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Integralidade, formação de saúde, educação em saúde

ARTIGO ARTICLE
e as propostas do SUS - uma revisão conceitual

Integrality, health professional education, health education


and SUS proposals - a conceptual review

Maria de Fátima Antero Sousa Machado 1


Estela Maria Leite Meirelles Monteiro 2
Danielle Teixeira Queiroz 3
Neiva Francenely Cunha Vieira 4
Maria Graziela Teixeira Barroso 4

Abstract We understand the integrality in peo- Resumo Entendemos a integralidade no cuidado


ple’s care, groups and collectivity having the cli- de pessoas, grupos e coletividade tendo o usuário
ent as a historical, social and political subject, in- como sujeito histórico, social e político, articulado
tegrated to his family context, to the environment ao seu contexto familiar, ao meio ambiente e a so-
and the society in which he is inserted. In this scen- ciedade na qual se insere. Neste cenário se eviden-
ery the importance of education actions in health cia a importância das ações de educação em saú-
is highlighted as an integrating strategy of a col- de como estratégia integradora de um saber cole-
lective knowledge that translates in the individu- tivo que traduza no indivíduo sua autonomia e
al his autonomy and emancipation. Based on this emancipação. Com base nesta compreensão o es-
comprehension the study aims to reflect on the tudo busca refletir acerca do princípio da integra-
principle of the integrality as an axis director of lidade como eixo norteador das ações de educação
the education actions in health. The education in em saúde. A educação em saúde como processo po-
health as a pedagogical and political process re- lítico pedagógico requer o desenvolvimento de um
quests the development of a critical and reflexive pensar crítico e reflexivo, permitindo desvelar a
thinking, allowing to reveal the reality and to pro- realidade e propor ações transformadoras, enquan-
pose transforming actions, while historical and to sujeito histórico e social capaz de propor e opi-
social subject able to propose and to give opinions nar nas decisões de saúde para o cuidar de si, de
in the decisions of health for his own care, of his sua família e da coletividade.
family and of the collectivity. Palavras-chave Integralidade, Educação em saú-
Key words Integrality, Education in health, de, Promoção da saúde
Health promotion
1
Universidade de Fortaleza
- UNIFOR. Av Washington
Soares 1321, Bairro Edson
Queiroz. 60811-905
Fortaleza CE.
fatimaantero@uol.com.br
2
Universidade de
Pernambuco.
3
Mestre em Enfermagem
Comunitária/ UFC.
4
Universidade Federal do
Ceará.
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Machado, M.F.A.S. et al.

Introdução tas na redefinição das políticas públicas, direcio-


nando um novo olhar para o contexto da saúde.
A inexistência de uma definição de fato sobre o Nesta perspectiva, as ações de promoção da saú-
que seria a tal “integralidade” é, ao mesmo tem- de devem ser empreendidas por meio de um mo-
po, uma fragilidade e uma potencialidade. Pode- vimento articulado de políticas sociais que res-
mos dizer que a integralidade não é apenas uma pondam aos problemas dos grupos populacionais
diretriz do Sistema Único de Saúde (SUS) defi- nos diversos países.
nida constitucionalmente. Ela é uma “bandeira Dentro dessa abordagem, a Promoção da Saú-
de luta”, parte de uma “imagem objetiva” num de é definida como o processo de capacitação da
enunciado de certas características do sistema de comunidade para atuar na melhoria da sua qua-
saúde, de suas instituições e de suas práticas que lidade de vida e saúde, incluindo uma maior par-
são consideradas, por alguns, desejáveis 1. Ainda ticipação no controle desse processo3 . Neste sen-
destaca-se a imagem subjetiva como elemento tido, incorpora na sua práxis valores como soli-
balizador no sistema de saúde atrelado ao ideá- dariedade, eqüidade, democracia, cidadania, de-
rio do desejo, repleto de sentimento, de emoção senvolvimento, participação e parceria que se
e de motivação para uma construção coletiva na constitui numa combinação de estratégias, envol-
defesa da saúde. vendo vários atores: Estado, comunidade, famí-
A integralidade é um conceito que permite lia e indivíduo4.
uma identificação dos sujeitos como totalidades, Assim, a promoção da saúde não constitui
ainda que não sejam alcançáveis em sua plenitu- responsabilidade restrita do setor saúde, mas de
de, considerando todas as dimensões possíveis uma integração entre os diversos setores do go-
que se pode intervir, pelo acesso permitido por verno municipal, estadual e federal, os quais arti-
eles próprios 2. culam políticas e ações que culminem com a me-
O atendimento integral extrapola a estrutura lhoria das condições de vida da população e da
organizacional hierarquizada e regionalizada da oferta de serviços essenciais aos seres humanos5.
assistência de saúde, se prolonga pela qualidade No nosso país, a luta pela construção de um
real da atenção individual e coletiva assegurada sistema de saúde universal, acessível e de quali-
aos usuários do sistema de saúde, requisita o com- dade se confunde, num primeiro momento, com
promisso com o contínuo aprendizado e com a a própria luta pela redemocratização do país, e
prática multiprofissional. assume, no presente, contornos de resistência à
Entendemos a integralidade no cuidado de guinada conservadora com relação às políticas
pessoas, grupos e coletividade percebendo o usu- públicas da última década6.
ário como sujeito histórico, social e político, ar- Desse momento político, o movimento de
ticulado ao seu contexto familiar, ao meio ambi- Reforma Sanitária Brasileira foi pautado em uma
ente e à sociedade na qual se insere. Neste cená- mobilização reivindicatória alicerçada na neces-
rio se evidencia a importância de articular as sidade popular de reconstruir uma estrutura nor-
ações de educação em saúde como elemento pro- mativa que atendesse as reais necessidades da
dutor de um saber coletivo que traduz no indiví- população nas questões de saúde enquanto direito
duo sua autonomia e emancipação para o cuidar de cidadania. Neste cenário, nasce uma concep-
de si, da família e do seu entorno. Com base nes- ção integradora, alvo de grandes revoluções no
ta compreensão, o estudo busca refletir acerca do prisma da compreensão holística do processo saú-
princípio da integralidade como eixo norteador de-doença.
das ações de educação em saúde. Assim, a luta pela reforma sanitária foi res-
ponsável pela criação do Sistema Único de Saúde
(SUS) como um processo social e político que
A integralidade como princípio requer um ambiente democrático para a sua cons-
articulador no sistema único de saúde trução na arena sanitária, cuja implantação tem
nítido caráter de mudança cultural. Embasado a
A Promoção da Saúde emergiu como marco nor- partir de uma dimensão ideológica, é alicerçado
teador da Saúde Pública a partir dos anos 70 e, em uma concepção ampliada do cuidado em saú-
desde então, vem evoluindo e consolidando-se de do indivíduo, família e comunidade 7.
como um modelo das ações de saúde. Do SUS, emergem princípios básicos: acesso
No cenário mundial, a discussão acerca da universal e igualitário a ações e serviços; partici-
promoção da saúde foi fortalecida através de pação comunitária; rede regionalizada e hierar-
eventos internacionais, lançando novas propos- quizada; e descentralização, cujas ações de saúde
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devem ser desenvolvidas de acordo com as dire- pelo Programa de Saúde da Família (PSF) em
trizes previstas no artigo 198 da Constituição 1994 é idealizada, com o propósito de mudança
Federal, obedecendo ainda a princípios como: do modelo da atenção à saúde, que passa a ter
universalidade de acesso aos serviços de saúde em como núcleo do cuidado às famílias, sendo as
todos os níveis de assistência; integralidade de mesmas abordadas e compreendidas partir do
assistência, entendida como um conjunto articu- meio onde vivem 12.
lado e contínuo das ações e serviços preventivos Em seus dez anos de existência, o PSF está sen-
e curativos, individuais e coletivos, exigidos para do visto como modelo inovador, fundamentado
cada caso em todos os níveis de complexidade do em uma nova ética social e cultural, concretizan-
sistema; divulgação de informações quanto ao do o ideário de promoção da saúde, na perspec-
potencial dos serviços de saúde e sua utilização tiva da qualidade de vida do povo brasileiro. En-
pelo usuário; igualdade da assistência à saúde, sem tretanto, sua sustentabilidade requer o estabele-
preconceitos ou privilégios de qualquer espécie8. cimento contínuo de parcerias intersetoriais, ar-
Na 11ª Conferência Nacional de Saúde, os ticulando ações interdisciplinares de assistência,
princípios da integralidade assistencial, da huma- prevenção e promoção da saúde12. Dentre as ações
nização e da eqüidade foram reiterados, constitu- do PSF, emergem as ações educativas como fer-
indo-se como objetivos para a consolidação do ramenta essencial para incentivar a auto-estima
SUS, como também a necessidade de fortalecer o e o autocuidado dos membros das famílias, pro-
caráter público das ações e serviços de saúde e a movendo reflexões que conduzam a modificações
responsabilidade do Estado, definida na Consti- nas atitudes e comportamentos.
tuição Federal, no provimento da saúde ao povo9. A atribuição dos profissionais de saúde como
A partir da implementação do SUS, não só agentes de mudança no contexto de atenção à fa-
foi desencadeado um processo de ampliação na mília passa a ser de facilitadores no processo da
quantidade de serviços de saúde, como também educação em saúde. Essa perspectiva converge
na qualidade destes, já que um de seus princípios para a formação continuada dos profissionais de
é o da integralidade da atenção. Tratava-se então, saúde visto que “uma profunda renovação das
de buscar um modelo de atenção primária à saú- organizações de saúde não se faz sem uma políti-
de que desse conta de concretizar a integralidade ca de educação para o setor” 13.
das ações e dos serviços de saúde, ocupando uma A formação e desenvolvimento dos trabalha-
posição de confronto frente ao modelo conven- dores de saúde têm como desafio não dicotomi-
cional vigente 10. zar a atenção individual da atenção coletiva, as
Entretanto, não pode ser desconsiderado que doenças e adoecimentos da vigilância da saúde; a
o processo de implantação do SUS teve que lidar qualidade de vida (biologia) do andar da vida
com inúmeras limitações, visto que representava (produção subjetiva); não fragmentar os grupos
uma proposta de ação renovada em saúde, quan- de trabalhadores (da gestão, da atenção e da vigi-
do na verdade os profissionais não haviam sido lância); não perder o conceito de atenção inte-
formados em consonância com o modelo de pro- gral à saúde e realizar o trabalho educativo junto
moção à saúde, como também os gestores depa- à população e, finalmente, aceitar que há incer-
ravam-se com inúmeras dúvidas ao tentar adequar teza na definição dos papéis profissionais, onde
a estruturação de ações básicas de saúde, sem dis- há alternância de saberes e práticas de cada nú-
por na ocasião de recursos para esta finalidade. cleo constituído das profissões de saúde e do cam-
Assim, embora a saúde seja um direito garan- po da atenção integral à saúde13.
tido em constituição, a práxis desvela uma enor- Para que seja possível a realização de uma
me contradição entre essas conquistas sociais es- prática que atenda à integralidade, precisamos
tabelecidas no plano legal e a realidade de crise exercitar efetivamente o trabalho em equipe, des-
vivenciada pelos usuários e profissionais do setor11. de o processo de formação do profissional de saú-
Tal realidade mobilizou, nos últimos anos, o de. É preciso estabelecer estratégias de aprendi-
Ministério da Saúde, as Secretarias Estaduais e zagem que favoreçam o diálogo, a troca, a trans-
Municipais a estabelecerem mecanismos capa- disciplinaridade entre os distintos saberes formais
zes de assegurar a concretização dessas conquis- e não-formais que contribuam para as ações de
tas. Várias iniciativas de mudanças nos proces- promoção de saúde a nível individual e coletivo.
sos organizativos dos serviços de saúde foram A discussão sobre integralidade perpassa pela
esboçadas; entretanto, consistiam em projetos formação profissional e educação permanente,
pontuais e com resultados pouco perceptíveis que deve estimular o trabalho em equipe, de
pela população. Até que a estratégia utilizada modo a favorecer o diálogo entre os profissionais
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de saúde, como também a definição coletiva da co com a vida, com a promoção e a recuperação
assistência ao usuário como foco central das ações da saúde.
de saúde. Para prestar uma assistência holística, Para se repensar novas modelagens assisten-
não podemos acreditar que seremos capazes de ciais na integralidade do cuidado a saúde, há que
fazê-lo individualmente 14. se aprofundar o debate sob novos fundamentos
É nesse nível que uma nova visão das práticas teóricos, particularmente sobre a natureza do
de saúde voltadas para essa formação centrada processo de trabalho, especialmente a sua micro-
na atenção à saúde vem ganhando destaque para política e a sua importância na compreensão da
concretização da integralidade no cuidado, ten- organização da assistência à saúde. Daí decorre
do em vista o leque de competências exigidas no que serão construídas ações diferenciadas na pro-
processo de trabalho em saúde, o que requer uma dução da saúde que operam com tecnologias vol-
visão voltada para a construção de projetos cole- tadas para a produção do cuidado, de modo a es-
tivos. A idéia de cuidado integrado em saúde com- tabelecer novas relações entre trabalhadores e
preende um saber fazer de profissionais, docen- usuários, tentando construir um devir para os ser-
tes, gestores e usuários/pacientes co-responsáveis viços de saúde, centrado nos usuários e suas ne-
pela produção da saúde, feito por gente que cui- cessidades e estabelecendo um contraponto à crise
da de gente. Assim, partilhamos de uma premissa vivida pela saúde17.
de que o campo da saúde não é privativo de ne- A importância de abordar a assistência de for-
nhum núcleo profissional, na medida em que o ma integrada está fundamentada na articulação
cuidar de pessoas se constitui em espaços de es- de todos os passos na produção do cuidado e no
cuta, acolhimento, diálogo e relação ética e dia- restabelecimento da saúde. Propõe-se mapear a
lógica entre os diversos atores implicados na pro- integralidade da assistência pelo acompanhamen-
dução do cuidado 15. to da linha do cuidado, evitando-se assim a sua
Para atingirmos essa realidade, precisamos fragmentação. Cada usuário deverá ser acompa-
repensar as maneiras como se estruturam os pro- nhado segundo determinado projeto terapêutico
cessos de formação dos profissionais de saúde de instituído, comandado por um processo de tra-
hoje, do futuro, a forma como se organizam e balho cuidador, e não por uma lógica “indutora
operam, devendo ser incorporados como estra- de consumo”17.
tégias de mudanças pelas diferentes experiências Esta lógica contrapõe-se ao presente cotidia-
de mudanças, de conteúdo, de práticas pedagó- no dos serviços de saúde, onde freqüentemente
gicas e de cenários de aprendizagem, independen- há confronto entre os profissionais que atuam ou
te do estágio de suas transformações 15. que deveriam atuar com o mesmo objetivo, ou
A noção de integralidade como princípio deve seja, o bem-estar do cliente e o desenvolvimento
orientar para ouvir, compreender e, a partir daí, de ações curativas ou preventivas no processo de
atender às demandas e necessidades das pessoas, saúde/doença18.
grupos e comunidades num novo paradigma de Com base no princípio da integralidade e do
atenção a saúde. agir em saúde, os serviços devem ofertar ações de
promoção à saúde, prevenção dos fatores de ris-
co, assistência aos danos e reabilitação segundo a
A integralidade no agir em saúde dinâmica do processo saúde-doença, e estas de-
vem estar articuladas e integradas em todos os
É atribuído como herança no atendimento indi- espaços organizacionais do sistema de saúde19.
vidualizado à saúde o modelo liberal privatista, É nesse contexto que se evidencia a proposta
que é responsável pela estruturação de uma de- de um modo de organização voltado para a arti-
terminada postura de trabalhadores de saúde, culação entre assistência e práticas de saúde co-
pautado no estilo médico que estabelece um aten- letiva. O princípio de integralidade, em um dos
dimento impessoal por parte do profissional de seus sentidos, corresponde exatamente a uma crí-
saúde e o usuário e entre os diversos profissio- tica da dissociação entre as práticas assistenciais,
nais de saúde16. fomentadas através de distinções cristalizadas
O modelo comumente praticado na saúde em entre serviços de saúde pública e serviços assis-
geral consiste em uma prática fragmentada, cen- tenciais18.
trada em produção de atos, predominando a de- A partir da abrangência do conceito de inte-
sarticulação entre as inúmeras queixas dos usuá- gralidade, desvela a urgência de se corrigir a ten-
rios. Para a superação desse cenário, impõe-se um dência de um agir em saúde exclusivamente vol-
novo referencial, assentado no compromisso éti- tado para a atenção básica, em virtude da peque-
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na capacidade dos municípios de proverem os in- Entretanto, várias pesquisas23,24,25 têm de-
vestimentos necessários para se prestar serviços monstrado que na prática verifica-se a predomi-
de assistência hospitalar ou serviço especializado. nância de paradigmas de educação em saúde que
Evidencia-se, assim, a necessidade de se construí- reforçam práticas reducionistas, requerendo
rem redes articuladas regionais, na superação da questionamentos para o alcance de ações integra-
desarticulação e desintegração organizacional e da das e participativas.
competição entre órgãos gestores, levando à ine- Uma educação em saúde nos moldes da inte-
ficiência e não resolutividade dos sistemas locais20. gralidade inclui políticas públicas, ambientes
Neste sentido, as instituições de saúde assu- apropriados para além dos tratamentos clínicos
mem papel estratégico na absorção dos conheci- e curativos, comprometidas com o desenvolvi-
mentos de novas formas de agir e produzir inte- mento da solidariedade e da cidadania, envolvi-
gralidade em saúde, na medida em que reúnem, das na melhoria da qualidade de vida e na pro-
num mesmo espaço, diferentes perspectivas, in- moção do homem 22.
teresses e distintos atores sociais (profissionais de A partir do princípio de integralidade, con-
saúde, gestores e usuários). Assim, as instituições cebe-se que todos os profissionais que trabalham
de saúde representam um lócus privilegiado de com o ser humano devem aprimorar uma visão
observação e de análise dos elementos constitu- holístico-ecológica, seja na produção do conhe-
tivos do princípio institucional da integralidade, cimento ou na prestação de serviços, de modo a
seja quanto às práticas terapêuticas prestadas aos resgatar a importância da participação nos con-
indivíduos, seja quanto às práticas de saúde di- textos onde se constrói a vida; nos ambientes onde
fundidas na coletividade21. os movimentos de aprender e ensinar a tecer a
Dentro da concepção de integralidade, desta- vida se dão24.
cam-se as ações de educação em saúde como es- Os profissionais de saúde despertaram inte-
tratégia articulada entre a concepção da realidade resse crescente pela ampliação do foco dos resul-
do contexto de saúde e a busca de possibilidades tados terapêuticos e de cuidados em saúde, para
de atitudes geradoras de mudanças a partir de cada além do estado físico, elegendo a qualidade de
profissional de saúde, do trabalho em equipe e dos vida como um construtor que engloba estados
diversos serviços que buscam uma transformação subjetivos de satisfação das pessoas em seu viver
no quadro da saúde da população. diário. Esta atitude incorpora o princípio da in-
tegralidade como uma dimensão do cuidar.
É importante que o elemento integralidade
A integralidade como eixo norteador esteja inserido na consciência crítica dos profis-
das ações de educação em saúde sionais de saúde e da comunidade, para que par-
tindo de um contexto complexo e com o qual es-
A educação em saúde como área de conhecimen- tão em constante interação, possibilitem ações
to requer uma visão corporificada de distintas ci- transformadoras integralizadas e mútuas2.
ências, tanto da educação como da saúde, inte- Vale dizer que quanto mais conscientizados
grando disciplinas como psicologia, sociologia, nos tornamos, mais capacitados estamos para ser
filosofia e antropologia. Esse entendimento é re- anunciadores e denunciadores, frente ao com-
forçado ao se afirmar a educação em saúde como promisso que assumimos, permitindo desvelar
um campo multifacetado, para o qual convergem a realidade, procurando desmascarar sua miti-
diversas concepções, as quais espelham diferen- ficação e alcançar a plena realização do traba-
tes compreensões do mundo, demarcadas por dis- lho humano com ações de transformação da re-
tintas posições político-filosóficas sobre o homem alidade para a libertação das pessoas26,27. A con-
e a sociedade 22. cepção crítica da educação que pretende ser uma
Dessa forma, o conceito de educação em saú- educação para a conscientização, para a mudan-
de está ancorado no conceito de promoção da ça, para a libertação solicita uma relação de pro-
saúde, que trata de processos que abrangem a par- ximidade entre os profissionais e a população.
ticipação de toda a população no contexto de sua Nessa relação educativa, a produção do conhe-
vida cotidiana e não apenas das pessoas sob risco cimento passa a ser coletiva, gerando uma mo-
de adoecer. Essa noção está baseada em um con- dificação mútua, porque ambos são portadores
ceito de saúde, considerado como um estado po- de conhecimentos distintos.
sitivo e dinâmico de busca de bem-estar, que in- Destaca-se a educação em saúde, como estra-
tegra os aspectos físicos e mentais (ausência de tégia de promoção à saúde neste processo de cons-
doença), ambiental, pessoal e social. cientização individual e coletiva de responsabili-
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dades e de direitos à saúde, estimulando ações que de significa que os profissionais passem a perce-
atendam aos princípios do SUS. A partir deste ber a comunidade como “seres que sabem, sabem
enfoque, eleger estratégias didáticas que condu- que sabem, sabem porque sabem, sabem como
zam a uma transformação dos indivíduos social- sabem, e sabem dizer a terceiros o que sabem e
mente inseridos no mundo, ampliando sua capa- não menos importante, agem conseqüentemente
cidade de compreensão da complexidade dos de- aos seus saberes”32.
terminantes de ser saudável28. O desenvolvimento desta relação indivíduo/
A prática da educação em saúde como um ca- sociedade, com base no princípio democrático e
minho integrador do cuidar constitui um espaço o aprimoramento da relação indivíduo/espécie, no
de reflexão-ação, fundado em saberes técnico-ci- sentido da realização da humanidade; ou seja, a
entíficos e populares, culturalmente significativos permanência integrada dos indivíduos no desen-
para o exercício democrático, capaz de provocar volvimento mútuo dos termos da tríade indiví-
mudanças individuais e prontidão para atuar na duo/sociedade/espécie, deve constituir um enten-
família e na comunidade, interferindo no contro- dimento primordial na busca pela hominização
le e na implementação de políticas públicas, con- na humanização e pelo acesso à cidadania terrena
tribuindo para a transformação social28. no caminho de uma comunidade planetária or-
O exercício de uma prática educativa crítica, ganizada33.
como experiência especificamente humana, cons- A construção do processo educativo em saúde
titui uma forma de intervenção no mundo com- que atenda ao princípio da integralidade como
prometida com o princípio de democracia que eixo norteador das ações de saúde requer a parti-
rejeita qualquer forma de discriminação, domi- cipação ativa da população na leitura e reflexão
nação e integra uma atitude de inovação e reno- crítica de sua realidade, das estruturas socioeco-
vação na crença de que é possível mudar 29. nômicas como constituintes de acessos na busca
Neste sentido, compreendemos a educação em por condições humanas dignas, como sujeito his-
saúde inspirada nos pensamentos de Freire, “coe- tórico e social, possuidor em sua dimensão holís-
rente e competente, que testemunha seu gosto pela tica de interfaces integradas e permeadas pelo pro-
vida, sua esperança no mundo melhor, que atesta cesso autônomo das descobertas e inquietações
sua capacidade de luta, seu respeito às diferenças frente ao modo de viver em sociedade exercendo
da realidade, a maneira consistente com que vive sua cidadania.
sua presença no mundo”29. Assim, para educar em
saúde, se faz necessário estar aberto ao contorno
geográfico, social, político, cultural do indivíduo, Reflexões finais
família e comunidade.
É incontestável o papel do enfermeiro como O princípio da integralidade como eixo nortea-
educador em saúde, seja na sua versão individual dor das ações de educação em saúde deve estar
ou coletiva. Entretanto, estudo sobre as práticas articulado à urgência de se corrigir a tendência
de educação em saúde no PSF realizadas por esse de um agir em saúde fragmentado e desarticu-
profissional em Fortaleza,CE identificou um des- lado, embasado em uma postura autoritária, ver-
preparo técnico para exercer esta prática de modo ticalizada de imposição de um saber científico
articulado aos princípios do SUS, como também descontextualizado e inerte dos anseios e dese-
a dominância das ações clínicas, individuais e bu- jos da população no tocante a sua saúde e con-
rocráticas exigidas dentro das Unidades Básicas de dições de vida.
Saúde da Família30. Evidencia-se, assim, a necessidade de se per-
Em outro estudo, também desenvolvido com ceber a integralidade como princípio em vários
enfermeiras que atuam em Unidades Básicas de níveis de discussões e das práticas na área de saú-
Saúde, evidenciou-se a dificuldade dos profissio- de, alicerçado em um novo paradigma prepara-
nais em acreditarem realmente nos seres huma- do para ouvir, entender e, a partir daí, atender
nos com os quais interagem, em sua capacidade às demandas e necessidades das pessoas, grupos
de aprender e administrar a própria vida. Como e coletividades.
proposta, os atores advogam a integração entre A evocação apresentada busca configurar uma
conhecimento profissional e saber popular como análise da integralidade da atenção à saúde como
metodologia orientadora tanto do processo de eixo estruturante da necessidade da mudança a
educação na saúde, como dos programas de edu- partir da formação das políticas públicas de saú-
cação em saúde31. de, dos serviços, suas práticas e, por fim, dos pro-
Assumir a integralidade na educação em saú- fissionais de saúde que assim poderão defender
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um modelo de atenção à saúde pautado no prin- levem o indivíduo a sua autonomia e emanci-
cípio da integralidade de forma que o relaciona- pação enquanto sujeito histórico e social capaz
mento com o usuário/família seja profissional e de propor e opinar nas decisões de saúde para o
sujeito e não profissional e objeto. cuidar de si, de sua família e da coletividade.
A construção do conhecimento com base nas
reflexões da práxis de educação em saúde apon-
ta para a necessidade de efetivar um processo
educativo em saúde envolvendo a comunidade
por meio de um processo participativo que per-
mita uma reflexão crítica da realidade e dos fa- Colaboradores
tores determinantes de um viver saudável.
A educação em saúde como processo políti- MFAS Machado, EMLM Monteiro e DT Quei-
co pedagógico requer o desenvolvimento de um roz, NFC Vieira MGT Barroso participaram
pensar crítico e reflexivo, permitindo desvelar a igualmente de todas as etapas da elaboração do
realidade e propor ações transformadoras que artigo.

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Aprovado em 08/02/2006
Versão final apresentada em 08/08/2006

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