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HISTÓRIA DA
FILOSOFIA
Antiguidade e Idade Média
VOLUME I
3a edição
PAULUS
Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Reale, Giovanni.
História da filosofia: Antiguidade e Idade Média / Giovanni
Reale, Dario Antiseri; - Sâo Paulo: PAULUS, 1990. - (Coleção
filosofia)
CDD-109
90-0515 -100
1. Filosofia 100
2. Filosofia: História 109
Coleção FILOSOFIA
Ilustrações
Alinari, Arborio Mella, Barazzotto, Farabola, Ricciarini, Riva,
Stradella Costa, Tltus, Tomsich
Revisão
H. Dalbosco - L. Costa
©PAULUS-1990
Rua Dr. Pinto Ferraz, 183
04117-040 São Paulo (BRASIL)
FAX (011)575-7403
Tel. (011) 572-2362
Os Autores
Primeira parte
AS ORIGENS GREGAS
DO PENSAMENTO OCIDENTAL
GÊNESE, NATUREZA
E DESENVOLVIMENTO
DA FILOSOFIA ANTIGA
A FUNDAÇÃO DO PENSAMENTO
FILOSÓFICO
Os naturalistas pré-socráticos
OS “NATURALISTAS”
OU FILÓSOFOS DA“PHYSIS”
pode descer duas vezes o mesmo rio e não se pode tocar duas vezes
uma substância mortal no mesmo estado, pois, por causa da
impetuosidade e da velocidade da mudança, ela se dispersa e se
reúne, vem e vai. (...) Nós descemos e não descemos pelo mesmo rio,
nós próprios somos e não somos.”
É claro o sentido desses fragmentos: o rio é “aparentemente”
sempre o mesmo, mas “na realidade” é constituído por águas
sempre novas e diferentes, que sobrevêm e se dispersam. Por isso,
não se pode descer duas vezes a mesma água do rio, precisamente
porque ao se descer pela segunda vez já se trata de outra água que
sobreveio. E também porque, nós próprios mudamos: no momento
em que completamos uma imersão no rio, já nos tomamos diferen
tes de como éramos quando nos movemos para nele imergir. Dessa
forma, Heráclito pode muito bem dizer que nós entramos e não
entramos no mesmo rio. E pode dizer também que nós somos e não
somos, porque, para ser aquilo que somos em um determinado
momento, devemos não-ser-mais aquilo que éramos no momento
anterior, do mesmo modo que, para continuarmos a ser, devemos
continuamente não-ser-mais aquilo que somos em cada momento.
E isso, segundo Heráclito, vale para toda realidade, sem exceção.
Sem dúvida, esse é o aspecto da doutrina de Heráclito que se
tomou mais conhecido e que alguns de seus discípulos levaram a
conseqüências extremas, como, por exemplo, Cratilo, que censurou
Heráclito por não ter sido suficientemente rigoroso: com efeito, não
apenas não podemos nos banhar duas vezes nó mesmo rio como
também não podemos fazê-lo nem mesmo uma vez, dada a celeri
dade do fluxo (no momento em que começamos a imergir no rio já
sobrevêm outra água e, por mais célere que possa ser a imersãq, nós
mesmos já somos outros antes que ela se complete, no sentido que
já apontamos).
Mas, para Heráclito, essa é apenas a constatação de base, um
ponto de partida para outras inferências, ainda mais profundas e
argutas. O devir ao qual tudo está destinado caracteriza-se por
uma contínua passagem de um contrário ao outro: as coisas frias
esquentam, as quentes esfriam, as úmidas secam, as secas umede-
cem, o jovem envelhece,o vivo morre, mas daquilo que está morto
renasce outra vida jovem e assim por diante. Há, portanto, uma
guerra perpétua entre os contrários que se aproximam. Mas, como
toda coisa só tem realidade precisamente no devir, aguerra (entre
os opostos) revela-se essencial: “A guerra é mãe de todas as coisas
e de todas as coisas é rainha.” Mas, note-se bem, trata-se de tuna
guerra que, ao mesmo tempo, é paz, num contraste que é harmonia
ao mesmo tempo. O perene correr de todas as coisas e o devir
universal revelam-se como harmonia de contrários, ou seja, como
perene pacificação de beligerantes, tuna permanente conciliação
Heráclito 37
de contendentes (e vice-versa): “Aquilo que é oposição se concilia,
das coisas diferentes nasce a mais bela harmonia e tudo se gera por
meio de contrastes. (...) Eles (os ignorantes)não compreendem que
aquilo que é diferente concorda consigo mesmo; é a harmonia dos
contrários, como a harmonia do arco e da lira.” Somente em
contenda entre si é que os contrários dão um sentido específico um
ao outro: “A doença toma doce a saúde, a fome toma doce a
saciedade e o cansaço toma doce o repouso. (...) Não se conhecería
sequer o nome da justiça, se ela não fosse ofendida.”
E, na harmonia, os opostos coincidem: “O caminho de subida
e o caminho de descida são um único e mesmo caminho. (...) No
círculo, o fim e o princípio são comuns. (...) O vivo e o morto, o
desperto e o adormecido, o jovem e o velho são a mesma coisa,
porque, mudando, estas coisas são aquelas e, por seu turno,
aqueles são estas ao mudar.” Assim, “tudo é um” e “do um deriva
tudo”.
Essa “harmonia” e “unidade dos opostos” é o “princípio” e,
portanto, Deus ou o divino: “Deus é dia-noite, é invemo-verão, é
guerra e paz, é saciedade e fome.”
Hegel apreciava Heráclito a tal ponto que acolheu todas as
suas propostas na sua Lógica, muito embora a harmonia dos
opostos de Heráclito, evidentemente, esteja bem distante da dia
lética hegeliana, radicando-se na filosofia da physis, de modo que
a identidade e a diversidade, como os estudiosos destacaram bem,
são as “da substância primordial em todas as suas manifestações”
(J. Bumet). Com efeito, tanto os fragmentos como a tradição
indireta indicam claramente que Heráclito colocou o fogo como
“princípio” fundamental, considerando todas as coisas como trans
formações do fogo: “Todas as coisas são uma troca do fogo e o fogo
uma troca de todas as coisas, assim como as mercadorias são uma
troca do ouro e o ouro troca de iodas as mercadorias. (...) Essa
ordem, que é idêntica para todas as coisas, não foi feita por nenhum
dos deuses nem dos homens, mas era sempre, é e será fogo
eternamente vivo, que se acende segundo a medida e segundo a
medida se apaga.” Também é evidente por que Heráclito adjudicou
ao fogo a “natureza” de todas as coisas: o fogo expressa de modo
exemplar as características de mudança contínua, contraste e
harmonia. Com efeito, o fogo é continuamente móvel, é vida que
vive da morte do combustível, é a contínua transformação do
combustível em cinzas, fumaça e vapores, é perene “necessidade e
saciedade”, como diz Heráclito de seu Deus.
Esse fogo é como um “raio que governa todas as coisas”. E
aquilo que governa todas as coisas é “inteligência”, é “razão”, é
“logos”, é “lei racional”. Assim, a idéia de inteligência, que nos
filósofos de Mileto estava apenas implícita, é associada expressa
38 Os naturalistas pré-socráticos
mente ao “princípio” de Heráclito. Um fragmento particularmente
significativo sela a nova posição de Heráclito: “O Uno, único sábio,
quer e não quer ser chamado Zeus.” Não quer ser chamado Zeus se
por Zeus se entende o deus de formas humanas próprio dos gregos;
quer ser chamado Zeus se por esse nome se entende o Deus ser
supremo.
Em Heráclito já emerge uma série de elementos relativos à
verdade e ao conhecimento. É preciso estar atento em relação aos
sentidos, pois estes se detêm na aparência das coisas. E também
é preciso se precaver quanto às opiniões dos homens, que se
baseiam nas aparências. A Verdade consiste em captar, para além
dos sentidos, a inteligência que governa todas as coisas. E Herá
clito sente-se como que o profeta dessa inteligência, daí o caráter
oracular de suas sentenças e o caráter hierático de seu discurso.
Deve-se ressaltar ainda uma outra idéia: apesar da colocação
geral de seu pensamento, que o levava a interpretar a alma como
fogo e, portanto, a interpretar a alma sábia como a mais seca,
fazendo a insensatez coincidir com a umidade, Heráclito escreveu
uma das mais belas sentenças sobre a alma que chegaram até nós:
“Nunca poderás encontrar os limites da alma, por mais que
percorras os seus caminhos, tão profundo é o seu logos.” Mesmo no
âmbito de um horizonte “físico”, nessa afirmação Heráclito, com a
idéia da dimensão infinita da alma, abre uma fresta em direção a
algo ulterior e, portanto, não físico. Mas é só uma fresta, muito
embora genial.
Parece que Heráclito acolheu algumas idéias dos órficos,
afirmando o seguinte sobre os homens: “Imortais mortais, mortais
imortais, vivendo a morte daqueles, morrendo a vida daqueles.”
Essa afirmação parece expressar, na linguagem de Heráclito, a
idéia órfica de que a vida do corpo é a mortificação da alma e a morte
do corpo é a vida da alma. Ainda com os órficos, Heráclito acredi
tava em castigos e prêmios depois da morte: “Depois da morte,
esperam pelos homens coisas que eles não esperam nem imagi
nam.” Entretanto, hoje não podemos mais estabelecer de que modo
Heráclito procurava colocar essas crenças órficas em conexão com
sua filosofia da physis.
etc.
3 5
etc.
Os pitagóricos 43
Além disso, os pitagóricos consideravam o número ímpar
como “masculino” e o par como “feminino”.
Por fim, também consideravam os números pares como
“retangulares” e os números ímpares como “quadrados”. Com
efeito, dispondo-se em tomo do número 1 as unidades que consti
tuem os números ímpares, se obtém quadrados, ao passo que,
dispondo-se de modo análogo as unidades que constituem os
números pares, se obtém retângulos, como demonstram as figuras
seguintes, a primeira exemplificando os números 3, 5 e 7 e a
segunda os números 2, 4, 6 e 8.
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A DESCOBERTA DO HOMEM
Os sofistas,
Sócrates e os socráticos
e a medicina hipocrática
A SOFISTICA E O DESLOCAMENTO
DO EIXO DA PESQUISA FILOSÓFICA
DO COSMOS PARA O HOMEM
3. Górgias e a retórica
80 Os sofistas
essência da poesia, que ele definiu deste modo: “(...) Em suas várias
formas, eu considero e chamo a poesia de um discurso com métrica.
E quem a escuta é invadido por um arrepio de estupor, uma
compaixão que arranca lágrimas, um ardente desejo de dor—e, por
efeito das palavras, a alma sofre o seu próprio sofrimento ao ouvir
a fortuna e a desfortuna de fatos e pessoas estranhas.”
Assim, como a retórica, a arte lida com sentimentos, mas, ao
contrário da retórica, não visa interesses práticos, mas ao engano
poético (apáte) enquanto tal (estética apatética). E tal “engano” é,
evidentemente, a pura “ficção poética”. De modo que Górgias podia
muito bem dizer que, nessa espécie de engano, “quem engana está
agindo melhor do que quem não engana e quem é enganado é mais
sábio do que quem não é enganado”. Quem engana, ou seja, o poeta,
é melhor por sua capacidade criadora de ilusões poéticas e quem é
enganado é melhor porque é capaz de captar a mensagem dessa
criatividade.
Tanto Platão com Aristóteles tratariam desses pensamentos,
o primeiro para negar validade à arte, já o segundo para descobrir
o poder catártico e purificador do sentimento poético, como
veremos.
4. Pródico e a sinonímia
6. Erísticos e sofistas-políticos
O NASCIMENTO DA MEDICINA
COMO SABER CIENTÍFICO AUTÔNOMO
4. O Juramento de Hipócrates
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Hipócrates 121
estações, como vimos, mas apenas como coordenadas ambientais.
Políbio combinou a doutrina das quatro qualidades, proveniente
dos médicos itálicos, com as doutrinas hipocráticas oportunamente
desenvolvidas, compondo o seguinte quadro: a natureza do corpo
humano é constituída por sangue, fleuma, bile amarela e bile
negra; o homem está “sadio” quando esses humores estão
“reciprocamente bem temperados por propriedade e quantidade”
e a mistura é completa; entretanto, está “doente” quando “há
excesso ou carência deles” ou quando falte aquela condição de “bem
temperados”; aos humores correspondem as quatro estações, bem
como quente e frio, seco e úmido.
O gráfico da pág.120 ilustra bem esses conceitos, com
algumas expli-citações posteriores (o primeiro círculo representa
os elementos de origem itálica, o segundo as qualidades
correspondentes, o terceiro os humores, o quarto as estações
correspondentes e afins; os últimos dois círculos representam os
temperamentos do homem e as suas relativas predisposições para
as doenças; poder-se-ia também acrescentar as correspondentes
fases da vida do homem, em si mesmas, mas elas são óbvias, devido
à perfeita coincidência com as estações).
, Esse claro esquema, que conciliava instâncias opostas, e a
lúcida síntese das doutrinas médicas nele baseada garantiram um
imonso sucesso ao tratado. Galeno iria defender a autenticidade
hipocrática do conteúdo desse texto e o completaria com uma
elaborada doutrina dos “temperamentos”, de sorte que o esquema
manteve-se como uma pedra de toque na história da medicina e um
ponto de referência durante dois milênios.
Quarta parte
PLATÃO E O HORIZONTE
DA METAFÍSICA
1. A questão platônica
2. A fundação da metafísica
3.3. A dialética
Os homens comuns se detêm nos primeiros dois degraus da
primeira forma de conhecimento, isto é, não ultrapassam o nível da
opinião; os matemáticos ascendem ao nível da diánoia; entretanto
somente 0 filósofo tem aceso às noesis e à ciência suprema^ O
intelecto e a inteleção, superadas as sensações e os elementos todos
ligados ao sensível, captam, com um processo que é simultanea
mente discursivo e intuitivo, as Idéias na sua pureza, juntamente
com seus respectivos nexos positivos e negativos, isto é, com todas
as suas ligações de implicação e de exclusão, ascendendo de Idéia
em Idéia até a captação da Idéia suprema, ou seja, do Incondicio-
nado. Esse processo, pelo qual o intelecto passa de Idéia para Idéia,
constitui a “dialética”. E 0 filósofo é 0 “dialético”.
Por conseguinte, existe uma dialética ascendente que, liber
ta dos sentidos e do sensível, conduz às Idéias e, posteriormente,
ascendendo de Idéia em Idéia, alcança a Idéia suprema. Por outro
lado, existe também uma dialética descendente que, percorrendo
150 Platão
o caminho inverso, parte da Idéia suprema ou de Idéias gerais e,
por nm processo de divisão ou diairético, isto é, mediante a
distinção progressiva das Idéias particulares contidas nas Idéias
gerais, consegue estabelecer a posição que uma Idéia ocupa na
estrutura hierárquica do mundo das Idéias. Esse aspecto da
dialética é amplamente ilustrado nos diálogos da última fase.
Concluindo, podemos dizer que a dialética consiste na cap
tação, baseada na intuição intelectual, do mundo das Idéias, da sua
estrutura e do lugar que cada Idéia ocupa em relação às outras
Idéias nessa estrutura. E nisso consiste a “verdade”.
Como é evidente, o novo significado de “dialética” resulta
inteiramente das aquisições da “segunda navegação”.
4. A concepção do homem
ARISTÓTELES E A PRIMEIRA
SISTEMATIZAÇÃO OCIDENTAL
DO SABER
ARISTÓTELES E O PERÍPATOS
1. A questão aristotélica
2. A metafísica
3. A física e a matemática
4. A psicologia
6.3. A definição
Naturalmente, como as categorias não são simplesmente os
termos que derivam da decomposição da formulação, mas sim os
gêneros aos quais eles são redutíveis ou sob os quais recaem, então
as categorias são algo de primário, não sendo ulteriormente
redutíveis. Assim, não são definíveis, precisamente porque não
existe algo mais geral a que possamos recorrer para determiná-las.
Com isso, tocamos na questão da definição, que Aristóteles
não trata nas Categorias, mas sim nos Analíticos segundos e em
 lógica 213
outros escritos. Entretanto, como a definição diz respeito aos
termos e aos conceitos, é bom falar dela neste ponto.
Dissemos que as categorias são indefiníveis porque são os
gêneros supremos. Mas os indivíduos também são indefiníveis,
embora por razões opostas, por serem particulares, colocando-se
como que às antípodas das categorias: deles, só é possível a
percepção. Mas, entre as categorias e os indivíduos, há toda uma
gama de noçõés e conceitos, que vão do mais geral ao menos geral:
são aqueles que normalmente constituem os termos dos juízos e
das proposições que formulamos (o nome indicador do indivíduo só
pode aparecer como sujeito). Pois é precisamente através da
definição (horismós) que nós conhecemos todos esses termos que
estão entre a universalidade das categorias e a particularidade dos
indivíduos.
O que significa “definir”? Significa não tanto explicar o
significado de uma palavra, mas muito mais determinar o que é o
objeto que a palavra indica. Por isso, explica-se a formulação que
Aristóteles dá da definição como “o discurso que expressa a es
sência”, “o discurso que expressa a natureza das coisas” ou “o dis
curso que expressa a substância das coisas”. E, diz Aristóteles,
para se poder definir alguma coisa necessita-se do “gênero” e da
“diferença” — ou, como o pensamento aristotélico foi expresso com
uma fórmula clássica, o “gênero próximo” e a “diferença específica”.
Se quisermos saber o que quer dizer “homem”, devemos, através da
análise, identificar o “gênero próximo” em que ele se inclui, que não
é o de “vivente” (pois também as plantas são viventes), mas o de
“animal” (pois o animal, além da vida vegetativa, tem também a
vida sensitiva); depois, devemos analisar as “diferenças” que deter
minam o gênero animal até encontrarmos a “difereiiça última” dis
tintiva do homem, que é “racional”. O homem, portanto, é “animal
(gênero próximo) racional (diferença específica)”. A essência das
coisas é dada pela diferença última que caracteriza o gênero.
Naturalmente, para a definição dos conceitos isoladamente,
vale o que se disse a propósito das categorias: uma definição pode
ser válida ou não válida, mas nunca verdadeira ou falsa, porque
verdadeiro e falso implicam sempre uma união ou separação de
conceitos e isso só acontece no juízo e na formulação da proposição,
de que devemos falar agora.
6.4. Os juízos e as proposições
Quando unimos os termos entre si, afirmando ou negando
algo de alguma outra coisa, temos então o “juízo”. O juízo, portanto,
214 Aristóteles
6.11. A retórica
Assim como Platão, Aristóteles tinha a firme convicção, em
primeiro lugar, de que a retórica não tem a função de ensinar e
treinar em torno da verdade ou de valores particulares. Com efeito,
essa função é própria da filosofia, por um lado, e das ciências e artes
particulares, por outro. Já o objetivo da retórica é o de “persuadir”
ou, mais exatamente, o de descobrir quais são os modos e meios
para persuadir.
A retórica, portanto, é uma espécie de “metodologia do
persuadir”, uma arte que analisa e define os procedimentos atra
vés dos quais o homem procura convencer os outros homens e
identifica as suas estruturas fundamentais. Assim, sob o aspecto
formal, a retórica apresenta analogias com a lógica, que estuda as
estruturas do pensar e do raciocinar e, particularmente, apresenta
analogias com aquela parte da lógica que Aristóteles chama
“dialética”. Efetivamente, como vimos, a dialética estuda as estru
turas do pensar e do raciocinar que se movem não com base em
elementos fundados cientificamente, mas sim em elementos fun
dados na opinião, ou seja, aqueles elementos que se apresentam
como aceitáveis para todos ou para a grande maioria dos homens.
Analogamente, a retórica estuda os procedimentos com os quais os
homens aconselham, acusam, defendem-se e elogiam (com efeito,
essas são todas atividades específicas do persuadir) em geral, não
movendo-se a partir de conhecimentos científicos, mas de opiniões
prováveis.
Assim, as argumentações que a retórica fornece não devem
partir das premissas originárias de que parte a demonstração
científica, mas daquelas convicções comumente admitidas de que
parte também a dialética. Ademais, em sua demonstração, a
retórica não apresenta as várias passagens, através das quais o
220 Aristóteles
ouvinte comum se perdería, mas extrai a conclusão rapidamente
das premissas, deixando subjacente a mediação lógica, pelas
razões apresentadas. Esse tipo de raciocínio retórico se chama
“entimema”. Portanto, o entimema é um silogismo que parte de
premissas prováveis (de convicções comuns e não de princípios
primeiros), sendo conciso e não desenvolvido nas várias passagens.
Além do entimema, a retórica se vale também do “exemplo”, que
não implica mediação lógica de qualquer gênero, mas torna imedia
ta e intuitivamente evidente aquilo que se quer provar. Assim como
o entimema retórico corresponde ao silogismo dialético, também o
exemplo retórico corresponde à indução lógica, enquanto desenvolve
uma função perfeitamente análoga.
6.12. A poética
Qual a natureza do fato e do discurso poético e a que visa?
São dois os conceitos sobre os quais devemos concentrar a
atenção para poder compreender a resposta dada por nosso filósofo
à questão: 1) o conceito de “mimese” e 2) o conceito de “catarse”.
1) Platão havia censurado fortemente a arte precisamente
porque é mimese, isto é, imitação de coisas fenomênicas, que, como
sabemos, são por seu turno imitações dos eternos paradigmas das
Idéias, de modo que a arte torna-se cópia de cópia, aparência de
aparência, extenuando o verdadeiro a ponto de fazê-lo desapare
cer. Aristóteles se opõe claramente a esse modo de conceber a arte,
interpretando a “mimese artística” segundo uma perspectiva oposta,
a ponto de fazer dela uma atividade que, longe de reproduzir
passivamente a aparência das coisas, quase recria as coisas se
gundo uma nova dimensão, como ele diz de modo exemplar nesta
passagem: “A função do poeta não é a de dizer as coisas acontecidas,
mas sim as que poderíam acontecer e suas possibilidades, de
acordo com a verossimilhança e a necessidade. Com efeito, o
historiador e o poeta não diferem pelo fato de que um diz em prosa
e o outrb em versos (já que a obra de Heródoto, mesmo que fosse em
versos, não seria menos história, em versos, do que é sem versos),
mas diferem no seguinte: um diz as coisas acontecidas e o outro
aquelas que poderíam acontecer. Por isso, a poesia é coisa mais
nobre e mais filosófica que a história, porque a poesia trata muito
mais do universal, ao passo que a história trata do particular. E o
universal é o seguinte: que espécie de coisas a que espécie de pessoas
acontece de dizer ou fazer segundo verossimilhança ou necessidade,
o que a poesia visa, mesmo colocando nomes próprios, ao passo que
é particular aquilo que Alcebíades fez e o que sofreu.”
A dimensão segundo a qual a arte “imita”, portanto, é a
dimensão do “possível” e do “verossímil”. E é precisamente essa
O Perípatos 221
dimensão que “universaliza” os conteúdos da arte, elevando-os a
nível “universal” (evidentemente, não “universais” lógicos, mas
simbólicos e fantásticos, como se diria mais tarde).
2) Enquanto a natureza da arte consiste na imitação do real
segundo a dimensão do possível, sua finalidade consiste na
“purificação das paixões”. E Aristóteles o diz fazendo referência
explícita à tragédia, “que, por meio da piedade e do terror, acaba
por efetuar a purificação de tais paixões”. Mas ele desenvolve um
conceito análogo também em referência ao efeito da música.
O que significa então purificação das paixões1?
Alguns acharam que Aristóteles estava falando de purifica
ção “das” paixões em sentido moral, quase como que uma subli-
mação das paixões obtida através da eliminação daquilo que elas
têm de inferior. Outros, porém, entenderam a “catarse” das paixões
no sentido de remoção ou eliminação temporária das paixões, em
sentido quase fisiológico, e portanto no sentido de libertação “em
relação às” paixões. Pelos poucos textos que chegaram até nós,
redunda claramente que a catarse poética não é certamente uma
purificação de caráter moral (já que é expressamente distinta
dela): parece que, embora com oscilações e incertezas, Aristóteles
entrevia naquela agradável libertação operada pela arte algo de
análogo àquilo que hoje nós chamamos “prazer estético”. Entre
outras coisas, Platão havia condenado a arte também pelo motivo
de que ela desencadeia sentimentos e emoções, reduzindo o ele
mento racional que os domina. Aristóteles subverte exatamente a
interpretação platônica: a arte não se carrega de emotividade, mas
sim se descarrega; ademais, aquele tipo de emoção que ela nos
proporciona (que é de natureza inteiramente particular) não
apenas não nos prejudica, mas até nos recupera.
AS ESCOLAS FILOSÓFICAS
DA ÉPOCA HELENÍSTICA
Cinismo, epicurismo, estoicismo,
ceticismo, ecletismo
e o grande florescimento
das ciências particulares
8
Alexandre Magno (356-323 a.C.): foi ele o criador do “helenismo”.
Capítulo VIII
O PENSAMENTO FILOSÓFICO
NA ÉPOCA HELENÍSTICA
4. A fundação da Estoá
5. O ceticismo e o ecletismo
- ■
5Ôá^r^<A-=.XA;íi;-
d&^7^'iÍÍ.'LT:'
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OS DESENVOLVIMENTOS
E AS CONQUISTAS DA CIÊNCIA
NA ÉPOCA HELENÍSTICA
1. Os acontecimentos
que levaram à fundação do “Museu” e da “Biblioteca”
e as conseqüências que daí derivaram
TOTAL: 26 (+ 7) 33 (+ 22) 55
Uma tentativa verdadeiramente nova e original foi feita por
Heráclides do Ponto, contemporâneo de Eudóxio, que supôs que “a
Terra está situada no centro e gira”, “enquanto que o céu está
parado”. Segundo um testemunho antigo (de resto, não comple
tamente seguro), Heráclides supôs também, para explicar alguns
fenômenos que a hipótese de Eudóxio não explicava, que Vênus e
Mercúrio girassem circularmente em tomo do Sol, que, por seu
turno, rodava em tomo da Terra. Mas a tese não teve sucesso, pelo
menos imediatamente.
Foi na primeira metade do século III (e, portanto, na época
helenística de que nos estamos ocupando) que se teve a tentativa
mais revolucionária da Antigüidade, por obra de Aristarco de
Samos, chamado “o Copémico antigo”. Como registra Arquimedes,
ele supôs “que as estrelas fixas são imutáveis e que a Terra gira em
tomo do Sol, descrevendo um círculo”. Como se vê, Aristarco retoma
a idéia de Heráclides do Ponto, mas vai mais além, sustentando que
o Sol é o centro em tomo do qual giram todos os astros. Parece que
ele concebia a idéia de um cosmos infinito: com efeito, dizia que a
esfera das estrelas fixas, que tem como centro o próprio centro do
Sol, era tão grande que o círculo segundo o qual se movia a Terra
estava a uma tal distância das estrelas fixas “como o centro de uma
esfera está para a sua superfície”. O que significa, precisamente,
uma distância infinita.
Um único astrônomo seguiu a tese de Aristarco: Seleuco de
Selêucia (que teve seu auge em tomo de 150 a.C.) Ao contrário,
Apolônio de Perga, o grande matemático de que já falamos, e
sobretudo Hiparco de Nicéia bloquearam a tese e reimpuseram o
geocentrismo, que resistiu até Copémico.
As razões que obstaculizaram o sucesso da tese heliocêntrica
são numerosas: a) a oposição religiosa; b) a oposição das seitas
296 A ciência helenística
filosóficas, inclusive as helenísticas; c) a deformidade em relação
ao senso comum, que vê o geocentrismo como muito mais natural;
d) alguns fenômenos que pareciam permanecer inexplicados.
Bastava eliminar as complicações criadas por Eudóxio com a
multiplicação do número de esferas através da formulação de
novas hipóteses que, embora mantendo a construção geocêntrica
geral e as órbitas circulares dos planetas, podiam muito bem
“salvar os fenômenos”, como então se dizia, ou seja, explicar aquilo
que aparece para a visão e a experiência. Essas hipóteses se
reduzem a duas, muito importantes: 1) a dos “epiciclos” (em certa
medida, antecipada já por Heráclides); 2) a dos “excêntricos”.
1) A hipótese dos “epiciclos”, como já se acenou, consistia em
admitir que os planetas giravam em tomo do Sol, que, por seu
turno, girava em tomo da Terra.
2) A hipótese do “excêntrico” consistia em admitir órbitas
circulares em tomo da Terra tendo um centro não coincidente com
o centro da Terra, sendo, portanto, “excêntrico” em relação a esta.
Hiparco de Nicéia, que teve seu auge por volta de meados do
século II d.C., deu a explicação mais convincente, para a mentali
dade da época, sobre os movimentos dos astros com base nessas hi
póteses. A distância diversa do Sol e da Terra e as estações, por
exemplo, são facilmente explicáveis supondo-se que o Sol gira se
gundo uma órbita excêntrica em relação à Terra. Com hábeis com
binações das duas hipóteses, ele conseguiu dar conta de todos os fe
nômenos celestes. Desse modo, o geocentrismo foi salvo e, ao mes
mo tempo, nenhum fenômeno celeste parecia ficar sem explicação.
E assim que Plínio louva o nosso astrônomo: “O próprio
Hiparco, que nunca será suficientemente elogiado, já que ninguém
mais do que ele mostrou que o homem tem afinidade com os astros
e que nossas almas são parte do céu, descobriu uma estrela nova
e diferente que nasceu na sua época. E, constatando que o lugar em
que ela refulgia se deslocava, propôs-se a questão de se isso não
deveria acontecer com mais freqüência e se as estrelas que nós
consideramos fixas também não se moveríam: conseqüentemente,
ousou lançar-se a uma empresa que seria árdua até mesmo para
um deus, a de contar as estrelas para os pósteros e catalogar os
astros, através de instrumentos por ele inventados, através dos
quais podia indicar suas posições e grandezas, de modo que se
pudesse facilmente reconhecer daqui não apenas se as estrelas
morriam e nasciam, mas também se alguma se deslocava ou se
movia, crescia ou diminuía. E assim deixou o céu de herança para
todos os homens, para o caso de que se encontrasse um homem que
estivesse em condições de recolher sua herança.”
E deixou de herança um catálogo de nada menos que 850
estrelas!
A medicina 297
3.4. O apogeu da medicina helenística com Erófilo
e Erasístrato e sua posterior involução
No Museu de Alexandria, na primeira metade do século III
a.C., realizaram-se pesquisas de anatomia e fisiologia muito
importantes, sobretudo através dos médicos Herófilo da Calcedô-
nia e Erasístrato de Júlida. A possibilidade de dedicar-se à pes
quisa voltada para o puro incremento do saber, o aparelhamento
colocado à disposição pelo Museu e a proteção de Ptolomeu Fila-
delfo, que permitiu a dissecação de cadáveres, fizeram com que tais
ciências realizassem notáveis progressos. E certo que Erófilo e
Erasístrato chegaram até mesmo a realizar operações de vivissec-
ção em alguns malfeitores (com permissão real), suscitando muito
alvoroço.
A Erófilo devem-se muitas descobertas no âmbito da anatomia
descritiva (algumas ainda levam o seu nome). Ele superou defini
tivamente a concepção de que o órgão central do organismo vivo
fosse o coração, demonstrando que, ao contrário, era o cérebro.
Conseguiu também estabelecer a distinção entre nervos sensores
e nervos motores. Retomando uma idéia do seu mestre Praxágoras,
Erófilo estudou as pulsações e indicou o seu valor diagnóstico. Por
fim, retomou a doutrina dos humores, de gênese hipocrática.
Erasístrato distinguiu as artérias das veias e sustentou que
as primeiras contêm o ar, ao passo que as segundas têm sangue. Os
estudiosos de história da medicina explicaram o equívoco, escla
recendo que a) com a denominação de “artéria”, os gregos indica
vam também a traquéia e os brônquios e b) que nos animais mortos
(que eram seccionados) o sangue passa das artérias para as veias.
As suas explicações fisiológicas adotaram critérios inspirados no
mecanismo (especialmente de Estratão de Lâmpsaco). Toda a
digestão, por exemplo, era explicada em função da mecânica dos
músculos, ao passo que a absorção do alimento por parte dos tecidos
era explicado com o princípio que passou para a história como
princípio do horror vacui, segundo o qual a natureza tende a
preencher todo vazio.
Mas esse momento de glória não durou muito tempo. Filino
de Cós, discípulo de Erófilo, já se afastava do mestre e, provavel
mente sob a influência do ceticismo, abriu caminho para a escola
que seria chamada dos médicos empíricos, que rejeitavam omomento
teorético da medicina, confiando unicamente na experiência.
Serapião de Alexandria consolidou essa orientação, que teve uma
longa história até que, já na era cristã, fundiu-se com o neoceti-
cismo, por obra de Menódoto (cf. pp. 318s) Por fim, devemos re
cordar que a doutrina de Erasístrato segundo a qual nas artérias
circula ar constitui um antecedente da medicina que, sobretudo
298 A ciência helenística
por influência da Estoá, daria muito relevo aopneuma, fluido vital
de natureza aérea que inspiramos com o ar (medicina pneumática).
Mas teremos oportunidade de examinar a formulação mais sofis
ticada dessa doutrina, sintetizada com a tradicional doutrina
humoral, quando falarmos de Galeno.
O DESENVOLVIMENTO ÚLTIMO
DA FILOSOFIA PAGÃ ANTIGA
As escolas na época imperial,
Plotino e o neoplatonismo
e os últimos desdobramentos
da ciência antiga
2.2. Sêneca
Lúcio Aneu Sêneca nasceu em Córdoba, na Espanha, entre
o fim da era pagã e o princípio da era cristã. Em Roma, participou
ativamente e com sucesso da vida política. Condenado por Nero ao
suicídio em 65 d.C., Sêneca matou-se com estóica firmeza e admi
rável força de espírito. Da rica produção de Sêneca, chegaram até
nós: De providentia, De constantia sapientis, De ira, Ad Mareiam
de consolatione, De vida beata, De otio, De tranquillitate animi, De
brevitate vitae, Ad Polybium de consolatione, Ad Helviam matrem
de consolatione (esses escritos também são indicados pelo título
geral de Dialogorum libri). Além desses, também nos chegaram:
De clementia, De beneficiis, Naturales quaestiones (em oito livros)
e a imponente coletânea das Epístolas a Lucílio (124 cartas
divididas em vinte livros). Também nos chegaram algumas
tragédias, mais do que à representação, destinadas à leitura, em
cujas personagens se encarna a ética de Sêneca {Hercules Furens,
Troades, Phoenissae, Medea, Phaedra, Oedipus, Agamemnon,
Thyestes e Hercules Octaeus ).
O neo-estoicismo: Sêneca 307
Sêneca é certamente um dos expoentes da Estoá em que mais
se evidenciam aquela oscilação em relação ao pensamento de Deus,
aquela tendência a sair do panteísmo e aquelas instâncias espiri
tualistas de que falamos, inspiradas em um acentuado sopro
religioso. Na verdade, em muitas passagens, Sêneca parece per
feitamente alinhado com o dogma panteísta da Estoá: Deus é a
Providência imanente, é a Razão intrínseca que plasma a matéria,
é a Natureza, é o Destino. Entretanto, lá onde a reflexão de Sêneca
é mais original, ou seja, no captar e interpretar o sentimento do
divino, o seu Deus assume traços espirituais e até pessoais, que
ultrapassam os marcos da ontologia estóica.
Um fenômeno análogo pode ser encontrado também na
psicologia. Sêneca destaca o dualismo entre alma e corpo com
acentuações que não raramente recordam bem de perto o Fédon
platônico. O corpo é peso, é vínculo, é cadeia, é prisão da alma; a
alma é o verdadeiro homem, que tende a libertar-se do corpo para
alcançar a sua pureza. E evidente que essas concepções atingem as
afirmações estóicas de que a alma é corpo, substância pneumática
e hálito sutil, afirmações que Sêneca, no entanto, reafirma. A
verdade é que, ao nível intuitivo, Sêneca vai além do materialismo
estóico; depois, porém, faltando-lhe as categorias ontológicas para
fundamentar e desenvolver tais intuições, ele as deixa suspensas
no ar.
Ainda com base na análise psicológica, de que é mestre,
Sêneca também descobre a “consciência” (conscientia) como força
espiritual e moral fundamental do homem, colocando-a em pri
meiro plano como antes dele ninguém havia feito no âmbito da
filosofia grega e romana. A consciência é o conhecimento do bem e
do mal, originária e ineliminável. Ninguém pode esconder-se dela,
porque o homem não pode esconder-se de si mesmo. O mau pode
fugir à punição da lei, mas não à consciência, que inexoravelmente
o remói e que é o juiz mais implacável.
Como vimos, a Estoá insistia no fato de que a “disposição de
espírito” determina a moralidade da ação. Entretanto, em confor
midade com a tendência fundamentalmente intelectualista de
toda a ética grega, essa disposição de espírito deriva do “conheci
mento” que é próprio do sábio e nele se resolve. Indo além, Sêneca
fala expressamente de “vontade”. E mais: pela primeira vez no
pensamento clássico, ele fala da vontade como de uma faculdade
distinta do conhecimento. Sêneca foi ajudado de modo determi
nante pela língua latina nessa descoberta: com efeito, os gregos não
têm um termo que corresponda perfeitamente a voluntas. Entre
tanto, ele não soube dar um adequado fundamento teorético a essa
sua descoberta.
308 A filosofia na época imperial
Outro traço também diferencia Sêneca da antiga Estoá, bem
como da totalidade dos filósofos gregos: o acentuado sentido do
pecado e da culpa de que cada homem está maculado. O homem é
estruturalmente pecador, diz o nosso filósofo. E, indubitavel
mente, essa é uma afirmação que se coloca em clara antítese em
relação à pretensão de perfeição que, dogmaticamente, o estóico
antigo atribuía ao seu sábio. Sêneca já pensava diferente: se
alguém nunca pecasse, não seria homem; o próprio sábio, en
quanto permanece homem, não pode deixar de pecar.
No âmbito da Estoá, Sêneca talvez tenha sido o pensador que
mais acentuadamente contrariou a instituição da escravidão e as
distinções sociais: o verdadeiro valor e a verdadeira nobreza são
dados somente pela virtude, que está indistintamente à disposição
de todos, pois exige unicamente o “homem nu”. A nobreza e a
escravidão social dependerá da sorte; todos incluem servos e nobres
entre seus mais antigos antepassados; na origem, todos os homens
eram inteiramente iguais. A única nobreza que tem sentido é
aquela que o homem constrói para si na dimensão do espírito. E eis
a norma que Sêneca propõe para regular o modo comp o senhor deve
se comportar em relação ao escravo e o superior em relação ao
inferior: “Comporta-te com os inferiores como gostarias que se
comportassem contigo aqueles que te são superiores.” Trata-se de
uma máxima que se aproxima bastante do espírito evangélico.
No que se refere às relações entre os homens em geral, Sêneca
dá fundamento à fraternidade e ao amor. A passagem seguinte
expressa seu pensamento de modo paradigmático: “A natureza nos
produz como irmãos, gerando-nos dos mesmos elementos e desti-
nando-nos aos mesmos fins. Ela inseriu-nos um sentimento de
amor recíproco, com que nos fez sociáveis, deu à vida uma lei de
equidade e justiça e estabeleceu, segundo os princípios ideais de
sua lei, que é coisa mais mísera ofender que ser ofendido. Ela
ordena que nossas mãos estejam sempre prontas a fazer o bem.
Conservemos sempre no coração e nos lábios aquele verso: ‘Sou
homem e não considero estranho a mim nada do que é humano.’
Tenhamos sempre presente esse conceito de que nascemos para
viver em sociedade. E a nossa sociedade humana é precisamente
semelhante a um arco de pedras que não cai justamente porque as
pedras, opondo-se umas às outras, sustentam-se reciprocamente e,
assim, sustentam o arco.”
2.3. Epicteto
Epicteto nasceu em Hierápolis, na Frigia, entre 50 e 60 d.C.
Pouco depois de 70 d.C., quando ainda era escravo, começou a
freqüentar as aulas de Musônio, que lhe revelaram sua própria
O neo-estoicismo: Epicteto 309
vocação para a filosofia. Expulso de Roma por Domiciano, junta
mente com outros filósofos (em 88/89 ou em 92/93 d.C.), deixou a
Itália, retirando-se para a cidade de Nicópolis, no Epiro, onde
fundou tuna escola que alcançou grande sucesso, atraindo ouvintes
de todas as partes. Não se conhece a data de sua morte (alguns
pensam em 138 d.C.). Querendo ater-se ao modelo socrático do
filosofar, Epicteto não escreveu nada. Felizmente, suas aulas eram
freqüentadas pelo historiador Flávio Arriano, que (talvez na
segunda década do século II d.C.) teve a feliz idéia de por seus
ensinamentos por escrito. Nasceram assim as Diatribes, parece
que em oito livros, dos quais quatro chegaram até nós. Arriano
também compilou um Manual (Encheiridion), extraindo das Dia
tribes as máximas mais significativas.
O grande princípio da filosofia de Epicteto consiste na divisão
das coisas em duas classes: a) aquelas que estão em nosso poder (ou
seja, opiniões, desejos, impulsos e repulsões) e b) aquelas que não
estão em nosso poder (ou seja, todas as coisas que não são ativida
des nossas, como, por exemplo, corpo, parentes, haveres, reputação
e semelhantes). O bem e o mal residem exclusivamente na classe
das coisas que estão em nosso poder, precisamente porque eles
dependem de nossa vontade, e não na outra classe, porque as coisas
que não estão em nosso poder não dependem de nossa vontade.
Nesse sentido, não há mais lugar para compromissos com os
“indiferentes” e com as “coisas intermediárias”. A escolha, portan
to, é radical, peremptória e definitiva: não se pode objetivar as duas
classes de coisas juntas, porque umas comportam a perda das
outras e vice-versa. Todas as dificuldades da vida e os erros que são
cometidos derivam de não se levar em conta essa distinção funda
mental. Quem escolhe a segunda classe de coisas, isto é, a vida
física, os haveres, o corpo e seus prazeres, não só vai ao encontro
de desilusões e contrariedades como também perde até mesmo a
sua liberdade, tomando-se escravo daquelas coisas e daqueles
homens que constituem ou concedem aqueles bens e aquelas
vantagens materiais. Quem, ao contrário, rejeita em bloco as coisas
que não dependem de nós e se concentra nas coisas que dependem
de nós toma-se verdadeiramente livre, porque tem a ver com
atividades que são nossas, vive a vida que quer, e conseqüente
mente, alcança a satisfação espiritual, a paz da alma.
Ao invés de colocar como fundamento moral um critério
abstrato de verdade, Epicteto colocou a proháiresis. A proháiresis
(pré-escolha, pré-decisão) é a decisão e a escolha de fundo, que o
homem faz de uma vez para sempre e com a qual, portanto,
determina o diapasão do seu ser moral, do que dependerá tudo
aquilo que fará e como o fará.
310 A filosofia na época imperial
E2Í1
4. Revivescência do cinismo
5. Renascimento do aristotelismo
6. O medioplatonismo