bompiani, 1986), assim como a tradução em CHIPP,
Herschel. Teorias da arte moderna (São Paulo: Martins Fontes, 1996). Refere-se ainda às re
flexões sobre Carrà presentes em BRION-GUERRY, Liliane (ed.). L'année 1913: les formes es
theliques de l'a:uvre d'art à la veille de la Premiére Guerre Mondiale (Paris: Klincksieck, 1973).
31. Em nota, Zanini indica: "Críticas de Papini e Soffici-deter-se nesse ponto". Certamente o
desejo explícito pelo tipo e modo de escrita da nota indica um ponto de pesquisa para futuro
desdobramento. A questão que aqui parecia interessar a Zanini, dentro do projeto de sua ampla
pesquisa, era o tensionamento entre os dois grupos em relação ao lugar e ao papel da máquina (e
portanto da técnica) nas manifestações da arte, assim como questões políticas. Para saber mais,
conferir FABRIS, Annateresa. Futurismo: uma poética da modernidade. São Paulo: Perspectiva, 1987.
52 WALTER ZANINI
UMBERTO BOCCIONI. DINAMISMO DE UM CAVALO QUE CORRE E CASAS, 1915.
,
d '•IW. Que&ttt Jlritcto �-� •l � �•WN ftduo, n� df- ,•.-. liM ui:w.vit Wtu,,-f)ii-p1ffk_affll6 � ddl'-a -l:rulh,r;ia. lffltic••
\:=
A R!!llllmA
iU r �Ne
lA,1ALl,'\l
...
Sl.a• �
•1f'LA<!lll .111Ílll!ll!CIY
Allllll!Ollll
III� ,.. + rtsa111ilZA
=·
2ií\= �\+i'f!lAtú
·OílOINI! N!JMISMA1'1t1!
l::i htMEBf!A' • + Rmil!lA
--ef-sfllltln-r-NU-RlW ftl.ffll ltllll
... ,Pl!GfUSOl!ltt
.,. ,+ BilllTAUTA'
·1,llllllBIM!
'<-'-"
if\Selmffl.1188
.., + ltmliElll.lll!IA
�Qt&'
• ll!SPUlllllil.�
L'lllffll!IIIAUfA' + OOSlltAZ!ffl 91
1lflllllS!Mf,
,_ l
llAlll.ME llllll!ll!lilf
l
; +Sll8Cl!Affilt6Afftll!IS
;límllfflll .· í-
.(lOO\!!TA'
lldl!.ITA'
� \vaooitA'
oRmo, PEOANTI
=1•8lillllU
!!'/SNITIMV
\ EWlS!ml' li� f ffllE!mlll
;IIISIIMll.tll84 '+SWICIUIIE+lf8lllll lll&
+ Y.lllllll66111E!>ati-
tAIMllli
+
... l ltWA + HRlll.+
= &aU!lllll
Sl'IIIIIAfflfl+llteMW
:! + Pmt!Slt
il'all:IIU
:;:
ii\$ll!JDIU•
l-1'�
GWllfN
•
+
+-
, +Cllllll+ffltl
MARINETTI, BOCCIONI, CARRA, PIATTI E RUSSOLO. ARTE CINÉTICA FUTURISTA, APRESENTADA NA GALERIA SPROVIERI, 1914.
54 WALTER ZANINI
Balla aplicou suas formas geométricas e motivos imaginativos a
uma grande quantidade de móveis. Seus sucessivos projetos ambien
tais preocupavam-se com a totalidade plástica, como no que diz res
peito à cor e à luz. O crítico Germano Celant refere-se ao seu vínculo
com o cenário escultórico conceituado por Boccioni, "agindo e agen
te". Esse espaço, afirma Celant, "vai interpretado qual cenário potencial
para o comportamento de seu habitante e qual imaginário autodinâmi
co". Não é um acaso-ele afirma-que todos os artistas futuristas, de
Balla a Prampolini, de Depero a Pannaggi, alicerçando-se no projeto
ambiental, tenham demonstrado seu interesse também pela "perso
nalização" do espaço ativo da cena, tanto que o nascimento das res
pectivas pesquisas de espetaculosidade e ambientação, pública e pri
vada, é em 1914 quase contemporâneo, aventando-se a hipótese "de
um movimento e uma dinâmica que implicam a ação do seu habitante
e o movimento cenográfico", asseverando "que não se pode, de fato,
considerar o ambiente futurista sem a premissa da ação" (CALVES!,
1986, p. 522). Perspectivas distantemente premonitórias abriam-se com
esses conceitos e realizações para os envíronments de quatro décadas
mais tarde. Calvesi fala-nos do " fervor inventivo de Balla" e suas "anteci
pações de tantos fatos de vanguarda" (ibidem, p. XLVIII).
Em 1914, em Roma, a Galeria Sprovieri, celebrizada pelo apoio às
mostras e eventos futuristas, realizou a "Exposição Livre Futurista Inter
nacional", reunindo artistas de alguns países, além de recém-ingressan
tes italianos no movimento, como Ottone Rosai e Mario Sironi, e particu
larmente artistas de importante presença na continuidade do movimento,
a exemplo de Depero e Prampolini. Naquele ano, Marinetti e Francesco
Cangiullo apresentaram na mesma galeria o primeiro exemplar de arte
cinética futurista, pendurando uma construção que oscilava "do alto de
um teto, incitando o visitante a movê-la" (LISTA, 1987, p.13).
Em referências mais gerais sobre os pintores futuristas, pode afirmar
-se que, constituindo uma impulsão coletiva, onde se inserem outras influên
cias salientes- como a da cronofotografia de Étienne-Jules Marey, a foto
grafia de Eadweard Muybridge e o próprio fotodinamismo de Anton Giulio
Bragaglia, membro do movimento-, expressaram-se também por experiên
cias personalizadas as que situam Balla na esfera da abstração e a abran
gência europeia da vivência de Boccioni quando jovem, visitante de Paris e
outras capitais onde se desenvolveram as secessões expressionistas.
Primeira arregimentação artística do século XX comprometida com
a vida moderna em seus múltiplos aspectos socioculturais, exprimindo
a maior convicção nas formas que a existência contemporânea assume
na convivência com as tecnologias mais recentes, fundamentalmente di
versa em suas razões estéticas da arte precedente pela universalidade
de propósitos experimentais transpoéticos, o futurismo encontra-se nas
raízes dos outros movimentos da história vanguardista.
A grande capacidade de arregimentação de Marinetti conduziria o
Futurismo ainda muito adiante no tempo, tornando-o uma das tendências
mais perduráveis do modernismo. Essa qualidade organizativa do poeta
somou-se à do homem dotado de excepcional "senso das relações públi
cas, que permaneceu insuperado, ao menos na Europa e meio século antes
32. Essa parte do texto e, da mesma forma, quase todos os últimos parágrafos dos capítulos
dos livros eram esboços cheios de notas para possíveis desdobramentos que, de alguma ma
neira, traziam as relações com a contemporaneidade. Os trechos foram editados mantendo-se
essa característica.
56 WALTER ZANINI
No plano internacional, relacionamentos múltiplos do Futurismo se es
tabeleceram na Europa, nos Estados Unidos, na América Latina e no Japão.
Na França, as conexões-que implicam fortes litígios com o Cubismo-com
preenderam nomes como Robert Delaunay, Fernand Léger, Marcel Duchamp
e Raymond Duchamp-Villon. O interesse futurista pela máquina se faria pre
sente no desempenho do vorticismo, fundado em manifesto de 1915 na In
glaterra pelo pintor Wyndham Lewis, também voltado ao Orfismo de Delau
nay, e tendo presenças como Jacob Epstein, Henri Gaudier-Brzeska e David
Bomberg, além de poetas, a exemplo de Ezra Pound. Entre as maiores cor
rentes internacionais do início do século contendo vínculos com o futurismo,
as vanguardas russas e o dadaísmo ocupam um lugar destacado.
Vanguardas russas33
Os movimentos de arte que constituem as vanguardas russas, de impor
tante papel na história da modernidade, correspondem à transformação
política que se produziu no país nas três primeiras décadas do século XX.
Uma jovem e decidida geração participava do processo revolucionário
que se concretizou em 1917, disposta a romper com padrões estéticos es
tagnantes e motivada pelo seu encaixe na sociedade com interesses obje
tivos. Parte essencial dos propósitos em debate para a renovação da arte
russa implicava uma dupla atenção: de um lado, a presença de elementos
endógenos identificadores de uma antiga e profunda cultura; de outro, a
aproximação às poéticas visuais da atualidade exercidas em centros ar
tísticos ocidentais, aproximação que ocorreu na intensidade da expansão
internacionalista da época, com o progresso das comunicações. Foram
múltiplos os focos de seu impulso, destacados em perspectivas diversas
por historiadores, críticos e curadores.
Para os meios artísticos de Moscou e São Petersburgo, tornava-se
vital o esforço coletivo. A vontade da renovação aglutinava elementos de
identificação da antiga cultura eslava às poéticas visuais europeias, mani
festas em centros avançados, entre eles Munique (onde se fixara Kandinsky),
Berlim e, sobretudo, Paris. Grupos como Rosa Azul e os que se formaram a
seguir, como Valet de Carreau, indicaram a franca arregimentação de pro
pósitos dos artistas. Obviamente, não se pode esquecer de particularidades
fortemente individualizadas da criatividade, como a de natureza extraordiná
ria de Kandinsky, fundador da arte abstrata, atuando fora de seu país.
As relações com o Ocidente, fortes no decorrer do século XIX na lite
ratura e na música, eram das mais escassas nas artes plásticas. Entretanto,
no extremo final daquele século e início do XX, múltiplos fatores de apro
ximação provocaram uma situação inédita para a grande área desprovida
de intercâmbio. Várias cidades abriram-se ao Art Nouveau. Enfatiza-se com
razão o papel desempenhado por Sergei Diaghilev, ao lado de Alexandre
Benois e Léon Bakst, na formação do movimento de vanguarda Mir lskusstva
(O mundo da arte), que editou a revista de mesmo nome. Diaghilev seria
33. Nesta parte, talvez pela centralidade e importância das vanguardas russas, havia uma
nota de Zanini indicando: "Texto provisório, em estudo". Apesar de o texto apresentar
lacunas e trechos incompletos, além de muitas notas, optamos por incluir o tópico para
manter o gesto do autor de construir o cenário da produção artística modernista rumo a
uma desmaterialização cada vez mais acentuada.
58 WALTER ZANINI
As mudanças no meio russo-Construtivismo
Com semelhanças ao lado de aspectos contrapostos, o Suprematismo
e o Construtivismo, fundados respectivamente por Kasimir Malevitch e
Vladimir Tatlin, constituíram-se em contribuições de importância maior
para a arte do século XX. A primeira dessas tendências russas voltava-se
para ideários de puras estruturas formais, enquanto a segunda conduzia
sua base estética abstrata para a aplicação social, com a utilização de
recursos técnico-materiais do progresso industrial. Ambas assumiram
a ideologia da Revolução de 1917, mas esse propósito, que o poder so
viético inicialmente estimulava pela sua modernidade, assimilando-o aos
seus fins sociopolíticos, não tardou a ser sacrificado em favor de uma
arte oficial de temas programados34 • Com isso, o decisivo período das
vanguardas no país do leste europeu seria dramaticamente sacrificado.
Assimiladores do Cubismo e do Futurismo, os movimentos cultu
rais russos haviam demonstrado grande capacidade recriadora na intro
dução dos novos conceitos e métodos em seu ambiente periférico. O Fu
turismo, em particular, trazia metas que impregnavam a fase de agudas
mudanças políticas, sociais e econômicas, não tardando em dar retribui
ções ao Ocidente por mérito de sua universalidade atingida.
Os construtivistas Tatlin e Rodchenko, assim como Naum Gabo, fo
ram os pioneiros russos na concepção da arte de movimento em tempo
real. O projeto do Monumento à Terceira Internacional, de Tatlin (1917), na linha
do producionismo do seu "laboratório de arte", previa essa efetiva dinâmi
ca temporal. Anteriormente, desde 1914, nos contrarrelevos construídos,
em suas palavras, com "materiais verdadeiros" (lâminas industrializadas
de ferro e cobre, madeira, cordas etc.), eliminava-se a base escultural e si
tuavam-se essas construções de formas abstratas interpenetradas no alto
e no ângulo das paredes, conjugando-as assim diretamente à arquitetura
em espaços reais.
O projeto de Tatlin para o monumento não foi realizado. De um lado,
faltavam melhores condições tecnológicas de execução para uma obra de
tal magnitude e complexidade, e, de outro, a crise que envolvia o país revo
lucionário não facilitava a obtenção de recursos. No formato de uma enor
me torre, prevista para ter quatrocentos metros de altura, composta por du
pla espiral metálica que devia elevar-se entrelaçada e sustentada por trama
igualmente de metal, de transparência que tornaria visível o vácuo interno
ocupado por quatro espaços superpostos nas formas de cubo (na base),
trapézio, cilindro e hemisfério (no vértice), com elementos guarnecidos de
vidro, o monumento ia além da condição de requisitos exclusivamente es
téticos. Combinando razões arquitetônicas e escultóricas, o artista alme
java um edifício adaptado à nova ordem política e socioeconômica, na sua
destinação de abrigar manifestações culturais, um centro de irradiação de
informações e serviços administrativos. Entre os conceitos introduzidos no
projeto, era essencial o movimento cinético de seus volumes internos sis
tematizados para girar eletricamente em diferentes tempos.
34. Sobre essa importante passagem das vanguardas russas em relação ao regime comu
nista, vale a pena conferir GROYS, Boris. Obra de arte total Stalin. Valencia: Pre-textos, 2008.
A questão histórica aponta para as origens das tensões entre arte e poder.
60 WALTER ZANINI
e acionada por um motor-, contemporânea ao projeto de Tatlin, é um dos
ícones da arte cinética da primeira geração35 •
O número de artistas responsáveis pela inovação da arte cinética
foi, porém, dos mais restritos. Impulsionado pelo pensamento consciente
da evolução da existência humana em um quadro de presença progressi
va de uma segunda natureza-a tecnologia-, o projeto de uma dinâmica
do objeto, tradicionalmente estático, viu-se em dificuldades para a sua
consecução técnico-mecânica, o que justifica, em parte, não só a limita
ção da experiência a uns poucos (e o discreto número de trabalhos reali
zados pela maioria no conjunto de sua obra), como também o fato de essa
fração significativa, em geral, não ter perseverado no empreendimento.
Gabo, que projetara uma nova peça motorizada, declararia mais tarde, em
1937, que a mecânica na época deixava a desejar para os fins almejados.
A arte moderna russa, por intermédio de Alexander Scriabin e Vla
dimir Baranov-Rossiné, artista com frequência esquecido, foi igualmente
uma das primeiras a possuir representantes nas práticas que remontam
ao órgão de cor, criado possivelmente pelo frade jesuíta Louis Bertrand
Castel. Dessa fonte derivou o campo de pesquisas entre música e pin
tura, de incessantes controvérsias, objeto no século XX do livro Colour
-Music: lhe Art of Light [A arte da luz] (1927), de Adrian Bernard Klein. O
compositor Scriabin (POPPER, 1962, p.157) deu visibilidade cromática ao
seu Prometeu ou Poema de fogo, através de um "teclado de luz" (1908-10).
Entre 1910 e 1914, Baranov-Rossiné, pintor e escultor de formação, rela
cionou-se com o meio parisiense de Robert Delaunay e Sonia Delaunay
Terk, absorvendo influências do Simultaneísmo, do Cubofuturismo e do
Construtivismo. Desde o início de sua carreira em São Petersburgo, preo
cupava-se com a relação entre a pintura e a dimensão temporal. Para esse
fim, inventara o "optofone", instrumento semelhante a um teclado que lhe
permitia simultaneidade de projeção e transmissão de cores e sons.
Um aceno deve ser feito à importância dos elementos cinéticos e
luminocinéticos introduzidos no teatro russo de vanguarda, recordan
do-se nomes como o de Meyerhold, autor de concepção "biomecânica"
para o desempenho performático dos atores, robotização presente em
diretores como Annenkov, que se antecipam às ideias de Schlemmer na
Bauhaus (RIPELLINO, 1986, p.140). Colaboraram com Meyerhold artistas
como Rodchenko, Liubov Papava e Baranov-Rossiné.
À área do luminocinético inaugural ligam-se outros artistas, como
Raoul Hausmann, membro do movimento dadaísta em Berlim, e Moholy
-Nagy, a partir de sua atividade na Bauhaus, em cujo setor de teatro e co
reografia registram-se as experiências de Ludwig Hirschfeld-Mack, Josef
Hartwig e Kurt Schwerdtfeger.
Dadá e Surrealismo
As visões otimistas e progressistas imperantes na Itália e Rússia seriam
contraditas por outra vanguarda-a do anárquico estado de espírito dadá.
35. Apesar de Zanini não fazer referência ao nome da obra sobre a qual discorre, pelas ca
racterísticas apontadas podemos inferir que se trata de uma reconstrução, produzida em
1985, de Construção cinética-onda parada, de 1919-20.
62 WALTER ZANINI
PERFORMANCES DADA. CABARET VOLTAIRE, 1916.
giria com vigor nos anos 1950-60), não havendo nenhuma unidade maior
de linguagem entre seus membros, que fizeram uso de procedimentos
técnicos e materiais novos, do ready-made à colagem, da fotomontagem
ao filme, da poesia fonética e optofonética à antissinfonia, os dadaístas
foram de grande importância pelas suas inúmeras e originais publicações
e também pelas violentas e desconcertantes manifestações performáticas
que promoveram, recorrentes à provocação e ao escândalo. O Dadaísmo,
em sua ideologia demolidora, desloca para o artista o papel antes concen
trado na obra.
Para os futuros rumos da arte, a figura decisiva do Dadaísmo é Mar
cel Duchamp. Influenciado pelas formas dinâmicas do Futurismo e pela
cronofotografia de Étienne-Jules Marey, o artista franco-americano, que
se aplicara numa pintura de caracteres sucessivamente impressionistas,
simbolistas e cubistas, introduziu em sua obra uma identificável inves
tigação do movimento, como vemos em pinturas e desenhos de 1911-12, a
exemplo da série Nu descendo a escada. O deslocamento físico imaginário
da figura adquire nessas telas uma realidade maquinal na geometrização
dos planos acelerados, não limitados a uma pura concepção ou percepção
visual. Em pinturas como A noiva (1912) afirma-se o enigmático e recorrente
erotismo de Duchamp, permeado de uma ironia visceral.
Porém, entediado da pintura já nessa época, Duchamp conduziu
sua complexidade mental em anotações, desenhos e ensaios pictóricos
não tradicionais, inspirado pela alquimia, física, mecânica e biologia, ao
fim do que realizaria o seu trabalho capital: A noiva desnudada pelos seus
celibatários, mesmo (O grande vidro), elaborado entre 1915 e 1923. Insólita
em seu contexto técnico e material-desde o uso de placas superpostas
de vidro transparente (227,5cm x 175,8cm) até a utilização de poeira acu-
Uma série de cinco placas de vidro sobre as quais foram traçadas linhas
brancas e pretas, girando em torno de um eixo metálico; cada placa era
maior que a anterior e, quando se olhava de um certo ponto, tudo se juntava
e constituía um só desenho. Quando o motor girava, as linhas produziam o
efeito de círculos contínuos brancos e pretos, bastante tênues, como você
pode imaginar. (CABANNE, 1967, p.107)
64 WALTER ZANINI
IIARCEL DUCHAMP. ANÉMIC CINÉMA, 1926.
37. Zanini deixou uma nota nesse ponto: "Aqui Relâche, ver p. adiante, cinema de artista, p.
54, PERFORMANCE Goldberg". Com a breve nota, o autor parece apontar para outras rela
ções acionadas ou inauguradas pela obra de Picabia que iriam reverberar em proposições
contemporâneas da arte, como a performance e as relações entre arte e cinema. Fazendo
alusão ao livro de Roselee Goldberg, recorrente nas citações, e ao bloco sobre o cinema
de artista, Zanini parece mais uma vez reforçar o desejo de traçar uma rede de referências
em torno dos processos de desmaterialização da arte, especialmente ligada ao maquínico
e tecnológico, ao longo do tempo.
38. Estêncil.
39. Aqui, Zanini se refere aos jogos de palavras rápidos, irônicos e humorísticos presentes
nas obras de Man Ray.
66 WALTER ZANI�
ção inventada por Duchamp em 1932, ao ver uma de suas obras motoriza
das. O móbile tem sido anexado à estética cinética na sua sui generis dupla
condição de construção programada e mecanizada, além de objeto de mo
vimentos imprevisíveis. Ao abandonar os motores, talvez por desestímu
lo-utilizados numa curta fase entre 1932 e 1936, quando elaborou estruturas
de metal com formas curvas integrando o espaço ou dinamizadas diante
de um painel-, o artista-engenheiro Calder passou a dedicar-se ao móbile
suspenso, igualmente metálico, com seus discos, hastes e fios pintados de
branco e preto ou cores primárias, meticulosamente coordenados e perfei
tamente equilibrados, que se movimentam em ritmos temporais por impul
sos do ar ou, ainda, por interferência do espectador. Autores como Marcel
Brion, Frank Popper e Jack Burnham já mencionavam todo um repertório
de objetos animados ou suscetíveis de animação, de procedência e natu
reza as mais diversas, que podem ter sugerido a criação do móbile, como
bandeiras, estandartes, marionetes, bonecas, lâmpadas giratórias chine
sas ou mesmo autômatos e, ao lado disso, o mundo botânico, de galhos e
folhagens. A sensação lúdica que provoca a invenção calderiana não deve
fazer esquecer que se trata de uma obra contagiada por valores dadaístas
e surrealistas, por meio de Hans Arp e, talvez principalmente, de Juan Miró,
na sequência da incidência que sofreu do construtivismo de Piet Mondrian.
Contemporaneamente à fase inicial dos móbiles de Calder, e inde
pendentemente dessa concepção, em 1933, outro artista de importância
para a arte tecnológica, Bruno Munari, procedente do movimento futu
rista, a que se filiara em 1927, criou as Máquinas inúteis, construções de
40. Nota de Zanini: "[acima referência ao surrealismo. De Stijl, móbile, Mondrian ref. -?reti
rar daqui para lugar do móbile depois, de cinética? Hulten cat;.68, autômatos, talvez deixar
aqui e dizer que se volta ao assunto mais adiante]". O empreendimento histórico e concei
tuai que Zanini desenvolvia era amplo e se construía de forma rizomática. Aqui ele indica,
novamente, o catálogo da exposição "Arte italiana: Presenze 1900-45" (Milão: Bompiani,
1989), com curadoria de Pontus Hulten e Germano Celant. E aponta a dúvida de onde inserir
o capítulo de arte cinética, que pelo teor ainda muito inicial do texto, com muitas notas,
entrou posteriormente no projeto.
41. Sobre as relações artísticas entre Paris e Nova York, consultar Paris-New York 1908-68, ca
tálogo republicado da exposição realizada no MNAM, Paris, 1977. Centre Pompidou, Gallimard,
Paris, 1991.
68 WALTER ZANINI
superfície de texturas em relevo). Os artistas que se reuniram no Club
Dada tinham o objetivo de relacionar seus procedimentos técnicos dire
tamente às condições de vida da época, como afirmam no manifesto de
1918. A obra de Raoul Hausmann, artista plástico, escritor e poeta influen
ciado pelo Futurismo e Cubismo, é a propósito um dos melhores exemplos
a apontar. Inventor da fotomontagem, realizador de colagens, greffages,
assemb!ages e gravuras, exprimiu igualmente valores pessoais na poesia
fonética e optofonética. Hausmann (1959, p. 41), em "Peinture Nouvelle et
Photomontage", de seu livro Courrier Dada, narra que começara a realizar
quadros com recortes de papel colorido, jornais e cartazes no verão de
1918. Foi, entretanto, em temporada na ilha de Usedom, no Mar Báltico, que
teve a ideia de empregar a nova técnica ao contemplar litografias coloridas
representando a imagem de um granadeiro sobre um fundo de caserna,
com o detalhe de, no lugar da cabeça do soldado, ter sido colocado seu
retrato fotográfico. Ainda em 1918, iniciou-se em Berlim nessa visão nova,
servindo-se de fotos de imprensa e de cinema, lembrando que:
42. Depoimento do artista ao autor no verão de 1965, no Brasil, em São Paulo, onde residiu
por vários anos. Seus móbiles, assim como brinquedos e outros objetos, eram feitos em
material perecível. O nome de Golyscheff deve ser rememorado. Ele sofreu a destruição
generalizada de suas partituras e obras gráficas no período nazista. Ver catálogo de mostras
individuais realizadas no MAC-USP, em 1965 e 1975.
43. Como antes lembrado, Baranov-Rossiné fora autor, na Rússia, de outra realização no gênero.
70 WALTER ZANINI
KURT SCHWITTERS. MERZBAU, 1937.
A contribuição da Bauhaus
A aspiração de promover uma aproximação entre a arte e o mundo in
dustrial estava no cerne da criação do ensino da Bauhaus, na Alemanha
(1919). Consoante aos princípios que remontam aos movimentos Arts and
Crafts e Deutscher Werkbund, influenciada pela concepção construtivista
do "laboratório de arte" de Tatlin e pelo movimento holandês De Stijl, do
qual participaram Mondrian, Van Doesburg, Van der Leck e o arquiteto
Rietveld, a escola fundada pelo arquiteto Walter Gropius dispunha de
condições teóricas e práticas para cumprir os objetivos de uma integra
ção entre as artes, a arquitetura e o universo das artes aplicadas. Assu
miu assim a Bauhaus uma atitude criadora coletivista, aproximadora das
separadas dimensões da arte e da vida, de acordo, portanto, com a ideo
logia socialista-razão, porém, de suas dificuldades ante as reações na
zistas. Inaugurada em Weimar, em 1919, transferida para Dessau em 1925,
seria fechada pelos nazistas em 1933, depois de instalada em Berlim no
ano anterior. Foi na Bauhaus que surgiu o conceito de design.
As investigações da luz-quer no sentido do teor das cores na pintura
dos grandes mestres da abstração, quer no uso da energia elétrica, difun
dido desde o Futurismo-tiveram importância na Bauhaus. Diversificadas
personalidades participaram do corpo docente da escola, voltadas em geral
para a arte abstrata e concreta, como Paul Klee, Wassily Kandinsky e Oskar
Schlemmer, além de Laszlo Moholy-Nagy, Johannes ltten, Lyonel Feininger e
Josef Albers. Dentre eles, Moholy-Nagy foi dos mais influentes no caminho
seguido pela instituição. Precedido de conceitos futuristas e inspirado por
Tatlin, Malevitch e EI Lissitzky, o artista construtivista húngaro destinava-se a
ser um dos principais mestres de sua geração no desenvolvimento das ideias
plásticas pela apropriação das novas tecnologias. Para Moholy-Nagy, a pin
tura e a escultura, transformadas pela luz e pelo movimento, mudavam a con
dição de sua existência. Na escultura, empregou os materiais oriundos da
recente industrialização, como o acrílico, o galalite e o alumínio, criando pla
nos geométricos diáfanos e dinâmicos, em uma via que inelutavelmente se
afirmará na desmaterialização do objeto artístico. O Modulador de luz-espaço,
construção de quase dois metros de altura que conciliava diferentes lâmi
nas metálicas, desenvolvido entre 1922 e 1928, fazia movimentos giratórios
acionados por um mecanismo elétrico, produzindo efeitos luminosos que
eram projetados ao redor. Essa obra pôs Moholy-Nagy entre os fundado
res da arte luminocinética. Seu inspirador, nesse aspecto, foi Malevitch.
A multiplicidade de suas atividades incluiu a fotografia (em 1922 ele reali
zou fotogramas, contemporaneamente a Man Ray), novas técnicas tipográ
ficas, filme experimental e cenários de ópera. Sua lucidez na compreensão
da arte da idade industrial projetou-se em toda a sua produção multiforme,
que incluiu a experiência que realizou em 1922, ao ordenar a uma indústria,
por telefone, a feitura de pinturas esmaltadas (MOHOLY-NAGY, 1947, p. 77).
A contribuição de Moholy está presente nos seus livros e textos,
assim como no importante incentivo que trouxe aos estudantes na Ale
manha e posteriormente em Chicago, a partir de 1937, ao fundar a Nova
Bauhaus. Antevisões de Moholy-Nagy, como a do aproveitamento da luz
artificial em projetos abarcando espaços em grande escala, se tornariam
realidade em décadas posteriores.
72 WALTER ZANINI
Outro mestre da Bauhaus, o pintor e escultor Oskar Schlemmer, atuan
do na área de teatro e coreografia, demonstrou uma possante motivação pela
arte em movimento, sobre a qual deixou reflexões e experiências inovadoras.
Schlemmer procurou unificar os diferentes aspectos da linguagem teatral, se
gundo a filosofia de síntese da instituição. A inexequibilidade do seu projeto
prematuro de introduzir robôs suficientemente destros no Balé triádico (1922-
-23), um dos espetáculos que criou com música de Paul Hindemith, levou-o
à incumbência dada aos dançarinos (cujos trajes robotizados desenhou) de
simularem o comportamento do autarca ao moverem-se no palco de forma se
melhante ao deslocamento das peças em um tabuleiro de xadrez. Como vimos
antes, o teatro de vanguarda russo precedera-o nesse propósito.
O tema do robô desenvolvia-se francamente naqueles anos por várias
formas, tanto nas letras como nas artes, entre teses a favor e contra a máqui
na. Schlemmer mostrava-se escrupuloso em relação aos usos mecânicos na
arte, temendo a sua banalização, sendo reconhecida a qualidade do seu balé
no aproveitamento dos recursos paródicos que tinha em vista. Pelo seu inte
resse no movimento real na arte, constitui-se num dos iniciadores do cinetis
mo, assim como do que futuramente seria chamado de performance.
73
OSKAR SCHLEMMER. BALÉ TRIÁDICO, 1926.
OSKAR SCHLEMMER. ESBOÇO PARA FIGURA EM
MOVIMENTO DE DANÇA, 1921.
Além de essencial na obra de Moholy-Nagy, a arte luminocinética,
dimensão maior do cinetismo das vanguardas, de grande difusão futu
ra, manifestava-se com intensidade na área de teatro da Bauhaus, onde
também lecionavam Josef Hartwig, Kurt Schwerdtfeger e Ludwig Hirsch
feld-Mack. Eles descobriram e desenvolveram uma nova forma de luz em
movimento. Hirschfeld-Mack descreveu como isso se deu:
REFERÊNCIAS
BAUDELAIRE, Charles.
Curiosifés esfhéliques. Paris: Michel Lévy Frêres
Éditeurs, 1873.
BENJAMIN, Walter.
A obra de arfe na época de suas técnicas de reprodução
(Preâmbulo). ln: Coleção "Os pensadores".
São Paulo: Abril, 1983.
BRIGGS, Asa.
William Morris Selecfed Wrifings and Designs.
Londres: Penguin Books, 1962.
BUCARELLI, Palma.
Catálogo da exposição "Enrico Prampolini",
Galleria Nazionale d'Arte Moderna. Roma: 1961.
CABANNE, Pierre.
Marcel Duchamp: engenheiro do tempo perdido.
São Paulo: Perspectiva, 1967.
CALVESI, Maurizio.
Futurismo. ln: HULTEN, Pontus (org.). Futurismo
e futurism. Milão: Bompiani, 1986.
__. Quattro maestri dei primo futurismo italiano.
Catálogo da XXXIVª Bienal de Veneza, 1968.
FRAMPTON, Kenneth.
História crítica da arquitetura moderna. São Paulo:
Martins Fontes, 1997.
GIEDION, Sigfried.
Mechanization Takes Command. Nova York: Oxford University
Press, 1948.
__. Espace, temps, architecture. Paris: De noel
Gonthier, 1978.
HAUSMANN, Raoul.
Courrier Dada. Paris: Le Terrain Vague, 1959.
PEVSNER, Nikolaus.
Pioneiros do desenho industrial. Lisboa:
Editora Ulisseia,
1962 (1936).
POPPER, Frank.
Origins and Development of Kinetic Art. Nova York:
New York Graphic Society e Studio Vista, 1968.
RICHTER, Hans.
Dadá: arte e antiarte. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
RIPELLINO, A. M.
Maiakóvski e o teatro de vanguarda. São Paulo:
Perspectiva, 1986.
SCHAPIRO, Meyer.
Modem Art 19th and 20th Centuries. Nova York:
George Braziller, 1978.
SCHARF, Aaron.
CreativePhotography. Londres: Studio Vista, 1965.
SHARP, Willoughby.
Videoperformance. ln: SCHNEIDER, Ira e KOROT,
Beryl (orgs.). Vídeo Art: an Antology. Nova York-Londres:
Harcourt Brace Jovanovich, 1976.
SYDHOFF, Beate.
Raoul Hausmann. Estocolmo: Moderna Museet, 1967.
WIENER, Norbert.
Cibernética e sociedade: o uso humano de seres humanos.
São Paulo: Editora Cultrix, 1968.
A Editora WMF Martins Fontes empenhou-se INDICAÇÃO EDITORIAL
em localizar todos os detentores de direitos autorais, Neusa Zanini
ou eventuais herdeiros, das obras aqui reproduzidas. Regina Silveira
Mas, em alguns casos, não conseguiu encontrá-los. Cacilda Teixeira da Costa
Mesmo assim, decidiu reproduzir essas obras, Martin Grossman
dispondo-se a acertar os direitos caso herdeiros
sejam encontrados. COORDENAÇÃO EDITORIAL
Fabiana Werneck
Copyright©2018, Editora WMF Martins Fontes Ltda., PROJETO GRÁFICO
São Paulo, para a presente edição. Raul Loureiro
DESIGNER ASSISTENTE
Todos os direitos reservados. Este livro não pode ser Mariane Kletenhoffer
reproduzido, no todo ou em parte, armazenado em sistemas PREPARAÇÃO
eletrônicos recuperáveis nem transmitido por nenhuma Rogério Trentini
forma ou meio eletrônico, mecânico ou outros, sem REVISÕES GRÁFICAS
a própria autorização por escrito do editor. Richard Sanches
1• edição 2018 Marisa Rosa Teixeira
PESQUISA E LICENCIAMENTO DE IMAGENS
Tempo Composto
Manica de Souza
Maria Favoretto
ACOMPANHAMENTO DA EXECUÇÃO
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Metalivros
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Bianka Tomie Ortega
Roberta Cabral Vieira
Zanini, Walter, 1925-2013 Ronaldo Graça Couto
Walter Zanini: vanguardas, desmaterialização, tecnologias PRODUÇÃO GRÁFICA
na arte/ organização Eduardo de Jesus. -São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2018.
Geraldo Alves
Impressão e acabamento
ISBN: 978-85-469-0170-8 Cromosete - gráfica e editora ltda.
1. Arte brasileira- Século 20 2. Crítica de arte- Brasil
História-Século XX 3. Tecnologia na arte 4. Zanini, Walter,
1925-20131. Jesus, Eduardo de. li. Título.
17-05446 CDD-709.81