Você está na página 1de 8

Acta Scientiarum http://www.periodicos.uem.

br/ojs/
ISSN on-line: 1983-4683
Doi: 10.4025/actascilangcult.v44i1.59951

LITERATURA / LITERATURE

A Ressignificação do futurismo na literatura de Luiz Ruffato

Carolina Barbosa Lima e Santos

Universidade de São Paulo, Rua da Reitoria, 374, 05508-220, Cidade Universitária, São Paulo, São Paulo, Brasil. E-mail: carolsartomen@gmail.com

RESUMO. Propõe-se, neste trabalho, um estudo sobre a maneira pela qual o escritor contemporâneo
brasileiro Luiz Ruffato, em Eles eram muitos cavalos, desafia e reinventa diversas poéticas que compõem a
tradição literária ocidental. Analisa-se, em especial, as afinidades estéticas desta obra com as propostas da
vanguarda futurista italiana por meio do suporte teórico de estudiosos como Gilberto Mendonça Teles,
Maria Adélia Menegazzo, José Mendes Ferreira e Augusto de Campos. Apresentando-se como uma poética
fragmentada, rápida, imagística e multifacetada, Eles eram muitos cavalos propõe inúmeras reflexões a
respeito do cenário urbano brasileiro. Valendo-se de uma linguagem próxima à poética futurista, composta
por palavras em liberdade em relação à ordem sintática e ao emprego formal de pontuação; bem como da
experimentação de recursos tipográficos e onomatopaicos; Ruffato propõe uma relação espaciotemporal
que busca provocar no leitor um efeito de dinamismo em referência à atmosfera de uma grande cidade
moderna. Ao configurar um ambiente caótico em um mosaico de gêneros discursivos, Ruffato põe em cena
uma metrópole desequilibrada e suja, habitada por crimes, desestrutura familiar, doença, consumismo,
subempregos, vícios e outras mazelas que permeiam esta sociedade. Diante desta complexa materialidade
literária, propõe-se, neste trabalho, uma análise sobre as reflexões sociais e as inovações estéticas propostas
em Eles eram muitos cavalos.
Palavras-chave: tradições literárias; literatura contemporânea; literatura brasileira; Luiz Ruffato.

The resignification of futurism in Luiz Ruffato's literature

ABSTRACT. This work proposes a study of the way in which the writer Luiz Ruffato – in They were many horses
– challenges and reinvents various poetics of the western literary tradition. It analyzes, in particular, the aesthetic
affinities of this book with the proposals of the Italian futurist vanguard. For that, we used the theoretical support
of authors such as Gilberto Mendonça Teles, Maria Adélia Menegazzo, José Mendes Ferreira and Augusto de
Campos. Presenting itself as a literature constructed under a fragmented, rapid, imagistic and multifaceted
poetics, They were many horses proposes many reflections on the urban and contemporary Brazilian society.
Through collages and short narratives that represent several stories of a chaotic metropolis, Ruffato configures
an unbalanced and dirty mosaic, composed of crimes, family breakdown, disease, consumerism,
underemployment, addictions and other ills that permeate this modern society. Making use of a language close
to futuristic poetics, composed of words in freedom in relation to the syntactic order and the formal use of
punctuation; as well as the use of typographic and onomatopoeic resources; Ruffato proposes a spatiotemporal
relationship that seeks to provoke in the reader a feeling of dynamism typical of the modern city. Given this
complex literary materiality, this work proposes an analysis of the social reflections and aesthetic innovations
proposed in They were many horses.
Keywords: literary traditions; contemporary literature; brazilian literature; Luiz Ruffato.

Received on July 2, 2021.


Accepted on August 31, 2021.

Introdução
Propõe-se, neste trabalho, um estudo sobre a forma pela qual o escritor Luiz Ruffato – em Eles eram muitos
cavalos (2001) – desafia e reinventa diversas poéticas que compõem o repertório de leitura da tradição
ocidental, “[...] no pressuposto de que o conhecimento efetivo do-que-foi-feito é a melhor maneira de nos
prepararmos para fazer e entender o-que-não-foi-feito e o-que-pode-se-fazer-de-novo” (Campos, 2010, p. 29).
Analisa-se, em especial, as afinidades estéticas desta obra brasileira com a vanguarda futurista italiana.
Pretende-se, assim, promover uma leitura que não se apresente ingênua ou simplista diante deste projeto
literário. Para tanto, a presente pesquisa atenta-se às seguintes questões: Qual a maneira pela qual este
Acta Scientiarum. Language and Culture, v. 44, e59951, 2022
Page 2 of 8 Santos

escritor brasileiro contesta e reverencia as tradições clássica e moderna? Em que medida Ruffato (2001) vai
além do que já foi proposto?
Por fim, vale esclarecer que a metodologia aplicada a este trabalho se encontra assentada na epistemologia
literária aliada às contribuições da Teoria da Literatura e dos Estudos Filosóficos. Desenvolvido a partir de
uma vasta pesquisa bibliográfica, este estudo tem por objetivo apresentar ao leitor uma compreensão
aprofundada a respeito da materialidade estética e das reflexões sociais propostas em Eles eram muitos cavalos,
de Luiz Ruffato (2001).

A reinvenção da tradição literária em Eles eram muitos cavalos


Nascido em Cataguases, Minas Gerais, em 1961, Luiz Ruffato é graduado em Comunicação pela
Universidade Federal de Juiz de Fora. Dentre seus vários livros publicados, recebeu o Troféu APCA, da
Associação Paulista de Críticos de Arte, e o Prêmio Machado de Assis, da Biblioteca Nacional, pela obra Eles
eram muitos cavalos (Ruffato, 2001). A trajetória de uma sociedade brasileira pobre e sofrida, as vidas
transcorridas em meio ao silenciamento e à exclusão social estão presentes em muitos de seus romances,
desde Histórias de remorsos e rancores, de 1998.
Eles eram muitos cavalos (Ruffato, 2001) configura-se como uma coletânea de curtas narrativas paratáticas
que articula um profícuo diálogo com diversas referências da tradição literária ocidental, dentre elas, a
vanguarda futurista italiana. Apresentando-se como uma poética fragmentada, rápida, imagística e
multifacetada, as narrativas de Luiz Ruffato propõem inúmeras reflexões a respeito do cenário urbano e
contemporâneo brasileiro. Por meio de ‘recortes’ que configuram diversas histórias de uma grande e caótica
metrópole, o escritor põe em cena um mosaico desequilibrado e sujo, composto por crimes, solidão,
desestrutura familiar, doença, subempregos, analfabetismo, vícios e outras mazelas que permeiam esta
sociedade moderna.
Para dar início a esta leitura sobre a obra, vale evocar aqui o estudo proposto por Mikhail Bakhtin, em
Questões de literatura e de estética (1998), no qual o filósofo defende a ideia de que a reconstrução de um novo
modo de prosa, ancorada no diálogo e no conflito consciente entre diferentes épocas, culturas e forças sociais
é o que faz a arte romanesca permanecer pulsante e inacabada em meio à modernidade. Segundo o estudioso,
a revolução estética e política, inerente a este gênero literário, acompanha o processo de formação e
renovação das sociedades e dos povos:
A prosa literária pressupõe a percepção da concretude e da relatividade históricas e sociais da palavra viva, de sua
participação na transformação histórica e na luta social, e ela toma a palavra ainda quente dessa luta e desta
hostilidade, ainda não resolvida e dilacerada pelas entonações e acentos hostis e a submete à unidade dinâmica de
seu estilo (Bakhtin, 1998, p. 133).

Partindo desta perspectiva bakhtiniana, o presente trabalho procura evidenciar como diversas linguagens
fundem-se concreta e indissoluvelmente na poética de Luiz Ruffato. Objetiva-se, dessa forma, compreender
como o diálogo com a tradição literária potencializa os efeitos de sentido propostos em Eles eram muitos
cavalos (Ruffato, 2006).
Para tanto, vale contextualizar brevemente a história da vanguarda futurista. Em Vanguarda europeia e
modernismo brasileiro, Gilberto Mendonça Teles (1977) explana que a história do futurismo é confluída à vida
de seu líder, Filippo Tommaso Marinetti (1876-1944). Segundo o autor, a trajetória do futurismo pode ser
pensada em três fases: de 1905 a 1909, na qual o princípio estético defendido foi o verso livre; de 1909 a 1914,
em que se redigiu a maioria dos manifestos e se lutou pela imaginação sem fios e pelas palavras em liberdade,
e de 1919 em diante, quando se fundou o fascismo e o futurismo se tornou porta-voz oficial do partido.
De acordo com o intelectual brasileiro, o futurismo foi desenvolvido, sobretudo, por meio de manifestos
que procuravam envolver diversas formas de expressões artísticas em seu ideal de romper com os valores
estéticos e culturais canonizados pela tradição clássica e propor uma nova leitura de mundo, ancorada na
glorificação dos tempos modernos. Ao difundir inúmeros manifestos e realizar conferências internacionais
sobre os mais diversos campos da arte, da política e de questões sociais, “Marinetti exerceu grande influência
em quase todas as literaturas modernas, mesmo quando curiosamente negadas, como no caso dos primeiros
modernistas brasileiros” (Teles, 1977, p. 78).
A arte futurista propõe a celebração da modernidade por meio de formas de representação que procuram
configurar um efeito de dinamismo. Em Manifesto técnico da literatura futurista, Marinetti (1977) orienta o
Acta Scientiarum. Language and Culture, v. 44, e459951, 2020
O futurismo na literatura de Ruffato Page 3 of 8

modo como um conjunto de recursos estéticos pode ser combinado para formar a linguagem desta vanguarda.
Sua ideia era apresentar ao mundo uma poética ancorada na ‘destruição’ da sintaxe; na recusa à subjetividade
convencional da literatura; na evocação ininterrupta de imagens; no uso de analogias; na criação da
‘imaginação sem fio’ e das ‘palavras em liberdade’. Leia-se, a seguir, um trecho do manifesto:
[...] Nós utilizamos, ao contrário, todos os sons brutais, todos os gritos expressivos da vida violenta que nos cerca.
[...] É preciso cuspir a cada dia no Altar da Arte! Nós entramos nos domínios ilimitados da livre intuição. Dou o verso
livre, eis finalmente a palavra em liberdade! (Marinetti, 1977, p. 93).

Assim, com o surgimento do movimento futurista, a representação de temáticas voltadas ao cotidiano


moderno passou a ser potencializada na literatura. O futurismo propunha-se a conduzir seu público a uma
arte pautada na representação do culto à velocidade; do movimento das multidões; das imagens de
propagandas; da exaltação da violência; da negação ao passadismo; dos ruídos provenientes das máquinas e
das revoluções.
Tecido por um conjunto desordenado de palavras, o poema ‘Bombardeamento’ (Marinetti, 1979) pode ser
compreendido como um modelo estético desta proposta vanguardista. Valendo-se de um jogo com recursos
tipográficos, de ‘palavras livres de pontuação’, da conjunção dos verbos no infinitivo, de símbolos
matemáticos, de neologismos e onomatopeias – que exprimem a sonoridade da matéria em movimento –,
Marinetti (1979) procura criar um efeito de dinamismo semelhante ao ritmo acelerado e ininterrupto do
pensamento. Leia-se, a seguir, um trecho da obra, no qual o poeta, além de enaltecer a guerra, expressa um
discurso metapoético:
Andamento do bombardeamento futurista colosso-leitmotif-
-malho-génio-inovador-optmismo-fome-ambição (TERRIFICO
ABSOLUTO SOLENE HERÓICO GRAVE IMPLA-
CÁVEL FECUNDANTE) ‘zang’
‘tumb tumb tumb’
(2ª soma)
defesa Adrianopoli passadismo minarete do ceptismo cú-
pulas-ventres da inocência cobardia amanhã-pensamos-nisso não-
há-perigo não-é-possível pr´a-que-serve e-depois-não-me-ralo
entrega de todo o stock em estação única = cemitério
(3ª soma)
à volta de cada obus-passo do colosso-acordo cair malho-
criação do gênio-comando correr baile redondo galopante
de tiros metralhadoras violinos catraios odor-a-loura-
trintona cachorrinhos ironias dos críticos rodas engre-
nagem gritos gestos saudades (ALLEGRO AÉREO
CORROSIVO VOLUPTUOSO)
(Marinetti, 1979, p. 187, grifo do autor)

Tal como explana José Mendes Ferreira, em Antologia do futurismo italiano – manifestos e poemas (1979),
as propostas do movimento futurista não apenas serviram de base para a origem das demais vanguardas
europeias, como também continuam influenciando vigorosamente produções literárias contemporâneas de
diversas partes do mundo:
A afirmação de que a arte se basta a si mesma enquanto verdade, já que exclui a possibilidade de <<mentir>> porque
mente sempre (<<as verdades de ontem são hoje para nós puras mentiras>>); a desconstrução do preconceito dos
Temas Sublimes, da grandiosidade dos assuntos (tão cara aos românticos e ao <<humanismo>> dos realistas e
naturalistas); a luta contra uma arte-mímesis que já não expressa a riqueza e a complexidade da vida, e a sua
substituição por uma arte-vida são tantas outras expressões de um pensamento estético que, demasiado familiar nos
dias de hoje teve a sua primeira clara formulação no futurismo italiano (Ferreira, 1979, p. 27-28).

Vale lembrar, no entanto, que essas experiências tipográficas praticadas pelo futurismo foram iniciadas
por Stéphane Mallarmé, em Um lance de dados jamais abolirá o acaso (2010). De acordo com Augusto de
Campos, em Mallarmé: o poeta em greve (2010), Mallarmé publicou o primeiro poema-estrutura de que se tem
conhecimento, propondo um novo conceito de composição, arquitetado sob “[...] uma ORGANOFORMA –
onde as noções tradicionais como início, meio, fim, silogismo, tendem a desaparecer diante da ideia poética-
gestaltiana, poético-musical, poético-ideogrâmica de ESTRUTURA” (Campos, 2010, p. 23). Sugerindo a
superação do próprio livro como suporte literário, o poeta francês desafiou os limites da linguagem para
Acta Scientiarum. Language and Culture, v. 44, e459951, 2020
Page 4 of 8 Santos

anunciar novas possibilidades poéticas, nas quais convergem a experiência da música, da pintura, do jornal e
do cinema. Leia-se, a seguir, uma passagem deste poema-estrutura:
‘Jamais’
Mesmo quando lançado em circunstâncias
eternas
do fundo de um naufrágio
(Mallarmé, 2010, p. 155)

De acordo com Mallarmé (2010), os espaços em branco configuram o efeito de silêncio em meio à
versificação de Um lance de dados. Dessa forma, a distância entre os grupos de palavras sinaliza o acelerar e o
delongar do ritmo de leitura no decorrer destas páginas:
Ajuste-se que deste emprego a nu do pensamento com retrações, prolongamentos, fugas, ou o seu desenho mesmo,
resulta, para quem queira ler em voz alta, uma partitura. A diferença dos caracteres tipográficos entre o motivo
preponderante, um secundário e outros adjacentes, dita sua importância à emissão oral e a disposição em pauta,
média, no alto, embaixo da página, notará o subir ou o descer da entonação (Mallarmé, 2010, p.151).

Conforme explana Augusto de Campos (2010), a poesia mallarmeana representa o auge da conscientização
da crise do verso e da linguagem. Por isso, a leitura desta obra é fundamental para a análise de inúmeras
inovações estéticas propostas pelas poéticas que a sucederam. Partindo desta reflexão, é importante
compreender que a estrutura geral de Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato (2006), é paratática, isto é,
cada parte, independente das outras, conta com o seu respectivo começo, meio e fim. Em uma perspectiva
comparativa, este esquema estrutural pode ser considerado o recurso estético que mais aproxima a poética do
escritor brasileiro às propostas literárias de Marinetti e Mallarmé.
Tal como as poéticas futurista e mallarmeana, a obra de Ruffato propõe uma transgressão da estrutura
literária convencional. Em Eles eram muitos cavalos (2006), não há protagonistas, sequência cronológica ou
qualquer outro elemento que desempenhe a função de enlaçar seus 69 episódios em um único enredo. O texto
é constituído por cenas breves nas quais suas personagens transitam invisivelmente por diversos ambientes
metropolitanos.
Ao longo da obra, o escritor arquiteta a decomposição e a reestruturação da narrativa sobre o papel,
sinalizando o ritmo de leitura pela configuração visual deste discurso, tal como é possível observar no episódio
‘O que quer uma mulher’, citado a seguir:
‘Precisa lavar lá fora... olha o cheiro! Quieto! Quieto!’
Ela tranca a porta da sala
e apoiando-se na maçaneta
ouve o rangido do portão
o motor do chevette
cães que latem
passos na calçada
vozes
? quem é esse homem, meu deus, cara gorda ponte-móvel-barriga-de-barril roupas desleixadas sem amigos
que gasta as manhãs de sábado lavando o cachorro e o quintalzinho latinhas de cerveja e tira-gostos espetados no
palito
que gasta as tardes de domingo vendo futebol na televisão
latinhas de cerveja e tira-gostos espetados no palito
e que dorme em sua cama
e que é o pai de seus filhos
e que
meu deus
já não reconhece
quem é esse homem quem? (Ruffato, 2006, p. 27, grifo do autor.)

É possível notar, pela leitura do trecho citado, alguns dos aspectos que aproximam e distanciam a prosa
do escritor brasileiro da vanguarda futurista. Em uma observação preliminar, o arranjo visual pode ser
percebido como um elemento em comum entre essas poéticas. Tal como no poema ‘Bombardeamento’, de
Marinetti (1979), o aspecto de inacabamento provocado pelas frases entrecortadas e pela alteração de recursos
tipográficos potencializa o efeito de velocidade e movimentação no texto de Ruffato (2001).
Acta Scientiarum. Language and Culture, v. 44, e459951, 2020
O futurismo na literatura de Ruffato Page 5 of 8

Em ‘O que quer uma mulher’, o efeito de movimento é enfatizado pela mudança do foco narrativo no
decorrer do texto: no início do trecho citado, a narrativa é construída sob a forma de um discurso direto que
apresenta parte de uma discussão estabelecida entre um casal. Em seguida, a discussão é interrompida pela
voz de um narrador que limita-se a descrever as pequenas ações e sonoridades que compõem o ambiente da
cena. Por fim, a narrativa é reconduzida ao fluxo de consciência da esposa.
Longe de reverberar o tom de otimismo inerente à vanguarda futurista, em Eles eram muitos cavalos
(Ruffato, 2006), a utilização de recursos estéticos como a alteração tipográfica, a pontuação reticente, a
fragmentação discursiva e a evocação de elementos comumente presentes no ambiente moderno (‘motor do
chevette’/ ‘televisão’) potencializa a configuração de um contexto familiar infeliz e desestruturado.
Ainda nesta perspectiva comparativa, é interessante lembrar que Luiz Ruffato, em uma entrevista
concedida à Revista E (2017), citou a instalação Ritos de passagem (1996), de Roberto Evangelista, como uma
de suas referências para a criação de Eles eram muitos cavalos (Ruffato, 2006). Movido pelo desejo de levar ao
museu uma alusão às inúmeras vidas anônimas que circulam pelas metrópoles brasileiras, Evangelista reuniu,
na 23ª Bienal de São Paulo (1996), mil caixas de sapatos, dois mil calçados e grandes blocos de pedras em
referência às calçadas de Manaus. A proposta do artista era conduzir o público a uma reflexão sobre a
invisibilidade das histórias carregadas em cada um daqueles sapatos.
É possível observar que o diálogo da obra de Luiz Ruffato com a instalação de Evangelista é apresentado desde
a capa de Eles eram muitos cavalos (Ruffato, 2006), cuja ilustração, assinada por Antonio Kehl, traz a imagem de um
sapato desgastado em um ambiente aparentemente abandonado. No texto literário, os mil sapatos de Ritos de
passagem (Evangelista, 1996) tomam a forma de inúmeras personagens anônimas que habitam uma megalópole
brasileira. A ênfase na invisibilidade social desses sujeitos começa na epígrafe da obra, que apresenta um trecho de
Romance LXXXIV, poema de Cecília Meireles, do qual um verso é extraído e escolhido para título:
‘Eles eram muitos cavalos’,
mas ninguém mais sabe os seus nomes,
suas pelagens, sua origem…
(Meireles, 1989, p.147, grifo nosso).

Em mundo governado pelo caos, a ordem da narrativa ruffatiana “[...] não é nem bem-comportada, nem
obedece a uma lógica preestabelecida. Ela é atravessada, entre outros, pela des-organização do silêncio”
(Orlandi, 1993, p. 50). É por meio das fissuras, das repetições e dos efeitos de silêncio que o escritor configura
diversas faces do Brasil contemporâneo. Para melhor compreender esta proposta literária, leia-se, a seguir,
um trecho do episódio ‘A Caminho’:
‘sim mas é meu filho’
e suborna a polícia,
o delegado,
o dono da boate,
as garotas de programa,
os leões-de-chácara,
‘sim mas é meu filho’
sim, claro, a filha mora no Embu, macrofóbica, artista plastic esoteric, os quadros sempre os mesmos
‘quem não tem olhos pra ver’ (Ruffato, 2006, p. 12, grifo do autor).

Compreende-se, pela leitura do trecho citado, que a alteração do foco narrativo é sinalizada pela mudança
tipográfica no decorrer do texto. Esse narrador descentrado – que ora se aproxima, ora se afasta do leitor –
potencializa o efeito de dinamismo, simultaneidade e velocidade em uma narrativa que se propõe a configurar
a atmosfera de um cenário metropolitano. Ao violar a forma convencional da prosa, o autor perturba a
tranquilidade contemplativa do seu público leitor para conduzi-lo ao caos do ambiente moderno.
Em Eles eram muitos cavalos (Ruffato, 2006), há capítulos em que os episódios são narrados em terceira
pessoa, como se as histórias postas em cena fossem observadas por um fotógrafo, jornalista ou
documentarista que assiste de sua janela as paisagens e os acontecimentos sucedidos ao seu redor, registrando
algumas situações sem interferir em nenhuma delas. No trecho do episódio citado a seguir, por exemplo, o
narrador reserva-se à função de descrever a paisagem percorrida pela personagem em cena:
Da escada-rolante emerge, o Edifício Itália funda-se nos seus ombros, a fumaça de carros e caminhões tachos de
acarajés coxinhas quibes pastéis, vozes atropelam-se, amalgamam-se, aniquilam-se, em bancas revistas, jornais
livros usados, pulseiras brincos colares gargantilhas anéis, lã em gorros ponchos blusas mantas xales, pontos de
Acta Scientiarum. Language and Culture, v. 44, e459951, 2020
Page 6 of 8 Santos

ônibus lotados, trombadinhas, engraxates, carrinhos de pipoca, doces caseiros, vagabundos espalhados caídos
arrastando-se bêbados mendigos meninos drogados aleijados (Ruffato, 2006, p. 39).

Há, porém, enredos narrados em primeira pessoa, tal como o episódio ‘Nós poderíamos ter sido grandes
amigos’, no qual o leitor é convidado a participar do devaneio de uma personagem-narradora que divaga sobre a
relação de amizade que poderia ter estabelecido com um vizinho recentemente assassinado:
Mas nós não nos conhecíamos. Nos vimos algumas vezes no elevador de serviço, a caminho da garagem do prédio,
uma ou outra vez na piscina, ele lendo a Veja, eu nadando com a Joana e o Afonsinho
Hoje soube que ele não vai mais voltar para casa.
Ele foi vítima de um sequestro-relâmpago (Ruffato, 2006, p. 46).

E para além destas curtas narrativas, contadas em primeira ou terceira pessoa, a obra também é composta
pela ‘colagem’ de outros gêneros textuais, tais como classificados de jornais, chat, noticiário, salmos, previsão
de tempo, carta, roteiro de teatro, diploma religioso, ‘lambe-lambe’, etc. O episódio citado a seguir, por
exemplo, configura-se como um horóscopo aparentemente retirado de um contexto externo à obra literária e
colado em meio à sequência narrativa de Luiz Ruffato:
‘7.66’
A vibração do número de hoje estimula a realização dos aspectos materiais da vida
(mais dinheiro e prestígio)
pode contar com a ajuda de
um amigo influente
pode receber uma promoção
ou herança:
o momento é para ser prático
e objetivo
(Ruffato, 2006, p. 18, grifo do autor).

Em A poética do recorte (2004), Maria Adélia Menegazzo explana que a colagem, no plano das artes,
promove um efeito de descontinuidade e, consequentemente, a criação de um novo espaço discursivo. De
acordo com a estudiosa, “[...] cada elemento ‘colado’ tem uma dupla função de atualização: a do fragmento
colado em relação ao contexto de onde foi retirado e a do mesmo fragmento incorporado a um novo conjunto,
preservando essa alteridade” (Menegazzo, 2004, p. 55, grifo do autor).
A introdução de diversos gêneros textuais em meio ao espaço literário conduz o olhar do leitor a uma
desautomatização diante da obra, integrando ao mesmo tempo a arte à vida. Dessa forma, o uso da colagem
pode ser compreendido “[...] como um questionamento da representação da realidade reelaborada pelo artista
ou como uma quebra do princípio de representação renascentista naturalista” (Menegazzo, 2004, p. 55). Em
Eles eram muitos cavalos (Ruffato, 2006), a inserção destes fragmentos discursivos contribui para a
configuração de um efeito metafórico e multifacetado que alude à poluição sonora e visual comumente
presente em ambientes metropolitanos.
No episódio ‘A caminho’, é possível observar outro trabalho estético de rompimento com a linearidade
espacial do texto. Valendo-se de uma linguagem próxima à poética futurista, composta por palavras em
liberdade em relação à ordem sintática e ao emprego formal de pontuação; bem como da utilização de
experimentos tipográficos e onomatopaicos; Ruffato (2006) propõe uma representação espaciotemporal que
procura dar forma ao dinamismo do cotidiano moderno. Leia-se, a seguir, um trecho da narrativa:
O Neon vaga veloz por sobre o asfalto irregular, ignorando ressaltos, lombadas, regos, buracos, saliências, costelas,
seixos, negra nesga na noite negra, aprisionada, a música hipnótica, tum-tum tum-tum, rege o tronco que rança,
tum-tum tum tum, sensuais as mãos deslizam no couro do volante, tum-tum tum-tum, o corpo, o carro, avançam,
abduzem as luzes que luzem à esquerda à direita, um anel comprado na Portobello Road, satellite no dedo médio
direito, tum-tum tum-tum, o bólido zune na direção do Aeroporto de Cumbica, ao contrário cruzam faróis de ônibus
que converge de toda parte, ‘mais neguim pra se foder’ (Ruffato, 2006, p.11-12, grifo do autor.)

É importante enfatizar, no entanto, que se por um lado o autor propõe uma poética fragmentária em
um possível diálogo com a estética futurista, por outro substitui o tom de otimismo desta vanguarda por
um posicionamento cético diante da complexidade do mundo contemporâneo, no qual a miséria e o
estímulo ao consumismo encontram-se paradoxalmente presentes em um mesmo ambiente. No episódio
‘Ratos’, por exemplo, a configuração de um barraco imundo e escuro, habitado simultaneamente por ratos
Acta Scientiarum. Language and Culture, v. 44, e459951, 2020
O futurismo na literatura de Ruffato Page 7 of 8

e crianças, envolvidos por outdoors e trapos fétidos, revela ao leitor a situação de precariedade vivenciada
pelas personagens em cena, tal como é possível observar a partir da leitura do trecho citado a seguir:
O corpinho débil, mumificado em trapos fétidos, denuncia o incômodo, derrama-se para o berreiro, expele um
choramingo entretanto, um balbucio de lábios magoados, um breve espasmo. A claridade envergonhada da manhã
penetra desajeitada pelo teto de folhas de zinco esburacadas, pelos rombos nas paredes de placas de outdoors. Mas,
é noturno ainda o barraco (Ruffato, 2006, p. 21).

Se Marinetti, no Manifesto do futurismo (1977), glorifica o menosprezo à mulher, o nacionalismo, o


militarismo e a guerra, considerando o conflito bélico como ‘a única higiene do mundo’, a violência é
apresentada como um dos fatores relacionados à degradação do mundo moderno na obra de Ruffato
(2006). A título de exemplo, no episódio ‘Natureza morta’, o leitor é conduzido a uma cena em que uma
professora, ao chegar em seu ambiente de trabalho, depara-se com crianças apavoradas diante de um
cenário destruído:
No corredor, onde desaguavam as três salas-de-aula, gizes esmigalhados, rastros de cola colorida, massinhas-de-
modelar esmagadas, folhas de papel sulfite estragadas, uma lousa no chão vomitada, trabalhinhos rasgados, pincéis
embebidos em fezes que riscaram abstrações nas paredes brancas, pichações ininteligíveis, uma garrafa de coca-cola
cheia de mijo, um cachimbo improvisado de crack – a capa de uma caneta bic espetada lateralmente num frasco de
yakult. Ao fundo, a fechadura arrombada, cacos do vidro basculhante, do barro do filtro d´água, marcas de chute
nas laterais do fogão, panelas e talheres amassados. Em correria, gritos atravessam as telhas francesas, olhos
mendigam explicações (Ruffato, 2006, p. 30).

É possível compreender, dessa forma, que a poética de Ruffato assume um posicionamento crítico oposto
aos ideais defendidos pela vanguarda futurista. Neste sentido, vale lembrar que o escritor, na cerimônia de
abertura da Feira do Livro de Frankfurt (2013), proferiu um discurso no qual enfatizou seu compromisso ético
para com a história do povo brasileiro. Naquela ocasião, Ruffato (2013) criticou veementemente questões
como a desigualdade social, a impunidade, a homofobia e a violência praticada contra os povos indígenas
desde o período colonial:
Nascemos sob a égide do genocídio. Dos quatro milhões de índios que existiam em 1500, restam hoje cerca de 900
mil, parte deles vivendo em condições miseráveis em assentamentos de beira de estrada ou até mesmo em favelas
nas grandes cidades (Ruffato, 2013, p.1).

Este posicionamento do autor encontra-se materializado em ‘Natureza morta’, um dos episódios mais
longos e significativos de Eles eram muitos cavalos (Ruffato, 2006). Nesta narrativa, Ruffato (2006) põe em
cena um indígena que vive miseravelmente em um grande centro urbano brasileiro:
De tal maneira que o que toda gente sabe é que um final de tarde o bugre apareceu no boteco, encostou a pança
careca no balcão de fórmica vermelha ensebado, pediu uma cachaça na língua enrolada dele, alguém viu graça,
bancou o prejuízo, e o selvagem, noite adentro, tornando-se alegre, foi para o meio do asfalto dançar, e os sem-juízo
cercaram ele numa roda batendo palmas, o bicho se entusiasmou, arrancou a roupa sob aplausos do povaréu, e ficou
balangando os negócios, crianças e mulheres passando, e juntou vagabundo e trabalhador, a arruaça contagiou aquele
canto do bairro, uma esbórnia. Até que alguém, sempre um desmancha prazeres, convocou a polícia (Ruffato, 2006, p. 31).

Sob a perspectiva dos estudos pós-coloniais, a utilização de signos como ‘bugre’, ‘bicho’ e ‘selvagem’
no discurso da personagem-narradora pode ser compreendida como uma herança cultural que, advinda
do período colonial, permanece pulsando no imaginário contemporâneo brasileiro. Homi K. Bhabha
(1998), ao problematizar questões relacionadas à dominação de um povo sobre outro, explana que as
relações de poder estabelecidas em um território colonial materializam -se a partir de uma construção
discursiva na qual um sujeito ocupa reiteradamente um lugar de superioridade em relação a outro.
Conforme esclarece o filósofo, este uso estratégico da linguagem produz um ‘efeito de identidade’ que
opera na garantia, pelo reconhecimento e pelo repúdio às diferenças, de uma relação hierárquica entre o
agente colonizador e o sujeito colonizado.
Compreende-se, dessa forma, que longe limitar-se a um experimentalismo linguístico ou a uma
glorificação ingênua dos tempos modernos, a materialidade estética de Eles eram muitos cavalos (Ruffato,
2006) conduz o leitor a uma reflexão relacionada à complexidade e aos paradoxos de uma sociedade
simultaneamente habitada por inúmeros avanços tecnológicos e pela manutenção de valores e costumes
coloniais.
Acta Scientiarum. Language and Culture, v. 44, e459951, 2020
Page 8 of 8 Santos

Considerações finais
Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato (2006), configura-se como uma categoria de arte que, diante dos
fracassos da modernização, “[...] oferece uma intervenção para examinar a ideia de ‘representação’ nos dois
sentidos da palavra, o político (no sentido de delegação) e o artístico (reprodução mimética)” (Klinger, 2007,
p. 13, grifo do autor). É por meio de uma “[...] poética de restos [...]” (Ginzburg, 2012, p. 204) que a narração
ruffatiana alcança a sua potência expressiva e promove reflexões acerca de inúmeras mazelas que afligem a
sociedade brasileira.
Dialogando com a estética futurista, o escritor brasileiro tece a reconstrução da história de um povo
secularmente explorado e propõe uma nova leitura de mundo. Separadas pelo tempo e pelo espaço, as poéticas
de Ruffato e Marinetti se aproximam na medida em que os escritores, engajados com a linguagem, encontram
na literatura uma forma de contestar, prismatizar e ressignificar seus respectivos contextos históricos. No
entanto, se Marinetti (1977) encontra na poesia um caminho para exaltar diversos aspectos do fascismo,
Ruffato expressa por meio da prosa um compromisso para com os sujeitos historicamente marginalizados na
sociedade brasileira. Longe de reverberar o tom otimista da poética futurista, ao configurar situações de
sequestro, de assassinato, de doença e de miséria, Luiz Ruffato (2006) expressa, em Eles eram muitos cavalos,
um posicionamento cético diante dos supostos avanços advindos da modernização.

Referências
Bakhtin, M. (1998). Questões de literatura e de estética: a teoria do romance (4a ed.). São Paulo, SP: Hucitec.
Bhabha, H. K. (1998). O local da cultura. Belo Horizonte, MG: UFMG.
Campos, A. (2010). Mallarmé: o poeta em greve. In A. Campos, D. Pignatari, & H. Campos (Orgs.), Mallarmé
(p. 23-29). São Paulo, SP: Perspectiva.
Evangelista, R. (1996). Ritos de passagem. In Fundação Bienal de São Paulo, 23ª Bienal de São Paulo – A
desmaterialização da arte no final do milênio. São Paulo, SP: Fundação Bienal.
Ferreira, J. M. (1979). Antologia do futurismo italiano – manifestos e poemas. Lisboa, PT: Vega.
Ginzburg, J. (2012). O narrador na literatura brasileira contemporânea. Tintas. Quaderni di Letterature
Iberiche e Iberoamericane, 2(1), p. 199-221.
Klinger, D. I. (2007). Escritas de si, escritas do outro. Rio de Janeiro, RJ: 7letras.
Mallarmé, S (2010). Um lance de dados jamais abolirá o acaso. In A. de Campos, D. Pignatari, & H. de
Campos (Orgs.), Mallarmé (p. 149-173). São Paulo, SP: Perspectiva.
Marinetti, F. T. (1977). Manifesto técnico da literatura futurista. In G. M. Teles, Vanguarda européia e
modernismo brasileiro (p. 89-93). Rio de Janeiro: Vozes.
Marinetti, F. T. (1979). Bombardeamento. In J. M. Ferreira, Antologia do futurismo italiano – manifestos e
poemas (p. 185-188). Lisboa, PT: Vega.
Meireles, C. (1989). Romanceiro da inconfidência. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira.
Menegazzo, M. A. (2004). A poética do recorte. Campo Grande, MS: Editora UFMS.
Orlandi, E. P. (1993). As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. São Paulo, SP: Unicamp.
Ruffato, L. (1998). Histórias de remorsos e rancores. São Paulo, SP: Boitempo Editorial.
Ruffato, L. (2006). Eles eram muitos CAVALOS. São Paulo, SP: Boitempo Editorial.
Ruffato, L. (2013, 08 de outubro). Leia a íntegra do discurso de Luiz Ruffato na abertura da Feira do Livro de
Frankfurt. Estadão online. Recuperado de http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,leia-a-integra-do-
discurso-de-luiz-ruffato-na-abertura-da-feira-do-livro-de-frankfurt,1083463
Ruffato, L. (2017, 30 de março). Literatura em diálogo. Revista E, (250). Recuperado de
https://portal.sescsp.org.br/online/artigo/10813_LITERATURA+EM+DIALOGO
Teles, G. M. (1977). Vanguarda europeia e modernismo brasileiro. Rio de Janeiro, RJ: Vozes.

Acta Scientiarum. Language and Culture, v. 44, e459951, 2020

Você também pode gostar