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ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS
PERIODICIDADE BIMESTRAL
N.º 62 · DEZEMBRO 2020
Dedicada exclusivamente a assuntos históricos, cada número aborda um único tema, explorando-o de diversos
ângulos e pontos de vista. Com cerca de 100 páginas e lombada colada, a revista é de uma enorme riqueza
do ponto de vista gráfico, apresente textos, fotografias, mapas e infografias de alta qualidade.
I REPÚBLICA
Infografia Presidentes 4
Presidentes eleitos
pelo Parlamento 6
DITADURA
Infografia Presidentes 12
ANTT
Campanha eleitoral de 1958 Comício de apoio a Humberto Delgado 1951 Craveiro Lopes,
no Coliseu do Porto, em maio uma solução de continuidade 24
38
Depois de, há cinco anos, termos dedicado um número aos Presidentes da Re-
pública Portuguesa, agora, que vamos de novo a votos para Belém, é hora fazer
um balanço das campanhas presidenciais. DEMOCRACIA
E o que logo salta à vista é a diversidade de formas como o Chefe do Estado tem
Infografia Presidentes 42
sido escolhido. A primeira eleição presidencial, em 1911, nada teve que ver com
a forma como agora o Presidente é eleito, pois na I República ele era votado 1976 Finalmente, a liberdade 46
no parlamento; a exceção foi o sufrágio direto a que se submeteu Sidónio Pais.
Entrevista Otelo Saraiva
Veio depois a longa ditadura e a necessidade sentida por esta de se «legitimar»,
de Carvalho: «Votei Eanes» 53
encenando eleições não livres. Óscar Carmona submeteu-se a sufrágio direto,
sem oposição consentida, em 1928, e foi «reeleito» de igual forma em 1935 e Entrevista Ramalho Eanes:
em 1942. Terminada a II Guerra Mundial com a vitória das democracias, Sala- «Éramos intolerantes» 54
zar viu-se coagido a simular eleições, e em 1949 surgem em campanha forças 1980 A hora dos militares à civil 60
oposicionistas, que se vêm forçadas a desistir por falta de condições. O cenário
repetir-se-ia em 1951, aquando da morte de Carmona. Mas, em 1958, o candidato 1986 O combate mais renhido
oposicionista Humberto Delgado foi até ao fim, tendo o governo, na contagem de sempre 64
de votos falseada, condescendido em atribuir-lhe uns 25% dos sufrágios... E foi Debates para a História 72
tal o susto apanhado pelo ditador, que Américo Tomas seria reeleito em 1965 e
em 1972 por um Colégio Eleitoral de apoiantes do governo. Só a partir do 25 de 1996 Em tempos de guerra
Abril de 1974 as eleições presidenciais passaraim a disputar-se em liberdade. não se limpam armas 74
Tudo isto aqui desenvolvemos, como sempre com a colaboração de especialistas 2006 Uma campanha
no tema abordado. As reeleições dos Presidentes para um segundo mandato não com passado pela frente 78
são - à exceção da de 1980 - desenvolvidas, do mesmo modo que omitimos a eleição
de Marcelo Rebelo de Sousa, em 2016. Ainda não é, propriamente, História... 2016 Variedade de candidatos 82
VISÃO H I S T Ó R I A 3
1910-1926
Primeira República
• TEÓFILO BRAGA
98 VOTOS (96,1%) SUFRÁGIO DIRETO
• BERNARDINO MACHADO
134 VOTOS (74,9%)
• MANUEL DE ARRIAGA
121 VOTOS (55,8%) Só ao 3º escrutínio, entre • SIDÓNIO PAIS
os dois candidatos mais votados 468 275 VOTOS (53,2%)
(de um total de sete), foi obtida
a necessária maioria de dois terços
468 275
TOTAL TOTAL TOTAL
217 102 179
• 4 votos em branco • 3 votos em branco • 27 votos em branco
4 VISÃO H I S T Ó R I A
O Presidente da República não era eleito por sufrágio universal,
mas pela Assembleia Nacional Constituinte (em 1911) e pelos membros
das duas câmaras, deputados e Senado, do Congresso da República.
A exceção foram as primeiras eleições de 1918, mas em que havia
apenas um único candidato, Sidónio Pais
FONTES Arquivo Histórico Parlamentar, Presidência da República, Diário do Governo
JOSÉ RELVAS 0
1911 A 1925
Presidentes eleitos
pelo parlamento
Durante a I República, instaurada em 1910 e derrubada
em 1926, os presidentes eram escolhidos pelos deputados
e senadores reunidos em sessão conjunta do Congresso,
pelo que as campanhas não tinham outra visibilidade
no exterior além daquela que lhes era dada pela Imprensa
por Elsa Santos Alípio*
E
ntre 1911 e 1925 realizaram-se oito até aos nossos dias), «no pleno gozo dos di-
eleições presidenciais, embora o ato reitos civis e políticos, e que não tenham tido
eleitoral de abril de 1918 tenha ocorrido outra nacionalidade». (artº 39º). Estavam
na sequência do golpe de Sidónio Pais e, impedidos de se candidatarem os membros
por isso, em rutura com a Constituição da família real deposta, assim como os «pa-
de 1911. rentes consanguíneos ou afins em 1º ou 2º
As eleições presidenciais deste período aca- grau» do Presidente, embora estes apenas
bariam por ser um importante barómetro da na primeira eleição consequente (artº 40º).
unidade dos republicanos, revelando e acen- O Presidente era eleito pelos deputados e
tuando clivagens existentes. Por outro lado, senadores reunidos em sessão conjunta do
apesar dos escassos poderes atribuídos aos Congresso. Era necessária uma maioria de
presidentes da República, o peso político e o dois terços e, no caso de nenhum dos candi-
prestígio das personalidades que ocuparam o datos obter essa votação nos dois primeiros
AML
6 VISÃO H I S T Ó R I A
AML
António José de Almeida, Manuel Brito Ca- que ali acorrera, um ritual que haveria de Almeida, e do Partido Unionista, de Brito
macho e António Machado Santos. Arriaga repetir-se a cada eleição. Camacho. Formalizava-se, assim, a desunião
conseguiu 121 votos, contra 86 de Bernardino Em outubro, o Partido Republicano Por- dos republicanos.
Machado. Após o anúncio da vitória, seguiu- tuguês (PRP) passa a chamar-se Partido
-se a leitura do compromisso de honra, o Democrático, liderado por Afonso Costa, Os candidatos repetentes
discurso do Presidente e a ida à varanda do seguindo-se, no ano seguinte, o aparecimento Nas sete eleições presidenciais da I República
Palácio de São Bento para saudar a multidão do Partido Evolucionista, de António José de disputadas entre candidatos – a exceção foi
Manuel de Arriaga
era o candidato
do 'Bloco', nome que
se dava à união dos
apoiantes de António
José de Almeida,
Brito Camacho
e Machado Santos
VISÃO H I S T Ó R I A 7
ELEIÇÕES // I REPÚBLICA
A primeira vacatura
O primeiro Presidente eleito da República
AML
portuguesa foi também o primeiro de uma
maioria que não conseguiria cumprir os qua-
Sem ir a votos tro anos de mandato. Por razões que não cabe
aqui analisar – entre as quais haverá que
Teófilo Braga não foi eleito, mas desempenhou as funções destacar o eclodir da I Guerra Mundial –,
Manuel de Arriaga apresentou a demissão a
O primeiro Chefe do Estado após a dos liberais de D. Pedro, durante a guerra
proclamação da República, em outubro civil. Isto não impede que o jovem, aluno três meses de terminar o mandato, sem con-
de 1910, não teve propriamente a brilhante no liceu da sua terra natal e na seguir concretizar o seu desejo de reconciliar
designação oficial de Presidente da Universidade de Coimbra, tenha sempre a «família republicana».
República, embora haja desempenhado alinhado do lado progressista e estado na Tal como previsto na Constituição (artº
as funções inerentes a este cargo, primeira linha do combate republicano 38º, § 2º), o Congresso reuniu-se para eleger
acumuladas com a da líder do executivo. contra a monarquia, um Presidente que completasse o tempo que
Teófilo Braga – advogado, poeta, Foi durante o seu consulado de 1910-
faltava cumprir do mandato de Manuel de
sociólogo, filólogo, historiador da -1911 que, entre outras coisas, foram
literatura e membro de longa data do dissolvidos os partidos monárquicos, Arriaga. No dia 29 de maio de 1915, apre-
Partido Republicano Português – foi, na decorreram as eleições para a sentaram-se dois candidatos: Duarte Leite,
verdade, aos 67 anos, e por decisão dos Assembleia Constituinte e entrou em que obteve apenas 1 voto, e Teófilo Braga,
seus camaradas republicanos, nomeado, vigor a Lei da separação do Estado e das que conseguiu 98.
por decreto publicado no Diário do Igrejas. Então com 72 anos, Teófilo Braga – um dos
Governo de 6 de outubro, presidente Três anos depois, Teófilo seria eleito autores do programa do Partido Republicano
do Governo Provisório da República Presidente da República e ocuparia o
Português – cumpriu o seu mandato de transi-
Portuguesa, em funções até 24 de cargo durante pouco mais de quatro
agosto de 1911, quando foi eleito para a meses, de 29 de maio a 5 de outubro ção com o entendimento que tinha da função
Presidência Manuel de Arriaga. de 1915, entre a renúncia de Manuel presidencial. Ao contrário do seu antecessor,
Natural de Ponta Delgada, Teófilo Braga de Arriaga e a primeira eleição de que acusara de ter intervindo ilegitimamente
era filho de um miguelista enviado para Bernardino Machado. Viria a morrer em sobre o regime parlamentar, Teófilo, ao tomar
os Açores para combater a expedição 1924. posse, afirmou que o chefe do Estado apenas
assistia ao funcionamento do regime democrá-
tico parlamentar. Assim fez durante três meses.
a eleição de Sidónio Pais, em 1918 – houve Municipal de Lisboa, foi também candidato A 6 de agosto de 1915, executando o dis-
reincidências. Sebastião de Magalhães Lima, em duas eleições (1915 e 1919). Já Manuel posto na Constituição, o Congresso reuniu-se
grão-mestre da Maçonaria, personalidade Teixeira Gomes, escritor, diplomata, primeiro novamente. As eleições foram renhidas, com
reputada em Portugal e no estrangeiro, foi representante da República portuguesa em o Partido Democrático a dividir-se pelo apoio
candidato nas eleições de 1911, 1919 e 1923. Londres, foi candidato em 1919 e 1923; nesses a vários candidatos, tendo sido necessário
Quanto a Augusto Alves da Veiga, um dos mesmos anos, candidatou-se Afonso Costa, realizar um terceiro escrutínio.
protagonistas da gorada revolta republicana líder incontestado, e polémico, do Partido De- Foram sete os candidatos: general Antó-
de 31 de Janeiro de 1891, candidatou-se por mocrático. Bernardino Machado, professor nio Xavier Correia Barreto; Abílio Guerra
duas vezes: em 1911 e em 1915. O general na Universidade de Coimbra (precursor da Junqueiro, jornalista, político, porventura
António Xavier Correia Barreto, ministro Antropologia em Portugal), membro do Di- o poeta mais popular da sua época, apoiado
da Guerra, fundador do Instituto dos Pu- retório do Partido Republicano, embaixador nesta eleição pelo Partido Evolucionista; os
pilos do Exército e presidente da Câmara no Brasil (1912), foi candidato nas eleições de repetentes, Duarte Leite e Alves da Veiga;
8 VISÃO H I S T Ó R I A
Polémicas
e decisões
Chegou a pensar-se em não
haver Presidente
No debate que precedeu a aprovação
MUSEU DA PRESIDÊENCIA
da Constituição da I República
Portuguesa sobressaíram várias
questões: parlamentarismo ou
presidencialismo, quantas câmaras
teria o parlamento e que poderes
atribuir ao Presidente da República,
No palco da Grande Guerra Bernardino Machado durante a visita à frente nomeadamente o de dissolução
de combate da Flandres, em 1918 parlamentar. Uma das propostas não
previa, sequer, a figura do Presidente,
que efetuou a primeira visita de um Presiden- por receio de concentrar o poder nas
te da República portuguesa ao estrangeiro. mãos de uma pessoa e de, assim,
replicar o regime monárquico.
Interregno sidonista A opção pela eleição presidencial
indireta constituía, aliás, uma
Foi Sidónio Pais quem pôs fim ao primeiro
salvaguarda contra os receios do
mandato presidencial de Bernardino Macha- presidencialismo e servia para
do, com o golpe militar que liderou, no dia 5 justificar a não atribuição dos
de dezembro de 1917. O até então represen- poderes de veto e de dissolução do
tante de Portugal em Berlim concentrou em parlamento, pois só o sufrágio direto
si vários poderes, entre os quais a Presidência poderia legitimar tais poderes.
da República. Com uma série de decretos – A Constituição consagraria um
Parlamento bicameral (Câmara
conhecidos como «Constituição de 1918» –,
de Deputados e Senado). O poder
instituiu um regime de feição presidencialis- legislativo residia no Congresso
ta. Em 28 de abril de 1918, nas únicas eleições da República, formado pelas duas
MUSEU DA PRESIDÊENCIA
VISÃO H I S T Ó R I A 9
com o suporte do recém-criado Partido Re-
publicano Nacionalista. Sem sucesso, porém.
Manuel Teixeira Gomes foi quem venceu
a eleição para 7º Presidente da República
Portuguesa.
Descrito pelo mordomo do Palácio de Be-
lém como «um Príncipe árabe vestido em
Londres» (Fontes, 2018), a experiência de
Teixeira Gomes como diplomata não seria
suficiente para conseguir dirimir a crescente
fragmentação partidária e o ambiente de
crispação social. No dia 10 de dezembro de
1925 renuncia ao cargo e, poucos dias depois,
partirá para um exílio voluntário no Norte de
AML
Chegada a Coimbra António José de Almeida participa na abertura do ano letivo de 1919 África, na Argélia francesa, de onde nunca
regressaria.
a sala, obrigando a uma segunda votação que ‘Príncipe árabe vestido
elegeu Canto e Castro, que não escondia a sua em Londres’ As últimas eleições
simpatia pela Monarquia mas que encarou Após o quadriénio de António José de Al- Sem o saberem, os deputados que elegeram
o cargo como um «desafio patriótico» para meida, às eleições de 6 de agosto de 1923 o 8º Presidente, em 11 de dezembro de
um mandato de 294 dias. candidataram-se cinco personalidades. Au- 1925, estavam a participar nas últimas
gusto Vieira Soares era o único estreante: eleições da I República.
Um mandato cumprido na íntegra ministro dos Negócios Estrangeiros entre Quando, nessa data, o Congresso se reuniu
No dia 6 de agosto de 1919, concorreram às 1915 e 1917, foi quem recebeu a declaração para a eleição do Presidente, a República en-
presidenciais: José de Azevedo e Silva, ad- de guerra da Alemanha a Portugal. Duarte frentava uma profunda e irreversível crise de
vogado, alto-comissário de Moçambique e Leite, Magalhães Lima, Bernardino Machado legitimidade. Pode ter sido essa a razão que
procurador-geral da República; Duarte Leite, e Manuel Teixeira Gomes eram, todos, levou sete personalidades a candidatarem-
candidato pela quarta vez; general Correia candidatos reincidentes. -se, quatro delas pela primeira vez. Francisco
Barreto, numa segunda vez; Magalhães Lima, A eleição teve três escrutínios, destacan- Gomes Teixeira, matemático de renome,
também pela segunda vez e António José de do-se a competição entre Teixeira Gomes e professor e primeiro reitor da Universidade
Almeida, uma das figuras mais conhecidas e Bernardino Machado, que, sem recolher o do Porto; António de Bettencourt Rodrigues,
prestigiadas do republicanismo, em grande apoio do Partido Democrático, se candidatou médico, embaixador em Paris (1915 e 1917-
parte pela sua eloquência e capacidade retó- -18); José Jacinto Nunes, que esteve à frente
rica, que aqui reuniu apoio dos partidos Evo- da Câmara Municipal de Grândola durante
lucionista, Unionista e de alguns Democráti- várias décadas; Carlos Belo de Morais, médi-
cos. Apesar da votação renhida com Teixeira co, discípulo do dr. Sousa Martins e primeiro
Gomes, em três escrutínios, António José de diretor da Faculdade de Medicina de Lisboa;
Almeida foi eleito 6º Presidente da República. Duarte Leite; Afonso Costa; e Bernardino
Logo no início do seu mandato, a Consti- Machado, que se sagrou vencedor.
tuição foi revista, tendo sido atribuído ao Pre- Eleito aos 74 anos, Bernardino Machado
sidente da República o poder de dissolução seria o único Presidente da I República Portu-
parlamentar, após consulta do Conselho Par- guesa a desempenhar o cargo por duas vezes.
lamentar (criado para o efeito). António José Ironia da História, ou reflexo do tempo que
de Almeida utilizou por duas vezes essa prer- se vivia, das duas vezes foi deposto por golpes
rogativa, em 1921. Reclamado por muitos, o militares: em dezembro de 1917, por Sidónio
novo poder não seria, porém, a panaceia para Pais, e em 1926 pelos militares que desenca-
os males da República. No entanto, apesar dearam o golpe do 28 de Maio, instaurador
de conturbado, como todos os restantes deste da longa ditadura de 48 anos.
período, o mandato presidencial do «tribuno
* Elsa Santos Alípio pertence ao quadro do Museu
da República» foi o único a ser cumprido na Manuel Teixeira Gomes da Presidência da República e é investigadora do
íntegra, durante quatro anos. Viria a auto-exilar-sena Argélia IHC – Universidade NOVA de Lisboa
10 V I S Ã O H I S T Ó R I A
1918 e evolucionistas, estes não compareceram,
como forma de protesto contra o ditador e a
sua convocação de eleições, gerando-se assim
eleição direta
Sidónio Pais tomou o poder pela força, instalou
votações apenas puderam arrancar por volta
das 11 horas. Mesmo assim, deu entrada quase
meio milhão de votos (segundo os números
oficiais, 470 831), tendo sido eleito Presidente
da República Sidónio Pais.
uma ditadura pessoal e depois procurou legitimidade
numa espécie de referendo Apoiado pela Inglaterra
A
Apontado por vezes como um antecessor
o início da tarde do dia dos fascismos, Sidónio tinha
28 de abril de 1918, um sido representante diplomáti-
domingo, apresentou- co de Portugal em Berlim até
-se no claustro da Casa à declaração de guerra entre o
Pia, em Lisboa, um nosso país e a Alemanha, e era
cavalheiro vestido de visto como germanófilo. O Corpo
preto e de cartola para exercer Expedicionário Português, que
o que entendia ser um direito, combatia na Flandres no quadro
mas decretado pelo próprio. Era da I Guerra Mundial, ressentiu-se
o major Sidónio Pais, na sua ver- de falta de apoio na retaguarda,
são civil de «dr. Sidónio Pais» e sofrera menos de três semanas
VISÃO H I S T Ó R I A 11
1926-1974 O Estado Novo impôs o sufrágio direto por
decreto. O Presidente passou a ser “legitimado”
Ditadura
pelo voto popular, mas o processo era fortemente
manipulado. Depois de 1958, a votação foi entregue
a um colégio eleitoral controlado pelo regime,
evitando-se, assim, novas surpresas
O OUTRO CANDIDATO
966 821
738 065 743 763
12 V I S Ã O H I S T Ó R I A
NOTA Os dados sobre as eleições de 1928, 1935, 1942 e 1958 são retirados das atas
publicadas pelo Tribunal da Relação de Lisboa e pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ),
que, primeiro um e depois outro, tinham a função de fiscalizar as eleições presidenciais.
As atas de 1949 e 1951 não foram encontradas. Relativamente a esses sufrágios,
optámos por publicar os dados sobre o número de eleitores e de votantes retirados
de “O Partido e o Estado no Salazarismo”, de Manuel Braga da Cruz (ed. Presença),
elaborados com base nas atas gerais de apuramento dos resultados eleitorais
do Ministério do Interior para o continente e ilhas (sem ex-colónias).
Os dados sobre os sufrágios de 1965 e 1972 são retirados das atas dos respetivos
colégios eleitorais, consultadas no Arquivo Histórico Parlamentar
ELEITORES INSCRITOS
(CONTINENTE E ILHAS)
1 250 746
VOTANTES 965 236 FONTE Ata da assembleia
(77,2%) de apuramento dos resultados
COLÉGIO ELEITORAL COLÉGIO ELEITORAL
eleitorais, realizada pelo
STJ a 27 de junho de 1958
76%
24%
TOTAL TOTAL
585 669
VISÃO H I S T Ó R I A 13
ELEIÇÕES // DITADURA
1928
O apoio plebiscitário
O essencial da governação da ditadura fica aqui traçado:
ao lado de um Presidente da República militar
e consagrado por «eleição» direta plebiscitária
passa a erguer-se o «ditador» com poderes irrestritos
por Luís Farinha*
E
m 25 de março de 1928, 22 meses Quem são estes «condutores» ocultos a quem
depois da implantação da Ditadura Óscar Carmona – um «soldado impoluto» e
Militar, o «mais alto magistrado da apolítico – dá cobertura? São ainda militares,
Nação» vê o seu poder robustecido mas militares «políticos». O general Sinel de
pela indicação de acordo expressa por Cordes, ministro das Finanças da Ditadura
‘Eleições’ encenadas
Neste contexto, o Presidente da República,
Óscar Carmona (em exercício desde 26 de
novembro de 1926, pelo Decreto nº 12 740
emanado do seu próprio Governo), considera
que o grau de «União do Exército» atingido –
ou seja, de exclusão dos militares democratas
–, lhe permite «encenar» uma operação de
bipartidário e com governação forte, como nas Legações da França e dos Estados Unidos, apoio plebiscitário à manutenção da Ditadura
preconizavam militares conservadores como em Lisboa, uma «Declaração» política. Nessa Militar. E mesmo para apontar linhas de orien-
Passos e Sousa ou Ivens Ferraz? Um regime «Declaração», as oposições repudiavam as tação política que sejam já indicadoras do fu-
presidencialista, de inspiração sidoniana, condições do «empréstimo externo» e afir- turo que se pretende. O Decreto-lei nº 15 063,
como o que por aquela altura vigorava na mavam que não reconheciam a legitimidade que abre o processo de eleição do Presidente
Espanha de Primo de Rivera? Ou ainda uma constitucional dos ditadores para falarem da República e marca o dia 25 de março para
terceira via, de pendor corporativo, como em nome da Nação em matéria tão decisiva. o ato, determina que o mesmo seja realizado
aquela que se tinha imposto em Itália? por escrutínio direto dos cidadãos maiores
Ainda sem a hegemonia ideológica da de 45 anos. Num sistema eleitoral altamente
«escola de Coimbra», o momento era de restritivo não deixa, no entanto, de manter a
indecisão política. As eleições de março de via eleitoral para a escolha do Presidente da
1928 têm um claro objetivo – o de consa- República que, de forma muito significativa
grar o patamar de «Ordem» atingido sob a também, terá o seu mandato alargado para
direção da Ditadura Militar como ponto de sete anos. Antes da via corporativa que vai
partida para novas arremetidas nos domínios implantar-se a partir de 1933 com Oliveira Sa-
financeiro, económico e político. Na verdade, lazar, os militares presidencialistas (à maneira
nestes campos muito pouco tinha ainda sido do «Presidente-Rei» Sidónio Pais) apontam o
MUSEU DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA
feito. Em Genebra, o ministro Sinel de Cordes caminho que conhecem e em que alguns deles
(e depois Ivens Ferraz) tinham sido incapa- tiveram papel preponderante. O processo de
zes de negociar a contento o «empréstimo legitimação dos órgãos políticos pode muito
externo», até pelas dificuldades criadas pela bem passar por «eleições», desde que devida-
«oposição exilada» (em dezembro de 1927) e mente «encenadas» com a coadjuvância de
mesmo pelos setores republicanos ainda ati- um «partido nacional», como aconteceu com
vos que, em janeiro desse mesmo ano, haviam Óscar Carmona «Soldado escravo Sidónio Pais e irá acontecer, a partir de 1930,
entregue na embaixada da Grã-Bretanha e do Dever e da Honra» com a «União Nacional». Desta engenharia
VISÃO H I S T Ó R I A 15
ELEIÇÕES // DITADURA
política há de surgir a trilogia capaz de garantir do que aconteceu com Sidónio Pais, não se que desde há muito tinha definido a sua posi-
por um lado a aparência de um escrutínio trata, desta vez, de obter a sua «consagração ção política e a que «os erros inveterados da
livre e, por outro, a condução política do País pelo povo, mas sim a consagração da Ditadura governação do Estado» tinham dado a opor-
sob a ditadura das classes dominantes – um Militar». Com Sidónio Pais, os portugueses ti- tunidade para sair à liça: liderando o golpe
Presidente, um Partido, um Governo. nham votado «no homem», segundo Carmona. de Estado de 28 de Maio de 1926, de forma
É certo que, como afirma um dos cronistas Para propaganda da ideia e do ato – realizado, sediciosa, na 4ª Região Militar (Évora), de
deste tempo, o jornalista americano William segundo o seu biógrafo Leopoldo Nunes, sem onde tinha sido afastado algum tempo antes;
Smyser, se trata de uma «ditadura sem dita- «caciquismos nem combinações políticas» – promovendo (como promotor de Justiça) a
dor». De resto, Óscar Carmona não só faz jus a «campanha eleitoral fez-se sem acordos de condenação judicial (e política) dos ministros
a esta opinião como sabe que a sua liderança partidos nem exageros de retórica». do Governo republicano chefiado pelo coronel
se irá manter enquanto, com «prudência» e Manuel Maria Coelho (1921); e, de forma
«ponderação», conseguir «restabelecer, sem ‘Low profile’ ainda mais concludente, ilibando de qualquer
violência, a ordem na rua e nos espíritos». Em Para toda esta «encenação» tinha concorrido culpa os implicados na revolta de 18 de abril de
declarações ao Diário de Lisboa do dia seguinte da melhor forma o «soldado, escravo do Dever 1925 – um ensaio antecipado do 28 de Maio
às eleições, Carmona afirma que, ao contrário e da Honra», Óscar Carmona, um low profile de 1926. Entre outros, Filomeno da Câmara
16 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Tomada de possede
Carmona em São Bento, a 15
de abril de 1928
Três dias depois,
seria empossado
o 4º Governo da Ditadura
VISÃO H I S T Ó R I A 17
ELEIÇÕES // DITADURA
Propaganda
eleitoral Cartazes
das campanhas
de Norton de
Matos e de Óscar
Carmona. Em baixo,
Norton de Matos
1949
Um ato de liberdade
após 22 anos de medo
Foi preciso esperar mais de 20 anos para que surgisse,
com Norton de Matos, uma candidatura oposicionista
à Presidência. Mas o jogo da ditadura continuava
a estar viciado
‘A
por Helena Pinto Janeiro *
8 VISÃO H I S T Ó R I A
18
nem a pergunta nem a resposta passaram O candidato de Salazar
pelo crivo do censor de serviço. As 'eleições' permitiam E alguma mobilização seria necessária,
E o que estava em jogo nas eleições presi-
denciais portuguesas de 1949? Em primeiro
ao regime medir o pulso atendendo a que o candidato patrocina-
do por Salazar, o marechal Óscar Fragoso
lugar, convém que não nos deixemos iludir das oposições, para Carmona (1869-1951), era Presidente da
pela palavra «eleição». Na verdade, todo o
processo eleitoral estava viciado de modo a
conhecer os seus novos República há já 22 anos. Após ano e meio
a exercer interinamente o cargo, por de-
dar a vitória ao candidato oficial. A viciação protagonistas e mais creto de 26 de novembro de 1926 assinado
começava pelo controlo apertado do período
prévio de recenseamento eleitoral, para exclu-
eficazmente as reprimir pelo próprio, enquanto chefe do governo
da ditadura militar, e pelos ministros do
são de eleitores conhecidos como oposicionis- seu governo, Carmona fora eleito e reeleito
tas, mesmo quando cumpriam os requisitos para a mais alta magistratura da Nação em
exigidos por lei. Continuava na não divulgação três eleições sucessivas, em 1928, 1935 e
pública dos cadernos eleitorais, de modo a As eleições facilitavam a medição do pulso 1942. Na prática, na ausência de candidatos
dificultar a fiscalização das irregularidades e a às oposições, para melhor conhecer os novos alternativos que se prestassem a ser parte
inviabilizar o recurso dos excluídos como elei- protagonistas e, em consequência, mais efi- de um simulacro eleitoral, estas eleições
tores e a correção dos cadernos em tempo útil. cazmente os reprimir. Permitiam, por outro funcionaram como verdadeiros plebiscitos
E era extraordinariamente facilitada pelo não lado, dar um novo fôlego à mobilização das de Carmona.
fornecimento, pelo Estado, de boletins de voto bases de apoio da Situação, passada que fora No final da década de 1940, exibindo
exteriormente iguais (no tipo de papel, grama- a combatividade do período de afirmação e já sinais de decadência mental que não
gem, cor, dimensão) para todos os candidatos, consolidação das suas instituições. passam despercebidos às chancelarias es-
tendo de ser estes últimos a produzir os seus
boletins e a distribuí-los aos seus potenciais
eleitores. O objetivo era que fosse visível a olho
nu, quando o eleitor colocava o boletim de voto
do seu candidato na urna, quem não votava no
candidato oficial. Impossibilitava-se, assim, o
sigilo do voto, facilitando represálias futuras.
E, mesmo se tudo isto bastava para assegurar
um resultado a favor do regime, a obstrução
à fiscalização do ato eleitoral por delegados
da oposição era generalizada, possibilitando
que, em caso de necessidade, fossem tomadas
medidas adicionais para garantir que o re-
sultado fosse o previamente determinado. O
FMS
20 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Comício pró-Norton
de Matos A sessão A farsa
na Voz do Operário,
em Lisboa, a 10 de das eleições
fevereiro de 1949,
vendo-se na mesa,
Nas eleições presidenciais
ao lado de Maria de 1949, o processo estava
Lamas, que usa viciado à partida. O regime
da palavra, Manuel fazia o que fosse necessário
João da Palma para dificultar a vida à
Carlos e Cesina oposição, nomeadamente:
Bermudes, a médica
que introduziu em
Portugal o método controlo do período prévio
do parto sem dor. de recenseamento eleitoral para
O tema da mulher exclusão dos eleitores oposicionistas,
foi um traço forte
mesmo quando cumpriam a lei
da campanha,
patente em muito
material de não divulgação pública dos
propaganda cadernos eleitorais, dificultando
a fiscalização de irregularidades
e inviabilizando o recurso dos
excluídos como eleitores, bem
como a correção dos cadernos
VISÃO H I S T Ó R I A 21
ELEIÇÕES // DITADURA
FMS
FMS
FMS
Multidão No comício de 23 à sua candidatura é um poderoso argumen- da I República, vem ganhar uma relevância
de janeiro de 1949 no Porto
to de propaganda para o regime, reforçado a vários títulos excecional.
(no Centro Hípico, junto à Fonte
da Moura), estiveram presentes pelo contexto internacional da Guerra Fria, Palavras incendiárias de velhos livres-
mais de cem mil pessoas então na sua fase mais aguda. Juntando-se -pensadores e de novas protagonistas no
a estes dois, o argumento religioso, um clás- feminino, no campo oposicionista (com
sico no ataque do Estado Novo aos políticos destaque, respetivamente para Tomás da
O apoio do PCP à
candidatura de Norton
de Matos foi um poderoso
instrumento
de propaganda para
o regime, em tempos
EPHEMERA
de Guerra Fria
22 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Fonseca e Palmira Tito de Morais) suscitam
uma reação em cadeia do outro lado da bar- Os momentos
ricada que muda a maré da campanha. Da
defensiva, o regime passa à ofensiva. Para
de liberdade
a linha da frente dos ataques à oposição experimentados durante
surgem as mulheres, juntamente com uma
nova geração de jovens católicos de ambos
a campanha não foram
os sexos, que nascem para a vida pública suficientes estas
nesta ocasião, discursando ou participando
em comícios, ou assinando listas de apoio
eleições nem livres
a Carmona por todo o País, num ato de nem justas
desagravo do que é apresentado como um
insulto à consciência católica da nação e à
dignidade feminina.
Ao contrário destas últimas, e de todos
os que deram um banho de multidão a Car- cias. Como o episódio, aparentemente menor,
mona num comício no Porto nas vésperas relatado, com embaraço, por um capitão dos
das eleições (250 mil pessoas, a acreditar n’O serviços de censura, de a participação em co-
Século Ilustrado, de 12-2-49), a participação mícios de apoio a Norton de Matos no Algarve
dos muitos milhares de mulheres e homens, ter custado a duas jovens alunas a expulsão do
jovens e menos jovens, em sessões de apoio liceu de Faro e o banimento do ensino público
'Diário da Manhã' O jornal oficial do regime
à candidatura oposicionista por todo o País, tece louvores a Carmona oficial. A mesquinhez da decisão e a juventude
era frequentemente pesada de consequên- das visadas são porventura mais reveladoras
do que, no Portugal de há pouco mais de 70
anos, significava desafiar o medo e atrever-se
a um ato de liberdade, do que as purgas de
funcionários públicos e as prisões de apoiantes
do candidato oposicionista, que se aceleraram
no rescaldo do ato eleitoral, ao qual Norton de
Matos acabara por não se apresentar, retiran-
do-se no último momento. Os entusiasmantes
momentos de liberdade experimentados du-
rante a campanha por muitos portugueses não
lograram tornar as eleições presidenciais de
1949 nem livres nem justas.
VISÃO H I S T Ó R I A 23
ELEIÇÕES // DITADURA
1951
Uma solução
de continuidade
Calados os defensores da restauração da monarquia e
formalizado o «não» de Salazar ao Palácio de Belém, a
União Nacional escolheu outro militar, Craveiro Lopes,
para suceder ao marechal Carmona. Os candidatos
da oposição, Quintão Meireles e Rui Luís Gomes, não
chegaram a votos
por Pedro Vieira
A
morte de Óscar Carmona, em 18 de durante anos, como um monarca, presidira à
abril de 1951, abriu um novo capítulo marcha do Estado consubstanciando o espírito
político que interpelava tanto o regi- da Revolução Nacional».
me como a oposição. O regime teme Afinal, as coisas não eram tão simples. «Com
a potencial instabilidade gerada pela ar irritado», Mário de Figueiredo disse alto e
substituição de um Presidente que bom som para Caetano ouvir: «Esta é a altura
representava o golpe militar do 28 de Maio e de decidirmos se continuamos em República
a instauração da ditadura. A oposição, tanto ou restauramos a monarquia.» Confessa: «Caí
MPR
a tradicional como a do clandestino Partido das nuvens.» Era o início de uma controvérsia
Comunista Português, vive o refluxo das pre- que não morreria com a eleição presidencial e
Na Universidade de Coimbra
sidenciais de 1949. viria a dominar o congresso do partdo único. Craveiro Lopes, já Presidente,
Apesar da degradação do estado de saúde Nem rei nem militar. Era outra a carta de visita a instituição, em 1953
de Carmona, o regime não estava preparado Caetano: convencer o chefe do governo a
para os abanões provocados pelo seu desapa- candidatar-se a Presidente da República. «A
recimento. Em Minhas Memórias de Salazar, corrente de opinião favorável à candidatura
Marcelo Caetano, então presidente da Câmara de Salazar, muito grande já dois anos antes,
Corporativa, conta como soube do aconteci- engrossou desta vez enormemente», escreve.
mento. Estava a dar uma aula na Faculdade de Prodigalizou-se em argumentos. Em vão. Dissidentes do 28 de Maio
Direito quando chega um telefonema urgente Em nota de 5 de junho, Salazar reconhece A candidatura de Quintão Meireles é lançada,
da União Nacional. «Nunca interrompi uma que a solução preconizada era lógica, simples antes de mais, por militares descontentes
aula», escreve. «Só quando terminou mandei e segura como garantia de continuidade da com o rumo do País, entre eles Mendes Ca-
ligar para a União Nacional donde o Augusto direção dos negócios públicos. Contudo, diz, beçadas e Henrique Galvão. São dissidentes
Cancela de Abreu, então presidente da comis- «não tenho resistência moral nem possivel- do 28 de Maio a que se agregaram figuras
são executiva, me deu a notícia.» mente física para começar vida nova». Ficou republicanas como António Sérgio, Mário
Ao chegar ao Largo Trindade Coelho, Cae- assim aberta a via para anunciar o candidato de Azevedo Gomes e Jaime Cortesão. Egas
tano encontrou «todos com cara de caso». Os do regime, general Francisco Higino Craveiro Moniz, Prémio Nobel da Medicina em 1949,
próceres do regime que confluíram para a sede Lopes (1894-1964). ainda foi indicado por Norton de Matos. Mas
do partido único já tinham decidido adiar o Na calha já estão os outros dois candida- recusou e declarou apoio ao almirante.
congresso da UN marcado para maio. Ficou tos, que encarnam as profundas divisões da Quintão Meireles visa «a pacificação en-
surpreendido com o adiamento, pois estava oposição: o almirante Manuel Carlos Quintão tre todos os portugueses» e o cumprimento
previsto «pelos homens e pela Constituição» o Meireles (1880-1962) e o prof. Rui Luís Gomes «sem sofismas» das disposições constitucio-
que se deveria seguir «à perda do velhinho que (1905-1984). nais. Defende, por isso, o pluripartidarismo e
24 V I S Ã O H I S T Ó R I A
MPR E EPHEMERA
Propaganda eleitoral Material de campanha
de Craveiro Lopes e de Quintão Meireles
as liberdades públicas (sem pôr em causa «a amistosas com os EUA e o empenhamento Amordaçado, publicado em 1972 em Fran-
extensão territorial ultramarina» do País). No na NATO. A Guerra Fria marcava o ambiente ça, a candidatura de Quintão Meireles «veio
entanto, afirma: «Não é minha intenção nem internacional. Aliás, numa alusão ao PCP e demonstrar a divisão do campo situacionista
desígnio derrubar um regime, promover uma à URSS, recusa «quaisquer entendimentos, e dirigiu-se, sobretudo, à denúncia dos es-
convulsão, agitar uma nova ideologia (…) mas ligações ou formas de aparentamento com o cândalos financeiros do regime sem poupar
sanear um estado de coisas incompatível com o grupo que propõe a candidatura do sr. prof. dr. os grandes oligarcas».
bem-estar coletivo.» No seu manifesto político Rui Luís Gomes ou com quaisquer grupos ou Natural de Freixo de Espada à Cinta, Quin-
afirma que «o País está doente» e alude ao partidos cuja ação se encontra direta ou indi- tão Meireles era primeiro-tenente quando,
«Medo [com maiúscula] que pesa sobre tantas retamente na dependência de uma potência em 1914-1915, comandou uma companhia
almas». No plano externo, defende relações estrangeira». de Infantaria da Marinha no sul de Angola,
Ao mesmo tempo, em comunicados da can- em guerra com os alemães. Em 1928-1929,
didatura e em cartas dirigidas ao presidente do foi ministro dos Negócios Estrangeiros no
Conselho, denuncia o clima de corrupção no governo do general José Vicente de Freitas.
País, a censura e os atropelos à liberdade elei- A sua carreira militar incluiu a participação
A campanha de Quintão toral, e a supressão do recenseamento eleitoral em comissões de construção naval em Itália,
dos inscritos tidos por não incondicionais do Alemanha e Inglaterra.
Meireles foi lançada regime. As respostas, tentando explicar casos Quintão Meireles fez apenas um comício em
por militares concretos apontados pelo candidato, não vêm Lisboa, na Garagem Monumental, ao Areeiro
de Salazar, mas do ministro da Presidência, (o ministro do Interior recusou-lhe o ginásio
descontentes João Pinto Costa Leite (Lumbralles). do Liceu Camões), «memorável», diz Soares.
com o rumo do País Para Mário Soares, no livro Portugal No Porto, não fez qualquer sessão de propa-
VISÃO H I S T Ó R I A 25
ELEIÇÕES // DITADURA
FMS
FMS
ganda, porque todas as salas se lhe fecharam. Supremo Tribunal de Justiça, em 12 de junho. «como um homem de alta categoria científica
A 19 de julho, acabaria por retirar a candi- O mesmo STJ, em acórdão de 13 de julho, re- e de rara honestidade e coragem moral, face
datura. Fê-lo num manifesto «à consciência cusou a candidatura, com base numa cláusula ao inimigo», acrescentando, porém, que «não
da Nação» e em carta a Salazar, onde alega introduzida na recente revisão da Constituição terá nascido para a política».
que, «perdidas todas as esperanças de alcan- de 1933: «Não poderão propor-se ao sufrágio Acusado de traição, Rui Luís Gomes esteve
çar a liberdade de propaganda que V. Exª me os candidatos que não ofereçam garantias de preso de 1954 a 1957 e partiu depois para o
assegurou, e adquirida a certeza de que o ato respeito e fidelidade aos princípios fundamen- exílio na Argentina e no Brasil. Regressou a
eleitoral não decorreria nas condições indis- tais da ordem política e social.» Da campanha, Portugal após o 25 de Abril de 1974, tendo sido
pensáveis à seriedade das minhas intenções, restou apenas o apelo à abstenção. membro do Conselho de Estado no período
a luta tornava-se impossível». Antes, a 3 de julho, segundo o Avante!, Rui de transição.
Luís Gomes, Virgínia Moura, José Morgado No balanço do período eleitoral, o Avante!
Rui Luís Gomes travado e Lobão Vital foram agredidos em Rio Tinto, 160, de agosto de 1951, escreve em título
No mês seguinte ao falecimento de Carmona, após uma sessão de propaganda. Mário Soares «Triunfou a orientação do Partido! O salaza-
o nº 159 do jornal clandestino Avante!, traça assinala que «em Lisboa, a candidatura de Rui rismo foi desmascarado e isolado.» Também
um perfil do candidato do PCP à medida de Luís Gomes encontrou pouco eco». Define-o, ataca «a clique do almirante Quintão Meireles,
Rui Luís Gomes: «Democrata amigo da Paz reserva da grande burguesia e do imperialis-
que goze do apoio do MND.» Figura de proa mo». E escreve, num eco dos alinhamentos
do MND (Movimento Nacional Democrático), subjacentes ao conflito Leste-Oeste: «Mesmo
criado em 1949, Rui Luís Gomes é um pro- nas sessões públicas da candidatura Meireles
fessor e investigador de prestígio firmado na Craveiro Lopes surgiu as massas populares mostraram o seu repúdio
área da matemática. Foi professor de Física pelos ataques caluniosos contra a União Sovié-
Matemática na Universidade do Porto, sua
aos olhos da União tica e o seu amado chefe, camarada Stáline.»
cidade natal, de 1930 a 1947, ano em que foi Nacional como Por outro lado, o Avante! acusa de «opor-
demitido por razões políticas. tunismo» os elementos do MND e do próprio
De pouco lhe valeu ter sido o primeiro
o candidato ideal para partido que defenderam a candidatura de Egas
candidato a entregar o respetivo processo no continuar Carmona Moniz e que, após a decisão de não idoneidade
26 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Ao lado de
Salazar Craveiro
Lopes distribui
cumprimentos na sua
tomada de posse,
no dia 9 de agosto
de 1951
MPR
de Rui Luís Gomes, «defenderam que se deve- bolo, «a sua vida de família era muito digna e tão Meireles faz-lhe um pedido: «Reclamar
ria votar no fascista dissidente Alm. Meireles». estava casado com uma senhora de porte dis- dos poderes públicos absoluta honestidade
tintíssimo, Dona Berta Craveiro Lopes». Esta eleitoral, para o que devemos ser postos em
Craveiro Lopes, ‘Candidato referência espelha a importância que Caetano condições de igualdade no tocante a propa-
Nacionalista’ dava ao papel da primeira dama. Como se viu ganda e a fiscalização das urnas, e devem
Quando, em 20 de junho, a União Nacional depois, em 1972. Quando foi incitado a avançar abster-se os órgãos do Estado de quaisquer
revelou o nome do «Candidato Nacionalista para Belém em vez do Presidente em funções, coações ou intervenções tendentes a impedir
à Chefia do Estado», a escolha de Craveiro Américo Tomás, objetou com o facto de ser a liberdade de voto».
Lopes já tinha quase três semanas. A sugestão viúvo. Em conversa com Freitas do Amaral, Craveiro Lopes responde a 5 de julho: «Ten-
partiu de Augusto Cancela de Abreu, numa transcrita no livro de memórias deste O Antigo do V. Exª declarado que tencionava dar publi-
reunião da comissão central da UN. Segundo Regime e a Revolução, Marcelo Caetano disse cidade à carta e dela enviar cópia ao senhor
José Manuel Tavares Castilho em Marce- em tom de desabafo: «Para ser Presidente da presidente do Conselho, nada se me oferece
llo Caetano, uma biografia política, surgiu República, eu teria talvez de voltar a casar. dizer a V. Exª sobre o seu conteúdo.» Em nova
como «o candidato ideal» para continuar Não digo que não houvesse pretendentes… missiva, Quintão Meireles pergunta: «Quererá
Carmona e ser «um presidente fraco e pouco Mas não acha que com isso eu poderia vir a isto dizer que a V. Exª seja indiferente que
interveniente». ser muito criticado?» a sua elevação à Chefatura do Estado possa
Nascido em Lisboa, numa linhagem de Em conferência de Imprensa a 25 de junho, decorrer de uma fraude eleitoral em prepa-
militares que vinha do trisavô, a carreira das Craveiro Lopes faz uma declaração formal de ração, segundo todos os indícios?» A 22 de
armas surge como opção natural. Mobilizado «dedicação e serviço à Pátria» para explicar julho de 1951, na expressão de Meireles, o
em 1915, o alferes Craveiro Lopes participa porque anuiu ao convite para se candidatar. Presidente da República foi «nomeado por
em operações militares na fronteira de Mo- Uma particularidade dessa declaração é não mera formalidade eleitoral».
çambique com a colónia alemã do Tanganica. ter qualquer referência a Salazar. Tinha-se A tomada de posse de Craveiro Lopes, a 9
Em 1918, quatro anos depois da criação encontrado com o presidente do Conselho de agosto, na Assembleia Nacional, teve uma
da Aeronáutica Militar, faz o curso de pilo- em 17 de junho. Uma entrevista de cinco convidada especial: Christine Garnier, autora
to-aviador em França. A sua carreira leva- minutos. Segundo confidenciou a Marce- do livro Férias com Salazar. Descurando a
-o dez anos à Índia Portuguesa. Quando se lo Caetano, «saiu com a sensação de estar distinção entre de jure e de facto, a jornalista
candidata, além de comandante da Região atordoado». Foi o prenúncio de uma relação francesa escreveria a propósito desse ato, de
Militar de Tomar, era também comandante difícil ao longo dos sete anos de mandato. acordo com Filipe Ribeiro de Meneses, bió-
da Legião Portuguesa e deputado à Assem- Há um confronto epistolar que fez a exce- grafo de Salazar: «Em Portugal, é grande a
bleia Nacional. ção numa campanha de desfecho anunciado. importância do Chefe do Estado. É ele que
Marcelo Caetano encontra em Craveiro Em carta a Craveiro Lopes do início de julho, controla a vida política nacional, escolhe o
Lopes «um conjunto de qualidades que difi- considerando que o candidato da UN está Presidente do Conselho e o mantém no Poder
cilmente outro reuniria». E, cereja em cima do a beneficiar dos favores do Estado, Quin- pelo tempo que julga conveniente.»
VISÃO H I S T Ó R I A 27
Porto sentido
O banho de multidão
de Humberto Delgado
na Invicta é a imagem
forte das eleições
presidenciais de 1958,
as únicas em que um
candidato oposicionista
chegou até às urnas
1958
O GENERAL SEM MEDO
E O ALMIRANTE SEM VOZ
O extrovertido Humberto Delgado contra o discreto Américo Tomás, apagado
representante de Salazar. Esta campanha em tempos de dura repressão é um marco
na luta das forças democráticas antiditadura
por Luís Almeida Martins
28 V I S Ã O H I S T Ó R I A
VISÃO H I S T Ó R I A 29
ELEIÇÕES // DITADURA
N
o dia 10 de maio de 1958, jornalistas não hesitou em responder, na sua voz rápida
portugueses, correspondentes es- e sacudida: «Demito-o, obviamente.» Esta
trangeiros e muito público curioso frase fez dele a figura do momento, ultrapas-
(e corajoso) enchiam o café Chave sando em popularidade os futebolistas Águas
d’Ouro, no Rossio lisboeta. O general ou Matateu ou o ciclista Alves Barbosa, e
Humberto Delgado ia dar uma con- catapultou-o para as manchetes da imprensa
ferência de imprensa para apresentação da internacional. Passou a ser conhecido por «o
sua candidatura à Presidência da República. General sem Medo»
Vivia-se um tempo de opressão, terror A eleição estava marcada para 8 de junho,
persecutório e paz podre imposta por uma quase um mês depois da sessão do Chave
polícia política de métodos brutais e assusta- d’Ouro. Haveria, pois, bastante tempo para
dores – a PIDE, que atuava às ordens diretas pôr de pé uma campanha «à americana»,
do ditador Salazar, o «eterno» presidente do com comícios, ações de rua e banhos de mul-
Conselho. Depois das atribuladas décadas tidão. Delgado, um antigo adepto da ditadura
de 1930 e 1940, marcadas pela guerra civil que às tantas entrara em rota de colisão com
de Espanha, a revolta dos marinheiros no ela e fora por isso enviado para prolongadas
Tejo, o falhado atentado à bomba contra missões de serviço no Canadá e nos Estados
Salazar, os difíceis equilíbrios da «neutra- Unidos entre os finais da década de 1940 e
lidade colaborante» (com a Alemanha nazi) meados da de 1950, inspirava-se na campa-
na II Guerra Mundial e os sobressaltos das nha presidencial de Dwight Eisenhower, a
eleições legislativas de 1945 e presidenciais que assistira in loco. Tudo muito diferente
de 1949 (ambas orquestradas e controladas do pomposo cinzentismo oficiado pelos ritua-
pelo regime), o Estado Novo salazarista vi- lísticos serventuários do regime salazarista.
via um período particularmente tranquilo. Durante aquele mês haveria um arreme-
ANTT
30 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Nas ruas do Porto A visita à
segunda cidade do País foi um
passeio triunfal para o candidato
independente. Ao fundo da
página, material de propaganda
de Tomás e de Delgado
VISÃO H I S T Ó R I A 31
ELEIÇÕES // DITADURA
32 V I S Ã O H I S T Ó R I A
D.R.
Estação de Santa Apolónia À chegada do Porto, Humberto Delgado foi aplaudido na gare por muitos lisboetas em delírio,
mas a polícia não o deixaria seguir para as ruas da Baixa, forçando a comitiva a desviar-se para a zona oriental da cidade
guês no organismo internacional da aviação Encarregou-se o pedagogo e ensaísta An- ainda quando este não rompera totalmente
civil e daí seguiu para os EUA imbuído das tónio Sérgio de fazer avançar a candidatura com o regime, e desafiara-o a apresentar-se
funções de adiado militar e, depois, de chefe do general rebelde, estabelecendo o contacto como candidato da oposição à Presidência da
de missão em Washington. O longo convívio pessoal e lançando a ponte com o grupo de República. A princípio hesitante, Delgado ficou
com sistemas democráticos, juntamente com oposicionistas portuenses que a concretizou. de ponderar e acabou por lhe manifestar a sua
uma propensão natural para a denúncia de O primeiro a lembrar-se do nome de Delgado concordância através de uma carta cifrada. Da
injustiças, levaram-no a alterar a perceção para Belém fora, no entanto o capitão Henrique cadeia, Galvão conseguiu fazer chegar a suges-
que tinha do regime português. De adepto Galvão, também antes afeto ao Estado Novo tão a António Sérgio, que aprovou a ideia e se
entusiástico passava a inimigo figadal. (fora comissário da Exposição Colonial de 1934 bateu por ela. Embora independente, o ensaísta
Estava-lhe reservado um lugar na História e primeiro diretor da Emissora Nacional, em tinha ligações ao Diretório Democrato-Social,
quando se tornou protagonista da eleição pre- 1935) mas entretanto expulso do Exército e do qual recebeu luz verde.
sidencial de 1958. Na época, duas organizações condenado a uma longa pena de prisão sob a António Sérgio e Humberto Delgado en-
polarizavam a oposição «tolerada» sempre que acusação de ter conspirado contra o regime, contraram-se no final de 1957, tendo o inte-
havia encenação eleitoral: o Diretório Demo- aliciando camaradas para a ação e redigindo lectual sugerido ao general que só entrasse
crato-Social e a Comissão Cívica Eleitoral. O panfletos. Já antes, na Assembleia Nacional, em cena mais perto da data da eleição. Trata-
primeiro pensara apresentar como candidato tecera críticas à forma como eram conduzi- va-se não só de salvaguardar a tranquilidade
o historiador Jaime Cortesão, e a segunda, de das as relações laborais na colónia de Angola. do general e da sua família, mas também de
influência comunista, Francisco Cunha Leal, Galvão fora visitado na cadeia por Delgado, preparar o terreno no seio da oposição, pois
um velho político e antigo chefe de governo o ex-chefe da missão militar portuguesa em
da I República. Este, que tinha anticorpos Washington era visto como um produto do
decorrentes da sua longa carreira política, viria Estado Novo e o seu americanismo valera-lhe
depois a ser substituído por Arlindo Vicente. mesmo a alcunha de «General Coca-Cola»,
Quanto a Cortesão, embora se tratasse de uma Foi o intelectual lançada pela PIDE e largamente ecoada pelos
figura cultural e cívica exemplar, dirigente das comunistas. Não se tratava apenas de abrir ca-
revoltas do «reviralho» de 1927 e referência
António Sérgio que pôs minho à candidatura no âmbito do Diretório
moral da oposição no exílio nos primeiros em marcha a candidatura Democrato-Social, mas também na Comissão
tempos da Ditadura Militar e do Estado Novo, Cívica Eleitoral, de forte influência comu-
acabou por ser visto como insusceptível de
de Humberto Delgado, nista, e para penetrar nesta estrutura Sérgio
despertar grandes entusiasmos entre um povo mas a sugestão fora privilegiou o contacto com Manuel Sertório.
anestesiado. Foi neste contexto que surgiu a Para além do Partido Comunista, a própria
hipótese de apresentar o nome, então sur-
do militar oposicionista oposição tradicional, herdeira da I República
preendente, de Humberto Delgado. Henrique Galvão e do «reviralho», não encarava com bons
VISÃO H I S T Ó R I A 33
ELEIÇÕES // DITADURA
GETTY IMAGES
D.R.
Salazar vota O momento em que o ditador depõe na urna o boletim
com o nome do seu candidato, Américo Tomás
olhos a candidatura a Belém de um militar até Vicente e pela transferência dos votos deste Banhos de multidão
então afeto ao regime. Mas onde muitos viam para Delgado. O acordo ficaria conhecido por A deslocação de campanha ao Porto foi o
inconvenientes, Sérgio detetou a vantagem de «Pacto de Cacilhas», por ter resultado de um elemento estruturante do mito e da glória de
um general no ativo ser um fator mais mobi- encontro entre o general e o advogado-ar- Humberto Delgado. Apanhado de surpresa, o
lizador da população do que a figura apagada tista (ver texto à parte) no teatro de Almada regime não acionou grandes mecanismos re-
e desgastada de um oposicionista tradicional. onde decorreu um comício do general, e por pressivos, o que permitiu que uma multidão
Quanto a Arlindo Vicente, beneficiava do onde passou a caravana de Arlindo Vicente avaliada em cerca de metade da população
apoio do PCP, polarizando a oposição que no regresso de uma digressão eleitoral pelo da segunda maior cidade do País enchesse
não simpatizava com a figura de Delgado. Alentejo. Na mesma ocasião, Delgado com- as ruas da Baixa ao final da tarde de 14 de
prometia-se a não desistir antes da ida às maio, vitoriando o candidato que quatro dias
Candidato independente urnas, ao contrário do que sempre fizera a antes se atrevera a formular a intenção de
Depois de muitas conversações, acabaram por oposição das vezes anteriores. O programa demitir Salazar.
apoiar também Delgado o Diretório do Par- da candidatura independente enfatizava a Já à partida de Lisboa, ao princípio da tarde,
tido Republicano, a Resistência Republicana aplicação das garantias constitucionais de muita gente acorrera a Santa Apolónia para
Socialista, alguns monárquicas e antigos ideó- que o Governo fazia letra morta, uma vez aplaudir Delgado, enquanto grupos organi-
logos de extrema-direita mas antissalazaristas, que a Constituição de 1933 estipulava coisas zados encenavam pequenas manifestações de
como Rolão Preto ou Pequito Rebelo. Entre «esquecidas» como a liberdade de expressão apoio a Salazar. Durante a viagem o ambiente
os apoiantes da primeira hora surgiu o nome ou o direito de reunião. era de tensão, tendo-se ouvido brados pró-re-
do escritor Aquilino Ribeiro. Outro escritor,
Ferreira de Castro, chegara a ser sondado para
uma eventual candidatura, mas recusou. Uma
condição foi, no entanto, posta pelas diferentes Se equacionarmos
entidades à candidatura de Humberto Delga- a campanha eleitoral que se tem
do: que o general avançasse como indepen- desenrolado e hoje finda, em
dente, sem se identificar com nenhuma das ordem a determinar os resultados
formações nem sequer com a etiqueta genérica práticos que o País dela possa ter
de Oposição. Delgado aceitou. colhido, tenho as maiores dúvidas
Só ficavam de fora do apoio à «candidatura de que se chegue a qualquer
independente» os setores ligados ao PCP, mas valor positivo e suficientemente
até esses fariam uma inflexão a 30 de maio, compensador do tempo perdido
oito dias antes da ida à urnas, ao optarem e da perturbação que gerou»
pela desistência da candidatura de Arlindo Américo Tomás
34 V I S Ã O H I S T Ó R I A
8 de junho de 1958
Delgado entrega
(à esquerda) o seu
boletim de voto; (à
direita): A fila para
uma mesa, vendo-se,
de braços cruzados,
Marcelo Caetano.
Abaixo: o boletim de
voto de Humberto
Delgado
ANTT
gime da parte de passageiros arregimentados. o regime caísse aos pés da fúria popular, e
Os relatos desse memorável fim de tarde uma força de GNR a cavalo acorreu ao largo
de primavera no Porto ainda hoje empolgam. fronteiro à estação obrigando a comitiva a
O entusiasmo era indescritível e, na Praça alterar o rumo, seguindo para a zona oriental
Carlos Alberto, o advogado Vasco da Gama da cidade, onde hoje é o Parque das Nações
Fernandes sussurrou ao ouvido de Delgado: e então constituída por docas, armazéns e
«General, o senhor acaba neste momento de depósitos de combustível. Delgado, a quem na
ser proclamado Presidente da República de estação se tinham juntado a mulher e as duas
Portugal!» E, de facto, o candidato indepen- filhas, tomou lugar num grande automóvel
dente considerar-se-ia, até ao fim da vida, descapotável, seguido por viaturas da PIDE.
Chefe de Estado espoliado das suas funções. Obedecendo a uma ordem do general, perto
À noite decorreu um comício no Coliseu do do Aeroporto o motorista conseguiu acelerar
Porto, com a multidão a furar as barreiras e escapar à marcação da polícia política, se-
policiais e a participar numa manifestação.
A partida da Invicta, ao início da tarde do
dia 16 (após um dia de digressão pelo Norte, guindo pelas artérias do bairro de Alvalade,
incluindo uma visita à Casa do Gaiato), só onde muita gente, nos passeios, reconhecia
não foi tão eufórico como a chegada porque o o candidato e o aplaudia.
regime já não estava desprevenido, e a polícia Terá sido nessa altura que o «General sem
carregou sobre as pessoas que se aglomera- Medo» tomou verdadeira consciência de que
vam junto da Estação de São Bento. não lhe seria permitido triunfar nas eleições
À chegada à capital, ao fim da tarde, os – ilusão que até aí vinha alimentando e que
cais da Estação de Santa Apolónia estavam a apoteose no Porto alimentara.
apinhados de gente que desejava vitoriar Os confrontos entre polícias e civis que
Delgado, enquanto uma densa multidão se
O programa da candidatura nessa tarde de 16 de maio não chegaram a
aglomerava no Rossio, por onde se previa independente enfatizava ter lugar na Baixa lisboeta ocorreram no dia
que passasse a caravana do general, a cami- seguinte, 17, nas imediações do Liceu Camões,
nho da sede da candidatura, na Avenida da
a aplicação de garantias em cujo ginásio se realizou um comício da
Liberdade. Milhares de panfletos tinham constitucionais como candidatura independente. O recinto era
sido distribuídos e esperava-se que algo de apertado e estava cheio de agentes da PIDE,
muito importante acontecesse nesse dia. Mas
a liberdade de expressão mas a euforia e a revolta extravasaram para as
Salazar e as suas polícias não permitiram que ou o direito de reunião ruas, permanecendo na memória de gerações
VISÃO H I S T Ó R I A 35
ELEIÇÕES // DITADURA
9 de agosto de 1958
Américo Tomás
toma posse como
Presidente
da Repúbilca,
na Assembleia
Nacional, após ter sido
oficialmente declarado
vencedor das eleições
mais retumbantes
do longo período
da ditadura
MUSEU DA PRISÊNCIA DA REPÚBLICA
a irrupção de soldados da GNR a cavalo pelo várias manifestações comemorativas do 32º salazaristas terem «atribuído» praticamente
café Monte Carlo, na Avenida Fontes Pereira aniversário do movimento militar de 28 de um quarto dos sufrágios ao homem que, mais
de Melo, perseguindo democratas que ali se maio de 1926, que dali partira para instaurar do que nenhum outro até então, fizera abanar
haviam refugiado (enquanto muitos outros a ditadura na capital. o regime, é indiciador de que os números
tinham pedido abrigo em casas particulares). verdadeiros seriam outros se a contagem não
À deslocação de Delgado ao Porto segui- A ‘vitória’ de Salazar tivesse sido fraudulenta. Isto, apesar de todos
ram-se mais três digressões de campanha – No dia das eleições, fortes medidas policiais os condicionalismos impostos à campanha de
duas ao norte e uma ao sul. Em toda a parte o foram tomadas pelo Governo. A oposição, na Delgado, incluído a dificuldade de acesso aos
«General sem Medo» era aplaudido, como se impossibilidade de garantir o livre acesso dos boletins de voto, que não estavam disponíveis
as multidões vissem como um messias aquele cidadãos às urnas e de fiscalizar as contagens junto das mesas e era preciso levar de casa.
homem que, fazendo o caminho caminhando, dos votos em cada mesa, teve de contentar-se Nalgumas circunscrições, porém, a vitória
se ia apercebendo no decorrer da campanha com ouvir o regime proclamar a «vitória» de foi oficialmente atribuída a Delgado, quer
do estado de opressão e da ânsia de liberdade Américo Tomás por 765 081 votos (cerca de porque a oposição tenha disposto de condi-
em que os portugueses viviam. A eleição pre- 76,45%) contra 236 057 em Humberto Del- ções excecionais para fiscalizar a contagem,
sidencial de 1958 antecipou, assim, o PREC gado (23,60%). Mas teria sido tão esmagado- quer porque as autoridades locais colocaram
de 1974-75 enquanto explosão de massas. ra assim a vitória do apagado ex-ministro da a honestidade acima das ordens recebidas,
Em Chaves, o jovem oposicionista Júlio Marinha, que nos anos seguintes se tornaria quer ainda porque o próprio regime achou
Montalvão Machado gravou às escondidas conhecido como «corta-fitas», ou inaugura- conveniente conferir alguma «credibilidade»
as palavras do general num comício que teve dor-mor, do regime? Só o simples facto de os ao escrutínio.
lugar a 22 de maio, tendo depois a bobina Humberto Delgado sempre se consideraria
sido enterrada. Só passadas décadas o registo o vencedor. Até ao fim da sua vida, brusca-
foi exumado, constituindo a única gravação mente interrompida em 13 de fevereiro de
de que dispomos da voz do homem que de- Humberto Delgado 1965 numa armadilha mortífera montada pela
safiou – e abalou – o poderio de Salazar. PIDE, nunca deixaria de brandir a autoridade
À passagem da caravana por Aveiro, no dia
Delgado considerar-se- moral que sentia ter-lhe sido conferida pela
24, o comandante da polícia recusou-se a -ia até ao fim da vida, aclamação popular na primavera de 1958.
reprimir a população, permitindo assim que Essa foi também a origem de vários desagui-
o general fosse ruidosamente aplaudido.
assassinado às mãos sados com outras figuras da oposição no exílio.
A deslocação a Braga seria, contudo, anulada, da PIDE, Chefe do Poderá perguntar-se como teria sido o fim da
por receio de que eclodissem confrontos san- ditadura se o general continuasse vivo depois
grentos entre os oposicionistas e a máquina
Estado espoliado de 1965, mas o que conta é o que aconteceu, e
do regime, que montara na cidade minhota das suas funções não o que poderia ter acontecido.
36 V I S Ã O H I S T Ó R I A
A arte da coragem
Secundarizado no turbilhão eleitoral de 1958,
candidatos oposicionistas, rejeitadas pelo re-
gime. Logo de seguida, quando se preparavam
as candidaturas para concorrer ao ato eleitoral
de 1958 para a Presidência da República, foi
ele o nome escolhido pela Comissão Cívica
Arlindo Vicente merece ser recordado como Eleitoral, apoiada pelo perseguidíssimo Par-
uma das figuras emblemáticas da oposição tido Comunista Português. Visto as eleições
‘A
processarem-se então de modo diferente das
rlindo Vicente é o candidato co- preso ele próprio pela PIDE, não descurava em atuais, sem boletins de voto disponíveis junto
munista.» Esta frase ouvia-se em simultâneo a vertente artística, participando das urnas, os potenciais eleitores necessitavam
sussurro naquela primavera de em exposições e tendo pertencido à direção de obter previamente o boletim da candidatura
1958, quando as mais trepidantes da Sociedade Nacional de Belas Artes. Os lei- que apoiavam e que era imprenso a expensas
«eleições» presidenciais ocorridas tores das revistas culturais Presença e Vértice desta, o que não era tarefa fácil.
em Portugal (ainda que a palavra ou dos jornais Diário de Lisboa e República
«eleições» exija ser escrita entre aspas) en- conheciam o seu contributo artístico. Notório Pacto de Cacilhas
tusiasmavam os escassos meios urbanos e «intelectual», era um dos animadores das Foi, exatamente, no termo de uma digressão
se repercutiam nas vilas da então chamada tertúlias de café que faziam parte de uma certa pelo Alentejo destinada a fazer propaganda
«província». Quando foi divulgado o nome vida lisboeta, quando não havia redes sociais. eleitoral e a distribuir boletins de voto que Ar-
de Arlindo Vicente, as suas probabilidades Nessas cálidas trocas de palavras em que se lindo Vicente e a sua comitiva se encontraram,
de vencer eram equivalentes às do candidato refazia o mundo contraiu estreita amizade em Almada, com apoiantes da candidatura
da oposição tradicional, a dos «velhos repu- com – entre outros – os escritores Ferreira de de Humberto Delgado. Face ao fenómeno
blicanos» herdeiros da I República – ou seja, Castro, Assis Esperança, Mário Domingues e agregador da candidatura do «General sem
nenhumas. Julião Quintinha. Medo», o advogado-artista desistiu de con-
Nascido, tal como Humberto Delgado, em Na encenação das eleições legislativas de correr à eleição em favor dele, o que impediu
1906, Arlindo Vicente viu a luz do dia em 1957, Arlindo Vicente integrou as listas de uma dispersão de votos oposicionistas. Foi o
Troviscal, Oliveira do Bairro. Sentia-se chamado «Pacto de Cacilhas», ou «Pacto
desde muito jovem atraído pelas artes de Almada».
plásticas, mas não fez estudos nessa área, Depois de 1958, Arlindo Vicente
optando por matricular-se, aos 20 anos, na prosseguiu, tanto quanto possível, a sua
Faculdade de Medicina da Universidade atividade política na fronteira entre a
de Coimbra, depois de concluído o curso legalidade e a clandestinidade. Em 1970
secundário no Liceu de Aveiro. resolveu abandonar a advocacia e dedi-
A certa altura, deixou de ter pretensões a car à pintura o tempo que as práticas
seguir a carreira médica, fez as malas, par- antirregime lhe deixavam livre. Já então
tiu para Lisboa e inscreveu-se na Faculda- Salazar saíra de cena e fora substituído
de de Direito da capital. Contudo, voltaria na Presidência do Conselho por Marce-
a Coimbra para ali concluir o curso de Leis lo Caetano, que afirmava ser tempo de
em 1932, o mesmo ano em que Salazar deixar de utilizar a expressão «Estado
passou a chefiar o governo da ditadura Novo» e usar antes a de «Estado Social».
instaurada em 1926, quando ele próprio Mas cedo o novo homem forte do regime
se inscrevera em Medicina. Significa isto desiludiria os que numa primeira fase
que, enquanto estudante universitário, quiseram acreditar nas suas promes-
viveu o período da instalação da máqui- sas de abertura, e a luta oposicionista
na repressiva e das falhadas revoltas do prosseguia, inclusivamente sob formas
«reviralho». mais radicais.
Oposicionista decidido à Ditadura Mi- Arlindo Vicente teve ainda a alegria de
litar e depois ao Estado Novo salazarista, viver a revolução do 25 de Abril e os tem-
Arlindo Vicente dedicou-se à advocacia pos do PREC. Morreu em 1977, ao cabo
nas décadas de 1930 e 1940, destacando-se de 71 anos de uma vida colorida com
na – necessariamente corajosa – defesa Folha de propaganda O candidato viria todos os matizes da sua paleta de artista
de presos políticos. Mais do que uma vez a desistir em favor de Humberto Delgado combatente. Luís Almeida Martins
VISÃO H I S T Ó R I A 37
ELEIÇÕES // DITADURA
1965 e 1972
Arquivo Histórico Parlamentar. Mas para o
resto das ausências não há explicação. Durante
a contagem dos votos, recolhidos em duas cha-
De regresso
madas, registaram-se ainda 29 votos nulos. O
candidato único foi eleito com a aprovação dos
restantes 616 membros (92,1% dos eleitores).
a São Bento
João Bosco Mota Amaral, que em demo-
cracia viria a ser presidente do Parlamento,
participou no colégio eleitoral de 1972 como
deputado da ala liberal. No seu caso, era quase
um assunto de família. Em 1965, o tio João
As reeleições de Américo Tomás, em 1965 e em 1972,
Mota Amaral tinha integrado o primeiro
foram entregues a um colégio eleitoral controlado colégio eleitoral na qualidade de presiden-
pelo regime, para evitar «sustos» como te da Câmara de Lagoa, na ilha açoriana
o da candidatura de Humberto Delgado de São Miguel. O jovem deputado liberal,
então com 29 anos, recorda a reeleição de
D
por Clara Teixeira
Américo Tomás como uma sessão «calma
epois do «terramoto» causado pela das. A Presidência tornava-se inacessível aos e tranquila», sem incidentes para além do
candidatura de Humberto Delgado, críticos do Estado Novo. protesto silencioso de Pinto Balsemão. Mas
a eleição do Presidente da República Em 1972, na véspera de novo sufrágio, as conta que o descontentamento era visível
passou a ser feita de forma indireta ilusões sobre a abertura política do regime, nas fileiras da ala liberal que, um ano antes,
e «orgânica». O presidente do Con- criadas por Marcelo Caetano, já tinham caído em 1971, tinha visto as suas propostas de
selho, Oliveira Salazar, não perdeu por terra. A falta de alternativas à recondução
Ata da sessão O primeiro colégio
tempo e antecipou-se à data prevista para a de Tomás para um terceiro mandato era motivo
elegeu Tomás com 556 dos 569
revisão constitucional, agendada para 1961. de profunda insatisfação na ala dos deputados votos
Logo em agosto de 1959, ficou estabelecido liberais, liderados inicialmente por José Pedro
que a eleição do Chefe de Estado seria decidida Pinto Leite e depois por Francisco Sá Carneiro.
por um colégio eleitoral restrito, formado por Os resultados da eleição, ocorrida a 25 de
deputados da Assembleia Nacional, procura- julho, revelavam algumas notas dissonantes
dores da Câmara Corporativa e representantes num regime de partido único. Francisco Pinto
municipais e das províncias ultramarinas. Balsemão, deputado da ala liberal, esteve na
Assim, a reeleição de Américo Tomás em manhã desse dia em São Bento. «Mostrei-me,
1965, para um segundo mandato de sete mas não votei. Foi uma atitude propositada,
anos, decorreu quase sem sobressaltos. Sem uma forma de protesto», diz à VISÃO Histó-
oposição, mas também sem história. Os elei- ria. Além dele, outros 23 dos 669 membros
AHP
tores do novo colégio eram maioritariamente do colégio eleitoral não depositaram o voto
escolhidos por nomeação direta do governo, na urna. Pelo menos oito justificaram a falta
ou então resultavam de eleições condiciona- por motivo de doença, segundo os registos do
38 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Aplaudido
de pé Aspeto Constituição:
da sala das
sessões da o que mudou
Assembleia O decreto-lei que alterou o artigo 72º da
Nacional após Constituição, passando a determinar a
a proclamação, eleição do Presidente da República por um
com palmas, colégio eleitoral, estipulava o seguinte:
da eleição de «O Chefe do Estado é o Presidente da
Américo Tomás República eleito pela Nação, por intermédio
em 1965 de um colégio eleitoral constituído pelos
membros da Assembleia Nacional e da
Câmara Corporativa em efetividade de
funções e pelos representantes municipais
de cada distrito ou de cada província
ultramarina não dividida em distritos e
ainda pelos representantes dos conselhos
legislativos e dos conselhos de governo das
revisão constitucional – entre elas, o regresso modelo previsto na Constituição de 1933. províncias de governo-geral e de governo
à eleição direta do Presidente da República – A 1 de agosto, Salazar dirigiu-se ao País para simples, respetivamente.
Os representantes municipais serão
bloqueadas por ordem do governo. A atitude anunciar que, perante o descrédito nos resul- designados pelas vereações eleitas, nos
de Pinto Balsemão, e provavelmente de outros tados da última eleição, tornava-se urgente termos da lei, a qual fixará o número que deve
faltosos, assim como o apuramento de quase acabar com a possibilidade de «um golpe de caber a cada distrito ou província ultramarina
em correspondência com o número das
três dezenas de votos nulos, teriam sido uma Estado constitucional», adotando o sufrágio
respetivas câmaras; os representantes dos
forma de mostrar o desagrado em relação à «orgânico». Duas semanas depois, avançou conselhos legislativos e dos conselhos de
escolha, sem rival, daquele que viria a ser o para uma remodelação governamental que governo das províncias ultramarinas serão
último Presidente do Estado Novo. ditou as saídas de Marcelo Caetano e de Santos designados por estes órgãos nos termos da
lei, a qual fixará o número que deve caber a
Costa, líderes de fações internas em luta, e co-
cada conselho em correspondência com o
Evitar o ‘golpe de Estado’ municou mexidas nos salários e nos impostos seu caráter representativo.»
Logo no dia 4 de junho de 1958, durante o destinadas a neutralizar a contestação popular.
comício de encerramento da primeira cam- Como era habitual, Salazar tentava mudar
panha de Américo Tomás no Pavilhão dos algo para que tudo ficasse igual, comprometen- e seu presidente, Marcelo Caetano. Segundo o
Desportos, em Lisboa, o discurso de Oli- do os críticos para esvaziar a oposição. A última autor do parecer, o sufrágio direto legitimava o
veira Salazar deixara antever as mudanças revisão constitucional, em 1951, estabelecera caráter republicano e presidencialista do regi-
constitucionais que se seguiriam. A cada que os candidatos presidenciais teriam de ser me constitucional vigente. A proposta acabou
eleição presidencial, o País sujeitava-se a aceites pelo Conselho de Estado, com base na por ser recusada, mas a ameaça da apresen-
uma «sorte de plebiscito» que o presidente fidelidade aos valores do regime. Já na altura o tação de candidaturas «subversivas» parecia
do Conselho abominava. O correspondente ditador tentara, sem sucesso, alterar o sistema ultrapassada com a introdução da cláusula de
do jornal americano The New York Times, de eleição do Presidente, depois do apareci- exclusão prévia. A candidatura de Humberto
Benjamin Welles, escreveu que Salazar estava mento de candidatos alternativos nas duas Delgado, com o apoio de fortes movimentos da
«profundamente afetado pela violência dos campanhas anteriores (Norton de Matos em oposição, veio provar que não era bem assim.
ataques» de Humberto Delgado. Com efeito, 1949 e Quintão Meireles em 1951). Contudo,
essas seriam as últimas eleições presidenciais a Câmara Corporativa não aceitou essa ideia, Recuperar o poder
disputadas por sufrágio direto, segundo o com base na opinião do professor de Direito, Com as mudanças na Constituição, o ditador
concentrou em si a escolha do candidato presi-
dencial que posteriormente seria legitimado por
umas cinco ou seis centenas de fiéis ao regime.
Colégio eleitoral de 1965 Segundo a nova redação do artigo 72.º
Com cerca de 600 eleitores, era composto por aproximadamente: da Constituição, publicada a 29 de agosto
de 1959, o Presidente da República passava
130
deputados da
210
procuradores
160
representantes
45
representantes
60
representantes
a ser eleito através de um colégio eleitoral,
constituído pelas duas câmaras existentes
Assembleia da Câmara municipais do das províncias dos conselhos
– os deputados da Assembleia Nacional e
Nacional Corporativa continente e ultramarinas* legislativos
ilhas ultramarinos* os procuradores da Câmara Corporativa – e
pelos representantes dos municípios e das
* Neste colégio, já não participaram os representantes da Índia províncias ultramarinas. O regime garantia
VISÃO H I S T Ó R I A 39
ELEIÇÕES // DITADURA
120
deputados da
210
procuradores
160
representantes
115
representantes
60
representantes
Assembleia da Câmara municipais do das províncias dos conselhos
Nacional Corporativa continente e ilhas ultramarinas legislativos
ultramarinos
Ala liberal
“
como Sá Carneiro,
Mota Amaral
e Pinto Balsemão
Mostrei-me,
mas não votei. Foi uma quartel de Beja, o desvio de um avião da TAP
e a crise académica de 1962 sucederam-se, no
forma de protesto espaço de dois escassos anos, sem permitir
ao regime retomar o fôlego. Depois de um
assim um rigoroso controlo dos futuros atos UN, que desta forma garantia que a eleição período de relativa acalmia, em fevereiro de
eleitorais. De tal maneira que, como assinalou presidencial decorresse sem surpresas. Até a 1965, a PIDE atrai para uma cilada e liquida o
Vital Moreira, até «se julgou dispensável a escolha do candidato, feita depois de ouvidos general Humberto Delgado, junto à fronteira
cláusula de exclusão prévia dos candidatos os conselheiros mais próximos de Salazar, era luso-espanhola. E, em maio do mesmo ano,
suspeitos de propósitos subversivos». primeiro aprovada pelo governo e só depois a Sociedade Portuguesa de Escritores (SPE)
Com efeito, a Assembleia Nacional era cons- sancionada pelo partido. A dependência da desafia Salazar atribuindo o Grande Prémio
tituída pelos parlamentares eleitos nas listas figura do chefe do governo era tal que a pró- de Novelística ao escritor e independentista
do partido único, a União Nacional (UN). pria Câmara Corporativa reconheceu, num angolano Luandino Vieira, preso no Tarrafal
A Câmara Corporativa reunia os interesses parecer emitido em 1971 sobre a proposta por «crime de terrorismo». A resposta foi
profissionais, económicos, morais e culturais de revisão constitucional da ala liberal, que vigorosa. Os membros do júri foram detidos,
organizados em organismos corporativos, mas o colégio eleitoral tinha de facto «limitados a sede destruída e a SPE extinta pelo Gover-
muitos dos seus membros eram diretamente poderes de ordem política». Na defesa da no. Por ter noticiado o prémio, o Jornal do
nomeados pelo governo. Os representantes iniciativa dos liberais, Francisco Sá Carnei- Fundão foi suspenso por seis meses.
dos municípios de cada distrito eram escolhi- ro defendeu o regresso ao sufrágio direto e Com a substituição de Salazar por Caetano
dos por conselhos municipais, formados por universal como a única forma de pôr fim à
representantes das juntas de freguesia e por «autocracia» em que o regime tinha caído.
organismos corporativos. E os representantes
das províncias ultramarinas estavam igual- Ventos de mudança
mente dependentes das escolhas do governo, Desde as eleições de 1958 que o regime era
como salientou Manuel Braga da Cruz na sua constantemente desafiado pelos opositores.
tese de doutoramento sobre as relações entre Os protestos organizados subiram de tom
o partido e o Estado durante o salazarismo. após o início da Guerra Colonial, em 1961.
Assim, a composição do colégio eleitoral A invasão de Goa, Damão e Diu, o sequestro
(em nome e em número) dependia quase do paquete Santa Maria, a pressão descoloni-
totalmente da vontade do presidente do zadora dos EUA, a conspiração do ministro da
Conselho, simultaneamente presidente da Defesa Botelho Moniz, a tentativa de golpe no
40 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Como se votou
na Assembleia
Nacional
A forma de eleição do
Presidente era novidade,
e por isso, nada foi deixado
ao acaso para que o ato
decorresse sem «sobressaltos»
Presidente «corta-fitas»
Américo Tomás foi reeleito
por duas vezes, mas a
Revolução deixou-o apeado
AHP
seguinte, a Assembleia Nacional muda tam- do médico Miller Guerra. A corrente renova-
bém de figurino. Mais de metade dos eleitos dora e liberal esbatia-se, perante a resistência CADERNO ELEITORAL
(por sufrágio direto, embora com uma baixa à mudança dos setores mais conservadores. A fim de se prepararem para o sufrágio, os
eleitores do colégio de 1965 tiveram acesso
participação dos portugueses) eram estreantes Sem dotes oratórios nem carisma, mas a uma brochura informativa com a planta
e os militares quase desapareceram da banca- sempre fiel ao salazarismo, o último Presi- do Palácio de São Bento, acompanhada de
da. A UN, rebatizada Ação Nacional Popular dente do Estado Novo iniciou a 9 de agosto orientações sobre a circulação de pessoas
durante a votação na sala de sessões da
(ANP), alargou o recrutamento ao norte do de 1972 um terceiro mandato, que viria a
Assembleia Nacional. Do caderno eleitoral
País e às mulheres. Nove mulheres ocupavam ser interrompido pela Revolução de Abril. (cuja capa é acima reproduzida), constava
6% dos lugares parlamentares e uma presença Durante os 16 anos em Belém, só em duas ainda o nome dos votantes.
feminina conquistou pela primeira vez um ocasiões mostrou ser mais do que um Pre-
lugar no governo: a subsecretária de Estado sidente «corta-fitas». Em abril de 1961, teve
da Saúde, Maria Teresa Lobo, em agosto de um papel importante na desarticulação da
1970. Mas a maior parte dos jovens recrutados conspiração para derrubar Salazar, conduzida
por Caetano, como independentes nas listas pelo ministro da Defesa Botelho Moniz com
da UN, já se tornara crítica do regime em o apoio de militares; e, em setembro de 1968,
1972, o ano em que os jovens tecnocratas do embora contrafeito, aceitou substituir um
governo iniciam a debandada. convalescente Salazar por Marcelo Caetano.
Em vésperas de nova eleição presidencial, Mas a relação de ambos não foi pacífica, com
surgem rumores dando conta de que António Tomás a zelar pela herança de Salazar nos
AMP
de Spínola teria sido abordado pelos liberais momentos em que ao novo presidente do
para se candidatar contra Américo Tomás, en- Conselho tentou mudar o estado das coisas. BOLETINS DE VOTO
tão com 72 anos, mas o apoio do então gover- Quase quatro anos depois, acabaria por Só havia um candidato presidencial, mas
as listas (boletins de voto) tinham regras
nador civil e militar da Guiné-Bissau a uma ser enfiado à pressa num avião com destino rígidas. Feitas em «papel branco, liso, não
solução política para o futuro das colónias ao exílio na Madeira, tal como sucedera a transparente, sem qualquer marca ou sinal
não agradou a um regime que apostava na Caetano. Em 1978, o Presidente Ramalho externo, terão a forma retangular, com
dimensão 0,15 x 0,10 m, e deverão conter,
vitória pela força em África. O próprio Mar- Eanes permitiu o seu regresso a Portugal,
impresso ou litografado, o nome completo
celo Caetano surgiu como alternativa, mas mas a reintegração na Marinha, de onde a do candidato, bem como a sua profissão ou
não avançou com uma candidatura própria. Revolução o expulsara, não foi autorizada. patente».
Em janeiro de 1973, Francisco Sá Carneiro Morreu em 1987, aos 92 anos.
VISÃO H I S T Ó R I A 41
1974-2016
Democracia
61,59%
56,44% 51,18%
46,31% SEGUNDA VOLTA
PRIMEIRA VOLTA
• RAMALHO EANES
2 967 137 VOTOS
• RAMALHO EANES
3 262 520 VOTOS
• FREITAS • MÁRIO SOARES
DO AMARAL 3 010 756 VOTOS
2 629 597 VOTOS
INSCRITOS INSCRITOS INSCRITOS INSCRITOS
6 467 480 6 920 869 7 617 257 7 612 733
VOTANTES VOTANTES VOTANTES 5 742 151 VOTANTES 5 937 100
4 881 125 (75,48%) 5 840 332 (84,34%) (75,38%) (77,99%)
1976 1980 1986 1986
27 de junho 7 de dezembro 26 de janeiro 16 de fevereiro
42 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Com a Revolução de 25 de Abril e a chegada da democracia,
o Presidente da República passou a ser eleito por sufrágio direto e universal,
seguindo o princípio “Um homem, um voto”. O recenseamento foi alargado
a todos os cidadãos portugueses maiores de 18 anos
70,35%
53,91% 55,55%
• MÁRIO SOARES
3 459 521 VOTOS
FONTES Comissão Nacional de Eleições / Diário da República
VISÃO H I S T Ó R I A 43
ELEIÇÕES // DEMOCRACIA
1974-2016
Democracia
52,95% 52,00%
50,54%
20,74% 19,74%
4,24%
3,94%
3,28%
14,31%
0,84%
2,16%
0,30%
14,07%
0,23%
44 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Em democracia, o número de eleitores inscritos tem vindo sempre
a subir, mas a abstenção também, ultrapassando, mais do que uma vez,
a fasquia dos 50%, designadamente nas reeleições para os segundos
mandatos de Jorge Sampaio e de Cavaco Silva. As últimas eleições,
em 2016, registaram a segunda taxa de abstenção mais alta de sempre
INSCRITOS
INSCRITOS
9 657 312 9 751 398
INSCRITOS
INSCRITOS 9 085 339
INSCRITOS 8 950 905
8 693 636
INSCRITOS
8 202 812
1ª VOLTA 2ª VOLTA
INSCRITOS INSCRITOS
7 617 257 7 612 733 46,52% 48,66%
VOTANTES VOTANTES
4 492 453 4 744 597
INSCRITOS
6 920 869
INSCRITOS
6 467 480 49,71% 61,53%
VOTANTES
66,29% 4 449 800 VOTANTES
5 590 132
VOTANTES
62,16% 5 762 978
VOTANTES
84,34%
5 742 151 5 937 100
53,48% 51,34%
ABSTENÇÃO
VOTANTES
75,48% 5 840 332
50,29%
VOTANTES
4 881 125
ABSTENÇÃO
38,47%
FONTES Comissão Nacional de Eleições / Diário da República
ABSTENÇÃO
ABSTENÇÃO
37,84%
33,71%
ABSTENÇÃO
ABSTENÇÃO
ABSTENÇÃO 24,62%
22,01%
INFOGRAFIA Álvaro Rosendo
24,52% ABSTENÇÃO
15,66%
46 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Em campanha
Ramalho Eanes ao pé
de um dos seus cartazes,
«vive a liberdade em
segurança», e Otelo
Saraiva de Carvalho
em visita à Setenave
VISÃO H I S T Ó R I A 47
ELEIÇÕES // DEMOCRACIA
A
banda-sonora lembra o início de um
filme de índios e cowboys. No ecrã,
os protagonistas vão sendo apresen-
tados em grande estilo. Sem nomes,
em takes de um ou dois segundos.
São quase todos homens, bebem
café com ar sério, conversam à volta de uma
mesa de reuniões. Há gravatas variadas, man- D.R.
gas de camisa, fatos escuros. Ao fundo espera
uma garrafa que parece ser de whisky, pousa-
da sobre uma estante de madeira. A música de um dos candidatos. É que o general An-
que lembra coboiadas empresta a necessária tónio Ramalho Eanes, um dos protagonistas
emoção às imagens da RTP, mas este não do 25 de Novembro, tinha recebido muitos
é o início de um western a preto-e-branco. apoios militares e partidários, incluindo dos
Embora tenha havido muita violência du- três partidos mais votados nas legislativas:
rante a campanha para as primeiras eleições o Partido Socialista (PS), o Partido Popular
presidenciais da democracia portuguesa, em Democrático (PPD) e o Centro Democrático
27 de junho de 1976. Social (CDS). Dois meses antes, PS, PPD e
Começa agora a longa emissão especial CDS tinham conquistado mais de 75% dos
da RTP dedicada ao dia das eleições. Nos votos nas legislativas e ocupavam agora 222
primeiros minutos, a pequena reportagem dos 263 lugares da Assembleia da Repúbli-
sobre a Comissão Nacional de Eleições (CNE) ca. Um ano antes, os mesmos três partidos
continua com um dos membros da comis- tinham somado quase 72% dos votos, nas
são a ler um depoimento curto. Serve para eleições para a Constituinte. Com tantos
ARQUIVO A CAPITAL
contextualizar o papel deste organismo de apoios, Eanes nunca teve grandes dúvidas
escrutínio do processo eleitoral: «O regime de que iria vencer (ver entrevista). Ganhou
anterior, durante 48 anos, procurou sempre com maioria absoluta à primeira volta, com
dar uma aparência de democracia. E, assim, 61% dos votos.
sujeitou-se ao sufrágio. Acontece, porém, Além de ter o apoio dos três partidos
que nunca esse sufrágio foi sério. Sempre mais votados, Eanes era já bem visto pela de dúvida quanto à possibilidade de Portugal
foram defraudados os resultados eleitorais. Administração dos EUA mesmo antes de enveredar por uma democracia de tipo oci-
Em consequência disso, portanto, o nosso ser candidato. dental, estavam empenhados numa transição
povo deixou de acreditar nas eleições.» «Os Estados Unidos acompanharam com democrática bem-sucedida. Portugal estivera
muito interesse as eleições presidenciais de à beira da rutura, o País quase se partiu em
Maioria absoluta 1976», diz David Castaño. investigador do dois e para a maior potência ocidental era
Logo após o fim da ditadura do Estado Novo, IPRI-Nova e autor dos livros Mário Soares importante assegurar que Portugal, uma
o povo português voltou a acreditar nas elei- e a Revolução (2013) e Eanes e a Democracia vez deposto o anterior regime autoritário
ções. Era grande o interesse pelo exercício do (2018). «Ultrapassada a fase de incerteza e e ultrapassada a fase revolucionária, conti-
direito de voto nas primeiras idas às urnas de-
pois do 25 de Abril de 1974. Em abril de 1975,
as eleições para a Assembleia Constituinte
tiveram uma participação de mais de 92%
dos cidadãos recenseados; estava em causa
eleger os deputados que viriam a escrever as
leis básicas do País. Nas legislativas de abril
de 1976 a abstenção cresceu, mas ficou-se
pelos 16 por cento.
Em junho de 1976, nestas primeiras pre-
sidenciais por sufrágio direto e universal, a
abstenção acabaria por ficar abaixo dos 25%,
apesar de tudo indicar à partida a vitória fácil Publicidade paga Locais e datas de comícios em anúncios de jornais
48 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Na estrada Octávio Pato
em Vila Franca de Xira,
Pinheiro de Azevedo no
Minho, com a mulher,
Otelo em Oeiras com
membros de comissões
de moradores e Eanes em
Alcains, sua terra natal
O JORNAL
VISÃO H I S T Ó R I A 49
ELEIÇÕES // DEMOCRACIA
50 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Apesar de se terem Os primeiros da democracia
reunido multidões em Os generais António de Spínola e Francisco da Costa Gomes
foram Presidentes da República por designação dos seus pares
festa, houve também
tiros, pedradas, Derrubada a ditadura do Estado Novo,
o primeiro Presidente da República
forçado a exilar-se no Brasil.
O general Costa Gomes, que lhe sucedeu,
agressões e insultos em democracia foi o general António
de Spínola, «eleito» no âmbito de
foi também nomeado pela JSN. No
entanto, era ele o «eleito do coração» da
um colégio restrito, de apenas sete maioria dos jovens oficiais do Movimento
pessoas, a Junta de Salvação Nacional das Forças Armadas que «fez» o 25 de
(JSN). Spínola tinha sido uma figura Abril.
de destaque nos Não podia ser maior o
últimos anos, como contraste entre ambos.
governdor da Guiné e, Discreto, ponderado,
ponsável pela comunicação logo durante a depois, vice-chefe do negociador hábil, de postura
campanha de 1980. Tinham ficado amigos Estado-Maior General civilista, amante da paz, Costa
quando o general trabalhou na RTP a seguir das Forças Armadas. Gomes foi no entanto um dos
ao 25 de Abril, como diretor de programas Em fevereiro de militares mais brilhantes da
e presidente da estação de televisão pública. 1974 publicou o livro sua geração. Mesmo antes
Antes de apresentar a candidatura em 1976, Portugal e o Futuro, do início da Guerra Colonial,
onde apresentava uma defendia já que a solução
o general passou horas a conversar com o
proposta de solução para o problema ultramarino
jornalista na Avenida da Liberdade. Letria política para pôr termo que se adivinhava não era de
aconselhou-o a candidatar-se, mas recusou à Guerra Colonial. ordem militar. Esteve, por
o convite para o apoiar na parte de comuni- Não concordando isso, envolvido na falhada
cação da campanha. «Não aceitei porque na com a independência conspiração do ministro da
altura ainda me sentia muito jornalista. Por plena das colónias, Defesa, Botelho Moniz, com
outro lado, não gostava muito de algumas demarcar-se-ia do vista à substituição de Salazar
rumo revolucionário na chefia do Governo.
companhias de Eanes, na altura o CDS e
tomado pelos Nomeado chefe do Estado-
outras coisas mais à direita.» acontecimentos após o -Maior General das Forças
Depois de uma campanha onde fez debates, 25 de Abril e demitir- Armadas em setembro de
entrevistas e reportagens, Joaquim Letria -se-ia da Presidência 1972, foi afastado do cargo
viveu a aventura de organizar a emissão do na sequência da manifestação da em março de 1974, por se ter recusado (tal
dia das eleições. «Estive 30 horas no ar, inin- «maioria solenciosa» que convocara como Spínola) a comparecer, pouco mais
terruptas, a coordenar e a apresentar. Não saí para 28 de setembro de 1974. Entrou de de um mês antes do 25 de Abril, numa
seguida em movimentos conspiratórios cerimónia de «vassalagem» dos generais a
do estúdio. Houve algumas partes gagas que
com vista à retomada do poder e viu-se Marcelo Caetano.
nos faziam desmanchar a rir. Tudo aquilo
era muito lento, não havia tecnologia, não
havia coisa nenhuma. Os resultados vinham
de estafeta, a GNR vinha de mota trazer os ‘25 de Abril à Presidência’ seguiu mais de 16% dos votos, apenas com o
resultados. O centro de informação foi mon- A eleição de Eanes à primeira volta era já apoio de pequenos partidos e de organizações
tado na sede da Fundação Gulbenkian. Os esperada, mas houve surpresas nos votos populares.
computadores naquela altura tinham o ta- conquistados pelos outros três candidatos. Otelo concorreu sem ilusões de que pudesse
manho de um armário, eram uns monstros. Além da boa votação conseguida pelo ser eleito (ver entrevista), com o slogan «o 25
E os informáticos falavam uma linguagem primeiro-ministro Pinheiro de Azevedo, a de Abril à Presidência». Ainda hoje o jornalis-
que não percebíamos, não sabíamos se aquilo surpresa aconteceu com o candidato apoiado ta Joaquim Furtado guarda uma cassete com
estava certo ou não.» pelo PCP: Octávio Pato teve apenas 7% dos o resumo da campanha em que participou
Letria estava com gripe, mas era preciso votos, metade dos alcançados pelo PCP dois como voluntário, trabalhando entre outros
participar naquele momento histórico. «A meses antes, nas legislativas. com o jornalista Adelino Gomes.
enfermeira lá do posto médico da RTP deu- A grande surpresa foi Otelo Saraiva de O professor universitário Luís Moita tam-
-me uma injeção para eu me aguentar. Foi Carvalho. O estratego do 25 de Abril e to- bém participou na campanha de Otelo, em
isso e mais uns whiskies, porque estava com do-poderoso ex-comandante do Comando que foi uma espécie de porta-voz do can-
um bocado de febre...» Operacional do Continente (COPCON) con- didato. Como escreveu num texto inédito
VISÃO H I S T Ó R I A 51
ELEIÇÕES // DEMOCRACIA
MPR/CP
sobre estas presidenciais, foi «um fenóme- significava festa, como escreveu o jorna- ter composto Grândola, vila Morena, volto
no de mobilização popular que talvez não lista Cáceres Monteiro numa reportagem a esta vila’. José Afonso, o cantor que foi
tenha comparação na história portuguesa». sobre o respetivo arranque, em Grândola, símbolo da resistência contra o salazarismo
Recorda que «os Cristãos pelo Socialismo publicada no semanário O Jornal de 16 de e o marcelismo, autor e intérprete de uma
deliberaram apoiar essa candidatura e eu fui junho de 1976: «’Catorze anos depois de canção que se tornou hino do 25 de Abril e é
designado para representar o movimento. agora içada a hino da candidatura de Otelo
Passei a integrar a comissão política, onde Saraiva de Carvalho, dirige-se à multidão
estavam representados todos os partidos da que se comprime no largo da feira, na vila
esquerda radical que apoiavam Otelo e onde alentejana. Está em cima de um trator, ao
encontrei pessoas notáveis». E como era o
Na campanha lado do major que planeou as operações
candidato? «Otelo Saraiva de Carvalho era de Otelo participou, em militares do 25 de Abril. Toda a gente entoa,
um homem pouco preparado, mas muito em uníssono, a canção. Otelo agita, na mão
intuitivo. Carismático em alto grau, com o
diferentes momentos direita, um cravo vermelho.»
seu quê de teatral, mobilizava multidões ao (como num comício A participação de José Afonso aconteceu
representar as melhores esperanças suscita- em vários momentos da campanha de Otelo.
das pela revolução de Abril.»
'clandestino' no Na Madeira, chegou a cantar a Grândola no
Além de multidões, a campanha de Otelo Machico), José Afonso início de um comício clandestino no Machico.
52 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Otelo Saraiva de Carvalho
‘Votei Eanes,
com grande confiança’
VISÃO História: Candidatou-se às pri- foi sempre considerado pacífico e de bons
meiras eleições presidenciais depois do costumes.
25 de Abril. Porquê?
OTELO SARAIVA DE CARVALHO: Não Contava conseguir tantos votos?
tinha intenção de me candidatar. Mas fui a Não, nessa altura tinha só curiosidade de
uma sessão na Aula Magna da Reitoria da saber.
Universidade de Lisboa e, à saída, estava à
porta uma centena de pessoas a gritar o meu Que explicação encontra para a adesão
nome e a dizer: «Exigimos a sua presença popular?
na lista de candidatos, queremos votar em Eram as primeiras eleições presidenciais que
si.» Houve ali alguma discussão e insistiram o povo tinha a alegria de viver. De uma forma
tanto que eu a certa altura disse: «Sim se- aberta. sem pides...
nhor, então vou candidatar-me, sabendo que
tenho pouquíssimas hipóteses, quase nulas.» Voltou a candidatar-se em 1980. Porquê?
Também queria ver qual a percentagem de Foi mais uma questão de teimosia. Eu próprio
votos que obtinha do povo para uma demo- votei Eanes. Porque surgiu um candidato
cracia deste género. presidencial quase de extrema-direita, Soares
Carneiro.
Uma democracia direta?
Vejo surgir em determinada altura, em Então candidatou-se mas votou em
1975, o Documento-Guia da Alian- Eanes?
ça Povo-MFA. Olho para aquilo Sim. Sabia que a minha candida-
e vejo que era uma democra- tura ia dar zero. Interessava-me
A eleição na Imprensa Eanes foi o primeiro
Presidente eleito em democracia,
mocracia, desde cia direta. Era o povo a par- participar com o meu voto na
Bernardino Machado ticipar ativamente a partir de reeleição de um homem que
assembleias de freguesias, que tinha feito um bom primeiro
O comício tinha sido proibido
roibido à última hora depois elegiam assembleias de mandato e que perante Soares
pelas autoridades locais com argumentos bu- concelho e assembleias de dis- Carneiro me dava uma con-
rocráticos, mas Otelo fê-lo
-lo à mesma, dizendo: trito. Até chegar a uma Assem- fiança total. Votei Eanes, com
«Não estou a fazer comício
mício nenhum. Estou bleia Nacional Popular que grande confiança.
só a falar com vocês, está
tá bem?» viesse da base até ao topo, João Pacheco
Mas voltemos a Grândola
ndola e à reportagem eleita pelas pessoas e em
de Cáceres Monteiro: «A caravana de Otelo favor das pessoas e não
é sempre uma festa. Com om as bandeiras ver- de partidos. Pensei:
melhas, slogans e versoss (...). Uma festa. Para «Eh pá, ótimo, jogo
muita gente. Otelo, maisais do que um candi- nisto.»
dato, é um amigo. Um amig o que lhes deu a
mais linda prenda que algum dia receberam: Estava à espera
GONÇALO ROSA DA SILVA
a liberdade». Sim, Oteloo até podia ser mesmo das cenas de vio-
visto por muitos portugueses
ueses como um amigo. lência que houve
Mas como Cáceres Monteiroteiro terá adivinhado nas eleições de
sem dificuldade, neste filme já havia outro 1976?
vencedor anunciado desde sde o início. Não. O nosso povo
VISÃO H I S T Ó R I A 53
ELEIÇÕES // DEMOCRACIA
F
oi o primeiro Presidente da República nomeadamente depois do 25 de Abril e do quer de rememorar, mas que mostram até
de Portugal eleito em sufrágio direto e conflito – havia algo que nos unia e que nos que ponto a intolerância era enorme. Em
universal, nas presidenciais de 1976. tornava tolerantes. E na campanha (sobretudo Beja até aconteceu uma coisa interessante.
Sete meses depois do 25 de Novem- na campanha, mas antes também) constatei Quando cheguei ao local do comício – à
bro, António Ramalho Eanes deixou a com alguma surpresa, apesar de tudo, e com praça de touros – havia muita gente de
chefia do Estado-Maior do Exército e muito desagrado, que nós tínhamos mudado. fora. Convenci-me de que era gente que
candidatou-se com muitos apoios, incluindo Éramos intolerantes, radicais. E, dadas as não cabia lá dentro. E quando entrei, lá
do PS, do PPD (hoje PSD), do CDS e do posições ideológicas e políticas diferentes, dentro não havia muita gente. Perguntei:
MRPP. Teve como adversários Otelo Saraiva não nos considerávamos adversários, consi- «O que é que se passa, pá?» Disseram-
GETTY IMAGES
de Carvalho, Pinheiro de Azevedo e Octávio derávamo-nos inimigos. Essa situação verifi- -me: «Bom, têm andado aí a espalhar que
Pato, ganhando à primeira volta com mais cava-se no dia-a-dia, quando saíam os jornais. você não chegava cá, que não o iam deixar
de 61% dos votos. Um amigo meu dizia que quando se sentava chegar. E que os que estivessem cá dentro
Em 1980, conseguiria a reeleição, com 56% à mesa do café junto de um fulano que tinha iam sofrer as consequências.» De maneira
dos votos, apesar da boa votação atingida um jornal diferente do dele, a primeira coisa que essa gente estava ali fora, enfim, a ver
pelo candidato apoiado pela AD, o general que o fulano fazia era levantar-se. como é que as coisas se resolviam. Aca-
António Soares Carneiro, poucos dias depois bado o comício, assisti com desagrado e
da morte de Francisco Sá Carneiro. Era outro tipo de distanciamento social. mágoa à saída rápida – imediata – de toda
Havia uma intolerância. E a intolerância é aquela gente. E constatei que as pessoas ti-
VISÃO História: Durante a campanha para os povos a mãe de todos os infortúnios. nham medo. Aliás, naquele comício o meu
eleitoral para as presidenciais de 1976 tema foi: «Em democracia, não se pode
houve vários momentos de violência... Aquele momento em que esteve debaixo ter medo.» Porque quando se tem medo,
ANTÓNIO RAMALHO EANES: Vários? de tiros em Évora, durante a campanha acaba por se estabelecer uma incomuni-
Muitos. para as presidenciais de 1976, foi uma cação na sociedade que é perversa. Na
surpresa? Não estava à espera? altura, acrescentei até que nos regimes co-
Como um dos candidatos que sofreu em Foi uma surpresa, porque eu podia espe- munistas, segundo alguns homens dessas
alguns desses momentos, sente que a sua rar tudo menos aquilo. Tiros em Évora, áreas como o Václav Havel, o comunismo
experiência em África e a sua formação pedras no comício em Beja. Enfim, houve não era tanto a apropriação coletiva dos
em Psicologia o tinham preparado para uma série de situações que não gosto se- meios de produção, a planificação centra-
reagir bem?
“
Sou obrigado a dizer que não. Porque me ha-
bituei a racionalizar os limites da psicologia
– do estudo – os limites da guerra e os limites
do País. E habituei-me a sentir que o País era Foi a escolha – a que resisti – para
uma força, era uma unidade cultural e era uma
unidade chão. Era, portanto, um lugar onde
chefe do Estado-Maior do Exército que fez
– apesar das diferenças todas que existiam, com que essa visibilidade aumentasse
54 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Vitorioso Eanes saúda os apoiantes na noite da sua eleição para o segundo mandato, em dezembro de 1980
lizada. Era sobretudo a incomunicação. mais uma república comunista na Euro- E que o PCP era indispensável para o pro-
A sociedade deixava de ser um todo e pas- pa. Existia esse medo, mesmo depois do cesso democrático.
sava a ser um conjunto de ilhas. Porque, 25 de Novembro? E que o Partido Comunista era importante.
havendo polícias políticas muito violen- O 25 de Novembro foi um momento extre- Não apenas pelo papel histórico que teve na
tas, o marido tinha medo de se abrir em mamente traumático. Foi um momento em luta pela democracia, mas também para fazer
casa, porque a mulher sem querer numa que nós nos confrontámos com o PC, com uma democracia que fosse efetivamente plu-
daquelas sessões de autocrítica podia di- a extrema-esquerda e com a extrema-di- ral. Porque, sem essa pluralidade aceite com
zer o que se passava em casa. Ou o filho reita. Confrontámo-nos com o PC e com sentido tolerante, não havia democracia. Mais
que era jovem podia dizer aquilo que se a extrema-esquerda, que disseram que o ainda: se colocamos um partido qualquer
passava. E ele podia ser preso sem mais País estava maduro para uma revolução e na clandestinidade, estamos a dizer-lhe que
nem menos. Portanto, o medo levava a pegaram em armas para a conseguir. E con- pode bater-se politicamente usando todas as
que a sociedade estabelecesse de maneira frontámo-nos com a extrema-direita, que armas, nomeadamente a violência. Porque
genérica a incomunicação. E essa incomu- entendia ser necessário ajustar contas com a democracia o que é? A democracia é um
nicação era tão preocupante, tão perversa, os sindicatos, com o PC e com a extrema-es- conflito permanente de opiniões, de ideias,
que chegava ao seio da célula social básica querda. E é isso que leva, aliás, o [membro de interesses, dada a pluralidade que carac-
que é a família. do Conselho da Revolução Ernesto] Melo teriza sociedade. Embora nenhuma dessas
Antunes a ter aquela intervenção que nunca ideias e nenhum desses interesses possa re-
Para os Estados Unidos e para a embai- mais lhe perdoaram, perfeitamente correta, correr à violência para se impor. Porque o
xada americana em Lisboa, em 1976 eu diria até completamente indispensá- combate político resolve-se nas urnas. E é a
Ramalho Eanes era um candidato que vel na altura [a 26 de novembro de 1975], população que escolhe, é o povo que escolhe,
representava a democracia, por oposi- quando disse que em democracia todos é a sociedade civil que escolhe o que deseja.
ção à possibilidade de Portugal vir a ser são necessários. Não há ninguém a mais. E essa decisão da sociedade civil é uma deci-
VISÃO H I S T Ó R I A 55
ELEIÇÕES // DEMOCRACIA
são soberana. Porquê? Porque o Estado o que pios da democracia constitucional pluralista.
é? É uma forma historicamente determinada Em 1975, as Forças Armadas defendiam o
de organização política da sociedade. O Esta- poder democraticamente instituído, através
do o que é? É um instrumento da sociedade. da sua hierarquia. Mas as próprias Forças
É uma organização sua. É realmente a mais Armadas estavam extremamente divididas.
importante organização, mas não deixa de Durante aquele período de perturbação, as
ser uma organização, entre muitas outras. E, Forças Armadas deixaram de responder à sua
portanto, é a sociedade civil que deve servir-se hierarquia formal – hierarquia, disciplina,
do Estado, e não o Estado que se deve servir competência e unidade – e enfeudaram-se
da sociedade civil. E como é que o Estado res- aos partidos políticos.
ponde à sociedade civil? Defendendo o bem Não foi fácil reconduzir as Forças Arma-
comum. E defendendo como? Com compe- das ao respeito pela sua ideologia formal,
tência, com dedicação, com uma preocupação que é: serve-se o País, quaisquer que sejam
grande em defender o bem comum e, natu- as suas ideias, e serve-se o País através de
ralmente, num diálogo que deve ser sistemá- uma ligação direta com os órgãos que o País
tico de informação da própria sociedade civil legitimamente estabeleceu. Havia grande
acerca do que está a fazer, como está a fazer e dificuldade em institucionalizar a democra-
quais são os resultados. Isto é fundamental e cia. E os Estados Unidos, que tinham acom-
naquela altura não era muito fácil fazer com panhado de perto a evolução em Portugal,
que todos aceitassem esta posição, que é uma tinham realmente uma certa preocupação
posição democrática indispensável. com o estabelecimento de uma democracia
pluralista liberal em Portugal. E entendiam
Em 1976, estávamos todos ainda a apren- – pelo menos era essa a informação que me
der o jogo democrático? chegava – que era indispensável que houves-
Estávamos. Ao fim e ao cabo, o que é que se alguém que pudesse de alguma maneira
aconteceu? Uma nação não é um momento, fazer com que a situação mudasse. Primeiro
é uma unidade e uma continuidade. É uma a situação militar e depois a situação so-
cultura, é uma língua, é uma História. E, in- cial. Alguém que, por razões de conjuntura
felizmente, a nossa História era uma situação histórica, tivesse ligação à população e que
de divisão sistemática nos últimos tempos: na pudesse, inclusivamente, responder a uma
Monarquia, na República e no Estado Novo. demanda social que na altura ultrapassava
Havia uma divisão sistemática entre as elites a responsabilidade dos partidos. Os partidos
e a população. No fim da Monarquia e mesmo eram novos, tinham estado num conflito
durante a República, tratava-se a população muito grande e logo a seguir tinham uma
de «populaça», depreciativamente. E, depois, certa dificuldade de estabelecer pontes de
o Estado Novo estabeleceu um regime dita- entendimento e tolerância.
torial, colonizou a sociedade e manteve tudo
aquilo que vinha do antecedente. As elites Em 1976, Ramalho Eanes surge como
acabam por ter possibilidades de ascender, um candidato mais ou menos inespera-
de ocupar... Mas a população fica um pouco do. Antes do 25 de novembro, ninguém Banho de multidão O casal presidencial
afastada. Portanto, diria que aquilo que acon- diria que haveria essa possibilidade. Mas recebido com abraços no Porto
teceu depois do 25 de Abril é o resultado de quando chegou à campanha, com toda a
tudo isto. E é o resultado da falta de liberdade unanimidade partidária que havia à sua
e da necessidade de combater essa falta de volta era quase garantido que iria ganhar.
“
liberdade por todos os meios. Aquele mo- Sentiu isso durante a campanha de 1976?
mento de comunhão que se seguiu ao 25 de Sim. Eu era realmente um desconhecido, isso
Abril não tinha bases para se manter. E, como é indiscutível. Foi o 25 de novembro que me
se verificou depois, foi um sol de curta dura. trouxe para a ribalta. E foi depois a escolha – a Nunca tive grandes
A seguir houve toda aquela perturbação a que que resisti – para chefe do Estado-Maior do
o 25 de Abril não pôs cobro. O 25 de Abril es- Exército que fez que essa visibilidade aumen-
dúvidas de que iria
tabeleceu as grandes metas, os grandes princí- tasse. O apoio partidário concedido naquela vencer
56 V I S Ã O H I S T Ó R I A
“
gação governamental de PPD, CDS e PPM]
se formou, foi-me proposto através de um
emissário de [Francisco] Sá Carneiro que eu
aceitasse liderá-la. Tive ocasião de dizer que A instituição militar
não era possível. E ainda hoje penso que era
a resposta correta. Primeiro, eu era o chefe
ensinou-me que um homem
do Estado-Maior das Forças Armadas. E as só por si nunca faz nada
Forças Armadas estavam muito longe de
estar estabilizadas. Havia uma divisão en-
tre os velhos e os novos – entre as gerações O [Miguel] Galvão Teles disse que a ação do
mais velhas, que estiveram com o regime Conselho da Revolução é uma ação política
anterior e que não fizeram o 25 de Abril, e a quase honorífica, coisa que o Conselho acei-
geração mais nova. E eu tinha tentado que tou. E como eu achava que os ataques ao
a instituição militar se reconciliasse consigo Conselho da Revolução não eram corretos,
própria. Contra a opinião de muitos cama- isso obviamente criou problemas com a AD.
radas do Conselho da Revolução, coloquei Problemas que, aliás, já vinham de trás, de
os mais velhos que tinham competência em quando escolhi Maria de Lourdes Pintassilgo
lugares de organização, de direção e de co- para primeira-ministra. A situação entre
mando. Portanto, havia esta divisão. E se o mim e a AD era uma situação de conflito,
chefe do Estado-Maior das Forças Armadas era muito complicado gerir tudo aquilo. Geri
de repente diz: «Agora estou com a AD...» da melhor maneira possível – naturalmente
É evidente que iria contribuir para potenciais com omissões, com erros.
divisões ainda existentes nas Forças Armadas
que estavam num estado de latência, mas Já estava à espera de que a AD apresen-
não só. Em segundo lugar, eu tinha feito uma tasse algum candidato?
eleição prometendo aos portugueses que ia Era inevitável. A AD teria de apresentar um
ser «o Presidente de todos os portugueses». candidato. Tive ocasião de dizer naquela al-
tura, antes ainda de aparecerem candidatos,
E da Constituição. que se os partidos políticos apresentassem
Não podia deixar de ser assim. Em terceiro candidatos seus, eu não me candidatava.
lugar, não tinha tomado a iniciativa de jurar Deixava que esse jogo político presencial
a Constituição. Foram todos os partidos polí- fosse discutido sem mim. Como nenhum
ticos que a aprovaram que estabeleceram que partido apresentou candidatos seus e surgiu
eu juraria a Constituição. E a Constituição o general Soares Carneiro, decidi realmente
diz que o Presidente da República responde candidatar-me, porque entendia que tinha
perante o País, é responsável perante o País. obrigações. E tinha condições para exercer
E eu não podia aceitar, sem grave atropelo um mandato em que a normalização de-
primeiro de uma ética que é considerada mocrática se processasse e se consolidasse.
republicana e depois sem graves prejuízos e A determinada altura, o próprio Soares Car-
consequências nomeadamente na institui- neiro pediu para eu o receber e disse-me que
altura prometia de alguma maneira que a ção militar. Portanto disse que não. Depois, tinha sido convidado e que iria ser candida-
eleição não seria difícil. E ela foi difícil por houve uma guerra com o Conselho da Revo- to. Teve essa preocupação, essa preocupação
estes pequenos incidentes que lhe referi. Mas lução. Bom, eu era [por inerência ao cargo elegante, dado que ele era um general mas
nunca tive grandes dúvidas de que iria vencer. de Presidente da República] o presidente dependia de mim.
do Conselho da Revolução e entendia que
Já em 1980, na sua recandidatura, o quadro essa guerra era injusta. Porque o Conselho Maior surpresa terá sido o facto de Mário
mudou completamente e os apoios partidá- da Revolução tinha aceitado pôr a sua legi- Soares ter retirado o apoio à sua candida-
rios que tinha em 1976 viraram-se quase timidade revolucionária na dependência da tura à última hora.
todos contra si. Surpreendeu-o a candida- legitimidade democrática, o que era indis- Bom, a posição do dr. Mário Soares foi uma
tura do general António Soares Carneiro? pensável. Aceitou ter um papel político quase posição extremamente complicada, porque
Quando a AD [Aliança Democrática, coli- que honorífico e permitia todas as mudanças. pôs toda a campanha eleitoral em jogo. Ad-
VISÃO H I S T Ó R I A 57
ELEIÇÕES // DEMOCRACIA
“
neiro, até por uma questão democrática?
Foram várias as tentativas para mudar a
data das eleições. Não o fiz porque não havia
consenso partidário para que isso ocorresse.
E também porque era necessário aproveitar
aquele momento traumático para dizer aos
Nunca iria trair o meu princípio de vida: comandar
portugueses que a democracia não são os os outros, mas sempre com o propósito de os servir
58 V I S Ã O H I S T Ó R I A
25 de Novembro
O perfil austero de militar
valeu-lhe a escolha para
candidato presidencial
VISÃO H I S T Ó R I A 59
ELEIÇÕES // DEMOCRACIA
1980
A hora dos
militares à civil
Para uns ainda não era tempo de os militares se
afastarem do poder. Para outros já iam demasiado tarde.
As eleições presidenciais de 1980 refletiram essa gradual
saída de cena dos homens de Abril
por Emília Caetano
A
viagem terminou mal começara. em Setúbal, num comício do seu candidato, o
O avião, um Cessna-421 que acabara general Soares Carneiro. Mas, à última hora,
de descolar do aeroporto da Portela, decidira mudar de planos e ir ao Porto, a sua
despenhava-se sobre umas casas nas cidade natal, tentar inverter as previsões, que
Fontainhas, um bairro modesto em ele sabia serem más.
Camarate, nos arredores de Lisboa, Provavelmente o País estaria preparado
para logo a seguir se incendiar, vitimando para qualquer notícia que envolvesse Sá Car- encontro que teve com Sá Carneiro uma se-
todos os ocupantes, entre eles o primeiro-mi- neiro menos a da sua morte. Desde o 25 de mana antes da sua morte. Confessaria, então,
nistro, Francisco Sá Carneiro. Tinha 46 anos. Abril de 1974 vira-o formar o Partido Popular estar consciente de que, desta vez, poderia
No aparelho, um bimotor que pertencera Democrático (PPD), para pouco depois se perder a jogada. Diria, então, à jornalista:
ao presidente da Venezuela, Carlos Andrés afastar da liderança num confronto interno e «As notícias são trágicas, sabe? Corremos o
Perez, a companheira de Sá Carneiro, Snu voltar, em glória, à liderança. Mais tarde criara risco de perder à primeira volta.»
Abecassis, o ministro da Defesa, Adelino com outras forças políticas uma coligação, a Se assim fosse, prometia ir ainda mais longe
Amaro da Costa, e a mulher, o chefe de ga- Aliança Democrática (AD), que ganharia as do que a sua ameaça de sair do Governo. Afinal,
binete do primeiro-ministro, António Patrício eleições intercalares de 1979, um êxito que deixaria mesmo a política. «Há gente que não
Gouveia, e os dois pilotos. acabara de repetir nas legislativas de outubro. acredita, que pensa que faço chantagem com
Estava-se a 4 de dezembro de 1980, uma E agora já ele se preparava para largar outra isto…Vão ter uma grande surpresa», previa ele.
quinta-feira, apenas a três dias das eleições vez o que construíra. Ameaçava demitir-se se Ao que Snu, à sua frente, juntaria: «Vamos fazer
presidenciais. Aparentemente, Sá Carnei- o Presidente em exercício, o general Ramalho agricultura… Assim não vale a pena continuar.»
ro fora apenas mais um daqueles casos de Eanes, fosse reeleito. E teriam até já um terreno em vista.
alguém que se encontrava no sítio errado à Em O Último Retrato de Sá Carneiro, Com o acidente, a campanha parecia, subita-
hora errada. Naquela altura previra ele estar Maria João Avillez relata, no Expresso, um mente, amputada. Os dados estavam agora tão
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Soares Carneiro em
campanha O general
candididato da AD, com
apoiantes, em Lisboa, em
novembro de 1980
ARQUIVO EXPRESSO
alterados que algumas vozes pediam o adiamen- militares, mas já se fizeram fotografar à civil. a disputar-se quase só entre militares, não
to das presidenciais. Mas não seria assim. Por O próprio Eanes anunciaria na campanha que, faltava nos dois maiores partidos, PSD e PS,
muito que Sá Carneiro polarizasse a campanha se fosse eleito, deixaria as funções militares. quem preferisse que fossem os respetivos
entre ele e Eanes, a Lei Eleitoral só previa o O CR e o Governo viviam, então, num clima líderes, Sá Carneiro e Mário Soares, a can-
adiamento em caso de morte de um candidato. de suspeição mútua, já que Sá Carneiro defen- didatar-se. Por razões diferentes, nem um
Fosse como fosse, o destino das eleições poderia dia a transição imediata para uma sociedade nem outro tiveram condições para avançar.
ter mudado radicalmente nessa noite. civil. E o novo normal ainda sofria aqui e ali E, em ambos os casos, a solução encontrada
alguns embates. Em abril, o Diário de Lisboa causou estragos.
Despir a farda anunciava que se tinha efetuado uns dias
Naquele ano de 1980 Portugal estava a entrar antes, a partir da base aérea do Montijo, «um General, procura-se!
no que hoje chamaríamos o novo normal. O ensaio de operação surpresa contra uma even- Entre as principais forças políticas o tiro de
Conselho da Revolução (CR) ainda continuava tual revolta popular armada no Alentejo». partida para as presidenciais viera da parte
em funções, mas os militares iam-se afastando Outro sobressalto seria um surto grevis- da AD. Ao longo dos primeiros meses de 1980
do poder. Se a propaganda das presidenciais de ta em praticamente todos os transportes algumas figuras do PPD, então já rebatizado
1976 mostrava os principais candidatos farda- públicos. Alguns jornais afetos ao Governo PSD, tinham defendido que fosse Sá Carneiro
dos, na de 1980 quase todos continuavam a ser anunciariam que, numa reunião do CR, fora a candidatar-se. Mas basta ver a Imprensa da
aventada a hipótese de um pronunciamento altura para constatar que o primeiro-ministro
militar, uma tese que contaria com o apoio começou em março a preparar o partido para
do Eanes. Belém não só desmentiria, como a hipótese de ser um militar.
exigiria ao Governo um inquérito para apurar Mas quem? A 5 de abril o Diário de Lis-
a verdade, o que Sá Carneiro recusaria. boa noticiava, em manchete, «AD dividida
A proposta do Governo de abrir ao setor entre Soares Carneiro e Spínola». Primeiro
privado a Banca, os seguros, os adubos e os Presidente da República após o 25 de Abril,
cimentos deu lugar a outro braço-de-ferro o general (depois marechal) Spínola seria
entre a AD e os militares, já que o CR a consi- dificilmente aceitável, já que fundara um
derava inconstitucional. Voltariam a chocar a movimento de extrema-direita, o MDLP, e
propósito da tentativa de alterar a Lei Eleitoral. liderara o golpe de 11 de março de 1975, exi-
Mas se as presidenciais de 1980 vieram lando-se depois no Brasil.
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Poucas horas antes maior peso estavam a confrontar-se no plano
eleitoral. E Soares Carneiro era uma figura
do acidente de inquietante.» Os comunistas, explica Carlos
Camarate, Carlos Brito, Brito, apostavam as fichas todas na derrota
de Soares Carneiro à primeira volta.
do PCP, formalizava O PCP, que não apoiara Eanes em 1976,
a sua desistência a fazia um balanço positivo do seu manda-
to: «Embora a direita o tivesse apoiado, ele
favor de Ramalho Eanes não cedera às suas pressões para aprovar
legislação anticonstitucional. A mesma razão
que levara a direita a ir-se afastando dele
Francisco Sá Carneiro
Num comício de Soares só confirmaram os receios quanto a uma vi- levava-nos a nós agora a esta opção de voto.
Carneiro (ao fundo), tória de Soares Carneiro: «Ele não só tinha E não nos arrependemos. Eanes é uma figura
em que também uma influência fortíssima entre a ala mais à da democracia.»
participou Freitas direita dos militares, como conseguiu mantê- Assim, Carlos Brito fizera-se à estrada com
do Amaral
-la. Ou não se compreenderia que, apesar de duas missões, uma delas relativa a Otelo:
derrotado, tivesse sido nomeado, nove anos «Muita da votação conseguida por ele em
depois, chefe do Estado-Maior General das 1976 tinha ido de eleitorado nosso. Então
Forças Armadas, quando Cavaco Silva era inventei, até com a ajuda de amigos de fora
em Lisboa, apareceram alguns militantes a primeiro-ministro. E Mário Soares, como do PCP e da Imprensa, uma imagem que
pedir que fosse o próprio Soares a candida- Presidente da República, entregou-lhe, em fui usando. Quando me referia a ele, dizia ‘o
tar-se. E Manuel Alegre viria a público pedir 1994, a Grã-Cruz da Torre e Espada, a mais major Otelo, aquele homem que teve a faca
a Eanes que desistisse da candidatura. alta condecoração militar.» e o queijo não mão, pegou na faca e cortou
João Cravinho esteve nessa reunião da Co- a mão.’»
missão Nacional e conta hoje que a escolha O desfecho A sua segunda tarefa era ganhar as hostes
do candidato não fora pacífica desde o início: Os primeiros dias de dezembro correriam do PCP para os aspetos positivos da Presi-
«Soares entendia, legitimamente, que devia em passo acelerado. Poucas horas antes do dência de Eanes: «Não era fácil. Deparei-me
ser ele o candidato, para consolidação da acidente de Camarate, Carlos Brito, candi- ainda com muito má vontade em relação a ele.
democracia. E fazia diligências junto de mili- dato do PCP, formalizava no tribunal a sua Só desistimos quase no fim, para tentarmos
tantes altamente qualificados, que já vinham desistência a favor de Eanes, o que, segundo amortecer o choque junto do nosso eleito-
da resistência, para um apelo público à sua conta hoje, estivera previsto desde o início. rado.» Mas, no final da campanha, tinha a
candidatura.» A partir daí, só sobraria um civil no boletim sensação de dever cumprido: «O eleitorado
Mas a maioria achara demasiado arriscado de voto, Aires Rodrigues, do Partido Operário do PCP votou massivamente em Eanes.»
não apoiar Eanes: «Havia o perigo de uma de- de Unidade Socialista (POUS). Nem no fim o candidato da AD descolara.
mocracia musculada com a vitória de Soares «Sá Carneiro estava à beira de conseguir o «O País conhece-lhe a figura apagada, a pala-
Carneiro. Diz-se que Sá Carneiro o escolheu, seu objetivo. E nós entendíamos que havia o vra fria; conhece-lhe o passado e o presente,
mas foi o contrário. A direita militar é que lhe perigo enorme de o regime resvalar para um a família e os apoiantes, as obscuridades e as
levou o seu nome.» Governo autoritário. Os dois militares com ambições, a máscara e o rosto. Mas Soares
E comenta assim a polémica levantada pela Carneiro é, a dois dias das eleições, o des-
conferência de Imprensa de Eanes: «Claro conhecido», escrevia Fernando Dacosta em
que havia coisas em que ele não se identificava O Jornal.
com o PS. E, naquele dia, teve uma falha, um A 6 de dezembro o País assistiria em direto
mau desempenho, com declarações que não ao funeral do primeiro-ministro, uma longa
poderiam ser bem acolhidas no partido. As- e emotiva despedida, que terá levado alguns
sim, ofereceu de bandeja a Soares o pretexto a criar a expectativa de que ele pudesse con-
de que precisava para levar emocionalmente seguir então o que, como ele sabia, estava em
EPHEMERA
o PS a uma profunda mudança de posição.» risco de não atingir em vida. Mas, morto Sá
O Secretariado viria a decidir manter o apoio Carneiro, o seu candidato emergia da sombra
a Eanes, enquanto Soares cumpria a promes- apenas como ele próprio. No dia seguinte,
sa de se autossuspender. Propaganda Pala para o sol com uma margem de 56,44% de votos, Ra-
Cravinho acha que os tempos seguintes do candidato da AD malho Eanes era reeleito à primeira volta.
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Gigantes Mário Soares
e Freitas do Amaral
travaram um
braço-de-ferro épico
a esquerda e a direita mediram forças, olhos nos olhos, de forma tão dramática
e decisiva. Nas únicas presidenciais com direito a segunda volta, ganhou o
candidato socialista, pela diferença «de um Estádio da Luz»
por Filipe Luís
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ELEIÇÕES // DEMOCRACIA
N
uma campanha ingrata, para onde com cartazes a falar de fome e não sei quê,
partira com 8% nas sondagens, o e eu atravesso a concentração. Fizeram alas
ex-primeiro-ministro do impopu- e eu avancei. Mas depois fecharam as alas,
lar Governo do Bloco Central (PS- fiquei quase só com as poucas pessoas que
-PSD), que caíra uns meses antes, vinham comigo e começou tudo à pancada.
tinha tido, enfim, o seu banho de O meu segurança ficou ferido e eu apanhei
multidão, no bastião socialista da Nazaré, uma pancada nas costas.»
terra de pescadores, eternamente agradeci- Era o famoso «clique» da Marinha Grande,
da pela obra de um dos governos chefiados o episódio que, segundo se acredita, fez dis-
pelo agora candidato presidencial: fora Mário parar Mário Soares rumo ao segundo lugar
Soares, agora com 61 anos, quem mandara na primeira volta – forçando, portanto, uma
construir o porto de abrigo, uma infraes- segunda volta que parecia perdida – e, depois,
trutura salvadora de vidas e prometida aos rumo à vitória final. Naquele momento, se
nazarenos, desde Marcelo Caetano, por dois demonstrasse que não havia um só palmo de
regimes e meia dúzia de governos. Soares, terra do seu país onde um homem livre não
patinho feio do primeiro terço da campanha, pudesse circular, conseguiria captar a atenção
vira-lhe recusado, até, o apoio financeiro, do eleitorado. Se o fizesse, mesmo que arris-
EPHEMERA
passado todos os horrores da austeridade
recente, imposta pelo FMI e pelo Governo
chefiado por Soares: os salários em atraso, o
desemprego e a fome. Ano novo Todas as candidaturas produziram calendários
Escurece cedo, em janeiro. Soares dormita
no carro, até ser acordado pelos brados de
um elemento do PS local, que aparece, de O voto em Soares de um direitista radical
cabeça rachada e viatura com chapa amol-
Freitas do Amaral ensaia várias explicações para a derrota de 1986. Uma das mais
gada. Pouco antes, nos arrabaldes da cidade elaboradas é a de que alguns eleitores de direita preferiam ter um Mário Soares
vidreira, quando tentava anunciar a chegada domesticado, em Belém, do que um Freitas a tentar agradar à esquerda. E cita, nas suas
do candidato, o homem tinha sido alvo da ira memórias, o exemplo do professor de Direito Pedro Soares Martinez, um conhecido
popular, com a marca do PCP. «Não podem ativista da direita radical: «Os presidentes são eleitos por uma fação, mas, depois,
passar! Se o Soares entrar na Marinha, vão querendo ser como os monarcas, procuram afirmar-se como ‘presidentes de todos
liquidá-lo!» os portugueses’. Para isso, precisam de agradar a quem não votou neles e, assim,
se Soares fosse eleito, teria de agradar à direita; mas se o escolhido fosse o Freitas,
O resto é contado posteriormente pelo
este tenderia a agradar à esquerda! Ora, eu prefiro um Presidente de esquerda que se
antigo candidato ao seu biógrafo, Joaquim esforce por agradar à direita, do que contrário.» Uma boa explicação para um certo
Vieira: «Chego lá, vejo aquela onda negra eleitorado de Marcelo Rebelo de Sousa que tenha ficado desiludido com o seu primeiro
de gajos, tudo vestido de preto, as mulheres mandato...
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após as presidenciais que, embora Soares
pudesse gabar-se de ter ganho as eleições em
condições particularmente difíceis, Diogo
Freitas do Amaral, então com 44 anos, podia
orgulhar-se de ter feito, em Lisboa, um dos
maiores comícios de sempre. Na campanha
«Prá Frente Portugal», slogan inventado por
Daniel Proença de Carvalho (ver caixa), uma
onda de chapéus brancos de palha com uma
fita com o nome do candidato e os dizeres do CDS na origem
O JORNAL
Novidade Colocar
em cartazes
os rostos de
apoiantes notáveis
foi uma inovação
da campanha
de Soares
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ELEIÇÕES // DEMOCRACIA
O JORNAL
seu diretor político. Para contrabalançar
aos notáveis de Soares, oriundos da socie-
dade civil, Freitas contou com os apoios de Comícios cheios A campanha de Freitas parecia uma onda imparável
Autocolantes
Nas lapelas
dos apoiantes,
pareciam outdoors
ambulantes...
EPHEMERA
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‘Merchandising’
O famoso chapeú
de palha com a fitinha
O risco do ‘Prá Frente Portugal’
que trazia o nome Não foi consensual, no interior da
e o slogan do candidatura de Freitas do Amaral, o slogan
candidato foi um da sua campanha. No grupo informal de
sucesso aconselhamento, composto, entre outros,
por Luís Beiroco, José Ribeiro e Castro,
André Gonçalves Pereira, Paulo Portas (um
jovem ainda independente) e Daniel Proença
de Carvalho, estabeleceu-se alguma
polémica quando este conhecido advogado
lançou a frase para a mesa: «Prá frente,
Portugal!» Os circunstantes dividiram-se:
não seria um slogan demasiado nacionalista? Proença de Carvalho trazia a frase
na manga, depois de reuniões que tivera, em sua casa, com outros apoiantes da
candidatura. A frase acabou por ser aprovada… e pegou, como bem demonstraria o
sucesso do merchandising da campanha: os milhares de chapéus de palha branca e
O JORNAL
nomes como o da escritora Agustina Bessa lher, nesse mesmo dia, «isto mudava tudo». partido eanista, com cerca de 18%, reduziria o
Luís (mandatária nacional), Helena Vaz da Cavaco fora o ministro das Finanças de Sá PS de Almeida Santos – Soares saíra da lide-
Silva, Rocha de Matos, Borges de Macedo Carneiro, preconizava uma via alternativa rança para preparar a candidatura presiden-
(pai), Medina Carreira, Leonardo Mathias, ao Bloco Central, já maioritária no sentir das cial – a cerca de 20 por cento. Cavaco ganha
João Lobo Antunes ou Nicolau Breyner. Do bases do partido, e desviaria o PSD do apoio a com pouco mais de 29% e forma governo.
PSD, antes mesmo do apoio oficial, surgiam Mário Soares, tão laboriosamente trabalhado Soares é desaconselhado, pelos seus próprios
futuros cavaquistas, como Álvaro Barreto pelo ainda primeiro-ministro e líder do PS. camaradas socialistas, de concorrer sem o
ou Cardoso e Cunha. Mas foi Cavaco Silva Pouco depois da entronização de Cavaco no apoio do PSD. E Freitas, agora reforçado
quem deu o empurrão final. PSD, o Governo caía. A emergência do PRD, pela poderosa máquina social-democrata,
está sozinho na estrada.
Cavaco e o mito
da rodagem do carro Fraude eleitoral do tipo Trump
A iniciativa de Cavaco, em abril de 1985, de Em 1985/86, o País vivia um momento de
informar Freitas do Amaral de que o apoiaria polarização entre dois portugais inconciliá-
– ele e o engº Eurico de Melo – numa can- veis. O futuro magistério de influência de
didatura presidencial contra Mário Soares, Soares, a sua moderação e a coabitação com
parece ter sido decisiva. A jogada de Cavaco, o primeiro-ministro do PSD, Cavaco Silva,
revelada em 2019 por Freitas do Amaral, pelo menos, no primeiro mandato, viria a
prova inequivocamente que o mito da ro- estabilizar o País já numa forma aproximada
dagem do Citroën BX até à Figueira da Foz, ao que entendemos hoje por regime demo-
para participar num congresso de onde, por crático. Mas nessa altura apenas uma década
acaso, saiu presidente do PSD, é uma balela. tinha passado desde os tempos revolucioná-
O Congresso foi mais de um mês depois do rios do PREC. O País já se desembaraçara
encontro de Cavaco com Freitas, momento do Conselho da Revolução, após a revisão
em que o professor de Finanças lhe comuni- constitucional de 1982, mas vivia ainda sob
cou que iria à Figueira apresentar um projeto
Pintasilgo mostrava uma lei fundamental rumo ao socialismo,
político em que incluiria o apoio do PSD a cara, Freitas apostava com a delimitação dos setores e a estatiza-
à candidatura do professor de Direito. «Se ção dos principais meios de produção e do
as minhas ideias forem aprovadas, poderei
no ano da viragem, sistema financeiro. Tinha sido uma década
sair de lá presidente do PSD. Se não forem, Zenha lançava um Z dura, ainda sem adesão à CEE (futura União
venho-me embora, mas o senhor pode sempre Europeia) e espremida por duas intervenções
contar com o meu apoio pessoal.»
de Zorro. Em comum, do FMI. O mundo dividia-se entre a esfera de
Como comentou Freitas com a sua mu- as cores nacionais influência dos EUA, líderes do mundo livre,
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ELEIÇÕES // DEMOCRACIA
RUI OCHOA/EXPRESSO
ni Lopes, a chamar o FMI, para emendar o aplicação vimos recentemente no quadro das
mal já feito. Ernâni havia sido praticamente eleições presidenciais americanas…
imposto pela Europa, que fazia depender da
disciplina financeira do País o «sim» ao pedi- ‘Ponham a cruzinha’, disse
do de adesão. Mário Soares e Ernâni Lopes Cunhal
aplicaram medidas de austeridade draconia- Neste quadro, Soares enfrentava vários can- esquerda não alinhada. Ao mesmo tempo,
nas e recuperaram o País, entregando-o, em didatos à esquerda: Salgado Zenha, um socia- Soares tem de lutar pelos votos ao centro, de
1985, com as contas em ordem e a assinatura lista e compadre, ex-amigo pessoal, mas que forma a impedir que o eleitorado moderado
já firmada no tratado de adesão, a um feliz tinha rompido com ele, e que representava se incline todo a favor do candidato único
Cavaco Silva: tinha sido garantido o fluxo o poderoso setor eanista; Ângelo Veloso, do da direita.
de fundos europeus que fizeram brilhar a PCP, que desistiria a favor de Zenha; e Maria Apesar de partir com 8% das intenções de
primeira metade da década do cavaquismo. de Lourdes Pintasilgo, última primeira-mi- voto, ele tem a candidatura mais abrangente,
Mas, nesse ano, o País estava exangue, de- nistra dos governos presidenciais de Eanes, com apoios que vão da esquerda a algumas
primido e zangado. Soares fizera tudo para uma católica progressista com apoios da figuras mais à direita, como Pacheco Pereira
garantir o apoio do PSD a uma sua candida- ou Vasco Pulido Valente, um dos estrategos da
tura. Mas a morte de Mota Pinto e a ascensão campanha. Outros nomes importantes iam
de Cavaco trocaram-lhe as voltas. O novo líder do diretor de campanha, comandante Gomes
do PSD, que rompe com o Bloco Central, Mota, um homem moderado do 25 de Abril,
revela-se um adversário à altura, duro de roer.
Independentemente das políticas públicas,
Ao garantir os votos dos ao mandatário nacional, o prestigiado acadé-
mico e engenheiro químico Fraústo da Silva.
o País divide-se ideologicamente. A AD fa- eleitores do PCP, contra Havia ainda estetas como o realizador Antó-
lhara, em 1980, a primeira tentativa de levar
à prática o projeto de poder de Sá Carneiro:
Freitas, Soares acabou por nio-Pedro de Vasconcelos (na conceção dos
tempos de antena) e pensadores ou criadores
«Uma maioria, um governo, um Presidente.» beneficiar da regra como António Barreto, João Bénard da Costa
O ressentimento à direita, ainda por cima
atordoada pela morte do seu líder messiânico,
da «exclusão de partes»... ou a jornalista Clara Ferreira Alves, todos com
participação no planeamento dos conteúdos
Sá Carneiro, era enorme. Mas, à esquerda, dos tempos de antena. E contava ainda com
Diogo Freitas do Amaral era encarado como a colaboração de figuras populares do meio
o rosto do regresso ao passado – à ditadura de audiovisual, como José Nuno Martins.
Salazar e Marcelo Caetano e ao antigo regime. No ataque à segunda volta, o principal rival
Em 2019, poucos meses antes de morrer, era Salgado Zenha, com o apoio de parte das
Freitas do Amaral explicava, em entrevista Segunda volta Autocolantes novos bases do PS, dos eanistas e, depois, do PCP.
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O «clique» da destinado a convencer os eleitores comunis-
Marinha Grande, tas. O assunto teria de ser tratado com pinças.
14 de janeiro
O MASP enviou emissários para parlamentar
de 1986 O momento
em que Soares sente com o PCP, Gomes Mota e Jorge Sampaio,
a agressão, por trás, tendo os comunistas a representá-los nas
à entrada no bastião conversações Octávio Pato (que tinha sido
comunista do distrito
de Leiria.
candidato em 1976) e Carlos Brito (que foi
E a sorte mudou... candidato em 1980, tendo desistido a favor
de Eanes). E o PCP, que no anterior congresso
decidira recusar apoio a uma candidatura
presidencial de Mário Soares, realizou, de
emergência, um congresso extraordinário,
para rever a decisão. Ficou célebre a «ordem»
de Álvaro Cunhal aos disciplinados militan-
tes: «Se não quiserem olhar para a cara do
candidato, tapem a fotografia, com uma mão
– mas, com a outra, ponham lá a cruzinha.»
VISÃO H I S T Ó R I A 71
ELEIÇÕES // DEMOCRACIA
Debates
para a História
As eleições presidenciais são ocasião para
que o País assista a debates políticos do tipo
«mano-a-mano», que concentram expetativas,
originam esperanças e provocam acrimónias.
Aqui fica o exemplo de seis duelos
dos mais marcantes
por Filipe Luís
E
m 1960, o mundo despertava para o nha, advogado de Lisboa como ele e ex-alma do País, com a ditadura de Salazar e Caetano
papel decisivo da televisão em campa- gémea na condução do PS na travessia do muito presente, interessava brandir o papão
nhas eleitorais. Nos EUA, John Ken- período revolucionário. do fascismo, a alegada mão por detrás do
nedy e Richard Nixon inauguravam Zenha não é um político qualquer: na li- arbusto. No derradeiro debate televisivo,
uma era de debates televisivos entre derança bicéfala do PS, com Mário Soares, usou toda a artilharia antifascista, encos-
políticos, que se tornariam o padrão ele tinha mantido uma ligação de amizade, tando Freitas às cordas. O fundador do CDS,
global do tira-teimas público, no confron- de décadas, com o agora adversário político. apanhado desprevenido pela violência do
to de ideias, de estilos e de personalidades. Ambos oradores quase churchilianos, eram ataque – vindo de alguém com quem tinha
Diz-se que a monumental vitória, no de- como parentes. Numa tirada emotiva, já sempre mantido boas relações pessoais e
bate, do jovem Kennedy, um fenómeno de debaixo dos ataques implacáveis de Zenha, políticas – não resistiu. Soares atacou, atacou
comunicação telegénica, contra um aflito – e Soares apela ao sentimento: «Ó Zenha, não e voltou a atacar: que Freitas estava compro-
transpirado... – Nixon, lhe valeu a eleição. digas isso, nós somos da mesma família, so- metido com o anterior regime. Que tinha sido
Do que se trata aqui é de recordar alguns mos irmãos...» Mas o empedernido opositor assistente de Marcelo Caetano. Que, antes
debates marcantes, em contexto de eleições dispara, mantendo o formal tratamento por do 25 de Abril, tinha sido instrutor de um
presidenciais em Portugal. «senhor»: «Eu não pertenço à sua família.» processo disciplinar universitário movido ao
Pouco depois, num segundo golpe, nega qual- filho, João Soares, por razões políticas. No
Soares vs Zenha: ‘Nós não quer identidade comum ou possível contacto. final, a impressão geral foi a de que Soares
somos irmãos’ Quem ganhou? Mário Soares, que teve o seu tinha desmascarado o «fascista». E ganhou.
«Levei dois socos no estômago, à queima- momento de fraqueza, levou os «socos» e se fi-
-roupa, e fui incapaz de reagir de imediato.» cou, ou Zenha, que revelou uma frieza própria Soares vs Basílio Horta:
Assim descreve Mário Soares ao seu biógrafo de um coração de pedra? Nunca se saberá. o caso do fax de Macau
Joaquim Vieira (Mário Soares, Uma Vida, Nas presidenciais de 1991, quando Mário
A Esfera dos Livros, 2013) o debate político Soares vs Freitas: o assistente Soares se prepara para a reeleição, um pe-
mais traumatizante da sua carreira. Soares de Marcelo Caetano noso debate com Basílio Horta, candidato
adquirira o estatuto de lenda, em debates, dez Em 1986, Mário Soares fizera toda uma da direita, encosta-o às cordas, na RTP. Os
anos antes, ao esmagar Álvaro Cunhal, seu primeira volta a tentar conquistar os votos principais amigos políticos do Presidente-
antigo mestre no Colégio Moderno. Agora, em necessários ao centro, que lhe permitissem -candidato estão envolvidos num caso de
1986, candidato presidencial apoiado pelo seu forçar uma segunda volta. Do que se tratava corrupção que salpica de lama o manto pre-
PS, patinho feio das sondagens, Mário Soares, agora, porém, no tira-teimas, era de mobi- sidencial. Carlos Melancia, ex-governador de
na mó de baixo, via o espetro da derrota, como lizar toda a esquerda (incluindo a extrema- Macau, nomeado por Soares, fora acusado
um pugilista decadente, pesado, deformado -esquerda comunista), sem a qual jamais de receber 50 mil contos (250 mil euros) do
pelas adiposidades do desgaste do Poder. poderia ganhar umas eleições que haveriam consórcio alemão da Weidleplan em troca de
O homem que lhe esmurra o nariz, uma e de decidir-se no photofinish. Portanto, a facilidades no concurso para a construção
outra vez, chama-se Francisco Salgado Ze- Mário Soares, sabedor do estado polarizado do aeroporto de Macau.
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Mário Soares e Freitas do Amaral
O debate de 1986 afetou as relações
pessoais – mas por pouco tempo.
Acabaram por fazer as pazes
de Sousa no debate para as autárquicas, em ataque cerrado, como fizera com Cunhal e
Lisboa. Cavaco, que se revelava um buldó- com Freitas, Mário Soares escolhe a postura
zer em campanha de rua, regressava à sua da provocação: «Não tem conversa!», dei-
timidez congénita quando confinado sob as xou escapar, exasperado, sobre Cavaco, de
câmaras de TV. Tudo isto favorecia Jorge quem dizia, em privado, isso mesmo: «Um
Sampaio. Por isso, a sua vitória no debate tipo sem mundo e sem conversa.» O antigo
de 21 de dezembro de 1995 foi confirmada primeiro-ministro do PSD, porém, adotou
pelas sondagens de opinião 44% favoráveis, a estratégia que tinha sido aconselhada a
contra os 22% de Cavaco. Freitas do Amaral em 1986, com a diferença
À vista desarmada, pode não ter ficado de que, desta vez, resultou: com uma atitu-
grande memória desse confronto, mas ele de serena, educada, procurou ajudar Mário
terá sido decisivo para fazer desacelarar a Soares a «terminar o debate com dignidade»,
caminhada em crescendo de Cavaco, que, saboreando a vingança do segundo mandato
partindo com perspetivas sombrias, ensaiava presidencial do oponente, em que este tinha
uma recuperação em campanha, o que levou feito a vida negra ao seu governo. O que fica
O JORNAL
alguns observadores a referir que, com mais desta última batalha do «velho leão» é a de-
15 dias, teria ganhado as eleições. Antes do cadência política e de discernimento – mas
debate, Sampaio teve treinos de colocação também o exemplo da sua combatividade,
Num ataque cerrado, Basílio Horta, o de voz e prestação televisiva num estúdio de dando expressão à sua máxima de vida: «Só
candidato apoiado pelo CDS, passa o debate Benfica. Indicação essencial dos assessores, é derrotado quem desiste de lutar.»
inteiro a flagelar o seu oponente com estas não se perder em divagações e dar respos-
e outras revelações, suspeições e acusações. tas curtas, para prevenir as interrupções do Cavaco vs Defensor
Basílio, que remete Soares a uma defesa moderador... de Moura: o caso BPN
débil, pode ter dado a sensação de sair por No momento em que Aníbal Cavaco Silva se
cima. Mas terá exagerado. Afinal, ele estava Cavaco vs Soares: recandidatava para um segundo mandato
a fustigar de forma excessivamente agressiva ‘Um tipo sem conversa’ (2011), o caso BPN era uma bomba que ain-
o político mais popular do País (Soares se- Em 2005, aos 81 anos, Mário Soares meteu da deflagrava estilhaços. Era assunto tabu
ria eleito com mais de 70% dos votos). Pelo na cabeça que poderia ser eleito para um nos debates: ninguém queria correr o risco
contrário, o prejudicado foi o próprio Basí- terceiro mandato, nas presidenciais do ano de iniciar uma campanha negra, de ataques
lio, acusado de falta de educação. Durante seguinte. E o debate mais marcante destas pessoais, contra Cavaco, só porque alguns dos
algum tempo, os dois homens ficaram de eleições não foi, como alguns anteviam, o que seus mais próximos amigos políticos, como
relações cortadas. Depois, fizeram as pazes. o fundador do PS travou com o seu amigo e Oliveira e Costa e Dias Loureiro, apareciam
O caso Emaudio/Fax de Macau constituiu correligionário político no PS, Manuel Ale- envolvidos. E foi um candidato marginal,
o momento mais próximo que se esteve de gre, que se candidatou como independente. Defensor de Oliveira de Moura, um médico
ver destruída a carreira política e a imagem O momento mais embaraçoso de uma campa- de Viana do Castelo, deputado do PS, quem
pessoal de Mário Soares. Em 2013, Basílio nha que arrancou mal e nunca se endireitou, abriu as hostilidades, trazendo o caso BPN à
Horta tornou-se presidente independente acabou por ser o confronto com Cavaco. Num baila, num debate televisivo. Em causa, não
da Câmara de Sintra. Eleito pelo PS. apenas as proximidades políticas – idênticas
às que tinham chamuscado Mário Soares,
Sampaio vs Cavaco: travar a no caso do fax de Macau… – mas o facto de
embalagem Cavaco ter feito uma «simpática» mais-valia
Relativamente fraco em campanhas eleito- – 140% – com a venda de um lote de ações da
rais, tímido, encolhido, Jorge Sampaio tinha, Uma das frases mais Sociedade Lusa de Negócios, SLN, detentora
em 1996, um teste difícil contra Cavaco Silva. do BPN, que tinha adquirido por bom preço,
Mas este, embora tenha obtido duas maio-
emblemáticas de Cavaco, não no mercado normal, mas a convite dos
rias absolutas, tinha visto empalidecer a sua «para serem mais responsáveis do banco.
popularidade, fruto da crise e do desgaste O debate ficou célebre, não propriamente
do Poder. Além do mais, ignorava-se o valor
honestos do que eu têm pelo ataque cerrado de Defensor de Moura,
da prestação de Cavaco em debates, ele que de nascer duas vezes», foi mas pela «lapidar» frase de Cavaco, proferi-
sempre os tinha recusado – mas sabia-se que da, não uma, mas duas vezes: «Para serem
Sampaio era temível, nesse plano, depois de,
proferida num debate com mais honestos do que eu, têm de nascer
em 1989, ter «derretido» Marcelo Rebelo um oponente improvável... duas vezes!»
VISÃO H I S T Ó R I A 73
ELEIÇÕES // DEMOCRACIA
1996
Em tempos de guerra
não se limpam armas
A 14 de janeiro, Jorge Sampaio sucedia a Mário Soares
como Presidente da República, derrotando Cavaco Silva,
vindo de uma década de governo. O acordo com o PCP na
Câmara de Lisboa, anos antes, foi a chave para estas eleições
N
por Luís Pedro Cabral
as eleições autárquicas de 1989, o PS desse ano. Cavaco Silva tinha levado ao ex- denciava. Mas, a escassos meses da abertura
sagrou-se vitorioso e Jorge Sampaio tremo o primeiro do seu ciclo de tabus. Só à oficial das «hostilidades», o candidato socia-
o vencedor entre os vencedores, con- entrada do congresso do PSD fizera anunciar lista não sabia ainda (a não ser de instinto
quistando a Câmara Municipal de que não se recandidatava à presidência do político) quem era o seu adversário. Como
Lisboa (CML) por via de um acordo partido. A vitória eleitoral do PS, apesar de já havia acontecido antes das legislativas,
inaudito com o PCP. A derrota aba- não ter sido por maioria absoluta, teve um Cavaco deixou à deriva a máquina «laranja».
lou o governo de Cavaco Silva, que demorou indiscutível sabor amargo para Cavaco, ainda Jorge Sampaio apresentou formalmente a
a digerir este protótipo municipal de «ge- primeiro-ministro. A esquerda, que nunca sua candidatura presidencial a 7 de feverei-
ringonça». Em consequência da inesperada fora abertamente apologista de um desígnio ro de 1995. A cerimónia, de carácter quase
débâcle autárquica, cabeças governamentais transversal de poder, concretizava-o. No final familiar, foi singela. Singela de mais para a
rolariam. Na sua biografia, Cavaco Silva con- do seu segundo mandato, Mário Soares era comunicação social, que a considerou pouco
siderou mesmo ter sido este um dos momen- o Presidente da República, Almeida Santos entusiasmante, havendo quem lhe augurasse
tos políticos mais difíceis da sua vida. Das presidente da Assembleia da República e o derrota certa.
trincheiras do PS, emergiu um candidato a recém-eleito António Guterres chefe de Go- Cavaco Silva só o fez em outubro, segundo o
voos maiores. E o primeiro a vaticiná-lo foi verno. E, na mais importante autarquia do próprio eivado pelo sentido do dever que ad-
José Medeiros Ferreira, nas páginas do Diário País, Jorge Sampaio organizava a candidatura vinha da derrota nas legislativas. Esse, aliás,
de Notícias: «Jorge Sampaio constituiu-se au- presidencial. seria um dos motes da sua campanha. As
tomaticamente desde a noite de 17 de dezem- O País rumava à esquerda e Cavaco Silva, de circunstâncias ditaram táticas politicamente
bro de 1989 como o candidato presidencial novo, virava-se para os seus botões, gerindo bizarras. Dada a incontestável popularidade
mais forte para o ano de 1996.» Não faltou, sucessivos tabus. Se o professor Cavaco Silva de Mário Soares, Cavaco Silva, sempre come-
inclusivamente no PS, quem duvidasse da admitia uma candidatura à presidência da dido em público, várias vezes teceu rasgados
profecia. Aparentemente, nem tal tinha ainda República? Tabu. Desde 1994 que a hipótese elogios ao então Presidente da República.
passado pela cabeça de Jorge Sampaio, mais de Sampaio formalizar candidatura se evi- Instalou-se um clima de «namorico» estraté-
tarde eleito secretário-geral do PS, candidato
natural a primeiro-ministro nas legislativas
de 1991, nas quais Cavaco Silva conquistou
mais uma maioria absoluta, naquele que foi
o mais longo exercício de poder da história
da democracia portuguesa.
A 28 de outubro de 1994, António Guterres
vencia as legislativas e tornava-se primeiro-
-ministro, interrompendo a hegemonia de
uma década do PSD no governo. Para tal, der-
rotou Fernando Nogueira, eleito presidente
do PSD no congresso «laranja» de fevereiro
74 V I S Ã O H I S T Ó R I A
ANTÓNIO XAVIER/VISÃO
Comício final, Coliseu dos Recreios de Lisboa Dois dias depois, Jorge Sampaio seria eleito Presidente à primeira volta
gico, que quase tirava do sério Jorge Sampaio, que, sendo sobejamente conhecido na capi-
Um dos episódios conforme descreve o jornalista José Pedro tal e nos grandes centros urbanos, não era
da campanha foi quando Castanheira no volume II de Jorge Sampaio
– Uma Biografia. Cavaco Silva, que personifi-
personalidade que o chamado país real co-
nhecesse bem. Cavaco Silva, aparentemente,
perguntaram a Sampaio, cava um longo ciclo de poder (três governos, não tinha esse problema, o que, aliás, po-
numa entrevista televisiva, duas maiorias), apresentava-se agora como a
personificação do contrapoder, uma espécie
dia jogar em seu desfavor. A estratégia de
campanha sampaísta, liderada pelo atual
se acreditava em Deus. de fiel de uma balança que tombava para primeiro-ministro, António Costa, consistia
«Não.» Num ápice, a esquerda. A sua experiência governativa,
precisamente a que o eleitorado acabava
em calcorrear incessantemente o País, cidade
a cidade, aldeia a aldeia, lugar a lugar, voto
a declaração passou de derrotar, era outro dos seus estandartes. a voto. Talvez por fenómeno mimético, até
a ofensa moral O seu longo tabu, porém, acertaria contas com
ele. «Quando, finalmente, Cavaco oficializou
porque a candidatura de Sampaio parecia ter
adquirido na estrada a sua energia, os estrate-
a candidatura e avançou para a campanha, já gos cavaquistas decidiram fazer exatamente
Sampaio estava no terreno, liderando todas as o mesmo. De ambos os lados da barricada,
sondagens», recorda José Pedro Castanheira. não se poupariam quilómetros, abraços e bei-
A Jorge Sampaio e a Cavaco Silva juntavam-se jinhos. A meteorologia eleitoral dava sempre
na corrida presidencial o candidato Jerónimo chuva de brindes, T-shirts, chapéus, cache-
de Sousa, pelo PCP, e Alberto Matos, pela cóis, bandeiras e canetinhas, uma infindável
UDP. Ambos desistiriam para Sampaio. Em coleção de autocolantes. «Éramos como uma
bom rigor, a corrida foi sempre a dois. E, mais trupe de commedia dell’arte, sempre cheia de
do que nunca, decidiu-se na estrada. público; tinha qualquer coisa de neorrealismo
italiano», recorda Inês de Medeiros, atual
Inês de Medeiros e Maria Borges presidente da Câmara Municipal de Almada,
Antes da campanha, a imagem pública que à época atriz, que junto com o pianista Pedro
passava sobre o candidato de esquerda era Burmester seriam os mandatários da candi-
VISÃO H I S T Ó R I A 75
ELEIÇÕES // DEMOCRACIA
6 VISÃO H I S T Ó R I A
776
Cavaco Silva Apesar
de Sampaio ter estado
sempre à frente nas
sondagens, os banhos de
multidão multiplicavam-se
VISÃO H I S T Ó R I A 77
ELEIÇÕES // DEMOCRACIA
2006
Uma campanha com
passado pela frente
O «combate final» entre Cavaco e Soares foi o confronto
entre duas formas de estar no mundo. A intromissão e o
bom resultado de Manuel Alegre constituiu a surpresa
por Filipe Santos Costa*
F
oi a história de uma candidatura ines- O duelo irresistível
perada e de uma vitória anunciada. Numa tarde quente de fim de agosto de 2005,
Houve candidatos de esquerda para Mário Soares fez história. Ao fim de décadas
todos os gostos, unidos numa derrota a marcar o rumo às coisas, ainda sabia como
coletiva; e houve um só candidato de fazê-lo: com voluntarismo, coragem e desas-
BRUNO RASCÃO/VISÃO
direita, para vencer. Pelo meio, assistiu- sossego em doses iguais. Não é comum que
-se, outra vez, a um confronto de camaradas a história política passe por tardes de agosto
desavindos. Foi uma campanha com muito como aquela, a convidar à praia e à modorra,
passado pela frente. A média de idades dos mas esse foi o facto menos insólito desse dia.
candidatos era de 64 anos, entre os 81 do Afinal, foi o dia em que um ex-Presidente da
veterano Mário Soares e os 49 de Francisco República, com dois mandatos cumpridos Janeiro de 2006 Comício de Mário Soares,
no Porto, e ação de rua de Cavaco Silva
Louçã, que nessa contenda fez as vezes de em Belém, se recandidatou ao cargo. Como
jovem imberbe. se não lhe bastasse ser o «pai» de um dos
As presidenciais de 2006 foram eleições de partidos do regime, ser um dos fundadores
história insólita e desfecho previsível. da democracia, e ter a chefia do Governo e
A corrida parecia a dois, entre Cavaco Silva do Estado no currículo.
e Mário Soares. Decidiu-se a três, com a intro- Aos 80 anos, com uma vida cheia no pas- a primeira maioria absoluta da democracia
missão de Manuel Alegre. E disputou-se a seis sado e dias cheios no presente, com livros por portuguesa; o homem que, a partir de Belém,
– mas Jerónimo de Sousa, Francisco Louçã e escrever, artigos para publicar e uma fundação Soares tinha ajudado a desgastar e a derrotar.
Garcia Pereira limitaram-se a cumprir a função para dirigir, Soares abdicou da reforma política Mas também o homem com quem Soares nun-
de representação partidária, com resultados à onde outros o queriam sossegado, para um ca havia medido forças. Aquele era o momento.
medida dos seus partidos. As presidenciais de último desafio: enfrentar o homem que era Na sala do Hotel Altis onde Mário Soares se
2006 foram como aqueles duetos da ópera que a sua némesis há mais de duas décadas. O voltou a apresentar ao ativo sentia-se aquela
afinal são um trio, com um baixo a interpor-se homem que havia rompido o acordo do bloco efervescência que rodeia os ajustes de contas
entre os dois tenores que querem as atenções central, graças ao qual Soares governara o País e a História a acontecer em direto. Sentia-se
só para si. No final, venceu Cavaco. com o apoio do PSD; o homem que alcançara também aquele comprazimento dos poderosos
78 V I S Ã O H I S T Ó R I A
JOSÉ MIGUEL TELES/VISÃO
ao fazer desfilar poder – eram muitos os VIP António Vitorino, Jaime Gama, Ferro Rodri- idade, chegou a confidenciar à sua gente que,
que se acotovelavam para aparecer no boneco e, gues… Chegou ao início do verão com dois depois de ter entrado na corrida, talvez Cavaco
entre estes, muitos os governantes e dirigentes protocandidatos interessados na corrida: o desistisse de se candidatar… Afinal, nenhum
do PS a dizer presente, capitaneados pelo líder ministro dos Negócios Estrangeiros, Freitas desses pressupostos se revelou verdadeiro. Ca-
do partido e do Governo, José Sócrates. do Amaral, que agradava a Sócrates, mas não vaco nem tremeu. E Soares não foi o máximo
Na versão contada por Soares, fora Sócrates ao partido, e Manuel Alegre, que agradava à denominador comum, não pacificou o PS, não
o responsável pelo seu inesperado regresso. ala esquerda do partido, mas não a Sócrates. uniu a esquerda e não se revelou um candidato
Há muito que era evidente que Cavaco seria No impasse, o regresso de Soares acabou por irresistível. Pelo contrário.
candidato às eleições marcadas para janei- emergir como a solução de recurso, o máximo A esquerda partiu-se entre os candidatos
ro de 2006. O primeiro-ministro socialista, denominador comum, o «pai da Pátria» capaz do PCP, do BE e do PS. Dois do PS. Contra
eleito em fevereiro de 2005 com maioria de pacificar o PS e unir a esquerda contra o a expectativa de Soares e de Sócrates, Ma-
absoluta, não estava disponível para esten- regresso de Cavaco. Soares era a «divisão Pan- nuel Alegre avançou mesmo, apoiado pela
der uma passadeira vermelha que deixasse a zer»: não se lhe resistia, segundo a análise do ala esquerda do PS e apostado no apelo a
direita na posição de contrapoder em Belém, então comentador político Marcelo Rebelo de abstencionistas e a eleitores desiludidos com
e foi tentando vários pesos-pesados do PS, Sousa. O próprio Soares, embalado por uma o espartilho partidário sobre a democracia.
numa escadinha de nãos: António Guterres, euforia difícil de imaginar em tão provecta Homem de partido desde sempre, Alegre
reinventou-se como adversário da partido-
cracia e paladino dos independentes, fazendo
uma campanha muito crítica do PS, o mesmo
PS cujo apoio havia procurado.
Soares, esse, nunca descolou do PS. Pelo
contrário, refastelava-se com o conforto par-
tidário, e se críticas tinha ao seu partido, era
quando a máquina socialista titubeava no
apoio à sua campanha.
VISÃO H I S T Ó R I A 79
ELEIÇÕES // DEMOCRACIA
80 V I S Ã O H I S T Ó R I A
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candidatura tinha a sua própria tracking poll,
que ajudava a afinar ao milímetro cada discurso
O que os outros
e ação de campanha. Era, para a época, uma 0=>E0 disseram
campanha high-tech. Alexandre Relvas, o em- E83034
presário que dirigia as operações cavaquistas
(a.k.a. «o Mourinho de Cavaco»), gabava-se
20E02> Um torneio medieval,
com dois paladinos
de estar sempre ligado ao mundo por internet, emblemáticos, bem
graças a uma placa de 3G... @dPXbey^bTaPb representativos das ‘escolhas
bdPb_aX^aXSPSTb
T\1T[|\ razoáveis’ que a sociedade
O improviso romântico 0b^_X]XTbST portuguesa pode fazer, sem
0]c
]X^1^aVTb
Entre o profissionalismo da campanha de 4SdPaS^;^daT]{^ ser em termos de western
T9^b|6X[
Cavaco e o voluntarismo da de Soares, havia imaginário.»
38B2>6AÍC8B
o improviso da campanha de Manuel Alegre. Eduardo Lourenço
236AÍC8B ><4;7>A
Sem partido, sem 3G nem high-tech, sem B4=´>4BC8E4A2>;03>
?4p0=010=20 34<>I0AC
aqueles profissionais que sabem de cor onde
ir e o que fazer em cada distrito, cidade e Mantinha-se contido, recatado, esfíngico, Para ele [Soares], seria
aldeia, o poeta protagonizava uma campanha sem arriscar passos em falso. A disciplina e uma quase afronta que Cavaco
romântica, com momentos insólitos, como o autocontrolo de Cavaco foram testados ao fosse Presidente, no lugar
as romagens a cemitérios para homenagear limite no primeiro – e único – frente a frente que foi o seu. (...) [Daí] a sua
vultos das letras e da cultura das terras por entre ambos. agressividade de castelão que
onde a caravana ia passando. Alegre assumia «Boa noite. Isto nunca aconteceu. Nun- vê o rendeiro comprar as terras
a sua candidatura como um «ato poético», e ca estes dois homens debateram sozinhos, que teve que vender porque
poesia não lhe faltou. Entre elaborações sobre apesar da sua longa experiência política», esbanjou os seus bens, a sua
a sua visão para o País e incursões em escor- proclamou José Alberto Carvalho, o mode- superioridade cultural face
regadios terrenos da economia, citava Torga, rador do debate televisivo inédito, que punha aos parvenus que não sabem
Sophia, Augusto Gil, Novalis, Rimbaud, Ruy em lados opostos do ringue da RTP os dois comer à mesa, ou distinguir
Belo, Mário de Sá Carneiro. políticos mais influentes das primeiras três Pomar de uma Menez.»
A «romagem da saudade» pelo clube dos décadas da democracia portuguesa. Foi um José Pacheco Pereira
poetas mortos não encaixava nas lógicas choque de currículos, de mundividências, de
mediáticas e tinha qualquer coisa de quixo- larguezas de vistas. Cavaco conjugou Soares Soares [é] parte e parcela
tesco – também por isso, era um alvo fácil no passado; Soares agitou as ameaças que de uma cultura burguesa que
de troça alheia. Desde as presidenciais de Cavaco representaria para o futuro. No final, morreu. Uma cultura em que
1986 (com as campanhas de Salgado Zenha saíram do estúdio como haviam entrado: o a arte, a história, a filosofia, a
e Maria de Lourdes Pintasilgo) que não social-democrata embalado para uma vitória política, a conversa, o conforto
havia um candidato mainstream a prota- imparável; o socialista a caminho da maior e a cozinha contavam. (...)
gonizar uma campanha tão à margem dos derrota da sua história. Um homem destes não podia
aparelhos partidários. Sem saber, Alegre A noite eleitoral foi curta. A vitória à pri- perceber (e não percebeu),
fez escola: cinco anos depois, Fernando meira foi magra (50,5%), mas confirmou-se nem se podia adaptar (e não
Nobre seguiu-lhe as pisadas; dez anos pas- depressa. A única surpresa foi o resultado de se adaptou) a uma civilização
sados, Marcelo Rebelo de Sousa levou essa Alegre, segundo mais votado, com 20,7%. de ‘massa’. Principalmente, um
tendência mais longe do que qualquer dos Soares ficou bem atrás (14,3%), seguido de homem destes não podia ter
seus antecessores. Jerónimo de Sousa (8,6%), Francisco Louçã a mais remota empatia pelo
No duelo que continuava a concentrar as (5,3%) e Garcia Pereira (0,4%). Cavaco mu- ‘novo homem’, reduzido a uma
atenções, Soares bem tentava puxar Cava- dou-se para o Palácio de Belém. Alegre voltou educação técnica, com ideias
co para um despique a dois. Carregava nas aos corredores do Palácio de São Bento. Soa- sumárias sobre a sociedade
provocações e acusações ao homem «sem res retomou o livro que estava a escrever, com e a vida, imitativo, grosseiro
mundo» e «sem conversa», que seria uma memórias políticas. A sua última campanha e dedicado a uma ambição
ameaça à estabilidade política caso se ins- foi só um rodapé dessas memórias. primária e pessoal.»
talasse em Belém havendo um governo do Vasco Pulido Valente
PS em São Bento. Mas, para exasperação do * Filipe Santos Costa, ex-jornalista do Expresso,
socialista, o adversário nunca lhe dava troco. é autor do livro A Última Campanha.
VISÃO H I S T Ó R I A 81
ELEIÇÕES // DEMOCRACIA
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de candidatos
Marcelo Rebelo de Sousa – que em janeiro de 2021 corre
Diretora: Cláudia Lobo
Editor: Luís Almeida Martins
Coordenadora: Clara Teixeira
Textos: Clara Teixeira, Elsa Santos Alípio, Emília Caetano, Filipe
Luís, Filipe Santos Costa, Helena Pinto Janeiro, João Pacheco,
Luís Almeida Martins, Luís Farinha, Luís Pedro Cabral e Pedro
Vieira.
Imagens: Arquivo Expresso; Arquivo A Capital/IP; Arquivo
para um segundo mandato – foi há cinco anos eleito Fotográfico da Assembleia da República (imagem PT-AHF/EN/
i948); Arquivo Histórico Parlamentar (AHP); Arquivo Municipal
Presidente da República. Evocamos essa jornada cívica de Lisboa (AML); Arquivo Nacional Torre do Tombo (ANTT);
Arquivo O Jornal; Arquivo VISÃO; Centro de Documentação 25
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