A história dos conceitos e das práticas acerca da inserção das pessoas
com Necessidades Educativas Especiais (NEE) nas instituições de ensino apresenta um longo percurso desde a marginalização desta população até as concepções contemporâneas de educação inclusiva que a contempla, ao menos em teoria. De acordo com Silva (2009), o grau de exclusão ou inclusão de crianças e jovens com NEE no ambiente escolar se vincula ao contexto social, econômico e cultural que configura determinada sociedade em sua época. Ampliando o quadro de análise e observando o tratamento dispensado às pessoas com deficiência ao longo da história, podemos constatar com Pacheco e Alves (2007) que na Grécia Antiga, crianças deficientes ou doentes, que destoavam do padrão de beleza física, então cultivado, eram vistas como seres degenerados e abandonadas com o intuito de serem eliminadas do convívio social. Com o surgimento do Cristianismo, pessoas com deficiência, embora já não fossem mais brutalmente expulsas da sociedade, porquanto eram consideradas como portadoras de uma alma divina, e com efeito fossem abrigadas pela Igreja, eventualmente com ajuda de suas famílias, ainda assim permaneciam marginalizadas da vida social. Tais abrigos consistiam de depósitos de pobres, moribundos, doentes crônicos e deficientes, que neles restavam, sem amigos e longe da família, até morrer. Estava distante a época em que deficientes seriam concebidos como seres humanos dignos de tratamento igualitário. Apenas no século XIX, alvorecer da Revolução Industrial, pessoas com deficiência passaram a ser vistas como objeto da ciência, passível de diagnóstico médico, psicológico e pedagógico, e não mais do julgamento condenatório da moral, da estética e da teologia. Nesse sentido, em vez de doença, as deficiências passam a ser contempladas como condição de vida específica de indivíduos. Esse deslocamento é aprofundado pelo capitalismo industrial emergente, de tal sorte que a instituição dos sistemas nacionais de ensino passou a valorizar o potencial produtivo das pessoas com deficiência enquanto educandas e trabalhadoras. No Brasil, conforme Pacheco e Alves (2007, apud Mazzotta, 1999), o debate público sobre a educação das pessoas com deficiência foi influenciado pela voga europeia e estadunidense e atingiu o país, de maneira incipiente, no século XIX, sendo, porém, somente na segunda metade do século XX que uma política educacional com a inclusão desse público foi implementada. Tal política, no entanto, impunha o estabelecimento de classes especiais para pessoas com deficiência, distintas e distantes das salas de aulas típicas, o que resultava em segregação do público-alvo. A integração ou normalização das pessoas com deficiências esperaria mais algumas décadas até ser difundida como valor. Segundo, Silva (2009):
O conceito de normalização estendeu-se a outros países da Europa e à
América do Norte nos anos setenta do século XX, nomeadamente através de Wolfensberger (1972), no Canadá. Normalizar, na família, na educação, na formação profissional, no trabalho e na segurança social, consistia, assim, em reconhecer às pessoas com deficiência os mesmos direitos dos outros cidadãos do mesmo grupo etário, em aceitá-los de acordo com a sua especificidade própria, proporcionando-lhes serviços da comunidade que contribuíssem para desenvolver as suas possibilidades, de modo a que os seus comportamentos se aproximassem dos modelos considerados “normais”.
Gaudenzi e Ortega (2016) destacam que o Modelo Social da Deficiência
proveio da aprovação pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2001 do documento Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF), que reorienta a perspectiva outrora preferencialmente biomédica sobre a deficiência para uma visão do tema como questão de Direitos Humanos. Na esteira do debate sobre a inclusão social das pessoas com deficiência, o Brasil o Estatuto da Pessoa com Deficiência em 2015, legislação que garante os direitos à educação e saúde e impõe punições para condutos discriminatórias contra esse segmento da população, refletindo os artigos 3º, 5º, 7º, 23, 24, 47, 203, 208, 227 da Constituição Federal de 1988. Desafios da Inclusão
Os desafios da inclusão de pessoas com NEE na sociedade, como um
todo, e na escola, em particular, se apresentam em diferentes escalas e são de diferentes tipos. Ao analisar as funções da instituição escolar, Coimbra (1986) situa a escola na história e aponta como desde sua consolidação enquanto instituição, no século XVII, a escola tem um caráter eminentemente elitista, organizada para funcionar como aparelho ideológico da classe dominante, com vistas a formar mão-de-obra para o chão de fábrica do capitalismo industrial e inculcar os valores burgueses na massa operária, a fim de discipliná-la dentro na base da hierarquia social. Nesse sentido, a educação funciona como um instrumento para condicionar as classes populares à condição de inferioridade, utilizando-se de ardis como o mito da meritocracia, como se as oportunidades educativas fossem igualmente distribuídas independente da origem do indivíduo, e o bom desempenho escolar fosse mera questão de esforço individual, ao passo que reproduz a divisão social entre herdeiros e despossuídos, justificando as disparidades entre estudiosos e repetentes, universitários e técnicos, doutores e analfabetos, como uma realidade natural, como se não houvesse diferenças qualitativas entre escolas particulares e públicas ou famílias ricas e famílias pobres desestruturadas. A reprodução das desigualdades encontra terreno fértil quando tratamos de pessoas com deficiência, que enfrentam imensas dificuldades para a conquista da autonomia numa sociedade preconceituosa e individualista. Como no comentário de Gaudenzi e Ortega (2016), somente uma visão cooperativa do self poderia servir de alicerce para a construção de uma educação inclusiva:
Tauber nos ajuda neste debate ao estabelecer as bases para a discussão
da autonomia, explorando como ela pode ser designada como uma característica do self. O autor apresenta duas maneiras distintas de entender a identidade pessoal: a partir do self atomístico e a partir do self relacional. [...] A filósofa feminista Eva Kittay preocupa-se em desmontar as teorias liberais da justiça e igualdade, ao sustentar que as relações de dependência são inevitáveis na vida social e inescapáveis à história de vida de todas as pessoas. Cuidado e interdependência, diz, são princípios que estruturam a vida social e impõem a centralidade da dependência nas relações humanas.
Ferrari e Sekkel (2007) resumem os desafios que se apresentam à
realização da educação inclusiva em três dimensões: a institucional, a da formação dos professores e a do cotidiano escolar. As autoras advogam, delimitando o campo de discussão ao ensino superior, que, primeiro, as instituições de ensino precisam assumir posições sobre a elegibilidade dos alunos aos cursos oferecidos, a fim de evitar embaraços inaceitáveis entre pessoas deficientes e professores que com aqueles não sabem lidar. Ou seja, precisam ser explícitas quanto ao ingresso das pessoas com deficiências nas faculdades e universidades. Acrescentam as autoras, em segundo lugar, a necessidade de se formar professores que saibam educar com e para as diferenças em direção à emancipação de cada estudante em sua singularidade. O terceiro desafio se volta para a habilidade do educador em identificar e acolher as diferenças em sala de aula. Não basta a abordagem particularista entre o professor e o aluno com necessidades especiais. É crucial que todos os agentes educacionais (professores, alunos, administrativo) reconheçam as diferenças e colaborem com a construção de condições de ensino e aprendizagem no cotidiano da sala de aula. A superação de tais desafios exige resiliência por parte do professor da escola inclusiva para se adaptar continuamente às dificuldades de equacionar os ritmos de aprendizado do grupo, respeitando o desenvolvimento de cada estudante, especialmente daqueles com NEE. Como sintetiza Oliveira e Reia (2017):
Para que o aluno com deficiência intelectual se beneficie do ensino regular,
começa por ele não estar somente matriculado e sim verdadeiramente incluso. É necessário que o professor, como mediador e condutor da aprendizagem na prática educacional, seja flexível, analisando e revisando seu plano de ensino, e sempre que for necessário, estar fazendo alterações, visando sempre ao desenvolvimento do aluno em todos os aspectos.
Papel da Psicologia na Educação Inclusiva
A psicologia por certo deve desempenhar diversos e importantes papeis
na tarefa complexa de edificar a educação inclusiva enquanto prática que de fato incorpore organicamente pessoas com NEE nas instituições de ensino. Algumas dessas tarefas ficaram entrevistas em pontos mencionados acima, quando abordamos as dificuldades que estão postas para o desenvolvimento da educação inclusiva, como a concepção do self relacional enquanto dimensão psíquica que vincula ontologicamente o indivíduo ao outro. Também quando perscrutamos as três dimensões do desafio à educação inclusiva, vislumbra-se uma atuação importante da psicologia na reorientação organizacional da instituição escolar para que se torne um espaço de ensino acolhedor, desde a concepção da infraestrutura física com relação à acessibilidade de estudantes com NEE, passando pela capacitação dos professores para que uma atitude educativa voltada à diferença e à flexibilidade (2017), até os materiais didáticos trabalhados em sala de aula. Entretanto, persiste a centralidade da atuação do psicólogo nos centros ou programas de reabilitação como recurso indispensável a ser trabalhado pela educação inclusiva, em particular, e por uma sociedade inclusiva, como um todo. Figueira é lapidar sobre a importância da reabilitação:
A reabilitação é importante não só no sentido físico como, também, na parte
emocional da criança ou pessoa ao longo de sua vida. O choque da perda de um membro e/ou adquirir uma deficiência pode ser traumático. A interrupção ou a distorção do processo de desenvolvimento normal de uma criança ou de uma pessoa mais crescida pode ser mais grave do que as consequências diretas da própria deficiência. Devido a isto, a preocupação inicial desses centros reabilitacionais não deve ser a própria deficiência da pessoa e, sim, a preservação e continuação, tanto quanto possível, do desenvolvimento normal desse indivíduo.
O autor sustenta que a reabilitação objetiva auxiliar a pessoa com
deficiência em seu desenvolvimento para que conquiste autoindependência e funcionamento tão bom quanto possível de todos os sentidos. Dessa forma, o paciente deve ser atendido em múltiplos aspectos, além do físico, como o mental, intelectual, emocional, social, pedagógico e psicológico. Figueira ilustra seu argumento da abordagem multidisciplinar da temática, discriminando os diferentes profissionais envolvidos nos programas de reabilitação, a exemplo de médicos, fisiatra, neurologista, pediatra, urologista, fisioterapeuta, fonoaudióloga, terapeuta ocupacional, assistente social, enfermeiro, técnico em órteses e próteses, pedagogo e psicólogo. Com relação à função do psicólogo na reabilitação, Figueira postula que o papel desse profissional é o de cooperar para o bem-estar psíquico e social do reabilitando, através do aconselhamento e da elaboração do plano de psicoterapia que acompanhe, avalie e responda à evolução do reabilitando, a partir da abordagem de alguns pontos fundamentais, como o desenvolvimento da visão realista de si mesmo que tome consciência de suas potencialidades e limites; aquisição de autoestima; construção da dignidade da pessoa humano em relação consigo mesma, com a família e com a comunidade com vistas a conquista do equilíbrio intrapsíquico e do equilíbrio pessoa/sociedade. REFERÊNCIAS BIIBLIORÁFICAS
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DEFICIÊNCIA INTELECTUAL NO ENSINO REGULAR. Lins, São Paulo: 2017.
Elemento de Competência 1 - Compreender e actuar de acordo com a Lei da EP e os objectivos, missão e regulamentos e normas do sistema da Educação Profissional no país.