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ARTIGO ARTICLE
e as propostas do SUS - uma revisão conceitual
de saúde, como também a definição coletiva da co com a vida, com a promoção e a recuperação
assistência ao usuário como foco central das ações da saúde.
de saúde. Para prestar uma assistência holística, Para se repensar novas modelagens assisten-
não podemos acreditar que seremos capazes de ciais na integralidade do cuidado a saúde, há que
fazê-lo individualmente 14. se aprofundar o debate sob novos fundamentos
É nesse nível que uma nova visão das práticas teóricos, particularmente sobre a natureza do
de saúde voltadas para essa formação centrada processo de trabalho, especialmente a sua micro-
na atenção à saúde vem ganhando destaque para política e a sua importância na compreensão da
concretização da integralidade no cuidado, ten- organização da assistência à saúde. Daí decorre
do em vista o leque de competências exigidas no que serão construídas ações diferenciadas na pro-
processo de trabalho em saúde, o que requer uma dução da saúde que operam com tecnologias vol-
visão voltada para a construção de projetos cole- tadas para a produção do cuidado, de modo a es-
tivos. A idéia de cuidado integrado em saúde com- tabelecer novas relações entre trabalhadores e
preende um saber fazer de profissionais, docen- usuários, tentando construir um devir para os ser-
tes, gestores e usuários/pacientes co-responsáveis viços de saúde, centrado nos usuários e suas ne-
pela produção da saúde, feito por gente que cui- cessidades e estabelecendo um contraponto à crise
da de gente. Assim, partilhamos de uma premissa vivida pela saúde17.
de que o campo da saúde não é privativo de ne- A importância de abordar a assistência de for-
nhum núcleo profissional, na medida em que o ma integrada está fundamentada na articulação
cuidar de pessoas se constitui em espaços de es- de todos os passos na produção do cuidado e no
cuta, acolhimento, diálogo e relação ética e dia- restabelecimento da saúde. Propõe-se mapear a
lógica entre os diversos atores implicados na pro- integralidade da assistência pelo acompanhamen-
dução do cuidado 15. to da linha do cuidado, evitando-se assim a sua
Para atingirmos essa realidade, precisamos fragmentação. Cada usuário deverá ser acompa-
repensar as maneiras como se estruturam os pro- nhado segundo determinado projeto terapêutico
cessos de formação dos profissionais de saúde de instituído, comandado por um processo de tra-
hoje, do futuro, a forma como se organizam e balho cuidador, e não por uma lógica “indutora
operam, devendo ser incorporados como estra- de consumo”17.
tégias de mudanças pelas diferentes experiências Esta lógica contrapõe-se ao presente cotidia-
de mudanças, de conteúdo, de práticas pedagó- no dos serviços de saúde, onde freqüentemente
gicas e de cenários de aprendizagem, independen- há confronto entre os profissionais que atuam ou
te do estágio de suas transformações 15. que deveriam atuar com o mesmo objetivo, ou
A noção de integralidade como princípio deve seja, o bem-estar do cliente e o desenvolvimento
orientar para ouvir, compreender e, a partir daí, de ações curativas ou preventivas no processo de
atender às demandas e necessidades das pessoas, saúde/doença18.
grupos e comunidades num novo paradigma de Com base no princípio da integralidade e do
atenção a saúde. agir em saúde, os serviços devem ofertar ações de
promoção à saúde, prevenção dos fatores de ris-
co, assistência aos danos e reabilitação segundo a
A integralidade no agir em saúde dinâmica do processo saúde-doença, e estas de-
vem estar articuladas e integradas em todos os
É atribuído como herança no atendimento indi- espaços organizacionais do sistema de saúde19.
vidualizado à saúde o modelo liberal privatista, É nesse contexto que se evidencia a proposta
que é responsável pela estruturação de uma de- de um modo de organização voltado para a arti-
terminada postura de trabalhadores de saúde, culação entre assistência e práticas de saúde co-
pautado no estilo médico que estabelece um aten- letiva. O princípio de integralidade, em um dos
dimento impessoal por parte do profissional de seus sentidos, corresponde exatamente a uma crí-
saúde e o usuário e entre os diversos profissio- tica da dissociação entre as práticas assistenciais,
nais de saúde16. fomentadas através de distinções cristalizadas
O modelo comumente praticado na saúde em entre serviços de saúde pública e serviços assis-
geral consiste em uma prática fragmentada, cen- tenciais18.
trada em produção de atos, predominando a de- A partir da abrangência do conceito de inte-
sarticulação entre as inúmeras queixas dos usuá- gralidade, desvela a urgência de se corrigir a ten-
rios. Para a superação desse cenário, impõe-se um dência de um agir em saúde exclusivamente vol-
novo referencial, assentado no compromisso éti- tado para a atenção básica, em virtude da peque-
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dades e de direitos à saúde, estimulando ações que de significa que os profissionais passem a perce-
atendam aos princípios do SUS. A partir deste ber a comunidade como “seres que sabem, sabem
enfoque, eleger estratégias didáticas que condu- que sabem, sabem porque sabem, sabem como
zam a uma transformação dos indivíduos social- sabem, e sabem dizer a terceiros o que sabem e
mente inseridos no mundo, ampliando sua capa- não menos importante, agem conseqüentemente
cidade de compreensão da complexidade dos de- aos seus saberes”32.
terminantes de ser saudável28. O desenvolvimento desta relação indivíduo/
A prática da educação em saúde como um ca- sociedade, com base no princípio democrático e
minho integrador do cuidar constitui um espaço o aprimoramento da relação indivíduo/espécie, no
de reflexão-ação, fundado em saberes técnico-ci- sentido da realização da humanidade; ou seja, a
entíficos e populares, culturalmente significativos permanência integrada dos indivíduos no desen-
para o exercício democrático, capaz de provocar volvimento mútuo dos termos da tríade indiví-
mudanças individuais e prontidão para atuar na duo/sociedade/espécie, deve constituir um enten-
família e na comunidade, interferindo no contro- dimento primordial na busca pela hominização
le e na implementação de políticas públicas, con- na humanização e pelo acesso à cidadania terrena
tribuindo para a transformação social28. no caminho de uma comunidade planetária or-
O exercício de uma prática educativa crítica, ganizada33.
como experiência especificamente humana, cons- A construção do processo educativo em saúde
titui uma forma de intervenção no mundo com- que atenda ao princípio da integralidade como
prometida com o princípio de democracia que eixo norteador das ações de saúde requer a parti-
rejeita qualquer forma de discriminação, domi- cipação ativa da população na leitura e reflexão
nação e integra uma atitude de inovação e reno- crítica de sua realidade, das estruturas socioeco-
vação na crença de que é possível mudar 29. nômicas como constituintes de acessos na busca
Neste sentido, compreendemos a educação em por condições humanas dignas, como sujeito his-
saúde inspirada nos pensamentos de Freire, “coe- tórico e social, possuidor em sua dimensão holís-
rente e competente, que testemunha seu gosto pela tica de interfaces integradas e permeadas pelo pro-
vida, sua esperança no mundo melhor, que atesta cesso autônomo das descobertas e inquietações
sua capacidade de luta, seu respeito às diferenças frente ao modo de viver em sociedade exercendo
da realidade, a maneira consistente com que vive sua cidadania.
sua presença no mundo”29. Assim, para educar em
saúde, se faz necessário estar aberto ao contorno
geográfico, social, político, cultural do indivíduo, Reflexões finais
família e comunidade.
É incontestável o papel do enfermeiro como O princípio da integralidade como eixo nortea-
educador em saúde, seja na sua versão individual dor das ações de educação em saúde deve estar
ou coletiva. Entretanto, estudo sobre as práticas articulado à urgência de se corrigir a tendência
de educação em saúde no PSF realizadas por esse de um agir em saúde fragmentado e desarticu-
profissional em Fortaleza,CE identificou um des- lado, embasado em uma postura autoritária, ver-
preparo técnico para exercer esta prática de modo ticalizada de imposição de um saber científico
articulado aos princípios do SUS, como também descontextualizado e inerte dos anseios e dese-
a dominância das ações clínicas, individuais e bu- jos da população no tocante a sua saúde e con-
rocráticas exigidas dentro das Unidades Básicas de dições de vida.
Saúde da Família30. Evidencia-se, assim, a necessidade de se per-
Em outro estudo, também desenvolvido com ceber a integralidade como princípio em vários
enfermeiras que atuam em Unidades Básicas de níveis de discussões e das práticas na área de saú-
Saúde, evidenciou-se a dificuldade dos profissio- de, alicerçado em um novo paradigma prepara-
nais em acreditarem realmente nos seres huma- do para ouvir, entender e, a partir daí, atender
nos com os quais interagem, em sua capacidade às demandas e necessidades das pessoas, grupos
de aprender e administrar a própria vida. Como e coletividades.
proposta, os atores advogam a integração entre A evocação apresentada busca configurar uma
conhecimento profissional e saber popular como análise da integralidade da atenção à saúde como
metodologia orientadora tanto do processo de eixo estruturante da necessidade da mudança a
educação na saúde, como dos programas de edu- partir da formação das políticas públicas de saú-
cação em saúde31. de, dos serviços, suas práticas e, por fim, dos pro-
Assumir a integralidade na educação em saú- fissionais de saúde que assim poderão defender
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Aprovado em 08/02/2006
Versão final apresentada em 08/08/2006