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UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS


DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E RELAÇÕES INTERNACIONAIS

THASSIANE DE AMORIM RODRIGUES DA SILVA

Emancipação e herança: uma análise comparativa entre Escravidão e Capitalismo, de


Rafael Marquese e Corra!, de Jordan Peele.

Seropédica, RJ

2021

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Introdução

Entendendo que a escravidão nas Américas foi um fator de grande importância


para a compreensão de mundo durante e após a sua ocorrência, o que temos como vista
principal é uma disposição de sociedades escravistas e pós-escravistas que em pouco se
diferem a não ser na forma de realização de uma segregação negra, pautando-se, sempre,
nos colóquios legítimos e nas brechas das leis estipuladas. Em razão disso, a
intencionalidade do presente trabalho é analisar crítica e comparativamente a construção
da escravidão e sua herança deixada entre os séculos posteriores, de forma a demonstrar
o quão enraizado e velado é o racismo existente, ainda presentemente. Viso aqui,
referenciar alguns autores que comporão o corpo ensaístico do trabalho e dialogarão com
a ideia principal de estudo das “ondas” de escravidão, juntamente com a própria
historiografia que as compuseram como passível de narração, para elaborar,
conclusivamente, como a segunda onda escravista, estudada no primeiro capítulo do livro
“Escravidão e Capitalismo”, de Rafael Marquese, pode ser percebida, também, ao
examinar a obra cinematográfica “Corra!”, de Jordan Peele.

Ira Berlim, em Gerações de Cativeiro1, utiliza de sua grande incursão nas


temáticas da história afro-americana para nos mostrar o que podemos entender como
constructo de escravidão norte-americana. A ideia de seu livro, é uma mostra de como a
situação da emancipação se deu ao longo do século XIX, baseando-se nas ideias de posse
e suas conjecturas, que se deram a partir da inferência de que havia ou deveria haver uma
sobreposição de um sobre outro para que os interesses dos que estavam acima dessa
hierarquia construída fossem admitidos e realizados. Como um dos pontos chave, Ira
absorve tal ponto de posse para que pudesse explicitar o quão importante é a compreensão
do que se teve como liberdade, como ela foi construída e qual era seu cerne e sua
interpretação por via escrava.

É a partir disso que se pode dar início a articulação necessária para a elaboração
do presente trabalho. Nomes como Ira Berlim, Eric Foner e Rafael Marquese,
locucionam, de forma teórica, o que há de ser localizado, visitado e interpretado para que
a história da escravidão não mais seja construída de inferências, mas de vivências e

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BERLIN, Ira. Gerações de Cativeiro: uma história da escravidão nos Estados Unidos. Rio de Janeiro,
Record, 2006.

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discursos próprios e equivalentes a realidade tratada. Muito por isso, direcionando-me ao
lugar de quem deseja traçar um paralelo entre o antes e o agora, com base historiográfica,
utilizo-me do termo cunhado por Rafael Marquese, alvo de discussão principal da
dissertação: uma segunda escravidão.

A história da herança: as novas faces do racismo velado pós emancipação

A fim de, oficialmente, dar voz ao desenvolvimento do trabalho, é fundamental


explicitar pontos de destaque teóricos antes de tecer comparativos e chegar à ideia final.
O primeiro ponto teórico é a linha de raciocínio criada para entendimento do que veio a
ser a escravidão no século XIX, compreendendo-a como não nascida no século em
questão, mas no período que conhecemos como Antiguidade. O que Rafael faz
incialmente no capítulo ao qual me atenho, é, no mínimo, interessante, pois não há uma
relativização de uma escravidão durante a Antiguidade ou a Era Moderna, há pontos de
encontro nas formações do que se tem origem em um ponto e continuidade em outro,
tornando assim não um evento exclusivo e nem único, mas contínuo, porém com
diferenças significativas nas intencionalidades e no movimento político e econômico em
questão em cada momento de ocorrência.

O segundo ponto é que o sucesso do projeto político escravista foi notório, mas
sua prosperidade não deixou de dar cabo a uma sucessão na história. Isto é, a primeira
onda de escravidão foi assolada pelo que ela mesma tomou como projeto. Os usos
indevidos das Instituições, as formas de controle das rotas – que é perdido pelas diversas
disputas debruçadas sobre elas – e, principalmente pelo apoio ideológico, tomado pelos
conflitos ocorridos entre 1776 e 18242. Mas, também, foi esse mesmo projeto que lhe deu
os temas necessários para que a sua sucessão fosse igualmente de sucesso. O que
possuíamos na época em questão não mais eram os senhores de escravos, mas outras
titulações, agora influenciadas também por um outro contexto – o de industrialização – e
os braços livres que determinavam o progresso e o funcionamento do mesmo
permaneceram sendo os braços negros, agora não mais, legislativamente, atuando no
papel de mercadorias, mas ainda assim sob o tratamento de um controle – e certa posse –
baseada em uma necessidade de sobrevivência para sua nova forma livre de vida.

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Os conflitos tratados sob esse referencial são, respectivamente: Guerra da Independência Americana
(1776-1783), Revolução Francesa (1789-1799), Guerras Anglo-francesas (1792-1815), Revolução Haitiana
(1791-1804) e guerras para independências na América Latina (1810-1824).
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O autossustento foi determinante para que o povo recém liberto estivesse não mais
sob a tutela do seu senhor, mas, agora, a de quem esteve acima de seu senhor durante todo
o tempo. O Estado, responsável pela assinatura da liberdade, passou a ser igualmente
responsável pelo controle e determinação da mesma, podendo ser melhor explicado e
explicitado pela citação:

Com o advento de um regime de plantation mais rigoroso, com forte


demanda por “braços” para a plantation e com o medo suscitado pela
Era da Revolução, a manumissão foi dificultada e a condição das
pessoas de cor livres piorou. Os principais territórios da segunda
escravidão apresentavam vantagens naturais para o cultivo das
principais commodities – a cana-de-açúcar em Cuba, o algodão no
Sul dos Estados Unidos e o café no Brasil. Os sistemas de escravidão
colonial não dispunham da terra necessária para expandir a produção.
Os plantadores compensavam essa limitação com a introdução de
fertilizantes, de novas variedades de colheita e de sistemas de
irrigação (principalmente em São Domingos e na Guiana Britânica),
contudo esses espaços não poderiam ser comparados, em tamanho,
aos que seriam tomados pelos empresários da segunda escravidão.
Estes obtiveram forte vantagem competitiva, mas sua expansão foi
também resultado da invasão e conquista física e militar à custa de
outros estados e dos povos indígenas. As plantations escravistas não
impuseram a monocultura, porém o cultivo das principais
commodities na época era sem dúvida imperativo e agressivo o
suficiente para que lhes fossem conferidos títulos de realeza ou de
nobreza: “King Cotton”, “Su Majestad el Azucar” e “Barões do
Café”. O fato de os senhores de escravos exercerem poder político no
regime da segunda escravidão não significava que o monopolizassem.
Cada um desses territórios fazia parte de uma entidade política maior,
respectivamente parte da República Norte-Americana, parte do
Império brasileiro, e uma colônia formal da Espanha. Em todos os
casos, tanto os plantadores quanto os comerciantes e banqueiros a eles
vinculados tinham acesso privilegiado ao poder, mas também
precisavam de aliados sociais e políticos dentro e fora da zona da
plantation.3

Ainda falando de rupturas e continuidades, é imprescindível que tratemos do que


foi, especificamente a intitulada segunda escravidão. A ideia de Rafael Marquese pode
ser resumida a: vantagens e desvantagens. Ambas, que andavam em conjunto e reuniam
pessoas diversas e com opiniões adversas, adveio das insurreições escravas, pautadas nas

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Escravidão e capitalismo histórico no século XIX: Cuba, Brasil e Estados Unidos / organização Rafael
Marquese e Ricardo Salles. – 1ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016
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insatisfações sobre suas tutelas de seus e mostravam ao mundo a caminho de uma
revolução que modificaria seus moldes originais, que não havia passividade e
ingenuidade em seus corpos. A abjeção que os referenciava foi traduzida para o indicativo
claro de que aqueles que ali estavam, a frente do que demandavam e lutavam para ter,
eram indivíduos capazes de comutação e que a mesma não permitiria uma repetição,
mesmo que o bojo fosse o mesmo.

Portanto,

Os senhores de escravos do século XIX promoveram novos preceitos


políticos, negociaram novas alianças sociais e herdaram, adaptaram e
reconfiguraram um contrato racial que atrairia o apoio de importantes
grupos de pessoas livres, não escravistas, dessas sociedades.
Doutrinas relacionadas à raça, à propriedade e aos interesses
nacionais foram defendidas para justificar a posse de escravos e
conter os desafios abolicionistas. Da mesma forma que os anteriores,
os novos conceitos e estereótipos raciais retratavam os
afrodescendentes como necessitados de coerção física e de duras
restrições, e os indígenas como dignos apenas de desprezo.
Apresentar o recurso à escravidão em massa como o destino de uma
nova nação era uma proposta difícil e muito diferente da tentativa de
justificar a escravidão numa colônia distante. Isso fez que algumas
pessoas questionassem a exclusão de classe entre brancos, o que levou
ao surgimento da república da democracia racial do homem branco.
A posse de escravos estimulava e, ao mesmo tempo, distorcia a visão
dos senhores sobre o que seria uma boa sociedade e o futuro da
nação.4

Novas e antigas formas de mobilização e poder social foram promovidas com a


finalidade de uma coercitividade adaptada a necessidade momentânea, que era certamente
maior do que a anterior, haja vista os direcionamentos bem definidos sobre aquilo que se
pretendia e desejava – e era previamente vanguardeiro –. Para Marquese, os primeiros
anos do século XIX puseram uma penumbra sobre o desenvolvimento posterior a segunda
escravidão, mas mesmo após a abolição, como já referenciado, não houve a realização de
uma emancipação real, mas sim uma caracterização de um novo projeto para o Novo
Mundo, o condicional. Como Davis5 propõe e traz às suas colocações, mesmo que aluda
ao feminino – mas não servindo apenas a ele –, a população negra passa a estar

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Escravidão e capitalismo histórico no século XIX: Cuba, Brasil e Estados Unidos / organização Rafael
Marquese e Ricardo Salles. – 1ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016
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DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. 1944; tradução Heci Regina Candiani. - 1. ed. - São Paulo:
Boitempo, 2016.
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condicionada àquilo que lhe é proposto para a sobrevivência, estando atuante em um local
de liberdade maquiada e controlada pelos anseios dos grupos minoritários chamados de
maioria – o dos brancos.

Fica, pois, um questionamento: haveria uma terceira escravidão? Jordan Peele


entra nesta discussão para provar que a emancipação foi necessária para embasamento,
mas não deteve de um poder de reformulação social, pois não era e nem deveria ser uma
aquisição para federações que pretendiam retirar os grilhões para substituí-los por
amarras invisíveis a olhos crus e acríticos. A sociedade não estava em formação, nem ao
menos em reformulação, a sociedade mantinha-se como era, abdicando apenas de espaços
definidos para que a classe jogada para baixo em uma hierarquia construtivista e elitista,
fosse alocada em locais à margem e, por isso, ideais à vista da economia e política
encrostadamente racista, que não poderiam lidar com uma população circunstancialmente
enegrecida.

O filme “Corra!”, possui uma linguagem substancial para a referenciação da


temática. Produzido dois séculos após o centrado na argumentação aqui definida, Peele
demonstra o quão racializado mantém-se o corpo social no século XXI. A retratação da
inserção de um negro em uma família e meio brancos, que, à priori, não alega nenhum
preconceito, mas possui comentários evidentemente racistas, revela a quantidade de
camadas existem para normalizar algo definidamente cravado numa constituição popular.

Por último, mas não menos importante, a obra cinematográfica retrata a sutileza
pertencente ao corpo negro, que não mais é escravo, nem posse, mas é robotizado para
adequação e ambientalização em espaços de controle branco. Os meios utilizados para
refreamento deixam de ser o chicote e o tronco, mas a padronização do que se espera do
negro em uma sociedade não mais escravocrata, ainda o faz ocupar espaços alijados e
pré-determinados como adequados a sua condição de negro.

Considerações finais

A fim de conclusão, o que podemos ver através da análise dos objetos propostos
como centrais, em aliança a materiais valiosos para a composição da escrita, é uma
perspectiva divergente da exibida em meios legais atuais e nos caminhos para a
elaboração dos mesmos. A representatividade de sociedade circundou e circunda o
mantimento do status quo do homem branco sobre o negro, que é posto como inferior por
meio de uma classificação segundo graus de importância, em razão da manutenção de
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uma racialização determinada peça escravidão. Ademais, pudemos ver que mesmo após
dois séculos, mantém-se fincado um racismo que, ainda no século XXI, decide
precisamente aqueles a quem se deve o direito de ser – inclusive livre – e delineia as
formas práticas em que o enquadramento dos corpos negros são dados no corpo social.

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Bibliografia:

Escravidão e capitalismo histórico no século XIX: Cuba, Brasil e Estados


Unidos/organização Rafael Marquese e Ricardo Salles. – 1ª ed. – Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2016.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. 1944; tradução Heci Regina Candiani. - 1. ed.
- São Paulo: Boitempo, 2016.

BERLIN, Ira. Gerações de Cativeiro: uma história da escravidão nos Estados Unidos.
Rio de Janeiro, Record, 2006.

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