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Os Obstáculos Epistemológicos, segundo Gastou Bachelard

Walter Cardoso

I- Introdução cionais para os fenômenos, teme-os. Assim, em vez


de explicar a causa do trovão, um autor pré-
Embora não menospreze as ciências humanas, e cientifico prefere esclarecer acerca da improcedência
menos ainda as ciências biológicas, Gaston Bache- do medo que sentimos, após sua eclosão.
lard admite que as características filosóficas do
espírito científico são mais evidentes naquelas ciên-
"Ao escrever sobre o trovão, minha inten-
cias que contam com maior passado de objetividade ção principal tem sido sempre moderar, se isso
e que possuem um elevado grau de racionalidade. fosse possível, as impressões incômodas que esse
Assim, para ele, as matemáticas - constantemente meteoro costuma fazer sobre uma infinidade de '
rejuvenescidas e confiantes de sua autonomia - e as pessoas de todas as idades, de todos os sexos, de
ciências físicas são as que mais se enquadram em sua todas as condições. Quantos eu jã não vi passar
história e filosofia das ciências. os dias em agitações violentas, e as noites em in-
Fundamentado no passado de tais ciências, Ba- quietudes mortais?" (17)
chelard propõe-se a descrever a formação do espírito
cientifico. Partindo da percepção ingênua do fenô- Como o livro pré-cientifico trata do cotidiano, é
meno, um espírito pré-cientifico - que perdurou comum ocorrerem trocas de pontos de vista entre o
ainda até o século XVIII - necessitou superar uma autor- que se considera sábio - e seus leitores, por
série de obstáculos epistemológicos para atingir um certo meros curiosos. Dai as referências aos pitores-
estágio cientifico. O progresso do pensamento cos depoimentos de viajantes que presenciaram nos
científico se fez graças à transposição de tais obstá- trópicos curas maravilhosas, graças a medicamentos
culos e à prática de atos epistemológicos. exóticos, tais como lagartos. Por outro lado, en-
Tais obstáculos não são uma decorrência da quanto a ciência moderna afasta-se de toda referên-
complexidade ou fugacidade dos fenômenos, nem cia à erudição, o espírito pré-cientifico necessita
das limitações de nossos sentidos, mas eles se encon- apoio em uma extensa massa de predecessores céle-
tram no próprio ato do conhecer fundamentado na bres. Cita-se mais Plínio, do que se cita hoje qual-
idéia pré-concebida. Esta, ao interpretar fatos segun- quer sábio de qualquer época.
do necessidades, acaba por bloquear o conhecimen- É sintomático também que certos espíritos alie-
to. Antes, pois, de ter opinião, um espírito científico nados tenham conseguido, há cerca de dois séculos,
deve saber levantar problemas, criar hipóteses fecun- publicar livros nos quais se descreve um Universo ro-
das, as quais não devem confirmar seu saber, mas deado por chamas infernais. O Sol, cujo diâmetro é
contradizê-lo. Por outro lado, toda idéia científica apenas de cinco léguas, encontra-se no centro. É as-
demasiado familiar possui um concreto psicológico sim que um advogado do Parlamento e engenheiro-
excessivamente pesado, responsável por um emara- óptico do Rei consegue "ver" o Cosmos, graÇas a ex-
nhado de analogias, imagens e metáforas. periências realizadas com espelhos côncavos.
O exame dos obstáculos epistemológicos - cuja
superação se fez necessária para que se atingisse um "A Lua não é um corpo, mas um simples re-
nivel de espírito cientifico- constituem o propósito flexo do fogo solar na abóbada aérea ( ... ) Ases-
deste texto. trelas nada mais são do que a quebra esganiçada
de nossos raios visuais, sobre diferentes bolhas
11- A experiência primeira aéreas ... " (20)

Um conhecimento que se apóia em um sensua- Como a experiência primeira fascina, dá-se pre-
lismo facilmente perceptível, na experiência primei- ferência às imagens e não às idélas. Buscam-se então
ra, depara-se com seu primeiro obstáculo epistemo. experiências curiosas e divertidas, que em nada bene-
lógico. Um espírito pré-cientifico, ao ver na natureza ficiam a cultura científica. Tal é o caso da primeira
uma unidade hostil, antes de buscar explicações ra- eletricidade, cujo empirismo colorido é sedutor. NãQ
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é necessário compreendê-la, basta apenas vê-la e Mas é necessário que a noção de velocidade não ocul-
maravilhar-se: Desde que não se busca a variação, te a noção de aceleração, pois esta é a realidade do-
mas a variedade, atribui-se à eletricidade proprieda- minante.
de excepcional, em conexão com as mais diversas Os conceitos mais ricos são aqueles que, através
substâncias. Naturalmente, ordenam-se as proprie- de provas experimentais, produzem maior deforma-
dades elétricas das substâncias, segundo seu primeiro ção. Ocorre, então, graças ao aperfeiçoamento
aspecto: em primeiro lugar, as pedras preciosas de- contínuo de conceitos, uma totalização e atualização
pois o enxofr.:, os resíduos de calcinação e de de~tila­ da história do conceito. Em um espírito ~Vé­
ção, conchas de certos moluscos, etc. científico, não se verifica uma dinâmica dos concei-
tos, mas uma aceitação passiva de conceitos esclero- d
A admiração pelos fenômenos elétricos, sobre- d
tudo o "engarrafamento" da eletricidade, atinge a sados. É o que ocorreu em 1669, quando a Académie CI
todas as pessoas, até mesmo o Rei. Royale des Sciences propôs que se estudasse o fato se
geral da coagulação. Englobaram-se então sob a ru- d:
brica de coagulação os mais variados fenômenos, ve- ai
Em memorável experiência, o Abade Nollet rificados com os mais variados produtos de origem
"em presença do Rei, deu a comoção a cento e p
oitenta de seus guardas; e no convento de Char- animal: estuda-se a coagulação do leite, do sangue,
do fel e das gorduras. Estas têm no esfriamento uma ci
treaux, de Paris, toda a comunidade formou em
linha de 900 toesas, ao meio de um fio de ferro, causa óbvia, daí se colocar o congelamento da água e1
entre cada pessoa ... e toda a companhia, logo no rol das coagulações. Ao se desviar da coagulação t<
que descarregou a garrafa, houve uma comoção para o congelamento, fazem-se vagas referências a n:
súbita no mesmo instante e todos sentiram o gol- um certo sal que tem a virtude de congelar a água, os n
pe igualmente" O 9) óleos, o vinho, a cerveja, etc. Trata-se de um sal que fl
teria sido mencionado por Glauber e, que portanto e:
Enquanto um Imperador poderia se ufanar das poderia ser aceito independentemente da experiên-
fabulosas somas de Schellings gastos para fazer a ex- cia. I'
periência de Leyde, os demonstradores de raios X ou As abordagens que se fazem em torno da coagu-
laser por certo jamais pretenderão fazer fortunas im- lação carecem do "sentido do problema". A questão
periais ... ú
adquire amplas dimensões, chegando-se mesmo a
Sl
Às vezes, uma imagem pitoresca dispensa a veri- propor explicações cosmogônicas.
ficação de uma hipótese. Assim, basta fazer uma d
mistura de limalha de ferro e flor de enxofre e "As águas são levadas a se coagularem ct'm jl
recobri-la de terra - sobre a qual se planta grama - outras matérias e a se reunirem em um corpo só- E
para que se esteja, inquestionavelmente, fazendo fim lido ... Essa disposição da água para o sólido, nós u
vulcão. Para um espírito pré-científico, não se trata observamos ainda na espuma excitada pelo mo- a:
vimento apenas. A espuma é muito mais fluida fc
de uma reação exotérmica, mas de uma forma de se do que a água, pois nós podemos pegá-la com a CI
"compreender" o Vesúvio em erupção. Da mesma mão ... O movimento apenas, muda portanto, a
maneira, casinhas e outros edifícios construídos de d
água em corpo sólido." l27)
cartolina, submetidos a choques elétricos, explicarão b
os tremores de terra. Daí, às provas de eficácia dos Outro conceito que se presta ao estudo do obstá- ai
"pára-vulcões" e "pára-tremores-de-terra", não se culo representado pelo conhecimento geral é o de tr
dá um passo longo. jermentaçilo. Para um espírito pré-científico, a fer-
mentação consiste em um arranjo, uma nova combi- t~
Portanto, a história do conhecimento objetivo
terá que mostrar uma superação à adesão imediata. nação das partes de um corpo, após uma excitação VI
interna. Assim ocorre nos reinos animal e vegetal. tt
O conhecimento vulgar está impregnado de surdas f<
paixões, de desejos inconscientes e de certas quime- As experiências que se fazem para obter a fer-
ras. Uma hipótese pré-científica apóia-se, antecipa- mentação acabam por associá-la à digestão, pois o
damente, sobre uma convicção profunda, Assim, o movimento no estômago acredita-se ser decorrente
primeiro conhecimento constitui um primeiro erro. do calor, dos restos do último repasto e da virtude
"fermentativa" da saliva e do suco gástrico. Como
III - O conhecimento geral ocorre a fermentação ácida do leite no estômago, a
pode-se acelerar a digestão. Sendo esta essencialmen- et
A generalização prematura constitui um jogo in- te um movimento, aconselham-se exercícios às crian- ri
telectual perigoso. Ao embargar a experiência, a ças durante as mamas.
ciência do geral propõe grandes verdades primeiras, Se a fermentação é uma decorrência do movi-
que pretendem esclarecer completamente uma dou- mento, a "coesão" é um fenômeno inverso. Então, a p
trina. ação química do anidrido carbônico (ar fixo) sobre a p
Aristóteles ensinara que os corpos leves, esfu- cal branda faz esta retornar a seu "princípio cimen- fi
maçados e vapores, fogo e chama não caem, mas tante". á]
buscam seu lugar natural, enquanto que os pesados o
procuram a terra. Ensinar que todos os corpos caem, "É muito agradável de se verem as partícu-
sem exceção, poderia sugerir uma sadia doutrina da las de cal, que dois ou três minutos aparentavam
gravitação, quando na verdade se trata de generaliza- estar invisíveis, e dissolvidas na água, correrem a c
juntas, se precipitarem ao fundo, e voltarem ao CC
ção. Para um espírito pré-científico, o verbo cair dá seu primeiro estado de insolubilidade, no mo-
a esslncia do fenômeno queda; a lei geral da queda te
mento em que elas estavam saturadas de ar fi-
dos pesados define a palavra pesado. Ao fazer a ex- xo. "04) A
periência da queda dos corpos utilizando-se um tubo
CC
de Newton, chega-se a uma lei mais burilada: no vá- Os fenômenos oscilam entre dois polos: do mo-
te
cuo, todos os corpos caem com igual velocidade. vimento e liberdade, ao repouso e coesão. O "agra- Ql

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dável" é a confirmação fácil de uma hipótese. Como V - Conhecimento unitário e pragmático
afermentação é um fenômeno primeiro, a explicação
dos demais será dele derivado. A um espírito pré- Se as generalidades podem conduzir a caminhos
científico, classificar os demais fenômenos em rela- perigosos, a unidade constitui, para um espírito pré-
çlo à fermentação corresponde pois a conhecê-los. científico, um princípio alcançado sem maiores es-
forços. Como a Natureza é única, tudo o que expli-
car o grande deve explicar o pequeno e vice-versa.
"Como há muitos graus de movimento, po- Por outro lado, a predisposição às analogias leva a
de já haver múltiplos graus de fermentação; uma espécie de triângulo universal, cujos vértices
designam-se-lhes comumente por- seu registro Céu, Terra e Homem apresentam estreitas corres-
com o sentido do gosto e do olfato. Assim, pode- pondências. Assim, as afinidades que se acreditam
se dizer: uma fermentação acerba, austera, áci- existirem entre astros, metais e partes do corpo hu-
da, alcalina, vinhosa, acetosa, aromática, fétida, mano induzem ao tratamento de enfermidades se-
adstringente, etc." O 8) ,gundo relações existentes entre o orgão afetado, o
metal e o planeta que lhes é correspondente. O gato
Portanto, quando se exarninam as generalidades pré-
••.•,..,,... ,.,.," em torno da fermentação, verifica-se que gosta muito da erva valeriana. Na conjunção de Sa-
nenhuma contribuição trouxeram ao nascimen- turno e Lua, - astros que ao gato correspondem, -
reunem-se todos ós gatos no lugar dessa erva. Parece
técnica pasteuriana. O pensamento científico claro então que o gato possui as mesmas virtudes da
••nn.c~ ..,., procura o fermento específico, objetivo, e
valeriana, podendo mesmo substituí-la.
a fermentação universal. Um conhecimento ge-
corre o risco de se converter em um conhecimento
extremarpente vago. "Há pessoas que afirmam ser este animal
venenoso, e que seu veneno está no pelo e na ca-
beça, porque esses espíritos animais que crescem
IV - A esponja, como obstáculo verbal em Lua cheia e diminuem em Lua nova atacam
unicamente em Lua cheia, saindo de seus olhos
Para um espírito pré-científico, às vezes uma para comunicar o veneno.'' (9)
única palavra pode se converter em uma explicação
suficiente. Tal é o caso da esponja, cuja função é por A tendência em se encontrar utilidade na Natu-
demais óbvia. Assim, valendo-se da palavra "espon- reza harmônica e tutelar conduz a pragmatismo exa-
ja", acredita-se explicar a compressibilidade do ar. gerado, a extrapolações despropositadas. Assim, a
é muito mais "esponjoso" do que o algodão, a comunicação das crisálidas com o exterior, feita
mesmo a própria esponja, uma vez que pode ser através da transpiração, permite que seu processo vi-
comprimida, ou consideravelmente rare- tal não se interrompa. Se uma crisálida for imper-
o ar apresenta a mesma estrutura dos meabilizada, seu desenvolvimento será retardado ou
•••nrr•n• esponjosos, ele pode assimilar água, deixan- detido. Ora, os homens também poderiam se conser-
do assim de se tornar compressível, o que aliás tam- var por mais tempo, aplicando-se-lhes algum verniz,
bém acontece com a esponja. Tudo ocorre porque o como antigamente faziam os atletas.
é formado por grãos, nos quais a água pode pene- Um racionalismo pragmático não concebe a
idéia de um fenômeno inútil. Um ímã terá que ter
Quando se pretendeu explicar a eletricidade, uma grande utilidade, por exemplo, a virtude de cu-
.......,v,.... se utilizou a imagem da esponja. Esta absor- rar enfermidades.
a água lentamente, caso não houver atração mú-
mas se as duas partes se atraírem, não haverá "Eu pergunto ainda a todo físico sincero, se ele
que consiga separá-las. está inteiramente convencido de que essa força
magnética, tão universal, tão variada, tão espan-
tosa e tão admirável, foi produzida pelo Criador
"... finalmente, a absorção seria muito rápida, se apenas para dirigir as agulhas imantadas, que to-
lugar de atração houvesse entre as partes da davia permaneceram muito tempo desconhecidas
uma repulsão mútua que concordasse com ao gênero humano." (26)
da esponja. É esse precisamente o caso
que se encontram a matéria elétrica e a maté- Os trovões são úteis porque fertilizam as terras
comum." (8)
mais áridas; é graças aos cometas que se renova a
umidade do globo terrestre. Admitir algo realmente
p~t;ss~tgc''" da luz através dos vidros será com-
inútil na natureza seria cometer o equívoco imper-
l'"'""'uu~t se soubermos que estes são feitos de "es-
doável de admitir uma formação ocorrendo ao aca-
luz". Da mesma maneira, explica-se o es- so. Para um espírito pré-científico, verdade e utilida-
de um corpo quente, submerso no ar ou na de estão sempre associadas. Impossível conceber ex-
o ar e a água são como esponjas que absorvem periências que possam colocá-las em conflito.
fluido ígneo que escapa do corpo quente.
VI - O obstáculo substancialista
sendo uma esponja de água espessa e
pela retirada do fogo, tem a virtude de re-
facilmente tudo aquilo que se lhe apresen- Um espírito pré-científico conhece um objetr se-
(15) gundo o papel por este desempenhado. As substân-
cias não possuem propriedades, mas apenas
metáforas seduzem a razão. Um espírito científi- qualidades, muitas vezes ocultas e íntimas. Parado-
vale-se da analogia depois do estabelecimento da xalmente, um exame do mito do interior e da profun-
ao passo que o espírito pré-científico o faz didade nos mostra que este não vai além de uma im-
Para substituí-lo, é necessário ser iconoclasta. pressão superficial.
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A casca das ãrvores é menos preciosa do que a des confecções. nas que se combinam uma infini-
madeira que ela protege; as pedras são mais duras em dade de drogas, devia ser feita por tqdos os mes-
seu centro; a frialdade que envolve a superfície de tres e o produto obtido, repartido entre eles."
um corpo serve para impedir a dissipação de seu ca- l25)
lor. Mais do que possuir um interior, a substância é
um interior. Para o alquimista, pretender a chave O realismo do olfato é mais convincente do que
que abre uma substância não constitui uma metãfo- o realismo da vista. Ao evocar, de imediato, uma vir-
ra. A troca entre interior e exterior também pode tude substancial, o aroma constitui um poder insi-
ocorrer. Tal é o caso do azeite, que tem o poder de nuante, pois é a realidade que mais sensibiliza em
dissolver o enxofre e de trocar seu interior em exte- qualquer manipulação. Cada planta ou cada animal
rior. possui sua própria espécie de vapor, tão sutil que se
manifesta apenas por seu odor, ou por seu sabor, ou
Ou ainda: "o duplo corrosivo retornou total- por alguns efeitos que lhe são próprios. Enquanto es-
mente cobre, convertendo o interior em exterior, se vapor for puro, ele terã excessiva mobilidade, es-
tornando-o adequado, não apenas para deixar capando, misturando-se ao ar e retornando ao caos
sua alma, mas também ... pela virtude deste cor- co.mum de todos os corpos volãteis.
rosivo a alma doce do cobre converteu-se em bri-
lhante, como se o fizesse através de um meio vivi- "Entretanto, ele conserva sua própria natu-
ficante e ressuscitador." 06) reza, e nela dá voltas até tornar a cair com a ne-
ve, o granizo, a chuva ou o orvalho; então ele re-
A afirmação de uma qualidade oculta ou íntima gressa ao seio da terra, fecunda-a com sua se-
trava tanto o progresso do pensamento científico, mente prolífica, mescla-se com os seus fluidos
quanto a substancialização de uma qualidade ime- para se converter em sumo de algum animal ou
diata, captada através de uma intuição direta. As- de alguma planta ... " 0)
sim, a "substância" eletricidade, ao atravessar cor-
pos que possuem as mais variadas propriedades, fi- A exemplo do que ocorreu com o odor, o sabor
carã naturalmente impregnada das substâncias por também permitiu que se levantassem falsos proble-
ela atravessadas: o leite, o vinho, o vinagre ou a cer- mas. E como as sensações do gosto ligam-se aos atri-
veja, quando examinados por espíritos pré- butos mais profundos das substâncias, passa a cons-
científicos, produzem centelhas diferentes, quanto à tituir sério enigma um sal "anômalo", pois tem o sa-
cor e à acidez. bor doce, embora seus componentes sejam excessiva-
Falta pois, aquela orientação abstrata e mate- mente salgados ou azedos. A solução conciliatória
mática que serã mais tarde introduzida por Ohm, para a questão não tarda: trata-se de um sal formado
com o conceito de resistência. Ainda que se veja nele por cristais doces de .um sal comum, preparado com
certa metãfora, chega-se à lei que vai ao "nó" do vinagre de mel...
conceito. Ohm representa a supremacia de um co- Como as substâncias de maior valor se encon-
nhecimento abstrato e científico, sobre um conheci- tram em lugares de acesso mais difícil, compreende-
mento bãsico e intuitivo. se a importância das destilações repetidas, a fim de
Para um espírito pré-científico, o fogo elétrico, pacientemente se eliminar o indesejãvel. É através da
por ser substancial, participa da substância de onde evaporação do supérfluo que se obém o sal, matéria
ele procede. essencial, "o íntimo do íntimo".
"A luz que sai dos corpos friccionados é mais ou "Assim como no grande Mundo a terra é o
menos viva, segundo a natureza desses corpos; a Ímã, a atração de todas as influências celestes ...
do diamante, das pedras preciosas, do vidro, da 1esma forma o sal que é esta terra virgem, o
etc., é mais branca e mais viva, tem muito mais centro de todas as coisas, é o Ímã de tudo o que
brilho, do que aquela que sai do âmbar, do enxo- pode conservar a vida do microcosmo." 02)
fre, do lacre, das matérias resinosas ou da seda."
l6)
As mais extravagantes fantasias individuais en-
contram guarida em experiências concretas, realiza-
As idéias menos precisas são aquelas que neces-
das sem esforço de abstração. As virtudes mais mis-
sitam de maior número de palavras para expressã-
las. Daí a educação substancialista propor inúmeros teriosas da substância exercem fascínio e estimulam
adjetivos para um único substantivo. Para que um as mais estranhas analogias e metãforas.
medicamento· seja eficiente, é necessário que se lhe
atribuam numerosas virtudes. A raiz do cardo-santo VII- O realismo, como obstáculo
possui 17 propriedades farmacêuticas. epistemológico
Assim sendo, não surpreende que um competen-
te boticãrio setecentista devesse conhecer as mais va- Ao tomar um objeto como um bem pessoal, um
riadas plantas virtuosas, a fim de utilizã-las em seus realista ingênuo satisfaz um prazer avaro. O desejo
emplastros e unguentos. Para a cura de animais ve- de possuir pedras preciosas conduz a domínios
nenosos deve-se usar um medicamento que reúna o alheios a sua valorização inicial, sobretudo na far·
maior número possível de substâncias virtuosas. Al- mãcia. Com efeito, os tratados de medicina do sécu-
gumas teriagas chegam a ter cerca de 150 ingredien- lo XVIII atribuem às "matérias preciosas" as mais
tes, adicionados sem se levarem em conta as propor- excelsas virtudes. Assim, acredita-se que a esmeralda
ções, uma vez que o importante é a presença de subs- detém a hemorragia, as disenterias e o fluxo hemor-
tâncias eficazes. roidal. Caso se objetasse que os fragmentos da esme-
ralda não podiam ser dissolvidos pela levedura does-
"Segundo os estatutos de La Rochelle, a fa- tômago e que uma vez expelidos eles não apresenta·
bricação da teriaga, assim como aquela das gran- vam modificações, argumentava-se que o fogo faz a
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esmeralda se acender como o enxofre, exalando en- superar um verdadeiro fetichismo da vida, ainda per-
tão sua cor verde e ficando descolorida, como um sistente no século XVIII. De imediato, o pensamento
cristal. Assim sendo, os mesmos resultados obtidos animista busca determinar a importância de cada um
pelo fogo poderiam ser alcançados pela linfa estoma- dos três reinos da natureza, através de analogias
cal. compatíveis com um plano que se imagina natural.
Para alguns, os minerais possuem um tecido mais
"E ainda que a substância cristalina destas apertado e mais tenaz do que os vegatais e os ani-
pedras não se dissolva, suá porção sulfurosa e
metálica pode se separar da porção cristalina e mais, portanto é mais difícil determinar-lhes os
uma vez desprendida, pode atuar sobre os líqui- princípios; para outros, a grande preocupação é a
dos do corpo humano." (9) forma.como se processa a passagem de um reino a
outro. A crença de uma conexão entre os três reinos
Ao receita~; um medicamento que contém esme- leva a se admitir que se pode provar a aproxima~ão
ralda, o médico concorda com o espírito do enfermo. da natureza viva à natureza inanimada, através do
Para este, o brilho suave e verde da esmeralda tem ímã, pois a união da pedra (ímã) com o metal
uma virtude que se confunde com seu valor comer- (princípio de vida) demonstra a presença de energia.
cial. Da mesma maneira, o pólipo de água doce serve de
Como se acredita que o topázio diminui a me- conexão entre vegetais e animais.
lancolia e que fortifica o coração e o ânimo, além de
deter as hemorragias, passa-se a adicionar essa pedra "Como o pólipo, o ímã é suscetível de ser
preciosa ao jacinto. Trata-se pois de um medicamen- cortado paralelamente ou transversalmente se-
to bivalente, pois tem aplicações em males psicológi- gundo seu eixo e cada nova parte vem a ser um
cos e físicos. Aliás, o espírito pré-científico acredita ímã ... É a natureza ativa que trabalha em silên-
que as pedras preciosas atuam simultaneamente so- cio e de maneira invisível." (2)
bre o coração e o espírito. O mesmo se pode dizer do
ouro que também fortifica o coração e alegra a alma, Para um espírito pré-científico, o corpo humano
pois possui um enxofre que por ser incorruptível ao possui os três reinos da natureza. Sendo a vegetação
se misturar com o sangue passa a preservá-lo, reani- um objeto venerado pelo inconsciente - pois evoca
mando assim a natureza humana. um devir inexorável- e como o que brota sugere ve-
A atração exercida pelo ouro acaba por se con- getal, propõe-se que a este reino pertençam as unhas,
verter em uma atração material. Da mesma forma os cabelos e os pêlos. Como se acredita no caráter
que um ímã, o ouro atrai os corações, pelo seu brilho universal da vida, chega-se a admitir que o feto não é
e resplandecência. Por outro lado, o Sol e o ouro o produto de seus pais, mas de todas as forças da na-
possuem afinidades e força de atração mútua, pois o tureza, que participam em sua formação.
ouro procede de um ímã celeste. A palavra vida encerra em si a máxima valoriza-
ção, pois é a matéria viva que anima todo o Univer-
"Chega-se mesmo a afirmar que o ouro é so, os astros, as plantas, os corações, os germens etc.
"como um Globo cheio de todas as virtudes ce- Conceder vida aos minerais, através de uma intuição
lestes, que influi sobre todos os metais, como o animista, constitui um comportamento compatível
coração dá vida a todas partes do corpo. Ele é es- com um espírito pré-científico. Assim, os metais pa-
timado pela Medicina Universal pela simpatia decem de enfermidades decorrentes de suas formas,
que tem com o homem e o Sol e pelo mútuo amor
e virtude atrativa que se encontram entre eles, dos astros e da imperfeição da Matriz. Uma vez ex-
tanto que o Ouro é um poderoso mediador que traído da terra, o metal deixa de receber alimento,
liga a virtude do Sol ao homem ... " (13) podendo então ser comparado a um homem decrépi-
to. Pode ocorrer também o caso dos metais perece-
Como se acredita que o fogo e o brilho das pe- rem, em virtude de ares nefastos.
dras preciosas procedem da tintura dos metais, Como a ferrugem sugere uma imperfeição e co-
espera-se poder extrair desses mesmos metais os mo se admitem doença$ dos metais, parece claro que
princípios luminosos, sobretudo aqueles encontrados um ímã enferrujado estará doente.
no ouro e na prata. Então, sendo o ouro incom-
bustível e capaz de ignição, espera-se extrair dele um "A ferrugem é uma doença a qual o ferro
líquido que não se consumiria, ao produzir luz e ca- está sujeito ... O ímã perde sua virtude magnética
lor. Associando-se, pois, a luz perpétua das pedras quando ele se deixa corroer pela ferrugem.
preciosas à inalterabilidade do ouro, chegar-se-ia à Encontram-se ímãs que recuperaram uma parte
lâmpada eterna ... de suas forças, quando se lhes retiraram a su-
Reconhecer que o ouro não é uma riqueza que se perfície atacada por essa doença." (3)
presta ao coração e ao ânimo exige uma atividade in- Parece óbvio então que os metais também nas-
telectual alheia a toda valorização inconsciente. Re- cem. É por essa razão que existem minas inesgotá-
conhecer que o medicamento caro não é mais eficaz veis, assim como também já se encontraram em cer-
para o avaro burguês do que ao príncipe pródigo, tas profundidades, matérias metálicas ainda em for-
que sacrificar sua jóia não constitui oferecer em ho- mação ou não terminadas, sobretudo em virtude da
locausto sua própria substância, constitui um estágio entrada de ar, pois este ataca a semente metálica, in-
ainda não alcançado por um realista ingênuo. Neste, terrompendo assim a ação da natureza.
o valor atua como a mais pérfida das qualidades Inicialmente aplicado ao exame de vegetais e
ocultas. animais, o microscópio associou-se à idéia da desco-
berta da estrutura íntima dos seres vivos. Uma vez
VIII - O animismo aplicado no exame de uma estrutura mineral, o mi-
A fim de que as ciências físicas conseguissem se croscópio teve, para um espírito pré-científico, que
desembaraçar do animismo, houve necessidade de se fornecer detalhes de uma forma de vida um tanto
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obscura. Assim, conclui-se que os minerais possuem estômago para os vegetais e talvez também para ai·
todos os órgãos e todas as faculdades indispensáveis guns animais. É a terra que prepara a matéria mine-
à vida. É bem verdade que eles não podem se loco- ral da qual as plantas e os frutos são produtos.
mover para buscarem seus alimentos, mas isso tam- Chega-se mesmo a admitir que todo o universo tritu-
bém ocorre com as plantas e mesmo com alguns ani- ra e digere. A Lua e os astros, ao pressionarem o ar,
mais. O alimento é que vem ao mineral, o que o iden- pisam-no e agitam-no, tornando-o assim mais fino e
tifica como um ser privilegiado. mais mole. O ar pressiona a água, que por sua vez
pressiona as entranhas da terra, facilitando assim as
"Se lhes faltar alimento, eles sofrem e se "digestões minerais".
tornam lânguidos e não se pode duvidar que eles
experimentam o sentimento doloroso da fome e
o prazer de satisfazê-la ... Se lo alimento) estiver "A ação de trituração parece talvez a mais
misturado, eles sabem extrair aquilo que lhes é difícil de se conceber nas digestões que se fazem
conveniente e rejeitar as partes viciadas ... Enfim, nos minerais, mas essas digestões são vegetações
eles possuem, como os outros animais, órgãos in- e acabamos de ver que as vegetações se fazem por
ternos necessários para filtrar, destilar, preparar meio da trituração. Por que, então, procurar di-
e conduzir o alimento a todos os pontos de sua ferenças nas maneiras que a natureza emprega
substância." l22) em produções semelhantes?"l24)

Por ser mais natural, a imagem animista é mais A idéia de uma terra nutritiva sugere uma terra
convincente. Mas, por exprimir apenas um desejo, maternal, refúgio do homem em busca do mistério
ela traz uma falsa clareza. da vida. E tanto na terra como em nosso corpo, tudo
o que é profundo é vital.
IX - O mito da digestão
X- Libido
Para um espírito pré-científico, a digestão cor-
responde a uma forma de posse. A fome procede de O problema do nascimento constitui para a
um estômago vigoroso, que deve possuir o apetite, criança um mistério que deve ser por ela soluciona-
antes de receber o alimento. Tal valorização concede do, um despertar do espírito àquela direção que seus
ao estômago um papel primordial, já tendo sido mes- pais desejam ocultar. A libido é misteriosa e, recipro-
mo apontado como o rei das vísceras. Em sua missão camente, o misterioso desperta a libido.
de triturar os alimentos, ele o faz maravilhosamente, Ante um novo adepto, - como se fora um pai
pois tritura sem ruído, funde sem ser fogo e dissolve ante um filho, - o alquimista guarda mistérios. Os
sem ser corrosivo. As dimensões do estômago, sua símbolos alquímicos, ao conduzirem a uma conver-
colocação, a espessura de suas paredes, os órgãos au- gência de mistérios, associam ouro e vida, posse e de-•
xiliares adjacentes, enfim, tudo está organizado de vir, tudo em uma mesma retorta. As demoradas ope-
forma a melhor permitir a conservação de seu calor rações para a obtenção da pedra filosofai constituem
vital. Aliás, a valorização do calor estomacal leva à uma paciência valorizada, um "tecido de Penélope".
idéia de que o estômago produz extratos de plantas A solidão renitente de quem vigia os fornos alquími-
como o fogo; que extrai do vinho um espírito que so- cos faz dessa arte um vício secreto: das tentações se-
be à cabeça; que produz substância que a química so- xuais ao onanismo o passo é curto. Assim, a pedra é
mente poderia obter com um fogo intenso. tida como superior à união do ouro macho e do mer-
Recomendava-se, portanto, que a química se ins· cúrio fêmea, porque ela gravida-se por si própria,
truísse, através do estudo dos fenômenos da diges- nasce de si mesma. Para o alquimista, o conviver
tão. com os mistérios da ciência é melhor do que ser mal
Assim, compreende-se porque a marmita de Pa- casado.
pin foi chamada de "digestor", pois estabeleceu-se O mercúrio dos alquimistas sofre do complexo
entre ela e o estômago estreita analogia, quando se de Édipo.
verificou que ambos dissolvem alimentos.
"Ele é mais velho do que sua mãe que é a
Em poucos minutos de fogo lento, a carne água, porque ele está mais avançado na idade da
"reduz-se a uma polpa ou melhor, a um licor perfeição l ... ) É ele quem reconhece seu pai e sua
perfeito ... Atribui-se esse efeito à exatidão com mãe, banindo sua antiga amizade, é ele quem
que essa máquina está fechada; como ela não corta a cabeça do Rei... para conquistar seu rei-
permite nem a entrada e nem a saída de ar, as sa- no."l5)
cudidas ocasionadas pela dilatação e oscilações
do ar encerrado na carne, são uniformes e muito Os resultados observados nas operações indi-
vigorosas". l7) cam, via de regra, que uma substância, ao ser fecun-
dada por outra, dará origem a uma terceira; que o
Como os alquimistas chegam a nutrir suas subs- ouro macho deposita seu esperma no ouro branco fe-
tâncias com pão e leite, é razoável que as melhores li- minino, que desempenha o papel de semente. É ne- c
gas de aço sejam aquelas que, durante o processo de cessário casar o Sol com a Lua, a mãe com o filho, o
fundição, adicionaram-se ao ferro todas as graxas
que possuem grande quantidade de princípio infla-
irmão com a irmã. Mas as substâncias terão que ser
casadas segundo suas afinidades sexuais, pois so- '
I
f
mável, o qual será transmitido ao ferro. Se os metais mente assim a natureza cumprirá seu dever.
necessitam um "alimento nutritivo", eles também Geralmente, o alquimista é um homem velho.
11
estão sujeitos ao ataque de substâncias corrosivas, Daí, o rejuvenescimento constituir um dos temas co-
famintas, que os devoram. r
muns da alquimia. Mais importante do que vender o
Para alguns espíritos pré-científicos, a Terra é q
elixir da juventude é a esperança de obtê-la. A fim de
vista como um vasto aparelho digestivo. Ela serve de u
conservarem suas virtudes rejuvenescedoras, as subs-
24
tâncias alquímicas devem ter suas bodas em tempo Algumas moscas "levantam vôo dirigindo-
certo: primavera (germinação) ou outono (frutifica- se contra o vento mediante um mecanismo mais
ção). Associar as duas estações no mesmo elixir é o ou menos semelhante ao dos 'papagaios-de-
papel', que se elevam formando um ângulo com
que se consegue através da "esmeralda dos filóso- a direção do vento, creio, de vinte e dois graus e
fos". meio."(23)
Por outro lado, toda observação sugere o tema
rejuvenescimento. Se as víboras trocam de pele todo Quase que se pode determinar as diferentes ida-
o ano, é porque possuem virtudes renovadoras. Que des de uma ciência, conhecendo-se o estágio de seus
elas fossem então usadas como rejuvenescedoras. instrumentos de medida: escala de precisão, número
Nos textos setecentistas que tratam de eletricida- de decimais e instrumentos específicos. Um breve
de, também encontramos certas referências ao sexo. bosquejo pela história dos termômetros mostrar-nos-
Supõe-se que o choque eletrizante não pode passar ia que estes eram, no princípio, extremamente impre-
através de um eunuco; recomendam-se às mulheres cisos e variáveis em suas escalas, daí a prodigiosa
estéreis que se submetam a um processo de eletriza- multiplicidade de instrumentos que se faziam para
ção, a fim de que possam conceber; homens volup- medir o calor.
tuosos, a fim de melhor poderem realizar seus propó- Como o movimento produz fogo, parece razoá-
sitos, deixavam-se eletrizar; enfim, associam-se os vel que a água fria agitada violentamente terá que se
fenômenos elétricos às diferenças entre pessoas cas- aquecer, mas supõe-se que isso não aconteça; da
tas e aquelas que desmedidamente se entregam aos mesma forma, os ventos violentos do Norte não pro-
prazeres. duzem calor. A doutrina da sensibilidade experimen-
tal, sabe-se, é uma concepção que não estava ao al-
" ... o fluído elétrico é para os vegetais, o cance do espírito pré-científico.
que o amor é para as plantas; entretanto, com a
diferença de que para as plantas ele é apenas a Ao postular o superdeterminismo, o espírito
causa de uma existência tranquila e plácida." pré-científico admite interdependência entre todas as
(li) variáveis possíveis e impossíveis em um fenômeno.
Não se faz uma investigação para cada caso, mas
Na biologia pré-científica, o germe, a semente e admite-se uma reciprocidade na variação de sensibili-
o grão exprimem uma concentração de pureza e cas- dades. O corpo humano possui fluído- elétrico e ca-
tidade. Eles constituem mais uma virtude do que lor. Como não se pode medir a quantidade de fluído
uma estrutura. elétrico, apela-se para o termômetro e chega-se facil-
mente à relação entre eletricidade e calor.
XI - O conhecimento quantitativo
"Sendo a matéria elétrica considerada como
Ao se admitirem falhas em um conhecimento fogo, sua influência nos órgãos dos corpos vivos
qualitativo, deve-se também considerar que um co- deve causar calor; a maior ou menor elevação do
nhecimento quantitativo imediato é subjetivo, pois termômetro aplicado ao pé indicará então a
nele interferem as mais bizarras e fantasiosas deter- quantidade de fluído elétrico do corpo huma-
minações. As certezas prematuras são inadequadas. no. "(21}
Por outro lado, já se disse inúmeras vezes que a
revolução copernicana colocou o homem ante uma Quando se investigam as causas que provocam
nova escala do mundo, enquanto que a utilização do revoluções nos corpos celestes, conclui-se que os ve-
microscópio, nos séculos XVII e XVIII, retomou o getais de Mercúrio são de um verde mais escuro que
problema, porém no outro extremo dos fenômenos. os de Vênus; vive-se mais em Vênus do que na Terra;
Mas o problema filosófico perdurou: levar o homem a vida em Marte tem apenas um terço da nossa; em
a renunciar às magnitudes comuns e considerar are- Saturno há cidades que contam com dez a vinte mi-
latividade de suas medidas, ante as deficiências dos lhões de habitantes.
métodos empregados. Antes de ajudar a matematização da experiên-
Ao se pretender objetividade científica, - cia, as imagens familiares travam-na, a refração da
olvidando-se porém a imprecisão do método de me- luz dispensa "exigências matemáticas", pois pode
didas,- chega-se a uma imprecisão numérica que se ser comparada a um prego que, ao ser cravado,
assemelha a um "motim de cifras". Antes de pensar enverga-se. A refração dos raios em um prisma, pro-
no objeto de sua medida, um espírito científico con- posta por Newton, é assim explicada por um espírito
cebe seu método de medida. pré-científico: trata-se da mesma coisa que acontece-
Aittda hoje, os espíritos desavisados acreditam ria a um homem que, após atravessar uma multidão
que medidas de diâmetros tomados com fita métrica de crianças, encontrasse obliquamente ao sair dela,
uma multidão de homens vigorosos. Por certo, esse
comum podem nos levar às dimensões precisas da
circunferência, desde que se use o valor esteriotipado homem seria desviado de seu caminho.
de n = 3,1416. Não surpreende então que no século Um espírito pré-científico tinha que condenar a
XVIII se propõe ter a Terra se desprendido do Sol há Física newtoniana, pois a Física sempre fora mais
74.832 anos e que dentro de 93.291 anos ficaria tão simples e mais fácil de se compreender do que a Geo-
fria, que a vida nela não seria possível. metria. Conhecia-se sua terminologia e seus objetos.
O empenho em se encontrar a precisão leva às Faziam-se experiências com a luz, o calor, o ar, a
mais absurdas proposições geométricas. Não se tem água etc. Em troca, a Geometria sempre fora abstra-
receio, por exemplo, em admitir para um fenômeno ta e misteriosa em seu objeto e em seu próprio modo
que não pode ser medido, o ângulo preciso de 22° ,5, de ser. Eis que Newton propõe um sistema tido como
uma vez que este é a metade de 45°. excessivamente matemático.
25
Por outro lado, "as cores do prisma nada mente objetiva". É necessário então que se aceite
mais são além de cores fantásticas, especulativas, uma verdadeira ruptura entre o conhecimento
ideais, excessivamente esmeradas para a mente e sensível e o conhecimento•científico.
para a vista ... Nada medindo além de ângulos, Não basta uma curiosidade indeterminada para
Newton pretendeu chegar ao conhecimento filo- que se passe a um estágio científico. Um conheci-
sófico das cores( ... ) é verossímil que Newton te- mento científico não pode se fundamentar sobre um
nha passado toda sua vida estudando cores, sem
jamais ver a sala de trabalho de um pintor ou de conhecimento sensível, estimulado por pragmatismo
um tintureiro, nem examinar as próprias cores e idéias pré-concebidas. Assim como o raio não nos
das flores, das conchas, da natureza" .(4) confia os seus segredos em plena luz, mas na borda
da sombra onde ocorre a sua difração, é necessário
Para um espírito pré-científico, às vezes, calcu- que se faça do microscópio mais um prolongamento
lar um fenômeno correspondia a uma forma de fugir de nosso espírito do que de nossa visão.
de sua explicação. Como o conhecimento objetivo sempre avança,
ocorre um fluxo e refluxo do empirismo e do racio-
XII - Conclusio nalismo. Esta alternativa é uma necessidade do dina-
mismo psicológico. Aderir a esse movimento pode
Através da exposição dos obstáculos epistemo- ser indício de renúncia à intelectualidade própria.
lógicos, verifica-se que o espírito científico formou- Mas é imperioso que se abandonem as imagens favo-
se retificando erros. Daí .a proposição bachelardiana ritas, a fim de se manter em estado de objetivação. O
do seguinte postulado: "0 objeto não pode ser desig- passado intelectual, em que pese sua carga afetiva,
nado de imediato como um 'objetivo' imediato. Em ·deve ser tomado como passado. O pensamento
outras palavras, uma marcha ao objeto não é inicial- científico deve, pois, negá-lo.

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Referências

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p. 15. ApudBACHELARD, op. cit. p. 152. minere de Médicine du mistere du souffre
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LARD, op. cit. p. 230. duction des Etres vivants, pp. 133 a 155.
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minéral pour la préparation et la transmuta- (18) - lbid. p. 94. Apud BACHELARD, op. cit.
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187. l'électricité, trad., 3 vol., Paris, t. I, p. 181.
(06) Encyclopédie(art. Feu életrique). ApudBA- ApudBACHELARD, op. cit., p. 31.
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(07) - Idem (art. Digesteur). Apud BACHER- cape moderne pour débrouil/er la nature par
LARD, op. cit., p. 173. /e filtre d'un nouvel a/ambic chymique, oir
(08) - FRANKLIN, Benjamin - 1752 - Expériences l'on voit un nouveu méchanisme physique
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quées des plusieurs Lettres à P. Collinson de LARD, op. cit., p. 28.
la Soe. Roy. de Londres, trad., Paris, p. (21) - RETZ - 1785 - Fragments sur l'électricité
135. ApudBACHELARD, op. cit., p. 76. du corps humain, Amsterdam, p. 3. Apud
(09) - FA YOL, Jean Baptiste- 1672- L 'harmonie BACHELARD, op. cit., p. 219.
céleste, Paris, p. 292. Apud BACHELARD, (22) - ROBINET, J.B. - 1766- De la nature, 3e.
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(10) - GEOFROY - 1743 - Traité de la matiere BACHELARD, op. cit., p. /60.
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(13) - Idem- Rudiments de la philo nat., op. cit., Mond et de la Terre en particulier, trad.,
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p. 141. LARD, op. cit., p. 64.

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