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HISTÓRIA G E R A L D A S CIVILIZAÇÕES

volume complementar

publicado sob os auspícios do


Prof. E. Simões de Pcnila. Catedrático de História e e x - D i r e t o r d a
Faculdade de Filosofia, Ciências e L e t r a s d a U n i v e r s i d a d e de
São P a u l o

JEAN GLÉNISSON

INICIAÇÃO
AOS

ESTUDOS HISTÓRICOS

com a colaboração de

Pedro Moacyr Campos

Emília Viotti da Costa

D I F U S Ã O E U R O P É I A D O L I V R O

SÃO PAULO

1 9 6 1
CAPÍTULO I I

O OBJETO INTELECTUAL DA PESQUISA:


O FATO HISTÓRICO

" S a b e m o s hoje em d i a q u e , no m u n d o
visto pelo h i s t o r i a d o r , não e x i s t e m " f a t o s " ,
se entendermos por isso u m a série de fenô-
menos e s t r e i t a m e n t e ligados u n s aos o u t r o s
em s u a sucessão, a ponto d e formar u m a
unidade inseparável p a r a o nosso espírito
e que podemos, aliás, i s o l a r f a c i l m e n t e , p e l o
pensamento, do estado do m u n d o no q u a l
se p r o d u z i r a m . T a l v e z e x i s t a m tais fatos n a
física. .. M a s n a d a de s e m e l h a n t e há n a
história, n a m e d i d a em q u e e l a é, p a r a nós.
o c o n h e c i m e n t o do passada h u m a n o . "

Joseph HOUES

" T ^ A R E C E , à primeira vista, enquanto permanecemos


Os fatos históricos._ £ n lógica formal, que existe uma ciência especial,
a

a história, que esta ciência estuda u m a certa c a -


tegoria de fatos — c s fatos históricos — e que e l a os estuda segundo u m
método apropriado à natureza destes fatos" ( 1 ) . T a l e r a a concepção
mais ou menos explicitamente admitida no começo do século. Não é certo
que cinqüenta anos de controvérsias tenham sempre determinado modifi-
cações n a s suas linhas principais.
"É u m fato"; "apoiamo-nos n a autoridade dos fatos";"os fatos f a l a m
por s i " ; e i s aí expressões consagradas, que encerram discussões e tranqüi-
lizam os historiadores. Realidade evidente, acontecimento c u j a autentici-
dade é indiscutível, o "fato" parece corresponder a uma noção tão c l a r a ,
a ponto de dispensar, geralmente, reflexões m a i s profundas concernentes
ao sentido da p a l a v r a . Sem preocupações com a teoria, nossos antigos
eruditos trabalharam metodicamente, durante vários séculos, n a exumação,
no desbastar e no polimento dos fatos, a serem alinhados no celeiro d a

(1) C h . S E I G N O B O S , La méthode historique appliquée aux sciences sociales,


pág. 1 . Notemos não s e t r a t a r a q u i d a concepção p e s s o a l de S e i g n o b o s .
124 INICIAÇÃO AOS ESTUDOS HISTÓRICOS

história, c a d a u m no lugar a êle determinado para sempre pela s u a catego-


r i a cronológica: século, ano, mês, dia e hora, se necessidade houvesse.
Q u a n d o este trabalho empírico lhes tivesse permitido determinar que tal
príncipe subira ao trono em t a l dia, que t a l batalha s e travara em t a l lugar,
e m t a l momento, com tal resultado, sentiam-se eles perfeitamente felizes.
T i n h a m consciência de haver descoberto, precisado ou confirmado, graças
a o s e u exame crítico, um "fato histórico": um acontecimento notável do
passado, que se produzira realmente em lugar e momento bem exatamen-
te determinados. N a prático (reconheçamo-lo honestamente), talvez não
procedamos de maneira diferente, mas tornamo-nos m a i s exigentes, quan-
to a o sentido de nosso trabalho.
Desde que a história pretendeu, quando não igualar-se às ciências da
natureza, ao menos tomar s e u lugar entre a s disciplinas científicas, achou-
-se e l a , sem dúvida alguma, diante da necessidade de dar precisão à no-
ção de "fato histórico". Não repousam a física e a química, c u j a segu-
rança ela a d m i r a v a e i n v e j a v a , em dados reais da experiência? " O s fatos
são a única realidade que p o s s a dar a fórmula à idéia experimental e, ao
mesmo tempo, servir-lhe de c o n t r o l e . . . " ( 2 ) . M a s não precisamos levar
muito longe a comparação, p a r a nos certificarmos d a dificuldade de assi-
m i l a r os fatos estudados pelos físicos e químicos, aos que são tradicional-
mente de competência do historiador. A distinção tornou-se de t a l forma
b a n a l , que temos até acanhamento em enunciá-la. O fato científico é sus-
cetível de repetição. Esta repetição permite formular leis, estabelecer cons-
tantes. Abordando-se, ao contrário, os fatos históricos, sentimos estar des-
cobrindo fenômenos irreversíveis.
Deveras, o que s e entende comumente por "fatos históricos", são os
fenômenos materiais, as coisas que acontecem aos homens: os aconteci-
mentos ( 3 ) . O r a , estes são dificilmente previsíveis, jamais idênticos em
seus detalhes e de importância infinitamente v a r i a d a : acontece-lhes afetar
todos os homens, m a s podem, também, reduzir-se a u m simples gesto, a
u m a palavra. São estritamente localizados no tempo e no espaço e, se

(2) Claude BERNARD, Introduction à la médecine expérimentale, Paris, 1865.


págs. 9 2 - 9 3 .
<3> Éste p a r e c e ser o s e n t i d o que V o l t a i r e a t r i b u i à p a l a v r a " f a t o " : "Odeio
os pequenos fatos, c o m eles m u i t o s outros t ê m s o b r e c a r r e g a d o suas compilações".
O Dictionnaire de la langue française de L i t t r é define o fato " c o i s a feita, a t o , ação";
"toda coisa q u e acontece, que t e m l u g a r " , m a s também: " t o d a coisa c u j a r e a l i d a d e
f o i r e c o n h e c i d a , c o n s t a t a d a " . François S I M I A N D ("Méthode h i s t o r i q u e et s c i e n c e so-
c i a l e " , publicado i n i c i a l m e n t e n a Revue de synthèse historique, 1903, e recentemente
r e p r o d u z i d o nos .Annales, 1 5 . ° a n o ( 1 9 0 6 ) , págs. 8 3 - 1 1 9 ) , a s s i m i l a o fato histórico ao
acontecimento. E m p r e g a indiferentemente u m a e outra p a l a v r a . Recentemente, J e a n
BÉBARD ("L'homme f a i t - i l s o n h i s t o i r e ? " , in Revue historique, pág. 2 5 6 ) , fala
d o s " f a t o s n o v o s q u e sobrevêm. O que sobrevêm assim, e m todos os d o m í n i o s . . . é
o acontecimento".
O OBJETO INTELECTUAL DA PESQUISA: O FATO HISTÓRICO

muitas vezes o homem é seu autor consciente, c o m muito m a i o r freqüên-


c i a é êle s u a vítima ou seu beneficiário involuntário. De qualquer forma,
ninguém pensaria e m reproduzi-los n u m laboratório, ou em controlá-los ex-
perimentalmente. Como reconstruir, a não ser pelo espírito — como todos
os inconvenientes e imperfeições daí decorrentes — as condições únicas
num tempo irreversível que cercaram e provocaram o nascimento de u m
fato, enquanto, ao contrário, toda nossa experiência nos p r o v a que, à dis-
tância de séculos e sendo "todas a s coisas i g u a i s " , é possível conjeturar-
mos sem qualquer risco acerca d a ação de um corpo químico sobre outro
corpo? Admiiindo-se a reunião dos mesmos atores, a reconstituição d a s
mesmas circunstâncias, como ousar predizer que, em qualquer momento,
o fato reproduzido se desenrolaria de maneira idêntica a o s e u modelo?
N a medida e m que o acontecimento tem sua fonte n a psicologia do homem
e age sobre esta, o experimentador s e encontraria à mercê de todas a s
surpresas. Somente o detetive genial dos romances policiais prevê sem
erro as reações exatas dos suspeitos, procedendo à reconstituição do crime.
Nossos conhecimentos atuais nos impossibilitam acalentar esperanças se-
melhantes. Assimilado a o acontecimento, então o fato histórico surge como
marcado p e l a unicidade. Excluído de qualquer repetição, revela-se como
o elemento motor d a história, como o fator d a transformação ( 4 ) .

Esta noção simplificada é mantida mais ou menos conscientemente


pelo grande público. Entre os historiadores, os que a adotaram ressentem-
-se de s u a insuficiência. Assim, opõem eles, a o fato-acontecimento, a s
instituições e os costumes, elementos duradouros d a matéria histórica.
Outros, a o contrário, distinguem o acontecimento, estritamente localizado
no tempo e no espaço, do fato, marcado essencialmente pela s u a duração:
as instituições, neste caso, passam a ser os verdadeiros fatos. Desde que
procuremos aprofundar o sentido, a p a l a v r a "fato", então, parece-nos sin-
gularmente equívoca. O Vocabulaire phiíosophique de Lalande, onde s e
destacam estas diferenças de interpretação, invoca, para tornar mais c l a r a
a distinção por alguns estabelecida entre os fatos e os acontecimentos, o
exemplo d a s batalhas, que se integram, ao mesmo tempo, n a s duas cate-
gorias. Acontecimentos, porque se desenrolam em tempo e lugar bem de-
terminados. Fatos, por se considerarem "como u m elemento d a realidade,
cuja existência é incontestável p a r a o historiador e que pode servir de
base a raciocínios ou a hipóteses".
Dificilmente vemos q u a l acontecimento poderia escapar a este duplo
caráter. Insensivelmente, escorregamos, de u m a interpretação relativa-
mente estreita da expressão "fato histórico", p a r a uma concepção de t a l
modo a m p l a que engloba, efetivamente, todos os elementos d a realidade

( 4 ) A c e r c a do caráter " ú n i c o " do fato histórico, r e c o m e n d a - s e R o g e r M E H X , "Dia-


logue de l ' h i s t o i r e et de l a sociologie", i n Cahiers internationaux de sociologie, t. 3
Ü947), pág. 138.
12G INICIAÇÃO AOS ESTUDOS HISTÓRICOS

c u j a existência é incontestável p a r a o historiador. Os acontecimentos, a s


instituições e os costumes tornam-se, assim, fatos históricos. Para Langlois
e Seignobos, que já admitimos como representando o essencial de u m pen-
samento comum à maioria dos historiadores do fim do século passado, o
fato histórico corresponde, incontestavelmente, à matéria-prima da história,
seja q u a l fôr a natureza dos fenômenos estudados e independentemente de
seu g r a u de generalidade. A este respeito, a opinião de Seignobos não pa-
rece ter sofrido variações, desde os tempos d a Introduction aux études his-
toriques até à Leffre escrita no f i m de s u a v i d a e digna d e ser tida como
seu testamento espiritual. O historiador, segundo seu ponto de vista, es-
tuda, ao mesmo tempo, fatos materiais conhecidos pelos sentidos (condições
materiais; atos dos homens) e fatos de natureza psíquica (sentimentos,
idéias, impulsos), acessíveis somente à consciência. Incluiremos, assim,
sob o vocábulo "fatos históricos", fenômenos tão diferentes entre s i quanto
os puros acontecimentos, ou os fatos da escrita, d a língua, doutrinas, usos
— e de um grau de generalidade tão incomensurável quanto os costumes
e as crenças ou os movimentos e as p a l a v r a s ( 5 ) .
Nossas tentativas de definição desembocam, portanto, em surpreenden-
tes incertezas. E , n a verdade, limitamo-nos, até aqui, a p e n a s ao que se
oculta por trás da p a l a v r a "fato", negligenciando um pouco o adjetivo gue
o acompanha. Por que razões é um fato histórico? A resposta clássica
surge imediatamente: porque, pertencendo à história, é passado e opõe-se
aos fatos atuais inacessíveis à história, ainda, dada a falta do necessário
recuo. Distinção corrente, mas q u e perde muito de seu valor, quando obser-
vamos a inexistência de fatos c u j a posição diferente n a e s c a l a do tempo
autorize a considerar como de natureza dessemelhante. A objeção refor-
ça-se, se refletirmos que, no próprio instante e m que c e s s a de verificar-se
( s e s e trata de um acontecimento), ou de existir ( s e se trata de u m a insti-
tuição) um fato pertence já ao passado e não poderia ser visto de outra
forma pelo observador contemporâneo ( 6 ) .
É preciso, então, buscar alhures, voltar, mesmo, à noção v u l g a r do
fato encarado como histórico por s e r digno d a história: por ser importante.

(5) A história, d i z C h . S E I G N O B O S ( " L a dernière l e t t r e de C h . Seignobos à F e r -


d i n a n d L o t " . in Revue historique, t. C C X 0 9 5 3 ) , pág. 5 ) , " d e v e e s t u d a r , c o n c o m i -
t a n t e m e n t e , duas espécies de fatos r a d i c a l m e n t e d i f e r e n t e s : 1.°) f a t o s m a t e r i a i s c o -
n h e c i d o s pelos sentidos (condições m a t e r i a i s e atos d o s h o m e n s ) ; 2.°) fatos d e n a t u -
r e z a psíquica (sentimentos, idéias, i m p u l s o s ) acessíveis somente à consciência, m a s dos
quais não se pode f a z e r abstração, p o r q u e i n s p i r a m a c o n d u t a dos h o m e n s e i n s p i r a m
seus atos r e a i s " . M a s a v e r d a d e é q u e não se e n c o n t r a e m parte a l g u m a , n a o b r a d e
L a n g l o i s e Seignobos, u m a definição f o r m a l d a p a l a v r a " f a t o " .
(6) "Não há caráter histórico i n e r e n t e aos fatos, histórica é a p e n a s a m a n e i r a
de conhecê-los", d i z S E I G N O B O S ( L a méthode historique, pág. 3 ) . O que i m p l i c a n a
conclusão: " A história não pode s e r u m a ciência, e l a é somente u m processo d e c o -
nhecimento".
O OBJETO INTELECTUAL DA PESQUISA.: O FATO HISTÓRICO 127

Este é, n a realidade, o sentido mais divulgado no público; o que é mantido,


de qualquer modo, quotidianamente, por jornalistas ávidos do sensacional.
M a s haverá noção mais subjetiva, mais variável, mais incerta e mais capaz
de fazer injustiça à própria história? Sabe-se muito bem como u m fato,
importante para u m observador do século passado, é tido por completa-
mente insignificante aos olhos do historiador do século X X . O exame aten-
to dos inventários de arquivos nos forneceria u m a prova prática do que
dissemos. Num momento e m que a história política a s s u m i a o primeiro
lugar, os especialistas encarregados de fazer os inventários mantinham
nas suas análises sumárias, instintivamente, os detalhes relativos a u m
interesse político, negligenciando n a maior parte do tempo, com i g u a l es-
pontaneidade, o que preferencialmente nos interessa hoje e m dia, pois vol-
tamos nossas atenções para o aspecio econômico e social da história.
Os geólogos, também, não foram descobrir a existência do minério de
urânio em quantidades apreciáveis no solo terrestre somente a partir do
momento em que o urânio, reputado raro e de uso restrito, tornou-se indis-
pensável, em grande quantidade, à pesquisa científica e à indústria?
Exigir-se-ia, ao menos, precisar o que s e entende por "importância"
dos fatos. Aceitaremos, então, n a falta de melhor — e, aliás, em muito
boa companhia — que um fato pode ser considerado como de importância
histórica quando produziu conseqüências. Esclarecemos imediatamente,
por precaução, que todos os fatos têm a s suas, mas que estas são mais
ou menos consideráveis numa e s c a l a humana, submetida, de resto, a u m a
constante revisão.
Henri Pirenne, Henri Lévy-Bruhl, Paul Harsin, desenvolveram esta tese
— Lévy-Bruhl, especialmente ( 7 ) . P a r a êle, aliás, u m fato é histórico,
quando possui, conjuntamente, a s qualidades de fato passado e de fato
portador de conseqüências. Pois não devemos empregar u m a medida gros-
seiramente cronológica. Não b a s t a que u m fato tenha verdadeiramente
existido numa época anterior para que s u a existência seja histórica.
É preciso, ainda, que tal existência se tenha manifestado. A importância,
frente à história, de um texto inédito durante muito tempo é nula, até o d i a
de s u a publicação. O que importa, se o historiador estuda uma doutrina
filosófica ou u m a crença religiosa, não será o sentido verdadeiro desta
doutrina ou desta crença, m a s a s interpretações a elas dadas pelos ho-
mens que as adotaram, repeliram ou comentaram, durante o tempo em
que exerceram influência. Poderemos, e por muito tempo, considerar como
um grande estadista um t a l político favorecido pela fortuna. No d i a em
que alguma descoberta de documentos revelar s u a insignificância, o his-
toriador tem o dever de acentuar, não esta revelação inesperada, m a s sim

(7) H e n r i L É V Y - B R U H L , " Q u ' e s t ce que l e f a i t h i s t o r i q u e ? " , in Revue de synthèse


historique, t. 42 ( 1 9 2 6 ) , págs. 53-59. E s t e artigo, q u e a t r a i u p a r t i c u l a r m e n t e a s a t e n -
ções d o s h i s t o r i a d o r e s , f o i r e s u m i d o p o r P a u l H a r s i n ( " C o m m e n t o n écrit l ' h i s t o i r e " ) .
128 INICIAÇÃO AOS ESTUDOS HISTÓRICOS

a opinião favorável de seus contemporâneos, relativamente ao grande ho-


mem bruscamente destronado.
Nesta perspectiva, o fato histórico é, antes de tudo, u m fenômeno de
opinião, o que não o impede de ser, também, um fenômeno material, u m
acontecimento. O povo de Paris tomou a Bastilha, em 14 de julho de 1789:
eis o fato materialmente bruto. O povo de Paris acreditou, ao tomar a
Bastilha, estar libertando a s infelizes vítimas do poder absoluto; a poste-
ridade ratificou de t a l forma o s e u julgamento, que fêz de 14 de julho o
símbolo do triunfo d a liberdade republicana sobre o arbítrio monárquico:
eis o fenômeno de opinião. Percebemos bem o nosso exemplo: o fenôme-
no de opinião ultrapassa, em importância, o fato material que lhe deu n a s c i -
mento, sobretudo quando sabemos o modo pelo qual o próprio poder r e a l
e n c a r a v a a destruição de u m a v e l h a fortaleza, onde não m a i s se a c h a v a m
encarcerados, em 1789, senão m e i a dúzia de personagens duvidosos, es-
croques ou semiloucos.
É no domínio d a história religiosa que os fenômenos de opinião surgem
mais nitidamente, sob seu aspecto de fatos históricos. U m mito — o d a s
origens de Roma, por exemplo — pode revestir uma importância conside-
rável, mesmo quando descobertas arqueológicas revelem estar êle desti-
tuído de qualquer realidade material. Sem pretender avançar num pro-
blema metafísico. P a u l Harsin a f i r m a a existência histórica do diabo. N ã o
é e l a atestada pelas atas de numerosos processos de feitiçaria? O q u e
importa, p a r a o historiador, é que os "feiticeiros", os juízes e o público te-
nham acreditado, c o m igual convicção, na presença e n a ação do Maligno
neste mundo terreno.
Sobre tais temas são possíveis a s variações aparentemente mais p a r a -
doxais. O falso histórico é "reabilitado". Desde que produziu conseqüên-
cias, toma-se u m fato histórico notável. Conhece-se o famoso exemplo dos
falsos poemas de O s s i a n , este bardo escocês do século I I I , brotado, em 1762,
d a imaginação de u m certo Macpherson. N a realidade, a s "obras" d e
O s s i a n tinham sido compostas pelo seu assim chamado editor, que se ins-
p i r a v a e m lendas cujo passado não remontava além do século X I I . E l a s
p a s s a r a m imediatamente por autênticas e desempenharam u m tão impor-
tante p a p e l n a evolução d a sensibilidade e d a literatura contemporâneas,
que n e n h u m historiador pode desprezá-las. S u a influência estendeu-se
à I n g l a t e r r a , França, Itália e Alemanha. F o r a m traduzidas e m versos ita-
lianos, transpostas p a r a o alemão, sueco, dinamarquês e holandês. Goethe
inspirou-se nelas, n o Werther. F o r a m a leitura favorita de Napoleão Bo-
n a p a r t e . Chateaubriand, Musset, Vigny, retomaram seus temas. Graças
a O s s i a n , a m e l a n c o l i a entrou n a moda e falsos poemas contribuíram p a r a
o nascimento de u m realíssimo movimento literário: o Romantismo.
A l g u n s séculos antes, uma coleção de f a l s a s cartas pontificais, prova-
v e l m e n t e fabricadas n a França durante o século IX, fora divulgada sob o
nome d e Santo Isidoro de Sevilha. Mesclando sutilmente suas invenções
O OBJETO INTELECTUAL DA PESQUISA: O FATO HISTÓRICO 129

a documentos autênticos, o autor tivera o intuito de proteger os bispos con-


tra a justiça l a i c a e contra a s sentenças de seus próprios superiores. Atri-
buíra uma autoridade soberana ao papa, a fim de que os bispos pudessem
sempre apelar a êle das decisões tomadas em escalões intermediários da
hierarquia. N a mesma coletânea, figurava a falsa Doação de Constantino,
conferindo a o p a p a Silvestre e seus sucessores direitos que se elevavam
a c i m a do Império, atribuindo-lhes a supremacia sobre todas a s igrejas do
mundo. A s F a l s a s Decretais, obra-prima de falsificação, tiveram autorida-
de durante c e r c a de sete séculos. Desempenharam u m papel n a formação
do direito eclesiástico e no estabelecimento da autoridade temporal do
p a p a . São b e m merecedoras d a qualificação de fato histórico.
A s F a l s a s Decretais, os Poemas de O s s i a n tiveram êxito, antes de tudo,
por corresponderem, talvez, a " u m a necessidade do meio social que, não
dispondo do q u e se satisfczer, forja, de alguma forma, algo com que acal-
m a r s u a paixão", de tal modo que "o verdadeiro autor do falso é o grupo
social e que o indivíduo, redator material do texto, não passa de seu ins-
trumento". O fato histórico é um fato social. E i s o que já pretendia
demonstrar o sociólogo Lévy-Bruhl. "Merecerá, escreve êle, a qualificação
de fato histórico, todo fato passado t a l como se refletir n a consciência co-
letiva, e a importância histórica destes fatos medir-se-á pela importância
que tiveram n a seqüência dos fatos d a mesma ordem."

_ . . .. A s definições oferecidas para o fato histórico, até os


O caráter subjetivo y r
, ,,
do fato histórico últimos anos, como vemos, a p e n a s nos dao débeis cer-
tezas. N a realidade, sob aparências límpidas, a noção
do fato histórico surge complexa ao extremo de desencorajar s u a análise.
Sequer há acordo sobre o sentido do vocábulo. M a s outras querelas bro-
taram recentemente, ultrapassando o campo da semântica. Não m a i s se
trata de saber s e a expressão "fato histórico" aplica-se a "acontecimentos",
ou a "instituições", ou a ambos. Trata-se, verdadeiramente, de u m a revo-
lução, que v i s a a deslocar p a r a um segundo plano a noção " p o s i t i v i s t a "
do fato, a cujo respeito todos estavam praticamente de acordo a i n d a há
pouco tempo, e m proveito de u m a concepção " i d e a l i s t a " , nascida entre os
filósofos alemães e progressivamente divulgada entre os historiadores.
Quando Croce, Collingwood, Lucien Febvre, C h a r l e s Morazé, notada-
mente, lançaram-se ao assalto das posições nas q u a i s Langlois e Seigno-
bos — e muitos outros com eles — h a v i a m acreditado estabelecer p a r a
sempre a história, v i s a r a m eles, particularmente, c o m efeito, a concepção
"positivista" do fato histórico, que e r a justamente, a o s seus olhos, u m dos
pontos de apoio da história erudita. A d m i t i r a m q u e os historiadores d e s t a

9
130 INICIAÇÃO AOS ESTUDOS HISTÓRICOS

tendência assimilavam sem discussão o fato a o puro acontecimento, trans-


formando-o numa espécie de átomo d a realidade histórica, insuscetível d e
divisões, observável à vontade desde que s e soubesse retirá-lo com a s
devidas precauções d a ganga onde o documento o encerra ( 8 ) . " O fato
tradicional, escreve Charles Morazé, é o resultado de u m esforço tentado
para isolar de seu complexo indefinido um momento d a evolução. Justi-
fica-se, p e l a necessidade de não sufocar a pesquisa, e m c a d a etapa, s o b
toda a evolução d a humanidade e todas a s metafísicas. E o seu resulta-
do é a compartimentação" ( 9 ) .
Na realidade, a teoria do fato, que poderia ser extraída das obras d e
Seignobos, por exemplo, é m a i s complexa do que parece à primeira v i s t a .
Já sabemos que, p a r a este autor, o fato ultrapassa singularmente o acon-
tecimento bruto. Não é sem s u r p r e s a que o vemos, invocando Simmel, r e -
conhecer abertamente o caráter subjetivo do fato histórico. " O historiador
não tem qualquer objeto p a r a a n a l i s a r realmente, nenhum objeto que êle
possa descrever ou reconstruir.. . Fatos materiais, atos humanos, indivi-
duais e coletivos, fatos psíquicos, eis todos os objetos do conhecimento
histórico, não observados diretamente, m a s todos eles imaginados".
Seignobos acrescenta, é v e r d a d e : " O s historiadores, quase todos s e m
ter consciência disto, e acreditando observai realidades, j a m a i s operam a
não ser sobre i m a g e n s " ( 1 0 ) . O método erudito, do q u a l Seignobos s e
apresentou como teórico, autorizaria a consideração do fato histórico a
não ser como um elemento objetivo, observável através dos documentos,
por meio d a crítica? Podemos ter nossas dúvidas. Certamente, os críticos
d a história positivista tiveram razão, ao negligenciar a tomada de posição
de Seignobos, atitude que permaneceu puramente platônica, para atacar
seus adversários no terreno concretíssimo do método d a exposição.
Opondo-se violentamente à concepção de u m fato-acontecimento dado
e m estado bruto e que é suficiente consfafar-se, a maioria dos teóricos con-
temporâneos insistem, efetivamente, no caráter reconstruído do fato
histórico.
Que é, n a realidade, u m fato (tomado no sentido restritivo de acon-
tecimento, como o entendem, aliás, n a prática, a imensa maioria dos his-
toriadores)? ( 1 1 ) . N a d a além de u m a abstração, uma construção do es-

(8) V e r e s p e c i a l m e n t e E . G . C O L L I N G W O O D , The idea of history, pág. 131 e o p e -


q u e n o v o l u m e d e J . H O U R S , V o l e u r d e F histoire, P a r i s , 1954, págs. 53-58 ( i n i t i a t i o n phi-
losophique) .
( 9 ) C h a r l e s M O R A Z É , T r o i s essais sur histoire et culture, P a r i s , 1948, pág. 5 (Cahiers
des Annales, 2 ) .
(10) C h . V . L A N G L O I S e Ch. SEIGNOBOS, iníroducíioTi, págs. 1 8 6 e 188.
(11) A c ê r c a do seguinte, consulte-se, de preferência, R a y m o n d A R O N , I n t r o d u c -
t i o n à l a philosophie d e l'histoire. E s s a i s u r l e s l i m i t e s d e l'objectivité h i s t o r i q u e ,
P a r i s , 1 9 5 7 , 14. ed., págs. 114 e segs.
a
O OBJETO INTELECTUAL DA PESQUISA: O FATO HISTÓRICO 131

pírito. Dizemos: Napoleão foi vencido ern Waterloo, aos 18 de junho


de 1815; César atravessou o Rubicão e m 49 antes de C r i s t o . . . e temos o
sentimento de nos encontrar frente a u m a realidade dura e incontestável
— tão dura e incontestável quanto um tijolo com que trabalha u m pedreiro.
M a s , da m e s m a forma que o tijolo, p a r a os físicos contemporâneos, reduz-se
a u m conglomerado de partículas de dimensões tão pouco imagináveis
que nem o espírito, nem a vista, podem apreendê-las — assim também a
passagem do Rubicão, a b a t a l h a de Waterloo decompõem-se n u m a infini-
dade de sensações, pensamentos, gestos e p a l a v r a s já enrijecidos nos do-
cumentos, que no-lo transmitem com u m a total insuficiência e a partir dos
quais nós recompomos u m a batalha, a travessia de u m rio.
Se quisermos, efetivamente, descrever a realidade, como pretende-
mos fazer, precisaremos mostrar, no terreno de Waterloo, a s mil ações ema-
ranhadas e quase instintivas dos executantes, penetrar a cada segundo o
pensamento tático e estratégico dos comandantes-áhefes, reintroduzir a parte
d a Fortuna ceg a no resultado da luta. Mas, de tudo isto, temos somente
u m a visão ideal, apenas sabemos dar, como observa Raymond Aron,
" u m a espécie de tradução conceituai". Falamos do movimento d a a l a es-
querda, do rompimento do centro, como de realidades objetivas, sem nos
darmos conta de que estes movimentos se situam n u m plano intermediá-
rio entre os projetos e os objetivos do general-chefe e os atos do soldado.
A visão histórica ( o u seria melhor dizer historiográfica?) da b a t a l h a do-
mina, para ordená-los, logicamente, u m a infinidade de elementos desor-
denados e incoerentes, que o escritor se esforça, ao contrário, por descre-
v e r em suas minúcias, porque quer recriar no seu leitor o sentimento e
a verdade h u m a n a da guerra. Será necessário citarmos, ainda u m a vez,
por s u a antítese com a s narrativas dos historiadores, as descrições famo-
s a s de Waterloo, por Stendhal, em La Chartreuse de Parme, de Moskowa,
por Tolstoi, em Guerra e P a z , e Verdun de Jules Romains, a Conquista da
Coraqem, de Stephen C r a n e ? Perdidos em meio aos soldados, n a in-
coerência rumorejante d a batalha, vemos afrontarem-se, não planos e l a -
borados de antemão, com vistas a um resultado preciso — a vitória — mas
indivíduos de carne e osso, bravos, covardes, ou bravos e covardes alter-
nadamente, quase inconscientes agentes de execução de ordens emanadas
de um chefe que, êle mesmo, tem u m a visão estranhamente deformada
do drama a desenrolar-se sob seus olhos e do qual êle é, teoricamente, o
ensaiador. A batalha, diz Raymond Aron, "feita ao mesmo tempo de inten-
ções razoáveis, de encontros imprevistos, de forças materiais.. . surge a l -
ternadamente inteligível como uma conduta e u m a obra humanas, e absur-
d a ou, ao menos, indeterminada como o choque das pedras ou a luta dos
animais".
O exemplo clássico d a batalha parece, é verdade, "feito de enco-
menda", p a r a não ser um pouco suspeito. Que outra circunstância pode-
ríamos escolher, que melhor revelasse a complexidade desordenada do
132 INICIAÇÃO AOS ESTUDOS HISTÓRICOS

fato histórico e o abuso lógico que consiste e m construí-lo em todas a s


suas peças, reduzindo-o, aliás, a u m seco enunciado inteligível e suscetí-
v e l de enquadrar-se n u m a série? U m fato mais simples, onde não entre
em cena senão um personagem ou u m grupo limitado de atores, ajustar-
-se-ia com a mesma complacência às exigências d a demonstração? Há já
muito tempo que Lucien Febvre respondeu, mostrando que u m fato, tão
simples n a aparência, quanto o assassínio de Henrique I V por Ravail-
l a c ( 1 6 1 0 ) , não era menos consíruído do que os fatos de v a s t a amplitude.
O que, no nosso espírito, s e torna u m crime político, com tudo quanto esta
expressão pode evocar, não é, no fim de contas, m a i s do que o gesto "de u m
braço cujo punho fechado se crispa n u m objeto de medíocre comprimento
e que descreve no a r u m a curva de algumas dezenas de centímetros":
a trajetória de uma lâmina de aço que se planta no peito de u m homem.
Apenas sobra, portanto, o fato e m s i , o fato bruto. A realidade histó-
rica, pré-existente à ciência, desaparece. O historiador perde esta impas-
sibilidade de descobridor d a realidade sensível, d a q u a l era tão orgulhoso,
quando pretendia rivalizar em objetividade com o físico. " O s fatos histó-
ricos são", então, " e m l a r g a medida, construções d a História. O s cami-
nhos d a história. Os caminhos da história poderiam ser também assina-
lados por marcos: "Doação de fulano. Obrigado". É preciso, entretan-
to, haver familiaridade corn a idéia de que acontece com a história o mes-
mo que com a química de Berthelot (muiafis mutandis}. "Só, entre a s
ciências, e l a c r i a seu objeto", escrevia gloriosamente o triunfador. Só, não.
A História também cria s e u objeto" ( 1 2 ) .

(12) E s t a s f r a s e s são de L u c i e n F e b v r e ( n a introdução a C h . M O B A Z É , T r o i s e s -


s a i s , pág. V I I ) . L u c i e n F e b v r e tratou freqüentemente d a concepção do fato histó-
r i c o , nos a r t i g o s reunidos sob o título C o m b a t s pour l'histoire, P a r i s , 1 9 5 3 . Citemos
n o t a d a m e n t e a seguinte página: " O s q u e p r e t e n d e m c o n h e c e r a p e n a s os fatos; os
q u e não s e dão conta d e que u m a g r a n d e p a r t e dos fatos p e r eles u t i l i z a d o s não
l h e s são " d a d o s " e m estado b r u t o , m a s f o r a m criados, i n v e n t a d o s , de q u a l q u e r m a n e i -
r a , pelo t r a b a l h o da erudição, extraídos d e centenas e c e n t e n a s de t e s t e m u n h o s , d i -
r e t o s ou i n d i r e t o s ; os que, então, preguiçosamente, c u i d a m apenas d » s fatos r e g i s t r a -
d o s em d o c u m e n t e s p e r f e i t a m e n t e d e t e r m i n a d o s , tais h i s t o r i a d o r e s q u e p r e t e n d e m ser
p r u d e n t e s , sendo somente m u i t o limitados, colocam-se, n a r e a l i d a d e , f o r a d a s condições
p r i m o r d i a i s d e s u a função" <pág. 86). No m e s m o sentido, e s c r e v e P h . A R I E S ( L e temps
d e l ' h i s t o i r e , Monaco, 1954, pág. 280): " O f a t o está j u n t o ao h i s t o r i a d o r , m a s não s e
e n c o n t r a v a , a n t e s dele, n o documento: t r a t a - s e de u m a construção do h i s t o r i a d o r .
A p a r t i r d e s t e momento, e m q u e o fato é a s s i m definido e d e t e r m i n a d o , êle se isola e
torna-se u m a abstração". L e m b r e m o s , a i n d a , a fórmula d e R a y m o n d A R O N , ob. cit.,
pág. 120: " O fato construído, limitado a o s traços sensíveis ao e x t e r i o r , escapa a
q u a l q u e r i n c e r t e z a , m a s e s t a objetividade é p e n s a d a , não d a d a " . E t e r m i n e m o s c o m
e s t a passagem do V o c a b u l a i r e p h i l o s o p h i q u e d e L a l a n d e (pág. 3 3 9 , e m n o t a ) : " S e r i a
u m grave e r r o a c r e d i t a r q u e u m fato possa s e r "dado n a experiência". O fato é b e . n
m e n o s u m a constatação do q u e u m a construção do espírito. A f a l a r - s e rigorosamente,
os fatos não e x i s t e m completamente feitos n a n a t u r e z a , à semelhança d a s r o u p a s n u m a
c a s a de confecções, e o p a p e l d o estudioso não se l i m i t a a invocá-los u m a u m , s e -
O OBJETO INTELECTUAL DA PESQUISA: O FATO HISTÓRICO

Nesta perspectiva, o fato histórico parece perder e m solidez. Mas o


que a b a n d o n a em certeza, êle g a n h a em profundidade. Quando sabe não
mais poder considerá-lo como u m átomo destacável da realidade exterior,
o historiador vê, d e v e r a s , comprimir-se por trás do acontecimento a ines-
gotável riqueza do passado, de t a l forma que u m fato histórico apenas
pode tomar todo s e u sentido, em definitivo, renunciando a o s contornos pre-
cisos nos quais, durante tanto tempo, e com a maior das boas-fés, a eru-
dição acreditou poder encerrá-lo. A passagem do Rubicão n a d a mais é
do que o conjunto de gestos e p a l a v r a s de u m a tropa militar atravessan-
do um riozinho. M a s situa-se n a série dos acontecimentos concernentes às
relações entre César e Pompeu, a o Senado romano e à República. César,
privado de seu comando n a Gália, decide desobedecer às ordens do Se-
nado. M a r c h a sobre Roma, p a r a apoderar-se da autoridade suprema.
O Rubicão é o limite material p a r a além do q u a l a traição tornar-se-á de-
cisiva. A travessia deste rio — outros foram atravessados antes, outros
depois, pelo mesmo exército — é retida a título de símbolo, signo mani-
festo no curso da história. Concedemos-lhe importância p e l a infinita v a -
riedade de acontecimentos anteriores, posteriores e contemporâneos, por
ela irresistivelmente evocados ( 1 3 ) .
C h a r l e s Morazé lembrou u m a vez um acontecimento mencs retumban-
te do que a passagem do Rubicão: apenas a ascensão de Tules Ferrv à
presidência do conselho, sob a T e r c e i r a República francesa. O autor mos-
trou, brilhantemente, que toda a história da França ( e mesmo sua pré-
-hisíória), de avanço em avanço, comprimia-se atrás deste minúsculo fato,
suportava-o, dava-lhe u m a significação que não mais e r a aquela, estrita-
mente jurídica — do ponto de v i s t a institucional — ou estritamente política
—• na história "événementielle" d a Terceira República — que parecia des-
tacar-se a princípio. "Pobre fato! Procuremos limitá-lo, e reduz-se a u m a
interpretação jurídica; queiramos ampliá-lo, e invade a u n i v e r s a l eterni-
dade. Q u e perigo não corremos, ao romper nossas barreiras tradicionais,
que incerteza nos espreita, que incapacidade não nos paralisará, por ex-
cesso de ambição? O fato, o fato que nos era tão caro, no q u a l queríamos
apoiar toda nossa vaidade de eruditos.. . o fato n a d a mais é do que uma

gundo a s exigências d e s u a d i s c i p l i n a , m a s . bem m a i s , a criá-los, de c e r t a f o r m a ,


isolando-os a b s t r a t i v a m e n t e de todo c o m p l e x o do q u a l eles f a z e m p a r t e . Devemos,
aliás, notar que esta criação não é a r t i f i c i a l , ou arbitrária: c a b e r i a o r e c e i o de q u e ,
e m mãos inábeis ou i n t e r e s s a d a s , a definição i d e a l i s t a d o fato a r r u i n a s s e o v a l o r d a
ciência; acreditamos, ao contrário, que, c o m p r e e n d i d a j u s t a m e n t e , e l a a funde ( L o u i s
Boisse) ".
(13) O exemplo e os comentários f o r a m tomados a C a r l B E C K E R , " W h a t a r e h i s -
t o r i c a l f a c t s ? " (artigo p u b l i c a d o e m The Western political Quarterly, VIII, 3 set.
1 9 5 5 ) , págs. 3 2 7 - 3 4 0 e r e i m p r e s s o em H a n s M E Y E R H O F F , The philosophy of history in
our time, N o v a Iorque, 1 9 5 9 , págs. 120-137).
134 INICIAÇÃO AOS ESTUDOS HISTÓRICOS

a m p l a abertura p a r a o mundo, através d a qual olhamos a condição


H u m a n a . . ." ( 1 4 ) .
Eis-nos, certamente, b e m longe do "fato-acontecimento" clássico! P a -
rece que todos os traços a êle reconhecidos apagam-se, u m após o outro.
Não é mais objetivo, não é m a i s "dado", m a s construído. E eis que co-
meçamos, até mesmo, a negar-lhe este caráter de unicidade que, entretan-
to, parecia conferir-lhe u m a indiscutível originalidade, pois opunha-o for-
malmente às c l a s s e s de fatos suscetíveis de repetição — objeto presumido
das ciências da natureza. E s t a distinção não mais e r a admissível, desde
que a s ciências de toda ordem concedem sempre mais atenção aos "casos
particulares". E l a o é menos ainda, desde que uma história cada dia mais
se distanciando dos acontecimentos políticos, concentra-se nos fatos de re-
petição — os d a demografia e d a economia, por exemplo — que entram
na esfera d a estatística ( 1 5 ) . Enfim, a concepção a t u a l do fato, tirando-
-lhe seu caráter de rigidez, permite discernir, n a s mil facetas do aconteci-
mento, a s que são verdadeiramente únicas e a s que se repetem. É o que
lembrava recentemente Fernand Braudel, ao citar Paul Lacombe. Evocan-
do a s batalhas d e P a v i a ( 2 4 de fevereiro de 1525) e de Rocroi ( 1 9 de
maio de 1643), este último notara que alguns incidentes destes combates
"explicam-se por u m sistema de armamento, de tática, de hábitos e cos-
tumes guerreiros encontrados e m bom número de outros combates d a
época". François Simiand, aliás, pôs em fórmula a observação de P a u l
Lacombe: "Não há fato, escreve êle, no q u a l não possamos distinguir u m a
parte de individual e uma parte de social, u m a parte de contingência e
uma parte de regularidade" ( 1 6 ) .

Tal é, segundo nos parece, a noção do "fato" à q u a l se prende a maio-


ria dos historiadores contemporâneos, mais ou menos implicitamente ( 1 7 ) .

(14) C h . M O R A Z É , Trois essais sur hisíoire et culture, pág. 3 . O mesmo a u t o r e s -


creve: " N ã o ; o fato não é u m absoluto. T o d o m o m e n t o d e v e s e r estudado c o m o
sentido d o u n i v e r s a l . È este s e n t i d o que, a todo i n s t a n t e , p e r m i t e o controle do p a r -
t i c u l a r p e l o geral, d o e s p e c i a l i s t a p e l a totalidade dos outros e s p e c i a l i s t a s , é êle q u e
dá g r a n d e z a ao debate. T o d a proposição d e v e s e r u n i v e r s a l m e n t e controlável".
(15) É o que n o t a Georges L E F E B V R E ( R e v u e h i s t o r i q u e , t. C C X V I I ( 1 9 5 7 ) , pág. 3 3 8 ) ;
" N a v i d a q u o t i d i a n a do homem, os fatos que s e r e p e t e m o c u p a m u m e n o r m e l u g a r ;
a história u t i l i z a u m a p a r t e deles, quando a b o r d a , p o r exemplo, a e c o n o m i a , a e s t r u -
t u r a s o c i a l , a d e m o g r a f i a ; se e l a não pode m e d i r e p e s a r como c e r t a s ciências da n a -
t u r e z a , e l a pode c o n t a r , desde q u e a documentação s e preste a i s s o " .
(16) F . B R A U D E L , t n G . G U R V I T C H , Traité de socioiogie, pág. 8 6 : " A história não
é s o m e n t e a diferença, o s i n g u l a r , o inédito, o q u e não se verá d u a s v e z e s " .
(17) A t a l respeito, é característtico o a r t i g o de C a r l L . B E C K E R , a c i m a citado.
O OBJETO INTELECTUAL DA PESQUISA: O FATO HISTÓRICO 135

Há c e r c a de três séculos, aproximadamente, a erudição deu à história s u a


fisionomia moderna, e a concepção do fato histórico acompanhou, e m suma,
a evolução de nossa disciplina. O s primeiros eruditos deram aos fatos
históricos s u a consistência prática, sem procurar defini-los. O s historia-
dores do último terço do século X I X , erigindo o método em dogma, foram,
por a s s i m dizer, obrigados a construir u m a teoria do fato que d e v i a muito
a o positivismo e que seria, de qualquer forma, ininteligível fora d a atmos-
f e r a científica de s u a época. Nada exprime melhor s u a concepção do que
a b e m conhecida frase de Fustel de Coulanges: " A história é u m a ciên-
c i a ; e l a não imagina, ela somente v ê . . . e l a consiste, como toda ciência,
e m constatar fatos, em analisá-los, em compará-los, e m assinalar seus la-
ços . . . " A s s i m sendo, a história reduzira-se, nos casos extremos, a um
mosaico de acontecimentos. E i s por que os contemporâneos, c a d a vez
m a i s rebeldes a estes processos, foram levados a retirar aos acontecimentos
s u a aparência de irrefutável rigor, p a r a restituir-lhes u m a incoerência fun-
damental. A o mesmo tempo, deram ao historiador, "construtor" dos fatos,
u m lugar a êle negado pelos predecessores, obsedados pela preocupação
de desaparecer por trás dos fatos "que falam por si mesmos".
O mais singular, sem dúvida, é que estas reviravoltas se verificaram
ao redor de u m a expressão que ninguém parece ter tido o cuidado de
definir, mesmo quando se tratava de armar teorias. Sentimo-nos forçados,
portanto, a conservar, aqui, u m a certa margem de incerteza, e a buscar
m a i s apoio junto às concepções comumente aceitas do fato histórico, do
que a teorias absolutamente rigorosas. No termo deste rápido exame, to-
d a v i a , fica de pé u m a pergunta. Seja q u a l fôr a idéia do fato histórico à
q u a l nos prendamos em definitivo, chega sempre o momento no q u a l é
preciso, queiramos o u não, atermo-nos à mais ingrata tarefa da função de
historiador. Pois, s e a história não pode dispensar hipóteses, estas devem
fundamentar-se e m conhecimentos precisos. E m que medida a evolução
de nossas concepções implica a adoção de novos métodos para a deter-
minação de nossos conhecimentos? Q u e parcela de verdade está con-
tida n a fórmula do século passado, tão freqüentemente ridicularizada de-
pois : "o fato existe no documento"?

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