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HISTÓRIA DA
FILOSOFIA
Antigiidade e Idade Média
VOLUME I
32 edição
PAULUS
Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Reale, Giovanni.
História da filosofia: Antigúidade e Idade Média / Giovanni
Reale, Dario Antiseri; - São Paulo: PAULUS, 1990. - (Coleção
filosofia)
CDD-109
90-0515 -100
Coleção FILOSOFIA
Ilustrações
Alinari, Arborio Melta, Barazzotto, Farabola, Ricciarini, Riva,
Stradella Costa, Titus, Tomsich
Revisão
H. Dalbosco - L. Costa
€ PAULUS - 1990
Rua Dr. Pinto Ferraz, 183
04117-040 São Paulo (BRASIL)
FAX (011) 575-7403
Tel. (011) 572-2362
se entretecem com
fregiientemente se entrecruzam e de vários modos
do
motivos teóricos e especulativos. Procuramos dar um esboço
os, evitand o,
pano de fundo do qual emergem as teorias dos filósof
contudo, os perigos das reduções sociológicas, psicológicas e
historicistas (que, nos últimos anos, catram em excessos hiperbólicos,
a ponto de quase tornar vã a identidade específica do discurso
filosófico) e evidenciando as concatenações dos problemas teóricos
eosnexos conceituais, comotambémas motivações lógicas, racionais
e críticas que, em última análise, constituem a substância das
idéias filosóficas e científicas.
Buscou-se pois dar o sentido do “como” os pensadores e os
cientistas propuseram suas doutrinas, fazendo uso de suas pró-
prias palavras. Assim, quando se tratava de textos fáceis, a palavra
viva dos vários pensadores foi utilizada no próprio nexo expositivo;
outras vezes, ao contrário, se fez referência a extratos dos vários
autores (os mais complexos e mais difíceis), à guisa de reforço da
exposição, mas que (segundo o nível de conhecimento do autor que
se quer alcançar) podem ser cortados sem prejuízo da compreensão
do conjunto. Esse recurso aos textos dos autores foi dosado de modo
a respeitar as necessidades didáticas de quem, de início, aprende
um disccompletamurso ente novo e por isso necessita da máxima
simplicidade e pouco a pouco adquire as categorias do pensar
filosófico, amplia a própria capacidade e, por essa razão pode se
confrontar com um tipo de exposição mais complexa e, portanto,
compreender os diversos teores da linguagem na qual os filósofos
falavam. De resto, como não é possível ter idéia do modo de sentir
e de imaginar de um poeta sem ler algum fragmento de sua obra,
assim, analogamente, não é possível ter idéia do modo de pensar de
um filósofo ignorando totalmente o modo pelo qual exprimia seus
pensamentos.
Finalmente, os filósofos são importantes não só pelo que
dizem, mas também pelas tradições que geram e põem em movi-
mento:algumas de suas posições favorecem o nascimento dealgumas
idéias, mas, juntas, impedem o nascimento de outras. Portanto, os
filósofos são importantes quer pelo que dizem, quer pelo que evitam
que se diga. E esse é um dos aspectos sobre os quais fregiente-
mente calam as histórias da filosofia e que quisemos pôr em
evidência, sobretudo na explicação das complexas relações entre as
idéias filosóficas e as científicas, religiosas, estéticas e socio-
políticas.
O ponto de partida do ensino da filosofia reside nos problemas
que ela levantou e levanta; por isso, buscou-se, particularmente,
Prefácio 7
Os Autores
Primeira parte
| AS ORIGENS GREGAS
DO PENSAMENTO OCIDENTAL
GÊNESE, NATUREZA
E DESENVOLVIMENTO
DA FILOSOFIA ANTIGA
A FUNDAÇÃO DO PENSAMENTO
FILOSÓFICO
Os naturalistas pré-socráticos
OS “NATURALISTAS”
OU FILOSOFOS DA “PHYSIS”
pode descer duas vezes o mesmo rio e não se pode tocar duas vezes
uma substância mortal no mesmo estado, pois, por causa da
impetuosidade e da velocidade da mudança, ela se dispersa e se
reúne, vem e vai. (...) Nós descemos e não descemos pelo mesmo rio,
nós próprios somos e não somos.”
É claro o sentido desses fragmentos: o rio é “aparentemente”
sempre o mesmo, mas “na realidade” é constituído por águas
sempre novas e diferentes, que sobrevêm e se dispersam. Por isso,
não se pode descer duas vezes a mesma água do rio, precisamente
porque ao se descer pela segunda vez já se trata de outra água que
sobreveio. E também porque, nós próprios mudamos: no momento
em que completamos uma imersão no rio, já nos tornamos diferen-
tes de como éramos quando nos movemos para nele imergir. Dessa
forma, Heráclito pode muito bem dizer que nós entramos e não
entramos no mesmo rio. E pode dizer também que nós somos e não
somos, porque, para ser aquilo que somos em um determinado
momento, devemos não-ser-mais aquilo que éramos no momento
anterior, do mesmo modo que, para continuarmos a ser, devemos
continuamente não-ser-mais aquilo que somos em cada momento.
E isso, segundo Heráclito, vale para toda realidade, sem exceção.
Sem dúvida, esse é o aspecto da doutrina de Heráclito que se
tornou mais conhecido e que alguns de seus discípulos levaram a
consequências extremas, como, por exemplo, Cratilo, que censurou
Heráclito por não ter sido suficientemente rigoroso: com efeito, não
apenas não podemos nos banhar duas vezes nó mesmo rio como
também não podemos fazê-lo nem mesmo uma vez, dada a celeri-
dade do fluxo (no momento em que começamos a imergir no rio já
sobrevém outra água, por mais célere que possa ser a imersão, nós
mesmos já somos outros antes que ela se complete, no sentido que
já apontamos).
Mas, para Heráclito, essa é apenas a constatação de base, um
ponto de partida para outras inferências, ainda mais profundas e
argutas. O devir ao qual tudo está destinado caracteriza-se por
uma contínua passagem de um contrário ao outro: as coisas frias
esquentam, as quentes esfriam, as úmidas secam, as secas umede-
cem, o jovem envelhece,o vivo morre, mas daquilo que está morto
renasce outra vida jovem e assim por diante. Há, portanto, uma
guerra perpétua entre os contrários que se aproximam. Mas, como
toda coisa só tem realidade precisamente no devir, a guerra (entre
os opostos) revela-se essencial: “A guerra é mãe de todas as coisas
e de todas as coisas é rainha.” Mas, note-se bem, trata-se de uma
guerra que, ao mesmo tempo, é paz, num contraste que é harmonia
ao mesmo tempo. O perene correr de todas as coisas e o devir
universal revelam-se como harmonia de contrários, ou seja, como
perene pacificação de beligerantes, uma permanente conciliação
Heráclito 37
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Os pitagóricos 43
Além disso, os pitagóricos consideravam o número ímpar
como “masculino” e o par como “feminino”.
Por fim, também consideravam os números pares como
“retangulares” e os números ímpares como “quadrados”. Com
efeito, dispondo-se em torno do número 1 as unidades que consti-
tuem os números ímpares, se obtém quadrados, ao passo que,
dispondo-se de modo análogo as unidades que constituem os
números pares, se obtém retângulos, como demonstram as figuras
seguintes, a primeira exemplificando os números 3,5 e7 ea
segunda os números 2, 4,6 e 8.
déc GEES
9000] 00000]
o oloioi o o ololo|
Ololojo! o ojolojo!
O “um” dos pitagóricos não é par nem ímpar: é um “parím-
par”. Tanto é verdade que dele procedem todos os números, tanto
pares como ímpares: agregado a um par, gera um ímpar; agregado
a um ímpar, gera um par. O zero, porém, era desconhecido dos
pitagóricos e da matemática antiga.
O número perfeito foi identificado como o 10, que visual-
mente era representado como um triângulo perfeito, formado pelos
primeiros quatro números e tendo o número 4 em cada lado (a
tetraktys): NS
E claro que, para ser pensado como “pleno” (de ser), o átomo
pressupõe necessariamente o “vazio” (de ser; portanto, o não-ser).
Assim, o vazio é tão necessário como o pleno: sem vazio, os átomos-
formas não poderiam se diferenciar nem se mover. Átomos, vazio
e movimento constituem a explicação de tudo.
No entanto, está claro que os atomistas procuraram superar
a grande aporia eleática, buscando salvar ao mesmo tempo a
“verdade” e a “opinião”, ou seja, os “fenômenos”. A verdade é dada
pelos átomos, que se diversificam entre si somente pelas diferentes
determinações geométrico-mecânicas (figura, ordem e posição),
bem como do vazio; os vários fenômenos ulteriores e suas dife-
renças derivam do diferente encontro dos átomos e do encontro
posterior das coisas por eles produzidas com os nossos sentidos.
Como escrevia Demócrito: “E opinião o frio e opinião o calor;
verdade os átomos e o vazio.” Certamente, essa foi a mais enge-
nhosa tentativa de justificar a opinião (a doxa, como a chamavam
os gregos) que ocorreu no âmbito dos pré-socráticos.
A DESCOBERTA DO HOMEM
Os sofistas,
Sócrates e os socráticos
e a medicina hipocrática
A SOFÍSTICA E O DESLOCAMENTO
DO EIXO DA PESQUISA FILOSÓFICA
DO COSMOS PARA O HOMEM
seguinte: “Para quem está com frio, é frio; para quem não está, não
é.” Então, sendo assim, ninguém está no erro, mas todos estão com
a verdade (a sua verdade).
O relativismo expresso no princípio do homem-medida iria
encontrar um aprofundamento adequado na obra mencionada, As
Antilogias, que demonstra que “em torno de cada coisa há dois
raciocínios que se contrapõem”, isto é, que em torno de cada coisa
é possível dizer e contradizer, ou seja, que é possível apresentar
razões que se anulam reciprocamente. E esse, precisamente, iria
ser o nó górdio do ensinamento de Protágoras: “Trata-se de ensinar
a criticar e discutir, a organizar um torneio de razões contra
razões” (L. Robin).
Registra-se também que Protágoras ensinava “a tornar mais
forte o mais fraco argumento”. O que não quer dizer que Protágoras
ensinasse a injustiça e a iniquidade contra a justiça e a retidão,
mas, simplesmente, que ele ensinava os modos como, técnica e
metodologicamente, era possível sustentar e levar à vitória o
argumento que, em determinadas circunstâncias, podia ser o mais
fraco na discussão (qualquer que fosse o conteúdo do objeto).
A “virtude” que Protágoras ensinava era exatamente essa
“habilidade” de saber fazer prevalecer qualquer ponto de vista
sobre a opinião oposta. E o sucesso dos seus ensinamentos deriva
do fato de que, fortalecidos com essa habilidade, os jovens consi-
deravam que poderiam fazer carreira nas assembléias públicas,
nos tribunais, na vida pública em geral. &
Para Protágoras, portanto, tudo é relativo: não existe um
“verdadeiro” absoluto e também não existem valores morais abso-
lutos (“bens”absolutos). Existe, entretanto, algo que é mais útil,
mais conveniente e, portanto, mais oportuno. O sábio é aquele que
conhece esse relativo mais útil, mais conveniente e mais oportuno,
sabendo convencer também os outros a reconhecê-lo e pô-lo em
prática. ;
Sendo assim, porém, o relativismo de Protágoras recebe uma
forte limitação. Com efeito, pareceria assim que, enquanto é
medida e mensurador em relação à verdade e à falsidade, o homem
torna-se medido em relação à utilidade, ou seja, que, de alguma
forma, a utilidade venha a se apresentar como objetiva. Em suma:
pareceria que, para Protágoras, o bem e o mal seriam, respectiva-
mente, o útil e o danoso; e o “melhor” e o “pior” seriam o “mais útil”
e o “mais danoso”.
Protágoras não percebeu nenhum contraste entre o seu
relativismo e o seu pragmatismo baseado na utilidade, pela razão
de que, ao nível empírico, o útil aparece sempre e somente no
contexto de correlações, a ponto de não parecer possível determiná-
lo a não ser determinado, ao mesmo tempo, o sujeito ao qual o útil
78 Os sofistas
3. Górgias e a retórica
essência da poesia, que ele definiu deste modo: “(...) Em suas várias
formas, eu considero e chamo a poesia de um discurso com métrica.
E quem a escuta é invadido por um arrepio de estupor, uma
compaixão que arranca lágrimas, um ardente desejo de dor— e, por
efeito das palavras, a alma sofre o seu próprio sofrimento ao ouvir
a fortuna e a desfortuna de fatos e pessoas estranhas.”
Assim, como a retórica, a arte lida com sentimentos, mas, ao
contrário da retórica, não visa interesses práticos, mas ao engano
poético (apáte) enquanto tal (estética apatética). E tal “engano” é,
evidentemente, a pura “ficção poética”. De modo que Górgias podia
muito bem dizer que, nessa espécie de engano, “quem engana está
agindo melhor do que quem não engana e quem é enganado é mais
sábio do que quem não é enganado”. Quem engana, ou seja, o poeta,
é melhor por sua capacidade criadora de ilusões poéticas e quem é
enganado é melhor porque é capaz de captar a mensagem dessa
criatividade.
Tanto Platão com Aristóteles tratariam desses pensamentos,
o primeiro para negar validade à arte, já o segundo para descobrir
o poder catártico e purificador do sentimento poético, como
veremos.
4. Pródico e a sinonímia
6. Erísticos e sofistas-políticos
2. Os socráticos menores
Pelo menos a julgar pelo pouco que nos foi legado sobre ele,
o menos original dos socráticos menores foi Fédon (a quem, no
entanto, Platão dedicou o seu mais belo diálogo). Diz sobre ele
Diógenes Laércio: “Fédon de Élide, dos eupátridas, foi capturado
quando da queda de sua pátria, sendo obrigado a permanecer em
uma casa de transgressores. Mas, fechando a porta, conseguiu
Fédon 109
fazer contato com Sócrates. Por fim, estimulados por Sócrates,
Alcebíades, Críton e seus amigos o resgataram. Desde então, ficou
livre, dedicando-se à filosofia.” Escreveu diálogos, entre os quais
Zópiro e Simão, que se perderam. Depois da morte de Sócrates,
fundou uma escola em sua nativa Élida. Os testemunhos indicam
bastante claramente que ele seguiu duas direções em sua especu-
. lação: a erístico-dialética e a ética, destacando-se sobretudo nesta
* última.
Em seu Zópiro, deve ter desenvolvido o conceito de que o logos
(o logos socrático) não encontra nenhum obstáculo na natureza do
homem, no sentido de que ele está em condições de dominar até
mesmo os caráteres mais rebeldes e os temperamentos mais
passionais. Zópiro era um “fisiognomista”, ou seja, alguém que
considerava saber deduzir da fisionomia dos homens o seu caráter
moral. Baseando-se nos traços de Sócrates, ele sentenciou que o
filósofo devia ser um homem vicioso, suscitando a hilaridade geral.
Mas foi o próprio Sócrates quem defendeu Zópiro, explicando que
verdadeiramente ele havia sido assim, antes que o seu logos
filosófico o transformasse.
É evidente que Fédon aprofundou um aspecto da filosofia
socrática cuja eficácia havia experimentado diretamente (como
vimos, o logos de Sócrates havia sido capaz de libertá-lo da abjeção
em que havia caído, permanecendo prisioneiro em uma casa de
transgressores). Mas esse também era um aspecto que refletia
muito bem um dos traços mais típicos do intelectualismo de
Sócrates, ou seja, a convicção sobre a onipotência do logos e do
conhecimento no âmbito da vida moral.
A escola de Elida teve breve duração. A Fédon sucedeu Plis-
teno, nativo da mesma cidade. Mas, uma geração mais tarde,
Menedemos, proveniente da escola do megarense Estílpones,
recebeu a herança da escola de Elida e mudou-a para Erétria,
imprimindo-lhe, juntamente com Asclepíades de Fliunte, uma
direção análoga à da escola megarense, privilegiando decidida-
mente a orientação erístico-dialética, mas sem dar qualquer con-
tribuição de destaque.
O NASCIMENTO DA MEDICINA
COMO SABER CIENTÍFICO AUTÔNOMO
Pelo que dissemos, fica claro que a ciência médica não nasceu
das práticas dos asclepíades, sacerdotes curadores, mas sim da
experiência e das pesquisas dos médicos dessas escolas de medici-
na anexas aos templos, médicos que, pouco a pouco, foram se
distanciando dos primeiros até romperem decididamente os laços
com eles, definindo conceitualmente a sua própria identidade
específica.
Mas, para se compreender como isso foi possível e, portanto,
como é que a medicina também chegou a ser uma criação dos
gregos, é necessário recordar alguns fatos muito importantes.
Em nosso século, foi descoberto um papiro contendo um
tratado médico que comprova que, em sua sabedoria, os egípcios já
haviam atingido um estágio bastante avançado na elaboração do
material médico, com a indicação de algumas regras e de alguns
nexos de causa e efeito. Desse modo, devemos convir que os
antecedentes da medicina se encontram no Egito. Mas, justamente,
trata-se apenas de “antecedentes”, que estão para a medicina
grega na mesma relação em que as descobertas matemático-
geométricas egípcias estão para a criação da ciência dos números
e da geometria grega, fato ao qual já acenamos ( cf. pp. 13s)e ao qual
ainda voltaremos.
Foi a “mentalidade científica” criada pela filosofia da physis
a tornar possível a constituição da medicina como ciência. W.
Jaeger ilustrou perfeitamente esse ponto em uma página exem-
plar, que vale a pena ler: “Sempre e em toda parte houvera mé-
dicos. Mas a arte sanitária dos gregos só se tornou uma arte
metodicamente consciente pela eficácia exercida sobre ela pela
filosofia jônica da natureza. Essa verdade não deve ser em absoluto
obscurecida em função da atitude declaradamente antifilosófica
da escola hipocrática, à qual pertencem as primeiras obras da
medicina grega que encontramos. Sem o esforço de pesquisa dos
mais antigos filófosos naturalistas jônicos no sentido de descobrir
uma explicação natural para todo fenômeno, sem a sua tentativa
de remeter cada efeito a uma causa e revelar na cadeia de causas
e efeitos uma ordem universal e necessária, sem sua confiança
inabalável de que se pode penetrar em todos os segredos do
universo através da observação despreconceituosa das coisas e por
força do conhecimento racional, a medicina nunca se teria tornado
uma ciência. (...) Certamente, como hoje estamos em condições de
reconhecer, a medicina egípcia já havia conseguido erguer-se
acima daquela prática de encantamentos e esconjuros que ainda
estava viva no antigo costume da mãe-pátria grega nos tempos de
Píndaro. Mas, na escola daqueles pensadores de leis universais que
foram os filósofos seus precursores, só a medicina grega conseguiu
114 A medicina científica
4. O Juramento de Hipócrates
Cas
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Hipócrates 121
PLATÃO E O HORIZONTE
DA METAFÍSICA
1. A questão platônica
5
130 Platão
2. A fundação da metafísica
3.3. A dialética
4. A concepção do homem
ARISTÓTELES E A PRIMEIRA
SISTEMATIZAÇÃO OCIDENTAL
DO SABER
ARISTÓTELES E O PERÍPATOS
1. A questão aristotélica
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creci
sas
ares
178 Aristóteles
2. A metafísica
. substância ou essência;
. qualidade;
. quantidade;
. relação;
. ação ou agir;
. paixão ou sofrer;
. onde ou lugar;
. quando ou tempo;
. ter;
Ooo
UR
CN
IS
10. jazer.
3. A física e a matemática
ção”;
2) a mutação segundo a qualidade é “a alteração”;
3) a mutação segundo a quantidade é “o aumento e a dimi-
nuição”;
Espaço, tempo, infinito 193
4) a mutação segundo o lugar é “a translação”.
“Mutação” é um termo genérico, que cabe bem para todas
essas quatro formas; já “movimento” é um termo que designa
genericamente as últimas três, especificamente a última.
Em todas as suas formas, o devir pressupõe um substrato
(que é, aliás, o ser potencial), que passa de um oposto a outro: na
primeira forma, de um contraditório a outro e, nas outras três
formas, de um contrário a outro. A geração é o assumir a forma por
parte da matéria, a corrupção é o perder a forma; a alteração é uma
mudança da qualidade; o aumento e a diminuição são uma pas-
sagem de pequeno a grande e vice-versa; o movimento local é
passagem de um ponto para outro. Somente os compostos (os
“synolos”) de matéria e forma podem sofrer mutação porque só a
matéria implica potencialidade: a estrutura hilemórfica (feita de
matéria e forma) da realidade sensível, que necessariamente
implica em matéria e, portanto, em potencialidade, constitui assim
a raiz de todo movimento.
4. A psicologia
diz Aristóteles, “das coisas que são ditas sem nenhuma conexão,
cada qual significa a substância, a quantidade, a qualidade, a
relação, o onde, o quando, o estar em uma posição, o ter, O fazer ou
o sofrer”. Como se vê, trata-se das categorias, que já conhecemos
da Metafísica.
Como, do ponto de vista metafísico, as categorias represen-
tam os significados fundamentais do ser, do ponto de vista lógico
elas devem ser (consequentemente) os “gêneros supremos” aos
quais deve ser reportável qualquer termo da formulação proposta.
Tomemos a formulação “Sócrates corre” e vamos decompô-la:
obteremos “Sócrates”, que entra na categoria de substância, e
“corre”, que se enquadra na categoria do “fazer”. Assim, se digo
“Sócrates está agora no Liceu” e decomponho a formulação, “no
Liceu” será redutível à categoria do “onde”, ao passo que “agora”
será redutível à categoria do “quando” e assim por diante.
O termo “categoria” foi traduzido por Boécio como “predica-
mento”, mas a tradução só expressa parcialmente o sentido do
termo grego e, não sendo inteiramente adequada, dá origem a
numerosas dificuldades, em grande parte elimináveis quando se
mantém o original. Com e feito, a primeira categoria desempenha
sempre o papel de sujeito e só impropriamente funciona como
predicado, como quando digo “Sócrates é um homem” (isto é,
Sócrates é uma substância); já as outras funcionam como predi-
cado (ou, preferindo-se assim, são as figuras supremas de todos os
possíveis predicados, os gêneros supremos dos predicados). E,
naturalmente, como a primeira categoria constitui o ser sobre o
qual se apóia o ser das outras, a primeira categoria será o sujeito
e as outras categorias não poderão deixar de se referir a esse sujeito
e, portanto, só elas poderão ser verdadeiros predicados.
Quando nos detemos nos termos da formulação, isolados e
tomados cada qual em si mesmo, não temos nem verdade nem
falsidade: a verdade (ou falsidade) não está nunca nos termos
tomados singularmente, mas somente no juízo que os conecta e na
formulação que expressa essa conexão.
6.3. A definição
Naturalmente, como as categorias não são simplesmente os
termos que derivam da decomposição da formulação, mas sim os
gêneros aos quais eles são redutíveis ou sob os quais recaem, então
as categorias são algo de primário, não sendo ulteriormente
redutíveis. Assim, não são definíveis, precisamente porque não
existe algo mais geral a que possamos recorrer para determiná-las.
Com isso, tocamos na questão da definição, que Aristóteles
não trata nas Categorias, mas sim nos Analíticos segundos e em
A lógica 213
outros escritos. Entretanto, como a definição diz respeito aos
termos e aos conceitos, é bom falar dela neste ponto.
Dissemos que as categorias são indefiníveis porque são os
gêneros supremos. Mas os indivíduos também são indefiníveis,
embora por razões opostas, por serem particulares, colocando-se
como que às antípodas das categorias: deles, só é possível a
percepção. Mas, entre as categorias e os indivíduos, há toda uma
gama de noçõés e conceitos, que vão do mais geral ao menos geral:
são aqueles que normalmente constituem os termos dos juízos e
das proposições que formulamos (o nome indicador do indivíduo só
pode aparecer como sujeito). Pois é precisamente através da
definição (horismós) que nós conhecemos todos esses termos que
estão entre a universalidade das categorias e a particularidade dos
indivíduos.
O que significa “definir”? Significa não tanto explicar o
significado de uma palavra, mas muito mais determinar o que é o
objeto que a palavra indica. Por isso, explica-se a formulação que
Aristóteles dá da definição como “o discurso que expressa a es-
sência”, “o discurso que expressa a natureza das coisas” ou “o dis-
curso que expressa a substância das coisas”. E, diz Aristóteles,
para se poder definir alguma coisa necessita-se do “gênero” e da
“diferença” — ou, como o pensamento aristotélico foi expresso com
uma fórmula clássica, o “gênero próximo” e a “diferença específica”.
Se quisermos saber o que quer dizer “homem”, devemos, através da
análise, identificar o “gênero próximo” em que ele se inclui, que não
é o de “vivente” (pois também as plantas são viventes), mas o de
“animal” (pois o animal, além da vida vegetativa, tem também a
vida sensitiva); depois, devemos analisar as “diferenças” que deter-
minam o gênero animal até encontrarmos a “diferença última” dis-
tintiva do homem, que é “racional”. O homem, portanto, é “animal
(gênero próximo) racional (diferença específica)”. A essência das
coisas é dada pela diferença última que caracteriza o gênero.
Naturalmente, para a definição dos conceitos isoladamente,
vale o que se disse a propósito das categorias: uma definição pode
ser válida ou não válida, mas nunca verdadeira ou falsa, porque
verdadeiro e falso implicam sempre uma união ou separação de
conceitos e isso só acontece no juízo e na formulação da proposição,
de que devemos falar agora.
6.11. A retórica
6.12. A poética
Qual a natureza do fato e do discurso poético e a que visa?
São dois os conceitos sobre os quais devemos concentrar a
atenção para poder compreender a resposta dada por nosso filósofo
à questão: 1) o conceito de “mimese” e 2) o conceito de “catarse”.
1) Platão havia censurado fortemente a arte precisamente
porque é mimese, isto é, imitação de coisas fenomênicas, que, como
sabemos, são por seu turno imitações dos eternos paradigmas das
Idéias, de modo que a arte torna-se cópia de cópia, aparência de
aparência, extenuando o verdadeiro a ponto de fazê-lo desapare-
cer. Aristóteles se opõe claramente a esse modo de conceber a arte,
interpretando a “mimese artística” segundo uma perspectiva oposta,
a ponto de fazer dela uma atividade que, longe de reproduzir
passivamente a aparência das coisas, quase recria as coisas se-
gundo uma nova dimensão, como ele diz de modo exemplar nesta
passagem: “A função do poeta não é a de dizer as coisas acontecidas,
mas sim as que poderiam acontecer e suas possibilidades, de
acordo com a verossimilhança e a necessidade. Com efeito, o
historiador e o poeta não diferem pelo fato de que um diz em prosa
e o outro em versos (já que a obra de Heródoto, mesmo que fosse em
versos, não seria menos história, em versos, do que é sem versos),
mas diferem no seguinte: um diz as coisas acontecidas e o outro
aquelas que poderiam acontecer. Por isso, a poesia é coisa mais
nobre e mais filosófica que a história, porque a poesia trata muito
mais do universal, ao passo que a história trata do particular. E o
universal é o seguinte: que espécie de coisas a que espécie de pessoas
acontece de dizer ou fazer segundo verossimilhança ou necessidade,
o que a poesia visa, mesmo colocando nomes próprios, ao passo que
é particular aquilo que Alcebíades fez e o que sofreu.”
A dimensão segundo a qual a arte “imita”, portanto, é a
dimensão do “possível” e do “verossímil”. E é precisamente essa
O Perípatos 9921
a
A
op
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.—
Sexta parte
AS ESCOLAS FILOSÓFICAS
DA ÉPOCA HELENÍSTICA
Cinismo, epicurismo, estoicismo,
ceticismo, ecletismo
e o grande florescimento
das ciências particulares
O PENSAMENTO FILOSÓFICO
NA ÉPOCA HELENÍSTICA
ciência da natureza.” O que significa que a física deve ser feita para
dar fundamento à ética.
A “física” de Epicuro é uma ontologia, uma visão geral da
realidade em sua totalidade e em seus princípios últimos. Epicuro,
na verdade, não sabe criar uma nova ontologia: para expressar a
própria visão materialista da realidade de modo positivo (ou seja,
não negando simplesmente a tese platônico-aristotélica), remete a
conceitos e figuras teoréticas já elaboradas no âmbito da filosofia
pré-socrática. E, entre todas as perspectivas pré-socráticas, era
quase inevitável que Epicuro escolhesse a dos atomistas, exata-
mente porque, essa depois da “segunda navegação” platônica,
revelava-se a mais materialista de todas. Mas o atomismo, como
vimos, é uma resposta precisa às aporias levantadas pelo eleatis-
mo, uma tentativa de mediar as instâncias opostas do logos
eleático, por um lado, e da experiência, por outro. Grande parte da
lógica eleática passa pela lógica do atomismo (Lêucipo, o primeiro
atomista, foi discípulo de Melissos e, em geral, o atomismo, entre
as propostas pluralistas, foi a mais rigorosamente eleática). Em
conseguência, era inevitável que também estivesse presente em
Epicuro.
Os fundamentos da física epicúreia podem ser enucleados e
formulados como segue:
a) “Nada nasce no não-ser”, porque, de outro modo, tudo
poderia absurdamente gerar-se de qualquer coisa, sem neces-
sidade de nenhum elemento gerador; e nenhuma coisa “dissolve-
se no nada”, porque, de outro modo, neste momento, tudo pereceria
e nada mais existiria. E, dado que nada nasce e nada perece, assim
o todo, isto é, a realidade em sua totalidade, sempre foi como é agora
e sempre será assim; com efeito, além do todo, não existe nada em
que ele possa mudar-se, nem existe nada do qual possa provirs
b) Esse “todo”, ou seja, a totalidade da realidade, é deter-
minado por dois componentes essenciais: os corpos e o vazio. À
existência dos corpos é provada pelos próprios sentidos, enquanto
a existência do espaço e do vazio é inferida pelo fato de que existe
movimento. Com efeito, para que exista movimento, é necessário
que exista um espaço vazio no qual os corpos possam deslocar-se.
'O vazio não é absoluto não-ser, mas exatamente “espaço” ou, como
diz Epicuro, “natureza intangível”. Além dos corpos e do vazio
tertium non datur, porque não seria pensável nada que exista por
si mesmo e não seja alteração dos corpos.
c) Tal como é concebida por Epicuro, a realidade é infinita.
Em primeiro lugar, é infinita como totalidade. Mas é evidente que,
para que tudo possa ser infinito, cada um dos seus princípios
constitutivos também deve ser infinito: infinita deverá ser a
Física epicuréia 243
multidão dos corpos e infinita a extensão do vazio (se a multidão
dos corpos fosse finita, eles se perderiam no vazio infinito e, se o
vazio fosse finito, não poderia acolher corpos infinitos. O conceito
de infinito torna, assim, a se impor, contra as concepções platôni-
cas e aristotélicas.
d) Alguns “corpos” são compostos; outros, ao contrário, são
simples e absolutamente indivisíveis (átomos). A admissão do
átomo torna-se necessária porque, caso contrário, seria preciso
admitir uma divisibilidade dos corpos ao infinito, a qual, no limite,
conduziria à dissolução das coisas no não-ser, o que, como sabemos,
é absurdo.
A concepção do átomo de Epicuro difere de visão dos antigos
atomistas (Lêucipo e Demócrito) em três pontos fundamentais.
1) Os antigos atomistas indicavam como características
essenciais do átomo a “figura”, a “ordem” e a “posição”. Epicuro, por
sua vez, indica como características essenciais a “figura”, o “peso”
e a “grandeza”. As formas diferentes dos átomos (que não são
somente formas regulares de caráter geométrico, mas formas de
toda espécie e tipo, sendo em todo caso, sempre e só formas
quantitativas diferentes e não qualitativamente diversas, como as
formas platônicas e aristotélicas, dado que os átomos são todos de
idêntica natureza) resultam necessárias para explicar as diversas
qualidades fenomênicas das coisas que nos aparecem. O mesmo
vale também para a grandeza dos átomos (o peso, porém, como
veremos melhor adiante, é necessário para explicar o movimento
dos átomos). As formas atômicas devem ser diversas e numerosís-
simas, mas não infinitas (para ser infinitas, deveriam poder variar
sua grandeza ao infinito; mas, então, tornar-se-iam visíveis, o que
não acontece), ao passo que o número dos átomos em geral é
infinito.
2) Uma segunda diferença consiste na introdução da teoria
dos “mínimos”. Segundo Epicuro, todos os átomos, dos maiores aos
menores, são física e ontologicamente indivisíveis; todavia, o fato
mesmo de serem “corpos” dotados de figura e, consequentemente,
de extensão e grandezas diversas (embora no âmbito dos dois
limites que assinalamos) implica que eles teriam partes. (Se assim
não fosse, não existiria sentido algum em falar de átomos pequenos
e átomos grandes.) Obviamente, trata-se de “partes” não sepa-
ráveis ontologicamente, mas apenas lógica e idealmente distin-
guíveis, porque o átomo é estruturalmente indivisível. E mesmo a
grandeza dessas “partes” do átomo, pela mesma razão eleática em
virtude da qual é impossível que os átomos diminuam de grandeza
ao infinito, deve-se deter em um limite que Epicuro chama exa-
tamente de “mínimo” e que, como tal constitui a unidade da
244 A filosofia helenística
4. A fundação da Estoá
apoios 4%
E nééca PS AAA»
a A ad ne Pd.
), o fundador
Retrato atribuído a Zenon de Cítio (333 /332-262 a.C.
da Estoá, a maior das escolas da época helenística.
254 A filosofia helenística
riamente aquilo que também faz por sua vontade; se, ao contrário,
não quiser segui-lo, será obrigado, de toda forma, a fazê-lo. A
mesma coisa na verdade ocorre com os homens. Mesmo se não
quiserem seguir [o Destino], serão em todo caso obrigados a chegar
ao que foi estabelecido pelo fado.” Sêneca o diria, traduzindo um
verso de Cleanto com a sentença lapidar: “Ducunt volentem fata,
nolentem trahunt” (“O destino conduz aquele que quer, quanto
quem não quer”).
Mas há ainda um ponto essencial a ser ilustrado no que se
refere à cosmologia dos estóicos. Como os pré-socráticos, os estóicos
propuseram um mundo gerado e, em consegiiência, corruptível
(aquilo que nasce deve, num certo momento, morrer). De resto, era
a própria experiência que lhes dizia que, como existe um fogo que
cria, existe também um fogo ou um aspecto do fogo que queima,
incinera e destrói. No entanto, era impensável que as coisas singu-
lares do mundo fossem sujeitas à corrupção mas não o mundo que
é constituído por elas. Assim, a conclusão era obrigatória: o fogo
alternadamente cria e destrói; em consequência, no fatídico final
dos tempos haverá a “conflagração universal”, uma combustão
geral do cosmos (ekpyrosis), que será ao mesmo tempo a purificação
do universo, passando a haver somente fogo. À destruição do
mundo se seguirá um “renascimento” (palingénesis), pelo qual
“tudo renascerá de novo exatamente como antes” (apocatástase):
então renascerá o cosmos, esse mesmo cosmos que continuará pela
eternidade a ser destruído e depois reproduzido, não sóna estrutura
geral, mas também nos acontecimentos particulares (numa espécie
de eterno retorno), e renascerá cada homem sobre aterra, cuja vida
será como foi na sua vida anterior, até nas mínimas particulari-
dades. De resto, idêntico é o Logos-fogo, idêntico é o sêmem,
idênticas são as razões seminais, idênticas são as leis em sua
explicação, idênticas são as concatenações das causas segundo as
quais as razões seminais se desenvolvem em geral e em particular.
Como vimos, o homem ocupa uma posição predominante no
âmbito do mundo. Esse privilégio, em última análise, deriva do fato
de que, mais do que qualquer outro ser, o homem participa do Logos
divino. Com efeito, o homem é constituído de corpo e alma, a qual
é um fragmento da Alma Cósmica; é, pois, um fragmento de Deus,
já que a Alma Universal, como sabemos, é Deus. Naturalmente, a
alma é corpórea, ou seja, fogo ou pneuma.
A alma permeia o organismo físico interno, vivificando-o; o
fato de este ser material não é impedimento para isso, já que, como
sabemos, os estóicos admitem a penetrabilidade dos corpos. Exata-
mente por permear todo o organismo humano e presidir às suas
funções essenciais, a alma é dividida em oito partes pelos estóicos:
uma, central, chamada “hegemônica”, isto é, a parte que dirige,
Ética estóica 261
5. O ceticismo e o ecletismo
foi o mais rigoroso dos estóicos e que é notório por ter negado
energicamente a cômoda admissão da distinção dos“intermediários”
entre bem e mal em valores e desvalores). A ligação precisa e
sistemática de Pirro com o ceticismo advém só com Enesídemo, o
que explica — entre outras coisas — não só a posição de Cícero, mas
também o fato bastante significativo de que um seguidor de Pirro,
chamado Numênio tenha exatamente afirmado que o mestre
“também dogmatizava”, ou seja, que tinha “também alguma
certeza”.
2) Se as coisas são indiferentes, incomensuráveis e indis-
cerníveis e se, em conseqiiência, os sentidos e a razão não podem
dizer nem o verdadeiro nem o falso, a única atitude concreta que
o homem pode ter é a de não ter nenhuma fé, nem nos sentidos nem
na razão, mas permanecer “adóxastos”, quer dizer, permanecer
“sem opinião”, ou seja, abster-se de julgar (o opinar é sempre um
julgar) e, em consequência, permanecer “sem nenhuma inclinação”
(não se inclinar mais em direção a uma coisa do que em direção a
outra) e permanecer “sem agitação”, ou seja, não se deixar comover
por algo, isto é, “permanecer indiferente”.
Esta “abstenção de juízo” se expressaria posteriormente com
o termo “epoché”, que é de derivação estóica. Como foi bem desta-
cado recentemente, Zenão afirmava para o sábio a necessidade de
não dar assentimento, ou seja, de “suspender o juízo” (epoché) em
face ao que é incompreensível (e de dar assentimento só ao que é
evidente); Arcesilau e Carnéades (como veremos), em polêmica
com os estóicos, sustentam que o sábio “deve suspender o juízo”
sobre todas as coisas, porque nada é evidente. O termo “epoché” foi
retomado até pelo neopirronista Enesídemo para expressar o con-
ceito da abstenção de juízo, tornando-se um termo técnico referido
também a Pirro. Parece correto, pois, concluir que Pirro falava de
“abstenção de juízo” ou “ausência de juízo” (que, como veremos,
conduz à “afasia”) e que o termo epoché é posterior, mas expressa
o mesmo conceito.
3) Muitas vezes, na Metafísica, Aristóteles repisa o conceito
de que quem nega princípio supremo do ser, para ser coerente com
essa negação, deveria calar e não expressar absolutamente nada.
E tal é precisamente a conclusão a que Pirro chega, proclamando
a “afasia”. E a afasia comporta a ataraxia, ou seja, a ausência de
perturbação, a quietude interior, “a vida mais igual”.
Pirro foi famoso por ter dado provas, em muitos casos, de tal
ausência de perturbação e de total indiferença. Narra-se que duas
vezes mostrou pouca imperturbabilidade. Numa dessas vezes, agi-
tou-se sob o ataque de um cão enraivecido. E, a quem o reprovou
Pirro e o ceticismo 271
OS DESENVOLVIMENTOS
E AS CONQUISTAS DA CIENCIA
NA EPOCA HELENISTICA
1. Os acontecimentos
que levaram à fundação do “Museu” e da “Biblioteca”
e as conseqiiências que daí derivaram
2. O nascimento da filologia
o ia a
= SUR
as .
designava o engenheiro como tal. Talvez aquilo que nos chegou sob
o nome de Héron não seja obra de um único autor.
Parece certo que muito daquilo que aparece sob o nome de
Héron pertence à época helenística. Contudo, a questão heroniana
ainda está por ser resolvida de modo satisfatório.
O DESENVOLVIMENTO ÚLTIMO
DA FILOSOFIA PAGÃ ANTIGA
As escolas na época imperial,
Plotino e o neoplatonismo
e os últimos desdobramentos
da ciência antiga
bom senso”, para que não se perdessem em buscas vãs e não fossem
colhidos por temores inúteis, decidiu pôr à sua disposição a men-
sagem da salvação. Eis as suas palavras: “Chegando por velhice ao
crepúsculo da vida, quando se aproxima o momento de separar-me
da vida com um belo hino à saciedade de todas as coisas agradáveis,
quis ajudar logo, para não ser frustrado pela morte, aqueles que
têm bom senso. Se somente um, dois, três, quatro, cinco ou seis (ou
quantos mais quiseres que sejam, homem, no número das pessoas
de bom senso, mas de modo algum muitos) estivessem com má
disposição de espírito, faria tudo o que estivesse ao meu alcance,
chamando-os a mim até um por um, para levá-los à ótima
deliberação. Mas já que, como disse, a maior parte dos homens,
como em uma epidemia de peste, tem por doença comum as
próprias falsas opiniões sobre as coisas e como esses doentes
tornam-se sempre mais numerosos já que se contagiam um ao
outro como ovelhas, por seu espírito de imitação — e já que, de
resto, é justo que eu esteja pronto a vir em socorro daqueles que
virão depois de nós (pois que eles também são nossos, embora ainda
não tenham nascido) e, enfim, é dever de humanidade cuidar dos
forasteiros que se encontram entre nós — assim, já que a ajuda
prestada por esse escrito diz respeito a muitas pessoas, quis pôr em
comum os remédios da salvação por meio deste pórtico. Em breve,
poderei dizer todas as suas formas à medida que forem aparecendo.
Com efeito, nós dissolvemos os temores, que sem razão são nossos
senhores; quanto às dores, nós cortamos profundamente as dores
vãs, enquanto as naturais reduzimos pouco a pouco com cuidado,
tornando infinitesimal a sua grandeza...”
Diógenes não quis restringir essa mensagem aos seus con-
cidadãos, desejando estendê-la também aos forasteiros e até mesmo
aos estrangeiros, em suma, a todos os homens, sem distinção, tanto
gregos como bárbaros, porque todos os homens são cidadãos
daquela única pátria que é o mundo: “E, sem dúvida, nós fazemos
tudo isto também para os chamados estrangeiros, que, na reali-
dade, não o são: porque, segundo cada específica subdivisão da
Terra, cada um tem a sua pátria, mas, em relação a todo o conjunto
deste mundo, a pátria única de todos é toda a Terra e sua única
morada é o mundo.”
Esse era pensamento que havia nascido e crescido sobretudo
no âmbito da Estoá (bem como entre os cínicos), mas que, agora,
também o epicurismo podia assumir, porque concordava com seus
princípios de fundo.
2.2. Sêneca
2.3. Epicteto
Epicteto nasceu em Hierápolis, na Frígia, entre 50 e 60 d.C.
Pouco depois de 70 d.C., quando ainda era escravo, começou a
frequentar as aulas de Musônio, que lhe revelaram sua própria
O neo-estoicismo: Epicteto 309
vocação para a filosofia. Expulso de Roma por Domiciano, junta-
mente com outros filósofos (em 88/89 ou em 92/93 d.C.), deixou a
Itália, retirando-se para a cidade de Nicópolis, no Epiro, onde
fundou uma escola que alcançou grande sucesso, atraindo ouvintes
de todas as partes. Não se conhece a data de sua morte (alguns
pensam em 138 d.C.). Querendo ater-se ao modelo socrático do
filosofar, Epicteto não escreveu nada. Felizmente, suas aulas eram
frequentadas pelo historiador Flávio Arriano, que (talvez na
segunda década do século II d.C.) teve a feliz idéia de por seus
ensinamentos por escrito. Nasceram assim as Diatribes, parece
que em oito livros, dos quais quatro chegaram até nós. Arriano
também compilou um Manual (Encheiridion), extraindo das Dia-
tribes as máximas mais significativas.
O grande princípio da filosofia de Epicteto consiste na divisão
das coisas em duas classes: a) aquelas que estão em nosso poder (ou
seja, opiniões, desejos, impulsos e repulsões) e b) aquelas que não
estão em nosso poder (ou seja, todas as coisas que não são ativida-
des nossas, como, por exemplo, corpo, parentes, haveres, reputação
e semelhantes). O bem e o mal residem exclusivamente na classe
das coisas que estão em nosso poder, precisamente porque eles
dependem de nossa vontade, e não na outra classe, porque as coisas
que não estão em nosso poder não dependem de nossa vontade.
Nesse sentido, não há mais lugar para compromissos com os
“indiferentes” e com as “coisas intermediárias”. A escolha, portan-
to, é radical, peremptória e definitiva: não se pode objetivar as duas
classes de coisas juntas, porque umas comportam a perda das
outras e vice-versa. Todas as dificuldades da vida e os erros que são
cometidos derivam de não se levar em conta essa distinção funda-
mental. Quem escolhe a segunda classe de coisas, isto é, a vida
física, os haveres, o corpo e seus prazeres, não só vai ao encontro
de desilusões e contrariedades como também perde até mesmo a
sua liberdade, tornando-se escravo daquelas coisas e daqueles
homens que constituem ou concedem aqueles bens e aquelas
vantagens materiais. Quem, ao contrário, rejeita em bloco as coisas
que não dependem de nós e se concentra nas coisas que dependem
de nós torna-se verdadeiramente livre, porque tem a ver com
atividades que são nossas, vive a vida que quer, e conseqiuente-
mente, alcança a satisfação espiritual, a paz da alma.
Ao invés de colocar como fundamento moral um critério
abstrato de verdade, Epicteto colocou a prohdiresis. A proháiresis
(pré-escolha, pré-decisão) é a decisão e a escolha de fundo, que o
homem faz de uma vez para sempre e com a qual, portanto,
determina o diapasão do seu ser moral, do que dependerá tudo
aquilo que fará e como o fará.
310 A filosofia na época imperial
4. Revivescência do cinismo
5. Renascimento do aristotelismo