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SHOSHANA FELMAN E 

A COISA LITERÁRIA
tipo de filosofia da loucura, Derrida preferiria, antes, fazer surgir a Há muito tempo esperado, eis um livro que cumpre o que anuncia:
loucura da filosofia. O argumento derridiano se resume desta forma: “Os instrumentos teóricos, em outros termos, não funcionarão aqui
toda filosofia da loucura só pode testemunhar a razão da filosofia; como um novo sentido a dar ao texto, mas como uma nova maneira
mas a razão da filosofia não passa da economia de sua própria de serem, por ele, afetados.” Nele, a teoria literária se constrói e se
loucura.” E, adverte, não se trata de dar razão a um ou a outro, mas problematiza no próprio ato de leitura da obra, a qual, dando prova
sim de sustentar o debate em jogo. Shoshana Felman sustenta com de sua complexa relação com o sentido, coloca à prova a teoria,
rigor o debate, fazendo com que o livro tenha a marca de seu tempo
não aceito a ideia em moda de que a literatura, de afastando-a de qualquer modalidade de aplicação. Este livro se põe
histórico sem ser ultrapassado, longe de tornar a literatura objeto de fato, não existe; de que a literatura é apenas sua à escuta do incontornável, da palavra impossível, para a Literatura, a
devoção ou meio de salvação ou de perdição, a afasta de qualquer bagagem ideológica; de que, à parte a instituição Psicanálise, a Filosofia e os Estudos Literários, e é um compromisso
produção barata e imediata, situa sua singularidade no coração do nó burguesa das “Belas Letras”, não haja nada que inadiável com o ensino e a transmissão. Se Shoshana Felman o
problemático que a entrelaça a outros discursos. Tendo mergulhado corresponda ao termo “literatura”. Parece-me que, escreveu em e entre duas línguas, o francês e o inglês, sua tradução
no coração do debate em torno das leituras discordantes de A volta entrelaça mais uma, o português. O leitor verá que Lucia Castello
ao contrário, há um tipo de experiência muito
do parafuso, o entrecruzamento entre literatura e psicanálise se Branco oferece mais que uma tradução, ela entretece La folie et la chose
delineia nos seguintes termos: “não somente a maneira como a particular chamada experiência literária. Em que littéraire e Writing and Madness, e, além disso, convida, para compor
psicanálise diz alguma coisa sobre o texto literário, mas também a isso consiste? Num evento. Ou seja, algo acontece esse buquê, Ruth Silviano Brandão, uma das primeiras leitoras de
maneira como o texto literário diz alguma coisa sobre a psicanálise.” num texto, ou acontece com o leitor, e isso é o que, Felman no Brasil, como Felman convidara Barbara Johnson para
Para dizer com mais precisão, Shoshana Felman, mais do que para mim, é especificamente literário. Obviamente, traduzir para o inglês um capítulo escrito em 1973, em Paris. Neste
propor a coisa literária como conceito, hipótese ou operador de livro, ressoam línguas, países, universidades, gerações de leitores
o texto literário – ou, antes, a coisa literária num
leitura, escreve os efeitos dos impasses críticos que a coisa literária e leitoras, atravessando, em necessário passo lento, as obras. Sem
insiste em provocar. O que o leitor receberá desta tradução está texto – não pode ser simplesmente definida qualquer apelo metafísico, sem se colocar na origem ou no fim,
dito de modo incontornável ao fim do livro: “A experiência é o que dentro dos limites da instituição ou da academia, essa palavra impossível – ou ainda essa coisa literária – é o que resta de
importa. A experiência é um fato ou um evento criado através de como uma divisão do conhecimento. Os textos um esforço concreto e demorado de leitura, de um escuta paciente
uma prática. Uma aula é, para mim, um campo de prática, não literários não estão confinados àqueles estudados que não generaliza, de uma ousadia em manter-se despossuído
um conceito acabado. Se a experiência criada na aula é forte o dos instrumentos que garantiriam, antes da leitura, o sentido ou,
em departamentos de literatura: qualquer texto
suficiente, vai, eventualmente, criar sua própria conceitualização. o que dá no mesmo, o não sentido de uma obra. Neste livro, não
Mas isso será apenas no fim do processo, no horizonte. [...] pode ser tornar literário se for atravessado pela há lugar para aqueles que advogam o fim da literatura ou o fim da
É difícil dizer onde a vida termina e onde a literatura começa.” coisa que faz a literariedade. É isso o que tentei interpretação, o que se faz aqui é um esforço permanente e incansável
alcançar com a formulação da coisa literária. de girá-los, devolvendo-os ao seu lugar de problema para a crítica,
Flávia Trocoli para a teoria e para a psicanálise. Nerval e Balzac, Rimbaud e Flaubert,

Lucia Castello Branco (org.)


SHOSHANA FELMAN E A COISA LITERÁRIA Foucault e Derrida, Lacan e Henry James, as obras desses autores
são lidas através de complexos entrelaçamentos entre loucura,
razão, romantismo, realismo, modernidade e economia retórica –
metáfora, metonímia, paradoxo, contradição, aporia. “Este livro é,

LUCIA CASTELLO BRANCO é professora permanente dos Programas escrita, loucura, psicanálise portanto, em si mesmo, um efeito do significante ‘loucura’. Desse
significante, ele busca não tanto o sentido, mas a força: não aquilo
de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários, da UFMG, e de que a loucura é (significa), mas aquilo que ela faz – os atos textuais
Pós-graduação em Literatura e Cultura, da UFBA. É também psicanalista e os acontecimentos enunciativos aos quais ela dá início e lugar.”
e escritora, com vários livros no campo de literatura e psicanálise, além de Pode-se dizer que a potência deste livro reside justamente na agudeza
romances, contos e literatura infanto-juvenil. Seus principais trabalhos de sua própria retórica, por exemplo, ao redesenhar o debate entre
se desenvolvem em torno de questões relativas à escrita feminina.
Lucia Castello Branco (org.)
Foucault e Derrida em torno da loucura, Shoshana Felman formula:
Em 2014 e 2015, esteve em estágio sênior na Emory University, como “Se Foucault, por meio da história das ideias, desejava propor um
bolsista da CAPES. Na ocasião, trabalhou, sob a supervisão de Shoshana
Felman, na organização e tradução deste livro, em companhia de
Ruth Silviano Brandão, da UFMG, e Flávia Trocoli, da UFRJ.  
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978-65-86025-45-3  contato@editoraletramento.com.br    editoraletramento 

9 786586 025453
SHOSHANA FELMAN
E A COISA LITERÁRIA
escrita, loucura, psicanálise

LUCIA CASTELLO BRANCO


organização

Lucia Castello Branco  tradução


Ruth Silviano Brandão  tradução do último capítulo
Flávia Trocoli  revisão de tradução
Alice Bedê  revisão de originais
Copyright © 2020 by Editora Letramento

Diretor Editorial | Gustavo Abreu


Diretor Administrativo | Júnior Gaudereto
Diretor Financeiro | Cláudio Macedo
Logística | Vinícius Santiago
Comunicação e marketing | Giulia Staar
Editora | Laura Brand
Assistente Editorial | Carolina Fonseca
Designer Editorial | Gustavo Zeferino e Luís Otávio Ferreira
Capa | Daisy Turrer – Livro II: das sombras
Fotografia da capa | Ícaro Moreno
Diagramação da capa | Luís Otávio Ferreira

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aprovação do Grupo Editorial Letramento.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD

S559 Shoshana Felman e a coisa literária: escrita, loucura, psicanálise /


organizado por Lucia Castello Branco. - Belo Horizonte : Letramento,
2020.
366 p. ; 15,5cm x 22,5cm.

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-86025-45-3

1. Literatura. 2. Crítica literária. 3. Psicanálise. I. Branco, Lucia


Castello. II. Título.

CDD 809
2020-1217 CDU 82.09

Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410

Índice para catálogo sistemático:


1. Literatura: crítica literária 809
2. Literatura: crítica literária 82.09

Belo Horizonte - MG
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7 AMARELO TANGELOS E AS VOZES
DELAS: A LOUCURA, A COISA
LITERÁRIA E A TRADUÇÃO
9 I.  AO ENCONTRO DE SHOSHANA FELMAN
13 II.  LITERATURA E PSICANÁLISE: SHOSHANA
FELMAN E JACQUES LACAN
17 III.  BREVE GLOSSÁRIO IMPERFEITO DE NOÇÕES EM
TRADUÇÃO (EM QUE SE EXPLICAM NÃO-TODAS)
17 COISA LITERÁRIA
19 ESCRITA
21 INTERPRETAÇÃO
22 LEITURA
25 LOUCURA
27 TRADUÇÃO
29 TRANSFERÊNCIA

32 IV.  AMOR, O RETORNO A CASA

PARTE I   A LOUCURA E A COISA LITERÁRIA


39 ESCRITA E LOUCURA: POR QUE ESTE LIVRO
39 I
45 II
54 III

61 LOUCURA E FILOSOFIA
61 COGITO E LOUCURA OU RAZÃO DA LITERATURA
61 Loucura e filosofia
63 História da loucura
65 Filosofia da loucura
67 Loucura da filosofia
69 Filosofia e literatura
71 Literatura e loucura
73 Razão da literatura

79 LOUCURA E DISCURSO POÉTICO


79 ARTHUR RIMBAUD: LOUCURA E MODERNIDADE
79 “Você fez bem em partir, Arthur Rimbaud”
81 Os pro-nomes da modernidade
82 Azar da madeira que se quer viol-ino
87 O golpe de “dados” [dés]: des-regramento,
de-lírios, des-pedidas [dé-parts]
89 A-deus
94 “É nessas noites sem fundo…”
95 “É preciso ser absolutamente moderno”
102 Rimbaud com Mallarmé: modernidade, poesia, tradução

110 LOUCURA E NARRATIVA


110 GUSTAVE FLAUBERT: LOUCURA E CLICHÊ
110 Ilusão realista e repetição romanesca
111 A ordem das coisas
112 A ordem das palavras
114 Por força da escuta
115 O livro sobre nada
118 A simplicidade
121 Temática e retórica ou a loucura do texto
121 Temática da “loucura”
124 Função irônica da loucura
126 Ironia da ironia: retoricidade da “loucura”
134 Temática e retórica
143 Modernidade do lugar comum
143 Escrever, calar
144 Loucura, originalidade, modernidade
146 Loucura e lugar comum
149 O uso do itálico
151 Prostituição e lugar comum
153 Lugar da narrativa: retorno ao lugar
157 Morte e lugar comum: a morte do autor
158 Do “eu” ao “ele”
160 História/discurso: o itálico generalizado

166 LOUCURA E PSICANÁLISE


166 JACQUES LACAN: LOUCURA E TEORIA
166 O engano e sua chance
166 O sentido e o saber
168 Gramática e retórica
170 Um nada de entusiasmo
173 O estatuto do ensino: uma ética do inconsciente
175 O saber suposto sujeito: a gota de tinta
177 “Não vês que estou ardendo?” ou Lacan e a filosofia

185 HENRY JAMES: LOUCURA E INTERPRETAÇÃO


185 Armadilha para a psicanálise: outra volta da leitura
185 Um estranho efeito de leitura
191 O que é uma “leitura freudiana”?
199 A cena da controvérsia: o conflito das interpretações
203 O cenário da narrativa: as voltas do parafuso do prólogo
219 A cena da escritura, ou as cartas roubadas
228 A cena da leitura, ou a reedição do nome
239 Mata-se uma criança
251 Loucura e sentido: a volta do parafuso
257 A loucura da interpretação: literatura e psicanálise
269 Um fantasma de mestre

293 SÓ-DEPOIS
293 A LOUCURA E A COISA LITERÁRIA: EM TORNO
DA QUESTÃO DO LIVRO

PARTE II   SEMINÁRIO DE SHOSHANA FELMAN


299 OBSERVAÇÕES PEDAGÓGICAS
303 APRESENTAÇÃO DOS ALUNOS: ELUCIDAÇÃO
E DISCUSSÃO DO TEXTO DE LACAN
316 PENSAMENTOS POSTERIORES, DISCUSSÃO
GERAL, PANORAMA DO CURSO

PARTE III   ENTREVISTA COM


SHOSHANA FELMAN
329 A COISA LITERÁRIA, SUA LOUCURA, SEU PODER
329 I
339 II

357 POSFÁCIO

363 SOBRE A AUTORA


AMARELO TANGELOS
E AS VOZES DELAS:
A LOUCURA, A COISA
LITERÁRIA E A TRADUÇÃO
Devemos renunciar a conhecer aqueles a
quem nos liga alguma coisa de essencial;
quer dizer, devemos acolhê-los na relação
com o desconhecido onde eles nos acolhem,
nós também em nosso afastamento.
BLANCHOT
I.  AO ENCONTRO DE SHOSHANA FELMAN

Eu não começaria, talvez, pelo amarelo, se não fosse aquela fru-


ta – melhor dizendo, aquela sede, a sede daquela fruta – que ela me
ofereceu, quando nos despedíamos.
Era meu último dia em Atlanta e, ocupada com todas as tarefas
da mudança, eu quase perdera a tarefa que me levara ali: entrevis-
tar Shoshana Felman. Entrevistá-la depois de traduzi-la. Entrevistá-la
depois de receber de suas mãos o mais precioso tesouro: a entrevista
que ela concedera a Elizabeth Roudinesco, em 2001, falando de seu
encontro com Lacan. Mas entrevistá-la ainda antes de ler a entrevista
que ela concedera a Cathy Caruth, localizando o seu trauma, o trauma
de não se sentir em casa em nenhuma língua estrangeira, tampouco
em sua língua materna, mas de encontrar finalmente o seu lugar na
escrita. “Minha escrita é meu país” – ela diria, conferindo à escrita um
lugar central em sua vida.
Eu não começaria, certamente, pelo amarelo, se não fosse aquela
casa de Atlanta, que me recebera como nenhuma casa antes, com seu
silêncio e a solidão de seus carvalhos, a me trazer de volta, diariamen-
te, o poema de Hölderlin e a responsabilidade do poeta: ir mais além.
E por isso, talvez, o amarelo daquela fruta deliciosa que eu só come-
ria depois – “só depois” –, me levaria ao encontro da casa amarela de
Van Gogh e da loucura ali instalada entre Hölderlin e Van Gogh – entre
o poeta e o artista –, tão digna quanto a coisa literária que, na letra de
ambos, se inscrevia.
“Foi a sua coisa literária que me trouxe aqui” – eu não diria a ela, mas
ela sabia. E, no entanto, nós duas sabíamos também que a coisa literária
não era dela, porque era de ninguém. Mas, apesar disso, mesmo assim,
ali estava eu diante dela para ouvir, de novo, o que ela já havia escrito, o
que eu já havia traduzido, o que ambas julgávamos já haver compreen-
dido, mas que era preciso, ainda, repetir, agora na voz de Mallarmé:
“sim, que a literatura existe e, se quiserem, só, à exceção de tudo.”1

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Porque talvez eu fosse ali, naquele momento, a própria realização
de sua teoria. Alguém que se iniciara na leitura da psicanálise por um
texto seu – “A outra volta da interpretação” – para depois esquecê-lo e
muito mais tarde retornar a ele, sem saber que era a ele que retornava.
Alguém que desejara, por pura atração pelo título, traduzir um livro
que se chamava Writing and Madness, sem saber que aquele livro era
o mesmo que dera início a sua leitura psicanalítica, quando, trinta
anos antes, lera um capítulo de La folie et la chose littéraire. Alguém
que decidira, então, ler seus textos entre duas línguas – o inglês e o
francês – acrescentando-lhes uma terceira – o português –, para enfim
fazer jus, talvez, a esse entrelínguas da loucura ou a essa língua nenhu-
ma daquela que não se sente em casa em sua própria língua e que, as-
sim, atravessada pelas palavras de Henry James, exprime o seu desejo:
Eu gostaria de escrever de tal maneira que, para um observador de fora,
seria impossível dizer se eu sou uma francesa escrevendo sobre a América
ou uma americana escrevendo sobre a França. (De fato, eu não sou fran-
cesa nem americana).2
Então, se diferentemente do poeta Fernando Pessoa, que teria afir-
mado “minha pátria é a língua portuguesa”,3 diferentemente ainda da
escritora Maria Gabriela Llansol, que teria anunciado “O meu país não
é a minha língua, mas levá-la-ei para aquele que encontrar”,4 Shoshana
Felman não afirma nessa sentença sua nacionalidade, mas seu desejo
de ser reconhecida como “estrangeir[a]o aqui como em toda a parte”,5
é na escrita – esse lugar estrangeiro a nós mesmos – que ela se situa.
Por que, então, ir a seu encontro, se eu já tinha comigo seu livro tra-
duzido, em minhas mãos?
Porque talvez fosse preciso experimentar, em sua generosidade, o
amarelo tangelos da despedida. Porque talvez fosse necessário reco-
nhecer, naquela que parece não sofrer o trauma da língua materna,
um sotaque. E porque talvez estivéssemos prometidas uma à outra,
em nosso afastamento, no acolhimento da relação com o desconheci-
do que nos acolhe (que nos acompanha), que desde sempre chama-
mos – antes mesmo de nos encontrarmos pessoalmente – l’amitié.
E porque o selo de nosso encontro sempre foi este: l’amitié. Foi
na amizade que a tradução deste livro se deu. Por isso coube a Ruth
Silviano Brandão a tradução do capítulo “A outra volta da interpreta-
ção” –, justamente o capítulo através do qual a própria Ruth, então mi-
nha professora no curso de graduação em Letras na UFMG, me intro-
duzira, nos anos 70, na leitura da psicanálise. E por isso coube a Flavia

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Trocoli, amiga do futuro, a revisão da tradução de todo o livro, já que
foi Flavia quem traduziu para o português, ao lado de Suely Aires, o
magnífico ensaio de Shoshana Felman intitulado “Sobrevivência postal
ou a questão do umbigo”.
Ali, na casa de Shoshana Felman, em meu último dia em Atlanta,
realizamos a entrevista que, há alguns meses, ela já havia recebido por
escrito. Ali a gravamos, enquanto Shoshana lia suas notas, citando,
em voz alta, trechos inteiros de Mallarmé e Walter Benjamin. De volta
ao Brasil, após longas tardes de transcrição e tradução da entrevis-
ta – quando já havia, então, traduzido todos os textos que compõem
este livro –, pude enfim submetê-la à apreciação de Shoshana. E foi
então, “só depois”, quando ela a escutou e a leu, em inglês, que deci-
dimos que a entrevista não caberia no livro.
Sabemos que um livro se compõe também de seus invisíveis, de seu
fora, do que resta para além do escrito. E neste, que se compõe de ca-
pítulos de La folie et la chose littéraire – mas não todos –, que se com-
põe também de outra entrevista de Shoshana, de um seminário seu e,
ainda, de um texto a posteriori, que se escreve como uma reescrita de
um dos capítulos, sobre Rimbaud, a estrutura do mise-en-abîme, cara
a Shoshana Felman, parece ter-se feito operar, como um método de
leitura e de tradução, não apenas como o livro dentro do livro mas
também como o livro fora do livro. Assim, na experiência desta tradu-
ção e da organização deste livro, acabamos por verificar, na prática – a
prática da letra –, a máxima de Guimarães Rosa, que nos ensina que “o
livro pode valer pelo muito que nele não deveu caber”.6
“Uma tradução é feita para os leitores que não compreendem o origi-
nal?” –7 indaga Walter Benjamin, em “A tarefa do tradutor”, sugerindo
que a tradução não visa comunicar. Essa pergunta, tão aparentemente
retórica, ganhou para mim um novo alcance com essa aventura de
lançar-me na tradução de um livro que eu julgava desconhecido por
mim – Writing and Madness –, atraída apenas pela força de seu título,
quando, de fato, esse livro era já a tradução de um original – La folie et
la chose littéraire – há muito conhecido (embora não todo) por mim e,
no entanto, esquecido e ignorado.
Tal surpresa lançou-me, assim, de novo, na experiência que sempre
me ligou, de maneira profunda, à coisa literária: a experiência da ami-
zade. Pois não é por outra razão, senão a de que “devemos renunciar
a conhecer aqueles a quem nos liga alguma coisa de essencial”,8 que
me lancei, um dia, nessa impossível tarefa da tradução, essa tarefa-re-

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núncia, que nos permite, enfim, ter um pouco de Shoshana Felman
e um pouco do Lacan que foi escutado e anotado por ela, aqui, neste
livro que se compõe de traduções do inglês e do francês para, afinal,
nos redoar, em estrangeiro português, sua singular leitura da loucura
e da coisa literária. E um certo amarelo-tangelos que um dia recebi, de
Shoshana Felman, em seu acolhimento e em sua generosidade.

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II.  LITERATURA E PSICANÁLISE:
SHOSHANA FELMAN E JACQUES LACAN

Já em meu primeiro encontro com Shoshana Felman, em um restau-


rante na Emory University, uma expectativa de amizade nos aproxima-
va. Talvez por causa de nosso encontro por cartas – a correspondência
por e-mail – iniciado quase um ano antes, quando lhe propus a tradu-
ção para o português de Writing and Madness, sem saber ainda que se
tratava do mesmo livro que eu lera há trinta anos: La folie et la chose
littéraire. Ou talvez porque nosso encontro literário tivesse se dado
há exatos trinta anos, quando, ainda aluna do curso de graduação em
Letras da UFMG, fui iniciada na psicanálise por sua leitura de A volta
do parafuso, por indicação da professora Ruth Silviano Brandão, de
quem, mais tarde, eu me tornaria amiga e coautora de vários livros.
Ou talvez, ainda, porque nos aproximasse uma mesma admiração por
Lacan, pela força de seu ensino e por sua fidelidade à transmissão da
letra freudiana.
Talvez tenha sido por causa dessa amizade, ou pelo reconhecimento,
em mim, da transferência que a fizera um dia dirigir-se a Lacan, depois
de um de seus seminários, que Shoshana decidiu me presentear, já em
nosso primeiro encontro, com o que ela mesma chamaria de treasure.
Trata-se de um depoimento inédito sobre sua amizade com Lacan, ce-
dido especialmente para compor este livro, que pretende celebrar não
só o encontro da literatura com a psicanálise – por meio da coisa lite-
rária que atravessa esses dois domínios – mas também o encontro de
Shoshana Felman com Jacques Lacan:
Eu encontrei Lacan pela primeira vez em 1971, ao final de um de seus
seminários. Era meu primeiro ano de ensino em Yale. Eu estava de passa-
gem em Paris, na primavera, por duas semanas durante as férias. Minha
recente tese de doutorado (La “Folie” dans l’oeuvre romanesque de Stendhal)
estava no prelo e ia sair pela editora José Corti. Eu conhecia Lacan por seus
Escritos, que havia lido há dois anos, quando eu já estava numa etapa avan-
çada da escrita da tese. Essa leitura dos Escritos havia transformado minha

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escrita antes mesmo que eu pudesse me dar conta conscientemente de sua
lição teórica. De férias em Paris, fui, então, pela primeira vez escutar esse
homem cujos Escritos eu admirava. Caí num seminário em que Lacan esbo-
çava uma releitura de seu “Seminário sobre ‘A carta roubada’”. Ao escutar
esse seminário, fui atingida por uma ressonância extraordinária entre aqui-
lo que Lacan dizia ter compreendido naquele momento – só depois – sobre
seu próprio seminário e aquilo que eu havia escrito intuitivamente, sob sua
influência, em um capítulo de meu livro sobre Stendhal (“Armance ou la
parole impossible”). Eu estava de tal forma maravilhada por essa reverbera-
ção surpreendente que não pude conter o impulso espontâneo de abordar
Lacan depois do seminário para lhe falar. Ele estava cercado por muita
gente, eu sabia que meu gesto era um tanto quixotesco. Entretanto, ele me
escutou com interesse, fez sua secretária pegar meu número de telefone e
marcou um encontro em sua casa. Em seu consultório, alguns dias depois,
ele me interrogou ainda sobre o sentido de meu capítulo sobre Stendhal,
escutando-me longa e silenciosamente. Ao final, ele apenas disse: “Existe
um texto? Eu adoraria ler o texto”. Por sorte, as provas do livro estavam
prontas na José Corti, e eu pude lhe trazer o capítulo em questão, ainda
sem correção. Ele marcou um segundo encontro para me entregar o texto.
Dessa vez, eu estava com muito medo de que ele me dissesse que eu não
tinha compreendido nada de sua teoria. A compreensão havia sido de iní-
cio inconsciente, por via da literatura. É necessário esboçar aqui o sentido
do capítulo sobre Stendhal (fazendo eco ao “Seminário sobre a ‘A carta
roubada’”) para compreender a reação de Lacan.
Armance (primeiro romance de Stendhal) é um romance sobre a impo-
tência sexual. Entretanto, ela não é nunca explicitamente mencionada no
texto. Trata-se de um segredo do herói, que termina por se suicidar, sem
desvelar a razão de suas dificuldades. Essa razão é explicada por Stendhal,
em suas cartas a seus amigos, e é dessa correspondência exterior ao texto
do próprio romance que os comentadores extraíram “a chave” do roman-
ce. Minha análise, por outro lado, faz valer o fato de que, no texto de
Stendhal, a ausência da chave é a própria chave, que o romance teria sido
completamente diferente se a enfermidade do herói fosse nele explicitada.
“Armance”, eu escrevi,
é o romance da palavra impossível. Se o autor, não mais que seu
herói, não se decide por revelar o segredo, por nomear a impotên-
cia, é porque ela, qualquer que seja sua natureza, é precisamente
o que é inominável… aquilo que se manifesta como impotência
de falar… Ler Armance é, então, escutar o silêncio (…).
A única frase pela qual Stendhal designa a deficiência do herói é a seguinte:
“Uma imaginação apaixonada o levava a exagerar nos prazeres dos quais
ele não podia gozar.”
Eu analisei os três “campos semânticos” que se delimitavam nessa frase e
na sintaxe stendhaliana sob a forma de um esquema:

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“Imaginação apaixonada”

           “exagerar”
2) “Prazeres”, “gozar” – – – – – – – – – – – – 3) “Não podia”

Lacan me entregou o texto, dizendo: “É impressionante. É sobre esse triân-


gulo aí que eu estou trabalhando agora”.
Em 1974, passei um ano sabático em Paris e, pela primeira vez, segui o
seminário de Lacan (“Les non-dupes errent”), de maneira regular e conse-
cutiva. Preferi primeiro fazê-lo anonimamente. Apenas dois ou três meses
antes do fim do seminário, assinalei minha presença para Lacan, na saída
de uma das sessões. Ele me convidou para jantar naquela noite (em pre-
sença de seu advogado, com quem ele havia combinado de jantar). No
jantar, Lacan se voltou para mim e me disse: “Não consegui dizer coisa
nenhuma hoje, entretanto trabalhei toda a noite; tinha tanto a dizer, mas
não consegui articular nada de maneira coerente.” Eu respondi:
Durante mais ou menos uma hora e meia, não entendi nada do
que você dizia; mas por uns quinze minutos, quase no final, achei
tudo completamente brilhante, incrivelmente inovador, estimu-
lante em várias direções e muito inspirador para o meu trabalho.
E eu lhe dizia em quê, quais eram as suas ideias que me tinham atingido e
em quais eu encontrava uma inspiração tão imaginativa. Lacan me escuta-
va, sorria e dizia: “Eu disse isso? É inacreditável.” Ao final, essa cena, que
se repetiu várias vezes, tornou-se uma espécie de ritual. Ele se habituou a
me convidar para jantar depois de cada seminário; sempre me dizia sobre
seu sentimento de fracasso, de abortamento de sua fala. Ele não buscava
elogios, estava cercado de gente que o elogiava sem cessar e que lhe fazia
a corte. Ele buscava – creio – um entendimento, uma escuta que lhe desse
uma resposta. E dizia a cada vez, surpreso: “Eu disse isso? É inacreditá-
vel.” Fui tocada não somente pela intensidade do tormento criador que
acompanhava o seminário, mas pela dimensão de inocência que habitava a
genialidade desse homem, inocência que o poder enorme que ele detinha
sobre a elite parisiense e a admiração que o circundava não conseguiam
tamponar. Creio hoje ser essa inocência, tão pouco conhecida e tão pouco
suposta em um tal guru, uma das dimensões essenciais de seu gênio singu-
lar e complexo e de sua humanidade fascinante, propriamente inimitável.
Antes de retornar para a América, no fim daquele ano, perguntei a Lacan se
ele aceitaria vir a Yale. Ele me respondeu “sim”. Nós o convidamos, então,
no ano seguinte. No dia previsto para sua chegada, ele enviou um telegra-
ma, anunciando que não poderia vir. Eu lhe escrevi de volta, dizendo que
quaisquer que fossem suas razões nós as aceitávamos e que ele poderia se
sentir inteiramente livre, fosse para cancelar a viagem, fosse para agendá-la
para uma data posterior. Ele a reagendou para dali a um mês. Nós quase já
não acreditávamos, mas ele chegou. Aos parisienses que lhe perguntaram,
depois de seu retorno, sobre as razões de sua viagem para a América (como

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Philippe Sollers), ele respondia que tinha prometido: era sua palavra dada
a uma mulher que o tinha feito “atravessar o Atlântico”. Essa resposta que
me contaram me surpreendeu o suficiente para que eu tenha interrogado
Lacan diretamente, em seguida. Ele me respondeu: “É verdade. Chega um
momento em que é preciso levar nossa palavra a sério.”
Quando penso no ensino de Lacan nas universidades americanas, constato
que a maior parte de meus colegas, nos departamentos de literatura e de
filosofia (não de psicologia), ensina Lacan esporadicamente através de um
ou dois textos exemplares dos Escritos. Os textos mais ensinados são, na
ordem de frequência de seu ensino, “O estádio do espelho”, “A instância
da letra no inconsciente”, “O discurso de Roma” e “A significação do falo”
(este frequentemente ensinado nos cursos sobre feminismo, acerca da no-
ção de gênero [gender] e acerca da diferença sexual).
Quanto a mim, ensino Lacan (e Freud) em um curso intitulado “Literatura
e Psicanálise”. No meu ponto de vista, os Escritos (que eu mesma já abordei
no passado) são muito densos para serem o melhor meio de introdução a
Lacan. Eles se prestam a um ensino mais dogmático, enquanto é a imagem
viva de um ensino sempre em movimento e em perpétua invenção que
considero privilegiadamente dotada de um poder de inspiração criadora
(o que quer dizer não reificante).
Preferi, mais tarde, introduzir os estudantes aos seminários. E, nos se-
minários, escolhi estudar os capítulos de leituras concretas, organizadas
em torno de uma narrativa ou de uma situação terapêutica. Há alguns
anos, por exemplo, centrei meu seminário durante um semestre na leitura
de Freud e na releitura de Lacan do sonho sobre a criança em chamas.
Depois, ao lado de diversos textos de Freud, da leitura literária de três
tragédias edipianas de Sófocles e do texto de Mélanie Klein sobre o caso
de Dick (“Symbol Formation”), estou ensinando Lacan a partir de dois
patamares ou de dois nós textuais: 1) sua reinterpretação do texto de
Klein e do caso Dick (Seminário I, Os escritos técnicos de Freud); 2) a lei-
tura lacaniana de Antígona (Seminário VII, A ética da psicanálise). A ideia
é mostrar Lacan como leitor, primeiro de um caso clínico e do texto de
um comentário terapêutico, em seguida de um texto literário, com toda a
riqueza poética de suas inesgotáveis interpretações filosóficas. O texto de
Lacan é a escuta única de tudo isso de uma vez só.

16
III.  BREVE GLOSSÁRIO IMPERFEITO
DE NOÇÕES EM TRADUÇÃO (EM QUE
SE EXPLICAM NÃO-TODAS)

O intertítulo, aqui, evoca o “Glossário de transnominações”,9 de


Manoel de Barros, e o campo do Não-todo, extraído da lógica modal e
convocado, por Lacan, para configurar o campo do feminino, ao for-
mular que A Mulher “não é toda”.10
Assim, quero situar, no litoral entre a literatura e a psicanálise, algumas
noções recorrentes em Felman, valendo-me de uma perspectiva de leitu-
ra feminina, tão cara à autora, definida em seu livro What Does a Woman
Want?,11 como uma “leitura autobiográfica”, que aqui preferi chamar,
também em consonância com Roland Barthes, de “biografemática”.12 É,
portanto, a partir de um método biografemático e feminino que essas
noções em tradução, reunidas neste breve glossário, solicitam sua leitura.
Segundo Shoshana Felman, “Ler autobiograficamente é uma ativida-
de e uma performance muito mais complexa que o mero projeto – e a
mera tendência estilística – para tomar alguma coisa como pessoal”.13
Para autora, só nos apropriamos da “história do Outro”, por meio de
um “laço de leitura”. Sua proposta para as mulheres, em What Does a
Woman Want?, é, então, a de que elas sejam capazes de engendrar ou
de acessar sua história apenas indiretamente – conjugando literatura,
teoria e autobiografia, por meio do ato de leitura. É o que sugiro aqui,
neste prefácio, quando introduzo, femininamente, este breve glossário
de noções em tradução.

COISA LITERÁRIA
Exp. fem., a coisa própria ao literário. Expressão construída por
Shoshana Felman e extraída do campo da psicanálise, da filosofia e da
literatura. Inspirada certamente por Lacan, quando ele nomeia o “das
Ding” freudiano como a “Coisa freudiana”, a expressão sofre também

17
a inspiração de Heidegger e, ainda, da leitura que Derrida faz da “coisa
heideggeriana”, como admite a própria autora. Talvez seja, contudo,
em Maurice Blanchot que essa expressão toma uma conotação mais
próxima ao que Shoshana Felman pretende nomear, quando Blanchot,
em “A literatura e o direito à morte”, associa diretamente o trabalho do
escritor à palavra, essa “vida que carrega a morte e nela se mantém”:
A literatura se edifica sobre suas ruínas: esse paradoxo é para nós um lu-
gar-comum. Mas ainda deveríamos saber se esse questionamento sobre a
arte, que representa a parte mais ilustre da arte nesses trinta anos, não su-
põe o deslizamento, o deslocamento de uma força trabalhando no segredo
das obras e recusando-se a vir à luz do dia, trabalho originariamente muito
distinto de qualquer depreciação da atividade ou da Coisa literária.14
Entretanto, se Blanchot ainda a escreve com maiúsculas, numa direta
referência à “Coisa freudiana” e numa explícita alusão a Hegel, quando,
em A fenomenologia do espírito,15 ele alude à realização do escritor através
de sua obra, Shoshana Felman, como ela própria afirma em suas entre-
vistas, pretende conferir autonomia à coisa literária, não a subordinando
à atividade do escritor e tampouco à especificidade da literatura.
Para Felman, a coisa literária atravessa os discursos como aquele ele-
mento que, nos textos, resiste à interpretação, na medida mesma em que
se aproxima da “loucura”, não sendo redutível a nenhuma outra coisa.
Assim, marcando em si mesma a irredutibilidade do literário, a coisa
literária, entretanto, não é específica da literatura, na medida em que ou-
tros discursos – dentre eles, o discurso filosófico e o psicanalítico, com
os quais a autora trabalha diretamente – podem ser por ela atravessados.
É menos pelo que a coisa literária é capaz de dizer e, mais propria-
mente, pelo que ela é capaz de fazer – em termos de atos discursi-
vos – que podemos medir sua eficácia e, consequentemente, seu poder,
seu perigo e a ameaça que ela representa para os discursos da doxa.
Paradoxal e oximórica, a coisa literária seria, ainda hoje, melhor sus-
tentada pelo discurso poético, sobretudo aquele que se escreve na ra-
dicalidade da direção proposta por Mallarmé, que afirmava que “sim, a
literatura existe e, se quiserem, sozinha, à exceção de tudo” e que, por
isso, sustentava a necessidade de se “negar o indizível, que mente”,
admitindo não haver nada além da literatura, que, em sua radicalidade,
“autentica o silêncio”.1
No livro aqui traduzido, especificamente, a coisa literária aparece
associada à loucura, afirmando sua irredutibilidade a nenhuma outra
coisa, ao mesmo tempo em que afirma sua resistência à interpretação,

18
à compreensão e à tradução. Ou, nas palavras de Shoshana Felman, no
posfácio de La folie et la chose littéraire:
Se a literatura, de seu lugar específico, nos ensina sobre a loucura, a lou-
cura pode, por sua vez, nos ensinar sobre a coisa literária? Parece-me que,
se existe de fato alguma coisa como a coisa literária, ela não se dá, como se
pôde pensar, em virtude de uma sublimação, ou de uma função propria-
mente terapêutica da escrita, mas em virtude de uma irredutível resistên-
cia da coisa à interpretação. A loucura, em última instância, será definida
neste livro como uma resistência em ato à interpretação. A loucura, em
outros termos (como a coisa literária), não consiste nem em sentido, nem
em não sentido; ela não é um significado último igualmente em falta ou
disseminado que se pudesse imaginar, nem mesmo um significante último
que resiste à decifração exaustiva, mas um tipo de ritmo imprevisível, in-
calculável, inarticulável, mas estritamente narrável, por meio da narrativa
do deslizamento de uma leitura entre o muito-pleno-de-sentido e o mui-
to-vazio-de-sentido. Toda leitura é uma narrativa ritmada pela retórica de
sua falta-a-dizer sobre sua relação com o texto e com a loucura do texto.16

ESCRITA
Subs. fem, a escrita, do francês, écriture, do inglês, writing, foi tra-
duzida, neste livro, ora por “escrita”, ora por “escritura”. Mesmo não
fazendo qualquer alusão direta ao conceito de écriture, proposto por
Roland Barthes, Shohana Felman aproxima-se dessa noção, algumas
vezes, pela ênfase dada à materialidade da letra e da escrita. Nesses
momentos, opto pela tradução do termo por “escritura” e, em sua de-
fesa, trago aqui os argumentos de Leyla Perrone-Moisés:
O francês tem uma única palavra para designar a representação da fala ou
do pensamento por meio de sinais: écriture. (…)
Ora, em português, dispomos de duas palavras: escrita e escritura. (…)
Não cabe aqui discutir todas as implicações da noção de escritura em
Barthes. Digamos apenas que, para Barthes, a escritura é a escrita do es-
critor. Nessa Aula, ele propõe o uso indiferenciado de literatura, escritura
ou texto, para designar todo discurso em que as palavras não são usadas
como instrumentos, mas postas em evidência (encenadas, teatralizadas)
significantes.
Toda escritura é, portanto, uma escrita; mas nem toda escrita é uma escri-
tura, no sentido barthesiano do termo. (…)
Nada obriga a distinguir, como proponho escrita e escritura; mas as razões
acima expostas convidam a fazê-lo, na tradução de textos franceses recen-
tes, de autores como Barthes, Lacan, Derrida, Sollers, ou em textos teóricos
que a eles se refiram. (…) Alguns alegam que esse uso de escritura seria um
galicismo: ora, em português como em francês, a palavra vem diretamente

19
do latim scriptura. Outros repelem o termo, nesse contexto, por conside-
rá-lo adequado apenas no caso de um documento de tabelião ou de um
texto religioso (As Sagradas Escrituras). Ora, o Dicionário Aurélio Buarque
de Hollanda Ferreira registra escritura como sinônimo de escrita. (…)
Repelida, pois, a suspeita de francesia e aceitos os dois termos como si-
nônimos, volto à minha proposta de uma distinção tática entre ambos,
nos textos em que se alude à noção de escritura, isto é, em Barthes e autores
afins. Vejamos a questão das conotações. A conotação tabelional, no caso
da escritura barthesiana, não é um estorvo, mas um parentesco semântico
assumido e explorado. Sendo descendente de tabeliães, Barthes comenta:
“Não foi a escritura, durante séculos, o reconhecimento de uma dívida, a
garantia de uma troca, a firma de uma representação? Mas, hoje, a escri-
tura vai indo lentamente para o abandono das dívidas burguesas, para a
perversão, a extremidade do sentido, o texto…” (Roland Barthes por Roland
Barthes). Quanto à conotação sagrada, essa só enobrece o termo escritura,
com relação à escrita, geral e instrumental.17
Assim, considerando que, nesse livro de Shoshana Felman, toda es-
crita é escrita de escritor, já que é da escrita atravessada pela coisa lite-
rária que se trata, optei por traduzir, desde o título, o termo por “escri-
ta”. Entretanto, em alguns momentos em que uma ênfase especial me
pareceu recair sobre o termo, sublinhando a materialidade da letra ali
implicada, optei por “escritura”, considerando não só que Shoshana se
insere na linhagem de Barthes, Lacan, Derrida e Sollers mas também
que, em sua noção de écriture, estão implicadas as noções cunhadas
por esses autores para o termo. Lembremos apenas que, para Lacan, a
“escritura” sempre vem do real e que, para Derrida, a “escritura” está
ligada à différance (com “a”), conceito forjado pelo autor para dizer,
entre outras coisas, da materialidade da letra, e para questionar a apa-
rente prevalência (ou anterioridade) da fala sobre a escrita. Assim, é
por uma letra, não audível, mas visível – do campo da escrita, portan-
to – que a différance faz a diferença. Além disso, é importante lembrar
que o termo aparece, pela primeira vez em Derrida, em um texto de
1963, intitulado “Cogito et histoire de la folie”,18 e que Derrida, com
sua “história da loucura”, ocupam um lugar central em A loucura e a
coisa literária.
Por todas essas razões, e porque em português dispomos de duas
palavras para écriture, optei por essa variação na tradução, de acordo
com as variações de gradação que Shoshana Felman parece imprimir
ao termo, em seu livro.

20
INTERPRETAÇÃO
Subst. fem., extraído, em Shoshana Felman, tanto do campo da teo-
ria literária quanto do campo da teoria psicanalítica. Não seria possível
resumir aqui – nem esse é o propósito de Shoshana, nos ensaios que
compõem este livro – o sentido atribuído ao termo por Freud e por
Lacan, que permitiram que Shoshana propusesse uma leitura de A ou-
tra volta do parafuso, de Henry James, como “a outra volta da interpre-
tação”, no trecho intitulado “Henry James: loucura e interpretação”.
O fato é que, como o título o indica, a “loucura” – melhor dizendo, o
inconsciente – está diretamente ligada à interpretação, o que sugere, já
de início, que a interpretação não se reduz à atribuição de um sentido
para o texto, mas, antes, à impossibilidade de se atribuir, a qualquer
texto – e, especialmente, àquele que é atravessado pela coisa literá-
ria – um único sentido.
Curiosamente, é justamente no capítulo dedicado à “outra volta da
interpretação” que a “coisa literária” não aparece mencionada, como
se esse capítulo, o único aliás a ser originalmente escrito em inglês,
comportasse, por si só, uma demonstração (uma mostração) da coisa
literária. Assim, o sentido que se mostra, relativo à coisa literária do
texto de Henry James, é aquele que indica, antes, uma direção, e não
exatamente um significado. É, portanto, como um mise-en-abîme que a
interpretação faz o giro de sua outra volta, revelando, como propunha
Lacan em “Lituraterra”, que a psicanálise e a literatura estabelecem,
entre si, uma relação de implicação, e não de aplicação, e que é a partir
dessa estrutura de mise-en-abîme que um desses saberes – sempre em
fracasso, sempre em abismo – poderá iluminar o outro.
O que se pode extrair, portanto, dessa operação da interpretação, não
como atribuição de um sentido ao texto, mas como movimento de uma
estrutura em abismo? Talvez a lição que o próprio Lacan tenha nos
legado, em seu O Seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação: “Todo
exercício de interpretação tem caráter de reenvio de voto em voto”.19
O que a leitura de Shoshana Felman propõe, em todo o livro – e, en-
faticamente, em sua abordagem de A outra volta do parafuso, de Henry
James – é que a coisa literária é justamente o que resiste à interpreta-
ção e que, em sua resistência mesma, demonstra-se a irredutibilidade
do literário. Assim, fazendo alusão à “violência da interpretação” de
alguns que, pretendendo se valer da psicanálise, buscavam reduzir o
texto literário à teoria psicanalítica, Shoshana propõe, com base na

21
teoria lacaniana, uma outra forma – uma outra volta – para se ler o
texto literário em conjunção/disjunção com a teoria psicanalítica, to-
talmente inovadora para a época em que La folie et la chose littéraire
foi publicado. Apenas Lacan, em sua leitura de “A carta roubada”, de
Edgar Allan Poe, havia realizado, até então, uma leitura desse gênero,
ao atentar para o movimento da carta-letra, sublinhando que o seu
sentido permanece oculto.
Ao propor essa “outra volta da interpretação”, Shoshana Felman aca-
ba por sugerir uma outra maneira de se ler o texto literário: menos
assertiva, mais alusiva; menos paralisante, mais deslizante; menos na
direção semântica e mais na direção da significância e da materialida-
de da letra. Assim, termina por se aproximar do que é operado não
só pela psicanálise lacaniana mas também pelo pensamento poético
de Mallarmé, que afirmava que “nomear um objeto é suprimir os três
quartos do prazer da poesia, que é feito de adivinhar pouco a pouco:
sugerir, eis o sonho”.20
Pensar a interpretação como uma alusão (ou como uma perturbação,
da maneira que, em outros momentos, sugere Mallarmé) significa reti-
rá-la do campo das formulações assertivas, que apostam na atribuição
de um sentido para o texto. Esta é a outra volta proposta de Shoshana
Felman para a interpretação: aquela que, não desconhecendo a violên-
cia que está implicada na atribuição de um sentido ao texto, oferece,
em respeito à irredutibilidade da coisa literária, a delicadeza de um
abalo, a inquietação de uma pergunta, a sutileza de uma perturbação.

LEITURA
Subst. fem., utilizado, no campo da teoria literária, comumente
como sinônimo de “interpretação”, e, no campo da teoria psicanalítica,
muitas vezes associado à interpretação, outras vezes quando se busca
marcar justamente uma distinção com relação à noção freudiana de
interpretação, assinalando-se a literalidade da leitura, sua resistência à
atribuição de um sentido único ao texto e seu movimento de desliza-
mento constante.
Talvez o seminário de Lacan que mais radicalmente marque essa dis-
tinção entre leitura e interpretação seja justamente aquele que propõe
uma outra “leitura psicanalítica” para o texto de Poe, “A carta rouba-
da” (“The purloined letter”), já que uma leitura “clássica”, operando
com a psicanálise aplicada, já havia sido proposta por Marie Bonaparte.

22
Assim, como observa Eduardo Vidal, o que Lacan propõe, em relação
à leitura interpretativa de Marie Bonaparte, é justamente uma leitura
literal, que assinale, no conto de Poe, sua resistência à interpretação:
Na década de 1920, uma psicanalista francesa – de uma importância enor-
me, porque foi ela que conseguiu que Freud saísse de Viena e chegasse a
Londres, morrendo em Londres e não num campo de concentração, como
aconteceu a sua irmã –, Marie Bonaparte, chamada princesa em função de
sua condição de neta de Bonaparte, escreve mais do que um livro, escreve
um enorme tratado de dois volumes que se chamou Vida e obra de Edgar
Allan Poe onde analisou cada um dos contos e parte da biografia de Poe,
chamando de “ciclo da mãe”, “ciclo o pai”. É um livro sem dúvida interes-
sante para quem quer pensar a relação instigante de estrutura, é uma forma
de apropriação do discurso literário. (…) Lacan considera a análise de
Marie Bonaparte como um tipo de aproximação da literatura que merece
crítica. E que ele chega a chamar de crítica de dejecção, quer dizer, sempre
foi muito duro contra esse tipo de apropriação. Esse tipo de análise faz da
psicanálise um saber que o texto literário referenda, e que chega sempre ao
mesmo lugar e talvez não saia de duas ou três questões.
Tomei a análise da “A carta roubada” e “O gato negro”. Ao contrário da
análise do conto “O gato negro” – que tem enormes páginas, relatando –,
a análise da “A carta roubada” tem apenas duas páginas. Isso a princípio é
essencial, porque quer dizer que “A carta roubada”, o conto de Poe, resiste
à interpretação analítica. E que foi isso, e não o acaso, que levou Lacan a tra-
balhar esse conto, porque foi o único que não permitiu a Marie Bonaparte
aplicar inteiramente a sua estrutura que é especificamente a mesma. (…)
Há algo aqui como “com esse Marie Bonaparte não pode”, “com esse nin-
guém pode”, e esse seria o ponto que vai ser causa do trabalho de Lacan.
Justamente aquele que resiste à interpretação analítica, porque Lacan tra-
balha justamente esse conto de Poe e não outro.21
Digamos que o método de “interpretação” psicanalítica “inaugura-
do” por Lacan, com sua leitura do conto de Poe, é justamente aquele
que valoriza a “resistência” do texto à interpretação, valorizando, as-
sim, a resistência da letra e propondo uma outra maneira de ler que,
sem atribuir um sentido ao texto, percorre seu movimento, seus “sen-
tidos” (direções), e “faz sentido” justamente a partir do que resiste:
Isso nos deixa na boa linha de entender que qualquer aproximação entre
psicanálise e literatura será feita por esse ponto de resistência da carta, ou
da letra (para jogar com o equívoco), já que a letra que lemos é sempre a
letra que resiste e, por isso, ela faz escrito. Na medida em que ela, por mais
que aparentemente se ofereça a uma leitura, aquilo com o qual deparamos
é o seu ponto de resistência.22

23
É exatamente essa a direção de leitura proposta por Shoshana
Felman, em La folie et la chose littéraire, e teorizada em seu capítulo
final, em que ela propõe uma leitura do livro A outra volta do parafuso,
de Henry James, como uma “outra volta da interpretação”. Talvez o
que se possa pensar como a outra volta da interpretação, em Shoshana
Felman, seja justamente a proposta de uma leitura literária (ou literal),
que respeita a “resistência” do texto e que entende que “ler” é mais
amplo que “interpretar”. Trata-se, portanto, de uma operação que não
se reduz à atribuição de sentido ao texto.
Admitamos, então, como propõe Eduardo Vidal, que uma das “en-
tradas” de Lacan na psicanálise dá-se pela via do escrito e da leitura
desse escrito:
Sobre esse conto, e o seminário de Lacan, podemos dizer que ele é inau-
gural de alguma questão. Primeiro de um ensino, não só porque Lacan
se apropria dele no segundo seminário, senão porque, quando se trata
de publicar os seus Escritos, ele não se detém à cronologia – e deixa bem
claro – e o coloca como um texto inaugural dos seus Escritos. Considera
que ali há um ponto de início do discurso lacaniano. Conforme Lacan
entra na psicanálise – não se trata do único, é claro que há outros modos
de entrada –, ele entra pela via do escrito, justamente pela via do conto de
Poe. Tem no conto de Poe um suporte, um suporte realmente consistente.
Então, inaugural nesse sentido. Inaugural no sentido da repetição. Já que,
em toda inauguração, o que se inaugura não é outra coisa que não uma
repetição. Essa repetição retorna nos momentos cruciais de formulação de
sua teoria. Às vezes se emocionava com uma frase, às vezes com uma lição
inteira, mas, nos momentos em que há passagens em que quer introduzir
ou reformular um ponto da prática, da sua clínica, “A carta roubada” apa-
rece novamente.23
Nessa direção, e considerando que Lacan sugeria aos analistas que
não fossem tão rápidos, oferecendo interpretação, talvez se possa su-
gerir que o ensino lacaniano faz um retorno a Freud justamente ao
propor uma “outra volta na interpretação”, aquela que insere a leitura
no lugar da interpretação propriamente dita. E faz parte de uma certa
“ética” dessa leitura (aquela que considera a coisa literária em sua ir-
redutibilidade) não reduzir o texto a um sentido. Ou, nas palavras de
Shoshana Felman: “Toda leitura que paralisa o movimento textual, que
atravessa a linguagem e bloqueia o sentido numa pretensão à verdade,
entra necessariamente numa estrutura mistificada.”24

24
LOUCURA
Subst. fem. Sabemos que a “loucura”, para Shoshana Felman, foi o
significante que saltou diante de seus olhos, quando de sua leitura de
La chartreuse de Parma, de Stendhal. Intrigava a leitora que Stendhal,
tão racionalista, se valesse reiteradas vezes desse significante, com su-
tis nuances em seu significado. Foi, assim, como um significante pri-
vilegiado, que a “loucura” silenciosamente se infiltrou, no texto e no
pensamento de Shoshana, levando-a a desenvolver toda uma teoria
acerca d’“A loucura e a coisa literária”.
Sabemos também que um bom aferidor, segundo Shoshana, para se
avaliar a potência da coisa literária, em determinado texto, pode ser
o grau de “loucura” desse texto. Ou seja: a “loucura” e a coisa literá-
ria mantêm afinidades que dizem respeito, em última instância, a seu
grau de resistência à interpretação. Quanto a essa resistência, a autora
desenvolve um raciocínio exemplar, em seu livro, notadamente no pri-
meiro capítulo, “Loucura e filosofia”, em que trabalha, basicamente,
com o pensamento de Foucault e Derrida:
O que caracteriza a loucura não é somente uma cegueira, mas uma cegueira
cega em si mesma, a ponto de necessariamente comportar uma ilusão de ra-
zão. Mas, então, como saber onde termina a razão e onde começa a loucura,
uma vez que uma e outra só são possíveis na perseguição da razão? A partir
do momento em que a loucura, como tal, comporta necessariamente um ato
de fé na razão, toda convicção razoável é necessariamente suspeita de loucu-
ra. Razão e loucura são ligadas; a loucura é essencialmente um fenômeno do
pensamento, de um pensamento que denuncia, no pensamento do outro, o
Outro do pensamento. A loucura só é possível num mundo em conflito de
pensamentos. A questão da loucura não é, então, outra, senão a questão do
pensamento. A questão da loucura é precisamente aquilo que faz, da essência
do pensamento, uma questão: “ É somente ao homem que é dado pensar, diz
Hegel. É isso que faz com que ele tenha o privilégio da loucura.”25
Assim, irremediavelmente interligadas, a loucura e a razão, elemen-
tos sempre presentes numa estruturação do pensamento, terminariam
por fazer parte também dos discursos. Ocorre que, se é a literatura o
discurso em que a loucura encontra um “abrigo” mais confortável,
pois a coisa literária, aí presente, convoca a loucura para a tessitura
mesma do texto, é justamente aí, no campo da literatura, que a loucu-
ra revela sua face irredutível, sua resistência absoluta à interpretação.
Cabe, então, a pergunta: como reconhecer a loucura no texto literário,
se esse texto, por sua própria constituição, é o lugar de concentração e
de disseminação da loucura?

25
É no seio desse paradoxo que Shoshana Felman situa o seu lugar, o
lugar de seu texto, como uma teoria sobre a “loucura e a coisa literá-
ria”, na apresentação de La folie et la chose littéraire:26
Mas qual é, então, nosso lugar? Ele não pode estar nem dentro da loucura,
nem fora dela: nem dentro da demência, nem do lado de fora. Também eu
não posso falar nem como louca, nem como não louca.
“Se ela não é justamente a demência daquele que recebe a loucura do outro
como um dom real, do qual ela pode ser a contrapartida?” Àqueles que,
através da escrita, nos trouxeram o dom da loucura, eu dou a palavra nes-
te livro: que eles se coloquem em meu lugar, que eles me pensem. E que
pensem isto: “se outros não tivessem sido loucos, nós deveríamos sê-lo.”
Outros foram loucos. Eles o foram, diz Bataille, com esplendor. Este livro
lhes é consagrado, este livro que gostaria de refletir sobre o seu lugar – em
nós. Em seu lugar, lá onde eles foram loucos em nosso lugar.
Fazer uma teoria desse lugar: assumir, no seio mesmo da teoria, essa rela-
ção viva com um lugar que não é o meu, mas que existe em meu lugar, tal
é o projeto, o desejo deste livro.
Ao seguir de perto o pensamento de Foucault, em História da loucu-
ra, à luz de Maurice Blanchot (do qual, diga-se de passagem, o pensa-
mento de Foucault sempre foi tributário), Shoshana Felman promove
a “outra volta” na leitura da máxima foucaultiana “loucura=ausência
de obra”. Pois se, para Blanchot, a obra é, em última instância, fadada
ao désoeuvrement, à própria “ausência de obra”, pode-se também afir-
mar que, “obra= ausência de obra”. É assim que, num entrecruzamento
das ideias de Foulcault com as de Blanchot, tanto no que se refere à
“loucura” quanto à coisa literária, Shoshana Felman pode propor que
é na “loucura” que reside, em sua irredutibilidade, “a coisa literária”,
da mesma maneira que é a coisa literária que conclama, em sua radi-
calidade, a máxima potência discursiva da loucura: a autenticação do
silêncio, digamos, para evocar novamente Mallarmé. Ou, nas palavras
da autora, ainda na apresentação de La folie et la chose littéraire:
Estudando um tipo de loucura através da literatura, e a literatura através
da loucura, meu esforço será para interrogar, a cada vez, a irredutibilidade
de um texto em sua prática singular, mas também, ao mesmo tempo, o
estatuto mesmo da coisa literária. Se, a exemplo da loucura, a literatura
era constituída por um espaço de repressão que era aquele do desconhe-
cimento; se, segundo os modos históricos que mudam, o recalcamento da
literatura lhe era constitutivo, seria possível dizer, ou ao menos indicar, ou
sugerir, o que faz o objeto desse recalcamento? Poderíamos definir a coisa
literária como aquilo que não fala, e que só é falante a partir mesmo daqui-
lo que a impede de falar, a partir e por causa mesmo daquilo que a barra?
Poderíamos testar uma tal definição por meio de uma prática de leituras? É
o que tentam os estudos que vão se seguir.27

26
É assim que a loucura, nos textos analisados por Shoshana Felman,
é também uma instância retórica: aquela que, ao resistir à interpreta-
ção, não faz do silêncio uma barreira ao sentido, mas, paradoxalmen-
te, o seu contrário: o “passo de sentido”, que é também o “não senti-
do” (o pas-de-sense), esse lugar extremo até onde as palavras podem
nos transportar.

TRADUÇÃO
Subst. fem. que não se coloca, neste livro de Shoshana, como um
conceito, mas como uma operação, um modo de funcionamento para
se pensar tanto a “loucura” quanto a coisa literária. Já no início do
livro, em sua apresentação, Shoshana Felman indaga: “Falar da loucu-
ra – em que língua?” E, logo em seguida, uma proposta de “escrita em
tradução” se esboça:
Eu diria, tomando de empréstimo a própria linguagem de Henry James,
que eu gostaria de escrever de tal maneira que, para um observador de
fora, seria impossível dizer se eu sou uma francesa escrevendo sobre a
América, ou se eu sou uma americana escrevendo sobre a França. (De fato,
eu não sou nem francesa, nem americana).28
Para a autora, que aqui não declara sua nacionalidade, e que, em ou-
tro momento, viria a declarar que sua escrita é sua pátria,29 falar sobre
a “loucura” e sobre a coisa literária implica a necessidade de “passar
entre as línguas”, pois é sempre do “estranho familiar”, do unheimlich
freudiano30 que se trata:
Por que esta necessidade de passar entre as línguas? Essa necessidade tem
alguma coisa a ver com a loucura? Ou com a coisa literária? O que é uma
língua estrangeira? O que é uma língua materna? O que é uma língua e o
que é uma gramática? Qual será a língua na qual se dá a ler o sentido de
uma gramática?
Há sempre alguma coisa de radicalmente estranho, diz um crítico americano,
na língua dos outros. Ou escrever sobre a loucura não implica a necessidade
de, justamente, reencontrar na língua, pela língua, alguma coisa de radical-
mente estranho? Cada língua é autofamiliar: ela tem seus próprios concei-
tos, seu próprio sistema de pensamento ao qual ela condiciona o pensável.
Falamos, pensamos, a partir de decisões tomadas de início na língua: cada
língua dita a seus usuários suas interdições e suas evidências, inscritas den-
tro e por sua gramática: uma gramática do interior da língua, por definição
invisível. Para tornar aparente essa gramática, é preciso arrancar a língua
de sua presença para si mesma: desestabilizar suas evidências e suas inter-
dições, submetendo-as à alteridade de uma outra gramática, a seu questio-
namento por uma língua estrangeira.31

27
Por essa razão, pareceu-me oportuno trazer de volta, para o seio de
nossa conversa aqui invisível (a entrevista não publicada), o texto de
Walter Benjamin, “A Tarefa do Tradutor”, que foi por mim proposto
como uma forma de pensar, nos moldes da teoria benjamininana da
tradução, a coisa literária. As respostas de Shoshana Felman às ques-
tões que envolviam esse texto de Benjamin foram surpreendentes e
merecem ser parcialmente reproduzidas aqui:
(…) quero sublinhar o que me parece mais importante: a transferência nun-
ca pode ser total, quer dizer, a transferência de uma língua para a outra.
Há um elemento, na tradução, que vai além da transmissão de uma língua
para a outra… Esse núcleo é melhor definido como um elemento que não
permite a tradução, então, ele diz que o intraduzível é o ponto central do
texto. E acrescenta que cada texto tem sua tradutibilidade, que é o que
convoca a tradução, demanda a tradução… E, então, o que é tão bonito
é – estou certa de que você concorda com isso, mas quero apenas relembrar
para você essas frases – todas as línguas e todas as criações da linguagem
que permanecem como o que pode ser transmitido têm alguma coisa que
não pode ser comunicada. Elas serão concebidas como uma força ativa na
vida que, cantando a vida, habita as criações linguísticas da essência mesma
da pura língua em variadas línguas. Assim, a pura língua é alguma coisa
que você pode indicar, porque ela mostra a comunidade entre as línguas.
Ele diz que a realeza entre as línguas reside no fato de que há uma relação
entre elas, e é isso o que se extrai de uma tradução. Veja, essa é uma bela
e surpreendente ideia. A tradução serve, em última instância, ao propósito
de expressar a relação recíproca das línguas. Então, você quer mostrar que
existe uma relação entre o português, o francês e o inglês, ou que o meu es-
tar entre o francês e o inglês relaciona-se ao português. Ele diz: “As línguas
não são estrangeiras uma em relação à outra, mas elas se relacionam quanto
ao que querem expressar”. Então, talvez você queira expressar alguma coisa
que se relaciona com o que eu quero expressar, e isso é a relação entre as
línguas. Isso é surpreendente, não é o senso comum (…).32
Ao reler Shoshana Felman em sua minuciosa releitura desse texto
de Benjamin, pergunto-me que lugar ocuparia o hebraico, essa lín-
gua que desconheço – língua materna de Shoshana, em que ela não
escreve –, nos textos deste livro, sob a perspectiva benjaminiana?
Poderíamos pensar no hebraico ocupando justamente esse lugar de
uma “língua pura”, evocada por Benjamin, lugar de “reconciliação das
línguas”, seu ponto central, aquele que “contém alguma coisa que não
pode ser comunicada”?
Sem querer interpretar Shoshana Felman, mas tão somente lê-la – na
leitura expandida que seu texto nos abre –, e em respeito à “ética
da leitura” que seu texto transmite, continuemos a escutá-la, na apre-
sentação de seu livro:

28
A essência do recalcamento se define por Freud como um “defeito de tra-
dução”, ou seja, como a própria barreira que nos separa de uma língua
estrangeira. Ou, se a loucura, como a coisa literária, é regida por aquilo
mesmo que a recalca, por aquilo mesmo que a interdiz na língua; se ambas
procedem, então, de alguma forma, de uma e de outra, e cada uma, à sua
maneira, de um defeito de tradução, o projeto de lê-las deve necessitar de
uma passagem entre as línguas. E, sem dúvida, franqueando esse limite,
passando de uma língua à outra, não chegamos a anular o “defeito de tra-
dução”; não se levanta a barra do recalcamento, mas pode-se deslocá-la,
fazê-la aparecer, para melhor poder analisá-la. “Sair da metafísica” não se-
ria, antes de tudo, sair da física mesma de uma língua materna? “O que é
[escreve Philippe Sollers] um sentido na língua da pátria-mãe? A proprie-
dade privada da palavra infantil (…) A língua nacional, materna, não se
sonha, ela faz um sujeito sonhar no seu sonho. Mas o sonho de uma língua
pode ser a vigília de uma outra e, quando cai a noite sob uma latitude, pode
raiar o dia sob uma outra.”33

TRANSFERÊNCIA
Subst. fem. tomado de empréstimo à psicanálise, por Shoshana
Felman, para postular, em seu livro La folie et la chose littéraire, um
lugar diferente do lugar “acostumado” em que as chamadas leituras
psicanalíticas colocavam o texto literário. Tomando a psicanálise como
um método a ser “aplicado” à leitura do texto, a chamada crítica psi-
canalítica, até então, fazia do texto o “paciente” (e, muitas vezes, esse
lugar era transferido para o autor do texto), interpretando-o a partir da
teoria psicanalítica, com base no que poderia ser chamado, grosseira-
mente, de “sintoma” do texto.
Diferentemente, a leitura proposta por Shoshana Felman pressupõe
uma psicanálise implicada com a literatura, em que o texto ocupa-
rá uma posição de mestre (de “suposto saber”, portanto), enquanto
ao leitor caberá a relação transferencial com o texto, mas uma relação
que oscila entre o lugar de analista e o de analisando. Talvez por isso,
em razão dessa oscilação, o conceito de “transferência” seja retomado
por Shoshana, em sua radicalidade, como uma espécie de amor que,
na perspectiva de Lacan, em seu Seminário 8, sobre a transferência,
consiste justamente em “dar o que não se tem”.34 Ou, nas palavras da
autora, em entrevista a Jacques-Alain Miller:
De todos os conceitos que a psicanálise introduziu, o que me parece ser o
mais importante – mais sugestivo e menos explorado – para a teoria da coi-
sa literária é o conceito de transferência. Normalmente se pensa, seguindo
as teses de Charles Macron e sua teoria da “psicocrítica”, que o que diferen-

29
cia uma exegese analítica da literatura de uma psicanálise é a ausência de
transferência na primeira. Penso que, ao contrário – e tento demonstrá-lo
com precisão –, cada efeito de leitura (o que quer dizer, cada efeito de
significado) está sob efeito de transferência. Parece-me que é fora dos efei-
tos transferenciais de um texto que se deve repensá-lo, e ressituar a coisa
literária. Mas o chamado transferencial precisa ser, ele próprio, repensado
em relação a outros contextos teóricos, além da psicanálise. No prefácio
do meu livro, eu aponto quais outras referências eu penso que devam ser
essas – capazes de enriquecer os conceitos psicanalíticos ao menos tão lon-
ge quanto for a coisa literária. Por favor, observe que ler, aqui, constitui-se
num paradoxo: uma leitura literária é aquela que não pode escolher entre o
papel do analista e o do analisando. Isso significa, de um lado, que a análise
literária, ou decifração do significado, parece – pelo menos de longe – o tra-
balho de decifração que caracteriza o analista, mas, por outro lado, o que é
analisado – o texto – longe de ser um “paciente”, é bem contrariamente um
mestre. Fala-se, frequentemente, de obras-primas – masterpieces [obras de
mestre]: o texto tem, para nós, uma forma particular de autoridade. Ele ocu-
pa, por excelência, o lugar retórico para o qual toda energia transferencial é
dirigida. E aquele a quem é “suposto o saber”: o suposto saber do sentido.
O leitor literário, então, ocupa, paradoxalmente, tanto o lugar do analista
(na relação de interpretação) quanto o lugar do analisando (na relação de
transferência). Em que medida a literatura poderia ser pensada como um
campo transferencial do analista? E como os efeitos transferenciais da litera-
tura (o efeito de sentido produzido pelo poder de endereçamento da coisa
literária, em direção ao lugar do leitor) tornam-se o signo do signo, ou seja,
da existência mesma da textualidade em si? Essas são algumas das questões
que tento explorar em meu livro.35
É importante assinalar, ao encerrar este “breve glossário imperfeito
de noções em tradução”, que, dos sete significantes aqui privilegia-
dos – todos substantivos femininos, em língua portuguesa –, o que
mais femininamente se inscreve talvez seja, justamente, aquele que é
nitidamente extraído da psicanálise: a transferência. Aliás, é mesmo
como uma espécie feminina de amor que o “dar o que não se tem” –
essa forma do amor em análise – é concebida por Lacan, através de sua
leitura do mito de Poros e Penia:
Poros, o autor cuja tradução tenho à minha frente, simplesmente por estar
diante do texto, o traduz, não sem pertinência, por Expediente. Se isso sig-
nifica Recurso, certamente é uma tradução válida. Astúcia também, já que
Poros é filho de Metis, que é mais a invenção que a sabedoria. Diante dele,
temos a personagem feminina que vai ser a mãe do Amor, Penia, a saber,
Pobreza, ou mesmo, Miséria. Ela é caracterizada no texto como aporia, a
saber, sem recursos. É isso o que ela sabe sobre si mesma: recursos, não
os tem. O termo aporia, vocês o reconhecem, é aquilo que nos serve como
referência ao processo filosófico. É um impasse, aquilo frente ao que en-

30
tregamos os pontos, ficamos sem recursos. Eis, portanto, a Aporia fêmea,
diante do Poros, o Expediente, o que parece bastante esclarecedor.
O que é muito bonito nesse mito é a maneira pela qual a Aporia engendra
Amor com Poros. No momento em que isso se deu, era Aporia quem ve-
lava, quem tinha os olhos bem abertos. Contam-nos que ela viera para os
festejos do nascimento de Afrodite e, como qualquer Aporia que se preze,
nessa época hierárquica, permaneceu nos degraus, próxima da porta. Por
ser Aporia, isto é, por nada ter a oferecer, não entrou no festim. Mas a
felicidade das festas é que justamente acontecem coisas ali que invertem a
ordem comum. Poros adormece. Adormece porque estava embriagado, e
é isso o que permite a Aporia fazer-se emprenhar por ele, e ter esse filhote
que se chama o Amor, cuja data da concepção vai coincidir, portanto, com
a data do nascimento de Afrodite. É por isso mesmo, nos explicam, que o
amor terá sempre alguma relação obscura com o belo, aquilo que se vai
tratar, com efeito, no desenvolvimento de Diotima. Isso está ligado ao fato
de que Afrodite é uma deusa bela.
Aí estão as coisas ditas claramente: é o masculino que é desejável, é o femi-
nino que é ativo. Pelo menos, é assim que as coisas se passam no momento
do nascimento do Amor.36
É, pois, femininamente – e em consonância com outros trabalhos
de Shoshana Felman, tanto no campo do feminino quanto do feminis-
mo – que a transferência é aqui evocada, em sua implicação com essa
nova forma de amor – o amor do analista – como o “dar o que não
se tem”. Se a leitura proposta por Shoshana Felman confere ao texto
um lugar de mestre e ao leitor, um lugar oscilante, entre o de analista
e o de analisando, é preciso reconhecer aí, nesse trânsito, uma outra
forma de amor à coisa literária, que implica amar também seu estranho
dom de “dar [a ler] o que não se tem”: sua resistência, sua irredutibi-
lidade, sua loucura.

31
IV.  AMOR, O RETORNO A CASA

Seria preciso, depois de tudo, ainda declarar que foi em transferência


com o texto de Shoshana Felman que esta tradução se deu? Sim, talvez
seja preciso ainda uma vez deixar aqui escrito que foi um texto dessa
escritora, escrito originalmente em inglês e depois traduzido para o
francês para compor o livro La folie et la chose littéraire, texto sobre
A volta do parafuso, de Henry James, a minha porta de entrada para a
psicanálise. E, depois de Shoshana Felman, viria Lacan. E, “só depois”
de Lacan, viria Freud.
Curiosamente, é justamente esse texto – que considerei, nesta tradu-
ção, o ponto central do livro de Shoshana – aquele em que a expressão
“coisa literária” não chega a ser mencionada. E, no entanto, é também
esse o texto que nos mostra, da maneira mais cabal, a coisa literária em
seu ponto extremo de resistência à interpretação.
Assim, tendo lido originalmente esse texto em francês, foi, contudo,
em inglês que fui reencontrá-lo trinta anos depois, para propor, em
projeto de estágio sênior subsidiado pela Capes, a tradução de Writing
and Madness, livro escolhido apenas por seu título, porque nele relu-
ziam, como uma promessa, a escrita da loucura e a loucura da escrita.
Ocorre que, no período desses trinta anos, eu também havia escrito
um livro – Coisa de Louco –,37 que hoje, “só depois”, percebo indi-
retamente inspirado pela coisa literária de Shoshana Felman, que eu
conhecia de cor (de coração), mesmo tendo lido apenas um dos capí-
tulos de seu livro, e justamente aquele em que a coisa literária não se
dá a ler como conceito, mas certamente se dá a ver, como operação.
Por isso, para encerrar este prefácio a uma tradução não toda desse
livro do qual escolhi traduzir alguns capítulos, a ele acrescentando
outros textos de Shoshana Felman; para encerrar este momento em
que, exatamente dois anos após minha ida para Atlanta, ao encontro
de Shoshana, consigo narrar uma viagem ao encontro da coisa literá-
ria; para encerrar o período em que, entre as opções de me aposentar

32
como professora titular em Estudos Literários da Faculdade de Letras
da UFMG e de participar da fundação de um projeto de casas de refúgio
para escritores perseguidos no Brasil,38 decidi-me pelo recolhimento,
por um tempo, para enveredar na tarefa da tradução em ato de amor,
minha forma de dar o que não tenho ao texto de Shoshana Felman,
invoco aqui as palavras de Paul Celan:
São essas vias apenas des-vios, caminhos ínvios de ti a ti? Mas são também,
no meio de sabe-se lá quantos outros caminhos, caminhos nos quais a
língua ganha voz, são encontros, caminhos de uma voz para um Tu que re-
cebe, caminhos da criatura, projetos da existência, talvez, uma antecipação
a nós próprios para nos encontrarmos… em busca de nós próprios. Uma
espécie de regresso a casa.39
Já há algum tempo percorro, com insistência, as palavras de Freud,
em “O Estranho”, para de novo estranhar, sempre, que o velho grace-
jo – “O amor é a saudade de casa” – seja por Freud evocado, justo no
momento em que ele se refere, como que distraidamente, ao fato de
alguns neuróticos do sexo masculino apresentarem um sentimento de
estranheza diante do sexo feminino.40
É, portanto, como um retorno a casa – e não exatamente como
uma saudade – que esta tradução, em movimento de feminino amor
(dar o que não se tem) –, pode se concluir. E, na tentativa de retor-
nar a eles – a Lacan e a Freud, a partir de Lacan –, dizendo algo para
ela – Shoshana Felman, autora desse magnífico texto sobre a loucura e
a coisa literária –, algo que permaneça além (ou aquém) da autentica-
ção do silêncio do tradutor, evoco aqui, por fim, as palavras de Lacan:
O que é, afinal, uma carta? Como é que uma carta pode ser roubada? Ela
pertence a quem? A quem a enviou, ou a quem é destinada? Se disserem
que pertence a quem a enviou, no que será que consiste a dádiva de uma
carta? E, se pensarem que ela pertence ao destinatário, como é que, em
determinadas circunstâncias, vocês devolvem as cartas ao personagem que
com elas os bombardeou durante uma parte da existência de vocês?41

NOTAS

1  Stéphane Mallarmé, Oeuvres Complètes, v. 2, Paris, Gallimard, 2003, p. 646.


2  Shoshana Felman, Escrita e loucura: por que este livro, ensaio traduzido
neste livro.
3  Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, (Bernardo Soares – heterônimo), numa
recolha de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha, ed. Jacinto do Prado Coelho,
Lisboa, Ática, 1982, v. I, p. 16-17.

33
4  Maria Gabriela Llansol, Um falcão no punho, Belo Horizonte, Autêntica,
2011, p. 44.
5  Pessoa, Lisbon revisited, em Obra poética, Rio de Janeiro, Nova Aguilar,
1977, p. 360.
6  João Guimarães Rosa, Tutaméia, 6. ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1985, p. 17.
7  Walter Benjamin, A tarefa do tradutor, em Walter Benjamin: quarto traduções
para o português, Lucia Castello Branco (org.), Cadernos Viva Voz, Belo Horizonte,
FALE-UFMG, 2011, p. 51.
8  Maurice Blanchot, L’amitié, Paris, Gallimard, 1973, p. 328.
9  Manoel de Barros, Gramática expositiva do chão, Rio de Janeiro, Record, 2010.
10  A esse respeito, ver Jacques Lacan, O Seminário, livro 20: mais, ainda, 2. ed., Rio
de Janeiro, Zahar, 1985, p. 98.
11 Felman, What Does a Woman Want? Reading and Sexual Diference, Baltimore,
London, The John Hopkins University Press, 1993, p. 13-26.
12  A respeito do biografema, ver Roland Barthes, Sade, Fourier, Loyola, Lisboa,
Edições 70, 1979, p. 13.
13 Felman, What Does a Woman Want?, p. 13.
14 Blanchot, A literatura e o direito à morte, em A parte do fogo, Rio de Janeiro,
Rocco, 1997, p. 292.
15  Friedrich Hegel, A fenomenologia do espírito, Rio de Janeiro, Vozes, 2011.
16 Felman, A loucura e a coisa literária: em torno da questão do livro, ensaio tra-
duzido neste livro.
17  Leyla Perrone-Moisés, Lição de Casa, prefácio em Roland Barthes, Aula, São
Paulo, Cultrix, [s.d.], p. 74-78. (Grifo de Moisés).
18  Jacques Derrida, Révue de métaphysique et de morale, v. 69, n. 1, 1964,
p. 116-119.
19  Jacques Lacan, O Seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação, Rio de Janeiro,
Zahar, 2016.
20  Mallarmé, sobre o tema “Evolução Literária”, em L’Echo de Paris, 3 mar./5 jun.
1891, entrevista concedida a Jules Huret.
21  Eduardo Vidal, Letra, palestra proferida no ciclo de conferências Lituraterrar
Lacan, Lucia Castello Branco, Janaína de Paula e Vania Baeta (coord.), Janaína de
Paula (transc.), Belo Horizonte, Centro Cultural da UFMG, abr. 2014.
22  Ibidem.
23  Ibidem.
24  Felman, Gustave Flaubert: loucura e clichê, ensaio traduzido neste livro.

34
25  Felman, Cogito e loucura ou razão da literatura, ensaio traduzido neste livro.
26  Felman, Escrita e loucura: por que este livro, ensaio traduzido neste livro. (Grifo
de Felman).
27  Ibidem.
28  Ibidem.
29  Cathy Caruth, A Ghost in the House of Justice: A Conversation with Shoshana
Felman, Listening to Trauma, Baltimore, John Hopkins University Press, 2014,
p. 321-353.
30  A respeito do unheimlich em sua relação com a tradução, ver Ana Maria Portugal,
O vidro da palavra, Belo Horizonte, Autêntica, 2006.
31  Felman, Escrita e loucura: por que este livro, ensaio traduzido neste livro. (Grifo
de Felman).
32  Felman, em entrevista inédita concedida a Lucia Castello Branco, fev. 2015.
33  Idem, Escrita e loucura: por que este livro, ensaio traduzido neste livro.
34 Lacan, O Seminário, livro 8: a transferência, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1992.
35  Felman, entrevista concedida a Jacques-Alain Miller, Ornicar: Bulletin périodi-
que du Champ freudien, n. 16, p. 73-83, 1978.
36  Ibidem, p. 125.
37  Lucia Castello Branco, Coisa de Louco, Belo Horizonte, Mazza Edições, 1998.
38  Refiro-me aqui ao CaBra, Casas Brasileiras de Refúgio, projeto coordenado por
Sylvie Debs, representante do ICORN no Brasil. O projeto, do qual sou docente-par-
ceira, terminou por se constituir num acordo de cooperação entre a UFMG e o
ICORN, para trazer à América do Sul o primeiro escritor perseguido, através da fun-
dação de uma casa-refúgio em Belo Horizonte. A esse respeito, ver www.icorn.com.
39  Paul Celan, O Meridiano, em Arte Poética: o Meridiano e outros textos, Lisboa,
Cotovia, 1996, p. 61.
40  Sigmund Freud, O Estranho, em Uma neurose infantil e outros trabalhos, Rio de
Janeiro, Imago, [1919] 1976, p. 305, v. XVII. (ESB).
41 Lacan, O Seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise,
Rio de Janeiro, Zahar, 1985, p. 249.

35
PARTE I 
A LOUCURA E A COISA
LITERÁRIA
Um dos Provérbios de Blake diz que, “se os outros
não tivessem sido loucos, nós deveríamos sê-lo”.
A loucura não pode ser rejeitada da integridade
humana, que não poderia ser atingida sem o
louco. Nietzsche tornando-se louco – em nosso
lugar – tornou essa integridade possível: e os
loucos que perderam a razão antes dele não
puderam fazê-lo com tanto esplendor. Mas
o dom que um homem faz da sua loucura
a seus semelhantes pode ser aceito por eles
sem que ele seja recebido com usura? E se ela
não é justamente a demência daquele que
recebe a loucura do outro como um dom
real, do qual ela pode ser a contrapartida?
BATAILLE
ESCRITA E LOUCURA: POR QUE ESTE LIVRO

I
Nietzsche tornando-se louco – em nosso lugar…
Mas qual é, então, nosso lugar? Ele não pode estar nem dentro da
loucura, nem fora dela: nem dentro da demência, nem do lado de fora.
Também eu não posso falar nem como louca, nem como não louca.
“E se ela não é justamente essa a demência daquele que recebe a lou-
cura do outro como um dom real, do qual ela pode ser a contraparti-
da?” Àqueles que, através da escrita, nos trouxeram o dom da loucura,
eu dou a palavra neste livro: que eles se coloquem em meu lugar, que
eles me pensem. E que pensem isto: “se outros não tivessem sido lou-
cos, nós deveríamos sê-lo.”
Outros foram loucos. Eles o foram, diz Bataille, com esplendor. Este
livro lhes é consagrado, este livro que gostaria de refletir sobre o seu lu-
gar – em nós. Em seu lugar, lá onde eles foram loucos em nosso lugar.
Fazer uma teoria desse lugar: assumir, no seio mesmo da teoria, essa
relação viva com um lugar que não é o meu, mas que existe em meu
lugar, tal é o projeto, o desejo deste livro.

Conhece-se a importância e o desafio da questão da loucura no cam-
po cultural contemporâneo, em que a loucura não simplesmente preo-
cupa, mas faz convergir diversas disciplinas, de cujo golpe ela subver-
te os limites. Tanto a sociologia quanto a filosofia, tanto a linguística
quanto a literatura, tanto a história quanto a psicologia e, bem enten-
dido, a psicanálise e a psiquiatria, a cada vez interrogam e são inter-
rogadas pela loucura. Se a questão da loucura se constata hoje como
uma das questões mais subversivas, alguns, entretanto, se lamentam
de que ela tenha se tornado, nesse aspecto, sensacional, ao mesmo
tempo que banal.

39
Revolução psiquiátrica. Revolução psicanalítica. Antipsiquiatria. Loucura
ou desrazão? Quem não “sabe” hoje o que é a doença mental? A grande
imprensa se agrega à loucura, publicando longos e amplos debates sobre
ela. Os escritores de toda espécie se agregam a ela. Um quer “esquizofre-
nizar” a sociedade. O outro proclama que se deve “punir e reconverter os
psiquiatras”. Quem “sabe” e quem “não sabe”? Não serão os “psiquiatras
e os psicanalistas os verdadeiros dementes perigosos”? (…) Só se pode
ver aí a ironia e a impaciência diante dos lugares comuns desgastados e
distribuídos.1
Dá o que pensar, entretanto, o fato de que a loucura tenha se tornado
hoje um lugar comum. E o fato de ela ter colocado o verbo “saber” en-
tre aspas não é certamente uma de suas menores consequências. Para
além de qualquer caricatura, começa-se a entrever que, se a questão da
loucura acompanha com tanta insistência a confusão atual do próprio
estatuto do saber, é porque ela estabelece, e de mais de uma maneira, a
questão da qual não se cansa de medir o alcance – e o sentido – e que,
daí em diante, já não é tão óbvia: não se trata mais de “quem ‘sabe’ e
quem ‘não sabe’”, mas de o que é que é “saber”?

Vivemos hoje, é preciso dizer, um período de inflação do discurso
sobre a loucura. Pode-se sempre deplorar esse fenômeno não se so-
lidarizando com ele, pretendendo subtrair a loucura dos efeitos mis-
tificantes do mercado da moda. Pode-se, por outro lado, se regozijar
com isso, juntando-se a voz ao concerto geral, promovendo, por sua
vez, o assunto “loucura” como efeito de valor das últimas novida-
des para reivindicar um lugar de vanguarda, ou, como diria Mallarmé,
para “proclamar sua própria contemporaneidade”. “Não é louco quem
quer”, é claro, mas a palavra “loucura” não é, por isso, menos usual
em todas as bocas.
Não é paradoxal, com efeito, que, em meio a essa impregnação da
época pelos discursos concernentes à loucura, em meio a essa onipre-
sença cultural de um pensamento sobre a loucura, não se tenha ainda
começado a pensar sobre o alcance – e a significação – dessa inflação
discursiva para a loucura e para nossa época? Por que esse investimen-
to massivo no fenômeno da loucura? Se todo mundo hoje se envolve
com “loucura” e fala disso, ninguém, no entanto, coloca a questão: o
que significa o próprio fato de todo mundo falar disso? O que é falar da
loucura? E o que é uma loucura que é lugar comum? Por mais sedutora
e mistificante que seja essa inflação discursiva, ela não sugere, em rea-

40
lidade, que está em jogo, na própria solidão dos loucos, alguma coisa
da qual todo mundo participa?
O fato de que a loucura tenha se tornado, hoje, uma comunidade de
lugar discursivo não é um de seus menores paradoxos. Pois a loucura
marca, em geral, um lugar de exclusão, o fora de uma cultura. Ou uma
loucura que é lugar comum marca um lugar de inclusão e, precisamen-
te, o dentro de uma cultura.
É talvez aí que reside a especificidade mesma da loucura em nossa
época, ao designar, ao mesmo tempo, o interior e o exterior: o inte-
rior, no mesmo âmbito em que lhe é reputado ser exterior. Dizer que
a loucura se tornou efetivamente nosso lugar comum é, então, dizer
que a loucura designa neste mundo contemporâneo a ambiguidade
radical do interior e do exterior, enquanto essa ambiguidade escapa
justamente aos sujeitos falantes, que falam exatamente para desconhe-
cê-la. Uma loucura tornada lugar comum significa que não se pode
mais, doravante, pensar a loucura como um simples lugar no interior
da nossa época; é antes a época que se percebe inteiramente como um
lugar dentro da loucura. Um discurso que fala da loucura não pode
mais saber, daqui para frente, se ele está dentro ou fora, se é interior
ou exterior à loucura da qual ele fala.
É certo que, em se tratando de lugar comum, a loucura de alguma
maneira parou de nos parecer estranha. Ou ter perdido uma certa es-
tranheza da loucura (ou tê-la transformado) não é justamente o que há
de mais estranho, de mais louco, no discurso contemporâneo?

O que é, então, falar da loucura? Disse-se e repetiu-se, depois de
Foucault, com ele: loucura é ausência de linguagem, ausência de obra,
o silêncio de uma linguagem abafada, recalcada; nossa tarefa histórica
é, por isso, a de dar a palavra à loucura, de lhe restituir a linguagem:
uma linguagem da loucura, e não sobre a loucura. Ora, o nosso dra-
ma cultural é justamente o de que essa linguagem é impossível de ser
articulada por nós: procurando dizer a loucura ela mesma, só se pode
ter um discurso sobre ela; desejando falar a loucura, somos reduzidos
a falar sobre a loucura. Dissemos e repetimos, como se desde já com-
preendêssemos o que é falar sobre a loucura, e que, então, não nos
restasse mais que procurar compreender o incompreensível – escutar
o inaudível do próprio dizer da loucura, em si mesma.

41
Este livro, diferentemente, não procura dizer a loucura em si mesma,
mas antes colocar a questão: falar sobre a loucura, sabemos o que isso
é? Sabemos o que é escrever sobre a loucura (e não escrever a loucura)?
Ou, uma vez que não há metalinguagem, escrever sobre a loucura e
escrever a loucura, falar sobre a loucura e falar a loucura não se encon-
tram em algum lugar? Algum lugar onde eles não têm um encontro
marcado? Não seria nesse algum lugar, justamente, que se poderia si-
tuar a escrita?

Se é verdade que a história cultural contemporânea está aberta à sig-
nificância da loucura, creio que não começamos ainda a suspeitar da
parte que, nessa abertura, cabe à literatura. Em nossos dias, entende-se
com frequência que a literatura é coisa caduca, da qual não se quer mais
ouvir falar. Pode-se ainda, a rigor, falar de “texto”, de “escritura” – não
de literatura. Assim como se trancam os loucos e se trancafiou a loucura
no interior dos limites redutores do conceito de doença mental, quer se
encerrar a literatura no interior dos limites redutores do conceito este-
tizante de belas letras, oriundo do liberalismo burguês: desmistificando
esse liberalismo, pretende-se liquidar, acabar com a própria noção de
literatura, como se não saltasse aos olhos que a coisa literária ultrapassa
esses empreendimentos da ideologia burguesa, que a literatura não ape-
nas excede mas também subverte de cabo a rabo essa definição redutora,
dentro da qual se procurou, e se procura ainda, aprisioná-la. Uma vez
que, no meio da literatura, a loucura entrou, de alguma forma, na ordem
do dia, tudo se passa como se a literatura tivesse, ao contrário, ido em-
bora; uma vez que a loucura é enfim reconhecida como uma questão ar-
dente, tudo se passa como se a questão da literatura se tornasse inatual,
desviando-se dela todos aqueles que só se interessam pelas paixões e pe-
los jogos políticos. Entretanto, um livro-referência como o de Foucault
reconhece, relembra-nos de que a loucura na história cultural, reprimida
e reduzida ao silêncio, recalcada como ela é no campo político, social e
filosófico, não se diz, não se faz escutar, e só subsiste na qualidade de
sujeito falante dentro e para o texto literário.
A fascinação que a loucura exerce sobre o campo teórico contem-
porâneo repousa, então, sobre um paradoxo: uma vez que se exaltam
experiências como as de Artaud, ou de Sade; uma vez que se admite
que uma loucura reprimida sempre se refugiou na literatura, e que se
colocam os textos literários como testemunhos – em função de seus
empreendimentos políticos, sociais, ideológicos e éticos – diante do

42
tribunal da história, continua-se, no plano teórico, a negar a importân-
cia, a incidência e mesmo a existência da literatura. Então vivemos aí
uma contradição da qual procede a cena contemporânea: no momento
em que se crê liberar a loucura, ou seja, deslocar e desfazer os códigos
culturais do seu recalcamento, recalca-se, nega-se a literatura, o único
canal pelo qual a loucura, na história, era dita em seu próprio nome ou
pôde ao menos falar com uma relativa liberdade. Ou ainda, é mesmo
seu recalcamento o que faz da literatura hoje uma questão atual, um
empreendimento político, da mesma forma que a loucura.
Parece-me que o paradoxo histórico do encerramento da literatura,
no momento em que se quer liberar a loucura, essa contradição que
rege a ideologia em curso entre esses projetos de tabu e esses pro-
jetos de liberação, não é uma pura coincidência. O recalcamento da
literatura não viria compensar, justamente, o projeto contemporâneo
de uma liberação da loucura? Não seria possível pensar, justamente,
o atual desconhecimento da literatura como uma contrapartida do re-
conhecimento mesmo da loucura – e do medo que ela inspira? Com
efeito, a ambiguidade da cena contemporânea me parece em si mesma
reveladora de alguma verdade radical da qual ela é apenas um sintoma
histórico: a loucura e a coisa literária se relacionam, através da histó-
ria, através de sua opacidade histórica, como objetos de recalque, de
desconhecimento e de denegação, como polos de gravitação da própria
energia do recalcamento, na medida em que ela se desenvolve no in-
terior de um espaço movente, mas irredutível. Existe, entre literatura
e loucura, uma relação opaca, mas constitutiva: essa relação se deve
àquilo que as barra, àquilo que as consagra, uma e outra, ao recalca-
mento e ao desmentido.

Meu projeto é explorar essa relação: explorá-la no sentido de veri-
ficar se a loucura e a coisa literária podem se iluminar, nos informar
uma sobre a outra, informando-nos uma através da outra.
O que é a loucura? Responder a essa questão aqui não será um pro-
pósito, senão questionando-a. Quais são, em nosso discurso cultural,
as implicações do próprio ato de colocar a questão da loucura? Uma
vez que um texto se refere à “loucura” de maneira literária, ou mesmo
filosófica – teórica ou retoricamente –, o que ele faz? O que significa sua
perspectiva? Quais são a economia, a manobra, a estratégia, a questão
dessa perspectiva?

43
Ou, uma vez que loucura e literatura estão ligadas por aquilo que as
barra, a questão “como um texto fala da loucura?” somente fará sentido
se completar a questão que a esclarece e a desdobra: como, no interior
mesmo do texto, a loucura é negada? De que maneira a loucura encon-
tra ali aquilo que a barra? Buscarei, então, analisar, antes de tudo, as
estruturas e os próprios modos de recalcamento no interior da lingua-
gem literária. Como funciona a denegação, tanto no campo da loucura
quanto no da literatura? Como ela funciona, não simplesmente do lado
de fora, mas dentro do texto? Quais são, no interior mesmo do texto, as
estruturas do desconhecimento – e de seu próprio desconhecimento?
Estudando um tipo de loucura através da literatura, e a literatura
através da loucura, meu esforço será para interrogar, a cada vez, a ir-
redutibilidade de um texto em sua prática singular, mas também, ao
mesmo tempo, o estatuto mesmo da coisa literária. Se, a exemplo da
loucura, a literatura era constituída por um espaço de repressão que
era aquele do desconhecimento; se, segundo os modos históricos
que mudam, o recalcamento da literatura lhe era constitutivo, seria
possível dizer, ou ao menos indicar, ou sugerir, o que faz o objeto
desse recalcamento? Poderíamos definir a coisa literária como aquilo
que não fala, e que só é falante a partir mesmo daquilo que a impede
de falar, a partir e por causa mesmo daquilo que a barra? Poderíamos
testar uma tal definição por meio de uma prática de leituras? É o que
tentam os estudos que vão se seguir.
Se proponho, então, aqui abrir o campo do literário à questão da lou-
cura e a suas implicações atuais para a literatura, para a filosofia, para a
psicanálise, para a sociologia e para a linguística, é apenas para pensar
de novo, e para pensar de outra maneira, a especificidade mesma do
campo literário assim aberto. Pois, a partir das informações e dos ensina-
mentos fornecidos pelas disciplinas anexas, tentarei mostrar como a lite-
ratura esclarece a loucura de uma maneira que lhe é específica, com um
esclarecimento que não é simplesmente o duplo das informações teóri-
cas vindas da psicanálise, da sociologia, da filosofia, mas que, asseme-
lhando-se a elas, delas se diferencia; se diferencia de maneira a mostrar,
ao mesmo tempo, como desde sempre essas informações se diferenciam
delas mesmas, como são, elas também, atravessadas por uma sombra da
loucura da qual elas falam. A partir da abertura histórica contemporânea
à loucura, a partir da renovação teórica da questão da loucura no campo
cultural contemporâneo, este livro pretende se abrir a uma renovação
dos estudos literários, explorando, pela escuta da loucura na literatura,
novos modos de leitura e de apreensão da coisa literária.

44
II
Falar da loucura – em que língua?
Alguns textos incluídos neste livro foram escritos primeiro em inglês
(para revistas americanas);2 os outros estudos (a maior parte) foram
escritos em francês (em função de publicações francesas).3 Os autores
estudados neste livro são, também eles, habitantes das duas línguas:
escritores de língua francesa – Nerval, Rimbaud, Balzac, Flaubert – e
um escritor de língua inglesa, Henry James, que, por sua vez, entendia
e falava igualmente o francês e vivia num vai e vem entre a América e a
Europa e procurava definir o próprio projeto de sua escrita justamente
como um produto desse vai e vem, como uma decisão de falar a partir
desse vai e vem para dizer o seu sentido, ou seja, para dele fazer emer-
gir um indecidível:
Eu aspiro escrever [ele dizia],4 de uma maneira que seria impossível para
um terceiro dizer se eu sou, a um dado momento, um americano escreven-
do sobre a Inglaterra ou um inglês escrevendo sobre a América (lidando,
como eu faço, com os dois países).5
Eu diria, tomando de empréstimo a própria linguagem de Henry
James, que eu gostaria de escrever de tal maneira que, para um obser-
vador de fora, seria impossível dizer se eu sou uma francesa escreven-
do sobre a América, ou se eu sou uma americana escrevendo sobre a
França. (De fato, eu não sou nem francesa, nem americana).
Por que essa necessidade de passar entre as línguas? Essa necessida-
de tem alguma coisa a ver com a loucura? Ou com a coisa literária? O
que é uma língua estrangeira? O que é uma língua materna? O que é
uma língua e o que é uma gramática? Qual será a língua na qual se dá
a ler o sentido de uma gramática?
“Há sempre alguma coisa de radicalmente estranho [diz um críti-
co americano] na língua dos outros.”6 Ou escrever sobre a loucura
não implica a necessidade de, justamente, reencontrar na língua, pela
língua, alguma coisa de radicalmente estranho? Cada língua é autofa-
miliar: tem seus próprios conceitos, seu próprio sistema de pensamen-
to, ao qual ela condiciona o pensável. Falamos, pensamos, a partir de
decisões tomadas de início na língua: cada língua dita a seus usuários
suas interdições e suas evidências, inscritas dentro e por sua gramáti-
ca: uma gramática do interior da língua, por definição invisível. Para
tornar aparente essa gramática, é preciso arrancar a língua de sua pre-
sença para si mesma: desestabilizar suas evidências e suas interdições,

45
submetendo-as à alteridade de uma outra gramática, a seu questiona-
mento por uma língua estrangeira.
A essência do recalcamento é definida por Freud como um “defeito
de tradução”, ou seja, como a própria barreira que nos separa de uma
língua estrangeira. Ou, se a loucura, como a coisa literária, é regida
por aquilo mesmo que a recalca, por aquilo mesmo que a inter-diz na
língua; se ambas procedem, então, de alguma forma, de uma e de ou-
tra, e cada uma, à sua maneira, de um “defeito de tradução”, o projeto
de lê-las deve necessitar de uma passagem entre as línguas. E, sem
dúvida, franqueando esse limite, passando de uma língua à outra, não
chegamos a anular o “defeito de tradução”; não se levanta a barra do
recalcamento, mas pode-se deslocá-la, fazê-la aparecer, para melhor
poder analisá-la. Sair da metafísica não seria, antes de tudo, sair da
física mesma de uma língua materna?
O que é [escreve Philippe Sollers] um sentido na língua da pátria-mãe? A
propriedade privada da palavra infantil (…) A língua nacional, materna,
não se sonha, ela faz um sujeito sonhar no seu sonho. Mas o sonho de uma
língua pode ser a vigília de uma outra e, quando cai a noite sob uma latitude,
pode raiar o dia em outra.7
Ora, se o “defeito de tradução” é, entre duas línguas, de alguma for-
ma irredutível, trata-se, passando de uma língua à outra, franqueando
o limite entre as línguas, não tanto simplesmente de traduzir, mas de
se traduzir para a alteridade das línguas. Falar, através de uma língua
estrangeira, de uma outra; procurar minar, em cada língua, as decisões
linguísticas que ela prescreve à nossa fala, a fim de que emerja entre as
línguas, num lugar indecidível, a liberdade de falar.

Se se pudesse saber de onde se fala (e onde se cala), diria, então, que
este livro se enuncia a partir de um lugar plural e de uma perspectiva
dialógica, constituída pelo vai e vem entre a América e a França, entre
o francês e o inglês, entre o contexto francófono e o contexto anglo-sa-
xão. Esse vai e vem é, necessariamente, a confrontação entre dois tipos
de dados culturais e ideológicos, bem como de dois domínios literários
e teóricos.
Se este livro se escreve a partir de certa confrontação dos domínios,
ele não é com isso a sua síntese, o simples desdobramento da sua coe-
xistência pacífica. Sua posição de enunciação não é uma posição con-
fortável: a situação cultural que a implica é aquela, algumas vezes, de

46
um conflito de códigos; a confrontação não é um espetáculo, mas uma
dinâmica; uma interação que desloca, por sua vez, os dois domínios,
os descentra, um em relação ao outro; não se trata de uma simples
troca, mas de um movimento que ex-centra.
Realizar, a uma só vez, o encontro e fazer agir o intervalo entre o
contexto francês e o contexto americano; fazer intervir, na letra do
texto, a excentricidade recíproca de cada um desses dois contextos em
relação ao outro para fazer emergir, desse entre-dois, um movimento
de significação dialógica e diferencial, tal é minha forma específica de
provar, ainda de uma outra maneira, a própria questão da loucura.

O leitor francês reconhecerá, no nome próprio dos teóricos discuti-
dos ou citados, bem como no vocabulário conceitual e crítico utilizado
neste livro, o contexto teórico francês. Seria preciso, entretanto, não se
apressar em simplesmente reconhecer essa dupla referência nominal ou
terminológica, não se apressar em se desembaraçar dela por uma eti-
queta que a catalogará segundo os estereótipos codificados. Este livro
se escreve a partir de um lugar excêntrico a esses códigos centrados.
De fora, o quadro agonístico do contexto francês se dá a ler de uma
maneira diferente daquela como, do interior, ele percebe a si mesmo.
Os textos e seus empreendimentos teóricos ultrapassam e excedem a
cena através da qual eles se dão em espetáculo e se dão, a si mesmos,
o espetáculo dos dramas pelos quais são aprisionados. A partir de uma
posição “ex-cêntrica”, a distância; ou, mais precisamente, a partir de
uma relação movente de proximidades e de distâncias cambiantes, as
linhas de demarcação entre as teorias que se dão por adversas são bem
menos decidíveis. Os pensamentos não se opõem necessariamente lá
onde se opõem os pensadores: é sempre possível se enganar de adver-
sário. Não é que as diferenças, algumas vezes radicais, não existam;
mas essas diferenças, sendo assimétricas, muitas vezes escapam à sim-
ples estrutura de oposição. Seria preciso, então, não se apressar demais
em interpretar, neste livro, as referências nominais francesas como um
simples index de códigos – ou seja, de complexidades – teóricas. Esses
nomes próprios, para mim, não são bandeiras; eles não se marcam
pelo encerramento de uma posição adquirida previamente e de uma
resposta preconcebida, mas, ao contrário, pela abertura de questões
cujas respostas ainda estão por vir.

47
Essas referências, em outros termos, são aqui os indicadores, antes
de tudo, não de uma relação com um código, mas de uma relação com
um texto – com textos cuja leitura, a meu ver, não pode ser considerada
adquirida e cujas implicações estão ainda por se encontrar, por se arti-
cular e por se demonstrar. Quando, nesses estudos, refiro-me a textos
teóricos e aos debates em que se situam, o que tento ler, explorar e
analisar aí não são os desafios da polêmica e de suas peripécias data-
das, mas a maneira pela qual os textos, de ambos os lados, escapam,
justamente, ao saber de seus sujeitos supostos; a maneira pela qual
o saber do texto – o saber suposto sujeito e que não pode saber o que
sabe – escapa, justamente, à cena dramatizada pelos sujeitos supostos
saber. Ligados a nomes bem conhecidos, os desafios teóricos marcados
por esses nomes são aqui um pouco deslocados.
Analogamente ocorre com o uso terminológico de certos concei-
tos-chave na qualidade de instrumentos pragmáticos e críticos: eles
não figuram aqui a título de signos de reconhecimento, mas de proble-
mas teóricos cujas consequências estão por ser exploradas, cujas possi-
bilidades ainda estão por demonstrar e por articular, pelo testemunho
singular de um texto literário. Cada texto aqui colocará em questão
os termos e os instrumentos críticos pelos quais ele será apreendido,
e lhes dará finalmente um sentido diferente, singular, renovado. De
modo que não serão só os textos literários que, a partir de seu esclare-
cimento por essa problemática teórica, se abrirão a uma leitura outra,
mas também os textos críticos e os instrumentos teóricos serão redes-
cobertos, reinterpretados. Os instrumentos teóricos, em outros termos,
não funcionarão aqui como um novo sentido a dar ao texto, mas como
uma nova maneira de serem, por ele, afetados. A terminologia crítica
se verificará, por conseguinte, não como uma nova forma de falar, mas
como uma nova forma de se calar diante da coisa literária.

Quanto à diferença americana, como ela será necessariamente menos
aparente ao leitor francês, gostaria de tentar, brevemente, explicitar
aqui o essencial.
O essencial se resume ao trabalho daqueles que me cercam, imedia-
ta e cotidianamente, trabalho que veio recentemente a ser apreendido
(eu o aprendo com os jornais americanos) como um novo tipo de
crítica literária e como uma nova corrente teórica que se denomina
de “escola de Yale” [The Yale School].8 De maneira significativa, essa

48
corrente foi igualmente designada (sempre pelos jornais e revistas)
por denominações heteróclitas: “a nova escola franco-americana”, “os
críticos pós-nova-crítica” (The Post New-Critical Critics), ou ainda
“os críticos insólitos” (The Uncanny [unheimlich] Critics). Em que
consiste, então, a “escola de Yale”, em que consiste, mais precisamen-
te, isso que foi designado e percebido como seu elemento “insólito”?
Como ocorre de eu mesma ensinar em Yale, gostaria de precisar que
essa etiqueta, forjada pela cultura de massa, em realidade não recobre
nenhum pensamento homogêneo, unificado. Se o próprio sintoma da
etiqueta é significativo, essa etiqueta, como todas aquelas desse gênero
(como aquela, por exemplo, na França, da “nova crítica”), só serve
para as comodidades polêmicas. Entretanto, e a título informativo, eu
a assumirei aqui, parcial e provisoriamente, para tentar sintetizar, a
partir dela, no trabalho dos meus colegas, a despeito da diversidade
bastante real das respostas teóricas e práticas, pelo menos uma comu-
nidade de questões, ou de preocupações, que deixaram sua marca sobre
este livro e que poderiam esclarecer de onde falo.
Essas questões podem tornar a trazer o problema geral – e cen-
tral – do lugar da retórica numa teoria da linguagem literária, ou me-
lhor, do lugar da literatura numa teoria da retórica: a interrogação re-
cai sobre as possibilidades e sobre as implicações de uma radicalização
de uma teoria da retórica, quer dizer, de uma teoria geral que daria
conta, por sua vez, da eficácia linguística (da linguagem como ação) e
da inteligibilidade linguística (da linguagem como conhecimento).
A figura dominante da “escola de Yale” (cujo impacto, em particular,
marca este livro) é aquela do instigador dessa abordagem teórica, que
é também seu teorizador principal: Paul de Man,9 cujo pensamento,
nutrido pelos três contextos culturais (germânico, francês e anglo-a-
mericano), procede de quatro campos de pesquisa dos quais articula os
ensinamentos concernentes à retórica: a linguística, a filosofia, a lógica
e a teoria literária. Esse pensamento da retórica, embora marcando
hoje uma tendência da crítica americana, é tributário, também nesse
caso, de um contexto plural, não centrado, a um só tempo internacio-
nal e interdisciplinar.
Inscrevendo-se na corrente da renovação das pesquisas retóricas, a
tendência da “escola de Yale” acompanha o movimento de renova-
ção, na França, da “neoretórica”. Ela se distingue desta, entretanto,
por sua própria concepção de retórica, quer dizer, por sua maneira de
compreender seu próprio objeto de estudo. Essas diferenças são talvez

49
devidas ao fato de que a corrente francesa, nascida do formalismo e da
linguística estrutural, visa a uma ciência da literatura e se concebe an-
tes de tudo como uma ramificação da semiologia, enquanto a tendência
americana articula a retórica e a teoria literária (que ela não concebe
como uma ciência) mais em relação com a lógica e com a filosofia.
Em que essa filosofia da retórica se distingue de uma pura semiolo-
gia da retórica? Para uma semiologia da retórica, as figuras e os tropos
têm o mesmo estatuto que os signos linguísticos; suas propriedades
são, então, estudadas em função do estabelecimento de um tipo de
exaustivo inventário descritivo, de um tipo de código de figuras e
de tropos. Por outro lado, na perspectiva dessa filosofia da retórica
que tento delinear, o que é estudado é o funcionamento epistemoló-
gico dos tropos e das figuras retóricas, no que ele difere, justamente,
da epistemologia do signo, no que ele assinala a subversão do modelo
unívoco do código e do princípio semiológico da relação consistente
entre signo e sentido.
Nos termos de De Man, os semiólogos franceses utilizam categorias
retóricas conjuntamente ao uso que fazem de categorias gramaticais e
identificam algumas vezes as transformações retóricas a alguns tipos
de transformações sintagmáticas – como se a lógica da retórica fosse
contínua à da gramática, como se o estudo dos tropos e figuras fos-
se uma pura extensão do estudo dos modelos gramaticais.
A questão que se coloca [escreve De Man] é a de saber se essa redução da
figura à gramática é legítima. A existência de figuras gramaticais no inte-
rior e para além da unidade da frase, nos textos literários, é inegável e sua
descrição e classificação são indispensáveis. A questão é, então, saber se
e como as figuras de retórica podem ser incluídas numa tal taxonomia.10
Ora, os teóricos americanos, como Kenneth Burke, os lógicos, como
Peirce, insistem, ao contrário, sobre a distinção e sobre a heterogenei-
dade entre gramática e retórica.
Na definição do signo, Peirce insiste na presença necessária de um terceiro
elemento, que ele chama de interpretante, em toda relação que o signo tem
com seu objeto. O signo deve ser interpretado, se queremos compreender
a ideia que ele deve comunicar (…) A interpretação do signo não é, para
Peirce, um sentido, mas um outro signo; é uma leitura, não uma decodifi-
cação, e essa leitura, por sua vez, deve ser interpretada – engendrar, então,
um outro signo; e assim sucessivamente ad infinitum.11
Peirce chama o estudo das leis do processo infinito pelo meio do
qual “um signo engendra aí um outro” de “retórica pura”, por oposi-
ção aos dois outros domínios da semiologia: a “gramática pura”, es-

50
tudando as condições formais que devem preencher os signos para
incorporarem um sentido, qualquer que ele seja; e a “lógica pura”,
estudando as condições formais da verdade dos signos.12
Ao contrário da teoria retórica dos semiólogos franceses, a de De
Man opera, então, no espaço de tensão da descontinuidade entre gra-
mática e retórica. De Man desloca a “gramática pura” (baseada, se-
gundo sua concepção, no postulado de um sentido não problemáti-
co, diádico), adotando as teorias do performativo, advindas de J. L.
Austin, opondo à linguagem “constativa” (descritiva, cognitiva e in-
formativa) a linguagem “performativa” (cuja enunciação alcança os
atos de linguagem, que escapam como tais à pertinência do critério
cognitivo: verdadeiro/falso). Introduzido na teoria retórica, o conceito
de “performativo”, entretanto, não é importado para essa teoria como
tal, mas encontra-se ele mesmo essencialmente deslocado, modifica-
do e repensado, em particular por meio da filosofia de Nietzsche. Se
a passagem nietzscheana de uma concepção constativa da linguagem
para uma concepção performativa é de fato irreversível, a diferenciação
entre linguagem constativa e linguagem performativa permanece, ela
mesma, cognitivamente indecidível. Uma vez que o ato de linguagem
põe em questão o simples conhecimento linguístico, ele não pode, nem
saber aquilo que faz, nem tampouco saber aquilo que ele não faz.
Todo ato de linguagem [escreve De Man] produz um excesso de cognição,
mas ele não pode jamais esperar conhecer, ao contrário, o processo de sua
própria produção (…) Não há jamais saber bastante para dar conta da
ilusão do saber.13
Se a crítica nietzscheana da metafísica é, segundo De Man, estru-
turada como uma aporia entre a linguagem constativa e a linguagem
performativa, é porque a última descoberta de Nietzsche bem poderia
ser a descoberta da natureza aporética da própria retórica:
A descoberta de que o que se chama de “retórica” é precisamente a de-
calagem que torna manifesta a história pedagógica e filosófica do termo.
Considerada como persuasão, a retórica é performativa; considerada, por
outro lado, como um sistema de tropos, a retórica desconstrói sua própria
performance. A retórica é um texto, à medida que ela torna possível a coe-
xistência e o jogo de dois pontos de vista incompatíveis e reciprocamente
destruidores um do outro.14
A retórica, nessa concepção, é, então, a estrutura mesma da aporia,
que se coloca, dinamicamente, de uma maneira transversal a todo es-
forço de leitura e que, sistematicamente, desfaz a compreensão.

51
Elaborado em conjunção com o trabalho da “escola de Yale”, este
livro, em sua forma específica, articula e repensa – através de seu en-
contro com textos particulares – uma concepção da retórica que lhe é
sub-jacente e que se distinguirá da concepção predominante da “neo-re-
tórica”, na França, por seus traços ou pelos seguintes pressupostos:
1. Ele concebe a retórica como tendo uma função performativa, que
não é simplesmente coextensiva à sua função cognitiva; a própria
pesquisa retórica, quer se queira, quer não, participa necessaria-
mente da ação da linguagem que ela explora, e não pode se con-
ceber simplesmente como uma pesquisa constativa, descritiva.
2. Consequentemente, as figuras se dão a ler como atos de lingua-
gem, quer dizer, como forças, e não como formas. Trata-se não
tanto de uma geometria, mas de alguma coisa como uma física:
o estudo dos movimentos produzidos pela interação das forças
no interior da língua. A figura não é simplesmente um topos (a
referência de um lugar), uma vez que a dinâmica desloca cons-
tantemente o tópico, uma vez que o performativo modifica sem
parar as demarcações constativas; ela não é também simplesmen-
te um pathos (o deslocamento cego das intensidades afetivas e
psíquicas), uma vez que a opacidade repetitiva do movimento
das forças produz sem cessar um excesso cognitivo; ela não é
também simplesmente um logos (a transparência de um senti-
do), uma vez que o excesso cognitivo, produzido pelos atos de
linguagem, não pode saber de si mesmo, não tem, então, sentido,
pois a repetição das forças, sendo inconsistente e não totalizá-
vel, não detecta um código. Nem a referência de um topos, nem
a opacidade de um pathos, nem a transparência de um logos, a
figura produz ao mesmo tempo um efeito de topos, um efeito de
pathos e um efeito de logos, que se desconstroem reciprocamente
e dentre os quais ela é, justamente, o movimento de inadequação,
no trabalho mesmo da diferença.
3. A retórica não é, então, um sistema de transformações governado
por um modelo gerativo único (um sistema de desvios controlados
pela consistência de um código), mas antes a subversão de um mo-
delo lógico por um outro que lhe é totalmente estrangeiro; a retó-
rica assinala a descontinuidade e a interferência entre dois códigos,
entre dois ou mais sistemas totalmente heterogêneos um ao outro.
4. Uma tal teoria da retórica não pode se conceber como uma ciên-
cia da literatura, pois sua própria definição do retórico exclui a
possibilidade de uma perfeita adequação lógica ao objeto de sua

52
pesquisa. Uma vez que, por mais rigoroso e aprofundado que
seja o estudo (constativo) das figuras, ele não poderá jamais com
isso permitir prever o seu funcionamento performativo; uma vez
que a pesquisa, ela mesma, não pode participar da performan-
ce retórica que ela explora, não poderá nunca, então, controlar
perfeitamente o rigor epistemológico de sua própria retórica, um
perfeito conhecimento da retórica (um conhecimento científico)
é teoricamente inconcebível.
5. Uma tal concepção da retórica escapa à alternativa simétrica de-
lineada pela polêmica francesa entre uma “retórica geral” e uma
“retórica restrita”, uma vez que ela funciona, ao mesmo tempo,
como uma retórica geral e como uma teoria restrita, uma vez que
ela procede, justamente, da estrutura aporética da tensão entre
as duas. Como “retórica restrita”, ela não crê que a retórica se
subsuma em uma só e única figura, em um só e único modo
figural arquetípico de todos os outros; ela reconhece, então, a
necessidade e a utilidade de tratados de figuras e a pertinência
das distinções entre as diferentes figuras, entre as figuras e os
tropos, entre a metonímia e a metáfora, assim como entre sentido
próprio e sentido figurado. Mas ela considera que a retórica só
funciona a partir de suas distinções para, em última instância,
abandoná-las, que a retórica só constrói suas classificações para,
em última instância, deslocá-las, subvertê-las.
Tal como, segundo Peirce, o “conservadorismo” consiste em um
“medo das consequências”, o “radicalismo” se define pelo “dese-
jo de levar as consequências a seus limites extremos”,15 trata-se
aqui, então, de uma teoria retórica radical, de uma radicalizção
de uma teoria da retórica. Mas, se a lógica da retórica não é sim-
plesmente aquela de uma construção, se é aquela de uma des-
construção, e especificamente de uma autodesconstrução, esse
radicalismo não depende da escolha do teórico, ele é coexten-
sivo ao uso da linguagem, inerente ao funcionamento retórico.
As construções retóricas funcionam, fazem atos de linguagem,
de tal maneira que terminam por minar o fundamento episte-
mológico que pressupõem e postulam, e, sobre o qual, são cons-
truídas: é próprio da performance retórica que o solo lhe fuja
debaixo dos pés.
A retórica não é, então, nem simplesmente restrita, nem sim-
plesmente geral. O sistema de figuras e de tropos não é um
simples sistema de classificações, de distinções e de oposições:

53
é também o sistema que põe em movimento as estabilidades que
sustentam o sistema, o sistema da substituição (da mudança e
da erosão) dos fundamentos sobre os quais o sistema é fundado.
6. Essa teoria retórica procura, de maneira específica, o momento in-
sólito da teoria: utiliza a lógica e os instrumentos da lógica com o
objetivo de encontrar o momento aporético em que a lógica soço-
bra; utiliza conceitos com o intuito de tentar indicar, paradoxal-
mente, o que a inteligência conceitual não pode integrar, o resíduo
de sua operação, sua articulação com seu resto. Ora, é o momento
insólito – que os princípios teóricos apontam, mas que coloca a
teoria em xeque –, esse momento que subverte seu próprio rigor,
esse ponto de fuga da compreensão, nessa concepção da retórica,
que é notório como o mais percuciente, o mais comprobatório e o
mais pertinente à natureza mesma do ato retórico, na medida em
que ele especifica, justamente, o funcionamento da coisa literária.

III
Encontraremos neste livro um teste desta concepção: uma pesqui-
sa de suas possibilidades e um questionamento de suas implicações.
Também gostaria de, resumindo brevemente os empreendimentos teó-
ricos dos estudos que se vão seguir, indicar aqui esquematicamente o
viés pelo qual eles se ligam à problemática retórica. Se, a priori, o leitor
considerar essas indicações obscuras, ele poderá retornar a elas a poste-
riori, ou lê-las, acompanhando os respectivos textos que elas, por sua
vez, esclarecem ou resumem.
Uma vez que o sumário organiza os diferentes estudos, segundo a
ótica dos diferentes tipos de discurso (filosofia, poesia, narrativa, psi-
canálise), em sua relação com a loucura (e com a coisa literária), a
análise que vou delinear agora esclarecerá, segundo uma outra ótica (a
da retórica) as inter-relações entre os diferentes capítulos e distinguirá,
então, uma outra estrutura e outros percursos de leitura possíveis.
Os capítulos III* e V*, “A repetição: loucura do lirismo” (sobre
Nerval) e “Loucura e economia discursiva” (sobre Balzac) são explo-
rações textuais do funcionamento epistemológico da metonímia e da
metáfora, bem como da performance retórica da substituição (da mu-
dança e da subversão) dos fundamentos.16
Os capítulos IV e IX, “Você fez bem em partir, Arthur Rimbaud” e
“Modernidade do lugar comum” (a propósito de Novembro, de Flaubert),
constituem estudos da retórica da modernidade: a partir das pesquisas

54
rimbaudianas concernentes ao discurso poético, a partir das pesquisas
flaubertianas concernentes às técnicas da narrativa, a originalidade his-
tórica de Rimbaud e Flaubert é textualmente estudada – através dos
paradoxos e das contradições retóricas de seu pensamento sobre a mo-
dernidade. Esses dois capítulos se delineiam, dessa forma, a partir de
duas práticas de escrita radicalmente diferentes: uma teoria da moderni-
dade compreendida, não como uma entidade histórica, no interior de um
padrão de progresso, mas como uma aporia retórica (poética, num dos
casos, narrativa, no outro) entre a escrita de uma ruptura e a inscrição
de uma repetição: entre a escrita de uma ruptura que não pode, entretan-
to, se escrever e a inscrição de uma repetição que não cessa de repetir
as rupturas. A modernidade prova ser, não exatamente o fim de uma
época histórica e o começo de uma outra, mas a assunção histórica de
sua própria finitude: a escrita poética de Rimbaud, a escrita narrativa de
Flaubert, segundo suas respectivas retóricas, carregam em si mesmas,
e o assumem, as condições de sua própria destruição. Essa concepção
retórica da modernidade torna possível uma nova leitura da história li-
terária: o romantismo e o realismo são reinterpretados como modos de
relação do texto com sua própria retórica.
O capítulo VII, “Ilusão realista e repetição romanesca” (ainda sobre
Flaubert: Un coeur simple), e o capítulo II*, “De Foucault a Nerval:
Aurélia ou ‘o livro infactível’” repensam, eles também, as noções histó-
ricas do realismo e do romantismo, como dois tipos de relação e dois
tipos de narrativa da relação entre retórica e loucura.
O capítulo VI*, “As mulheres e a loucura”, explora as possibilida-
des de uma articulação da análise ideológica sobre o questionamento
retórico da instituição do sentido próprio e da maneira pela qual essa
(tanto na literatura quanto na crítica) programa suas próprias normas
de legibilidade. Esse estudo analisa como a mulher, no texto literário
(Adieu, de Balzac) e em um texto crítico que programa a leitura desse
livro de Balzac, ocupa por definição o lugar retórico da loucura e como
ela, programada a ser excluída do sentido próprio, torna-se, na crítica
literária, o invisível do realismo.
O capítulo VIII, “Temática e retórica, ou a loucura do texto”, é uma
análise das implicações teóricas e metodológicas da radicalização da
própria noção de retórica; analisando concretamente, em Memórias
de um louco, de Flaubert, a maneira pela qual a performance do texto
(seu ato de linguagem, sua ação retórica) difere radicalmente do seu
sentido, esse estudo desenvolve e repensa a figura como aquilo através

55
de que o tema se esquiva, através de que o enunciado “desfunciona”
e o sentido se subverte, se aliena; o texto sem seu conjunto é, dessa
maneira, interpretado não tanto no sentido próprio, mas antes como
figura de si mesmo: figura de sua própria performance.
O capítulo I, “Cogito e loucura, ou razão da literatura”, explora, a
partir do debate entre Derrida e Foucault, concernente à noção de lou-
cura e sua relação com a filosofia, o estatuto impensado da coisa lite-
rária, entretanto onipresente nesses dois pensamentos: o impensado
dinâmico, que estrutura a relação entre as duas teorias e que desloca,
por sua vez, a estrutura e a mecânica de sua oposição. É na medida em
que essas duas teorias, que são tão diferentes, podem ser retoricamente
pensadas como figuras uma da outra que elas deixam se liberar de seu
entrelugar uma figura da loucura que é aquela, justamente, do a-topos,
do não lugar, da inadequação e do trabalho mesmo da diferença entre
dois pensamentos, bem como no interior de sua própria retórica.
O capítulo X, “O engano e sua chance”, articula a teoria retórica com
os ensinamentos e as questões, mas também com um questionamento
das dificuldades e contradições, da psicanálise lacaniana, em que as
figuras retóricas se assimilam aos mecanismos do inconsciente, quer
dizer, à retórica de um real que provoca seu próprio desconhecimento
e na qual o tempo lógico só pode escandir “o momento de compreen-
der, justamente, o efeito produzido pela não compreensão”.17 Se a psi-
canálise, como a retórica, busca na lógica justamente o momento da
aporia, quer dizer, da topada lógica, se, para tormento mesmo da lógi-
ca, ela tenta articular seu saber com aquilo que ela não pode integrar,
é porque ela é também, como a retórica, não somente uma constatação
teórica do mal entendido radical, mas também uma performance teóri-
ca da chance do engano. A chance do engano é, por um lado, a prática
da cura pelo erro da transferência (erro retórico por excelência), e, por
outro lado, a chance teórica produzida, na escrita de Lacan, pela aporia
retórica. Sustento que o lugar único de Lacan (o insólito de sua aposta
em confrontar, por assim dizer, a psicanálise com sua própria loucu-
ra, forçando-a até os limites de suas consequências lógicas) é devido
tanto a seu aporte retórico quanto a seu aporte teórico e à abertura
franqueada pela interação entre os dois. Não é por acaso que a retórica
é efetivamente (como assinalou Michel Deguy) um anagrama de teóri-
co: na performance18 lacaniana (bem diferente da importância tética que
passa pela teoria de Lacan), o engano tem sua chance, justamente, por
anagramatizar o teórico pelo retórico.

56
Mas a psicanálise é, ela mesma, trapaceada pela retórica: Lacan, por
sua enunciação muito mais que por seus enunciados, abriu, com efei-
to, a psicanálise ao funcionamento da coisa literária e, em sua ação de
abertura articulada-desarticulada, não totalizável e sem mestria, a coisa
literária não funciona menos como uma armadilha para a psicanálise,
uma vez que essa tenta justamente explicá-la, dominá-la, agarrar aí o
inconsciente de fato.
O capítulo XI, “Armadilha para a psicanálise: outra volta da leitu-
ra”, assinala em que a leitura literária se distingue da leitura analítica
(em particular, da leitura que é consagrada na América como “leitura
freudiana”). Uma vez que ela explica a coisa literária, uma vez que ela
situa, em particular, a loucura na literatura, a psicanálise, na realidade,
corre o risco de só revelar aí sua própria loucura: a loucura mesma
do intérprete. A partir de uma leitura do texto de James, Le tour de vis
(The Turn of the Screw) – A volta do parafuso –, e de uma leitura de sua
leitura (e de uma análise da cena crítica à qual esse texto deu lugar), a
partir de certas consequências teóricas e retóricas extraídas do encontro
entre a psicanálise lacaniana, a teoria retórica elaborada pela “escola de
Yale” e a performance retórica completamente admirável de James, esse
capítulo elabora uma teoria de efeito de leitura como efeito de transfe-
rência: uma teoria da leitura centrada na análise retórica e no exame
teórico dos incidentes da transferência no texto e na leitura.
Sabe-se que Charles Mauron, na teoria da “psicocrítica”, diferen-
ciou a análise literária inspirada pela psicanálise da psicanálise pro-
priamente dita em razão de o fator analítico crucial da transferência
estar presente nesta, mas ausente naquela. A transferência, como dra-
ma realmente vivido do qual participam o analista e o analisando, é
tradicionalmente pensada como própria da psicanálise, como aquilo
que, constituindo a especificidade mesma da situação analítica, a dis-
tingue, então, da experiência literária. Sustentarei aqui, ao contrário,
que a transferência (a repensar, a reexaminar) define igualmente, de
uma outra maneira, a especificidade mesma da experiência literária;
que a transferência, para a literatura e para a crítica literária, de todos
os conceitos da psicanálise, é, ao mesmo tempo, o mais importante, o
mais sugestivo e o menos explorado. Sustento (e tento demonstrá-lo)
que só entramos no texto pela transferência: por seu logro retórico.
Sugiro, então, que, para a literatura (mas talvez também para a psica-
nálise), a noção de transferência está por ser repensada através da retó-
rica. Mas a retórica, por outro lado, está ela mesma por ser repensada,
reinterpretada, em termos da concepção analítica de transferência.

57
Tento empreender essa tarefa de articular essa questão com relação
ao texto de James. A força notável do texto de James (atestada pela
literatura crítica, pela violência das paixões críticas e das querelas que
ela inspirou) só se explica pela incidência da transferência: assim, es-
tudo tanto a incidência retórica quanto a incidência transferencial, e
a incidência retórica como incidência transferencial, na relação entre
os personagens, na relação entre os narradores, bem como na relação
entre o texto e seus leitores.
Desse estudo se extrai uma teoria de efeitos de leitura (de efeitos
de transferência) na qualidade de interpretante dinâmico do texto (in-
terpretante no sentido de Peirce: não uma pessoa, mas um efeito – de
significante e de sentido): uma teoria (e uma demonstração) do efeito
de transferência como interpretante do lugar dinâmico do destinatá-
rio – do leitor – como signo do signo, signo do texto. A teoria retórica
em si mesma se transforma e se renova, de maneira a se abrir como
uma teoria geral do leitor e da leitura: do leitor, como participante de
um drama transferencial vivido – ator textual inconsciente, tomado,
sem o saber, pelo campo das forças da “pura retórica” – do endereça-
mento dos signos, de sua referência aos interpretantes; da leitura na
qualidade de repetição cega, acabamento performativo da retórica mes-
ma do texto (e não de seu sentido).

O pensamento deste livro, segundo sua própria concepção, não pas-
sa, ele mesmo, é claro, de um efeito de leitura; enquanto ela é, por sua
vez, apenas um signo do signo “loucura”, o interpretante dinâmico e o
performador semiconsciente da ação retórica desse signo.
Este livro é, portanto, em si mesmo, um efeito do significante “lou-
cura”. Desse significante, ele busca não tanto o sentido, mas a força:
não aquilo que a loucura é (significa), mas aquilo que ela faz – os
atos textuais e os acontecimentos enunciativos aos quais ela dá iní-
cio e lugar.
Se a análise conduzida neste livro, em última instância, reflete a lou-
cura do próprio intérprete, é que de certa maneira se encontram e se
misturam, em alguma parte – no ponto de fuga do interpretável e em
direção ao qual aponta, e do qual se destaca, o esforço interpretativo –,
a retórica da loucura e a loucura da retórica.

Setembro de 1977.

58
NOTAS

1  Michel Thuilleaux, Connaissance de la folie, Paris, PUF, 1973. [Todas as referências


apresentadas nesta tradução foram transcritas tais como constam no original. (N.T.)]
2  Les femmes et la folie: histoire littéraire et ideologie, publicado em inglês com o
título: Women and Madness: the Critical Phallacy, em Diacritics, v. 5, n. 4, inver-
no 1975; Folie et philosophie: raison de la littérature, publicado em inglês com o
título: Madness and Philosophy, or Literature’s Reason, em Yale French Studies, n.
52 (Perspectives in Literature and Philosophy), 1975; Piège pour la psychanalyse: le
tours de vie de la lecture, publicado em inglês com o título: Turning the Screw of
Interpretation, em Yale French Studies, n. 55/56, (Literature and Psychoanalysis: the
Question of Reading – Otherwise), 1977.
3  Aurelia ou le livre infaisable: primeira versão publicada em Romantisme, n. 3,
1972; La répétition: folie du lyrisme: primeiro editado com o título “Lyrisme et
répétition”, em Romantisme, n. 6, 1973; Folie et l’économie discursive: l’Illus-
tre Gaudissart, em Littérature, n. 5, fev. 1972; Tu as bien fait de partir, Arthur
Rimbaud: editado em Littérature, n. 11, out. 1973; Illusion réaliste et répétition
romanesque, editado em Change, n. 16-17 (La Critique générative), set. 1973;
Modernité du lieu commun, editado em Littérature, n. 20, dez. 1975; Thématique
et rhétorique ou la folie du texte: publicado nas Atas do colóquio de Cerisy, La
Production du sens chez Flaubert, Paris, 10-18, 1975; La méprise et sa chance: primei-
ra versão (abreviada) editada em L’Arc, n. 58 (Jacques Lacan), out. 1974.
4  As interrupções entre colchetes, feitas dentro de citações, são de Shoshana
Felman, salvo as assinaladas com *, que são da tradutora. (N.T.).
5  Henry James, Letters, to William James, 1898.
6  Geoffrey Hartman, em Critical Inquiry, v. III, n. 2, inverno 1973.
7  Philippe Sollers, Joyce e Cia, em Tel Quel, n. 64, p. 15, inverno 1975.
8  As interferências feitas entre colchetes fora de citações, salvo informação contrá-
ria, são da tradutora. (N.T.).
9  Cf., em particular, Blindness and Insight, Essays in the Rhetoric of Contemporary
Criticism, New York, Oxford University Press, 1971, bem como numerosos artigos
em francês e inglês.
10  Paul de Man, Semiology and Rhetoric, em Diacritics, n. 3, p. 28, outono 1973.
11  Ibidem, p. 19.
12  Charles Sanders Peirce, Logic as Semiotic: the Theory of Signs, em Collected
Papers, Harvard University Press, 1960, v. V.
13  De Man, The Purloined Ribbon, em Glyph, n. 1, p. 45, 1977.
14  Idem, Action and Identity in Nietzsche, Yale French Studies, n. 52 (Perspectives in
Literature and Philosophy), p. 29, 1975.

59
15  Peirce, The Scientific Attitude and Fallibilism, em Justus Buchler (ed.),
Philosophical Writings of Peirce, New York, Dover, 1955, p. 58.
16  A numeração dos capítulos citada pela autora a partir deste ponto corresponde
à da obra original. Os capítulos não incluídos nesta tradução serão assinalados com
*, e os demais podem ser localizados pelo título. (N.T.).
17  Jacques Lacan, em Scilicet, Ed. Su Seuil, n. 1, 1968, p. 25. [Os seminários de
Lacan, cujos títulos recorrem a jogos de palavras em francês, assim como as cita-
ções lacanianas no corpo do texto, por serem anotações de Shoshana Felman (que
seguiu, na época, esses seminários), foram traduzidos a partir do livro de Felman,
segundo sua orientação. (N.T.)].
18  Utilizo, é claro, o termo “performance” aqui no sentido teórico que o liga ao
conceito de “performativo”, sem tomá-lo emprestado do inglês, mas que entrou na
linguagem do francês e que restitui à performance o senso etimológico do antigo
francês (parformer: “cumprir”, “executar”). “Performance” (oposta à “constatação”,
“comprovação” ou “descrição”, como em inglês performance se opõe a statement) sig-
nifica, então, o funcionamento concreto pelo qual qualquer coisa se efetua, se execu-
ta, se cumpre, se efetiva: a forma pela qual qualquer coisa (uma enunciação) faz ato
(ato que não é coextensivo à sua significação, de tal forma que se pode constatá-la,
dar-se conta dela por uma descrição, ou por uma constatação).

60
LOUCURA E FILOSOFIA

“Homem” significa “pensador”. É aí que está a loucura.


NIETZSCHE

COGITO E LOUCURA OU RAZÃO DA LITERATURA

LOUCURA E FILOSOFIA
A fé na verdade – ou a loucura.
Nietzsche
“A cegueira, lemos no verbete ‘Loucura’ da Enciclopédia, é o caráter
distintivo da loucura”: Afastar-se da razão, sabendo – uma vez que se
é escravo de uma paixão violenta – que isso é ser fraco; mas se afastar
dela com confiança e com a firme persuasão de que se está a segui-la, eis
(…) o que se chama ser louco.1
O que caracteriza a loucura não é somente uma cegueira, mas uma
cegueira cega em si mesma, a ponto de necessariamente comportar
uma ilusão de razão. Mas, então, como saber onde termina a razão e
onde começa a loucura, uma vez que uma e outra só são possíveis na
perseguição da razão? A partir do momento em que a loucura, como
tal, comporta necessariamente um ato de fé na razão, toda convicção
razoável é necessariamente suspeita de loucura. Razão e loucura são
ligadas; a loucura é essencialmente um fenômeno do pensamento: de
um pensamento que denuncia, no pensamento do outro, o Outro do
pensamento. A loucura só é possível num mundo em conflito de pen-
samentos. A questão da loucura não é, então, outra, senão a questão
do pensamento. A questão da loucura é precisamente aquilo que faz,
da essência do pensamento, uma questão: “É somente ao homem que é
dado pensar [diz Hegel]. É isso que faz com que ele tenha o privilégio
da loucura.”2

61
Nietzsche irá mais longe:
Eu coloquei, no lugar dessa vontade (eterna), essa temeridade e essa lou-
cura, uma vez que proclamei: “Há uma coisa que será sempre impossível:
ser razoável!”
Um pouco de razão, entretanto, um grão de sabedoria (…) – essa massa
está misturada com todas as coisas: por amor à loucura, a sabedoria está
misturada a todas as coisas!3
Hegel situa a loucura no pensamento; Nietzsche situará o pensamen-
to na loucura. Isso dá no mesmo, diz Pascal: “Os homens são tão ne-
cessariamente loucos que seria ser louco, por um outro giro de loucu-
ra, não ser louco!” E Rousseau aquiesce: “Nada é mais dessemelhante
de mim mesmo que eu mesmo”:
Eu sou sujeito (…) em duas disposições principais que mudam com bas-
tante frequência (…) e que eu chamo minhas disposições hebdomadárias;
por uma delas eu me acho sabiamente louco, pela outra loucamente sábio,
mas de tal maneira que a loucura compensa a sabedoria, em um caso e
no outro.4
A questão poderia agora se colocar: esses pensamentos aforísticos
nos seduzem como pensamentos, ou como aforismas? A noção da lou-
cura, como tal, revela aí o rigor do conceito, ou o charme do jogo de
palavras? Essas afirmações, em outros termos, são da competência da
filosofia, ou da literatura? Na medida em que o jogo de linguagem,
nesses enunciados filosóficos, revelaria mais a literatura, seria possível
sustentar que a loucura, nesses filosofemas, tem um papel literário.
Mas, ainda aí, a loucura é indicativa de um quiasmo possível. Pois, se
se pensa, por outro lado, na loucura no campo da literatura (por exem-
plo, nas peças de Shakespeare), constata-se que ela aí tem um papel
eminentemente filosófico. A loucura aparece, assim, paradoxalmente,
literária na filosofia, filosófica na literatura. As três noções, de loucura,
de filosofia, de literatura, parecem estar sugestivamente ligadas.
É um dos signos de nossa época que, mais e mais, a filosofia tente aí,
precisamente, encarregar-se dessa noção de loucura que, outrora, pare-
cia encontrar nela pouco lugar, pertencendo mais ao campo da literatu-
ra. Talvez não seja por acaso que uma figura como a de Nietzsche, na
qual a loucura invadiu o pensamento, uma figura na qual coincidem o
filósofo, o poeta e o louco, aponte para o mundo moderno, ao mesmo
tempo como um convite e como uma advertência, como o risco sobre
o qual é fundada a própria abertura de sua modernidade. Debruçar-se
sobre a “loucura de Nietzsche”5 é, por isso, abrir a questão do sentido

62
ambíguo de toda uma história, de toda uma revolução cultural, que de-
veria alcançar essa eclosão; é interrogar e colocar em questão a história
da filosofia. Tal, entre outros, é o propósito do livro de Michel Foucault.6

HISTÓRIA DA LOUCURA
Não é apenas a razão dos milênios, é também sua loucura que explode
em nós. É perigoso ser herdeiro.
Nietzsche

Trancafiaram Sade, trancafiaram Nietzsche, trancafiaram Baudelaire.


Breton
Lembremos: o principal objetivo de Foucault é mostrar que a filoso-
fia, a psicologia e a psiquiatria são fundadas por um desconhecimento
radical da linguagem da loucura. Toda a história cultural do Ocidente
seria a história de uma progressiva conquista pela ratio, de um impe-
rialismo da razão, e, por isso mesmo, a história de uma repressão, de
um recalcamento da loucura.
O momento decisivo, a guinada histórica seria marcada pelo Cogito
cartesiano: na primeira Meditação, Descartes, segundo Foucault, opera
um “golpe de força” que recusa a loucura, lançando-a para fora dos
limites da cultura e reduzindo-a ao silêncio.7
Descartes, de um lado, encontra a loucura no caminho em que se en-
gajou, caminho da busca da verdade, através da dúvida metodológica.
Mas, por outro lado, enquanto a dúvida atinge, um após o outro, todos
os fundamentos do conhecimento, não é nem mesmo admitida por
Descartes como instrumento passível de dúvida, como risco suscetível
de comprometer o verdadeiro:
E como é que posso negar que esta mão e este corpo sejam meus? Se isso
não for talvez porque eu me comparo a esses insensatos, dos quais o cérebro
é de tal maneira perturbado e ofuscado pelos negros vapores da bile, que
eles asseguram constantemente que são reis, quando são muito pobres,
que estão vestidos de ouro e de púrpura, quando estão nus, ou imaginam
serem jarros, ou terem um corpo de vidro… Mas qual, eles são loucos, e eu
não seria menos extravagante se eu me ajustasse a seu exemplo.
“Mas qual, eles são loucos.” Está aí a frase decisiva, segundo Foucault,
frase de ruptura com a loucura, gesto de exclusão que expulsa a loucu-
ra da possibilidade de pensamento. Descartes não trata a loucura como
trata o sonho, ou o erro sensível: contrariamente ao erro de sentido, ou

63
à ilusão do sonho, a loucura não pode nem mesmo servir como instru-
mento de dúvida; mesmo o sonho, mesmo o erro sensível comportam
elementos verdadeiros, mas isso não é o mesmo no caso da loucura:
Se esses perigos não comprometem o processo, nem o essencial da verda-
de, não é porque aquela coisa, mesmo no pensamento de um louco, não
pode ser falsa, mas porque eu, que penso, não posso ser louco (…) É uma
impossibilidade ser louco, essencial não ao objeto do pensamento, mas ao
sujeito que pensa (…) Sonhos ou ilusões são recuperados pela estrutura
mesma da verdade; mas a loucura é excluída pelo sujeito da dúvida, como
brevemente será excluído que ele não pense, que ele não exista.8
Se o homem pode sempre ser louco, o pensamento, como tal, não
pode ser louco; o pensamento como cumprimento da razão, como
exercício da soberania de um sujeito capaz de verdade, não pode ser
insensato. Eu penso, então, que eu não sou louco; eu não sou louco,
então eu sou. O ser da filosofia está situado na não loucura, e o ser da
loucura remetido ao não ser.
O gesto cartesiano é sintomático da instância da ordem que, na mes-
ma época, se organiza na França: ordem opressiva, monárquica e bur-
guesa. O decreto filosófico da exclusão anuncia o decreto político do
“grande encarceramento”, pelo qual numa manhã, em Paris, pegaram
seis mil pessoas – pobres, loucos, alienados, ociosos, licenciosos, pro-
fanadores – para interná-los: é a criação, em 1657, do Hospital Geral.
Ora, o Hospital Geral não é um estabelecimento médico: é “a ordem
terceira da repressão”,9 uma estrutura semijurídica que, funcionando ao
lado da justiça e da polícia, tem o poder de julgar, de decidir e de exe-
cutar – fora dos tribunais. A casa de internação é uma invenção do clas-
sicismo, invenção que confere aos loucos o estatuto de exclusão que, na
Idade Média, era reservado aos leprosos. Mas, em relação à concepção
medieval da loucura, concepção cósmica, dramática e trágica, a loucura
é como que dessacralizada: ela perde seu mistério quase religioso, por
ser dotada, pela exclusão, de um estatuto político, social e ético.
Em 1794, começa uma nova época: é a liberação, por Pinel, dos en-
carcerados de Bicêtre, a constituição da psiquiatria, que libera os lou-
cos de suas cadeias materiais. Mas essa liberação é apenas a máscara de
uma nova captura da loucura, de uma nova redução que a transforma
em doença mental, confinando-a no determinismo e no saber positivis-
ta. É o nascimento de uma estrutura antropológica em três termos – o
homem, sua loucura e sua verdade – que substitui a estrutura binária
da metafísica clássica, do ser e do não ser, do Erro e da Verdade. A

64
loucura perde sua estranheza negativa que, no classicismo, escapava
à apreensão objetiva para se transformar em objeto e entrar no posi-
tivismo racionalista das coisas a conhecer. A ciência toma o relevo da
ratio cartesiana: ganhando sua especificidade como doença mental, a
loucura permanece, então, sempre, segundo Foucault, numa região de
exclusão: encerrada na objetivação, é-lhe sempre interdito se manifes-
tar por si mesma, numa linguagem que lhe seria própria.

FILOSOFIA DA LOUCURA
A supor que…, como Deus não ficaria doente, ao descobrir diante
dele sua razoável incapacidade de conhecer a loucura?
Bataille

Tarefa duplamente impossível.


Foucault
Para o historiador da loucura que não quisesse sobretudo perpetuar,
através de sua reconstituição da história cultural, o gesto de exclu-
são dessa história com relação à loucura, o problema era, precisa-
mente, o de encontrar uma linguagem: linguagem outra que aquela
da razão – dominando a loucura – linguagem outra que aquela do
saber – redutor e objetivante, que não dialoga com a loucura, que não
faz senão travar sobre ela um diálogo de surdos, que não manifesta,
então, a experiência da loucura em si e por si mesma, fazendo-nos
escutar “todas essas palavras sem linguagem” cujo esquecimento cons-
titui o Ocidente,
(…) todas essas palavras sem linguagem que fazem aquele que lhes em-
presta orelha escutar um barulho ensurdecedor dos porões da história, o
murmúrio obstinado de uma linguagem que falaria sozinha – sem sujei-
to falante e sem interlocutor, comprimida em si mesma, com um nó na
garganta, engolfando-se antes de atingir qualquer formulação e retornan-
do sem estardalhaço ao silêncio que ela nunca eliminou. Raiz calcinada
do sentido.
(…)
A linguagem da psiquiatria, que é um monólogo da razão sobre a loucura,
só pôde se estabelecer sobre um tal silêncio.
(…)
Isso quer dizer que não se trata de uma história do conhecimento, mas dos
movimentos rudimentares de uma experiência. História não da psiquiatria,
mas da própria loucura, antes de toda captura pelo saber.10

65
De uma certa maneira, o projeto de Foucault implica, mas, ao mes-
mo tempo, engaja e questiona, todo pensamento, todo projeto filosó-
fico. Pois, indiretamente, a questão que, sem ser colocada, está, entre-
tanto, em jogo, é: o que é compreender? Se compreender é objetivar, a
questão de Foucault torna-se: como compreender sem objetivar, quer
dizer, sem excluir (sem excluir a loucura)? Mas, se, por outro lado,
compreender, no sentido espacial e metafórico, é, ao contrário, não ex-
cluir, mas incluir, fechar em si, ou seja, conter em seus limites, a questão
de Foucault torna-se, ao mesmo tempo: como compreender sem encer-
rar (sem encerrar a loucura)? Como compreender o Outro sem o ex-
cluir nem o incluir em si? Como compreender o Sujeito sem transfor-
má-lo em objeto? Pode-se compreender o sujeito? E, ao mesmo tempo,
ele pode se fazer compreender? O Sujeito é pensável? O que quer dizer
também: o Outro é pensável? O Outro é pensável, não na qualidade de
objeto, mas de Sujeito?
O problema do pensador, do filósofo, do historiador da loucura é, en-
tão: como contar uma história que reduz a loucura ao silêncio, restituindo
à loucura a palavra e o direito à palavra? Como dizer a loucura, na qua-
lidade de Sujeito, e, ao mesmo tempo, de Outro? Como falar a partir do
Outro, recusando qualquer compromisso, a astúcia, o relevo da dialética
que não faz senão reduzir o Outro ao Mesmo? Rejeitando, por princí-
pio, todos os discursos sobre a loucura, como manter e articular um
discurso da loucura? Um tal discurso é possível? Como precisamente
formular uma “linguagem com nó na garganta, engolfando-se antes de
ter atingido qualquer formulação”? Como se fazer sujeito falante de uma
linguagem que “falaria sozinha, sem sujeito falante e sem interlocutor”?
De que maneira a loucura, como tal, pode passar através do discurso? E
como fazer dessa passagem o lugar de um outro discurso?
O que está aqui em jogo, vê-se, é a pesquisa tateante de um novo
estatuto do discurso, discurso que deverá desfazer tanto a exclusão
quanto a inclusão, apagar o limite e a oposição entre o Interior e o
Exterior, entre o Sujeito e o Objeto, obliterar a demarcação entre Razão
e Loucura. Dizer a diferença como palavra e a palavra como diferen-
ça; dizer o fora da linguagem no interior da linguagem; falar, no in-
terior, do fora da filosofia – manter aí um discurso filosófico; é isso
que Foucault apreende como um problema de elocução, que constitui
a dificuldade maior de seu empreendimento: dificuldade de elocução
de uma relatividade sem recurso, de uma linguagem sem apoio sobre o
absoluto de uma verdade.

66
Foi preciso se manter num tipo de relatividade sem recurso (…) Uma lin-
guagem sem apoio foi, então, necessária: uma linguagem que entraria no
jogo mas que deveria autorizar a troca (…) Trata-se de salvaguardar, a todo
preço, o relativo e de ser absolutamente escutado.
Aí, nesse simples problema de elocução, se escondia e se exprimia a maior
dificuldade do empreendimento.11
Essa dificuldade de elocução é percebida por Foucault como uma
espécie de impossibilidade inerente a seu projeto.
Mas, sem dúvida, essa é a tarefa duplamente impossível: uma vez que ela se
arriscaria a reconstituir a poeira dessas dores concretas, dessas palavras in-
sensatas que nada amarra ao tempo; e uma vez, sobretudo, que essas dores
e palavras não existem e só são dadas a si mesmas e aos outros no gesto
da partilha que já as denuncia e as domina (…) A percepção que busca
captá-las em seu estado selvagem pertence necessariamente a um mundo
que já as capturou. A liberdade da loucura só se ouve do alto da fortaleza
que a mantém prisioneira.12

LOUCURA DA FILOSOFIA
Embora seja loucura, ainda há método nisso.
Shakespeare

O que me obriga a escrever, imagino, é o medo de me tornar louco.


Bataille
Que a tradução da loucura constitua já uma forma de domínio, uma
repressão da loucura, uma violência contra ela; que o elogio da lou-
cura só possa ser feito pela razão, pelo único meio da razão, Jacques
Derrida o sublinhou, em seu comentário à obra de Foucault.13 Derrida
assinala que, da mesma maneira que a liberdade da loucura só pode
ser ouvida do alto da fortaleza que a mantém prisioneira, o empreendi-
mento de Foucault permanece prisioneiro da economia conceitual que
ele se esforça por desfazer:
A arqueologia, ainda que do silêncio, não é uma lógica, quer dizer, uma
linguagem organizada, (…) uma ordem? Não será a arqueologia do silên-
cio o recomeço mais eficaz, o mais sutil, a repetição (…) do ato perpetrado
contra a loucura, e isso no momento mesmo em que ele é denunciado?
(…) Não basta se privar do material conceitual da psiquiatria para absol-
ver sua própria linguagem. Toda nossa linguagem europeia (…) participou
(…) da aventura da razão ocidental (…) Nada nessa linguagem e ninguém
dentre aqueles que a falam pode escapar à culpabilidade histórica (…) da
qual Foucault parece ter feito o processo. Mas esse é talvez um processo

67
impossível, pois a instrução e o veredito reiteram sem cessar o crime pelo
simples fato de sua elocução (…).14
Foucault sabia e reconhecia, ele mesmo, que sua tarefa era impossí-
vel. Derrida queria, entretanto, exceder esse reconhecimento, interro-
gando-se justamente sobre a significação dessa impossibilidade. Como
se situa a possibilidade da obra de Foucault, com relação à sua própria
visada? É que, para Derrida, existe uma relação de exclusão essencial
entre linguagem e loucura: relação de exclusão que Foucault não pode
evitar perpetuar por meio de seu próprio discurso; essa relação não
é histórica (historicamente determinada), mas econômica, essencial à
linguagem da economia como tal: é do estatuto da linguagem estar em
ruptura com a loucura, estratégia de proteção, diferença. Com relação
à “loucura ela mesma”, a língua é sempre um alhures. A dificuldade de
Foucault, não é, então, contingente, mas fundamental. A exclusão da
loucura, longe de ser um acidente histórico, é o fato geral e constituti-
vo de todo projeto de fala.
A frase é, por excelência, normal. Ela carrega a normalidade em si, quer
dizer, o sentido (…) Ela carrega em si a normalidade e o sentido, qualquer
que seja, aliás, o estado, de saúde ou de loucura, daquele que a profere
(…) Se bem que (…) todo filósofo, ou todo sujeito falante (e o filósofo
não passa do sujeito falante por excelência), devendo evocar a loucura no
interior do pensamento (…), só pode fazê-lo na dimensão da possibilidade e
na linguagem da ficção, ou na ficção da linguagem. Por isso mesmo, ele se
reassegura da sua linguagem contra a loucura de fato (…).15
Mas não existe aí um defeito ou uma busca de segurança próprios desta ou
daquela linguagem histórica (…), mas na essência e no projeto mesmos de
toda linguagem, em geral.16
A exclusão da loucura por Descartes é um fato não do Cogito, mas
de seu projeto de fala. Derrida propõe, aí, sobre a primeira Meditação,
uma interpretação diferente da de Foucault: a desqualificação do de-
lírio figura ironicamente no texto, como a objeção do não filósofo,
que Descartes aceita temporariamente, para excedê-la imediatamente,
pela hipótese do sono e do sonho generalizados; Descartes não exclui
a loucura, ao contrário, ele a assume totalmente no excesso da hipér-
bole demoníaca, através da hipótese do Gênio Maligno. O sentido da
abordagem cartesiana não é, como afirmava Foucault, “Eu, que penso,
não posso ser louco”, mas, antes: “Seja eu louco ou não, cogito, sum”;17
“Mesmo se a totalidade daquilo que eu penso for afetada pela falsidade
ou pela loucura (…), eu penso, eu sou enquanto eu penso.”18 Em seu
excesso em direção ao não determinado, em direção ao sentido do não

68
sentido, o Cogito cartesiano é, ele também, um “projeto (…) louco”,19
e se parece estranhamente com o projeto (impossível) de Foucault. É
claro, o discurso cartesiano, como o de Foucault, se afirma, em seu di-
zer, em sua linguagem, em sua obra, contra o tipo de loucura que anima
sua ambição. Nesse sentido, o livro de Foucault, sendo ele também “um
poderoso gesto de proteção e de encerramento”, não seria ele mesmo
outra coisa que não “um gesto cartesiano para o século XX”.20 E a histó-
ria da loucura se confundiria singularmente com a história da filosofia.
Definir a filosofia como querer-dizer-a hipérbole, é testemunhar – e a filo-
sofia é talvez esse gigantesco testemunho – que, no dito histórico em que
a filosofia se pacifica e exclui a loucura, ela trai a si mesma (…) ela entra
numa crise e num esquecimento de si que são uma fase essencial de seu
movimento. Eu só filosofo no terror, mas no terror confesso, de ser louco. O
testemunho é, por sua vez, no seu presente, esquecimento e desvelamento,
proteção e exposição, economia.21
Derrida opera, então, um quiasma sobre o pensamento de Foucault.
Se Foucault, por meio da história das ideias, desejava propor um tipo
de filosofia da loucura, Derrida preferiria, antes, fazer surgir a loucura
da filosofia. O argumento derridiano se resume desta forma: toda filo-
sofia da loucura só pode testemunhar a razão da filosofia; mas a razão
da filosofia não passa da economia de sua própria loucura. A tentativa
(impossível) de uma filosofia da loucura se reverte, assim, em signo
por excelência (em sintoma?) da loucura da filosofia.

FILOSOFIA E LITERATURA
Que doce loucura, a linguagem. Falando do homem, dança sobre e sob todas as coisas.
Nietzsche
No debate teórico entre Derrida e Foucault, não se trata para nós de
saber quem tem razão. A questão quem tem razão sobre o problema da
loucura é, aliás, uma questão absurda, uma contradição em termos, e
bem mais complicada do que parece ser, pois aquele que tiver razão,
no mesmo instante, recusará sua autoridade para falar pela loucura.
Nesse confronto teórico, é evidente, ao mesmo tempo, que os dois
pensamentos, se bem que regidos, sem dúvida, por desejos diferentes,
não somente se enriquecem mas também se reforçam, se sustentam re-
ciprocamente. É por isso que não será questão aqui tomar partido por
uma ou outra das posições respectivas, mas antes procurar estabelecer
qual é, em suma, o debate em jogo.

69
Se, testemunhando a loucura e a filosofia, Derrida considera rigoro-
samente impossível uma filosofia da loucura (e o filósofo é apenas o
sujeito falante por excelência), é porque a loucura, sendo, em sua es-
sência, silêncio, não pode ser dita dentro do logos. Essa impossibilidade
Derrida a articula a duas retomadas, de duas maneiras diferentes que
gostaria de superpor aqui:
1. Falando de Descartes:
De forma que, para retornar a Descartes, todo filósofo, ou todo sujeito
falante (e o filósofo é apenas o sujeito falante por excelência), devendo evo-
car a loucura no interior do pensamento (e não somente do corpo, ou de
qualquer instância extrínseca), só pode fazê-lo na dimensão da possibilidade
e na linguagem da ficção, ou na ficção da linguagem.22
2. Falando de Foucault:
Quero dizer que o silêncio da loucura não é dito, não pode ser dito dentro
do logos deste livro, mas tornado presente indiretamente, metaforicamente,
se posso dizer, dentro do pathos – tomo essa palavra em seu melhor senti-
do – deste livro.23
Nos dois casos, a loucura escapa à filosofia (à filosofia propriamen-
te dita); mas, nos dois casos, a loucura não desaparece com isso: ela
encontra refúgio em alguma coisa outra; na primeira citação, é “a lin-
guagem da ficção ou a ficção da linguagem” que acolhe a loucura; na
segunda, é pela direção do pathos da metáfora que a loucura escapa. A
metáfora, o pathos, a linguagem da ficção: sem ser nomeada, é a lite-
ratura que aqui, sub-repticiamente, irrompe. O debate sobre a loucura
e suas relações com a filosofia trouxe, assim, com ele, a questão da
literatura. Aquilo que, por conseguinte, se indica no funcionamento
da loucura é o gênero de relação que liga a literatura e a filosofia.
No discurso de Derrida, uma oposição é assim delineada entre lo-
gos e pathos. O silêncio da loucura, diz-se, não é dito dentro do logos
do livro, mas é tornado presente em seu pathos, metaforicamente (da
mesma maneira que a loucura, no interior do pensamento, só pode ser
evocada na linguagem da ficção, ou na ficção da linguagem). Ora, o
que quer dizer essa oposição entre logos e pathos? Ela equivaleria à
oposição da metáfora ao sentido próprio, ou da figura ao conceito? Por
que é à figura que o dizer (d)a loucura é confiado? Como a figura
e/ou a ficção conseguem evocar o silêncio? Como a loucura é evocada,
no interior do pensamento, pela “linguagem da ficção”? Que estatuto
tem a ficção no interior do pensamento? De que maneira a literatura
(o pathos, a figura, a ficção) testemunha uma relação entre loucura

70
e pensamento? Tantas questões que rondam o debate: questões que
Derrida não coloca, mas que se encontram, entretanto, implicadas em
sua réplica a Foucault; questões que Foucault não articula, mas que se
encontram colocadas por seu livro; questões que requerem atenção.

LITERATURA E LOUCURA
Na loucura (…) é preciso reconhecer (…) a liberdade negativa de uma palavra
que renunciou a se fazer reconhecer (…) a ausência da palavra se manifesta
num discurso em que o sujeito, pode-se dizer, é mais falado do que fala.
Lacan
Acerca do fato de a literatura, a ficção, ser o lugar de encontro possí-
vel entre loucura e pensamento, entre loucura e filosofia, Foucault pa-
recia estar de acordo com Derrida. Pois ele só se refere – para tomá-la
como testemunho – à loucura na literatura, nos textos de Sade ou de
Artaud, de Nerval ou de Hölderlin.
A relação – necessária ou inevitável – entre loucura e literatura se
apresenta, então, em Foucault de duas maneiras diferentes: 1) De ma-
neira metonímica, pela constante referência do livro à loucura na lite-
ratura; 2) Como o diz Derrida, de maneira metafórica, pela literatura
e pelo próprio pathos do livro de Foucault: a intensidade de seu estilo,
a veemência de seu sopro, a potência emotiva de sua escrita. Parece,
então, que a literatura está lá no lugar da loucura: lugar, por sua vez,
metafórico (substitutivo) e metonímico (contíguo).
Derrida e Foucault estão de acordo sobre a existência de uma zona
literária entre pensamento e loucura. No entanto, essa zona não tem
o mesmo papel para um e para outro, com relação à filosofia. Para
Foucault, a literatura testemunha contra a filosofia; ela não o faz para
Derrida. Para Foucault, as ficções da loucura estão aí para desmantelar,
para desorientar o pensamento. Para Derrida, ao contrário, pelo menos
no caso de Descartes, a ficção da loucura termina por orientar a filoso-
fia. Pois Descartes, lembremos, querendo “evocar a loucura no interior
do pensamento (e não somente do corpo ou de alguma instância ex-
trínseca), só pode fazê-lo na dimensão da ficção” pela invenção de um
Gênio Maligno, misterioso demônio que nos engana talvez em tudo,
que introduz o erro e o engano não somente nas evidências sensíveis
mas também nas certezas matemáticas e até no próprio seio das ver-
dades inteligíveis.24 Ou, segundo Derrida, o Cogito, por essa ficção do
Gênio Maligno, assume a responsabilidade hipotética de sua própria

71
loucura, para continuar, no entanto, a pensar, a falar e a viver. A ficção,
sendo ela o meio pelo qual o sujeito filosófico assume a loucura – para
se proteger dela, para excluí-la (ou diferi-la) no dizer –, a literatura,
ou, antes, a ficção intrafilosófica, torna-se a própria metáfora da lou-
cura e da filosofia.
Isso não se dá da mesma forma para Foucault, quando, por sua vez,
ele contesta a leitura derridiana de Descartes. Para ele, a ficção do
Gênio Maligno é “uma outra coisa, diferente da loucura”:
Tudo é ilusão, talvez, mas sem nenhuma credulidade. O Gênio Maligno
engana, sem dúvida, mais que um cérebro saturado; ele pode fazer nascer
todos os ambientes ilusórios da loucura; ele é uma outra coisa, diferen-
te da loucura. Pode-se mesmo dizer que ele é o contrário disso: uma vez
que, na loucura, eu creio que uma cor púrpura ilusória cobre minha nudez
e minha miséria, enquanto a hipótese do Gênio Maligno me permite não
crer que esse corpo e essas mãos existam. Quanto à extensão do engano,
o Gênio Maligno não a atribui à loucura; mas, quanto à posição do sujeito
com relação ao engano, Gênio Maligno e demência se opõem rigorosa-
mente (…). É evidente: diante do enganador astuto, o sujeito meditativo
se comporta, não como um louco assustado pelo erro universal, mas como
um adversário não menos astuto sempre desperto, constantemente razoá-
vel, e permanecendo em lugar de mestre com relação à sua ficção.25
O filósofo ao fim se recupera, orienta-se dentro de sua ficção: ele só
entra aí para daí sair. O louco, ao contrário, se perde e se abisma, no
interior de sua própria ficção. Por oposição ao sujeito do logos, o su-
jeito do pathos é aquele que, na ficção (da qual ele foi o autor), não se
demonstra como domínio, como afirmação soberana do sentido, mas
como vertigem, perda de sentido. A loucura, para Foucault (mas talvez,
também, o pathos da literatura), é o não domínio de sua própria ficção; é
uma cegueira quanto ao sentido. Ou o discurso filosófico se distingue,
justamente (aqui, por exemplo, na figura de Descartes), por sua posi-
ção de domínio com relação à sua própria ficção.
Admitindo, pois, que a relação entre loucura e pensamento deve ne-
cessariamente passar pelo intermédio da ficção, o desafio do debate
se desloca para o que está em causa: a questão do estatuto da ficção no
que diz respeito à filosofia. Separada da linguagem filosófica, e, então,
determinada como seu outro, situada em seu exterior, a linguagem da
ficção pode, ao mesmo tempo, se deixar encerrar no interior da filo-
sofia? A literatura na filosofia está dentro ou fora? Afirmar, como o
faz Foucault, que o sujeito delirante não se localiza tão facilmente no
interior de sua própria ficção, que, dentro da literatura, ele não sabe

72
mais onde está, implica que a ficção não se situe exatamente no interior
do pensamento, que a literatura, por sua vez, não se deixe cernir no
interior da filosofia;26 que a ficção não é simplesmente presente na filo-
sofia – quer dizer, presente para si e, ao mesmo tempo, presente para
a filosofia: que ela não está sempre lá onde se pensa, lá onde ela pensa
pensar; que, se banida da filosofia, a loucura é de uma certa forma
contida dentro da literatura, ela não é aí, entretanto, o conteúdo; é im-
plicar, em outros termos, que o estatuto, ao mesmo tempo, da loucura
na literatura e da ficção na filosofia não é temático; que nem a loucu-
ra, nem a literatura residem em seu tema ou em seu enunciado; que,
se a questão da loucura escapa, por definição, ao enunciado filosófico,
ela não reside no enunciado literário nem se deixa mais orientar ou
recuperar por ele.27 No campo das forças onde se delineiam as relações
entre loucura e literatura, entre ficção e filosofia, o problema crucial
revela-se ser aquele do lugar do sujeito, de sua posição com relação ao
engano. Ou a posição do sujeito não se define por aquilo que ele diz,
nem por aquilo de que ele fala, mas pelo lugar a partir de onde ele fala.

RAZÃO DA LITERATURA
Trabalhamos no escuro – fazemos o que podemos – damos o que temos. Nossa
dúvida é nossa paixão e nossa paixão é nossa tarefa. O resto é a loucura da arte.
James
A questão é, por conseguinte, saber se, com relação ao engano, o
enunciado do sujeito e sua posição são suscetíveis de coincidir, se
o tema da loucura e o sujeito da loucura podem se tornar presentes um
para o outro, manter uma relação de sinonímia ou de simetria. A lite-
ratura poderia se acomodar simplesmente a seu papel de intermediária
transparente entre loucura e filosofia, ela poderia conseguir dizer a
loucura no interior da filosofia se ela pudesse manter com a loucura,
de um lado, e com a filosofia, de outro, uma simples relação de equi-
valência, de homologia e de simetria. Ora, a narrativa foucaultiana de
uma história da loucura se dá a ler, justamente, como a história de uma
radical dissimetria: de alguma coisa que se passa, de fato, entre a his-
tória da filosofia e a da literatura. O discurso de Foucault se situa no
deslocamento cultural que a história do Ocidente escavou entre logos
e pathos, entre filosofia e literatura. A literatura revela estar em posição
de excesso com relação à filosofia, uma vez que ela é capaz de incluir o
excluído da filosofia: a loucura. A loucura é, por conseguinte, o exce-
dente: a literatura menos a filosofia. Sem que ela se defina a si mesma

73
nesses termos, a história da loucura se destaca como a história desse
excedente, ou desse resíduo literário.
É verdade que, no princípio da Idade Clássica, a literatura é, ela
mesma, silenciosa: “A loucura clássica pertence às regiões do silêncio
(…) não há, na Idade Clássica, literatura da loucura.”28 Com efeito,
o “golpe de força” de Descartes reduziu ao silêncio também um certo
gênero de literatura. Essa não é a menor acusação que Foucault for-
mula contra Descartes: “No movimento pelo qual Descartes vai em
direção à verdade, ele torna impossível o lirismo da desrazão.”29 A lou-
cura reaparecerá no domínio da linguagem literária, a partir do Neveu
de Reau, de Diderot, e tornará a ganhar o terreno, na época do ro-
mantismo: “a explosão lírica”,30 o louco, na literatura do século XIX,
se oferecerá como “tema de reconhecimento”;31 mas o conhecimento
filosófico continuará, entretanto, a excluir o reconhecimento literário:
“Esse reconhecimento, a reflexão – diferentemente do que ocorre na
experiência lírica – não quer acolher”.32 Se, então, Foucault recusa e
denuncia “o esforço que faz o mundo moderno para só falar da loucu-
ra nos termos serenos e objetivos da doença mental e para dela oblite-
rar os valores patéticos”,33 é por causa, precisamente, dessa obliteração
do pathos: da supressão, pela filosofia, de um tal excedente literário. A
história da loucura não é outra coisa, para Foucault, senão a história
dessa obliteração. E Foucault pode assim dizer: “A loucura, halo lírico
da doença, não cessa de ser extinta.”34
É importante compreender isso. A loucura, tal como ressoa, tal como
se deixa escutar através da retórica de Foucault, é precisamente aquilo
que a história da loucura tornou possível suprimindo: “o halo lírico da
doença”. A loucura, que não é doença mental, que não é objeto, não
é outra coisa senão essa “explosão lírica” e o excesso desses “valores
patéticos”; essa capacidade de rasgadura, de sofrimento, de vertigem e
de emoção, essa impotente potência da fascinação literária: a loucura,
para Foucault, não significa outra coisa que não o pathos em si mesmo;
a noção de loucura é, então, em si mesma, uma metáfora do pathos:
do resto impensado do pensamento, de seu excedente literário. E se a
loucura, dizia Derrida, só puder se “tornar presente metaforicamente”,
pelo pathos do livro, então, o pathos do livro é a metáfora do pathos: o
pathos é, aqui, metáfora de uma loucura que é, ela mesma, metáfora
do pathos. O pathos revela-se, por conseguinte, metáfora de si mes-
mo, metáfora capturada no movimento de sua própria repetição. O que
quer dizer que a loucura, como, aliás, o pathos, é uma noção que não

74
esclarece o fenômeno que ela conota e designa, mas dele participa: o
próprio termo loucura é pathos, e não logos; literatura, e não filosofia.
E, se o pathos só reenvia a ele mesmo, se ele é sua própria metáfora,
então a loucura (como a literatura) designaria a figura de uma figura,
a metáfora de uma metáfora.
Como isso é possível? A referência de Foucault a Nietzsche poderia
talvez nos esclarecer:
O estudo que se vai seguir seria apenas o primeiro (…) desse longo inqué-
rito que, sob o sol da grande pesquisa nietzscheana gostaria de confrontar
as dialéticas da história com as estruturas imóveis do trágico.
No centro dessas experiências limítrofes do mundo ocidental, explode, evi-
dentemente, a experiência do trágico – Nietzsche tendo mostrado que a es-
trutura trágica a partir da qual se faz o mundo ocidental não é outra coisa senão
a recusa, o esquecimento e a queda silenciosa da tragédia através da história.35
A estrutura trágica da história se constitui a partir do esquecimento
da tragédia pela história. O pathos da loucura na história se constitui
pelo esquecimento do pathos da loucura pela história. O pathos da lou-
cura é justamente o pathos da obliteração do pathos; a metáfora, em
outros termos, do apagamento da metáfora: é a história da metáfora do
esquecimento da metáfora pela história.
Sublinhando e explicitando aí o recurso de Foucault à metáfora (ao
pathos da metáfora, ou à metáfora do pathos, único meio de dizer a lou-
cura), Derrida sublinhava ao mesmo tempo o fato de que Foucault não
elaborou uma verdadeira noção, um verdadeiro conceito de loucura:
Ora, o conceito de loucura, que nunca é submetido a uma solicitação temática
por parte de Foucault, não é ele hoje fora da linguagem corrente e popular,
que dura mais tempo do que deveria, depois de ser posto em questão pela
ciência e pela filosofia, não é ele um falso conceito, um conceito desintegra-
do, de tal maneira que Foucault, recusando o material psiquiátrico ou o
da filosofia que não cessou de encarcerar o louco, serve-se finalmente – e
ele não tem escolha – de uma noção recorrente, equívoca, derivada de um
fundo incontrolável.36
A objeção é justa. Entretanto, o que Foucault se encarrega, precisa-
mente, de recolocar em questão é esse “por em questão” da “lingua-
gem popular” “pela ciência e pela filosofia” e, singularmente, o controle
que elas exercem sobre os “fundos incontroláveis”. A loucura não pode
ser conceito, sendo a própria metáfora da linguagem da metáfora. A
exigência de Derrida (da loucura da filosofia) é a exigência filosófica
por excelência: aquela do conceito, do máximo de sentido. Mas a exi-
gência de Foucault (da impossível filosofia da loucura: do pathos) é a

75
exigência – literária por excelência – da metáfora: do máximo de res-
sonância. É claro que Derrida e Foucault são, todos os dois, poderosos
escritores e, como tais, habitados pela linguagem, quer dizer, de uma
maneira ou de outra, pressionados pela literatura. Mas, nesse debate
teórico sobre o estatuto do termo loucura, vê-se que um articula cla-
ramente o desejo do conceito da metáfora, e o outro, ao contrário, o da
metáfora do conceito.
Duplo paradoxo: duas posições filosóficas filosoficamente insusten-
táveis – na realidade, não uma, mas duas “tarefas duplamente impos-
síveis”, contraditas por sua própria linguagem, em que o enunciado
não pode coincidir com a posição do sujeito, que, nos dois casos, se
excede, transpassa o outro.

Setembro de 1977.

NOTAS

1  Grifo meu.
2  Georg Hegel, Philosophie de l’Esprit, em Enciclopédia, trad. fr. Véra, Paris, Germer
Baillère, 1867, p. 383.
3  Friedrich Nietzsche, Ainsi parlait Zarathoustra, trad. fr. M. Betz, Paris, Le Livre de
poche, 1968, p. 193.
4  Jean Jacques Rousseau, Le Persifleur, em Oeuvres complètes, Paris, Gallimard,
Bibli. De la Pléidade, 1959, 1 t., p. 1110.
5  Martin Heidegger, Nietzsche, trad. fr. P. Klossowski, Paris, Gallimard, Bibl. de
Philosophie, 1971; Georges Bataille, La folie de Nietzsche e Sur Nietzsche, em
Oeuvres complètes, Paris, Gallimard, 1973, I e III t.
6  Michel Foucault, Folie et déraison, em Histoire de la folie à l’âge classique. A obra
teve três edições em francês: Paris, Plon, 1961; Paris, 10/18, 1964 (ed. abreviada);
Paris, Gallimard, “Bibl. des histoires”, 1972 (nova e acrescida por dois apêndices).
[Em português, a obra é traduzida com o título de História da loucura: na Idade
Clássica, 9. ed., São Paulo, Perspectiva, 2010. (N.T.)].
7  Uma concepção análoga da repressão da loucura e de seu papel sintomático
na história do Ocidente é enunciada (e denunciada) na América pelo psiquiatra
Thomas S. Szasz: “A ideologia psiquiátrica moderna constitui um ajustamento – em
uma era científica – da ideologia tradicional da teologia cristã. Em lugar de nascer
numa via de pecado, o homem nasce agora numa via de doença (…) De tal forma
que, em sua viagem do berço à sepultura, o homem, que outrora era guiado por um
padre, hoje é igualmente guiado por um médico. Em resumo, enquanto na era da

76
fé a ideologia era cristã, a tecnologia clerical, o estudo sacerdotal, na era da loucura
a ideologia é medicinal, a tecnologia é clínica e o estudo é psiquiátrico (…) Com
efeito, uma vez que a retórica justificadora com a qual o opressor se esconde e es-
conde seus objetivos e seus métodos verdadeiros é a mais eficaz – como foi, outrora,
o caso da tirania justificada pela teologia, e como é, no presente, o caso da tirania
justific da pela terapia – o opressor tem sucesso, não somente ao subjugar sua víti-
ma mas também ao despossuí-la de um vocabulário capaz de articular sua vitimização,
transformando-a, dessa maneira, em um prisioneiro desprovido de qualquer recur-
so de evasão” (Ideology and Insanity, New York, Doubleday Anchor, Garden City,
1969, p. 5; tradução e grifo meu).
8 Foucalt, Histoire de la folie à l’âge classique, Paris, Plon, 1961, p. 57.
9  Ibidem, p. 61.
10  Ibidem.
11  Ibidem.
12  Ibidem.
13  Jacques Derrida, Cogito et histoire de la Folie, em L’écriture et la différence, Paris,
Éditions du Seuil, 1967.
14  Ibidem, p. 57-58.
15  Ibidem, p. 84-85.
16  Ibidem, p. 84.
17  Ibidem, p. 86.
18  Ibidem, p. 87.
19  Ibidem, p. 87.
20  Ibidem, p. 85.
21  Ibidem, p. 96.
22  Ibidem, p. 84.
23  Ibidem, p. 60.
24  Reencontra-se essa forma da dúvida em Baudelaire: “Há loucuras matemáticas
e loucos que pensam que dois e dois façam três? Em outros termos, a alucinação
pode, se essas palavras não gritam (por serem acopladas juntas) invadir as coisas
de puro raciocínio?” (Fusées, em Oeuvres complètes, Paris, Gallimard, Bibli. de la
Pléiade, 1961, p. 1253).
25 Foucault, Histoire de la folie à l’âge classique, Paris, Plon, 1961, p. 601.
26  Que o próprio Foucault não pareça meditar sobre essa implicação (que não é
diretamente “seu propósito”), nem mesmo estar consciente dela, que ela perma-
neça o impensado mesmo de seu pensamento, não muda nada do seu alcance. Ao
contrário, Foucault ilustra (inconscientemente) o fato de que sua própria literatura,

77
por sua vez, não se deixa cernir no interior de sua filosofia; que sua própria posição
com relação à linguagem não é mais essa dentro da qual seu pensamento se orienta.
27  A loucura subverte, assim, o estatuto do temático como tal. Para uma outra
abordagem que chega às mesmas conclusões (pela via diferente de uma análise de
Flaubert). Cf. adiante: “Temática e retórica, ou a loucura do texto”.
28 Foucault, Histoire de la folie à l’âge classique, Paris, Plon, 1961, p. 535.
29  Ibidem, p. 535.
30  Ibidem, p. 537.
31  Ibidem, p. 538.
32  Ibidem, p. 538.
33  Ibidem, p. 182.
34  Ibidem, p. 582.
35  Ibidem.
36 Derrida, L’écriture et la différence, p. 66. (Grifo meu).

78
LOUCURA E DISCURSO POÉTICO

ARTHUR RIMBAUD: LOUCURA E MODERNIDADE

“VOCÊ FEZ BEM EM PARTIR, ARTHUR RIMBAUD”


Rimbaud [escreve René Char]1 é o primeiro poeta de uma civilização que
ainda não apareceu (…) Mas, se eu soubesse o que é Rimbaud, eu saberia
o que é a poesia diante de mim e eu não teria mais nada a escrever (…).2
Ora, se o nome de Rimbaud é justamente associado, desde os surrea-
listas, a uma tentativa de ruptura, a uma “partida” poética moderna,
pouco – ou quase nada – se estudou sobre o testemunho rimbaudia-
no em si mesmo: a reflexão sobre a própria modernidade conduzida
pelo texto.3
“É preciso ser absolutamente moderno”:4 muitos escritores de ontem
e de hoje têm pressa em transigir nesse aspecto, de forma barata, mui-
tas “bandeiras de êxtase”5 exaltam essa ideia-slogan, que participa da
dupla urgência da propaganda e do terrorismo comerciais ou culturais.
A modernidade faz vender: mercadorias, discursos, ideias.
Esse comércio inflacionista do novo é certamente estrangeiro ao es-
pírito de Rimbaud, cuja ironia nuançaria o otimismo dos “Eclesiastes
modernos”:
“Nada é vaidade; à ciência e avante!”, grita o Eclesiaste moderno,
quer dizer, Todo mundo.6
Desde seus primeiros textos, o aprendiz-Vidente busca marcar a dis-
tância que separa sua aspiração das macaquices da moda. Se ele pede
aos poetas “o novo – ideias e formas”, acrescenta em seguida: “Todos
os hábeis logo creriam ter satisfeito a essa demanda. – Não é isso.”7
“É preciso ser absolutamente moderno”: essa frase, no texto de
Rimbaud, não é nem simples, nem clara. E, antes de mais nada, porque

79
ela consiste em um imperativo paradoxal, enunciado em um modo
oximórico, definido por uma contradição em termos. O que quer dizer
“ser absolutamente moderno”? Como o moderno, que é por excelência
histórico, relativo, pode escapar à história e ao tempo, reivindicar um
estatuto de absoluto? Como, mais geralmente, aquilo que é da compe-
tência do devir pode procurar ser, e a “ser absolutamente… ”? E o que
quer dizer, por conseguinte, “é preciso ser”? Uma vez que o convite
a ser moderno é enunciado de tal forma que coloca a si mesmo em
questão, que ele é, de imediato – no âmbito da linguagem –, anunciado
como rigorosamente impossível, que sentido é preciso dar a “é preci-
so”, ao enunciado ético normativo que inaugura a proposição?
Descobrir as contradições pelas quais a linguagem rimbaudiana, ao
mesmo tempo, acolhe e rejeita o conceito de modernidade, não é sim-
plesmente recolocar, com Rimbaud, esse conceito em questão; é tam-
bém, e sobretudo, ver como o próprio conceito perturba e inverte o
texto que o escreve, observar como a contradição, pensando-se dentro
do texto, pensa o texto e abre a escrita rimbaudiana aos modos especí-
ficos de sua produção.
Pode-se definir como especificamente moderna a própria questão da
contradição:
Propomos [escreve René Char] que seja examinada com atenção a questão
moderna das incompatibilidades, moderna porque agindo sobre as con-
dições de existência de nosso tempo (…) não só duvidoso mas também
efervescente.8
Se a contradição é moderna, e se o moderno é contraditório, a lite-
ratura moderna poderia ser definida como aquela que contradiria a si
mesma, que colocaria a si mesma em questão como “literatura”. Isso
é próprio da experiência rimbaudiana, cuja modernidade volta, justa-
mente, a interrogar o próprio estatuto da ideia literária.
É instrutivo observar como, a partir de suas próprias contradições, o
pensamento moderno se tematiza e generaliza como um pensamento
do moderno. Assim, Valéry, refletindo sobre “a crise do espírito” mo-
derno, teoriza – e conceitua – a modernidade da crise:
E de que é feita a desordem de nossa Europa mental? – Da livre coexistên-
cia de todos os espíritos cultivados das ideias as mais dessemelhantes, de
princípios de vida e de conhecimento os mais opostos. É isso o que carac-
teriza uma época moderna.
Não detesto generalizar a noção de moderno e de dar a esse nome um
certo modo de existência, em lugar de fazer dele um puro sinônimo de
contemporâneo.9

80
Mas não é uma contradição em si transformar uma situação em es-
sência, pensar teoricamente, e de maneira generalizante, não a época
moderna, mas “uma época moderna”,10 não a vida moderna, mas “uma
vida moderna e mais abstrata”?11 “É preciso ser absolutamente moder-
no.” – “Não detesto generalizar a noção de moderno.” Mas a questão é:
como se generaliza uma tal noção, uma tal designação do particular? E
por que essa generalização, contraditória e intempestiva, parece ser tão
urgente e tão necessária, tão atual para a literatura? A partir de que lu-
gar, de que tipo de duração, se extrai o eterno do transitório?12 A partir
de que instância temporal, e de que instância do discurso, o intempes-
tivo se torna atual, e o particular, geral? Quem fala, quem generaliza, e
em virtude de qual autoridade?
OS PRO-NOMES DA MODERNIDADE
“É preciso ser absolutamente moderno”: esse enunciado categórico
valoriza o predicado “precisar”, mas escamoteia o sujeito: “ele”, sujeito
neutro, gramatical, é, nesse caso [de il faut, é preciso],13 um signo va-
zio que enuncia simplesmente um verbo na terceira pessoa do singular.
Logicamente, o verbo não tem sujeito; não há pessoa nessa frase. “Ser
absolutamente moderno” tem um sujeito ausente. O enunciado, des-
centrado, parece visar a uma verdade impessoal, uma ultrapassagem
do eu-locutor, para além de uma afirmação narcísica ou egocêntrica.
Mas, por outro lado, o “moderno”, devido a sua definição, impli-
ca uma relação fatalmente subjetiva entre tempo e linguagem, entre o
tempo do enunciado e o próprio ato de enunciação. A etimologia da
palavra remonta ao latim arcaico (1361), de modo, “recentemente”. De
onde “moderno: que leva em conta a evolução recente em seu domí-
nio, que é de seu tempo”, glosa o Petit Robert, e, mais precisamente:
“Que é do tempo daquele que fala, ou de uma época relativamente re-
cente.” Mesmo se “moderno” fosse empregado no sentido nietzschea-
no que não é “desse tempo”, mas “contra o tempo”,14 a modernidade
seria ainda e sempre uma função “do tempo daquele que fala”. “Ela é
a afecção e o presente (…) Ela é a afecção e o futuro (…) O ele e nós!
(…) Oh mundo! (…)”
E se a Adoração se vai, soa, sua promessa ressoa: “Atrás de suas supersti-
ções, esses corpos antigos, suas linhagens [ménages]* e suas idades. É esta
época aqui que soçobrou!”15
Por mais descentrado que possa, então, parecer o apelo à moderni-
dade, isso depende antes de tudo da voz elocutória: quem diz moderno
diz eu. “Este mundo em que eu sofro e eu sofro [je subis et je subis]*”,

81
escreve Breton, “Este mundo moderno, enfim, diabo! O que você quer
que eu faça? A voz surrealista talvez desapareça, já perdi a conta de
minhas desaparições [je n’en suis plus à compter]*.”16
Eu apareço onde desapareço, eu me aproprio onde me exproprio, eu
incluo onde excluo: eu digo “moderno”, então eu falo; então, eu digo
“eu falo”.
A modernidade se assemelha, assim, linguisticamente, à categoria
gramatical da primeira pessoa. Ainda que substantivada, ela conser-
va uma lógica pronominal. Como o “eu”, ela funciona como um “in-
dicador”17 linguístico que inlcui, em cada designação específica, ao
mesmo tempo seu próprio signo verbal e aqueles que fazem uso dele.
Teoricamente e genericamente, o “moderno” permanece sendo, então,
um signo vazio, disponível para um locutor que, a cada vez, o assume
e se apropria dele no exercício mesmo de seu discurso. A modernidade
só se define em termos de locução, não em termos de objeto, como o
faria um signo autenticamente nominal. Ela reenvia não à realidade
espaço-temporal objetiva, mas à realidade do discurso, à instância da
enunciação. Indicador autorreferencial, a modernidade – em seu sen-
tido rigoroso – se subtrai ao mesmo tempo à denegação e à verificação.
Ela escapa, assim, essencialmente à condição de verdade que, entretan-
to, ela deseja e reclama. “É preciso ser absolutamente moderno”: vazio
do discurso que reivindica a plenitude do “ser”; ela é, antes de tudo,
uma estrutura do phatos, e não designa nada além de uma certa relação
com o sujeito falante.
Trata-se aqui, concretamente, de examinar de perto essa relação e a
natureza do sujeito textual. O que diz de si mesmo esse eu que declara
querer ser moderno?
Precisamente, ele diz que não é.
AZAR DA MADEIRA QUE SE QUER VIOL-INO

Pois Eu é um outro. Se o cobre desperta clarim, não é culpa sua. Isto é,


para mim, evidente: eu assisto à eclosão do meu pensamento: eu o olho,
eu o escuto: eu lanço uma flechada: a sinfonia abana de suas profundezas,
ou dá um salto sobre a cena.18
Espectador mais que ator, na “eclosão de seu pensamento”, o “eu”
comparece aí, ou seja, sofre a experiência [la subit]: a atividade do pen-
samento se aplica a um sujeito receptivo, que observa seu efeito mais
do que possui suas chaves.

82
É falso dizer: Eu penso. Deveríamos dizer: “Pensa-se-me” [On me pense]*
Perdoem o jogo de palavras.
Eu é um outro. Azar da madeira que se acha violino [violon]* e zom-
bem dos inconscientes, que discutem sobre o que eles ignoram
completamente.19
É fascinante descobrir com que rigor, com que ironia esse texto rim-
baudiano inscreve, reescreve e desconstrói um outro texto, que aí se
lê em filigrana: aquele do Cogito cartesiano. Cogito: “É falso dizer: eu
penso”; ergo: “(…) e zombem dos inconscientes que discutem sobre o
que eles ignoram completamente”; sum: “Eu é um outro.” Não mesmo
“Eu sou um outro”, outro que seria simplesmente um duplo, reflexo do
mesmo “Eu” cartesiano, assegurado de ser, de ser bem colocado [d’être
en place], de habitar um “Eu sou”; mas “Eu é um outro”. A desconstru-
ção é violenta, rigorosa.
“Pensa-se-me” [On me pense]. O “eu” tradicional, sujeito do Cogito
cartesiano, se transforma aqui em objeto direto, submetido e não atuan-
te, agido e não agente; o verdadeiro sujeito é “se” [on] – substituto
da não pessoa, “pronome pessoal indefinido” [símbolo de indetermi-
nação do sujeito]. Pelo “se”, a individuação se torna impessoal, ou,
antes, a pessoa não individualizada. “Se”, uma força anônima que es-
capa à condição de pessoa – trata-se do texto inconsciente (o “Isso”
freudiano: um outro pronominal indefinido), ou, mais genericamente,
da linguagem, o corpo social do discurso, o texto da cultura que me
fala, que fala através de mim – “pensa-se-me”: “Eu estou em palavras,
sou feito de palavras, de palavras dos outros (…). Eu sou todas essas
palavras, todos esses estrangeiros, essa poeira de verbo…”20 O pensa-
mento não é atributo de um “eu”, de um eu substancial, espontâneo,
imediatamente presente para si, mas uma ação sobre um “me” passivo,
que sente que sua própria inteligência, sua própria faculdade de dis-
curso – pela qual ele diz “Je” – se exerce nele e sobre ele, não por ele.
O resultado do pensamento, “a obra”, é, então, habitada pelo “se” e
frequentemente sem o conhecimento do autor:
Se o cobre desperta clar-IM [clair-ON]*, não é culpa sua.21
Azar da madeira que se acha viol-INO [viol-ON]* (…).22
Em várias retomadas, Rimbaud faz voltar seu pensamento, seus “ta-
lentos”, a essa não pessoa, aos pronomes indefinidos que funcionam
textualmente como lugar vazio da pessoa: “se”, “um outro”, “alguém”,
“ninguém” (negativo).

83
Eu vou desvelar todos os mistérios (…)
Escutem! (…)
Eu tenho todos os talentos. – Não há ninguém aqui e há alguém.23
“Alguém”, “ninguém”. Mas há autores que creem ainda em seu “eu”
criador, que, cegos sobre sua relação com a linguagem, presos na ma-
gia do espelho, creem ainda que são a origem de sua obra: são esses os
“poetas subjetivos”, antíteses do poeta moderno e da “poesia objetiva”,
ou seja, da poesia do “Se”, ou, ainda, da Poesia propriamente dita.
Tantos egoístas se proclamam autores; como muitos outros que se atribuem
seu progresso intelectual!24
Se os velhos imbecis não houvessem encontrado do Eu mais que sua falsa
significação, não teríamos que embalar esses milhões de esqueletos que,
depois de um tempo infinito, acumulam os produtos de sua inteligência
cega, clamando-se autores disso!25
O texto onde se inscreve pela primeira vez esse esfacelamento de
identidade por meio da fórmula “Eu é um outro” é uma carta enviada
por Rimbaud a seu professor Izambard, na realidade um comentário,
ou uma introdução, ao envio de um poema. Seria preciso, então, para
medir a complexidade do discurso rimbaudiano, estudar o poema em
função da carta.
“O coração supliciado” [Le coeur supplicié], que será mais tarde in-
titulado “O coração roubado” [Le coeur volé], descreve explicitamente
uma cena de violação [viol] homossexual, numa caserna. Trata-se tal-
vez de uma experiência sofrida por Rimbaud na Comuna. Mas pouco
importa a experiência autobiográfica. O problema que coloca esse tex-
to, comentado pela carta, é aquele de saber como uma cena fantasmá-
tica de violação (entenda-se: do sujeito violado) se transforma em poé-
tica da violação, por sustentar e animar o prestigioso “Eu é um outro”.
Mon triste coeur bave à la poupe
Mon coeur couvert de caporal:
Ils y lancent des jets de soupe,
Mon triste coeur bave à la poupe:
Sous le quolibets de la troupe
Qui pousse un rire général,
Mon triste coeur bave à la poupe,
Mon coeur couvert de caporal!
………………………………………

84
Quand ils auront tari leurs chiques,
Comment agir, ô coeur volé?
………………………………………
Ce seront des hoquets bachiques
Quand ils auront tari leurs chiques:
J’aurai des sursauts stomachiques,
Moi, si mon coeur est ravalé:
Quand ils auront tari leurs chiques
Comment agir, ô coeur volé?26
A terceira pessoa do plural, o “Eles” [Ils], preenche, nesse poema,
a função sintática do “se” – pronome-sujeito indefinido [símbolo de
indeterminação do sujeito] –, enquanto o sujeito falante, metonimica-
mente designado por “o coração supliciado”, é reduzido ao estado não
somente de objeto, mas de objeto “roubado”, arrebatado de seu pro-
prietário. O sujeito violado é, assim, despossuído do que lhe é próprio:
não só da propriedade de seu corpo como de seu coração. O “coração”
poderia simbolizar a imagem narcísica e fictícia do “eu”, os votos de
uma “bela-alma” romântica; se o coração lamenta sua pureza perdida,
é porque a violação lhe arrebatou a “identidade” sonhada: mas essa
não é menos falsa, nutrida pelo idealismo burguês. Despossuído de
sua própria mestria e de sua própria imagem de si, o sujeito, des-cora-
çado [é-coeuré], desperta para a consciência de um “eu” que é “outro”.
“Azar da madeira que se acha VIOL-INO [VIOL-ON]* e zombem dos
inconscientes que discutem sobre o que ignoram completamente.” A
violência sofrida se transforma em violência do pensamento. “A vio-
lência do veneno torce meus membros.”27 “Todas as monstruosidades
violentam os gestos atrozes de Hortência.”28 Cada pensamento, por
conseguinte, torna-se roubo e violação de um sistema reconhecido
como falso. E, uma vez que cada roubo é, ao mesmo tempo, uma viola-
ção do código burguês, um atentado ao regime do sujeito autoritário e
proprietário, o roubo – do ponto de vista pragmático-político como do
ponto de vista ideológico – torna-se um “Canto de guerra” necessário
e eufórico.
Le printemps est evidente, car
Du coeur des Proprietés vertes
Le vol de Thiers et de Picard
Tient des splendeus grandes ouvertes!29

85
Será preciso que “O coração roubado”[Le coeur volé] se transforme
em “O barco ébrio” [Le bateau ivre], para que apareça o valor linguís-
tico da simbologia do roubo/violação [v(i)ol], para que o texto em si
elucide e mensure a distância, o alcance de seu próprio “eu” tornado
outro: do “coração roubado” ao barco violentado,30 um dado biográfico
se transformou em dado textual, uma cena fantasmática é elaborada
como teoria da linguagem poética. A história do barco começa, por um
ato de violência e de roubo: rapto do barco-sujeito pelos piratas:
Comme je descendais des Fleuves impassibles,
Je ne me sentis plus guidé par les haleurs:
Des Peaux-Rouges criards les avaient pris pour cibles,
Les ayant cloués nus aux poteaux de couleurs.
………………………………………
Plus douce qu’aux enfants la chair des pommes sures,
L’eau verte pénétra ma coque de sapin
Et des taches de vins bleus et des vomissures
Me lava, dispersant gouvernail et grappin.
Et dès lors, je me suis bagné dans le Poème
De la Mer (…).31
A metáfora do navio-carcaça, despossuído de seus Mestres-cargueiros
[Maîtres-haleurs] significa, ainda aí, a explosão das ilusões de mestria,
de autoridade e de propriedade que poderia entreter o sujeito. Mas a
propriedade tem aqui uma implicação particular: o que o roubo preli-
minar arrebata do barco é, a princípio, seu sentido: a finalidade de seu
deslocamento, a direção que lhe era própria, o sentido de seu itinerá-
rio. É por uma perda de sentido, e não por um ganho de sentido, que o
sujeito sofre sua inscrição em um texto.
Ce Charme! Il prit âme et corps
Et dispersa tous efforts.
Que comprendre à ma parole?
Il fait qu’elle fuie et vole!32
O coração se transforma em palavra poeticamente adensada [envolée].
– Des écumes de fleurs ont bercé mes dérades
Et d’ineffables vents m’ont ailé par instants.33
À deriva do desejo, possuído pelos recursos da linguagem, o barco é
violentamente curado-pensado [pansé-pensé] pelo mar. Essa perdição
do sujeito na língua é a condição da palavra poética: é apenas perden-
do seu sentido que o barco pode enfim mergulhar no “Poema do mar”

86
[Le poème de la mer]. A escrita é, assim, concebida como um processo
violento – de violação, de roubo – de sentido: um processo de despos-
sessão e de expropriação do sujeito.
O GOLPE DE “DADOS” [DÉS]: DES-REGRAMENTO, DE-LÍRIOS, DES-PEDIDAS [DÉ-PARTS]
Roubos e violações se sistematizam e se integram numa teoria geral:
“O poeta se faz vidente por um longo, imenso e racional desregramento
de todos os sentidos.”34
O desregramento – “racional” – é atribuído a um “sistema”:35 ele se
apoia metodicamente sobre toda uma linha de noções textuais, que
se assinalam por golpes de “dados” [dés]: “des-regramentos”, “des-lo-
camentos”, “des-cobertas”, “di-lúvios”, “de-lírios”, “des-pedidas”
[départs] etc. A frequência e a insistência do “de”, o martelamento do
prefixo negativo explicitam o sentido do “trabalho” poético e a proble-
mática do empreendimento rimbaudiano: aquele de uma des-constru-
ção generalizada. “Raios e trovões,/ subam e desçam;/ Águas de triste-
za, subam e aumentem os Di-lúvios.”36
Mes faims, tournez. Paissez, faims,
   Le pré des sons. (…)
Mangez les cailloux qu’on brise,
Les vieilles pierres d’églises;
Les galets des vieux dé-luges (…)37
“Des-regramento de todos os sentidos” – é tomar em todos os sen-
tidos a palavra “sentido”. Lembremo-nos da réplica contundente de
Rimbaud a sua mãe, quando ela lhe perguntou o que exatamente ele
quis dizer em Uma estação no inferno: “Eu quis dizer o que isso diz,
literalmente, e em todos os sentidos.” Desregramento, então, de todos
os sentidos: significações (linguísticas), direções (geográficas), sensações
(carnais e fisiológicas) – tanto umas quanto outras são, sem exceção,
submetidas à prova da reversão e à busca do desequilíbrio; o empreen-
dimento da perversão, do des-vio, do re-torno [dé-tour], precisamente,
fora do caminho direito (latim: pervertere, “derrubar”, “voltar”) recai
tanto sobre o corpo quanto sobre a linguagem; o sistema clássico das
interdições éticas, linguísticas, ideológicas é metodicamente des-orga-
nizado: “Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura”;38 tenta-
tiva – “demoníaca” –39 de enlouquecer o código.
Je finis par trouver le dés–ordre de mon sprit.40
Jamais dé-lires ni tortures semblables.41

87
“Delírios.” Des-ler [Dé-lire]: de-codificar “Vogais” (corpo do delito,
do deslido) para violar, des-ler, des-encarnar o código; des-montar e
des-fazer a leitura clássica, linear e orientada em direção a um sentido,
para de-lirá-la, para disseminá-la, “literalmente e em todos os senti-
dos”.42 Des-aprender, então, a ler classicamente: “Isso foi primeiramen-
te um estudo”.43 Desaprender a literatura existente:
Je trouvaus dé-risoires les célébrités de la peinture et de la poé-
sie moderne.
J’aimais les peintures idiotes (…); la littérature dé-modée (…).44
Funcionando como delírio e como “delírios (…) mais vastos que
nossas liras”, a modernidade rimbaudiana des-lê, de-lira o lirismo em
voga e, des(aco)moda [des-mode] a poesia dita moderna.45
Se os “delírios” são “mais vastos que nossas liras”, é porque o
“Delírio” não somente des-lê, mas des-liga as línguas; “Encontrar uma
língua”46 é o fim último do desregramento poético; “inventar um verbo
poético acessível, um dia ou outro, a todos os sentidos.”47
J’écrivais des silences, des nuits, je notais l’inexprimable.
Je fixais des vertiges.48
Re-escrever o código, re-lê-lo, de-lirá-lo, a partir de seus silêncios,
de suas noites, é tentar empurrar, repelir os limites da linguagem.
Deslocar os limites é, aliás, a ambição geral de Rimbaud:
Je rêvais voyages de dé-couvertes dont on n’a pas de relations,
républiques sans histoires, (…) dé-placements de races et de
continents.49
A escrita do limite torna-se, então, necessariamente, uma escrita
da des-pedida [départ]. Para aquele que se sente, ele também, um
“cativo solitário do limiar”,50 o deslocamento torna-se uma obsessão,
um imperativo:
Parce qu’il faudra que je m’en aille, três loin, un jour.51
O imperativo da des-pedida [dé-part] é ainda um de-lírio, um frenesi
de des-ligamento: ela des-liga o sujeito de seu pertencimento a um
país, a uma família. O desregramento é um des-enraizmaneto: o “eu”
que é outro se reconhece essencialmente nômade, descentrado:
Ah! Cette vie de mon enfance, la grande route par tous les temps,
plus des-intéressé que le meilleur des mendiants, fier de n’avoir ni
pays, ni amis.52

88
E, se as despedidas “des-fazem os corações” [dé-chirent les coeurs/
rasgam os corações],53 o rasgão, ele também, é uma força: força de
ruptura, energia de disjunção e de distanciamento. A despedida – re-
novada – se esforça, da mesma forma, para evitar a si mesma: evitar as
paradas da vida.
Assez vu. (…)
Assez eu. (…)
Assez connu. Les arrêts de la vie. (…)
Départ dans l’affection et le bruit neufs.54

A-DEUS

Un Ennui, désolé par les cruels espoirs,


Croit encore à l’adieu suprême des mouchoirs.
Mallarmé
“Em poesia [escreve Char], só se habita o lugar que se deixa”.55 Isso
quer dizer que o deslocamento, a partida – a modernidade, se quiser-
mos – longe de ser um acidente, um possível, é, ao contrário, uma
necessidade inerente à poesia. O que quer dizer que a poesia nunca
acaba de partir.
Ora, o problema da partida, para Rimbaud, é precisamente aquele do
fim: da partida definitiva, da escritura radical de um “Adeus”. Todo o
esforço de Uma estação no inferno é para escrever esse “Adeus”,56 para
partir de uma vez por todas, sair das “estações”,57 do esquema temporal,
repetitivo e cíclico, e para ser sem memória, ou, ainda, “absolutamen-
te moderno”.
Oui, l’heure nouvelle est au moins très sévère
Car je puis dire que la victoire m’est acquise
(…) Tous les souvenirs immondes s’effacent (…)
Il faut être absolument moderne.58
O que Rimbaud procura nesse texto que ele intitula “Adeus”, e que
fecha Uma estação no inferno, é, então, uma saída do passado que o
fará emergir em um presente inaugural e originário. “Adeus” é um
ato de apagamento; um radical esquecimento que deveria torná-lo
contemporâneo.
Mas a obsessão do “adeus” veicula um desejo impossível; a insis-
tência sobre o “adeus” testemunha, ao mesmo tempo, uma patética
incapacidade de se separar, de esquecer:
Je disais adieu ao monde dans d’espèces de romances.59

89
Eu dizia adeus: o fato de a palavra da despedida, o discurso por ex-
celência não repetitivo e definitivo ser, ele mesmo, enunciado no im-
perfeito – tempo da repetição – sublinha uma problemática de uma
partida que é sempre tomada em um esquema de repetição. O discurso
da ruptura não é jamais absolutamente moderno. O desejo da moder-
nidade originária e não repetitiva é, ele mesmo, destinado à forma e ao
paradoxo da repetição. A palavra do fim é precisamente aquela que não
cessa de recomeçar. A figura da desaparição é destinada a reaparecer
sem cessar. A partida é uma tarefa sem termo, sempre por recomeçar.
O “adeus” não significa, então, o advento do deslocamento final, da
ruptura definitiva, mas o sistema aberto da repetição das rupturas.
Qual é o lugar da modernidade nessa cadeia significante de repeti-
ções? É a questão que se coloca Baudelaire, meditando “Le Voyage”:
Singulière fortune où le but se déplace,
Et, n’éttant nulle part, peut-être n’importe où!60
A modernidade habita um não lugar. A partida é também a des-
coberta – árdua – da impossibilidade de partir. “Não se parte”, ano-
ta Rimbaud.61
La même magie bourgeoise à tous les points où la malle nous déposera!62
Uma vez que se compreendeu isso, “é preciso partir, ficar”? A única
resposta possível é aquela – enigmática, ambígua, e, entretanto, tão
justa – de Baudelaire:
(…) Si tu veux rester, reste;
Pars, s’il le faut (…)63
Mais le vrais voyageurs sont ceux-là qui partent
Pour partir; (…)
De leur fatalité jamais ils ne s’écartent.64
Não é possível verdadeiramente partir. Mas, para Rimbaud, não é
possível também não partir.
Je ne puis plus, baigné de vos langueurs, ô lames,
Enlever leur sillage aux porteurs de cotons,
Ni traverser l’orgueil des drapeaux et des flammes,
Ni nager sous les yeux horribles des pontons.65
“Eu não posso mais”: o barco ébrio assume, não aliás sem lamento,
sua fatalidade paradoxal: sua impotência para não partir, em busca de
um “futuro vigor”. A modernidade se impõe como uma fatalidade da
partida: uma partida repetitiva.

90
Un pas de toi c’est la levée des nouveaux hommes et leur
en marche.
Ta tête se détourne: le nouvel amour! Ta tête se retourne: – le
nouvel amour!66
O amor – “a afecção e o presente!” –67 está sempre “por se re-in-
ventar, sabe-se”.68 O que pode a cabeça senão, a cada volta, desviar e
retornar, para saudar os novos amores? A ilusão da modernidade se
repete: mas não há sentido novo (nem direção, nem significação) no
movimento da cabeça, senão aquele, enérgico, do movimento, em si,
da repetição. A modernidade não pode ser mais que o desvio de um
retorno, ou o retorno de um desvio.
Se o “novo amor” desvela a ilusão, o erro, a mentira do amor antigo,
ele próprio não escapa do erro repetido, da fascinação de uma nova
ilusão, da infelicidade por vir da desilusão.
Il est l’affection et le présent (…). Il est l’affection et l’avenir (…)
Il est l’amour, mesure parfaite et reinventée (…).
O monde! et le chant clair des malheurs nouveaux.69
O “adeus” da modernidade é, então, um adeus ao amor; um novo
adeus ao amor antigo.
Un bel avantage, c’est que je puis rire des vieilles amours menson-
gères, et frapper de honte ces couples menteurs.70
A originalidade de Rimbaud é a de ter pressentido a modernidade
como um problema do casal: do casal, no duplo nível do desejo e da
linguagem; o casal de amantes, ou do significante e do significado,
da palavra e de sua verdade. Pois a mesma dualidade de “Délires”:
“Délires I, Vierge folle, L’ Époux infernal”: experiência do dese-
jo; “Délires II, Alchimie du Verbe”: experiência da linguagem, é de
novo retomada e colocada em correlação em “Adieu”, mas na quali-
dade de duplo erro, objeto de uma dupla abdicação. A modernidade
surge da tomada de consciência da inadequação, da ilusão do casal: da
não identidade entre um sistema significante e um sistema significado.
A modernidade é, assim, a própria necessidade do arbitrário: do arbi-
trário do signo; a tentação que renasce a cada vez de colmatar o vazio
do desejo – ou a distância semiótica – a decalagem entre “a hora do de-
sejo” e a da “satisfação essencial”.71 É nessa distância, dentro do signo,
entre, de uma parte, a dessemelhança do significante e do significado,
e, de outra, a identidade que lhes é solicitada, que se intercala e se in-
sinua a mentira, o efeito de engano, de suspeita, enfim, a necessidade
de uma interpretação. O arbitrário do signo funda a leitura. A moderni-

91
dade, de fato, é, antes de tudo, um ato de leitura. O texto do “Adeus” é
um questionamento, uma interpretação, uma desmistificação da antiga
tentativa da modernidade (a do desregramento dos sentidos), da an-
tiga concepção de amor – ou da literatura. O “Adeus” funda, assim, a
Estação no inferno como sua própria leitura: o surgimento de sua mo-
dernidade na repetição de sua releitura.
O funcionamento do “Adeus”, do processo interpretativo, o jogo
de espelhos e de reflexos entre o amor e a literatura descobre, por
um lado, que o desejo é, antes e tudo, linguagem e desejo de lingua-
gem: que o amor é discurso, não passa de literatura; mas, por outro
lado, que a literatura não passa de mentira, simulacro: uma ilusão do
amor. Se tudo é literatura, a literatura, portanto, não designa nenhu-
ma verdade. O “adeus” da modernidade torna-se, então, o momento
simbólico em que a literatura toma consciência de seu divórcio radical
do real, de sua existência como estrutura irremediável de erro. Dizer
adeus ao erro será, por conseguinte, dizer adeus à literatura. A última
forma de ruptura literária é aquela pela qual a literatura se separa da
literatura.
É assim que, com Rimbaud, a poesia “anexa a si sua ausência”, “se
estabelece sobre sua recusa”.72 Mas a recusa da poesia engendra ainda
a poesia. Desviando-se da literatura, a modernidade é ainda regida pela
energia literária, textual, da diferença e do descentramento: energia
em virtude da qual a escrita continua a se escrever apagando-se, e a
literatura se repete, revertendo-se.
São essa recusa e essa reversão que explicam as afirmações repeti-
das – e paradoxais – dos poetas modernos: “A poesia é inadmissível,
aliás, ela não existe”.73 Essas afirmativas só podem ser compreendi-
das como denegações proferidas pelos poetas, ou seja, enunciados, por
excelência, poéticos. Mas o texto da modernidade, obcecado por seu
próprio silêncio, por sua própria recusa, recoloca em questão a segu-
rança, a inocência de sua enunciação, o conforto, ou a legitimidade de
seu estranho estatuto de “poesia”, ou de “literatura”. “Toda a explosão
da poesia”, nota Bataille, pensando em Rimbaud e em Lautréamont,
toda explosão da poesia se revela fora dos bons momentos que ela atinge:
comparada a seu fracasso, a poesia rasteja. Assim, um comum acordo situa
à parte os dois outros autores que acrescentaram ao fracasso de sua poesia
a explosão de um fracasso. O equívoco é ligado a seus nomes, mas um e
outro esgotaram o sentido da poesia que termina em seu contrário, em um
sentimento de ódio da poesia. A poesia que não se eleva ao não senso da
poesia é ainda o vazio da poesia: a bela poesia.74

92
Je dois enterrer mon imagination et mes souvenirs.
Une belle gloire d’artiste et de conteur emportée!75

Adieu, chimères, idéals, erreurs.76

(…) je puis (…) frapper de honte ces couples menteurs (…) et


il me sera loisible de posséder la vérité dans une âme et un corps.77
Sair da literatura é, ainda, a ela se dar; “matar de vergonha esses ca-
sais mentirosos” é ainda aspirar à sua verdade. Só há um meio, radical,
para sair do passado: é sair do discurso. “Possuir a verdade” será, para
Rimbaud, repudiar a linguagem: compreender que a verdade é aquilo
que não se possui. “Absolutamente moderna”, a literatura doravante
habitará seu próprio silêncio.
Il faut être absolument moderne.
Point des cantiques: tenir le pas gagné.78
Não mais cantigas: o supremo adeus religa o sentido etimológico
desta palavra do fim: A Deus. A marcha em direção à modernidade é
uma “dura noite”, semelhante em tudo à noite da crucificação.
Dure nuit! Le sang séché fume sur ma face et je n’ai rien derrière
moi que cet horrible arbrisseau!…79
O horrível arbusto é a cruz:
(…) l’ivresse, les mille amours qui m’ont crucifié.80

Le combat spirituel est aussi brutal que la bataille d’hommes;


mais la vision de la justice est le plaisir de Dieu seul.81
O ser humano é condenado ao erro; a visão da justiça lhe é recusada.
A única relação com Deus (“a visão da justiça”: princípio supremo da
Verdade, do Sentido, das Identidades) é aquela que engaja o Cristo a
aceitar seu desaparecimento. Ser o Cristo (o Verbo) é, precisamente,
nesse texto, aprender que Deus não existe: aprender que a linguagem
não recobre nenhuma verdade. E o Cristo rimbaudiano poderia bradar,
como o “Cristo das Oliveiras” de Nerval:
Frères, je vous trompais: Abîme! abîme! abîme!
Le dieu manque à l’autel où je suis la victime…
Dieu n’est pas! Dieu n’est plus (…).

93
En cherchant l’oeil de Dieu, je n’ai vu qu’une orbite
Vaste, noire et sans fond, d’où na nuit qui l’habite
Rayonne sur le monde et s’épaissit toujours.82

“É NESSAS NOITES SEM FUNDO…”

(…) parce qu’une raison d’un événement toujours que j’expliquerai,


il n’est pas de Présent, non – un présent n’existe pas (…) Mal
informé celui qui s’écrierait son propre contemporain.
Mallarmé
O adeus do Cristo a Deus constitui o prolongamento da interrogação
angustiada suscitada por “O barco ébrio”:
Est-ce que ces nuits sans fond que tu dors et t’exiles,
Million d’oiseaux d’or, ô future Vigueur?83
A maiúscula nos indica que a modernidade é uma alegoria: aquela de
um “futuro Vigor”. A potência prometida é, antes de tudo, figura, cuja
forma se desloca, se repete ao longo de uma cadeia de substituições,
mas cujo sentido é condenado ao exílio. O “futuro Vigor” é, por defini-
ção, o que não se apresenta jamais, o que não tem um sentido próprio:
um ponto de fuga que, sem cessar, recua para mergulhar numa “noite
sem fundo”. Entregue à vertigem que a constitui, a modernidade, en-
tretanto, procurada, como um ponto de origem, um novo começo, um
princípio de fundamento, se abisma e desmorona em um sem fundo. A
modernidade é aspirada por seu ilimitado. “Eu me aproximo da poe-
sia [escreve Bataille] mas para lhe faltar”.84 A lição de Rimbaud não
é, precisamente, a de que só se pode aproximar da modernidade – da
poesia – para lhe faltar? A poesia diz sua própria falta: é inteiramente
constituída por uma falta de si mesma. E talvez a modernidade, tam-
bém ela, não passe de um excesso de si mesma: um excesso de sua
própria falta; um vazio aberto ao excesso do desejo, sempre deslocada
em relação a si mesma, faltando a seu próprio equilíbrio e à sua pró-
pria identidade.
Dessa maneira, a modernidade tem por estatuto o problemático. A
energia do desequilíbrio é a energia de uma questão. Rimbaud partiu,
mas sua interrogação permanece. Seu silêncio só faz perpetuar indefi-
nidamente sua questão:
Est-ce en ces nuits sans fond que tu dors et t’exiles,
Million d’oiseaux d’or, ô future Vigueur?

94
Organizando-se em torno dessa interrogação central, o texto de
Rimbaud, em lugar de respondê-la, perturba o contexto da questão.
“O moderno”, escreve C. G. Jung,
(…) é o homem que acaba de aparecer; um problema moderno é uma
questão que acaba de se colocar e cuja resposta está ainda no porvir. Da
mesma forma, o problema psíquico do homem moderno só consiste, mes-
mo que colocando as coisas em sua melhor perspectiva, em levantar ques-
tões que seriam talvez completamente outras, se nós tivéssemos a menor
ideia da resposta futura.85
Percorrer a ausência da resposta é modificar, desconstruir, ou, antes,
deslocar a questão. Para quem a lê, com efeito, a questão do moderno
é. O que quer dizer que, em um sentido, a questão do moderno não
passa da questão do texto. O texto também não tem presente; seus mi-
lhões de pássaros de ouro são disseminados literalmente e em todos os
sentidos; seu Vigor é para sempre futuro, uma vez que nenhuma leitura
poderá esgotá-lo e sondar o fundo de suas noites.
“É PRECISO SER ABSOLUTAMENTE MODERNO”

Être moderne, c’est bricoler dans l’incurable.


Cioran

Lui qui se satisfait de rien, comment pourrions-noussatisfaire de lui?


Char
Tendo partido, abdicado de sua pluma, Rimbaud, entretanto, nos
legou, com sua questão, um imperativo: “É preciso ser absolutamente
moderno”. Imperativo ainda mais ambíguo que a questão que ele le-
vanta, ao colocar em dúvida a esperança de sua resolução; ainda mais
perplexo que o texto rimbaudiano, que inscreve a modernidade como
o lugar do inacessível, como uma tentativa cujo fracasso obrigatório
determina os modos específicos de sua enunciação. A modernida-
de – absoluta – de Rimbaud é, precisamente, esse impasse, essa tensão
pela qual o texto descobre a impossibilidade radical de ser “absoluta-
mente moderno”.
Qual é, por conseguinte, a precisão de “É preciso ser absolutamente
moderno”? Como, de que modo, em que estatuto a modernidade – que
se escreve impossível – pode se enunciar como um imperativo?
É sem dúvida “Gênio” quem reflete o melhor impacto dessa comple-
xidade, em Rimbaud, do convite à modernidade.

95
Il est l’affeection et le présent (…), lui qui est le charme des lieux
fuyants et le délice surhumains des stations. Il est l’affec-
tion et l’ave
nir, la force et l’amour que nous, debout dans les rages et
les ennuis,
nous voyons passer dans le ciel de tempête et les dra-
peaux d’extase.
…………………………………………………………
Il nous a connus tous et nous a tous aimés. Sachons, cette nuit
d’hiver, de cape en cap (…) forces et sentiments las, le héler
et le voir,
et le renvoyer, et sous le marées et au haut des déserts de neige
suivre ses vues, ses souffles, son corps, son jour.86
O que é notável é o fechamento – completamente aberto – desse
texto, o último das Illuminações. “Saibamos (…) saudá-lo e vê-lo, e
devolvê-lo, e (…) seguir suas visões.” Somos, ao mesmo tempo, con-
vidados a devolver e a seguir o Gênio da modernidade. O olhar irônico
e lúcido que anima o texto de “Génie” é um olhar desiludido, mas que
não perdeu por isso seu entusiasmo; um olhar entusiasta, mas que não
perdeu por isso sua consciência dessa ilusão. É um olhar que, nem
mistificador, nem desmistificador, não se situa nem na ilusão, nem fora
dela, nem na literatura, nem fora dela, mas, ao mesmo tempo, dentro e
fora; um olhar completamente animado pelo pathos da modernidade,
sabendo que ele habita uma estrutura literária, quer dizer, não mais
uma estrutura da verdade, mas um complexo de pathos e de erro. É por
isso que é preciso devolver esse “gênio” sem nome, sem nome próprio;
é por isso também que é preciso saudá-lo e vê-lo e seguir suas visões.
É preciso escrever para continuar a “re-inventar” a ilusão. Pois a mo-
dernidade não é apenas o excesso de sua própria falta. Ela é a excessiva
caixa vazia que faz funcionar o sistema literário, a falha essencial, a
falta necessária, constitutiva do fato estrutural.
A precisão é reinvestida, dessa maneira, do poder da necessidade estru-
tural: é preciso haver modernidade, é preciso haver ilusão, é preciso haver
falha. “É preciso”, o único verbo que a modernidade pode enunciar no
presente, seria preciso lê-lo também no seu sentido arcaico, etimológico
como um derivado de “falir” [faillir]: é preciso = falta, está em falta [il
faut = manque, il s’en faut].87 “É preciso ser absolutamente moderno”: o
absolutamente moderno é o que falta a ser. É assim que a modernidade
escreve a necessidade de sua ruptura – e de sua abertura: a necessidade e
a fatalidade de seu “é preciso”: do falir, do precisar – da falha e da falta.

96
Les philosophes: Le monde n’a pas d’âge. L’humanité se déplace,
Simplement. Vous êtes en Occident, mais libre d’habiter
dans votre
Orient, quelque ancien qu’il vous le faille.88

Parce qu’il faudra que je m’en aille, très loin, un jour.89

Voyez comme le feu se relève! Je brûle comme il faut.90


“Eu o seguia, era preciso”, diz a Virgem louca do Esposo infernal:
Je vais où il va, il le faut.91
É assim que a literatura – Virgem louca – se desloca, para repetir sem
cessar a cerimônia de suas núpcias impossíveis com um Moderno que
ela segue e devolve e que é seu Esposo infernal.

Setembro de 1972.

NOTAS

1  As interrupções entre colchetes, feitas dentro de citações, são de Shoshana


Felman, salvo as assinaladas com *, que são da tradutora. (N.T.).
2  René Char, Recherche de la base et du sommet, Paris, Gallimard, 1965, p. 102.
3  Cf. Char: “Você fez bem em partir, Arthur Rimbaud! Nós somos alguns a crer sem
prova na felicidade possível com você!” (Tu as fait bien de partir, Arthur Rimbaud!,
em Fureur et mistère, Paris, Gallimard, 1967, p. 212, (Coleção Poésie).
4  Arthur Rimbaud, Une saison en enfer, p. 241. As referências dos textos citados
reenviam [neste capítulo], salvo indicação contrária, à edição Suzanne Bernard:
Rimbaud, Oeuvres, Paris, Classiques Garnier, 1960.
5  Rimbaud, Génie, Illuminations, p. 308.
6  Idem, L’éclair, Une saison en enfer, p. 238. (Grifo de Rimbaud).
7  Carta de Rimbaud a Paul Demeny, conhecida como “Carta do Vidente” [Lettre du
Voyant], 15 de maio de 1871, p. 34. (Grifo meu).
8 Char, Recherche de la base du sommet, p. 36. (Grifo de Char).
9  Paul Valéry, La crise de l’esprit, em Essais quasi-politiques, Oeuvres, I t., p. 991-992.
(Grifo de Valéry).
10  Ibidem.

97
11  Charles Baudelaire, A Arsène Houssaye, Prefácio em Petits poèmes en prose, Paris,
Garnier, 1962, p. 6.
12  Idem, Le peintre de la vie moderne: “Assim, ele [o artista] vai, ele corre, ele procu-
ra. (…) Ele procura essa alguma coisa que nos permitirá chamar a modernidade (…)
Trata-se, para ele, de apurar, da moda, o que ela pode conter de poético na história,
de extrair o eterno do transitório”, em Oeuvres complètes, Paris, Gallimard, Bibli. de
la Pléiade, 1961, p. 1163. (Grifo de Baudelaire).
13  As interferências feitas entre colchetes fora de citações, salvo informação contrá-
ria, são da tradutora. (N.T.).
14  “Se essa consideração é intempestiva, é porque também eu tento compreender
como um mal, um dano, uma carência, uma coisa da qual este tempo se glorifica (…)
[Eu pude] experimentar sentimentos tão pouco atuais, me sentindo completamente
filho do tempo presente (…) Eu não vejo em que serviria a filologia clássica para nossa
época, se não fosse para empreender uma ação intempestiva contra esse tempo, e então
também sobre esse tempo e, eu espero, em benefício de um tempo por vir” (Friedrich
Nietszche, De l’utilité et des inconvénients de l’histoire pour la vie, em Considérations
intempestives, Paris, Aubier, 1964, p. 199-201, (Coleção Bilíngue, trad. fr. G. Bianquis).
15  Rimbaud, Génie, Illuminations, p. 308-309. (Salvo indicação contrária, sou eu
quem grifa os textos citados).
16  André Breton, Manifestes du surréalisme, op. cit., p. 62. (Grifo de Breton).
17  Cf. Roman Jakobson, “Les embrayeurs, les catégories verbales et le verbe russe”,
op. cit. e Émile Benveniste, “La nature des pronoms”, op. cit.
18  Rimbaud, Carta a Demeny, p. 345.
19  Idem, Carta a Georges Izambard, 13 de maio de 1871, p. 344.
20  Samuel Beckett, L’innommable, Paris, Éd. de Minuit, 1953, p. 204.
21  Rimbaud, Carta a Demeny, p. 345.
22  Idem, Carta a Izambard, p. 344.
23  Idem, Nuit de l’enfer, em Une saison em enfer, p. 221.
24  Idem, Carta a Demeny, p. 346.
25  Ibidem, p. 345.
26  “Le coeur volé”, ibidem, p. 100-101.
27  “Nuit de l’enfer”, ibidem, p. 220.
28  Idem, H, Illuminations, p. 303.
29  “Chant de guerre parisien”, p. 88; enviado por Rimbaud a Demeny, onde nova-
mente ele desenvolve a ideia do “Eu é um outro”.
30  Este, é verdade, já é pressentido, linguisticamente prefigurado, no sonho ma-
rítimo do “poeta de sete anos”: “seul, et couché sur des pièces de toile/Écrue et
pressentant violemment la voile” (“Les poètes de sept ans”, p. 97).
31  Rimbaud, “Le bateau ivre”, Carta a Demeny, p. 128-129.

98
32  “O saisons, ô châteaux”, ibidem, p. 180.
33  “Le bateau ivre”, ibidem, p. 130.
34  Ibidem, p. 346. (Grifo de Rimbaud).
35  “Aucun des sofismes de la folie – la folie qu’on enferme – n’a été oublié par
moi. Je pourrais les redire touts, je tiens le système” (Délires II, Une saison en enfer,
p. 233); referente a “um estudo”, ibidem, p. 228; referente a “um trabalho”, Cf.: “Je
travaille à me rendre voyant (…) Il s’agit d’arriver à l’inconnu par le déréglement de
tous les sens”, Carta a Izambard, p. 343-344.
36  Idem, Aprés le déluge, Illuminations, p. 254.
37  Idem, “Faim”, versão citada em Délires II, Une saison en enfer, p. 231.
38  Idem, Carta a Demeny, p. 346.
39  “Le Démon! – C’est un Démon, vous savez, ce n’est pas un homme” (Rimbaud,
Délires I, Une saison en enfer, p. 224).
40 Délires II, ibidem, p. 230.
41 Délires I, ibidem, p. 223.
42  Cf., em les Nègres de Jean Genet, este credo tão profundamente rimbaudiano:
“Inventem, senão palavras, frases que cortem, em lugar de ligar. Inventem, não o
amor, mas o ódio, e façam então a poesia, uma vez que é este o único domínio que
vos será permitido explorar” (Marc Barbézat, 1963, p. 38).
43  Rimbaud, Délires I, Une saison en enfer, p. 228.
44  Ibidem.
45  Idem, “Le bateau ivre”, Carta a Demeny: “Où, teignant à coup les bleuités, de-
lires/Et rythmes lents sous les rutilements du jour,/Plus fortes que l’alcoool, plus
vastes que nos lyres,/Fermentent les rousseurs amères de l’amour!”
46  Ibidem, p. 347.
47  Idem, Délires II, Une saison en enfer, p. 228.
48  Ibidem.
49  Ibidem.
50  Stéphane Mallarmé, Sonnet (pour votre chère morte), em Oeuvres complètes, op.
cit., p. 69.
51  Rimbaud, Délires I, Une saison en enfer, p. 226.
52 L’impossible, ibidem, p. 235.
53 Délires I, ibidem, p. 224.
54  Idem, Départ, Illuminatios, p. 266.
55 Char, Recherche de la base du sommet, p. 104.
56  A questão discutida pelos biógrafos – a saber: se “Adeus” (Une saison en enfer)
é, sim ou não, dentro da cronologia, o último texto de Rimbaud – importa pouco,

99
uma vez que, em um caso ou no outro, “Adeus” é o texto da última palavra, ou seja,
simbolicamente, a escrita do fim (impossível…).
57  Na verdade, longe de ser um texto final, cronologicamente, “Adeus” é o tex-
to intempestivo por excelência, um texto fora de estação: “L’automne déjà! – Mais
pourquoi regretter un éternel soleil, si nous sommes engagés à la découverte de
la clarté divine, – loin des gens qui meurent sur les saisons” (p. 240). Cf. “Barbare”
(Illuminstions): “Bien après les jours et les saisons, et les êtres et les pays (…)” (p.
292). Cf. também carta a Delahaye (jun. 1872): “Et merde aux saisons et courage.
Courage.” (p. 352); e o rascunho de “O saisons, ô chateaux”, precedido por estas
linhas: “C’est pour dire que ce n’est rien, la vie; voilà donc les Saisons” (p. 448).
58  Rimbaud, Adieu, Une saison en enfer, p. 241.
59 Délires II, ibidem, p. 230.
60  Baudelaire, Le voyage (CXXVI), Les fleurs du mal, Paris, Garnier, 1961, p. 156.
61  Rimbaud, Mauvais sang, Une saison en enfer, p. 215.
62  Idem, Soir historique, Illuminations, p. 301.
63  Baudelaire, Le voyage, Les fleurs du mal, VII, p. 159.
64  Ibidem, I, p. 155.
65  Rimbaud, “Le bateau ivre”, Carta a Demeny, p. 131.
66  Idem, A une raison, Illuminations, p. 268.
67 Génie, ibidem, p. 308.
68  Idem, Délires I, Une saison en enfer, p. 224; Cf. Idem, Illuminations, p. 308.
69 Génie, ibidem, p. 308.
70  Idem, Adieu, Une saison en enfer, p. 241.
71  “Il voulait voir la verité, l’heure du désir et de la satisfaction essenciels”, Idem,
Conte, Illuminations, p. 259.
72  Maurice Blanchot, Le sommeil de Rimbaud, em La part du feu, Paris, Gallimard,
1949, p. 158.
73 Cf. D. Roche, Théorie d’ensemble, em Tel Quel, Paris, Éd. Du Seuil, 1968, p.
221-227. “Nous prétendons dire précisément par des poèmes que cette conception
de la poésie n’est pas”. (p. 223).
74  Georges Bataille, L’Orestie, op. cit., p. 63.
75  Rimbaud, Adieu, Une saison en enfer, p. 240. Cf. esboço de “Alchimie du Verbe”,
p. 338: “Maintenant je puis dire que l’art est une sottise.”
76  “Mauvais sand”, ibidem, p. 218.
77 “Adieu”, ibidem, p. 241.
78  Ibidem.

100
79  Ibidem.
80  Ibidem, p. 240.
81  Ibidem, p. 241.
82  Gérard de Nerval, Le Christ aux Oliviers, I, II , em Les Chimères, op. cit.,
p. 242-243.
83  Rimbaud, “Le bateau ivre”, Carta a Demeny, p. 131.
84 Bataille, L’Orestie, op. cit., p. 60.
85  Carl Gustav Jung, Le problème psychique de l’homme moderne, em Problèmes
de l’âme moderne, Paris, Buchet-Chastel, 1960, p. 165. (Trad. fr. Y. Le Lay).
86  Rimbaud, Génie, Illuminatios, p. 308-309.
87 “Faillir” et “falloir”, sabe-se, são, historicamente, doublets [cognatos]. Cf. Maurice
Grevisse, Le bon usage, Gembloux, Duculot, e Paris, Hatier, 1969, p. 653.
88 Rimbaud, L’impossible, Une saison en enfer, p. 236.
89 Délires I, ibidem, p. 226.
90  Idem, “Nuit de l’enfer”, Carta a Demeny, p. 220.
91  Idem, Délires I, Une saison en enfer, p. 224.

101
RIMBAUD COM MALLARMÉ: MODERNIDADE, POESIA, TRADUÇÃO
O seguinte ensaio sobre Rimbaud, traduzido aqui pela primeira vez,
é minha peça mais antiga incluída nesta coletânea.1 Eu a escrevi em
minha juventude, em 1973. Na ocasião, tentei fazer um texto sobre a
relação entre linguagem, poesia (retórica e filosófica), Rimbaud e sua
preocupação com a modernidade. Hoje, vejo esse ensaio como ligeira-
mente diferente, como um texto em grande parte voltado para o signi-
ficado do destino de Rimbaud, um misterioso destino inscrito por – e
em – sua poesia.
Escrevi esse texto em Paris e tomei como pressuposta a notoriedade
de Rimbaud na França, como um dos maiores poetas franceses, e, con-
sequentemente, a familiaridade de todo estudante francês com a vida
de Rimbaud e com seus versos. Porque essa familiaridade não existe
nos Estados Unidos, esse texto – enraizado em sua condição france-
sa – me pareceu intraduzível e, então, não o incluí na seleção de capí-
tulos que constituem Writing and Madness, versão inglesa resumida de
La folie et la chose littéraire.2
O ensaio sobre Rimbaud é, além disso, um texto sobre poesia, e
Rimbaud é basicamente, como Mallarmé o chama, “um cantor” – um
poeta musical, acústico. Assim, sua poesia, suas rimas e sua semântica
jogam com significantes e sons (sons de sílabas fragmentadas) de ma-
neira que são inerentes à especificidade oral da língua francesa.3 Meu
próprio estilo francês, especialmente naqueles anos 70, era bastante lú-
dico naquela língua, fazendo ressoar as ironias linguísticas e trocadilhos
de Rimbaud e, por sua vez, destacando os constantes jogos, próprios
dele, com a materialidade sonora dos significantes franceses. Assim,
era extremamente difícil traduzir este texto para uma poética plausível,
que ressoasse sonoramente, semanticamente nuançada e, ainda, nem
artificial, nem mecânica, mas em fluente, natural e polido inglês. Essa
tarefa, quase impossível – essa transferência ou tradução da alma e do
corpo de uma língua para a alma e o corpo de outra – foi aqui, contudo,
cumprida graças ao gênio linguístico da escrita incomum de Barbara
Johnson, cujos extraordinários atributos, como ingenuidade e fluência
verbal, delicada sensibilidade poética e ouvido crítico e discriminador,
puderam bater direto nos significantes franceses, receber sua abundân-
cia de sentidos e brilhantemente entregar ao leitor falante do inglês não
apenas as ressonâncias poéticas do francês, mas as nuances historica-
mente específicas, do ponto de vista conceitual e crítico, do contexto
francês desses anos, com as quais ela própria era familiarizada.

102
Simultaneamente a seu trabalho de tradução de meu ensaio, Barbara
Johnson estava também trabalhando na tarefa bastante mais difícil de
tradução criativa e versão poética – traduzindo para o inglês pela pri-
meira vez – do inteiro corpus da prosa poética de Mallarmé, incluindo
o evocativo retrato poético que ele faz de Rimbaud em seu “Medallions
and Portraits”.4
Tive a chance de revisitar meu próprio ensaio em sua versão inglesa,
lado a lado à fluente e rica versão de Johnson da poética evocação de
Rimbaud, feita por Mallarmé. Esse paralelo, a coincidente leitura de mi-
nha parte dessas duas interpretações de Rimbaud (a de Mallarmé e a
minha) e a faísca do encontro entre esses dois poetas franceses e entre
essas duas atordoantes linguagens poéticas, em uma língua que não era
o francês, foi para mim como uma epifania, que me ajudou a entender
Rimbaud muito melhor e a me entender. Senti que Mallarmé lançou
uma luz, em retrospectiva, sobre o elíptico significado do meu próprio
ensaio. Sua prosa requintada concretizou poderosamente para mim,
com o pathos inspirado de um poeta, ideias que tentei articular sobre
Rimbaud, de maneira meio desajeitada e mais abstrata, por minha pró-
pria inflexão datada, em 1973, com minha postura parisiense de crítica
literária. Uma vez que esse encontro de traduções foi para mim uma re-
velação, gostaria de dividir isso com meus leitores, adicionando a meu
próprio artigo este posfácio, no qual espero tornar o mais evocativo
possível o que mais tarde entendi a partir de Mallarmé, como uma di-
mensão adicionada à minha própria visão de Rimbaud – como uma tar-
dia iluminação justaposta ao significado do meu ensaio. Esse esboço vai
destacar o que acredito ser a quintessência de Rimbaud, que Mallarmé
viu e representou com um clarão através do toque poético e do poder
visionário de sua linguagem extraordinária: uma linguagem que, para
mim, trouxe luz e vida para a emoção que sublinhava as ideias concei-
tuais de minha própria análise e a tornou mais palpável.
Rimbaud é, antes de tudo, diz Mallarmé, uma impressionante emer-
gência física: um corpo impressionante, um belo e impressionante
rosto, do qual a famosa foto (de Carjar, 1870) e a famosa pintura (de
Fantin-Latour, 1872) são inesquecíveis e bem conhecidas.
Eu não o conheci [diz Mallarmé] mas o vi, uma vez, em um desses jan-
tares literários, organizados às pressas, no final da Guerra – The Dinner of
Naughty Goodfellows – nomeados por uma antítese e tornados famosos pela
pintura e pela descrição de Verlaine, em Les Poètes maudits, de Rimbaud:
“Ele era alto”, Verlaine escreve, “bem talhado, quase atlético, com o rosto

103
perfeitamente oval de um anjo exilado, com o cabelo castanho em desor-
dem e pálidos olhos azuis que eram perturbadores”.5
Mallarmé aqui adiciona às palavras de Verlaine suas próprias remi-
niscências testemunhais, suas próprias impressões visuais e viscerais
de Rimbaud, acompanhadas de seu próprio senso de surpresa, sua es-
tupefação e, como ele coloca, de “interminável admiração” por aquilo
que sente serem as ambiguidades, as contradições de Rimbaud, dispos-
tas ainda sem palavras, em seu físico, cuja mudez provoca uma poesia
surpreendente, uma poesia sedutoramente comunicativa e sedutora-
mente retida. Mallarmé rememora:
Com alguma coisa misteriosa em torno de si, tão orgulhosa quanto os-
tensivamente, ele lembrava a filha do povo e sua aparência de mulher de
lavanderia, em razão de suas mãos enormes, avermelhadas por frieiras, por
causa das mudanças rápidas de temperatura, que deviam indicar trabalhos
ainda mais terríveis, uma vez que pertenciam a um rapaz. Mais tarde sou-
be que elas tinham assinado belos poemas, não publicados; de qualquer
modo, sua língua irônica, com sua expressão aguda e zombeteira, nunca
recitou um deles.
“Talvez você queira saber como a pessoa era”, Mallarmé diz: “mas
pelo menos temos os trabalhos publicados – Uma estação no infer-
no, Iluminações, e o volume de Poemas, publicado há longo tempo”.6
“Talvez você queira saber como a pessoa era”: Mallarmé nos intima a
pensar que Rimbaud pode ser conhecido apenas por sua poesia, co-
nhecido apenas poeticamente; e, mesmo assim, seria impossível co-
nhecer completamente Rimbaud, porque, diz Mallarmé, Rimbaud é
esse único fenômeno de poesia que tem um impacto, e que exercita
um acontecimento poderoso, irresistível e, de fato, uma indelével in-
fluência em poetas, apenas na medida em que permanece, e vai con-
tinuar a permanecer, profundamente (paradoxalmente) inassimilável.
Nem mesmo Verlaine, Mallarmé sugere, compreendeu completamente
Rimbaud, assimilou completamente sua inovação poética, sua inédi-
ta modernidade. Ou talvez – a sintaxe de Mallarmé é ambígua nesse
ponto, ele hesita – Verlaine, “o magnífico ancião, que levantou sua
batuta”, tenha sido a única exceção para o fato de que a novidade
de Rimbaud não pudesse ser assimilada. Provavelmente, nem mesmo
Verlaine tenha verdadeiramente assimilado o significado da atordoante
emergência poética de Rimbaud:
Talvez você queira saber como a pessoa era: mas pelo menos temos os
trabalhos publicados – Uma estação no inferno, Iluminações, e o volume de
Poemas publicado há tempos, que dali para frente exercitam, em eventos

104
poéticos recentes, uma influência tão particular que, uma vez que ele é
mencionado, pode-se apenas manter um enigmático silêncio e refletir se
tanto silêncio e fantasia impostos a si não indicam que se foi atingido por
alguma admiração interminável.
Você não pode duvidar, meu querido anfitrião, se os principais inovadores
até o presente, mesmo aquele, de fato, ou talvez, misteriosamente, com a
exceção do magnífico ancião, que levantou sua batuta, Verlaine, você pode
duvidar se todos eles realmente alcançaram, em qualquer profundidade ou
diretamente, Arthur Rimbaud. Nem a liberdade agora permitida ao verso,
ou melhor, surgindo dele, reclama qualquer derivação dele que, exceto por
seus últimos versos gaguejantes, ou por sua interrupção absoluta, obser-
vou estritamente as formas oficiais… Ele explodiu na cena poética como
um meteoro, inflamado por nenhum outro motivo senão sua presença,
riscando sozinho o céu e extinguindo-se sozinho.7
Mallarmé tem este incrível e surpreendente insight: quanto mais
Rimbaud é inassimilável, mais influencia: quanto mais ele influencia,
mais é emulado, seguido, adulado, mais sua novidade e sua originali-
dade permanecem inimitáveis, sua modernidade intacta e sua inovação
(paradoxalmente) inimitável.
Isso, diz Mallarmé, é o que significa ser um poeta meteórico: “Ele
explodiu na cena poética como um meteoro, inflamado por nenhum
outro motivo senão sua presença, riscando sozinho o céu e extinguin-
do-se sozinho”.8 Essa imagem do meteoro encapsula um profundo
insight sobre o custo catastrófico, humana e poeticamente, da for-
ça de Rimbaud, em direção ao trágico preço exigido por sua poesia.
Rimbaud brilha em sua meteórica solidão.
Você não pode duvidar, meu querido anfitrião, se os principais inovadores
até o presente, mesmo aquele, de fato, ou talvez, misteriosamente, com a
exceção do magnífico ancião, que levantou sua batuta, Verlaine, você pode
duvidar se todos eles realmente alcançaram, em qualquer profundidade ou
diretamente, Arthur Rimbaud.
Trágica e fatalmente, talvez nem mesmo Verlaine – amante de
Rimbaud, seu companheiro e parceiro poético e depois seu edi-
tor – realmente tenha entendido Rimbaud. Rimbaud, diz Mallarmé,
tem uma influência tremenda na geração poética corrente e todos os
“principais inovadores” reivindicam essa influência, mas nenhum
inovador, nem Verlaine, nem qualquer outro poeta, “realmente alcan-
çou, em qualquer profundidade ou diretamente, Arthur Rimbaud”.
Mallarmé é um pensador profundo e um grande observador. Sua prosa
poética é uma prosa que pensa, que corta de maneira afiada como um

105
diamante. A influência de Rimbaud é fenomenal, mas ninguém verda-
deiramente “alcançou” Arthur Rimbaud.
Talvez seja por isso que Rimbaud foi predestinado, por assim di-
zer, a viver no final com Verlaine, que era realmente incapaz de
acompanhá-lo, ou realmente “alcançá-lo” (“diretamente ou em qual-
quer profundidade”), incapaz, digamos, de ser modulado, mudado,
transformado pela linguagem de Rimbaud ou por seu amor, tomado
por sua irresistível e ainda inassimilável influência, e realmente rece-
ber sua magnética e violenta originalidade.
“Anedotas baratas”, continua Mallarmé, “não faltam em torno da-
quele que perdeu o fio de sua existência; elas se encaixam naturalmen-
te nos jornais”.9
A partir daí, segue-se a descrição de Mallarmé dos eventos que le-
varam ao famoso rompimento de Bruxelas, a dramática cena de sepa-
ração entre os dois grandes trágicos poetas, na sequência da chegada
em Bruxelas da jovem esposa de Verlaine, recém-mãe de seu filho. A
cena dessa explosiva ruptura teria consequências catastróficas para os
dois poetas: Verlaine seria preso; Rimbaud desapareceria nos desertos
da Arábia e do Norte da África, perdido de uma vez por todas para a
poesia e para a civilização. Mallarmé narra:
Quando o prestígio de Paris estava quase esgotado e Verlaine começando a
ter problemas no casamento… não foi muito difícil convencer Rimbaud
a visitar Londres. O casal conduziu aí uma existência de pobreza orgíaca,
respirando a fumaça grátis dos carvões, bêbados em reciprocidade. Uma
carta da França para um dos fugitivos [Verlaine] dizia que tudo seria per-
doado, contanto que ele abandonasse seu companheiro. A jovem esposa,
entre a mãe e a sogra, esperava pela cena de reconciliação, quando ela
chegasse no lugar marcado. Aqui me refiro à história, tal como foi deli-
cadamente traçada por M. Berrichon,10 a cena mais comovente do mun-
do, dado que seus dois heróis, um sonhador e outro delirante, eram dois
poetas rugindo em agonia. Sendo implorado pelas três mulheres juntas,
Verlaine renunciou a seu amigo, mas o viu, por acidente, na porta do quar-
to do hotel, voou em direção às suas armas para segui-lo, ignorando os
frios pedidos do último para que não fizesse nada do tipo, “jurando que
o caso deles estaria para sempre dissolvido” – “sem mesmo um tostão”,
embora eles tenham vindo para a Bélgica justamente para fazer dinheiro
para a viagem de volta, “ele estava vivendo”. A atitude repugnou Verlaine,
que, antes de se dissolver em lágrimas, puxou o gatilho de uma pistola que
ele tinha consigo, em direção aos pés de Rimbaud. Tinha sido dito que
as coisas não poderiam permanecer como eram, todos em família. Com
curativos, Rimbaud, ainda determinado a viver, voltou da clínica e foi atin-

106
gido ainda, na rua. O tiro, decididamente público, então, garantiu ao fiel
amigo [Verlaine] dois anos na prisão de Mons. Sozinho, depois do trágico
incidente, pode-se dizer que nada nos impede de decifrá-lo [Rimbaud] em
sua última crise, que nos interessa porque ele cessou com tudo o que era
literário: amigos e trabalhos. Fatos? Dizem que foi para a Inglaterra… e,
então, foi para a Alemanha, onde ele assumiu o cargo de professor e usou
seu talento para línguas, que ele colecionava, tendo renunciado a cada
promoção na carreira; foi para a Itália… primeiro de trem… depois a pé;
cruzou os Alpes… e, finalmente… permitiu-se ser oficialmente repatriado.
Não antes de ser tocado pela brisa do Leste.
Em algum lugar aí, está a ainda misteriosa data natural [de sua partida,
uma data] em que, devemos concordar, ele rejeitou os sonhos – por sua
culpa ou deles – e amputou em si, vivo e bastante desperto, todo traço de
poesia, sendo mais tarde capaz de encontrar apenas bem longe, bastante
bem longe, um novo estado de ser… a civilização falhando em prolongar,
no indivíduo, o clamor de um signo supremo.
Uma reportagem inesperada, em 1891, circulou nos jornais: que ele, que foi
para nós e sempre permanecerá um poeta, aterrissou em Marselha com uma
fortuna e, viajante do mundo, com artrites, deixou-se operar e acabou por
morrer… Sinto, entretanto, que prolongar a esperança de um trabalho ma-
duro é nefasto, aqui, em direção à exata interpretação dessa aventura única
na história da arte. A de uma criança tão preciosa e peremptoriamente toca-
da pelas asas da literatura, que, mal tendo tempo para viver, usou seu tem-
pestuoso e magistral destino sem recurso para nenhum futuro possível.11
Assim, Rimbaud, “aquele que foi violentamente devastado pela li-
teratura”,12 “ele que foi e sempre permanecerá sendo um poeta para
nós”, “explodiu na cena poética como um meteoro, inflamado por
nenhum outro motivo senão sua presença, riscando sozinho o céu e
extinguindo-se sozinho”,13 “a civilização falhando em prolongar, no
indivíduo, o clamor de um signo supremo”:14 “Tudo teria permaneci-
do o mesmo desde então sem essa considerável passagem, justamente
como uma circunstância não literária preparada por ela: mas o caso
pessoal permanece indelével”.195
“Anedotas baratas”, disse Mallarmé, “não faltam em torno daquele
que perdeu o fio de sua existência; elas se encaixam naturalmente nos
jornais”: “Mas sua ambição seria ver, nessa massa de detalhes, as linhas
gerais de um significante destino; que, mesmo em seus aparentes des-
vios, deve manter o ritmo de um cantor juntamente com sua estranha
simplicidade”.15
Esse é, na minha visão, o segundo grande insight de Mallarmé e seu
inesperado paradoxo final, um outro acesso de gênio em sua visão de
Rimbaud: mesmo quando ele canta sua própria extinção, o meteoro,

107
diz Mallarmé, continua sendo um cantor. As contradições e a com-
plexidade de Rimbaud não evitam, e não deveriam esconder de nossa
visão, seu poder de um canto melodioso e sua “estranha simplicida-
de”. Simplicidade é poder de expressão, de condensação e concisão,
poder de redução e complexidade – para noções básicas de sonoridade
e ritmo. Essas noções básicas não simplesmente governam a poesia de
Rimbaud: elas predominam em seu destino também, um destino em
que as “linhas gerais” são sempre visíveis: “Mas sua ambição seria ver,
nessa massa de detalhes, as linhas gerais de um significante destino.”
Apesar de sua grande complexidade e sua resistência à inteligibilidade,
o destino de Rimbaud preserva a eloquência musical e o ritmo melódi-
co de um cantor. Rimbaud, diz Mallarmé, é e permanece “ um cantor”,
mesmo quando se torna trágico, mesmo quando ele, irreversivelmente,
deixa a canção para trás, mesmo quando a canção é coberta e engol-
fada pelo silêncio final do poeta, que excede a canção em direção ao
desaparecimento do cantor, em direção ao meteórico ato de desapare-
cimento do poeta. O meteórico destino inscrito nas palavras poéticas
de Rimbaud é ainda um destino que canta. E isso é – Mallarmé dá a
entender – o verdadeiro milagre da poesia de Rimbaud e de sua ini-
mitável performance como poeta. Nas meteóricas ascensão e queda
de Rimbaud, não é apenas a queda que o instaura e o inscreve na me-
mória, como o dinamismo, a velocidade e o caminho da luz que são
próprios de Rimbaud e que ninguém mais consegue seguir: é a física e
poética emergência desse caminho de som e luz que não pode ser es-
quecida e permanece indelével. Rimbaud permanece para sempre essa
emergência incompreensível e sua força misteriosa – seu estonteante e
enigmático presente – do canto e do canto com “uma estranha simpli-
cidade”. “Tudo teria permanecido o mesmo desde então sem essa con-
siderável passagem, justamente como uma circunstância não literária
preparada por ela: mas o caso pessoal permanece, indelével”.16
Anedotas baratas não faltam em torno daquele que perdeu o fio de sua
existência; elas se encaixam naturalmente nos jornais.
Mas sua ambição seria ver, nessa massa de detalhes, as linhas gerais de um
significante destino; que, mesmo em seus aparentes desvios, deve manter o
ritmo de um cantor juntamente com sua estranha simplicidade. (Mallarmé,
abril 1896)17

108
NOTAS

1  Texto escrito por Shoshana Felman como um adendo ao texto anterior e publi-
cado em The Claims of Literature: a Shoshana Felman Reader, New York, Fordham
University Press, 2007, p. 70-107. (N.T.).
2  Shoshana Felman, La folie et la chose littéraire, Paris, Seuil, 1980.
3  Por essa razão – porque a poesia, a rima e a semântica de Rimbaud jogam com
significantes e sons que são inerentes à língua francesa – e para não prejudicar o
entendimento da leitura realizada por Shoshana Felman, que também joga com
significantes e sons, optei por manter seus poemas sem tradução. (N.T.).
4  Stéphane Mallarmé, “Arthur Rimbaud”, em Quelques médaillons et portraits en pied,
em Oeuvres complètes de Stéphane Mallarmé, Henri Mondor e Georges Jean-Aubry
(ed.), Paris, Pléiade, 1965. Os números de páginas nas citações subsequentes
do ensaio de Mallarmé referem-se a essa edição francesa citada em Divagations,
por Stéphane Mallarmé e Barbara Johnson (Cambridge, Harvard University
Press, 2007).
5 Mallarmé, Divagations, p. 513.
6  Ibidem, p. 512.
7  Ibidem. p. 512.
8  Ibidem. p. 512.
9  Ibidem, p. 514.
10  M. Berrichon, Verlaine héroique, La revue blanche, 15 de fev., 1986.
11 Mallarmé, Divagations, p. 515-518.
12  Ibidem, p. 514.
13  Ibidem, p. 512.
14  Ibidem, p. 517.
15  Ibidem, p. 514-515.
16  Ibidem, p. 512.
17  Ibidem, p. 514.

109
LOUCURA E NARRATIVA

GUSTAVE FLAUBERT: LOUCURA E CLICHÊ

ILUSÃO REALISTA E REPETIÇÃO ROMANESCA


“É impossível [dizia Valéry]1 pensar – seriamente – com palavras
como: Classicismo, Romantismo, Humanismo, Realismo… Não se
embriaga nem se mata a sede com rótulos de garrafas”.2 O próprio
Flaubert, que a história literária – como, aliás, seus contemporâ-
neos – se obstinou em promover a líder do realismo, escreveu: “Como
se pode dar a palavras vazias um sentido como este: ‘Naturalismo’? Por
que se abandonou o bom Champfleury com o ‘Realismo’, que é uma
inépcia de mesmo calibre, ou antes a mesma inépcia?”3
A psicanálise, a sociologia, a linguística, as ciências modernas nos
ensinaram, entretanto, que o “real” não é dado, que ele não coincide
com o imediatamente observável, que a realidade é um conceito abso-
lutamente mais complexo do que se afigura – ingenuamente – para o
empreendimento realista do século XIX.
Se poucos autores tentariam hoje uma escrita “realista”, a ilusão rea-
lista nem por isso desapareceu da leitura, nem das teorias da crítica,
que bem frequentemente se definem como a visada de um real – além
ou aquém do texto. A ambição realista existe menos hoje nos escritores
que nos leitores.
Gostaríamos, então, de colocar aqui um duplo problema, não somen-
te a questão evidente: existe uma escrita realista? Mas também aquela
questão que decorre dessa e cujo âmbito é mais vasto: é possível haver
uma leitura realista? Para conduzir essa dupla questão, não será inútil
redefinir a ambição realista, para submeter em seguida essa definição a
uma aventura textual, à prova – e ao julgamento – de um texto que é re-
putado de “realista”: Um coração simples [Un coeur simple], de Flaubert.

110
A ORDEM DAS COISAS
“O enunciado realista” – escreve Claude Duchet – supõe “a transiti-
vidade de seu discurso”: “a mimesis do real tende a evitar o discurso
que seria puro trânsito do sentido”.4 Tomando-se como um puro re-
flexo do real, a enunciação realista quer-se creditada unicamente pelo
referente. Tanto o dizer quanto o ler só são justificados por sua trans-
parência, sua coerção referencial. “Semioticamente [escreve Barthes],
o ‘detalhe concreto’ é constituído pela colusão direta de um referente e
de um significante.”5 E cita, para ilustrar a ambição realista, o progra-
ma que Thiers atribuía ao historiador: “Ser simplesmente verdadeiro,
ser o que são as próprias coisas, não ser nada além delas, ser somente
por elas, como elas, enquanto elas.”6
“Ser simplesmente verdadeiro”: a “simplicidade” do projeto realista é
aquela mesma da qual Flaubert, parece, escolheu falar em Um coração
simples; uma simplicidade que se confunde com a natureza, sem des-
vio e sem mediação. Convém, então, examinar de mais perto de que
maneira o “coração simples” de Felicité é “simplesmente verdadeiro”;
na perspectiva do voto realista de aderência pura e simples às coisas,
à natureza, à realidade, que relação a escrita realista mantém com a
simplicidade? O que significa o natural, ou o “simples”, no texto Um
coração simples?
Uma vez que, no leito de morte, Felicité é informada de que so-
fre de uma pneumonia, ela só faz replicá-lo suavemente: “Ah! como
Madame!”, achando natural seguir à risca sua patroa.7 Se é natural
para Felicité seguir sua patroa, é porque a natureza à qual ela adere
está sob uma certa ordem. Diante da morte da Sra. Aubain, “Felicité a
chorou, como não se chora pelos patrões. Que madame tenha morrido
antes dela, isso confundia suas ideias, lhe parecia contrário à ordem das
coisas, inadmissível e monstruoso”.8 Essa ordem das coisas, segundo a
qual o papel de Felicité é segui-la, é linguisticamente enunciada desde
a primeira frase do romance: “Durante um meio século, os burgueses
de Pont-l’Évêque invejaram a Sra. Aubain por sua servente Felicité”.9
Respeitosa da ordem das palavras, a linguagem “realista” anuncia,
então, desde o início, uma estrutura de autoridade; a hierarquia gra-
matical corresponde à hierarquia social; a servente é nomeada por últi-
mo, relegada ao papel de objeto: completamente posse de Sra. Aubain,
ela constitui igualmente o complemento do objeto dos “burgueses”.
Sua consciência é, como sujeito em captura, ocupada pela burguesia,
cujo olhar coletivo – invejoso – reduz duplamente a empregada, trans-
formando-a de sujeito desejante em posse desejável, em capital de Sra.

111
Aubain. Reduzida a objeto, Felicité é necessariamente reduzida ao si-
lêncio. “Sempre silenciosa”, essa “mulher de madeira”,10 móvel na casa
dos Aubain, não assumirá nunca a função de sujeito: os poucos frag-
mentos de frases que fazem seu discurso direto não comportam quase
nunca um eu. A única vez em que ela exprime um desejo, com relação
ao papagaio, é – por um disfarce – a autoridade de “Madame” que ela
substitui por ela mesma, como sujeito: “É Madame que ficaria feliz em
tê-lo!”.11 A história da simplicidade será, por conseguinte, a história da
exploração: Felicité é condenada a ser a cada vez explorada, por sua
patroa ou por sua irmã, por sua irmã ou por seu sobrinho. Se Felicité
é “simplesmente verdadeira”, é como vítima submetida a uma ordem
social que explora e que lhe ensinou – em meio a uma linguagem ta-
xativamente ordenada, autoritária, hierárquica – a aceitar como dada
sua falsa evidência de uma “ordem das coisas”, de realidade natural.
A ORDEM DAS PALAVRAS
Ainda que a simplicidade da empregada tenha ar, por momentos,
de uma simplicidade animal, Felicité é, entretanto, uma criatura in-
teiramente humana, social, fundamentalmente excluída da inocên-
cia animal:
Observem o rebanho [escreve Nietzsche]: (…) ele ignora o que era ontem,
o que é hoje (…) É duro para o homem ver isso (…) Pois ele não deseja
nada mais que viver como o animal, sem saciedade nem dor, mas, apesar
de querer, ele não quer como o animal. “Por que você não me fala de sua
felicidade? Por que você se limita a me olhar?” O animal gostaria de res-
ponder: “É porque eu esqueço, à medida que quero dizer.” Mas ele já
esqueceu essa resposta e se cala. E o homem se espanta.
Mas ele se espanta também consigo mesmo, por não poder aprender a
esquecer e por ficar sempre agarrado a seu passado (…) O homem diz,
então: “Eu me lembro” e ele inveja o animal que esquece imediatamente e
que vê verdadeiramente morrer o instante (…) O animal vive uma vida não
histórica, pois ele se deixa absorver inteiramente pelo momento presente
(…) O homem, ao contrário, se escora no peso mais e mais pesado do
passado, que o esmaga e o desvia.12
Diferentemente dos animais, Felicité é dotada de uma memória, quer
dizer, da faculdade da linguagem. É a linguagem que a torna vulnerá-
vel; é por meio da linguagem que se pode explorá-la. Sua espiritua-
lidade, sua subjetividade se afirmam pela única forma da ilusão que
condiciona os diferentes exercícios sociais do discurso. Felicité, a cada
vez, é subjugada pelas ilusões, seduzida pelos discursos mistificantes
que constituem o princípio mesmo da nossa civilização.

112
Em primeiro lugar, pelo discurso mistificante do amor, ou seja, do
casamento: o que seduz Felicité não é o silêncio do primeiro Théodore,
que a “derruba brutalmente”, sem sucesso, mas a linguagem do rapaz
avisado, orador e simulador, que dizia “que é preciso perdoar tudo” e
que, no entanto, “ele não tinha pressa e esperava uma mulher de seu
gosto”, fazendo “grandes juras” e lhe propondo casamento.
É em seguida o discurso de Sr. Bourais, “velho advogado”, que pro-
duz nela “essa perturbação em que nos lança o espetáculo dos homens
extraordinários”. É Sr. Bourais quem está na origem do presente da
geografia em estampas, representando “diferentes cenas do mundo”
e que instrui Felicité, fazendo “toda sua educação literária”.13 É Sr.
Bourais, igualmente, quem mostra a Felicité, no mapa, a direção onde
se encontra Victor, zombando de sua ingenuidade:
Ele alcançou seu atlas, depois começou com as explicações sobre
as longitudes; e ele tinha um sorriso pedante diante do espanto de
Felicité. Enfim, com seu próprio porta-lápis, ele indicou nos ressal-
tos de uma mancha oval um ponto negro, imperceptível, acrescentan-
do: “Eis”.14
Sr. Bourais encarna, assim, o gesto realista por excelência, aquele
que, “pura e simplesmente”, mostra os objetos de um mundo, mas o
texto nos adverte que esse gesto, em realidade, não é nada inocente:
ele é habitado por uma ideologia, aquela, precisamente, da representa-
ção. Velho advogado, Sr. Bourais é, por definição, aquele que a socie-
dade delega como representante, aquele cuja profissão é, precisamente,
falar pelos outros. De uma certa maneira, o discurso representativo de
Bourais usurpa o discurso de Felicité e a reduz ao silêncio, ela, que
jamais aprendeu a falar por sua própria conta. Bourais representa a jus-
tiça burguesa: não tanto a instituição da corte e do tribunal quanto a
ideologia de uma justiça representativa, condição de tantas opressões.
As desonestidades de Bourais, desmascaradas no fim da narrativa, não
farão mais que colocar em relevo o abuso desse poder discursivo e
representativo.
Um outro discurso social sedutor, que retira a palavra de Felicité
e a transforma em vítima não somente submissa mas resignada, é o
discurso da religião.
O pároco se mantinha de pé perto do púlpito; sobre um vitral do oratório,
o Espírito Santo dominava a Virgem; um outro a mostrava de joelhos diante
do Menino Jesus, e, atrás do tabernáculo, um grupo em madeira mostrava
São Miguel derrotando o dragão.15

113
O discurso religioso é, assim, um discurso de dominação e de nive-
lamento. Um coração simples poderia ser lido como uma meditação
sobre a linguagem, na qualidade de campo de exercício – e de funcio-
namento – do poder.
POR FORÇA DA ESCUTA
Felicité sofre a instância difusa do poder como abuso, ao mesmo
tempo em que sofre a ação, a influência do discurso social. Os agentes
do discurso são, também, os apoios da autoridade. Autoridade cuja
linguagem não é simplesmente o reflexo mas também o exercício, uma
vez que a linguagem é aprendida; aquilo que se aprende é aquilo que o
poder quer ensinar: a Virgem dominada; uma posição de genuflexão.
Quanto aos dogmas, ela não compreendia nada deles, não tentava nem
mesmo compreender. O pároco discorria, as crianças recitavam (…) Foi
dessa maneira, por força da escuta, que ela aprendeu o catecismo, sua edu-
cação religiosa tendo sido negligenciada em sua juventude; e assim ela
imitou todas as práticas de Virginie.16
O exercício sociolinguístico da repetição torna-se, dessa maneira,
uma aprendizagem, um condicionamento, um automatismo. Toda
prática linguística repetitiva veicula uma potência de hipnose, que in-
duz o indivíduo a comportamentos sociais e mentais estereotipados,
nos quais ele abdica de sua subjetividade. Felicité é, assim, habitada
pelos automatismos da linguagem: se, desde a morte de Virginie, ela
repete – durante duas noites – as mesmas preces,17 repete igualmente,
durante toda sua vida, as mesmas fórmulas linguísticas em frases fei-
tas, os mesmos estereótipos aprendidos, que ela ensina a seu papagaio:
“Rapaz charmoso! Servidor, senhor! Ave Maria!”18 O discurso do papa-
gaio, repetindo o discurso de Felicité, resume, por ironia de um triplo
clichê, toda história do “coração simples”: amor, posição social, reli-
gião. Que, na boca do papagaio, como aliás na boca da própria Felicité,
a prece seja ela mesma misturada ao clichê, sublinha a sugestão flau-
bertiana de que todo lugar comum, todo clichê é, em realidade, um
tipo de prece, funcionando pelo mesmo mecanismo de repetição e de
sugestão, veiculando na vida social a mesma potência de hipnose que a
das preces na vida religiosa. A pressão sociocultural impõe a repetição.
A repetição excita e suscita a superstição: tanto na sociedade quanto na
religião. “O pároco discorria, as crianças recitavam”,19 e Felicité repete,
como seu papagaio, depois das crianças. Não é indiferente que o signo
do papagaio adquira, no texto, uma conotação religiosa: é que aqui os
clichês da religião fazem eco à religião dos clichês. É interessante no-

114
tar, igualmente, que a palavra “papagaio” [perroquet] é aparentemente
derivada do italiano parrocchetto, de parrocco, pároco.
O papagaio é, assim, antes de tudo, um reflexo de Felicité, ela mes-
ma, como figura da repetição: repetição mimética dos clichês, repetição
rotineira do trabalho, do hábito, dos gestos cotidianos, repetição psí-
quica dos amores e das perdas, das dores e das alegrias, das frustrações
e das substituições, em que se dramatiza, se desloca, a morte na vida.
“A morte [dizia Valéry] é um ato do coração”.20 É nesse sentido que
Felicité é um coração, certamente não simples, mas bastante comple-
xo, um coração em que a repetição não cessa de se disfarçar ao longo
de uma cadeia significante de substituições, em que se dramatiza a
coerção da liberdade, da razão – e da loucura.
O papagaio resume e repete essa cadeia da repetição psíquica:
“Loulou, no seu isolamento, era quase um filho, um amante”.21 Mas
Loulou não reproduz apenas a repetição dos amores e das perdas, ou
a repetição linguística dos clichês: ele reproduz, antes de tudo, a repe-
tição das repetições. Não somente o papagaio repete as repetições de
Felicité, mas ele reproduz ainda as sonoridades que são, em si mesmas,
repetitivas:
Como que para distraí-la ele reproduzia o tic-tac da assadeira, o chamado
agudo de um vendedor de peixe, a serra do carpinteiro que morava em
frente; e, nas chamadas da campainha, imitando Sra. Aubain: “Felicité! A
porta! A porta!”22
Os estouros da sua voz saltando no corredor, o eco os repetia…23
O papagaio simboliza aqui, então, uma repetição em segundo grau
que, por sua vez, se repete, repercute até o infinito. Esse caráter se de-
nuncia ainda mais, uma vez que o papagaio, ele mesmo, se repete em
seu próprio simulacro, sob a forma empalhada sob a qual ele renasce
de suas próprias cinzas e ressuscita, em seguida à sua morte. À medida
que os elementos repetitivos se multiplicam, o fundamento referencial
se desloca: à medida que a repetição se repete, o signo linguístico se
descola tanto de seu sentido quanto de seu referente.
O LIVRO SOBRE NADA
A repetição funciona, então, como um desfuncionamento do discur-
so “realista”, desfuncionamento do discurso mistificante – romanesco,
cultural ou sociológico. No limite, a repetição só repete repetições; a
figura repetitiva se impõe em si mesma, por conseguinte, como o re-
ferente da obra; o papagaio, sob sua forma última, tornou-se, por sua
vez, sua duplicata e seu próprio referente.

115
Essa figura genial da repetição não é precisamente a figura desse “li-
vro sobre nada” tão sonhado por Flaubert, o que quer dizer a figura do
próprio romance na qualidade de sua própria repetição, de reflexão – e
lembrete – de seus próprios momentos linguísticos? Tanto sobre o pla-
no social quanto sobre o plano romanesco, o papagaio concretiza o
jogo necessário do não sentido e do sentido: do sentido como não
sentido sempre deslocado e disfarçado; do não sentido como aquilo
mesmo que engendra e condiciona o sentido. O funcionamento ro-
manesco do discurso do papagaio é perfeitamente assimilável ao fun-
cionamento poético do refrão: como o refrão, o papagaio desloca o
discurso e estabelece para a repetição, não uma identidade, mas uma
pura diferença, uma diferença que radicalmente reverte, interroga e co-
loca em causa a linguagem. O romance constitui, assim, uma estrutura
repetitiva complexa – uma estrutura de deslocamento – não mimética,
não imitativa. A tarefa do romance é fazer coexistir todas as repeti-
ções – da linguagem, do clichê, da memória, do hábito, do amor, da
morte – no espaço linguístico em que a diferença se distribui como um
poder crítico de divergência e de reversão. É assim que, em Flaubert,
sem parar, a repetição patética neutraliza a repetição irônica, mas a
repetição irônica desloca a repetição patética. Em lugar de mostrar o
real num gesto falsamente inocente, o romance o decompõe, decom-
põe – do real – precisamente a imagem representada, a ideologia da
representação mimética.24
É porque ele confisca, num instante, o poder de falar do papagaio
que este evita, desloca e desvia o discurso de sua autoridade, ao mes-
mo tempo em que ri de nossos papéis estereotipados: “Muitos se es-
pantavam que ele não respondesse pelo nome de Jacquot, uma vez que
todos os papagaios se chamam Jacquot.”25
O próprio romance, por sua vez, utiliza clichês, mas para revertê-los,
para subverter nossas expectativas “papagaiadas” e para interrogá-las.
À medida que o texto se desenrola, o clichê, à imagem do papagaio, se
desintegra para deixar ver seu vazio e seu enchimento: “Embora ele
não fosse um cadáver, os vermes o devoravam; uma de suas asas estava
quebrada, a estopa lhe saía do ventre.”26
Não importa que o texto romanesco se inscreva e seja todo ele cap-
turado pelo lugar comum. Nada é, no romance, “virginal”, nada é ino-
cente, preliminar; o começo não começa nada; qualquer que seja o
momento em que se surpreenda o romance, o lugar comum ali já teve

116
lugar. É isso o que sugere a frase que dá início ao relato de vida de
Felicité: “Ela teve, como qualquer um, sua história de amor.”27
A história de Felicité é o signo de outras histórias parecidas: o co-
meço da narrativa só faz, de saída, repeti-los. A história de Felicité é,
assim, em si mesma, uma história clichê, que se dá como tal e que se
define, desde o princípio, pelo estatuto da citação. Um coração simples:
o que pode ser mais clichê que esse título, título, aliás, em torno do
qual a história se desenrola e que é reescrito pelo texto. Um coração
simples pode ser considerado como um estudo de variações, não so-
bre o “simples”, mas sobre o clichê. Todos os clichês funcionam, em
Flaubert, como citações – deslocadas, transplantadas para um outro
contexto, que é aquele da desconstrução de seu valor referencial, so-
cial ou textual.
É assim que todos os nomes próprios são aqui, eles também, clichês,
citações, referências – violentadas, desconstruídas. Théodore: “presen-
te dos deuses”. Felicité: “felicidade sem mistura”; e, sobretudo, Paul e
Virginie, que remetem a Bernardin de San-Pierre, mas, precisamente,
para desconstruir o mito da “simplicidade” natural, da naturalidade
não cultural, não mediatizada; todos esses nomes próprios têm por
função serem nomes impróprios, contestar a propriedade, ou seja, a
propriedade que essas palavras reivindicam a seus referentes e a sua
relação com o real.
A função dos clichês, como a dos nomes próprios, em seu estatuto
de citação, é, então, a de nos forçar a refletir sobre o arbitrário do
signo, que eles colocam em evidência, denunciando de uma só vez
a ilusão realista e referencial. Flaubert manipula a linguagem em se-
gundo grau.
É com essa primeira linguagem [escreve justamente Roland Barthes, esse
nomeado, esse demasiadamente nomeado] que a literatura deve se deba-
ter: a matéria primeira da literatura não é o inominável, mas, ao contrário,
o nomeado. Ouve-se frequentemente dizer que a arte é encarregada de
exprimir o inexprimível: é o contrário que deve ser dito (sem nenhuma
intenção de paradoxo): toda a tarefa da arte é de inexprimir o exprimível.28
Repetindo os clichês, a aposta do romance é de repetir aquilo que
jamais foi dito e de dizer pela primeira vez aquilo que sempre foi dito.
É isso que faz Flaubert nesse texto tão curto, Um coração simples, que
Ezra Pound julgou tão bem como aquele que “contém tudo o que é
possível saber sobre a escrita”.

117
A SIMPLICIDADE
Plotino já dizia: “Mas que discurso será possível, quando se trata do ab-
solutamente simples?” A simplicidade flaubertiana é uma ilusão, uma ar-
madilha bem sutil, pela qual tantos críticos de fato se deixaram capturar.
O texto é explícito, aliás, sobre a natureza de sua simplicidade, uma
vez que, em duas ocasiões, a palavra “simples” se repete, comentando
a si mesma. Trata-se, nos dois casos, de Felicité. Da primeira vez, em
sua simplicidade, a empregada perdoa o egoísmo, a brutalidade de sua
patroa, a quem preocupa a falta de notícias de Virginie: “Parecia-lhe
bem simples perder a cabeça, por motivo da pequena.”29 Da segunda
vez, trata-se de uma intervenção do narrador, que comenta o estado de
espírito de Felicité, na cabeceira de Virginie morta: “Ela percebeu que
a figura havia empalidecido (…), os olhos se encavavam. Ela os beijou
várias vezes e não teria experimentado grande espanto se Virginie os
tivesse reaberto; para almas desse tipo o sobrenatural é muito simples.”30
É “simples” “perder a cabeça”. O “sobrenatural” é muito simples. A sim-
plicidade é, de um lado, a loucura, e, de outro, o sobrenatural. De uma
certa maneira, Um coração simples é a história da evolução de um delírio:
aquele da confusão mental entre o pássaro-fetiche e o Espírito Santo.
Ela (…) contraiu o hábito idólatra de dizer suas orações ajoelhada dian-
te do papagaio. Algumas vezes, o sol entrando pela claraboia atingia seu
olho de vidro e fazia brotar ali um grande raio luminoso que a colocava
em êxtase.31
Ora, em que consiste, bem precisamente, a loucura de Felicité, senão
em uma leitura realista, uma leitura literal – que paralisa o sentido no
nível do real referencial? “O Pai, para se enunciar, não havia podido
escolher uma pomba, porque esses animais não têm voz, mas, antes,
um dos ancestrais de Loulou. E Felicité rezava olhando a imagem, mas
de tempos em tempos ela se voltava para olhar o pássaro.”32
Toda a história de Felicité é a história de um erro de leitura, erro de
leitura que conduz à aceitação da “ordem das coisas” e, no limite, ao
delírio, à última sedução da loucura.
Flaubert coloca aqui o problema fundamental do leitor realista. No
limite, o realismo desemboca em uma forma de loucura. E não é por
acaso que, no texto, a leitura literal conduz a uma superstição religio-
sa. O realismo não é outra coisa senão uma teologia invertida. Toda
leitura realista é supersticiosa. Toda leitura que paralisa o movimento
textual, que atravessa a linguagem e bloqueia o sentido numa preten-
são à verdade, entra necessariamente numa estrutura mistificada.

118
“Dizem-nos algumas vezes”, escreve Valéry:
Isto é um fato. Inclinem-se para o fato. Quer dizer: Creiam. Creiam, pois
o homem aqui não interveio, são as coisas mesmas que falam. É um fato.
Sim. Mas o que fazer de um fato? Nada se parece mais com um fato que
os oráculos de Pythie (…) Em história, como em qualquer matéria, aquilo
que é positivo é ambíguo. E o que é real se presta a uma infinidade de
interpretações.33
Flaubert, ele também, nos adverte. “A inépcia [escreve] consiste em
querer concluir.”34 Um coração simples de fato nos ensina que, de uma
certa maneira, somos todos papagaios. Somos capturados pela teia de
aranha da linguagem, pela armadilha permanente do discurso social,
discurso em que se exercem, constantemente, a nossas custas e sem
que o saibamos, instâncias difusas, anônimas do poder, que sem cessar
nos pressionam, nos seduzem para a superstição de uma leitura literal.
Flaubert acerta as contas com a ilusão realista por essa desconstru-
ção textual, rigorosa, da autoridade do referente. É verdade que ele
abdica, ao mesmo tempo, de sua autoridade de autor – da propriedade
da verdade. Ele abdica de toda pretensão realista. Mas é, talvez, por
essa abdicação que reencontra, justamente, o real.

Novembro de 1972.

NOTAS

1  As interrupções entre colchetes, feitas dentro de citações, são de Shoshana


Felman, salvo as assinaladas com *, que são da tradutora. (N.T.).
2  Paul Valéry, Mauvase pensées et autres, em Oeuvres, op. cit., II t., p. 801.
3  Gustave Flaubert, Carta a Guy de Maupassant, 25 de dezembro de 1876, em
Préface à la vie d’écrivain, G. Bollème (ed.), Paris, Ed. du Seuil, 1963, p. 277.
4  Claude Duchet, Pour une sociocritique ou variations sur l’incipit, em Littérature,
n. 1, fev. 1971, p. 9.
5  Roland Barthes, L’effet de réel, em Communications, n. 11, p. 88.
6  Thier, citado por Barthes, de C. Julian, Historiens françaises du siècle XIX, Paris,
Hachette, p. 63.
7 Flaubert, Un coeur simple, em Oeuvres complètes, Paris, Ed. du Seuil, 1964, II t.,
p. 176, (Coleção L’Intégrale). As referências [indicando apenas tomo e/ou número
de página] dos textos citados remetem a essa edição. Salvo indicação contrária, sou
eu que os sublinho.

119
8  p. 176.
9  p. 164.
10  p. 66.
11  p. 174.
12  Friedrich Nietzsche, Des utilités et des inconvenientes de l’histoire pour la vie,
em Considérations intempestives, op. cit., p. 291, 203.
13  p. 168.
14  p. 171.
15  p. 169.
16  p. 170.
17  p. 172.
18  p. 174.
19  p. 170.
20 Valéry, Oeuvres, op. cit., II t., p. 890.
21  p. 175.
22  p. 175.
23  p. 174.
24  É isso que significa, sem dúvida, a decomposição de Bourais vista pelo papagaio:
“A figura de Bourais, sem dúvida, lhe parecia bastante engraçada. Desde que ele se
apercebia dela, ele começava a rir, a rir com todas as suas forças. Os estouros da sua
voz saltavam no corredor, o eco os repetia. Os vizinhos se colocavam na janela, riam
também (…).”, p. 174.
25  p. 514. Cf. a análise de Victor Brombert, em seu livro Flaubert par lui-même
(Paris, Ed. du Seuil, 1971, p. 159): “O papagaio (…), símbolo complexo (…), refe-
re-se à perversão do Logos. Loulou repete os clichês da linguagem humana, enquan-
to, da boca de sua audiência divertida, saem outros lugares comuns sobre o sujeito
dos papagaios. Encontramo-nos num circuito fechado de pseudo-pensamentos.”
26  p. 177.
27  p. 166.
28 Barthes, Essais critiques, Paris, Ed. du Seuil, 1964, p. 14-15.
29  p. 171.
30  p. 172.
31  p. 176.
32  p. 176.
33  Valéry, Discours de l’Histoire, em Oeuvres, op. cit., I t., p. 1133.
34  Flaubert, Carta a Louis Bouillet, 4 de setembro de 1850, em Préface à la vie
d’ecrivain, p. 52.

120
TEMÁTICA E RETÓRICA OU A LOUCURA DO TEXTO
Primeiro esboço daquilo que Flaubert, numa quarta versão, vislum-
brará enfim como um texto definitivo, publicável, d’A educação senti-
mental, Memórias de um louco não foi até aqui considerada um prefá-
cio à vida de escritor. Mas uma vida de escritor tem verdadeiramente
prefácios? A obra pode ser demarcada a partir de um resto que seria,
então, um “fora da obra”? Ela pode demarcar com certeza o que se-
ria seu ponto de partida? Ela pode, mais ainda, se confinar aos peda-
ços daquilo que se convencionou chamar – aliás, arbitrariamente – de
obras-primas? Já não é tempo de ler em Flaubert, por exemplo, essa
profusão de esboços em que a escrita, à margem da obra pública, se
debate, se organiza como trabalho? A produção do sentido, em Flaubert,
não se designa justamente nessa dobra – esboços ou resíduos – onde a
obra se faz explodir, marcando suas bordas somente para trans-bordar?
Um escritor de dezesseis anos escreve, então, Memórias de um louco:
obra “romântica” do ponto mais alto, mas que, desde já, teima em
atacar os valores, as ilusões do romantismo; obra ingênua e sofistica-
da, tagarela e declamatória, barulhenta ao mesmo tempo por desleixo
e por inteligência; obra confusa e que, de todo jeito, engana o leitor,
provocando-o a se colocar como ela, ou contra ela: muito irônico ou
muito ingênuo. Como ler um tal texto? Como dar conta, ao mesmo
tempo – essa é a dificuldade – de sua simplificação e de sua sofistica-
ção, de sua ironia e de sua ingenuidade?
Proporemos, aqui, três direções de leitura:
1) Uma leitura temática da “loucura”; 2) Uma leitura da função irôni-
ca da “loucura”; leitura, então, da ironia do texto contra a ingenuidade
da “loucura” romântica; 3) Uma leitura irônica da ironia do texto e que
explicitará, precisamente, a ingenuidade dessa ironia: leitura inspirada
pela ironia que o texto, por assim dizer, escreve, em seus estratos de
silêncio, contra a ironia falada.
Essas interpretações, que nos parecem todas três sugeridas e autori-
zadas por Flaubert, se revelarão contraditórias, subverter-se-ão suces-
sivamente e estabelecerão a dinâmica da produção do sentido no texto
como questão de abordagem e problemática de leitura.
TEMÁTICA DA “LOUCURA”
Sigamos, então, o fio temático: fio de Ariadne que deveria, desta vez,
não nos fazer sair, mas nos introduzir no labirinto. Somos prevenidos

121
na abertura do livro: “foi um louco quem escreveu estas páginas.”1
Louco em que sentido? Leiamos:
Fui ao colégio desde a idade de dez anos e aí contraí desde cedo uma
aversão pelos homens (…) Aí fui machucado em todos os meus gostos:
na aula, por minhas ideias; no recreio, por meus pendores de selvageria
solitária. Desde então, eu era um louco.2
A loucura é a solidão selvagem, a originalidade, a diferença do jovem
romântico. É também um grande e único amor, o desejo impossível
por uma mulher que nunca mais será reencontrada: “ Oh, Maria (…),
querido anjo da minha juventude (…) adeus! (…) Adeus! E, entre-
tanto, como eu a amei (…)! Ah! Minha alma se afunda nas delícias de
todas as loucuras que meu amor inventa.”3 “Não, eu não saberia lhe
dizer o quanto há de doces sensações, de embriaguez do coração, de
beatitude e de loucura no amor.”4 A loucura é, então, o sonho de uma
imaginação solitariamente exacerbada; sonho algumas vezes terrível:
“Eram assustadoras visões, a me tornar louco de terror.”5 “Mal me ce-
dia a imaginação, tratava-se, segundo eles, de uma exaltação do cére-
bro vizinha da loucura.”6
Segundo eles: pois, de fato, o termo loucura é empregado na lingua-
gem dos outros, na qual ele designa um julgamento e uma condena-
ção: “Juventude! Idade de loucura e de sonhos, de poesia e de tolices,
sinônimos na boca das pessoas que julgam o mundo com sanidade.”7O
fato de o narrador se dizer “louco” sugere, então, que ele assume a
separação que implica o julgamento, que ele se julga, com efeito, dife-
rente da norma do mundo, da escala de valores da sociedade burguesa:
“Ria-se de mim (…), que jamais teria uma ideia positiva, que não mos-
trava nenhuma tendência para qualquer profissão.”8 “Oh! como minha
infância foi sonhadora! Como eu era um pobre louco sem ideias fixas,
sem opiniões positivas!”9 A loucura é, então, num mundo positivo, a
recusa da positividade.
Eis, em suma, a quintessência do projeto narrativo de Memórias de
um louco: “Vou, então, escrever a história da minha vida (…) Mas eu
vivi? (…) Minha vida não são os fatos; minha vida é meu pensamento
(…) Vocês saberão das aventuras dessa vida (…), tão cheia de senti-
mentos, tão vazia de fatos.”10 A frequência lexical do termo “loucura”
corresponde a esse projeto de maneira, de fato, bastante destacável: as
25 ocorrências do termo “loucura” (“louco”, “loucura”, “loucuras”),
que se destacam no espaço de 23 capítulos (dezoito páginas na edição
“L’Intégrale”) são distribuídas de maneira desigual; como que por aca-

122
so, ocorre que a “loucura” está ausente dos três capítulos consecutivos
que relatam precisamente os fatos: o encontro do grande amor (cap. XI,
XII, XIII). No meio do romance, há, se assim se pode dizer, um tipo de
buraco de “loucura”. O termo reaparece quando da partida da mulher.
A loucura não é, então, o acontecimento, não é o fato do amor, mas
seu antes – e depois. “Eu me recolocava no passado que não retornaria
mais (…) Era no meu coração um caos, um transbordamento imenso,
uma loucura. Tudo tinha se passado como um sonho.”11
A loucura é, então, também um tipo de desmesura da lembrança.
Memórias de um louco é talvez, também, a loucura das memórias, ou da
memória: memória sem referente, memória não do exterior, do acon-
tecimento e do fato, mas do interior, do desejo, da lembrança; memó-
ria não tanto do objeto do desejo, mas do próprio sujeito desejante.
Reconhece-se aí o desafio do projeto romântico da confissão – empresa
de desnudamento da identidade subjetiva: empresa, por sua vez, de since-
ridade (“É um juramento que faço de dizer tudo”12) e de expressividade
(“estas páginas (…) encerram toda uma alma”13). Empresa, entretanto,
julgada impossível, considerada como uma tensão indissolúvel entre um
sujeito interior e anterior, e uma linguagem exterior, incapaz, então, de
indicar, do sujeito, o sentido próprio, o fundamento originário.
Eu diria outras coisas a vocês, bem mais belas e mais suaves, se eu pudesse
dizer tudo o que experimentava de amor, de êxtase, de pesar. Vocês são
capazes de dizer em palavras as batidas do coração?14
Como colocar em palavras as coisas para as quais não existe lingua-
gem, as impressões do coração, os mistérios da alma desconhecidos por
ela mesma?15
“Exprimir-se” é, então, uma tarefa impossível; não se saberia jamais
espremer as palavras ao ponto de extrair, de seu exterior, o sumo do
interior: do coração, bem como do pensamento.
Como meu pensamento, em seu delírio, voava alto, em regiões desconhe-
cidas pelos homens, onde não há nem mundos, nem planetas, nem sol! Eu
tinha um infinito mais imenso, se isso é possível, que o infinito de Deus,
onde a poesia se embalava e desdobrava suas asas numa atmosfera de amor
e de êxtase; e depois era preciso descer de novo dessas regiões sublimes
em direção às palavras – e como colocar em palavras essa harmonia que
se eleva no coração do poeta e os pensamentos de gigante que esmagam
as frases (…)?
(…) Quais as escalas para descer do infinito ao positivo? (…)
Então eu tinha momentos de tristeza e de desespero, eu sentia uma força
que me quebrava e uma fraqueza da qual eu tinha vergonha, pois minha
palavra não passava de um eco longínquo e debilitado do pensamento.16

123
Para aquele que recusa qualquer positivismo, a própria linguagem se
mostra ainda muito “acabada” e muito positiva. E reside aí, talvez, uma
outra, a máxima loucura de Memórias: desejar ex-primir uma alma,
uma interioridade que só saberia se exteriorizar: desejar de-finir o in-
finito. A loucura é ao mesmo tempo o inefável e o desejo de nomear
o inefável.
FUNÇÃO IRÔNICA DA LOUCURA
Se a linguagem é considerada impotente como expressão do sujeito,
ela não dissimula pelo menos um poder – o da nomeação – e, por isso,
o de domínio sobre o objeto. Alguém me nomeia: alguém me julga, al-
guém me classifica como louco. Mas eu posso, por minha vez, assumir o
poder de domínio inerente à linguagem e nomear, classificar os outros:
Eles… Rir de mim! Eles tão fracos, tão comuns, com o cérebro tão estreito!
(…) Eu, que me sentia grande como o mundo e que um só de meus pen-
samentos (…) poderia reduzir à poeira, pobre louco!17
Um louco! Isso causa horror. Quem é você, leitor? Em que categoria você
se alinha? Naquela dos tolos, ou naquela dos loucos? – Se lhe fosse dado
escolher, sua vaidade preferiria ainda a última condição.18
O narrador, ele mesmo, seria um louco ou um tolo? A resposta não
é dada, e a questão não é talvez uma simples questão retórica: ela será
colocada seriamente em um estrato diferente do texto.
Seja como for, a “loucura” se transforma aqui em ironia: o que quer
dizer que ela de fato não adere mais a seu sentido, toma uma distância
em relação a si mesma, um recuo estratégico em relação à condenação
que sofre. A loucura não é mais, de fato, o rosto da “alma”, a natureza
profunda ou a essência de uma subjetividade, mas uma máscara social,
um papel a representar. Sob a máscara da acusação, o acusado se trans-
forma em acusador, para apontar com o dedo o rosto descoberto dos
“tolos”: como seu inverso, a loucura aponta, não a razão, mas a tolice.
Tudo se passa como se a razão não existisse, ou existisse em baixo re-
levo; só se opõem as diferentes maneiras de ser aí o oposto: pela peque-
nez, como a categoria dos “tolos” (aquilo que se chama vulgarmente de
razão: o bom senso burguês, uma lógica de interesses); pela grandeza,
como a categoria dos “loucos”. O que entra na “loucura”, vê-se, é mais
do que um grão de complacência e de orgulho. Dizer “eu sou louco”
acaba, então, por ser dizer nesse contexto: “eu não sou tolo”. A loucu-
ra constitui, assim, a negação da negação estigmatizada sob o termo
“loucura”, e que se dá a ler numa reversão dos signos: “Seria errado ver

124
nisso outra coisa que não divertimentos de um pobre louco! Um louco!
E você, leitor, você talvez acaba de se casar, ou de pagar suas dívidas?”19
A escolha lexical se tornou, dessa maneira, uma operação estraté-
gica.20 Se a loucura consagra o poder que a linguagem tem de estig-
matizar, esse poder, fundado sobre uma estrutura mesma de oposição,
é também reversível. O texto flaubertiano não deixará de mobilizar o
poder irônico da antítese e do quiasma: instância negativa já de saída, a
loucura se tornará uma instância de negatividade, confundir-se-á com
a própria dinâmica da reversão da qual a língua é capaz, pelo princípio
da negatividade, constitutivo da linguagem como tal. É assim que o
bobo da corte diz a Luís XI, na peça de Flaubert, contemporânea de
Memórias de um louco: “Não é verdade, meu tio, que você fica bem con-
tente, quando chama um homem de louco? Belo argumento! Um louco!
Pois bem, um louco é um homem sábio, e um sábio, um louco, pois o
que é um louco? (…) Um louco é a mais bela invenção da sabedoria.”21
Então a linguagem, incapaz de exteriorizar a interioridade do sujei-
to, é capaz de reverter a antítese mesma do interior e do exterior: de
inverter suas relações de força. O uso flaubertiano do termo “loucura”
demonstra não somente que, em realidade, o fora é dentro: que isso
que a sociedade rejeita sob o nome de “loucura”, como seu exterior,
constitui de fato o próprio interior da subjetividade, mas ainda que os
não loucos não passam de tolos: que aqueles que acreditavam estar do
lado de dentro, dentro da sociedade e dentro da razão, na realidade só se
encontravam dentro do fora da tolice. Assim, “um louco é um homem
sábio, e um sábio, um louco”. Fora da sociedade, o narrador se consi-
dera, entretanto, “dentro do verdadeiro”. Nesse mundo revertido, ele
está, por conseguinte, dentro ou fora? Quem está dentro? Quem está
fora? Quem é louco? E quem não é? “(…) De que serve, pergunto de
verdade, um livro que não é nem instrutivo, nem divertido (…) mas
que fala de um louco, quer dizer, do mundo, esse grande idiota, que
gira há tantos séculos no espaço sem dar um passo?”22
A “loucura se generaliza”, mas daí se relativiza: ela não é mais que um
efeito de perspectiva e as perspectivas são múltiplas. “Coisa estranha
essa diversidade de opiniões, de sistemas, de crenças e de loucuras!”23
Aqui, ainda, a frequência lexical segue o movimento irônico do tex-
to; à medida que esse se desenvolve, o “louco” desaparece, em proveito
das “loucuras”: a essência do substantivo é desfeita por esse plural,
que a fragmenta e a desconstrói.

125
Há tantos amores na vida para o homem! Aos quatro anos, amor aos cava-
los, ao sol, às flores (…) aos dez, amor pela menina (…), aos treze, amor
por uma grande mulher com a boca cheia, pois me lembro que o que os
adolescentes amam até a loucura é um colo de mulher (…) Aos sessenta,
ama-se a prostituta (…), em direção à qual se lança um olhar de impotên-
cia, um lamento em direção ao passado (…)
Quantas loucuras dentro de um homem! Oh! Sem dúvida, a fantasia de um
arlequim não é mais variada nas suas nuances que o espírito humano o é
em suas loucuras.24
A loucura é a ilusão de poder subtrair qualquer coisa ao tempo; a
crença na eternidade, no absoluto: do amor ou de Deus. A loucura é,
por conseguinte, a ilusão em si, a crença sendo sempre crédula, é a per-
da de perspectivas, o relativo tomado como absoluto. A loucura não é
simplesmente o amor, mas a crença no amor. Se a temática da loucura
articula um: “eu sofro” (“loucura”), a ironia do narrador articula um:
“eu não creio” (“loucuras!”): eu duvido disso pelo qual eu sofro. “A
dúvida é a morte para as almas; é uma lepra que toma as raças des-
gastadas, é uma doença que vem da ciência e que conduz à loucura. A
loucura é a dúvida da razão; é talvez a própria razão!”25
Numa curiosa combinação, o texto tenta escrever, tanto como
Rousseau quanto como Voltaire e Descartes: eu sofro; eu não creio
naquilo por que sofro; eu duvido disso; eu duvido, então eu penso. “A
loucura é a dúvida da razão”; “minha vida é meu pensamento”.
Oh! como foi longo, esse pensamento! Como uma hidra, me devorou sob
todas as duas faces. Pensamento de luto e de amargura, pensamento de
palhaço que chora, pensamento de filósofo que medita… Ah! sim! quantas
horas decorreram na minha vida (…) a pensar, a duvidar!26
O narrador, assim, é construído à imagem do louco-palhaço que ele
mesmo descreve:
Tudo não passa, então, de trevas ao redor do homem; tudo é vazio e ele
gostaria de ter alguma coisa fixa; ele próprio rola nessa imensidão do vago
em que quereria parar; se agarra a tudo e tudo lhe falta; pátria, liberdade,
crença, Deus, virtude, ele teve tudo isso e tudo isso lhe caiu das mãos; ele
é como um louco que deixa cair uma jarra de cristal e que ri de todos os
pedaços que fez.27

IRONIA DA IRONIA: RETORICIDADE DA “LOUCURA”


A ironia flaubertiana – acabamos de ver – mobiliza o poder retórico
da linguagem. O narrador é bem consciente do jogo retórico de sua
fala, mas ele o concebe unicamente como um exercício de eloquência:

126
vou colocar sobre o papel (…) tudo o que se passa no pensamento e na
alma; risos e choros (…) os lamentos partidos a princípio do coração e apre-
sentados como uma pasta em períodos sonoros e lágrimas dissolvidas em
metáforas românticas.28
Aos olhos do narrador, a figura retórica é exterior e posterior àquilo
de que ela fala: ao significado, ao tema que a precede e a funda; da
mesma maneira que a linguagem seria exterior à alma. O tema seria,
então, a alma do texto, o sentido originário da figura. E o texto, uma
figura cujo tema nomearia a verdade. Uma vez que o jogo de signos
é subordinado, dessa maneira, a seu conteúdo significado, a retórica
aparece como subordinada à temática: redobrando-a, reforçando seu
efeito, numa eloquente continuidade.
Essa estética da ênfase, da eloquência e da plenitude tende natu-
ralmente para um tipo de delírio verbal: em direção ao excesso da
hipérbole. Mas o autor se defende de ter exagerado em seu dizer: se
ele utilizou a hipérbole, é porque o sentimento (o tema) é hiperbóli-
co, excede o poder da linguagem. Se a palavra parece exagerada, se a
figura retórica tem ar de “ultrapassar” o tema, é porque de fato o tema
é bem maior que a figura.
Somente você acreditará, talvez, em vários momentos, que a expressão é
forçada e o quadro obscurecido à vontade; lembre-se de que foi um louco
que escreveu estas páginas e, se a palavra parece frequentemente ultrapas-
sar o sentimento que ela exprime, é que, em outro lugar, ela se curvou ao
peso do coração.29
Leiamos de perto: “Lembre-se de que foi um louco que escreveu es-
tas páginas e, se a palavra parece frequentemente ultrapassar o senti-
mento que ela exprime, (…)”. A “palavra”: que palavra? Não seria pos-
sível considerar a posição “um louco (…) escreve estas páginas”, não
somente como causa, explicação, mas como antecedente daquela que se
segue: “e se a palavra ultrapassa o sentimento?” Ler, em outros termos:
lembre-se de que foi um louco que escreveu estas páginas e, se a palavra
(que eu acabo de pronunciar: a palavra “louco”) parece frequentemente
ultrapassar o sentimento que ela exprime, é que, em outro lugar, se curvou
ao peso do coração.
Nada na sintaxe exclui uma tal leitura. “Loucura”, ou “louco”, se dá
assim, de saída, como hipérbole. Como hipérbole que quer, é claro,
se justificar, ter crédito pela pressão, pelo “peso do coração”. Mas e se
o “peso do coração” for também, como pode muito bem ser, já uma
hipérbole, nada mais que apenas uma “palavra” ainda, que, muito fre-
quentemente, “ultrapassa o sentimento”? Uma vez que a questão foi a

127
“palavra”, uma vez que só há questão disto: palavras, como saber onde
está a palavra, onde está o sentimento? Onde está o sentimento senão
na palavra? Como poderíamos assinalar o coração da hipérbole, o tema
da figura? A coisa não é simples. Uma vez que entra no jogo, a retórica
faz a bola de neve e não para ali onde queremos, nos limites em que
acreditamos confiná-la.
A retórica é jogo estranho: sua regra é contornar a regra, ultrapassar
o código do jogo. “Se a palavra parece frequentemente ultrapassar o
sentimento que ela exprime, é que, em outro lugar, ela se curvou ao
peso do coração.” Se a hipérbole está ao alcance da vista, é porque,
em outro lugar, há o peso do coração. Aqui está a hipérbole. O peso do
coração não está aqui, ele está alhures. Alhures, mas onde? Não sabe-
remos jamais, a menos que nos deixemos ir com o signo, em direção
à figura de um outro signo, a menos que se consinta em reencontrar o
sentido ainda na hipérbole: “o peso do coração”. Se o peso do coração
e a palavra excessiva se revertem assim, quiasmaticamente, um sobre o
outro, não será mais possível paralisar o movimento de reversão, fixar
de uma vez por todas os lugares, saber qual dos dois vem em primei-
ro lugar, qual dos dois funda o outro. Não saberemos jamais, entre o
“peso do coração” e a palavra “louco”, qual dos dois frequentemente
ultrapassa o sentimento, que não é uma palavra, que não é uma retó-
rica, um suplemento: que não é exterior. A retoricidade da loucura age
de tal maneira que o exterior e o interior não sejam mais decidíveis:
ela desconstrói seu próprio sistema de oposição. Mas vê-se que não se
trata aqui de uma “retórica da loucura”, no sentido de uma eloquência
da “loucura”, mas antes de uma loucura da retórica: de seu movimento
ao mesmo tempo incessante e incontrolável, de seu reenvio infinito,
indefinido, de um signo a outro.
Movimento de deslocamento que, entre tema e figura, desloca a con-
tinuidade, interpõe um vazio, um tempo morto. “Há uma lacuna na
história, um verso a menos na elegia.”30
A retórica é a relação do infinito ao finito. Mas essa relação não é a
relação de expressão “impossível” que o narrador imagina: aquela de
“pensamentos de gigante que fazem as frases se curvarem”, que obri-
gam o poeta a “descer do infinito” ao “positivo”, para “diminuir esse
gigante que abraça o infinito”.31 O infinito não é em excesso: ele é, ao
contrário, uma caixa vazia, a partir da qual funciona o discurso. O infi-
nito não é um excesso temático: não é um significado excedente, mas

128
um significado em falta, um excesso de significante que não para de se
deslocar e de substituir um outro significante.
A figura não é essa frase que “faz curvar um pensamento de gigan-
te”: uma magreza retórica curvada pela espessura do tema: a figura é
a espessura pela qual o tema se furta, pela qual meu pensamento se
desloca e me escapa.
O sentido, de início, só se inscreve na hiância de sua desaparição, de
sua própria castração:
Nas noites, eu escutava durante muito tempo o vento que soprava lugubre-
mente nos grandes apartamentos vazios (…)
Eram visões amedrontadoras, a me deixar louco de terror. Eu tinha deitado
na casa de meu pai (…)
Minha porta se abriu por si mesma, alguém entrou. Eles eram muitos
(…) Estavam (…) cobertos por barbas negras e rudes, sem armas, mas
todos tinham uma lâmina de aço entre os dentes e, como se aproximaram
em círculo em torno do meu berço, seus dentes vieram a bater e isso foi
horrível. (…)
Em outro lugar, era um campo verde, ornado de flores, um rio compri-
do – eu estava com minha mãe, que caminhava na margem do rio; ela
caiu. Eu vi a água espumar, os círculos crescerem e desaparecerem de
repente (…)
Eu me inclinava de bruços sobre a erva para ver e não via nada (…) e es-
cutava os gritos: “Estou afogando! Estou afogando! Socorro!” A água corria,
corria, límpida…32
Só não há indiscrição porque há apagamento. A castração do senti-
do, o afogamento do significado, determina a flutuação, a substituição
e o deslocamento dos significantes. O apagamento da mãe determina
a inscrição de Maria, que se reencontra de fato, por metonímia, sob a
água, à beira do mar [mer] (à beira da mãe [mère]?) e da qual começa-
mos por salvar o casaco: retirá-lo da água. “Cada manhã, eu ia vê-la se
banhar. Eu a contemplava de longe, sob a água (…) meu olhar ficava
fixado nas marcas de seus pés e eu quase chorava vendo as ondas apa-
gá-las lentamente.”33
Maria: inscrição retórica, inscrição no significante, ao mesmo tempo
do desejo e da lei, uma vez que o nome Maria [Marie] comporta, ao
mesmo tempo, a mãe, Maria, a Virgem-Mãe, e o nome-do-pai: marido
[mari]; casada [mariée], interdita.
Assim, meu pensamento é, a princípio, uma retórica inconscien-
te, uma cegueira regulada, um jogo de significantes do qual não
sou o mestre:

129
Você se diz livre e a cada dia você age pressionado por mil coisas. Você vê
uma mulher, você a ama, você morre de amor; você é livre (…) para apa-
ziguar esses ardores que te devoram? Você é livre do seu pensamento? Mil
cadeias o retêm, mil aguilhões o espetam, mil entraves o detêm.34
Mas, sabe-se bem, se se afirma que o pensamento é determinado – na
ilusão de sua liberdade e de seu desconhecimento – por esses agui-
lhões, por esses entraves e essas cadeias, por essa retórica que funciona
através dele e que ele desconhece e ignora, como propor, ao mesmo
tempo, o sentido de seu próprio pensamento? Como escrever, no mes-
mo texto, este projeto, esta certeza: “vou contar a história da minha
vida”; “minha vida é meu pensamento”?
O discurso do narrador, vê-se, é um discurso contraditório: o tema
do pensamento não é transparente em si: não mais, aliás, que o é o
tema da loucura. Dizer “eu sou louco” é já, logicamente, uma con-
tradição em termos: ou bem se é louco e, então, aquilo que se diz (o
tema) é um nonsense; ou bem se enuncia alguma coisa de sensata e,
então, não se é “louco” (pelo menos, no momento em que se fala).
A enunciação contradiz e problematiza o enunciado. Pode-se, assim,
colocar a questão: quem é louco no texto? E quem pensa no texto? Mas
a formulação mesma dessa questão, nascida da contradição dentro do
tema, desqualifica a resposta temática, desqualifica o tema como res-
posta. Dentro da lógica do tema, com efeito, a contradição é insuportá-
vel. Mas a retórica suspende a lógica: ela habita a contradição temática,
funcionando segundo uma outra lógica, aquela do inconsciente que,
como se sabe, ignora a contradição. A retórica é, justamente, um modo
da contradição no texto. O “tema” não é nunca simples, nem simples-
mente reversível, numa dialética de dois termos. O tema, a retórica, é
justamente a não simplicidade, a não transparência por si mesmo. O
que quer dizer que a retórica não é nunca exterior ao tema: ela o ha-
bita, o atravessa de lado a lado, mas, habitando-o, o descentra, o atra-
vessa de outra maneira. No interior do tema, a retórica é um discurso
radicalmente outro.

Para tentar esboçar esse discurso outro, esse discurso que o texto
articula de outra maneira que não através do tema, para tentar desta-
car a ironia da escrita, e não mais do narrador, a ironia silenciosa, e
não mais aquela que fala, pode-se tentar reverter retoricamente o texto
sobre si mesmo, reverter o tema, como acabamos de fazer, suas cate-
gorias retóricas (a hipérbole, por exemplo); mas também virar o tema

130
sobre si mesmo, para descobrir suas fissuras, descobrir em que – e
como – ele não se assemelha a si mesmo.
Pode-se, por exemplo, colocar a questão: se a ironia do narrador é
a loucura da dúvida, o que essa loucura da dúvida esquece de pôr em
dúvida? Várias respostas são possíveis, das quais esta é a mais evidente:
o narrador esquece de colocar em dúvida… justamente sua loucura! A
loucura como aquilo que constitui sua definição. Pois não é suficien-
te se declarar “louco” para sê-lo. Como o sugere Jacques Lacan, de
maneira aforística: “Não é louco quem quer.”35 Então é precisamente
a loucura do herói que cabe ao leitor colocar – rigorosamente – em
dúvida. Pois, se loucura há – e isso poderia ser defendido – ela não
está lá onde o narrador crê captar sua imagem: ela não está no sentido
temático, ela é outra.
A loucura do narrador é uma definição, a princípio, negativa: no-
meando seu ser outro, sua diferença do mundo. Mas, uma vez que o
narrador reverte a afirmação e taxa de “loucura” o universo que o cir-
cunda, propondo-nos um livro que “fala de um louco, quer dizer, do
mundo”,36 o que se sobressai no texto não é a diferença do eu, mas sua
semelhança com o mundo que ele denuncia; semelhança que o narra-
dor, bem entendido, desconhece, mesmo se seu vocabulário – o léxico
da “loucura” – a sublinha. O narrador não percebe, então, que o mun-
do, como um espelho, lhe reenvia sua imagem invertida; que o mundo
só se opõe a ele em razão do próprio princípio motor que o rege: aqui-
lo que Hegel analisou sob a figura da “lei do coração”, a afirmação de
si como resistência aos outros, em razão da individualidade singular. O
narrador desconhece que o princípio que rege a “categoria dos tolos”,
por exemplo, não é um fato contingente e que lhe é estranho, mas o
mesmo princípio narcísico pelo qual se constituiu, por outro lado, a
“categoria dos loucos”. O interesse equivale ao orgulho: sob a égide
do narcisismo, os “tolos” e os “loucos” são talvez os mesmos. Por esse
desconhecimento que os rege, por essa cegueira temática (mas não
tematizada), o narrador se deixa capturar por sua imagem de si, aquela
da “bela alma” autossedutora e autodestruidora; ele ilustra rigorosa-
mente a definição da loucura proposta por Hegel:
O batimento do coração, para o bem-estar da humanidade, se passa, então,
dentro do desencadeamento de uma presunção demente (…) porque a
consciência projeta fora de si a perversão que ela própria é e se esforça para
considerá-la como um Outro.37

131
O narrador desconhece, então, a natureza de sua verdadeira loucu-
ra, que é precisamente a de não duvidar e, então, crer em sua loucura,
como diferença, o que quer dizer como ser-outro: definição negativa.
Mas ele esquece igualmente de colocar em dúvida sua loucura como
ser-próprio, definição positiva. Pois – cúmulo da ironia – “esse pobre
louco sem ideias fixas, sem opiniões positivas”,38 que jamais revelaria
“alguma tendência para alguma profissão”,39 assume a função do lou-
co romântico, na qualidade de atributo justamente positivo, trabalho,
vocação e carreira. “O romantismo [diz Georges Bataille] só pode fazer
da infelicidade uma forma nova de carreira”.40 É o mesmo que se pode
pensar da passagem admirável de Memórias do subsolo [L’homme souter-
rain], em que Dostoiévski analisa e desmistifica os mecanismos sutis
dessa “vocação” romântica:
Oh, se eu não tivesse feito nada por preguiça! Eu me faria respeitar por-
que teria sido capaz ao menos de ser preguiçoso; teria havido em mim
pelo menos uma qualidade, por assim dizer, positiva, na qual eu próprio
poderia crer. Questão: quem é ele? Resposta: um preguiçoso; como seria
agradável ouvir dizer isso de si! Isso quereria dizer que sou positivamente
definido, que haveria alguma coisa a dizer sobre mim. “Preguiçoso” – qual
nada, é um trabalho e uma vocação, é uma carreira. Não ridicularizem, é
assim. Eu seria, então, por direito, um membro do melhor clube, e encon-
traria minha ocupação no contínuo respeito por mim mesmo (…) Assim,
eu teria escolhido uma carreira, eu teria sido um preguiçoso e um glutão,
não apenas um simples glutão, mas, por exemplo, um glutão com simpa-
tia, com gosto por tudo o que é bom e por tudo o que é belo.41
Uma vez mais, a dialética dos loucos e dos tolos retorna ao Mesmo:
a negação da negação não passa de uma denegação, quer dizer, de fato,
uma confirmação do sistema; a recusa em escolher uma ocupação é
acrescida da necessidade análoga de ser alguém, ou seja, de assumir
uma função específica. Quer seja na categoria dos “loucos”, quer na
dos “tolos”, o jogo é o mesmo, e confirma a regra das “categorias”: a
busca da segurança de uma classificação, de uma identidade positiva. O
que não se pode aceitar é permanecer não classificado.
Memórias de um louco, por esse viés, é a história da ilusão de um
adjetivo que se transforma em substantivo; um louco: atributo trans-
formado em essência e, mais que isso, qualidade transformada em
qualificação. O erro do narrador foi o de ter colocado a loucura no
título: de se ter acreditado, mais que tudo, titular da loucura. Ou, se
há alguma coisa que a loucura não é, é um título: não se pode, com
efeito, ser nomeado aí. Contra o narrador, o texto conta, assim, a

132
história não de um título para a loucura, mas, antes, a de um louco
pelo título.
O título da loucura não tem outra autoridade que aquela do sonho
ou do fantasma. A “loucura” não é a constatação de um fato, mas o
lugar visado por uma aspiração: a “loucura” é um desejo de loucura,
uma precipitação cega em direção ao sentido, um sonho de excesso
e de hipérbole, de plenitude e de potência que, aí também, só busca
esquecer, denegar a castração: a castração do sentido.
Eu aspirava a plenos pulmões esse ar salgado e fresco do oceano que pe-
netra a alma com tanta energia (…) eu olhava a imensidade, o espaço, o
infinito (…)
Oh! Mas não é lá que está o horizonte sem limites, o imenso abismo. Oh!
Não, um abismo mais largo e mais profundo se abre diante de mim. Esse
abismo lá não tem tempestade; se houvesse uma tempestade, ele seria ple-
no – e ele é vazio!42
Criar a tempestade de uma loucura, ou a loucura de uma tempestade,
por um tumulto de escrita, uma embriaguez de hipérboles, uma orgia
de linguagem, não é dar a ilusão, justamente, da plenitude do vazio?
“Eu estava bêbado”, dirá, mais tarde, o narrador de Novembro: “Eu
estava louco, me imaginava grande (…) Era a vida mesma do Deus que
eu levava em minhas entranhas (…) tinha feito de mim mesmo um
templo para conter qualquer coisa de divino, o templo ficou vazio.”43
A “loucura” é uma hipérbole de si, por meio da embriaguez da lin-
guagem; é a ilusão de embriaguez que de fato recobre a impotência
para se tornar bêbado, a impotência para “ser louco”. O narrador de
Memórias se engana aí, talvez, mas não o louco do rei Luís XI: “Pois, o
que é um louco? É aquele que dorme em plena ventania e pensa que
faz calor, bebe água e pensa beber vinho.”44
Assim, atenuando o tema da ilusão, o narrador é de fato vítima da
última ilusão de sua própria “loucura”: ilusão de diferença (definição
negativa); ilusão de identidade (definição positiva); ilusão de plenitu-
de e de embriaguez. A loucura é, ainda aí, a crença: crença de que se é
idêntico a si mesmo e de que se difere dos outros; crença na vertigem
da embriaguez, quando só se bebeu água; crença de que se é louco,
quando não se é, ou quando se é tão pouco. Mas paradoxo: aquele que
se crê louco, uma vez que ele não é louco, é louco – pelo simples fato
de essa crença existir: louco, não porque ele se crê louco, mas porque,
simplesmente, ele se crê; se identifica a uma sombra de imagem, num

133
lago ou num espelho; se aliena, então, devido à própria loucura da
identificação especular.45
Assim, atenuando a ilusão, a ironia do narrador só faz reforçar a
estrutura e o efeito da ilusão, uma vez que ela acrescenta às outras
a ilusão de não ter mais ilusões: a crença de que não se tem mais cren-
ças. Se a ironia do narrador consistia em sua loucura da dúvida, a
ingenuidade de sua ironia – a ironia do texto – consiste no fato de que
sua verdadeira loucura lhe escapa.
Assim também, através de seu pensamento, o narrador conta uma
história que não pensa: se conta como impensada. “O desejo [diz
Emmanuel Levinas] não é mais que o fato de pensar que não se
pensa”.46 O desejo é talvez também a loucura. Nessa estranha rela-
ção – constitutiva da retórica – entre pensamento e desejo, entre es-
crita e loucura, o texto impensa [impense] ativamente o pensamento
do narrador. Em sua mensagem temática, “eu penso que eu duvido”, o
narrador esquece ainda de colocar em dúvida justamente o “eu penso”.
Mas o texto o faz por ele, revertendo teoricamente o dito: “eu penso
que eu duvido” escreve aí “eu duvido que eu penso”. Paradoxalmente,
o tema da loucura se articula nesse texto a uma fórmula cartesiana:
“penso, logo sou”. Mas a ironia do texto, a maneira pela qual a lou-
cura não se diz aí, mas aí funciona retoricamente, se articularia, antes,
a uma fórmula lacaniana: “Penso onde não sou, então, sou onde não
penso (…) Não sou ali onde sou o joguete do meu pensamento, penso
naquilo que sou, ali onde não penso pensar.”47
TEMÁTICA E RETÓRICA
Acabamos de propor três leituras diferentes de Memórias de um lou-
co. Nessa pluralidade de decifrações, não se trataria da simples coexis-
tência pacífica de diversos aspectos de um texto, mas, antes, da con-
frontação estratégica de diferentes posições de sentido. O texto foi aqui
abordado como campo de forças e de deslocamento de intensidades;
sua leitura só poderia ser intervenção no conflito, o que quer dizer
subversão, a cada vez, de uma leitura precedente. Entre as três leitu-
ras, não é possível apontar uma como exclusiva ou privilegiada, uma
vez que todas são interdependentes; mais uma leitura se complica,
mais ela depende de uma outra, que ela tem por tarefa desconstruir,
explicitando aí um modo específico de ilusão ou de erro. Ainda que
sucessivamente apresentadas, as três decifrações não constituem uma
cronologia, ou uma evolução no devir do texto. Elas existem todas
juntas, coabitando o espaço textual.

134
Três proposições de sentido diferentes. 1) A interpretação temática
que o eu-herói faz de sua “loucura”; 2) A interpretação irônica que o
eu-narrador propõe sobre a loucura do eu-herói, desconstruindo re-
toricamente sua leitura temática; 3) A interpretação irônica da própria
ironia do narrador, demonstrando como a ironia do texto descons-
trói – retoricamente – a ironia tematizada pela voz do narrador.
Se a voz do narrador desencadeou uma reversão, um quiasmo retóri-
co-irônico do tema da loucura do herói, esse gesto retórico de reversão
foi, por sua vez, tematizado pelo narrador, articulado em um enuncia-
do explícito: o tema da loucura da dúvida. De maneira que, ainda que
o eu-narrador desmistifique ironicamente, retoricamente, o eu-herói,
a relação do narrador consigo mesmo é ainda uma relação mistificada,
uma relação essencialmente temática: de consciência e de presença de
si em sua loucura da dúvida.
Dessa maneira, a posição temática e a posição retórica do sentido são
confrontadas e contestadas a cada vez, em duas retomadas, em dois
níveis de leituras diferentes: na ironia do narrador e depois na ironia
do texto. Para retomar ainda, nesse sentido, o movimento estratégico
de nossas três leituras: lemos, a princípio, na perspectiva do herói, o
ponto de vista temático; em seguida, o ponto de vista desmistifican-
te do narrador, sua reinscrição retórica (irônica) da leitura temática
do herói, mas também a tematização dessa reinscrição retórica; num
terceiro tempo, a ironia do texto deslocava – retoricamente – a ironia
tematizada no texto: a escrita inscrevia, assim, a retorização (irônica)
da tematização da ironia do narrador.
Retórica e temática estão, assim, engajadas num jogo que não é de
simetria, que não é dialético. O tema não tem poder de captura sobre a
retórica, ele só pode desconhecê-la e não pode, então, desconstruí-la.
Em compensação, se a retórica escreve frequentemente a desconstru-
ção, o descentramento do tema, ela é sempre pega desprevenida por
sua própria tematização, que lhe remove a força onírica e a anula. Só
o tema existe, nas categorias da presença e da consciência. A retórica
não pode se tornar consciente de si, sob pena de se perder, de perder
seu efeito especificamente retórico. A retórica não pode, por si mes-
ma, dizer o que ela tem de próprio: ela não pode saber o que sabe,
ela não pode, então, se concluir, atingir a calma de uma verdade ter-
minal. Cada movimento retórico, atingindo a consciência, explicitan-
do seu sentido, parando em um pensamento acabado, torna-se tema,

135
que por sua vez virá a ser desmistificado por uma outra retórica tex-
tual, por uma outra retórica impensável, impensada.48
O erro do narrador seria o de se crer situado no eixo comum da re-
tórica e da temática de sua “loucura”. Ora, a retórica e a temática não
funcionam num mesmo plano: porque elas se situam em dois níveis
radicalmente diferentes, seu eixo comum não existe em nenhum lugar.
A relação que, ao mesmo tempo, as reúne e as separa é semelhante à
relação, analisada por Freud, entre o “trabalho do sonho” e o “pensa-
mento da vigília”: de um a outro, há uma “diferença de natureza” tal
que “não se pode compará-los”. O “trabalho do sonho” (como a retóri-
ca) “não pensa nem calcula: de uma maneira geral, ele não julga; ele se
limita a transformar”.49
Os elementos que nos pareciam essenciais para o conteúdo só desempe-
nhavam nos pensamentos do sonho um papel muito apagado.
Inversamente (…) O sonho é centrado de outro modo, seu conteúdo é arran-
jado em torno de outros elementos que não os pensamentos do sonho.50
Do mesmo modo, os elementos que parecem essenciais para o “con-
teúdo”, para a temática de um texto, podem ser apenas secundários
para o pensamento propriamente textual: aquilo que se sobressai como
central no conteúdo muito frequentemente não o é: o trabalho espe-
cificamente textual, a retoricidade do texto é centrada, de outro modo.
O “conteúdo do sonho”, escreve ainda Freud, e os “pensamentos do
sonho” (modo de pensamento especificamente do sono) “se mostram
como duas exposições do mesmo fato, em duas línguas diferentes”.51 Seria
possível ainda dizer que a temática e a retórica são, elas também, duas
articulações do mesmo texto, em duas línguas diferentes. Em si mesmas,
as duas línguas não saberiam nem se entender, nem comunicar: só a
intervenção de um intérprete poderia traduzi-las, uma dentro da outra.
O trabalho do texto é, assim, homólogo ao trabalho do sonho. Ora,
se o sonho, como se sabe, tem por função maior ser o “guardião do
sono”,52 realizar um desejo de dormir, esse desejo não se realiza sem
obstáculos. “Não é pouca coisa [como afirma Nietzsche] saber dormir:
é preciso começar por ficar acordado o dia todo.”53 Pode-se dizer que a
temática, ela também, tem por função velar para nos fazer dormir, para
preservar a potência de sono que a linguagem veicula? Pois, por sua
própria claridade, o tema cega; ele tem por tarefa ocultar a retoricidade
do texto, tornar a retórica literalmente ilegível. A retórica, em compen-
sação, é tudo aquilo que, no tema, desfunciona, tudo aquilo pelo qual
o tema não funciona: inacaba-se.

136
É por isso que a tarefa da leitura é, a princípio, encontrar o tema,
mas, em seguida, procurar perdê-lo. Ora, algumas vezes perder o
tema é mais difícil que encontrá-lo.54

Perder o tema: não é esse o pensamento delineado, precisamente,
pelo texto de Flaubert, em seu conjunto? A loucura joga, o delírio es-
cava as figuras mais e mais dementes dos últimos livros de Flaubert:
Bouvard e Pécuchet, santo Julien l’Hospitalier, ou mesmo Felicité, que
delira sobre um papagaio que ela crê ser o Espírito Santo. O delírio
escava, mas o enunciado da loucura, a própria palavra “loucura” de-
sapareceu. À medida que a loucura aumentou, o tema da loucura se
apagou, perdido.
Mas, já em Memórias de um louco, o movimento retórico da loucura
é o de apagar seu sentido, o de perder seu significado. O texto da “lou-
cura” perde seu título, a loucura perde o título como autoridade de
sentido. O signo “loucura” não cessa de se negar e de se apagar como
conceito, ou seja, como idêntico a si mesmo. Tudo se passa como se as
memórias quisessem, na realidade, contar o fracasso das memórias de
um louco em nomear o sentido próprio da loucura. “É um louco”, nos
é dito na abertura do livro, “que escreveu estas páginas”: ilusão de au-
tonomia do sujeito da loucura, assegurada por seu ser (“é um louco”)
e que crê determinar a escrita (“que escreveu estas páginas”) como sua
subordinada relativa. Mas, pela ação do texto, o “escrever” subverte e
perde o “ser”, o “ser” da “loucura”, a “loucura” na qualidade de sujei-
to, tema ou sentido: centro significado do texto.
A “loucura” termina por concretizar – emblematicamente – o des-
lizamento do sentido, e sua fuga, a cada vez que se crê agarrá-lo; o
lexema “loucura” polariza, assim, a tensão insolúvel entre a vontade,
o desejo irredutível de nomear veridicamente, e aquele que, como tex-
to, jogo, significante, retórico, escapa à verdade.
A loucura não é origem da escrita, causa do sentido, mas efeito de
discurso: como, aliás, o próprio sujeito. A questão de Memórias de um
louco poderia, aqui também, ser articulada à problemática e à lingua-
gem lacanianas:
O lugar que eu ocupo como sujeito de significante é, com relação àquele
que eu ocupo como sujeito de significado, concêntrico ou excêntrico? – Eis
a questão. Não se trata de saber se eu falo de mim de maneira conforme

137
àquilo que sou, mas se, quando eu o falo, eu sou o mesmo que aquele de
quem eu falo.55
A loucura de Memórias de um louco é uma excentricidade do sujeito
com relação ao tema do qual ele fala; o signo “loucura” só se diz por-
que exclui o sujeito: diz o sujeito fora do sentido. O espaço de Memórias
de um louco é um espaço em que o eu-significado não cessa de desapa-
recer; um espaço onde o escrever da “loucura” não se deixa preceder
por seu ser.
É por essa razão, sem dúvida, que, procurando onde começa seu ser,
onde começa sua loucura, o narrador só pode re-começar sua história,
descobrir a cada vez que a escrita já começou:
Capítulo I
Vou colocar sobre o papel (…) minhas ideias e minhas lembranças…56
Capítulo II
Vou, então, escrever a história da minha vida.57
Capítulo IX
Aqui começam verdadeiramente as Memórias…58
Capítulo XV
Mas vou subir mais alto, (…) O fragmento que se vai ler foi composto
em dezembro passado, antes que eu tivesse a ideia de fazer Memórias de
um louco.59
O lugar suposto da partida, da origem, do próprio, daquilo que ad-
vém, é sempre – já – na figura de um recomeço, o recomeço da figura;
de uma figura que é erro e mentira; de uma figura que cerne, não a
identidade de um passado, nem o passado de uma identidade, mas
a passagem, o traço de uma linguagem: a figura de um passado que
jamais teve lugar, que jamais foi presente:
Qual! Nada disso retornará? (…) Eu me lembrava daquelas tardes de ve-
rão longas e quentes, quando eu lhe falava sem que ela duvidasse que eu
a amava (…) Como ela pôde ver, de fato, que eu a amava, pois eu não a
amava então, e, em tudo que eu lhe disse, eu menti; era agora que eu a amava,
que eu a desejava.60
Adeus! E, entretanto, como eu a teria amado! Minha alma se conforma com
as delícias de todas as loucuras que meu amor inventa. Adeus!61
Memórias só desemboca na loucura do “futuro do pretérito”: “como
eu a teria amado!” O passado do indicativo, o passado no indicativo
é mentira: “Pois eu não a amava, então, e em tudo o que eu lhe disse,
eu menti.”
Mas o que é a mentira aqui, senão o próprio tempo, o tempo como
dissensão na linguagem, corrosão da presença e da permanência do

138
sentido? “Oh, sinos! Vocês soarão, então, também por minha morte
e, um minuto depois, por um batismo; vocês são assim uma derrisão,
como o resto é uma mentira.”62 “Se eu lhe dissesse que já amei outras
mulheres, eu mentiria. Eu acreditei nisso, entretanto.”63
“Eu mentiria”; “eu lhe menti”. É evidente que a mentira do “eu” ao
“você” não é uma mentira simples, não é psicológica. “Eu menti” quer
dizer: “eu acreditei”; eu acreditei no sentido e na linguagem, como se
o tempo – a morte – não passasse por aí, como se a língua não fosse
uma ruptura fundamental consigo mesma. A “mentira” é, então, a não
integridade do tema, que constitui precisamente a retórica: a não coinci-
dência do tema consigo mesmo, da palavra consigo mesma, o arbitrá-
rio do signo, o deslocamento infinito dos significantes e, então, a não
integridade dos significados.
A mentira, constituindo, assim, necessariamente, linguisticamente
(e não psicologicamente), a própria base da relação autor-leitor, faz
dessa relação uma relação também retórica: relação não de transparên-
cia (de significados) e de presença (de enunciados), mas de interpre-
tação, de deslocamento, de mutação. “Eu lhe menti”, pois nem meu
pensamento, nem meu passado se sabem: minha memória também me
mente, pois, ela também, funciona retoricamente, e não tematicamente.
“Mentir” é, então, precisamente, escrever o próprio texto de
Memórias de um louco: escrever uma loucura que não tem memória;
descobrir, sondando a loucura do passado, até que ponto eu já me
esqueci; recomeçar, por isso – e reiteradamente – as memórias de meu
próprio esquecimento.

Maio de 1974.

NOTAS

1  Gustave Flaubert, Mémoires d’un fou, em Oeuvres complètes, Paris, Ed. du Seuil,
1964, I, p. 30, (Coleção L’Intégrale). Salvo indicação contrária, as referências [indi-
cando apenas tomo e/ou número de página] dos textos citados a seguir reenviam a
essa edição.
2  III, p. 232.
3  XXII, p. 247.
4  X, p. 237. (Salvo indicação contrária, grifo meu).
5  IV, p. 233.

139
6  V, p. 234.
7  III t., p. 232. (Grifo de Flaubert).
8  III t., p. 232-33.
9  II t., p. 230.
10  II t., p. 230-232.
11  XIV, p. 239.
12  XV, p. 239.
13  Dedicatória, p. 230.
14  XXI, p. 247.
15  XIII, p. 238.
16  II, p. 231.
17  III, p. 232.
18  I, p. 230.
19  I, p. 230.
20  Cf. a análise mais desenvolvida dessa mesma operação em Stendhal, em
Shoshana Felman, La “folie” dans l’oeuvre romanesque de Stendhal, Paris, Corti, 1971,
cap. V, VI.
21 Flaubert, Loys XI, em Oeuvres complètes, op. cit., I t., p. 132.
22  I, p. 230.
23  XX, p. 244.
24  XV, p. 241.
25  XIX, p. 244.
26  II, p. 230.
27  XX, p. 244.
28  I, p. 230.
29  Dedicatória, p. 230.
30  XV, p. 241.
31  II, p. 231.
32  III, IV, p. 233.
33  X, p. 237.
34  XX, p. 244.
35  Jacques Lacan, Écrits, Paris, Seuil, 1966, p. 176.
36  I, p. 230.

140
37  Georg Hegel, La Phénoménologie de l’esprit, Paris, Aubier-Montaigne, I t., p. 309.
(Trad. fr. por J. Hyppolite).
38  II, p. 230.
39  III, p. 233.
40  Georges Bataille, Ouevres complètes, op. cit., I t., p. 526.
41  Fiódor Dostoiévski, L’homme souterrain, 1a parte, cap. VI.
42  II, p. 231.
43 Flaubert, Novembre, em Ouevres complètes, I t., p. 253.
44  Idem, Loys XI, p. 132.
45  Cf. o aforismo lacaniano, que toma aqui toda sua pertinência: “se um homem
que se considera um rei é louco, um rei que se considera um rei não o é menos”
(Lacan, Écrits, op. cit., p. 170).
46  Emmanuel Levinas, Totalité et infini. Essai sur l’extériorité, La Haye, M.
Nijhoff, 1961.
47 Lacan, Écrits, op. cit., p. 517.
48  Isso, bem entendido, não exclui o meu próprio discurso crítico que, por sua
vez, só pode tematizar a ironia do texto, e que terá, então, que ser, ele também, des-
construído. É nisto que a terceira leitura se assemelha às duas primeiras: é porque ela
não é, de jeito nenhum, privilegiada ou definitiva: não há leitura última.
49  Sigmund Freud, L’Interprétation des rêves, Paris, PUF, 1971, cap. VI, p. 432.
(Trad. fr. I. Meyerson, rev. D. Berger).
50  Ibidem, cap. VI, p. 263. (Grifo meu).
51  Ibidem, cap. VI, p. 241.
52  Ibidem, cap VII.
53  Friedrich Nietzsche, Des chaires de la vertu, em Ainsi parlait Zaratustra, op. cit.,
1a parte, p. 38.
54  Cf., na mesma direção, a belíssima passagem em que Heidegger comenta ao
mesmo tempo sobre a loucura e o pensamento de Nietzsche: “para que nós possa-
mos somente reencontrar o pensamento de Nietzsche, é preciso primeiro achá-lo.
Não é porque uma vez tivemos sucesso em achá-lo que teremos o direito de procu-
rar perder de novo o que esse pensamento pensou. Isso – perdê-lo – é mais difícil
que aquilo: achar (…) Nietzsche tinha o saber sobre essas relações entre descobrir,
achar e perder (…) O que ele tinha ainda a dizer, sob esse ponto de vista, está
em um dos bilhetes que ele enviou a seus amigos, em torno do dia 4 de janeiro
de 1889, quando ele desabou pelas ruas e naufragou na loucura. Esses bilhetes
são chamados de “bilhetes da loucura”. Segundo o modo de representação médi-
co-científica, essa designação é exata. Para o pensamento, ela continua, entretanto,

141
insuficiente. Um desses bilhetes é endereçado a Danois Georg Brandès, que, no ano
de 1818, em Copenhague, publicou um de seus primeiros cursos sobre Nietzsche.
 Enviado de Turin, 4-1-89
 Ah, meu amigo Georg!
 Depois que você me descobriu, não foi uma exploração me encontrar: a dificuldade
agora é de me perder…
 O CRUCIFICADO
 Nietzsche saberia que alguma coisa de inesquecível teria vindo para ele nas pala-
vras? Alguma coisa de inesquecível para o pensamento? Alguma coisa de inesquecí-
vel para o pensamento em direção à qual o pensamento deve sempre fazer um novo
retorno, quanto mais ela se torna pensante?” [Martin Heidegger, Qu’appelle-t-on pen-
ser? Paris, PUF, 1973, p. 50-51, (Trad. fr. A. Becker e G. Granel)].
55 Lacan, Écrits, op. cit., p. 516.
56  p. 230.
57  p. 230.
58  p. 236.
59  p. 239.
60  XXI, p. 246.
61  XXII, p. 247.
62  XXIII, p. 247.
63  XV, p. 239.

142
MODERNIDADE DO LUGAR COMUM
ESCREVER, CALAR

É muito fácil dizer o que parece ser um lugar comum. Mas


aquilo que ele é, em realidade, quem poderá dizê-lo?
Léon Bloy
Poderia parecer paradoxal falar de uma modernidade do lugar co-
mum. O que há de mais oposto à modernidade que a repetição mecâ-
nica de uma fórmula feita, de uma linguagem estereotipada? A moder-
nidade não consiste na novidade, ou seja, na tentativa de romper com
os clichês do passado e de escapar, tanto quanto possível, à memória
cultural? O lugar comum não é o encerramento mesmo dessa memória
nos piores automatismos, a trilha, no interior da linguagem, de um já
lido, já visto, já dito? Como, então, a modernidade pode ser associada
à reprodução desse já?
Poderia parecer ainda mais paradoxal atribuir a modernidade do lu-
gar comum a Flaubert. Escrever não é, para Flaubert, mais que para
qualquer outro escritor, fazer declaração de ruptura com o lugar co-
mum? Flaubert não compôs o Dicionário de ideias feitas [Dictionnaire
des idées reçues] – apologia da canalhice humana com todas as suas
faces – a fim de que, “uma vez lido, não se ousaria mais falar do medo
de dizer naturalmente uma das frases que ali se encontram”?1 É com
uma ambição semelhante, numa perspectiva parecida de um utópi-
co silêncio que Léon Bloy estabelecerá, algumas dezenas de anos de-
pois de Flaubert, em torno da virada do século, sua Exégèse des lieux
communs: “De que se trata, de fato, senão de arrancar a língua dos
imbecis, dos formidáveis idiotas deste século (…)? Obter enfim o mu-
tismo do Burguês, que sonho!”2
Escrever – a fim de que “não se ouse mais falar”: estabelecer o pró-
prio repertório de banalidades para se calar: a par da repugnância mes-
ma que o clichê lhe inspirava, Flaubert designou esse como o lugar
privilegiado de onde se coloca uma questão decisiva: aquela sobre as
relações entre a escrita e o silêncio.
Mas essa questão devia causar, a partir de Flaubert e até a consciên-
cia moderna, uma reversão de perspectiva com relação ao clichê em
si. Pois, se Flaubert quisesse, antes de tudo, sujeitar seu leitor e se
sujeitar ao silêncio do clichê, fazer silêncio no lugar comum, a questão
que se colocaria seria a de saber em que medida e a que preço um tal
silêncio seria possível. É para não se mensurar a partir dessa questão

143
que Flaubert escreveu: ele só falou para aprender se calar seria possí-
vel. Uma preocupação semelhante, em Beckett, rege e faz falar o nar-
rador de O inominável: “Em suma: eu vou poder falar de mim, nessa
direção (…)? Jamais vou poder me calar? Há uma relação entre essas
duas questões? Amam-se os desafios. E eis vários, talvez um só.”3 É a
partir de uma tal questão e de uma tal exigência que Flaubert devia
compreender que era preciso calar precisamente porque calar não era
possível; mas também que o silêncio, longe de ser a negação da pala-
vra, atravessa-a de lado a lado, e que o lugar comum, mais que qual-
quer outro, era profundamente habitado por ele. Reunir-se, portanto,
ao lugar comum em sua modernidade, seria descobrir aquilo que, do
clichê, seria, no entanto, imprevisível: compreender que o déjà vu não
tinha ainda sido visto, que o já lido não tinha ainda, como tal, sido
lido; compreender que a tarefa do escritor era, então, a de procurar
ler, reencontrar e reunir – na linguagem – esse lugar, singularmente
comum, de seu próprio anonimato.
LOUCURA, ORIGINALIDADE, MODERNIDADE
Uma tal descoberta, que desemboca em uma verdadeira revolução, se
esboça, parece-me, no texto Novembro: texto decisivo que marca uma
virada não somente para a escritura flaubertiana, mas para o impac-
to que Flaubert teve sobre a consciência literária e crítica. É evidente
que uma tal descoberta não pode ser plenamente consciente nem ple-
namente clarividente: não se trata de um fenômeno do pensamento,
mas de um acontecimento de escrita. É só depois que Flaubert poderá
mensurar a importância de Novembro, que, entretanto, ele se recusou a
publicar durante sua vida. Em 2 de dezembro de 1846, quatro anos de-
pois de o ter terminado, ele escreverá a Louise Colet: “Se você escutou
bem Novembro, você talvez tenha adivinhado mil coisas indizíveis que
explicam talvez o que eu sou. Mas essa idade passou, essa obra foi o
encerramento da minha juventude. O que me resta dela é pouca coisa,
mas mantém-se firme.”4
Para compreender Novembro (1842), é preciso, então, começar por
situá-lo nesse ponto de junção do texto flaubertiano, que deveria mar-
car, nas palavras do próprio autor, a abertura para uma maturidade:
a inscrição de uma virada, pela qual a escrita, só depois, se encon-
trou transformada, reorientada. Novembro se compreenderia melhor
com relação àquilo que o precede, notadamente, Memórias de um louco
(1838), que ele retoma, depois de quatro anos de intervalo. A fábula,
grosso modo, é a mesma, a da iniciação amorosa que desemboca na

144
frustração de uma vida cujo eixo é unicamente a memória, a amargura
de uma lembrança sem amanhã. Do ponto de vista temático, Memórias
de um louco prefigura a obra inteira de Flaubert: o primeiro texto disse
tudo. Por que, então, retomá-lo? Por que reescrever a mesma história?5
Será preciso tentar ver em que a retomada modifica o texto, e como
a repetição interpreta – e transforma – aquilo que ela copia; como a
cópia desconstrói o modelo: pois Novembro é, antes de tudo, uma re-
leitura de Memórias de um louco.
Ora, lembremo-lo: metáfora da originalidade, a “loucura”, em
Memórias de um louco, se dá, de forma diferente do clichê, pela trans-
gressão dos lugares comuns da sociedade. Ela constitui, curiosamente,
um tipo de garantia, ao mesmo tempo de poeticidade e de moderni-
dade. A “loucura” é, então, literalmente “original”, nos dois sentidos
do termo, tal como o dicionário Robert os define: 1) “que parece não
derivar de nada anterior, que não se parece com outra coisa, é único”;
2) “por ext. – Marcado de caracteres novos e singulares a ponto de
parecer bizarro, pouco normal”. “Pois o vento do século é a loucura
[dirá Baudelaire], o barômetro da razão moderna marca tempestade.”6
A tarefa da “loucura”, em Memórias de um louco, é a de fazer soprar o
vento do século sobre as páginas do livro.
Todos esses ecos desconhecidos da suntuosa dignidade das literaturas clás-
sicas tinham para mim um perfume de novidade, uma atração que me lan-
çava sem cessar em direção a essa poesia gigante, que lhes causa vertigem
e os faz caírem no abismo sem fundo do infinito.7
Mas esse “perfume de novidade” que os textos clássicos ignoram é
justamente veiculado pela leitura:
Eu me retirava, com um livro de versos, um romance, a poesia (…) Eu me
lembro com qual voluptuosidade devorava então as páginas de Byron e de
Werther, com que transporte li Hamlet, Romeu e as obras mais brilhantes da
nossa época, todas essas obras enfim que provocam delícias na alma e que
e a fazem arder de entusiasmo.
Eu me nutria, então, dessa poesia áspera do Norte, que ressoa tão bem
quanto as ondas do mar, nas obras de Byron. Frequentemente retinha, da
primeira leitura, fragmentos inteiros e os repetia para mim mesmo, como
uma canção que nos encantou e cuja melodia nos persegue para sempre.8
Mal da modernidade, axioma de originalidade, a “loucura” fun-
ciona assim, ao mesmo tempo, como uma marca de gênero (diário,
memórias, ou confissões, poesia lírica, subjetivista), ou seja, como re-
ferência a um certo espaço de leitura, como um sinal de literalidade:
ora, esse funcionamento só se tornou possível porque a “loucura”

145
é, por sua vez, instituída como lugar comum, estereótipo, clichê do
romantismo; marca de originalidade, mas marca antes de tudo, ou
seja, sinal convencional, assinalando-se, antes de tudo, por seu cará-
ter repetitivo e sua capacidade de iteração. A ambição da “loucura”
romântica, que subverte todo código para dizer precisamente aquilo
que jamais se deixará codificar, se confronta, então, com a tentativa
paradoxal do romantismo de codificar até a recusa do código, de,
assim, instituir a “loucura” como um código, querido ou pretendido
secreto, ou seja, individual.
À semelhança de tantos textos do romantismo,9 que repercutem a
voga do wertherismo e do byronismo por uma leitura ingênua e mis-
tificante, Memórias de um louco inscreve, então, uma contradição da
qual não se tem consciência: o sujeito emprega o código – da “loucu-
ra” – para significar a subversão de todo código; o narrador se coloca,
retoricamente, no clichê, para afirmar, tematicamente, sua recusa de
todo clichê. A intenção de significar a diferença é, em si mesma, um
lugar comum, uma marca de semelhança. Assim, Memórias de um louco
e a tradição inteira – nessa literatura de época – do lugar comum da
loucura funcionam exatamente como, na história de Poe, a carta des-
viada, roubada: o lugar comum do louco, do eu que se queria proprie-
tário ou titular da loucura, poderia equivaler literalmente ao roubo da
dita carta, mas, ao mesmo tempo, esse lugar comum contém também o
ponto despercebido da evidência: é a evidência de seu clichê mesmo que
permanece escondida, que não extrai daí as consequências, permitindo
o funcionamento do romantismo na qualidade de mito de unicidade e
ilusão de originalidade. “A carta roubada”, o lugar comum da “loucu-
ra”, encarna o tipo de paradoxo do impensado do romantismo: de uma
retórica que sofre menos do inefável que de um defeito de reflexão
crítica sobre a linguagem e de um fundamental desconhecimento do
lugar comum como tal.
LOUCURA E LUGAR COMUM
Assim, e tipicamente, o empreendimento da loucura em Memórias
de um louco é duplo e contraditório: pelo significado, a metáfora do
“louco” designa um lugar de unicidade, de alteridade, mas, pelo sig-
nificante, ela designa, ao contrário, um lugar de iteração e de confor-
midade. A “loucura” marca, então, o lugar lacunar, no seio mesmo da
linguagem do texto, por onde o significante se divorcia do significado,
e a enunciação se separa do enunciado.

146
Essa reversão do texto por si mesmo, essa contradição que o rege, é o
ponto cego de Memórias de um louco, a partir do qual o texto funciona.
Mas Novembro, ao copiar a retórica da “loucura”, percebe confusamen-
te a cegueira que ali subjaz e dá a ler suas próprias discrepâncias, seus
próprios paradoxos. A exigência de originalidade se justapõe, por con-
tiguidade metonímica e narrativa, às descrições das alegrias da leitura,
de maneira que o desejo de exclusividade da expressão surge quase
literalmente da repetição completamente mecânica da recitação:
(…) as páginas em que outros permaneciam frios me transportavam (…)
eu me assolava aí, por prazer, o espírito, eu as recitava para mim à beira
do mar (…)
Infelicidade (…) àquele que não sabe de cor as estrofes amorosas para se
repeti-las à luz do luar! É belo (…) ter as paixões em sua expressão mais
sublime, amar os amores que o gênio tornou imortais.
Por isso, (…) eu tentava descobrir (…) as palavras que os outros homens não
entendiam e abria a orelha para escutar a revelação de sua harmonia; eu
compunha com as nuvens e o sol quadros enormes, que nenhuma lingua-
gem podia expressar e, nas ações humanas eu percebia igualmente as rela-
ções e as antíteses cuja precisão luminosa de repente me deslumbrava.10
Mas o inédito se diz por demais: a espontaneidade, realizando-se, se
descobre estereotipada:
Sim, pareceu-me outrora que eu era um gênio, (…) o estilo corria de mi-
nha pluma como o sangue nas minhas veias (…) à mínima ranhura do
belo, uma melodia pura se apossava de mim, (…) eu tinha na cabeça os
dramas compostos (…) a humanidade ressoava em mim com todos os seus
ecos (…) eu era abalado por ela, deslumbrado; mas quando eu encontrava
nos outros os pensamentos e até mesmo as formas que eu havia concebido,
eu caía, sem transição, num desencorajamento sem fundo; eu tinha acre-
ditado ser igual a eles e não era mais que seu copista! Eu passava, então, da
embriaguez do gênio para o sentimento desolador da mediocridade, com
toda a raiva dos reis destronados e todos os suplícios da vergonha.11
Em sua relação com a carta roubada, o lugar do rei não poderia ser
outro que não aquele do olhar que não vê nada, aquele mesmo da ce-
gueira: é por essa razão que, saído de sua cegueira, apercebendo-se da
carta roubada, o rei se encontra necessariamente destronado. Desde
Novembro, Flaubert entrevê que sua vocação de escritor, que a vocação
de escritor, é condenada a ser aquela de Bouvard e Pécuchet: uma vo-
cação de copista.
Se, então, Novembro retoma a retórica da “loucura”, é para, dessa
vez, revertê-la, colocá-la em questão: em lugar de fazer falar o clichê da
“loucura”, Novembro torna falante a própria loucura do clichê. O “rea-

147
lismo” de Flaubert se esboça, a partir daqui, menos como uma simples
atenção àquilo que é banal do que como uma iluminação do impensado
daquilo que é evidente: o voo constitutivo das letras. Flaubert, por isso,
é um olhar que perscruta a cegueira das evidências, que sonda ao mes-
mo tempo a obscuridade – e a eficácia – dos lugares comuns.
É assim que, em Novembro, a retórica da “loucura” se despossui do
título, na qualidade de autoridade de sentido, palavra de significação
por excelência. Novembro, com efeito, tem como subtítulo a ironia pró-
pria ao conhecimento do desconhecimento que intitula Memórias de
um louco: ou seja, “fragmentos num estilo qualquer”. O lugar comum
enfim se reconhece, nomeia sua ausência de nome, subintitula sua au-
sência de títulos. “Estilo qualquer” – isso não é precisamente o inverso
da “loucura”? – e que diz bem que a loucura não é, na linguagem,
um lugar originário de subjetividade, lugar exclusivo dos outros, mas,
ao contrário, que a linguagem sempre, desde já, é lugar do outro: lu-
gar comum. Assim, a retórica da singularidade enfraquece e sua fre-
quência decresce. As 26 ocorrências de “loucura” nas dezoito páginas,
em Memórias de um louco, são reduzidas a dez ocorrências somente, em
29 páginas de Novembro (mesma edição): quer dizer que, em lugar de
quatro ou cinco ocorrências a cada três páginas (em média), não se
encontra mais que uma única ocorrência em três páginas. Mas, mais
ainda que essa diminuição de frequência da “loucura”, o que importa,
na mudança de acento que Novembro manifesta, é a explicitação do
arbitrário do signo, de sua convencionalidade completamente retórica
e linguística:
Qual é, então, essa dor inquieta da qual se tem orgulho como se tem do
gênio e a qual se esconde como um amor? (…) Rapsódias poéticas, lem-
branças de más leituras, hipérboles de retórica, todas essas grandes dores
sem nome.12
A loucura não se dá mais como um fora de toda linguagem, mas, ao
contrário, como o dentro do próprio artifício da retórica. E, se o clichê
da loucura se reproduz ainda nos “fragmentos num estilo qualquer”,
o “louco”, como qualidade e qualificação do “eu”, o “louco” como
substantivação do adjetivo qualificativo, desapareceu. Não é mais “um
louco” que “escreveu estas páginas”, mas, diz Novembro, mensurando
toda distância crítica que o separa de sua linguagem, “um homem que
cometia grandes abusos de epítetos”.13

148
Que a linguagem não possa sair de si para dizer sua origem; que o
arbitrário do signo não se deixe preceder por uma essência de sentido;
que a forma retórica seja convencional e fundamentalmente inaugu-
ral – eis o que Flaubert aprende e nos ensina, ao escrever Novembro.
Mas, ao mesmo tempo que os conceitos de originalidade, de espon-
taneidade e de autenticidade, herdeiros do romantismo, se deslocam,
surge, nos “fragmentos de estilo qualquer”, uma nova face da lingua-
gem convencional e das regras do lugar comum e da retórica. Pois,
se no clichê o conteúdo é preconcebido e estereotipado, ele importa
menos que a ação formal e a estrutura do significante; o enunciado im-
porta menos que o funcionamento, o efeito de enunciação. A ordem es-
trutural prima e prevalece sobre a ordem semântica, que ela modifica,
desloca, predetermina. Trabalhando no clichê e a partir dele, a escrita
se determina e se apreende, não mais como uma precipitação cega em
direção à significação, uma relação ingênua e pré-crítica com o signi-
ficado, mas como uma relação complexa, crítica, com o significante.
O USO DO ITÁLICO
O significante funciona, por conseguinte, não mais como referência
ao significado, mas como uma referência ao código. Essa referência, en-
tretanto, tem por efeito um curto-circuito do código: pois o código só
é eficaz uma vez que ele passa – como tal – despercebido, uma vez que
dá a impressão de transmitir apenas a informação da natureza, de ser
somente uma passagem direta, e não mediatizada, do significante ao
significado. Explicitar o código é, justamente e paradoxalmente, sub-
verter sua autoridade, romper com sua ilusão de naturalidade. O lugar
comum será, por isso, retomado pela escrita, não mais como signo ou
sentido, mas como sinal: sinal do código.
Sinal, em primeiro lugar, tipográfico, uma vez que o lugar comum se
cita, coloca-se entre aspas ou em itálicos:
Certas palavras me transtornavam, como mulher, como amante sobretudo
(…) Quanto à amante, era para mim um ser satânico cuja magia do nome
já me lançava a longos êxtases: era por suas donas que os reis arruinavam
e ganhavam províncias; por elas, tecia-se um tapete da Índia, esculpia-se o
ouro, removia-se o mundo; uma dona tem escravos (…)14
Quando foi preciso escolher um emprego, ele hesitou entre mil repug-
nâncias (…) E, depois, são esses os “empregos”? É preciso se estabelecer,
ter uma posição no mundo, entediamo-nos ao ficar ociosos, é preciso tor-
nar-se útil, o homem só nasceu para trabalhar: máximas difíceis de com-
preender e que se tinha o cuidado de sempre repetir.15

149
O uso de aspas, o uso de itálicos: essa sinalização tipográfica e meta-
linguística que escreve Novembro, essa balizagem do lugar comum na
linguagem do texto será, como se sabe, um traço típico e recorrente
na obra de Flaubert.
Mas o essencial da revolução de Flaubert não está nesse achado técni-
co. Pois o clichê transcende, de fato, em “fragmentos num estilo qual-
quer”, não somente as bordas tipográficas do itálico, mas os limites
mesmo do discurso, para penetrar na ordem da narrativa e da história.
Enquanto Memórias de um louco faz, num discurso clichê, uma narra-
tiva de originalidade, Novembro, paradoxal e inversamente, é um dis-
curso que só tem originalidade pela própria narrativa de aprendizagem
do clichê. O enunciado, em outros termos, narra a aprendizagem da
enunciação: a narrativa conta como o “estilo qualquer” se aprende e se
apreende como tal; como o “estilo qualquer”– sujeito da escrita – infor-
ma o processo de escrita e, ao mesmo tempo, o narrador – e, então, o
processo de narração – de sua perda de títulos sobre e dentro da língua.
A história, a própria intriga de Novembro, é acionada, de fato, pela
intoxicação dos lugares comuns. Na origem dos acontecimentos, a
narrativa distingue, pela repetição, quatro palavras: “dona”, “mulher”,
“adúltera”, “amor”.16 “A vida humana girava, para mim, em torno de
duas ou três ideias, de duas ou três palavras.”17
Duas ou três palavras às quais o narrador gostaria de dar o poder e
o valor dos acontecimentos; duas ou três palavras, paradigmas discur-
sivos, repetitivos, que ele procura transformar em enunciados únicos,
ou seja, em sintagmas contingenciais e narrativos. Assim, a história de
iniciação à paixão é, ela mesma, iniciada – pelos clichês. Os aconteci-
mentos surgem pela palavra: seu desenvolvimento causal remonta às
palavras e ao uso iterativo dos lugares comuns.
Isso supõe que os clichês possam decifrar, interpretar os mais pro-
fundos desejos do narrador; e que, devido a essa interpretação, a his-
tória possa ser feita, ditada pelos clichês. A história aqui, nessa nar-
rativa; mas talvez, também, estruturalmente, a história em geral, que
não seria tanto uma série causal e temporal de fatos, mas uma cadeia
completamente discursiva, um encadeamento de interpretações e de
interpretações de interpretações. “Dá mais trabalho [dizia Montaigne]
interpretar as interpretações que interpretar as coisas.” O que o clichê
enceta, em Novembro, é o estatuto mesmo da narrativa, do aconteci-
mento em geral, da eventualidade na qualidade de singularidade ori-
ginária do fato.

150
PROSTITUIÇÃO E LUGAR COMUM
Assim se explica também a função da prostituta como amante-inicia-
dora, enquanto Memórias de um louco marca a mulher amada, a mulher
inaugurando o amor, mais como: interdita, inacessível e, bem entendi-
do, insubstituível. O corpo da prostituta marca, ao contrário, o lugar
de acesso aos reposicionamentos e às substituições:
Quantos eu vi chegar aqui (…) uns, ao sair de um baile, para condensar
em uma única mulher todas aquelas que eles acabavam de deixar; outros,
depois de um casamento, exaltados com a ideia da inocência; e, depois,
jovens, para entreter suas donas com quem eles não ousavam falar, fe-
chando os olhos e vendo-as assim no coração; os maridos para se sentirem
jovens e para saborearem os prazeres comuns dos bons tempos; os padres
possuídos pelo demônio e não querendo uma mulher, mas uma cortesã,
um pecado encarnado (…).18
Lugar comum, literal e psiquicamente, da ilusão e do desejo, o corpo
da prostituta acolhe os votos imaginários de seus amantes, da mesma
forma que o clichê – corpo de linguagem, matéria de palavras – acolhe
e interpreta o desejo de sentido do narrador. Estendida sobre “a cama
comum por onde passa a multidão”,19 a “moça pública”20 preenche
exatamente a função que Baudelaire atribuirá ao lugar comum: “lugar
de reunião da multidão, o encontro público da eloquência.”21
Logo me conheceram, fosse quem me tivesse, meus amantes faziam mil
loucuras para me agradar, todas as tardes eu lia os bilhetes doces do dia
para aí encontrar a expressão nova de algum coração moldado diferen-
temente dos outros e feito para mim. Mas todos se pareciam, eu sabia de
início o final de suas frases e a maneira como eles iriam cair de joelhos. 22
Lugar de reunião da multidão, encontro público da eloquência, a
cortesã – canal de ilusões – é um testemunho ao mesmo tempo do
próprio corpo da linguagem, como veículo da pulsão carnal, e do de-
sejo, como carne das palavras, matéria e corpo mesmo da retórica. A
experiência, o testemunho da prostituta é aquele mesmo do desejo, na
qualidade de lugar comum da palavra desvalorizada.
A prova iniciática torna-se, para o narrador, uma iniciação aos luga-
res comuns e à usura da matéria do signo. Mas essa usura é feita, ela
mesma, da ilusão de um ato inaugural, de um evento primeiro e, como
tal, sem paralelo.
Quando eu lhe disse que jamais tinha tido uma amante, que a tinha pro-
curado por toda parte, que havia sonhado com ela por muito tempo e que
enfim ela era a primeira a aceitar minhas carícias, ela se aproximou de mim

151
com espanto, como se eu fosse uma ilusão que ela quisesse agarrar: “ Ah,
como eu te amaria se você quisesse!”
Seriam as primeiras palavras de amor que eu ouviria em minha vida!
Partidas não importa de onde, nosso coração as recebe com uma emoção
bem feliz.23
Ao encontro público da eloquência, preso na armadilha da lingua-
gem desvalorizada, o desejo, ainda que originado de um lugar comum,
“partido não importa de onde”, marca-se, portanto, como virginal, pri-
meiro, sem precedentes. A cortesã revende, assim, como ela própria diz,
uma ilusão de virgindade: “Eu vim aqui como se tivesse um pouco de
virgindade a vender.” Mas, se a cortesã – pela potência mesma de ilu-
são que a língua veicula – é virgem ainda, o narrador – por essa mesma
potência – não o é mais:
Nessa idade, eu era ainda virgem e não havia nunca amado.24
Nessa época em que eu era virgem, eu tinha prazer em contemplar as pros-
titutas, passava nas ruas onde elas habitam, frequentava os lugares onde
elas se divertem.25
Parece-me, às vezes, que vivi milhões de séculos e que meu ser encerra os
restos de mil existências passadas.26
Eu me senti velho e cheio de experiências sobre mil coisas não
experienciadas.27
Não se permanece, na língua, intacto. O paradoxo dessa história de
iniciação, dessa narrativa de perda da virgindade do narrador, é o que
ensina a ele que ele perde precisamente o que jamais havia tido: a
virgindade. Na linguagem, não se pode ser virgem, nunca se foi virgem,
uma vez que se habita o lugar comum.
Mas, por outro lado, é-se sempre virgem: o rapaz é devotado e con-
denado à virgindade, se a alternativa da virgindade, da perda dela, é a
instauração de uma possessão, ou de uma propriedade qualquer. Nunca,
jamais se foi virgem, porque é-se iniciado – desde o nascimento – na
linguagem, porque desde sempre se entreteve um concubinato com
uma língua anterior; mas permanece-se sempre virgem, porque jamais
se pode possuir sua própria língua; na língua, é-se sempre despossuído.
Assim, a virgindade do narrador não se perde, mas, ao contrário, retor-
na, afigura-se repetitiva e recorrente:
Era sobretudo com a aproximação da primavera (…) que eu sentia o co-
ração tomado pela necessidade de amar (…) A cada ano ainda, durante
algumas horas, reencontro uma virgindade que me impulsiona com seus
rebentos; mas as alegrias não florescem com as rosas.28

152
Aquilo que jamais teve lugar ao mesmo tempo não cessa de se repetir:
Em vão usaram, diria, de igual modo, a cortesã, cada lugar do meu corpo,
com todas as volúpias com as quais os homens se regalam, permaneci
como eu era aos dez anos, virgem, se uma virgem é aquela que (…) não
conheceu o prazer e que sonha com ele sem cessar, que constrói fantasmas
encantadores e que os vê em sonhos… Eu sou virgem! Isso te faz rir? Mas
não tenho da virgindade vagos pressentimentos, ardentes langores? Eu te-
nho tudo dela, exceto a própria virgindade.29
Não é, então, por puro acaso que a prostituta se chama Maria, re-
produzindo, assim, a Virgem, que os fantasmas eróticos do narrador
evocam em outros momentos.30 Maria: aquela que tem tudo da virgin-
dade, exceto a própria virgindade; aquela cuja essência é, então, a falta
de essência e que não pode ter a identidade nem do nome próprio,
pois Maria não é o verdadeiro nome da cortesã: “‘Diga-me teu nome,
hein! Teu nome.’ De minha parte, gostaria de saber o seu. ‘Maria’, ela
respondeu, ‘mas eu tinha um outro, não era dessa maneira que me
chamavam em casa.’”31
A prostituição torna-se, assim, o símbolo da impropriedade do lugar
comum, que engole toda possessão e toda propriedade, que não tem,
então, nem sentido próprio, nem nome próprio, e que só pode ter,
como nome, a figura da própria virgindade como constitutivamente
substitutiva, figurativa. Sustentada pelo nome próprio, a iniciação ao
lugar comum só pode desembocar no não lugar, e transformar o ato
inicial da substituição em ilusão do insubstituível, e ilusão do insubs-
tituível em uma cadeia de substituições e de comutações de lugares:
“(…) era ela que eu perseguia por toda parte; nos leitos das outras,
sonhava com suas carícias.”32
LUGAR DA NARRATIVA: RETORNO AO LUGAR
A comutação de lugares só pode descobrir, contudo, que a viagem
não é possível: partindo-se do lugar comum, chega-se, necessariamen-
te, sempre ao lugar comum; chegar só pode ser chegar ao lugar de
onde se partiu. “Mas, retornando sempre ao ponto de onde tinha partido,
eu dava voltas num círculo intransponível, e aí batia em vão a cabeça,
na esperança de me colocar mais a distância.”33
A própria lógica da narrativa se revela rigorosamente tópica. O lugar
comum torna-se um nó topológico que se explora como um espaço
labiríntico. Novembro, com efeito, traça o esquema do labirinto, tal
como Michel Serres o definiu: “Só me perco no labirinto pela simples
razão de que me encontro indefinidamente no mesmo ponto. Eu me

153
perco porque sempre retorno aqui (…); todos os outros caminhos são,
aí, os mesmos.34
O narrador viaja, assim, de lugar comum em lugar comum: todos os
lugares por onde passa a narrativa são, com efeito, literalmente lugares
comuns, lugares de usura marcados pelo outro.
• O leito da prostituta: “Olhe na cabeceira da minha cama todas
essas linhas entrecruzadas sobre o mogno, são as marcas das
unhas de todos aqueles que se debateram aí, de todos aqueles
cujas cabeças se esfregaram aí.”35
• O quarto, em Paris, do estudante de direito: “Ele foi se alojar
num quarto mobiliado, cujos móveis tinham sido comprados
por outros, usados por outros que não ele: parecia-lhe habitar
nas ruínas.”36
Mas, se, no labirinto do lugar comum, o narrador deve viajar, des-
locar-se, perder-se para encontrar-se no mesmo ponto, afastar-se para
retornar aos mesmos lugares, é para aprender que, sem exceção, todo
lugar é lugar comum; que, mesmo os lugares mais privados, mais
secretos, mais íntimos – por si, em si – são, em realidade, domí-
nio do outro.
Está aí, precisamente, aquilo que o narrador descobre por ocasião
de sua segunda viagem a X…, viagem que faz eco, no encerramento
do livro, a uma primeira viagem a X… cuja narrativa assinala desde o
início. Nas duas extremidades do texto, no começo e no fim, a história
é, então, marcada por essa estrutura repetitiva e simétrica, duas viagens
ao mesmo lugar – lugar sem nome, cuja referência importa pouco: X…
Nas últimas páginas do livro, o narrador vai embora de Paris, como
ele havia ido embora, no passado, de sua cidade natal, para rever X…
reencontrar uma lembrança de sua juventude, um canto de sonho para
si, seu canto privado:
Uma lembrança de juventude lhe retornava ao espírito, ele pensava em
X… (…), essa cidade onde ele tinha estado um dia, a pé (…): ele queria
revê-la (…). Por volta das dez horas da manhã, ele desceu até Y… e, de
lá, deu uma volta a pé até X…; (…) Ele percebeu que as placas que indi-
cam o caminho tinham sido viradas (…) ele se apressava, tinha pressa de
chegar (…).
(…) Havia um lugarzinho perto da abertura de uma rocha, onde ele cos-
tumava se sentar (…) instalar-se aí completamente sozinho, as costas na
terra, para olhar o azul do céu entre as paredes brancas dos picos; era ali
que ele via a vela das embarcações se afundando no horizonte, e que o
sol, para ele, tinha sido mais quente que em todos os outros lugares do
resto da terra.

154
Ele retornou ali e o reencontrou: mas outros haviam tomado posse do
lugar, pois, ao procurá-lo, maquinalmente, encontrou um fundo de garrafa
e de uma faca. Sem dúvida, as pessoas haviam feito ali uma festa, haviam
vindo com as damas, haviam comido, haviam rido, haviam feito gentilezas.
“Oh, meu Deus, disse, será que não há sobre a terra lugares que tenhamos
amado o bastante e vivido o bastante para que nos pertençam até a morte,
e que outras pessoas não coloquem os olhos jamais sobre eles?!”37
Se o narrador percorre as mesmas trilhas, refaz os mesmos caminhos,
viaja e se desloca para chegar aos mesmos lugares, é para aprender não
somente que todos os lugares são lugares comuns, mas igualmente que
os mesmos lugares, os lugares comuns, não são mesmos, mas outros: o
lugar comum é sem medida comum com ele mesmo. Assim, o retorno
não se apropria de um lugar de identidade consigo mesmo, mas, ao
contrário, produz uma diferença: o lugar comum não se assemelha a
si mesmo. O narrador descobre que a diferença, tão procurada outro-
ra na “loucura”, encontra-se, de fato, não no sujeito, mas na língua:
como lugar do outro. A diferença, irônica e paradoxalmente, reside no
coração do lugar comum: na repetição do significante. Por sua própria
repetição, o espaço do lugar comum perde sua orientabilidade, seu sen-
tido, ultrapassa ou inverte a sinalização (“ele percebeu que as placas
que indicam o caminho tinham sido viradas”), sua única consistência
e referência: ele se descentra.
Lembremo-nos de que, no princípio, o lugar comum se apresentava,
na imaginação do narrador, precisamente como centro e como paixão
da escrita do centro: “Essas paixões, que eu tinha querido ter, eu as
estudava nos livros. A vida humana girava, para mim, em torno de
duas ou três ideias, (…) em torno das quais todo o resto orbitava como
satélites em torno de seu astro.”38
O que a narrativa, aprendizagem do lugar comum, opera, então, no
espaço do lugar comum, é um descentramento da escrita do centro. O
acontecimento, daí, é o retorno do lugar, ou o retorno ao lugar, na qua-
lidade de diferença, afastamento, distância produzida no seio do lugar:
o deslocamento do mesmo lugar ao mesmo lugar, como aquilo que
abole a identidade do lugar consigo mesmo. Tal era, já, o estatuto do
primeiro deslocamento a X…, que comportava uma viagem dupla, uma
ida e um retorno:
Eu saí e eu fui a X (…)
Então, tudo me pareceu belo sobre a terra
(…)

155
Retorno à noite à nossa casa, repasso os mesmos caminhos e revejo sobre a
areia o traço dos meus pés e, no relvado, o lugar onde me deitava; parecia
que eu havia sonhado. Há dias em que se viveu duas existências, a segunda
já não é mais que a lembrança da primeira, e eu parava frequentemente no
meu caminho diante de um arbusto, diante de uma árvore, na esquina de
uma estrada, como se lá, de manhã, houvesse se passado algum acontecimento
da minha vida.39
Entre a ida e a volta, o ponto forte, o “acontecimento” não passa
do surgimento do lugar como alteridade a si. A própria instância da
narrativa coincide, por conseguinte, devido a seu modo de funciona-
mento, com aquela do discurso, em sua iteração dos lugares comuns.
Pois o estatuto do acontecimento não é a singularidade única do fato,
mas, ao contrário, sua recorrência iterativa. O acontecimento é aquilo
que, acontecido, acontece (pelo menos) duas vezes mais que
aquilo que, acontecido duas vezes, só teve lugar sob o modo do “como
se”. O estatuto do acontecimento, como o próprio estatuto do clichê, é
aquele da distância de si de uma leitura dupla: ao mesmo tempo visto
e já visto [déjà-vu], o acontecimento não passa da disjunção de um a
outro, o lugar clivado entre o visto e o já visto:
Ele entrou em um cabaré, onde algumas vezes tinha bebido cerveja, pediu
um cigarro, não se pôde impedir de dizer à boa mulher que o servia: “já
vim aqui”. Ela lhe respondeu: “Ah, mas não é a bela estação, meu senhor,
não é a bela estação”, e lhe deu o troco.40
“Já vim aqui”: distância, suspensão desse já, não lugar do aqui. Já,
aqui: já vindo e não ainda partido; em recuo e à frente com relação à
chegada. Aqui, no lugar comum, no mesmo lugar, no lugar outro; aqui
é, então, o ponto do indeterminado que condiciona a errância, o cen-
tro vazio onde tudo, reencontrando-se, se perde. “Já vim aqui”; frase
simples em função puramente fática, pouco sensata para o interlocu-
tor e que resume, entretanto – por um clichê, como deve ser –, toda a
ironia dessa história de aprendizagem do lugar comum. Mas a réplica
da empregada – “Ah! (…) Não é a bela estação, meu senhor” – res-
ponde, de sua parte, a um segundo clichê, no título mesmo do texto,
Novembro, invocando, sem o saber, nessa imagem do outono (estação,
dizia o narrador, da lembrança), sob a figura estereotipada do ciclo das
estações, a temporalidade repetitiva e circular do lugar comum: uma
temporalidade sem origem, ao mesmo tempo mutante e recorrente,
jamais coincidente consigo mesma, sempre em deslocamento e em hia-
to, sempre já e ainda não vinda.

156
MORTE E LUGAR COMUM: A MORTE DO AUTOR
Tomado por essa temporalidade da repetição, o lugar comum não
tem ponto de partida nem fim. O fim, numa narrativa que é, ela pró-
pria, discurso do lugar comum, só pode ser artifício de retórica. Lê-se,
assim, nas últimas páginas do livro:
O manuscrito se interrompe aqui, mas conheci o autor e, se alguém, para
chegar até esta página, tendo passado através de todas as metáforas, hipér-
boles e outras figuras que preenchem as precedentes, deseja encontrar aqui
um fim, que continue; lhe daremos um fim.41
O fim pré-fabricado só pode se construir arbitrariamente, como uma
resposta a um desejo de lê-lo condicionado pelas estruturas clichês,
como um eco das expectativas convencionais e estereotipadas.
Passando do “eu” ao “ele”, o texto, por conseguinte, nos contará um
acontecimento que não teve lugar em Memórias de um louco: a morte
do narrador. A morte – único acontecimento que acontecerá apenas
uma vez – poderá, nessa narrativa, escapar à repetição? O narrador,
entretanto, o disse explicitamente: a morte é, ela própria, um lugar
comum, o lugar comum por excelência.
Um dia, em Paris, parei muito tempo na Pont-Neuf: era inverno, o Sena
(…) estava esverdeado; sonhei com todos aqueles que vinham até ali para
se acabar. Quantas pessoas tinham passado num lugar onde eu, então, per-
manecia, correndo de cabeça erguida, em direção a seus amores ou a suas
obrigações, e que ali retornaram um dia, com passos curtos, tremendo na
aproximação de morrer! Eles se aproximaram do parapeito, subiram, salta-
ram. Oh! Quantas misérias terminaram aí, quantas alegrias aí começaram!
Que túmulo frio e úmido! Como ele se alargou para todos! Como ele os
tem ali dentro! Eles estão todos lá, no fundo, rolando lentamente com seus
rostos crispados e seus membros azuis; cada uma das ondas geladas leva-os
em seu sono e os arrasta suavemente para o mar.42
Morrer é, então, aderir definitivamente ao lugar comum: aderir ao
Outro. Mas, na morte do narrador, tal como narrada em Novembro, o
lugar comum é duplamente coincidente:
Enfim, no mês de dezembro passado, ele morreu, mas lentamente, pouco
a pouco, unicamente pela força do pensamento, sem que qualquer órgão
estivesse doente, como se morre de tristeza – o que parecerá difícil para as
pessoas que sofreram muito, mas que é preciso tolerar num romance, por
amor ao maravilhoso.43
Certamente, dirão, só se morre de amor ou de tristeza figuradamen-
te, nos clichês literariamente codificados, convencionais. Mas aí reside
precisamente toda a ironia do texto. Pois qual pode ser essa estranha

157
morte, unicamente pelo pensamento, senão precisamente uma morte
pelo clichê? Uma morte, seria possível dizer, entre aspas? Uma morte
completamente romanesca, completamente romântica, mas, antes de
tudo, completamente linguística, seguindo literalmente o próprio traço
do clichê na linguagem. Ironicamente tomada pela letra, a hipérbole
clichê só se literaliza (“ele morreu”) por alegorizar (“como”) o arbitrá-
rio que oculta o automatismo linguístico (“morre-se de tristeza”), para
aí explicitar o salto lógico entre o signo e o sentido, entre o retórico
(“como se morre de tristeza”) e o semântico (“ele morreu”): ele mor-
reu como – (não) se morre de tristeza. “Como se morre de tristeza”,
equivalente a “como se morre na literatura” – é o romance inteiro que,
por fim, tornando-se figura-clichê de si mesmo, se reflete e se ironiza.44
Figura-clichê de si mesma, a morte do narrador não é, por conse-
guinte, um simples acidente sintagmático, mas uma necessidade pa-
radigmática. A morte é aquela, completamente simbólica, do emissor,
inscrito na estrutura mesma da marca (iterativa e estereotipada); a
morte inelutável do sujeito no lugar comum. É a desaparição, de uma
só vez, do autor, como autoridade, mestre do sentido, fonte ou origem
da escrita. Morrer, então, de tristeza, é exatamente assim, morrer na
linguagem para nascer, justamente, na escrita; morrer sem fim e, assim,
repetir, infinitamente e indefinidamente, pela escrita e pela via mesma
do clichê, sua própria morte.
DO “EU” AO “ELE”
A morte, em outros termos, é o processo completamente linguístico
pelo qual o “eu”, na narrativa, torna-se um “ele”; processo pelo qual
o “eu” se coloca, ele próprio, em itálicos e se atribui – ao nível do ou-
tro – o estatuto de uma pura instância gramatical: antecipando, assim,
o esforço dos textos modernos para se despossuírem de seu poder de
dizer “eu”. Tal, por exemplo, em Beckett, o esforço do narrador ex-
traordinário de O inominável e suas passagens do “eu” ao “ele”:
O que eu digo, o que direi, talvez, a esse sujeito, a meu sujeito, ao sujeito
de minha permanência, já foi dito, uma vez que, estando aqui há vários
dias, ainda permaneço aqui.45
Eu tenho a falar, não tendo nada a dizer, nada além das palavras
dos outros.46
Eu? Quem, esse?47
Ele sabe que são as palavras, ele não sabe se são as suas (…) Sim, sei que
são as palavras, houve um tempo em que eu as ignorava (…) Eu não direi
mais eu, (…) é muito tolo. Colocarei em seu lugar, cada vez que o escutar,

158
a terceira pessoa, se eu pensar aí. Se isso os diverte. Isso não mudará nada.
Há apenas eu, eu que não estou aí, aí onde estou.48
Inútil sofismar, aqui e ali, sobre os pronomes e outras partes do discurso.
Pouco importa o sujeito, não há sujeito aí.49
(…) uma voz que não cessa jamais – termina-se por não se saber mais de
onde ela vem.50
O “ele”, destituindo o “eu”, na qualidade de significado, torna-se o
que Maurice Blanchot chama de “neutro”, uma voz espectral, fantas-
mática, que não saberia ser central, que, ao contrário, impede o texto
de ter um centro:
O “ele” [escreve Blanchot] não toma simplesmente o lugar tradicionalmen-
te ocupado por um sujeito; ele modifica, fragmentação móvel, o que se
entende por lugar: lugar fixo, único, ou determinado por sua localização
(…) O “ele” narrativo (…) marca, assim, a intrusão do outro – como neu-
tro – na sua estranheza irredutível, na sua perversidade sinuosa. O outro
fala. Mas, quando o outro fala, ninguém fala, pois o outro (…) não é,
antes, nem um, nem outro (…) A voz narrativa deve a isso sua afonia.51
Novembro vai bem em direção à afonia da obra flaubertiana ulterior,52
por sua passagem do “eu” ao “ele”: o “ele”, pronome do outro, da não
pessoa, é introduzido aqui explicitamente como a própria figura do
silêncio: silêncio da emoção e da significação.
É preciso que os sentimentos tenham poucas palavras a seu serviço, sem isso
o livro acabaria em primeira pessoa. Sem dúvida que nosso homem não en-
contrará mais nada a dizer; ele encontra para si um ponto onde não se escre-
ve mais e onde se pensa mais; é nesse ponto que ele para, azar do leitor! (…)
(…) ele julgou conveniente não mais se lamentar – prova, talvez, de que
tenha começado realmente a sofrer. Nem nas conversas, nem nas cartas,
nem nos papeis que folheei depois de sua morte, e onde isso se encon-
trava, não agarrei nada que desvendasse o estado de sua alma, a partir da
época em que ele cessou de escrever suas confissões.53
Para os antípodas do “eu”, portador do grito, o “ele”, uma espécie de
branco no seio do discurso, não é mais que possibilidade de parada,
de curto-circuito.
Por conseguinte, uma estética da reserva, de uma figura de retórica,
amortecerá a ênfase primeira e a hipérbole da afetividade. Mas a figura
de retórica será sempre, na obra flaubertiana, uma hipérbole mesmo
do silêncio, e o silêncio, o avesso do grito.
Curto-circuitada pelo silêncio do “ele”, a voz do texto perde sua au-
toridade: a narrativa torna-se, ela mesma, aleatória, hipotética, ofere-
cendo ao leitor, em antecipação – ainda – em tantos textos modernos,

159
a alternativa de duas versões, das quais uma é afirmativa e a outra é
negativa: “(…) As orgias bárbaras que ele escutava se desenrolarem
debaixo de sua janela lhe arrancavam a alma (…) ele dizia que essas
casas estavam cheias de lágrimas. Ou, antes, ele não dizia nada (…).”54
Ele dizia, “ou, antes, ele não dizia nada”: pensa-se, ainda, em Beckett:
“Como fazer, (…) como proceder? Por pura aporia, ou bem pelas afir-
mações e negações revogadas progressivamente, cedo ou tarde (…) Os
sim e não são outra coisa, eles me virão à medida que eu progredir…”55
A incerteza pela qual o silêncio é responsável marca a perda de au-
toridade do texto, a abertura a uma leitura múltipla, abertura à in-
terpretação: “Chovia – era pelo frio, ou pela tristeza?”56 A incerteza,
a escolha oferecida aqui à leitura é significativa: ela marca o lugar do
“ele” como lugar de confusão, precisamente, entre o objeto e o sujeito;
o frio e a tristeza.
HISTÓRIA/DISCURSO: O ITÁLICO GENERALIZADO
Confusão querida, exigência de não alternativa, desconstrução pre-
cisamente da própria estrutura de oposição, entre o objeto e o sujeito,
entre o Mesmo e o Outro, entre a interioridade e a exterioridade, en-
tre o eu e a socialidade; desconstrução, pela virada do “eu” ao “ele”,
da estrutura mesma da alternativa entre os dois níveis de sentido do
texto, a história e o discurso. Pois, se o “ele”, como diz Blanchot, é “o
acontecimento obscuro daquilo que tem lugar quando se conta (…),
a coerência impessoal de uma história”,57 o “eu” é, por outro lado, o
detentor mesmo do discurso. Mas, justamente, o que o texto instaura
não é a distinção, e sim, ao contrário, a equivalência completamente
paródica dos dois níveis: a história, aqui, de aprendizagem do lugar
comum, não passa, na realidade, de uma fábula do discurso. E, se a
narrativa, pela repetição do acontecimento, do lugar, desmistifica o di-
zer – na qualidade de lugar comum –, o dizer, por seu lado, não deixa
de desencantar a história, faz explodir a instância e o estatuto mesmo
da narrativa.
História e dizer, narrativa e discurso, são, então, aqui, mutualmente
reenviados um ao outro, cada um subvertendo a autoridade do outro.
Se é verdade, então, que a narrativa aqui pratica um tipo de uso de as-
pas do dizer do romantismo, de seus topoi, não é menos verdade que o
discurso, como força de ocultação do clichê, faz explodir antes o rea-
lismo da narrativa, sua pretensão de transparência, de transitividade e
de objetividade. Se a narrativa desmistifica, descentra o discurso do su-
jeito, só é possível, por sua vez, devido à equivalência do “ele” ao “eu”,

160
fazer referência à própria eclosão do sujeito: uma referência, em outros
termos, à instância da enunciação e do discurso precisamente em sua
clivagem, em sua falta de autoridade. Apagando, assim, a distinção as-
seguradora entre história e discurso, Flaubert se interroga, ao mesmo
tempo, sobre os limites da ordem narrativa e sobre as mistificações da
ordem discursiva. O que Novembro nos conta é justamente que contar
não é tão simples nem tão natural, que contar não pode ser um fato
consumado: a história é convenção, a história também é um discurso,
uma retórica, sujeita às mistificações, aos engodos dos lugares comuns.
Isso explica por que Flaubert, que deu um empurrão no realismo, quis
tanto dele se destacar. Pois ele via muito bem – mesmo que inconscien-
temente –, no ideal da mimese, o engodo da ideologia burguesa, procu-
rando se assegurar pela apropriação de uma pseudo-objetividade, de
uma pseudotransitividade, como se os atos, os acontecimentos, fossem
cerrados, definidos, substantivados, inteligíveis, como se fosse possível
se apropriar do sentido das palavras e de seu poder referencial, como se
a representação do sentido pudesse assegurar o bastante uma inteligi-
bilidade da consumação do sentido, como se a significação dos lugares
comuns pudesse ser cernida, delimitada, fixada de uma vez por todas.
Não, para Flaubert, o único real indiscutível é a parte da ilusão vei-
culada pela língua, é a potência totalmente linguística da ilusão refe-
rencial. Ilusão referencial comum, aliás, ao realismo e ao romantismo:
um crê na representação da sociedade, o outro na da subjetividade.
Ora, para Flaubert, essa dupla ilusão de representação acaba por de-
sembocar na mesma, na própria estrutura da marca na linguagem. Se,
deslocando-se do “eu” ao “ele”, Flaubert apaga sua assinatura, colo-
ca-se entre aspas e coloca entre aspas o romantismo, seu realismo – seu
reconhecimento do valor social e institucional da palavra – só consiste
no gesto mesmo do uso das aspas total e generalizado, que implica
colocar em itálicos a própria noção de realidade.
A descoberta que Novembro delineia é justamente a de ter compreen-
dido e de fazer compreender, sobre o lugar comum, não a posição
circunstancial da citação, mas a estrutura mesma da citacionalidade: a
perda constitutiva da origem e do contexto, que todo signo funda. O
esforço do texto não é, assim, o de colocar entre aspas um enunciado
preciso, mas bem mais o de colocar em itálicos, se se pode dizer, o
enunciado como tal, o sentido como tal.
Nem romantismo, nem realismo, nem “ele”, nem “eu”, nem discur-
sivo, nem narrativo, Flaubert desvia os signos, envia-os à deriva em
seu espaço de jogo, espaço sem centro e sem verdade, espaço, preci-

161
samente, da interferência, do entre-dois. Pela própria incoerência de
seu estilo, pelo deslocamento óbvio e explícito de suas instâncias elo-
cutórias, pela interferência e pela intercomunicação de seus registros
heterogêneos, Novembro é um texto moderno e, talvez, mais moderno
que A educação sentimental.
Novembro, “só depois”, torna-se um tipo de comentário de uma
escrita por vir: comentário do deslocamento que, sob o signo de
Flaubert, se operará na linguagem. Mais que qualquer outro, Flaubert
compreendeu bem que o novo é justamente o repetido, compreendi-
do em seu próprio princípio de repetição, princípio de iteração e, ao
mesmo tempo, de alteridade. Flaubert compreendeu, então, em outros
termos, que a modernidade é, por excelência, lugar do outro: lugar de
cegueira e de incompreensão.
Mas a questão da própria modernidade de Flaubert torna-se, dessa
forma, ingênua, capturada. Pois, se moderno é o texto que, pela itera-
ção do estereótipo, entra em contato com a diferença, o texto que se
descentra e se desconstrói para diferir de si mesmo, o que fizemos, ao
declarar Novembro um texto moderno, senão instituir, pelo contrário,
uma ilusão de identidade? De identidade que nos faz semelhantes?
Depois de tudo, aqueles que acreditávamos serem parecidos conosco,
aqueles que chamamos modernos, são talvez aqueles dos quais perde-
mos a diferença e a modernidade. Julgar Flaubert moderno é, talvez,
dizer simplesmente que Flaubert nos seduziu por sua linguagem: que
ele nos conduziu a crer que nos assemelhamos a ele, que ele se asse-
melha a nós e que nos encontramos no lugar comum:
Eu era, então, o que vocês todos são, um certo homem que vive, que dorme,
que come, que bebe, que chora, que ri, bem encerrado em si mesmo e
reencontrando nele, por onde ele vai, as mesmas ruínas de esperança, tão
depressa abatidas quanto elevadas, a mesma poeira de coisas trituradas, as
mesmas trilhas mil vezes percorridas, as mesmas profundidades inexplora-
das, terríveis e enfadonhas.58
“Eu era, então, o que vocês todos são”. Mas já sabemos, e precisamente
por Flaubert, que um lugar comum – seja ele o da leitura – não é o mes-
mo que pensamos ser, mas outro. Flaubert, por conseguinte, é nosso lu-
gar comum. E sua modernidade não é outra, sem dúvida, senão, precisa-
mente, esse tipo de atraso que temos sempre, com relação a nós mesmos.

Novembro de 1974.

162
NOTAS

1  Gustave Flaubert, Carta a Louise Colet, 17 de dezembro de 1952, em Préface à la


vie d’écrivain, p. 96-97.
2  Léon Bloy, Egésèse des lieux communs, Paris, Gallimard, 1968, p. 33-34.
(Coleção Idées).
3  Samuel Beckett, L’Innommable, Paris, 10/18, 1972, p. 23.
4  Flaubert, Carta a Louise Colet, p. 44.
5  Essa questão parece tanto mais pertinente, uma vez que é formulada explicita-
mente por Novembro: “Por que escrever isso? Por que continuar, com a mesma voz
dolente, a mesma narrativa fúnebre?”, em Flaubert, Oeuvres complètes, I t., p. 253.
Salvo indicação contrária, todas as referências [indicando apenas tomo e/ou página]
às obras de Flaubert reenviam a esta edição: Ed. du Seuil, coleção L’Intégralle.
6  Charles Baudelaire, Théophile Gauthier, em L’art romantique (ed. H. Lemaître),
Paris, Garnier, 1962, p. 673.
7  I, p. 234. (Grifo meu).
8  V, p. 233.
9  Cf., por exemplo, Gauthier, Albertus (1832), Musset, Fantasio (1834), Les confes-
sions d’un enfant du siècle (1836) etc.
10  p. 251. (Grifo meu).
11  p. 244-45. (Grifo meu).
12  p. 252.
13  p. 275.
14  p. 249. (Grifo de Flaubert).
15  p. 273-74. (Grifo de Flaubert).
16  Cf.: “Eu tinha lido tanto nos poetas a palavra e tão frequentemente a dizia para
mim para me encantar com sua doçura que, a cada estrela que brilhava no céu azul,
numa noite calma, a cada murmúrio das águas do rio (…) me dizia: “Eu amo! Oh!
Eu amo!” (p. 250).
 “Houve (…), para mim, uma palavra que me parecia bela entre as palavras huma-
nas: “adultério” (…) Ela é ungida de uma magia singular: todas as histórias que
se contam, todos os livros que se leem, todos os gestos que se fazem a dizem e a
comentam eternamente (…)” (p. 257).
 “Certas palavras me transtornavam, como mulher, como amante, sobretudo; eu pro-
curava a explicação primeiro nos livros, nas gravuras (…) O dia, enfim, em que per-
cebi tudo (…) eu senti uma sensação de orgulho a me dizer que eu era um homem,
um ser organizado para ter um dia uma mulher para mim: a palavra da vida me foi
apresentada” (p. 249).

163
 Ora, “a palavra da vida” – em destaque, como se deve escrevê-la – não é o lu-
gar comum por excelência? A vida humana, como a literatura, é, dessa maneira,
submetida às restrições convencionais e às regras inaugurais – e arbitrárias – dos
significantes.
17  p. 251.
18  p. 268.
19  p. 267.
20  p. 263.
21  Baudelaire, Madame Bovary, em Curiosités Estétiques, L’Art romantique, op.
cit., p. 644.
22  p. 266-267.
23  p. 262. (Grifo meu).
24  p. 257.
25  p. 252.
26  p. 248.
27  p. 252.
28  p. 257.
29  p. 268. Cf. conclusão do narrador, à p. 268: “Sem nos conhecermos, ela em
sua prostituição, e eu em minha castidade, tínhamos seguido o mesmo caminho,
alcançando o mesmo abismo.”
30  Cf. p. 257: “Eu amava tudo, até os rochedos duros onde eu apoiava as mãos (…)
e sonhava então com o quanto era doce cantar às noites, de joelhos, as cantigas aos
pés de uma madona que brilha à luz dos candelabros, e de amar a Virgem Maria
que aparece para os marinheiros, num canto do céu, carregando o Menino Jesus
nos braços.”
31  p. 260.
32  p. 270.
33  p. 257.
34  Michel Serres, Le messager, em Bulletin de la societé française de philosophie, 25
nov. 1967, p. 37.
35  p. 268.
36  p. 274.
37  p. 275-276.
38  p. 251.
39  p. 256-257.
40  p. 276.

164
41  p. 272.
42  p. 255-256.
43  p. 276.
44  Cf. a sugestiva semelhança dessa maneira de morrer com a morte do herói do
livro por excelência, Dom Quixote: “Voltando-se para Sancho, ele [Dom Quixote]
acrescentou: ‘Perdoe-me, amigo, a ocasião em que eu te dei de parecer tão louco
como eu, fazendo-te cair no erro em que eu próprio estava, o de saber que houve e
que há cavaleiros errantes neste mundo.’
 ‘Ai de mim! Ai de mim!’ – respondeu Sancho, soluçando, ‘não morra, meu bom
senhor, mas siga o meu conselho e viva ainda muitos anos; pois a maior loucura
que um homem pode fazer nesta vida é a de se deixar morrer simplesmente, sem que
ninguém o mate, nem sob outros golpes senão aqueles da tristeza’”. (Don Quixotte, Paris,
Garnier-Flammarion, 1948, v. II, trad. franc. L. Viarot, p. 502; grifo meu).
45  p. 20.
46  p. 39.
47  p. 73.
48  p. 100.
49  p. 109.
50  p. 121.
51  Maurice Blanchot, L’Entretien infini, Paris, Gallimard, 1969, p. 563-565.
52  Cf. Gérard Genette, Silences de Flaubert, em Figures, Paris, Ed. du Seuil, 1966,
1 t., p. 223-243.
53  p. 272-273.
54  p. 274.
55 Beckett, L’Innommable, p. 5-6.
56  p. 276.
57 Blanchot, L’Entretien infini, op. cit., p. 558.
58  p. 252.

165
LOUCURA E PSICANÁLISE

Aqui, estarei sempre entre a régua do sábio e a vertigem do louco


BALZAC

JACQUES LACAN: LOUCURA E TEORIA

O ENGANO E SUA CHANCE


O SENTIDO E O SABER
“A verdade que persegue a ciência [escreve Georges Bataille]1 só é
verdadeira sob a condição de ser desprovida de sentido, e nada tem sen-
tido a não ser sob a condição de ficção.”2 Essa proposição poderia defi-
nir, por sua vez, o ensino e a dificuldade da psicanálise, como prática e
ciência da ficção do sujeito. “O que é a verdade, senão uma denúncia?”
Ora, “não é o sentido da denúncia que nos importa, mas aquilo que se
poderia encontrar mais além, como definível do real”. O “real” não é
nada mais aqui do que aquilo que não depende da ideia que o sujeito
faz dele: “aquilo sobre o que não importa o que eu penso.”3 E Lacan
afirma: “Não há verdade, senão matemática, ou seja, escrita”; a verda-
de, em outros termos, “só é sustentável como verdade dos axiomas: só
existe verdade daquilo que não tem nenhum sentido.”4
A psicanálise aspira, por conseguinte, à verdade ou ao sentido? Qual
é o sentido da psicanálise? Essa questão, cuja urgência é tornada evi-
dente no campo teórico atual (mas se sabe – pela psicanálise – que
a evidência é precisamente a coisa menos percebida do mundo), essa
questão do sentido da psicanálise, à qual não se pode hoje escapar,
é uma contradição em termos, uma vez que o “sentido” é sempre
uma ficção, e é precisamente a psicanálise que nos ensina isso. Mas
a contradição, sabe-se, é o modo por excelência do funcionamento

166
do inconsciente e, consequentemente, também da lógica da psicaná-
lise. Contar com a psicanálise é contar com a contradição, com seu
desequilíbrio, sem reduzi-la à especular ilusão de uma simetria, ou de
uma síntese dialética. Se, então, a ilusão especular, o imaginário, para
empregar o termo lacaniano, é ele próprio um princípio constitutivo
do sentido, sendo justamente “o que interrompe a decifração do simbó-
lico”, que, só veicula um real se ele for “sempre cifrado”, “o imaginário
é uma diz-mensão [dit-mension]* tão importante quanto as outras”.5 É
que, no interior da língua, o “sema” é habitado pelo corpo: ele colmata
o fato de que nada mais conduziria o corpo em direção ao Outro. Não
há relação natural: não há relação com o Outro, senão “por intermédio
daquilo que faz sentido na língua”.6 É preciso, então, não só resolver a
contradição mas se haver aí: articular a questão do sentido da psicaná-
lise a partir de sua própria contradição; encarar essa contradição, não
como um fato contingente, mas como a própria condição de possibi-
lidade da questão da psicanálise, da psicanálise como questão. O que
a psicanálise introduz, assim, no campo teórico, não é nada menos
do que a necessidade de um novo tipo de articulação de sua própria
questão: sua urgência subversiva, seu empreendimento cultural, são
aqueles da pesquisa, doravante irreversível, sobre um novo estatuto
do discurso.
Se a psicanálise, naquilo que ela tem de mais radical, subverte o pró-
prio estatuto do sentido, condenando-se a se colocar a si própria em
questão e a subverter seu próprio sentido, é porque, como diz Lacan,
“o sentido se sabe”:7 o sentido é aquilo que é, por excelência, pre-
sente em si, é, então, a forma de saber – saber de si – da consciência.
Ora, se a descoberta freudiana do inconsciente “faz sentido” (vê-se
aí o problema, ainda do sentido, que a linguagem não pode eliminar,
problema de apreensão, pela consciência, do inconsciente, que dela se
esquiva), esse “isso” que fala libera uma linguagem que sabe, mas sem
que nenhum sujeito possa assumir tal saber, ou possa saber que ele
sabe. Não se trata de forma alguma, precisa Lacan, do mito do “não sa-
ber”, do qual uma vanguarda superficial acreditou tirar proveito, pois
não apenas não é suficiente não saber, mas o não saber não nos é dado.
Trata-se, ao contrário, de um saber indestrutível, de um saber que não
suporta que se saiba que se sabe8 e que, consequentemente, não provém do
sentido, já que ele se sabe. Do saber inconsciente do sujeito não pode,
então, haver captura senão pelo engano – os efeitos de nonsense que
sua palavra registra: sonhos, lapsos, chistes.

167
“Uma questão frequentemente se levanta (…): qual pode ser o sujeito
a saber primeiro o saber que só se manifesta pelo engano do sujeito?”9
O “sujeito suposto saber”, mito fundamental da cultura ocidental, da
universidade e do discurso filosófico, só pode ser “Deus-ele-mesmo”:
um efeito no qual se mira o “saber” da consciência, fantasma de potên-
cia produzido pelos encantos narcísicos e ampliadores do espelho. “O
Deus dos filósofos, ei-lo descoberto de sua latência dentro de toda teo-
ria. Teoria, seria esse o lugar da teo-logia [théo-logie]* no mundo?”10 O
“sujeito suposto saber” vive no engano e no fantasma. Subvertendo o
sujeito, a psicanálise radicaliza uma teoria da não transparência, uma
teoria, em suma, daquilo que Baudelaire chamou o “mal-entendido
universal” e Proust: “esse perpétuo erro que se chama, precisamente,
a vida”. Mas, nessa teoria, a posição da psicanálise é, ela própria, pro-
blemática e é decorrente ainda da contradição que rege seu discurso:
pois, como trazer a teoria do engano essencial ao sujeito da teoria? E
como, no erro universal, escapar do erro? Para que tipo de escuta, ou
de entendimento, pode apelar uma teoria do mal-entendido radical?
Lacan é plenamente consciente dessa posição insustentável na qual
ele se mantém e a qual ele mantém com a intensidade de um esforço e
de um desejo sem par: “Retenham pelo menos aquilo que testemunha
esse texto que enderecei a vocês: é que meu empreendimento não ul-
trapassa o ato pelo qual ele é tomado e que, então, ele só tem a chance
do engano.”11 É nessa posição teórica insustentável que reside, pare-
ce-me, a originalidade desconcertante do discurso lacaniano. Gostaria,
então, de tentar desenvolver aqui uma (muito) breve meditação sobre
seu engano e sobre sua chance.
GRAMÁTICA E RETÓRICA
O engano, bem entendido, é, para Lacan, “o engano do inconscien-
te”, que, na língua, “se denuncia pela sobrecarga retórica através da
qual Freud o demonstra, em seus argumentos”:12 o engano funciona
como uma metáfora; o desejo, como uma metonímia; e os mecanismos
narcísicos de defesa e de resistência utilizam todo tipo de tropos e de
figuras de estilo – perífrases, elipses, denegações, digressões, ironias,
atenuações etc.13 Uma teoria do engano será, então, uma teoria da re-
tórica do inconsciente: “É a partir das manifestações do inconsciente,
das quais eu me ocupo como analista, que fui levado a desenvolver
uma teoria dos efeitos do significante, na qual encontro a retórica.”14
Esse projeto de retórica é apoiado, em Lacan, por um projeto de gra-
mática: “Tais são as condições de estrutura que determinam – como

168
gramática – a ordem das ocupações constituintes do significante.”15 A
realização desse duplo projeto deveria, então, estabelecer uma gramá-
tica da retórica.
A coerência de um tal projeto pode parecer de uma lógica evidente.
Entretanto, para um lógico como Charles Sanders Pierce, por exemplo,
essa lógica que assimila retórica e gramática não é evidente: Pierce dis-
tingue, com efeito, a “retórica pura” daquilo que ele chama de “pura
gramática”. A “retórica pura” é o célebre processo de engendramen-
to de um signo por um outro, processo de reenvio de signo a signo,
no qual o sentido, por sua vez, não será mais que um outro signo e
só poderá ser atingido pela intervenção de um terceiro elemento, que
Pierce chama de interpretante; enquanto a “pura gramática” postula,
segundo Pierce, a possibilidade de uma relação binária, contínua (sem
necessidade de intervenção de um terceiro elemento) entre signo e
sentido. Em geral, pensamos na gramática como um sistema lógico
por excelência e, como tal, idêntico a si, universal e gerativo, ou seja,
que inscreve a possibilidade de uma infinidade de combinações e de
transformações, a partir de um modelo único, sem intervenção de um
outro modelo que reverta ou subverta o primeiro.16 Não acontece o
mesmo com a retórica, cuja descontinuidade subverte, ou pelo menos
contradiz, a continuidade (lógica) do modelo gramatical. A retórica
tem, sempre – para tomar aqui, fora de contexto, uma expressão la-
caniana – essa “dimensão incongruente à qual a psicanálise ainda não
renunciou, com o sentimento justificado de que seu conformismo só
paga o preço a partir dela”.17
Mas, então, se há incongruência entre o modelo gramatical do contí-
nuo e aquele, retórico, do descontínuo, como compreender o conjunto
do projeto lacaniano, de estabelecer uma gramática da retórica? Parece
que o programa científico de Lacan seria o de reduzir ao inconscien-
te as mistificações retóricas que são, a rigor, da gramática. O incons-
ciente como prática e a psicanálise como ciência se modelariam, por
conseguinte, sobre duas epistemologias diferentes que se separariam
uma da outra da mesma maneira que a gramática se distingue da re-
tórica. “Se o sintoma é uma metáfora, não é uma metáfora que o diz”,
afirma Lacan.18 “Gramaticalizar” a retórica seria, então, formalizá-la,
abstrair daí um conceito, enunciar uma teoria da retórica dentro de
uma língua tal que a própria operação retórica seja dela eliminada:
fazer coincidir perfeitamente o enunciado e a enunciação a propósito,
mas também ao encontro, da própria retórica que ela é, justamente, “a

169
lei pela qual a enunciação não se reduzirá ao enunciado de nenhum
discurso”.19 O homem persegue seu sonho, dirá ademais Lacan “e, por
isso, lhe acontece de desejar não mais sonhar”.20 É assim que acontece
a Lacan de sonhar com cessar de sonhar: “Se isso que é admitido no
sonho só é admitido na análise por sua narrativa, não significa supor
que a estrutura da narrativa não sucumba ao sono?”21 Trata-se, então,
para Lacan, de se agarrar ao sono, falando claramente, de se agarrar
aos mecanismos do inconsciente para poder enfim dizer o inconsciente
em si mesmo.
Esse projeto é possível? Lacan, é claro, é o primeiro a saber e a afir-
mar que, do inconsciente, não se “sai”; não se pode, então, dizer o
inconsciente em si, quer dizer, descolar-se absolutamente de seu modo
fundamental de engano para enunciar, sem se iludir, a lei absoluta do
engano: “Não sabemos mesmo se o inconsciente tem um ser próprio
e (…) é por não poder dizer ‘é isso’ que o chamamos pelo nome de
‘isso’. De fato, o inconsciente não é isso, ou bem, é isso, só que sem
qualidades.”22 Consequência lógica que Lacan formula igualmente, ao
dizer que “não há metalinguagem [mais aforisticamente que] não há
Outro do Outro”.23 Entretanto, o que é uma gramática (uma gramática
formalizada), senão, literalmente, a metalinguagem por excelência? A
gramática é, então – e Lacan o sabe –, (ainda) um desejo impossível:
desejo de estabelecer a norma, uma regra de correção: desejo de esca-
par, então, precisamente, do engano do empreendimento, de ser, pelo
menos uma vez, Não-tolo. Mas quem sabe, melhor que Lacan, que “os
não-tolos erram”?24 A escrita lacaniana articula, assim, o tormento da
lógica. E a chance do discurso lacaniano, o que lhe dá sua chance e o
que faz dela a nossa, é a centelha que produz, na língua, este duplo
desejo contraditório: um desejo de gramática dotado de um desejo de
retórica. É por essa contradição que o discurso lacaniano chega, preci-
samente, ao real: o real, quer dizer, o impossível.
UM NADA DE ENTUSIASMO
O discurso lacaniano suporta o desejo contraditório, ao mesmo
tempo como complicação e como simplificação: complicação irônica,
infinitamente sofisticada, de uma teoria do engano que não faz exce-
ção – em total consciência – nem a seu autor, nem a seus destinatários;
simplificação patética daquilo que se poderia chamar de sentido de
fracasso que atravessa o discurso25 e quer encontrar, por outro lado,
sua contrapartida, na intensidade da afirmação e na urgência do entu-
siasmo. “O que nos é permitido de originalidade [diz Lacan] se limita

170
ao resto do qual adotamos o entusiasmo (…) daquilo que Freud uma
vez designou.”26 A urgência de entusiasmo tem por função arrancar
a afirmação da incerteza, na dúvida de sua própria contradição e de
sua própria complicação. Ela manifesta, então, na lógica, a função do
desejo,27 essa “função da pressa”,28 necessária para produzir uma afir-
mação dentro de uma lógica plural. Uma vez passada a urgência, o
entusiasmo necessariamente recai num sentido de fracasso, reconhece
a ingenuidade e a cegueira de sua própria vertigem.
Lacan faz, então, o balanço – no interior de seu desejo e de seu alvo
na gramática – de sua própria retórica inconsciente. “Um nada de entu-
siasmo é, num escrito, o traço mais certo a se deixar para que ele ins-
taure uma época, no sentido lamentável.” É assim que Lacan introduz
seu célebre Discurso de Roma, “Função e campo da palavra e da lingua-
gem em psicanálise”: “Queremos falar do sujeito posto em questão por
esse discurso, quando recolocá-lo em lugar, aqui, do ponto onde nós,
de nossa parte, não lhe faltamos, é apenas fazer justiça ao ponto em
que ele se dá a conhecer por nós.”29 O movimento do texto lacaniano
obedece, assim, ao princípio bachelardiano: “Comecemos por admirar.
Ver-se-á, em seguida, se será preciso, pela crítica, pela redução, orga-
nizar nossa decepção.”30
“Um nada de entusiasmo” é, assim, o traço mais certo a se deixar em
um escrito para que ele instaure uma época. Mas o que é “instaurar uma
época” [dater]?31 Uma vez que se trata de Lacan, “instaurar uma épo-
ca” [dater] é, a princípio, “fazer data” [faire date], quer dizer, trazer ao
discurso cultural uma articulação nova: uma renovação da aliança com
a descoberta de Freud.32 Mas, uma vez que essa inovação, essa “renova-
ção de aliança”, se alia, precisamente, a uma estrutura de fuga, consiste
numa articulação linguística da estrutura pela qual a verdade é barrada e
escapa, a modernidade só pode se instalar na dimensão da perda. A mo-
dernidade é aquilo que se perde: aquilo que só se pode perder no e pelo
próprio movimento do entusiasmo de tê-la descoberto. O entusiasmo
se torna, por conseguinte, o selo da “chance perdida”, esse movimento
único pelo qual vamos ao encontro daquilo de que nos afastamos.
Se é verdade que a psicanálise repousa sobre um conflito fundamental,
sobre um drama inicial e radical quanto a tudo aquilo que se pode colocar
sob a rubrica do psíquico, a inovação à qual fiz alusão (…) não pretende
estar numa posição de exaustão com relação ao inconsciente, uma vez que
ela é, em si mesma, intervenção no conflito (…) Isso indica que a causa do
inconsciente (…) deva ser concebida como uma causa perdida. E é essa a
única chance de ganhá-la.33

171
Essa dimensão radical da perda é, então, mais uma vez, a perda da
segurança da metalinguagem, a perda de uma “posição de exaustão”,
que seria aquela mesma de uma gramática: é a dimensão – incontor-
nável – da retórica, de seu “modo de obstáculo”, pelo qual o discurso
descobre que ele só pode participar da retoricidade para dizê-la ainda
retoricamente, que ele só pode enunciar, na falta de uma gramática,
uma retórica da retórica: “Obstáculo, falha, fissura. Numa frase pro-
nunciada, escrita, alguma coisa tropeça (…) Ali alguma outra coisa
pede para se realizar – que aparece como intencional, certamente, mas
de uma estranha temporalidade.”34 Essa “estranha temporalidade” é a
falta de presente, a não presença em si do modo de obstáculo retórico.
É nesse sentido também que a retórica do desejo e do entusiasmo só
pode datar [instaurar uma época]: pois ela não é contemporânea a seu
próprio enunciado. “Não há presente [escreve Mallarmé], não – um
presente não existe (…) Mal informado aquele que se proclamaria seu
próprio contemporâneo.”35
Dizer que o entusiasmo data [instaura uma época] é, então, dizer
que ele traçou um porvir que, precisamente, o ultrapassa: que o tex-
to recolheu dele, ao mesmo tempo, mais e menos do que esperava;
que a urgência – emotiva e lógica – escreveu na linguagem um pon-
to de fuga, uma escrita autotransgressiva; é dizer que o texto organi-
zou – de maneira adequada – a decepção, decepcionou seu próprio
entusiasmo, subverteu seu fantasma, recusou a autoridade de sua pró-
pria retórica.
O entusiasmo é, sem dúvida, o que passa; é, então, nada; nada além,
em todo caso, daquilo que se passa conosco.
Aqui se inscreve essa Spaltung última, pela qual o sujeito se articula com o
Logos, e para a qual Freud, ao começar a escrever, nos dava, na última van-
guarda de uma obra nas dimensões do ser, a solução da análise “infinita”,
quando sua morte aí colocou a palavra Nada.36
Nada, esta espuma, verso virgem
A designar somente o corte.37
“Um nada de entusiasmo” só tem chance, com efeito, de alcançar,
precisamente, o nada do entusiasmo. Não estão aí, ao mesmo tempo,
os enganos – e a chance – essenciais à transferência? “Nessa curva em
que o sujeito vê soçobrar a segurança que ele retirava desse fantasma
onde se constitui para cada um sua janela sobre o real, o que se perce-
be é que a assunção do desejo não é nada além de um deserto.”38 Na

172
“transferência de intensidade”,39 inerente à repetição do desejo, cons-
titutivo da cura psicanalítica mas também desse “erro que chamamos,
precisamente, a vida”, isso que busca se realizar é alguma coisa, po-
de-se dizer, como uma operação metafórica, um desejo de metáfora.
Mas aquilo que se alcança a cada vez é o fracasso da analogia especu-
lar, o fracasso da metáfora em atingir e em nomear seu sentido próprio.
Se a psicanálise não pode responder à demanda, é somente porque,
aí, responder é, forçosamente, decepcioná-la, uma vez que aquilo que é aí
demandado é sempre Outra-Coisa, e é justamente isso que é preciso conse-
guir saber.40
Se, na operação transferencial, a psicanálise tem, precisamente, o
lugar do nada de entusiasmo, aquele do “objeto pequeno a”, que ma-
terializa, do desejo, o deserto, o resultado da transferência, a nomina-
ção do Nada, ensina ao sujeito que a metáfora cega de seu destino é
desprovida de sentido próprio, uma vez que ela só consegue alcançar
uma metonímia (o objeto a). Quer dizer que a psicanálise, fazendo o
papel de um não próprio [non-propre] (que o analisando se engana, ao
ler como nome próprio [nom propre]), ocupa o lugar – radicalmente
outro – da retórica por excelência, e que a tarefa da cura é, então, a de
chegar a desconstruir a ilusão gramatical do “próprio” para reconciliar
o sujeito com sua própria retórica.
O ESTATUTO DO ENSINO: UMA ÉTICA DO INCONSCIENTE
Se a transferência é “colocar em ato a realidade do inconsciente”, é
evidente que ela excede e ultrapassa os limites estritamente profissio-
nais da psicanálise, que ela existe um pouco por toda parte onde se
exercem os efeitos de linguagem, onde se praticam, de maneira con-
tínua, as experiências da palavra e da interlocução; e notadamente no
ensino. A situação transferencial exemplar do ensino é aquela evocada
pelo Banquete, de Platão:
Onde é melhor explicitado, como o faz Alcebíades, que os embates do
amor de transferência não têm outro fim senão obter aquilo de que ele
pensa ser Sócrates o continente ingrato? Mas quem sabe melhor que
Sócrates que ele só detém a significação que engendra ao reter esse nada?41
O “Mestre” do ensino – ilusão do “sujeito suposto saber” – ocupa,
também, no real, o lugar radicalmente outro de um nada de entusias-
mo. Ora, longe de recusar essa incidência transferencial, o ensino de-
veria assumi-la:

173
Reprovaram meu seminário, acusando-o de ter, com relação à minha
audiência, uma função considerada (…) perigosa, de intervir na trans-
ferência. Ora, longe de recusá-la, essa incidência me parece com efeito
radical, por ser constitutiva dessa renovação de aliança com a descoberta
de Freud.42
O que Lacan propõe aqui é, então, o exemplo de uma praxis for-
mativa, pela qual ele tenta se mensurar com aquela outra tarefa que
Freud disse ser impossível, entre as três tarefas cuja ação é fundada
sobre a miragem que rege sua função: psicanalisar, governar, educar.
Mas, também aí, o impossível torna-se, para Lacan, um imperativo do
Real: e sabe-se que, para ele, o estatuto do inconsciente não é ôntico,
mas ético: “O estatuto do inconsciente que assinalo para vocês ser tão
frágil, no plano ôntico, é ético. Freud, em sua sede de verdade, diz –
‘Qualquer que ele seja, é preciso ir até ele.’”43 O que Lacan pratica, então,
num esforço de ensino cuja intensidade salienta, ao mesmo tempo, o
pathos de uma vocação e a radicalidade de uma tomada de consciên-
cia, da crueldade (como diria Artaud) de uma lucidez e de um rigor
intelectual, todas duas tensionadas “ao ponto da existência que é a
aposta”,44 é, ao mesmo tempo que a pesquisa sobre um novo estatuto
do discurso, aquela de um novo tipo, de um novo estatuto do ensino.
Parece-me que, através dessa aposta, essa aposta que engaja todos
nós, se mede, num ato ainda sem medida, o insólito do gesto laca-
niano, de confrontar, se se pode dizer, a psicanálise com sua própria
loucura, de pressioná-la – assumindo todos os riscos – até os limites
de suas consequências lógicas.
“Aquilo que a psicanálise nos ensina, como ensiná-lo?”– pergunta-se,
então, Lacan. Questão que ele coloca, não para os técnicos da cura, mas
para os “responsáveis pelas disciplinas mais diversas”.45 Qual pode ser
esse ensino que assumiria em plena consciência sua incidência transfe-
rencial, quer dizer, que assumiria, ao mesmo tempo, o engano – e sua
chance? Seria, antes de tudo, um ensino que romperia com o jogo de
espelho do “sujeito suposto saber”, que romperia com o falso entendi-
mento narcísico da relação dual; seria um ensino fundado sobre uma
“alteridade mais firme”,46 no qual o “Mestre” assumiria e articularia a
radical não mestria que implica o inconsciente, assumiria e explicita-
ria seu “rang”47 (sua posição, seu lugar) do Nada de entusiasmo, para
subverter o fantasma e transformar o engano em questão.48 Esse seria,
então, um ensino eminentemente irônico: quer dizer, ainda e sempre
radicalmente retórico (estratégico): um ensino, diz Lacan (falando de
Saussure, mas demonstrando também seu próprio exemplo), “um ensi-

174
no digno desse nome, quer dizer, que só se pode interromper em próprio
movimento”.49 Será, então, um ensino, não de transparência, mas de
obstáculo, um ensino de e pelo “engano”, o tropeço da distorção textual:
Todo retorno a Freud que fornece matéria a um ensino digno desse nome
só se produzirá pela via por onde a verdade (…) se manifesta nas revolu-
ções da cultura. Essa via é a única formação que nós podemos pretender
transmitir àqueles que nos seguem. Ela se chama: um estilo.50
Mas o que é um estilo?
O SABER SUPOSTO SUJEITO: A GOTA DE TINTA
Um “estilo” é, bem entendido, qualquer coisa que se passa na lingua-
gem; é um acontecimento – um advento – textual, quer dizer, uma es-
crita. A escrita de Lacan incorpora, ela também, o engano e sua chance.
Ela percorre, do desejo, a dificuldade das vias obstruídas. Ela escreve,
então, como diz Mallarmé, “preto sobre branco” (tomando a expres-
são ao pé da letra), quer dizer, obscurecendo, com a tinta mesmo do
inconsciente, produzindo uma luz somente por força de projetar, em
alguma parte, as sombras.
Escrever –
A tinta, cristal como uma consciência, com sua gota, ao fundo,
de trevas (…) afasta a lâmpada.51
A escrita de Lacan, aproximando-se tanto da escrita de Mallarmé, as-
sume, de fato, sua irredutível parte literária, quer dizer, a parte de uma
cegueira informativa dos instantes fulgurantes de saber e de clarivi-
dência. A chance do engano reside na reversão – reversão textual – do
“sujeito suposto saber”: “Proponho [diz Lacan], como fórmula do es-
crito, o saber suposto sujeito.”52 O saber é o saber da conexão dos sig-
nificantes, saber que escapa ao sujeito, mas também que o constitui
justamente como aquele que sabe, no meio da língua, escapar: “Um
sujeito não supõe nada, ele é suposto. Suposto, nós ensinamos, pelo
significante que o representa para um outro significante.”53 Se a escrita
lacaniana se detém, com tanta insistência e instância, na opacidade
da letra, na materialidade significante e nas surpresas anagramáticas,
no jogo desvairado do chiste, é para tentar “recolocar o engano em
seu lugar”,54 nesse lugar de linguagem onde, precisamente, se situa a
escrita: lá onde somos representados. É assim que é preciso compreen-
der a “anortografia” lacaniana: “o escrito como não-a-ler/passo-a-ler”
é “uma demanda a interpretar”;55 interpretar, quer dizer, tropeçar no
arbitrário do signo para aprender com isso, precisamente, que não há

175
acaso; tropeçar no arbitrário do signo para aprender a interpretar, jus-
tamente, o não arbitrário da conexão dos significantes. Não arbitrário
do arbitrário em que consiste o saber dos poetas, mas também a neces-
sidade de poetizar inerente à escrita lacaniana.
E, como o assinalou há muito Platão, não é de maneira alguma forçoso,
é mesmo preferível que o poeta não saiba o que faz. É isso que dá àquilo
que ele faz um valor primordial. E, diante disso, só podemos nos curvar…
Interpretar a arte foi sempre o que Freud (…) repudiou; o que se chama
“psicanálise da arte” ainda é preciso descartar, além da “psicologia da arte”,
que é uma noção totalmente delirante. Da arte, nós devemos tomar o grão,
tomar o grão para outra coisa.56
Lacan, de fato, não interpreta a poesia, ele “toma dela o grão”, a
incorpora, a escreve – e a cita. E uma das razões que tornam o seu um
texto de tão difícil acesso é que ele é, como ele mesmo diz de Freud,
“uma enciclopédia das artes e das musas”, um “fio tecido de alusões e
de citações, de trocadilhos e de equívocos”.57 Mas é preciso compreen-
der esse estatuto difícil, incompreensível, “escrito como não-a-ler/pas-
so-a-ler” da citação no texto de Lacan. Lacan pode citar – Heidegger,
por exemplo – tomando suas distâncias com relação à sua doutrina
filosófica: “Quando falo de Heidegger, ou melhor, quando eu o tradu-
zo, me esforço para conferir à palavra que ele profere sua significância
soberana.”58 Significância soberana quer dizer que a citação, no corpo
do texto, permanece como um corpo estranho: que ela funciona não
como sentido (que “se sabe”), mas como significante que é sempre
deslocado, sempre importado de um outro texto, de uma outra cena.
A citação se articula, então, ao texto – à maneira do significante – pela
hiância de um deslocamento não articulado: a conexão dos significan-
tes, a articulação de diferentes referências citadas, é aquilo que, por de-
finição, jamais pode ser tematizado, presente para si mesmo no texto.
É, no entanto, isso que o discurso filosófico se recusa a compreender,
ou se recusa a aceitar, no discurso lacaniano. Os filósofos reprovam a
Lacan, precisamente, por esse estatuto – inédito – da citação em seu
texto. A “significância soberana” que Lacan gostaria de deixar para a
palavra de Heidegger lhes aparece como algo não sério, como uma
ligeireza filosófica:
Dirão que evidentemente é uma maneira de não ler essa palavra, de evi-
tar ou de recusar-se a lê-la (…) Seria possível igualmente dizer que há
aí alguma ligeireza (ou habilidade demais) para passar assim de maneira
fulgurante de um plano a outro, e para resolver “milagrosamente” toda
dificuldade da significância numa evocação.59

176
Reencontrando, no campo filosófico, a escrita de fato fulgurante de
Lacan, o discurso filosófico, à sua maneira específica, só pode faltar ao
encontro (é bem verdade que todos os encontros são faltosos: a diferen-
ça, aí também, é de “estilo”); faltar ao encontro, quer dizer, concretizar
um certo tipo de “engano”, e produzir, numa análise filosoficamen-
te notável, a “significância soberana” daquilo que se poderia chamar
do mal-entendido do rigor: um desconhecimento radical do estatuto
lacaniano da citação e, consequentemente, a recusa da elipse ou da
“desarticulação”; a recusa do discurso lacaniano como discurso do tex-
to; “escrito como não-a-ler/passo-a-ler”, discurso no qual o sentido se
recusa a se mirar e a se esgotar em um saber-de-si, discurso no qual,
precisamente, o próprio da articulação é veicular, representar e dizer
um máximo possível de desarticulação.
“NÃO VÊS QUE ESTOU ARDENDO?” OU LACAN E A FILOSOFIA
Numa leitura crítica do “escrito” lacaniano, intitulada “A instância
da letra no inconsciente”, na qual Lacan transfere a descoberta freudia-
na para Saussure, os filósofos podem assim escrever: “Trata-se, então,
de articular juntas a linguística e a psicanálise (…) Ou é precisamente
isso que falta (…) a articulação falta.”60 Coisa curiosa, em lugar de
“falta”, encontra-se, no texto de Lacan, uma singular metáfora que os
autores sublinham: “Mas não sentimos, depois de um momento, que,
por ter seguido os caminhos da letra para alcançar a verdade freudiana,
queimamos, seu fogo nos tomando por toda parte?”61
E os filósofos comentam:
Mas o que esse fogo queima e devasta aqui não é outra coisa senão, final-
mente, a articulação em si mesma. No lugar onde se devia produzir o ajun-
tamento sistemático de Saussure e Freud, isso queima, e de tal maneira
que, dessa constituição da ciência da letra, nos arriscamos a não ter mais a
decifrar que as cinzas.62
O que a filosofia não pode, assim, aceitar é um discurso que queima
as etapas. O discurso filosófico se define, dessa maneira, pela exigência
de exaustão da articulação: da articulação articulada, então, temati-
zada. O que quer dizer que, mesmo seguindo – como a filosofia o faz
hoje – caminhos mais e mais tortuosos, que esgotam todos os desvios
e todos os contornos possíveis e que “não levam a lugar nenhum”, o
discurso filosófico, apesar de suas denegações, se constrói ainda, fun-
damentalmente, a partir de uma exigência linear de desvio controlado
e de desenvolvimento ininterrupto, e sobre uma crença constitutiva na
continuidade (e na exaustividade) do Caminho. O paradoxo e a con-

177
tradição da filosofia, hoje, é que ela tenta precisamente dizer, por cami-
nhos contínuos, a radicalidade da descontinuidade. A posição de Lacan
parece ser simetricamente oposta: parece que ele desejaria enunciar a
continuidade de uma lógica e de uma matemática do inconsciente, é
certo, em todo caso, que ele se lança nisso por caminhos descontínuos.
Essas duas posições respectivas, simetricamente, mas também, contra-
ditórias e dissimétricas, são sintomáticas, por sua vez, da dificuldade e
da ambiguidade do empreendimento cultural moderno, aquele, justa-
mente, da pesquisa sobre um novo estatuto do discurso.
Se a psicanálise e a filosofia se encontram, hoje, todas duas envolvi-
das com a necessidade dramática, com a urgência inelutável de romper
com o “Sentido”, de sair radicalmente da epistemologia da presença e
da consciência, elas se encontram, igualmente, todas duas envolvidas
com a dificuldade (com a impossibilidade?) de colocar seu discurso à
altura de suas descobertas e de seus programas, de se mensurar com
a exigência imensurável, com a radicalidade inaudita da revolução
freudiana.
Rimbaud: “O espírito é autoridade. Ele quer que eu esteja no
Ocidente. Seria preciso fazê-lo se calar para concluir como eu queria.”63
Tanto o discurso lacaniano quanto o discurso filosófico (pós-feno-
menológico) produziram, então, hoje, “horríveis trabalhadores”,64
que declaram recusar, de uma parte e de outra, o conceito de “sa-
ber” que esses discursos implicam. Essa recusa, entretanto, se articula
de duas maneiras diferentes: poeticamente, em Lacan; discursivamen-
te, nos filósofos. Ora, entre filósofos e poetas, são paradoxalmente os
últimos que são, talvez, os menos ingênuos. Pois, se os filósofos hoje
acreditam saber que eles não sabem, os poetas sabem que sabem, mas
não sabem o quê.
À desconstrução discursiva, filosófica, corresponde, em Lacan, uma
desconstrução textual, retórica e anagramática. Ora, vimos que o de-
sejo (impossível) de Lacan é de estabelecer – retoricamente – uma
gramática da retórica. Seria possível, inversamente, definir o discurso
filosófico como um projeto de esgotar os recursos da gramática e de
estabelecer assim, gramaticalmente, uma retoricidade radical: uma re-
tórica da retórica.
É assim que, reprovando-se ao discurso lacaniano, precisamente, seu
momento de “denegação” da “retoricidade” radical – 65 esse momento
de seu texto, em que Lacan parece querer “paralisar” e “fixar” a retó-

178
rica e o metafórico (em sua insistência pelo verbo ser: “Se o sintoma
é uma metáfora, não é uma metáfora que o diz”) –, a leitura filosófi-
ca só sublinha, por sua vez, a metáfora no texto lacaniano – naquela
ocorrência do fogo: esse “fogo” da verdade freudiana que nos queima,
“pegando em toda parte” – para precisamente fixá-la e paralisá-la: in-
terrogá-la, em outros termos, não sobre sua retoricidade, seu funciona-
mento retórico, textual, na escritura lacaniana, mas sobre seu sentido,
seu sentido próprio. A metáfora é, então, rapidamente paralisada, e seu
“encerramento” decidido: “É amplamente conhecido que a Revelação
se escreve em letras de fogo. Ou, pelo menos, que aquilo que se reve-
la é fogo.”66
Da declaração dos autores, só se pode aprender que a metáfora do
“fogo” é “o que é bem conhecido”. E, se é bem conhecido, hoje, que
de fato “Deus está morto”, não é menos conhecido que o discurso
filosófico “pós-nietzscheano” com isso não acabou ainda de matá-lo,
de matar seu fantasma [fantôme]. Assim, no texto de Lacan, a leitura
filosófica rapidamente alcançou o fogo para apagá-lo. Afastado o risco
de incêndio, o caminho (daqui por diante) filosófico será perseguido
com a aplicação e a segurança de uma “lentidão”,67 o que quer dizer
sem queimar etapas.
Para resolver o enigma do fogo, Freud procede de outra maneira,
justamente a propósito do sonho fantástico do incêndio que queima
um cadáver. “Eis um sonho”, nos diz Freud, mas se poderia dizer em
réplica a toda leitura filosófica:
eis um sonho que não coloca nenhum problema de interpretação, cujo
sentido é imediatamente acessível, e, entretanto, assinalamos que ele guar-
da ainda esse caráter essencial que separa os sonhos do pensamento da
vigília e exige uma explicação. É só quando o trabalho de interpretação foi
desbravado que nós podemos ver o quanto nosso estudo (…) ficou incom-
pleto (…) Se todos os caminhos que até aqui tomamos nos conduziram
a soluções claras e satisfatórias, iremos agora em direção à obscuridade.
É para nós impossível explicar o sonho (…), pois explicar significa remeter
àquilo que já é conhecido.68
Lembremo-nos brevemente do conteúdo e das circunstâncias do so-
nho em questão, pois o fogo que aí queima permitirá interrogar sobre
o impacto da metáfora do fogo sobre a descoberta freudiana e sua re-
toricidade no texto lacaniano. Um idoso é encarregado de velar uma
criança que, depois de uma longa doença, acaba de morrer; o pai, que
estava sonolento, por causa da fadiga, no quarto vizinho,

179
sonha que a criança está perto de seu leito, toma-lhe o braço e murmura-lhe,
num tom reprovativo: “não vês que estou ardendo?” Ele (o pai) desperta e
percebe uma luz forte vindo do quarto de morte e para ele se precipita e
encontra um velho sonolento, a mortalha e um braço do pequeno cadáver
foram queimados por uma vela que caiu sobre eles.69
Freud, a propósito desse sonho, analisa justamente a questão do des-
pertar e as relações dinâmicas entre o sonho e a vigília. É desse singular
exemplo que ele deduz que, se o sonho, provocado pela percepção
sonolenta da luz do incêndio real, prolonga ainda o sono contra a ur-
gência do despertar, é que ele tem por função não apenas realizar o
desejo do pai de prolongar a vida da criança mas também de colmatar
uma necessidade de seu corpo, de integrar a realidade ao sonho para
realizar o desejo de dormir. Estimulado pelo enigma do sonho, Freud,
em sua genialidade, soube, então, colocar – como sempre – uma ques-
tão inédita, radical: o que é que desperta? E, ao mesmo tempo: o que é
que impede de despertar? Lacan, à sua maneira, desloca um pouco a
questão freudiana, radicaliza-a de outra forma, perguntando: “Onde
está ela, a realidade, nesse acidente?”70 Questão que eu traduziria as-
sim: a realidade do desejo, que nos rege e nos escreve, é da ordem do
“fogo”, do sono, ou do despertar? Onde se encontra, precisamente, o
fogo nessa aventura onírica? O fogo é aquele que queima o vivente no
seu sono, ou aquele que, no quarto vizinho, se repete para queimar
um cadáver, para continuar fatalmente, fantasticamente, a consumir o
próprio corpo de um amor morto? A retoricidade do “fogo” lacaniano,
mas também a “queimadura” retórica de seu texto, ocorre justamente
nesse nível de encontro faltoso, de encontro não articulado, mas dina-
micamente metonímico, entre o sono e a vigília. Só se pode aqui citar
Lacan, para deixar à sua escrita sua significância soberana:
Onde está ela, a realidade, nesse acidente? – senão na repetição de alguma
coisa, em suma mais fatal, em meio à realidade – de uma realidade na qual
aquele que estava encarregado de velar o corpo permanece adormecido,
aliás mesmo quando o pai surge, depois de ter despertado. Assim o en-
contro, sempre faltoso, ocorre entre o sonho e o despertar, entre aquele
que dorme sempre, e de quem nós não saberemos o sonho, e aquele que
só sonhou para não despertar (…) É apenas no sonho que pode se dar
esse encontro verdadeiramente único (…) encontro imemorável – uma
vez que ninguém pode dizer o que é a morte de uma criança – senão o pai
na qualidade de pai – o que quer dizer que ninguém é consciente disso.
Pois a verdadeira fórmula do ateísmo não é que Deus está morto – mesmo
fundando a origem da função do pai sobre seu assassinato, Deus protege o
pai –, a verdadeira fórmula do ateísmo é que Deus é inconsciente.71

180
Vê-se que a questão articulada por Lacan não é a da filosofia, “qual é
o sentido (im)próprio do fogo?”, mas uma questão que, de minha parte,
eu a chamaria literária, a questão do textual, do retórico por excelên-
cia, “onde está o fogo que nos queima?”. Mas essa questão também é,
ela mesma, o indecidível, uma vez que o fogo está dentro das duas pe-
ças, ao mesmo tempo na vigília e no sono, deslocando-se numa chama
dinamicamente metonímica, e que o fogo só “queima por toda parte”,
porque não se sabe onde ele está.
Nesse mundo todo inteiro dormente, só a voz se faz escutar – Pai, não vês
que estou ardendo. Essa frase é, ela mesma, um tição – ela sozinha carrega
o fogo que a consome – e não vemos o que queima, pois a chama nos
cega quanto ao fato de que o fogo incide sobre o unterlekgt, o untertra-
gen, o real.72
A escrita de Lacan nos abala, precisamente, porque ela é consumi-
da por um “fogo” que não é localizável por um discurso do Sentido.
Ler Lacan é se submeter a um verdadeiro Pèse-Nerfs,73 expor-se a uma
cegueira que nos trabalha e nos pensa, sem que, necessariamente, es-
gotemos sua compreensão. O que quer dizer que o texto, cuja singular
articulação veicula um efeito da máxima desarticulação, pensa além de
suas possiblidades e nos pensa além das nossas.
Apoiar, sobre a página, o branco, que inaugura sua ingenuidade, a si, es-
quecida mesmo do título que falaria mais alto; e, quando se alinhou, em
uma ranhura, a menor, disseminada, o acaso vencido palavra por palavra,
indefectivelmente o branco retorna, então gratuito, certo agora, para con-
cluir nada além e autenticar o silêncio.74
Lacan efetuou, no campo teórico atual, uma bastante sutil e bastan-
te complexa relação transferencial – em todos os sentidos do termo.
O que quer dizer, sem dúvida, que ele é o Nada de nosso entusias-
mo; mas também que ele detém, em nossa história cultural, “o pri-
vilégio do Outro”: que ele deixou para a psicanálise e para o campo
teórico, justamente, “o dom do que ele não tem; aquilo que se chama
seu amor”.75

Junho de 1974

181
NOTAS

1  As interrupções entre colchetes, feitas dentro de citações, são de Shoshana


Felman, salvo as assinaladas com *, que são da tradutora. (N.T.).
2  Georges Bataille, L’apprenti sorcier, em Oeuvres Complètes, op. cit., v. I, p. 526.
3  Jacques Lacan, Seminário de 23 de abril de 1974 (inédito).
4  Idem, Seminário de 11 de fevereiro de 1973 (inédito).
5  Idem, Seminário de 13 de novembro de 1973 (inédito).
6  Idem, Seminário de 11 de junho de 1974 (inédito).
7  Idem, Seminário de 23 de abril de 1974 (inédito).
8  Idem, Seminário de 19 de fevereiro de 1974 (inédito).
9  Idem, La méprise du sujet supposé savoir, em Sicilicet, Ed. Su Seuil, n. 1,
1968, p. 38.
10  Ibidem, p. 39.
11  Ibidem, p. 41.
12  Ibidem, p. 34.
13  Idem, L’instance de la lettre dans l’inconscient, em Écrits, op. cit., p. 505.
14  Idem, La métaphore du sujet, em Écrits, op. cit., p. 889.
15  Idem, L’instance…, p. 502. (Grifo meu).
16  Extraímos essa reflexão, bem como a distinção epistemológica entre retórica e
gramática, do notável artigo de Paul de Man, “Semiology and Rhetoric”, publicado
na revista americana Diacritics, n. 3, outono de 1973.
17 Lacan, L’instance…, p. 449. (Grifo meu).
18  Idem, L’instance…, p. 528.
19  Idem, La métaphore…, p. 889.
20  Idem, Seminário de 12 de março de 1974 (inédito).
21  Idem, De la psychanalyse et ses rapports avec la realité, em Scilicet, op. cit.,
n. 1, p. 56.
22  Idem, La méprise…, p. 35.
23  Idem, Subversion du sujet e dialectic du désir, Écrits, op. cit., p. 313.
24  Referência ao equívoco promovido pelo título do seminário de Lacan Les
non-dupes errent, 1973-74.
25 Cf.: Idem, La psychanalyse: raison d’un échec, em Scilicet, op. cit., n. 1, p. 42-50.
26  Idem, Introduction de Scilicet, op. cit. , p. 5-6.

182
27  Cf. a insistência de Lacan sobre o “desejo do analista”: Le Séminaire, livre XI, Les
quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse, Paris, Seuil, 1973, p. 145.
28  Idem, Le temps logique et l’assertion de certitude antecipée, em Écrit, op. cit.,
p. 197-211.
29  Lacan, Du sujet enfin en question, em Écrits, op. cit., p. 229.
30  Gaston Bachelard, La poétique de l’espace, Paris, PUF, 1958, p. 197-198.
31  As interferências feitas entre colchetes fora de citações, salvo informação contrá-
ria, são da tradutora. (N.T.).
32 Lacan, Le Séminaire, livre XI, op. cit., p. 117.
33  Ibidem, p. 116-117.
34  Ibidem, p. 27.
35  Stéphane Mallarmé, L’action restreinte, Oeuvres complètes, op. cit., p. 372.
36  Lacan, La direction de la cure, Écrits, op. cit., p. 642.
37  Mallarmé, Salut, em Oeuvres complètes, op. cit., p. 27. [Rien, cette écume, vierge
vers/ A ne designer que la coupe. (N.T.)].
38  Lacan, Le psychanalyste de l’école, em Scilicet, op. cit., n. 1, p. 25. (Grifo meu).
[É preciso marcar aqui o jogo de palavras lacaniano com “desejo” (désir) e “deserto”
(désêtre), em que se escuta, no deserto, o “des-ser” (des-être). (N.T.)].
39  Cf. Sigmund Freud, L’Interprétation des rêves, op. cit., cap. VII, p. 478-480 (ed.
francesa): “é preciso compreender a importância do desejo inconsciente (…) a psi-
cologia das neuroses (…) nos ensina que a representação inconsciente só pode,
como tal, penetrar no inconsciente, e só pode agir nesse domínio se ela se alia a
alguma representação sem importância que já se encontrava aí, à qual ela transefere
sua intensidade e que lhe serve de cobertura. Está aí o fenômeno da transferência
(…) Assim, então, os restos diurnos (…) não só retiram do inconsciente (…) a força
pulsional da qual dispõe o desejo recalcado, mas ainda oferecem ao inconsciente
alguma coisa: o ponto onde é preciso se concentrar para realizar a transferência”.
40  Lacan, “La psychanalyse: raison d’un échec”, art. cit., p. 44. (Grifo meu).
41  Idem, “La psychanalyse de l’école”, art. cit., p. 22.
42  Idem, Le Séminaire, livre XI, op. cit., p. 116.
43  Ibidem, p. 34.
44  Idem, “La psychanalyse: raison d’um échec”, art. cit., p. 48.
45  Idem, La psychanalyse et son enseignement, Écrits, op. cit., p. 439-440.
46  Ibidem, p. 441.
47  Cf., a propósito do analista: “Esse lugar de pessoa como de não pessoa o in-
dica – um lugar de posição a ocupar, de semblante: trata-se de ocupar o lugar de
analista” (Idem, Seminário de 9 de abril de1974, inédito).

183
48  Cf., a propósito da “transferência”, Écrits, op. cit., p. 452.
49  Ibidem, p. 497.
50  Idem, La psychanalyse et son enseignement, op. cit., p. 458.
51  Mallarmé, “L’action restreinte”, at. cit., p. 370. [Écrire – / L’encre, cristal comme
une conscience, avec sa goutte, au fond, / de ténèbres (…) écarte la lampe. (N.T.)].
52  Lacan, Seminário de 9 de abril de1974 (inédito).
53  Idem, “La psychanalyse de l’école”, art. cit., p. 19.
54  Idem, “De la psychanalyse dans ses rapports avec la réalité”, art. cit., p. 56.
55  Idem, Le Séminaire, livre XI, op. cit., p. 252.
56  Idem, Seminário de 9 de abril de 1974 (inédito).
57  Idem, L’instance…, op. cit., p. 521.
58  Ibidem, p. 528.
59  Jean-Luc Nancy, Philippe Lacoue-Labarthe, Le Titre de la lettre, une lecture de
Lacan, Paris, Galilée, 1973, p. 136-137.
60  Nancy, Lacoue-Labarthe, op. cit., p. 84-85.
61 Lacan, L’instance…, p. 509, citado por Nancy, Lacoue-Labarthe, op. cit., p. 83.
62  Nancy, Lacoue-Labarthe, op. cit., p. 86.
63  Arthur Rimbaud, L’impossible, em Oeuvres, op. cit., p. 346.
64  Idem, Carta a Demeny, p. 346.
65  Nancy, Lacoue-Labarthe, op. cit., p. 149.
66  Ibidem, p. 86. (Grifo meu).
67  Ibidem, p. 96.
68 Freud, L’Interprétation des rêves, op. cit., cap. VII, p. 435. (Grifo meu).
69  Ibidem, p. 439. (Grifo de Freud).
70 Lacan, Le Séminaire, livre XI, op. cit., p. 57.
71  Ibidem, p. 58.
72  Ibidem, p. 58.
73  Referência à obra de Artaud, de apenas trinta páginas, construída como uma
sucessão de cartas a leitores imaginários, para quem ele descreve sua dor existencial,
uma espécie de fogo interior que o consome e lhe torna a vida insuportável. (N.T.).
74  Mallarmé, Le mystère dans les lettres, Oeuvres complètes, op. cit., p. 387.
75 Lacan, Écrits, op. cit., p. 691.

184
HENRY JAMES: LOUCURA E INTERPRETAÇÃO

ARMADILHA PARA A PSICANÁLISE: OUTRA VOLTA DA LEITURA


Que relação pode existir entre o gesto de rodar uma porca, ou de dar
uma volta no parafuso, e a literatura? Que relação pode existir entre
o gesto de dar uma volta no parafuso e a psicanálise? Existe mesmo
uma relação entre essas duas questões? Supondo que sim, essa relação
poderia definir o estatuto da literatura? Eis as estranhas interrogações
que o presente estudo se propõe explorar e articular sobre o texto de
Henry James, intitulado: A volta do parafuso.1
UM ESTRANHO EFEITO DE LEITURA

I didn’t describe to you the purpose of it (…) at all. I described to


you (…) the effect of it – which is a very different thing.
James

The mental features discoursed of as the analytical are, in themselves, but


little susceptible of analysis. We appreciate them only in their effects.
Poe
A história de A volta do parafuso é conhecida: uma jovem, responden-
do à oferta de emprego anunciada em um jornal, encontra um “perfei-
to gentleman”, um “celibatário na flor da idade”, que lhe confia o cargo
de cuidar de sua sobrinha Flora e de seu sobrinho Miles, duas crianças
órfãs que viviam no campo, numa casa isolada, de sua propriedade. A
jovem aceita tornar-se a governanta dessas duas crianças, mas sob a es-
trita condição, exigida pelo empregador – “o Mestre” –, de que assuma
em relação a elas uma “suprema autoridade”, isto é, que resolva sozi-
nha todas as questões que lhes concernem, sem nunca o incomodar,
procurando-o com problemas.
Entretanto, essa condição, aceita inicialmente, não tarda a se tornar
pesada e perturbadora para a governanta (que é, ao mesmo tempo,
a narradora), sobretudo quando chega uma carta, informando-lhe,
sem maiores explicações, que o menino, Miles, acaba de ser expulso
da escola. Essa medida punitiva, não esclarecida, torna a aparente
inocência da criança suspeita, misteriosa, ambígua. Por outro lado,
a governanta descobre que a casa é mal-assombrada: repetidas vezes,
ela se vê em presença de estranhas aparições, que se assemelhavam
a um homem e uma mulher. Com a ajuda de esclarecimentos da-
dos pela empregada da casa, Sra. Grose, ela toma conhecimento da

185
história passada dessa casa e acaba por identificar, como aparições,
os dois serviçais, Peter Quint e Srta. Jessel, já falecidos, mas ante-
riormente empregados pelo Mestre para o serviço doméstico, e cuja
intimidade suspeita parecia ter “corrompido” as crianças. A governan-
ta acredita estar certa de que os fantasmas voltam para ter contato
com as crianças, possuir suas almas, e corrompê-las de forma radical.
Trata-se, então, segundo seu ponto de vista, de uma luta que deve ser
travada para salvar os meninos dos fantasmas, feroz luta moral con-
tra o “mal”. Os procedimentos para isso consistem em surpreender
as crianças em flagrante delito – a visão dos fantasmas – e, daí em
diante, forçá-las a confessar essa visão, confessar seu conhecimento
das assombrações e, consequentemente, sua cumplicidade com eles. A
confissão total deveria, desse modo, exorcizar as crianças.
Ora, os resultados dessa luta metafísica são nefastos: Flora, a meni-
na, surpreendida pela governanta, diante da aparição de Srta. Jessel,
nega, entretanto, sua visão e cai gravemente doente, depois da vee-
mente acusação da jovem instrutora, a quem passa a odiar. Miles, o
menino, em contraposição, tendo aparentemente “confessado”, pro-
nunciado – sob pressão da governanta – o nome de Peter Quint, dian-
te do seu fantasma, morre imediatamente, nos braços da jovem, no
momento mesmo em que ela o abraça, para celebrar sua vitória moral.
É sobre esse abraço apaixonado no cadáver, trágica e pateticamente
irônico, que a narrativa se fecha.
Se a literatura pudesse se definir, por seu impacto, como efeito de
leitura, A volta do parafuso se faria notar como um dos textos mais efi-
cazes escritos em todos os tempos, levando-se em conta, ao menos, o
número e a veemência dos ecos que suscitou, os efeitos de leitura que
então produziu, os ensaios críticos que propiciou. Henry James ficou
maravilhado pelo extraordinário alcance do efeito de leitura provocado
por seu texto, cuja potência gerativa ele só pôde medir après coup; é o
que ele destaca dez anos depois da primeira publicação de A volta do
parafuso no prefácio de 1908, anexado à New York Edition:
Indeed if the artistic value of such an experiment be measured by the intellectual
echoes it may again, long after, set in motion, the case would make in favour
of this little firm fantasy – which I seem to see draw behind it today a train of
associations. I ought doubtless to blush for thus confessing them so numerous that
I can but pick among them for reference.2

[Se, com efeito, o valor artístico de tal experiência pudesse se medir pelos
ecos intelectuais que ela pode ainda desenvolver tanto tempo depois, o
caso se decidiria em favor dessa sólida pequena fantasia – que me parece

186
ter produzido um rastro, um cortejo de associações. Eu deveria enrubescer,
confessando-as tão numerosas que só teria embaraço em escolher uma
delas para citar.]
Poucos textos literários, com efeito, terão suscitado “um rastro atrás
deles”, tantas “associações”, interpretações, polêmicas e paixões, tanta
energia analítica e violência exegética. Como testemunho e exemplo,
a violência das primeiras reações de leituras extraídas dos jornais da
época: “A história mesma é nitidamente repugnante”, escreve o jornal
The Outlook.3 E The Independent exagera:
A volta do parafuso é a história mais depravada que já lemos em toda a
literatura antiga ou moderna. Como Sr. James, ou pouco importa que ho-
mem ou mulher, pôde decidir fazer um tal estudo do infernal deboche
humano – pois não se trata de nenhuma outra coisa – é inexplicável. (…)
O estudo, exibindo, de forma clara, o gênio do Sr. James, sob uma poten-
te luz, afeta o leitor com um nojo inexprimível. Após uma leitura atenta
dessa história horrível, tem-se o sentimento de se ter ajudado a infligir um
ultraje à mais santa e à mais doce fonte de inocência humana, de se ter
contribuído, mesmo que presenciando a tudo isso de modo impotente,
para debochar da natureza confiante e pura das crianças. A imaginação
humana não pode ir mais longe em direção à infâmia, a arte literária não
poderia ser manipulada com um requinte mais sutil de sujeira espiritual.4
A publicação de A volta do parafuso é, assim, acolhida por um veemen-
te protesto crítico. Os primeiros leitores gritam contra o escândalo. Mas,
como esse último fragmento testemunha, algo do escândalo do texto é
percebido como mais escandaloso: é como o escândalo nos afeta, não
nos deixando indiferentes: não há leitura inocente desse texto. Em ou-
tros termos, o escândalo não está simplesmente no texto, mas em nossa
relação com ele, no efeito de leitura que nos marca: o escândalo não está
simplesmente naquilo que o texto fala, mas no que o torna falante.
É interessante notar que uma segunda onda de protestos e reações
escandalizadas, semelhantes à que a primeira publicação do texto pro-
vocou, será de novo desencadeada três décadas mais tarde, a propósito
da publicação de um artigo crítico que propunha uma interpretação
dita “freudiana” de A volta do parafuso. Em 1934, Edmund Wilson
sugere, pela primeira vez de modo explícito, que A volta do parafu-
so não é, em realidade, uma história de fantasmas, mas uma história
de loucura: os fantasmas não teriam existência objetiva, sendo, antes,
os produtos imaginários do cérebro doente da governanta, projeções
alucinadas, sintomáticas de sua frustração e de seus desejos sexuais
recalcados. Esse artigo teve o efeito de uma bomba. Se, de um dia

187
para outro, torna seu autor célebre, suscitando por ele tanto interesse
quanto o próprio romance, vai ao mesmo tempo provocar um verda-
deiro assalto de críticas, de refutações indignadas, de objeções apoia-
das por provas textuais. É em torno dessa exegese psicanalítica e do
longo debate que ela provoca, que se cristalizarão, daí em diante, ao
mesmo tempo, as paixões e os raciocínios críticos concernentes a A
volta do parafuso.
A favor ou contra Wilson, afirmando ou denegando a realidade ob-
jetiva dos fantasmas, a crítica se divide em dois campos, em duas ca-
tegorias de exegese: a exegese psicanalítica, que vê na governanta uma
doente enganada por suas próprias fantasias, além de ser dona de um
caráter destruidor para as pessoas que a rodeiam; e a exegese de fundo
metafísico, religioso e ético, que a julga sã de espírito, percebendo-a
como uma figura eminentemente moral, engajada numa operação de
salvamento e numa luta sobrenatural contra as forças do mal. Assim,
como observa de modo pertinente, com uma ponta de ironia, John
Silver, “se os fantasmas de A volta do parafuso não são reais, a disputa a
seu propósito o é, certamente”.5
Seria possível dizer que a realidade do debate e de seu perseverante de-
sacordo crítico são fatos mais significativos para o impacto do texto do
que a realidade dos fantasmas? Dessa forma, o debate crítico poderia ser,
por si mesmo, interpretado como efeito de fantasma? Mais que o fundo
do desacordo, é seu estilo que me parece esclarecedor: pois, examinando
de perto a formulação da controvérsia, aí se encontra, de modo sur-
preendente e sem que se misture a intenção dos autores, um espetacular
ressurgimento de todos os motivos lexicais do texto. Sublinharei alguns
e citarei breves fragmentos de certos ensaios polêmicos:
• O tema do perigo a evitar: “O perigo do método crítico psicanalí-
tico reside em sua aparente plausibilidade.”6
• O tema de uma força violenta que monopoliza um objeto para
lhe infligir um ultraje, uma agressão injuriosa: “A leitura freu-
diana de A volta do parafuso (…) é uma violência presente não
somente na narrativa, mas também no prefácio.”7
• O tema do ataque e da defesa, da confrontação, da luta: “um
exame crítico da teoria de Wilson se propõe atacá-la ponto
por ponto.”8
• O tema da vitória final, da derrota do inimigo: “Eis, pelo menos
uma vez, um lugar em que está Freud totalmente derrotado.”9

188
Assim, um vocabulário de luta, de agressão e de perigo se repete na
cena do debate crítico e marca os impulsos da controvérsia, de for-
ma a lembrar o espírito de combate do romance. Entretanto, outros
temas do texto, mais singulares, ressurgem no estilo mesmo da dis-
puta: o motivo da loucura ou da patologia, do erro neurótico ou da
ilusão “histérica”. É assim que Robert Heilman acusa Wilson de ce-
gueira “histérica”, o que explicaria seus erros de leitura. Por que será
que Wilson não vê que James, afirmando, no prefácio, que atribuiu
“autoridade” à governanta, está se referindo, apenas, à sua autoridade
retórica, narrativa, aquela de seu ponto de vista, e não, como Wilson
se apressa em interpretar, de forma equivocada, à “autoridade inglesa,
implacável, que (…) permite [à governanta]10 impor a seus inferiores
intenções totalmente errôneas”? A razão desse mal-entendido, explica
Heilman, é que “aqui ainda a palavra autoridade desencadeou, num
crítico liberal cheio de espanto, um espasmo emotivo que provocou
uma espécie de cegueira histérica”.11 A leitura de Wilson é, então, con-
testada como uma leitura histérica, sintomática de uma neurose. É in-
teressante que ela seja contestada, a esse título, pela crítica mesma que
exclui a hipótese de neurose da narrativa e para a qual a patologia não
pode explicar o texto:
Poder-se-ia provavelmente afirmar, sem o risco de a interpretação freudiana
da história – cujo representante mais conhecido é Edmund Wilson – não
gozar mais de uma vasta aceitação crítica. (…) Não podemos nos dar conta
do mal que se faz, ao se tratar a governanta como presa de uma patologia.12
Ora, a loucura ou a “patologia” (evocada igualmente pela governan-
ta) parecem mais insistentes que se possa crer, pois, excluídas do tex-
to, são reenviadas, no plano de sua exegese, e se encontram, então,
ironicamente, não elimináveis do comentário crítico, seja aquele dos
“freudianos” ou aquele dos “metafísicos”.
Outro tema do texto que, sub-repticiamente, ressurge no discurso
da controvérsia, é, curiosamente, o da salvação. Insistindo sobre o fato
de o sentido verdadeiro de A volta do parafuso consistir no drama da
salvação, isto é, numa operação de salvamento das crianças diante dos
fantasmas, Robert Heilman escreve:
A volta do parafuso poderia parecer uma obra pequena, fina demais, para
ter suscitado todo esse debate. Mas há algo a dizer em favor do debate. De
início, ele assinala o perigo de uma aplicação fácil de fórmulas doutrinárias
sobre as quais não se tem nada a fazer e, logo, provocam seja a ignorância,
seja a grande distorção dos materiais. Mas, mais imediatamente: A volta do
parafuso merece ser salva.13

189
A operação de salvamento, o drama da salvação esboçado pelo texto,
dessa forma, se repete na cena crítica. Mas é necessário “salvar” o texto
de quê? De sua redução, explica Heilman, a um “banal documento clí-
nico”. Mas, escutemos de perto, aqui, ainda, os termos mesmos pelos
quais se formula a objeção, que associa os abusos da exegese psicana-
lítica aos abusos mais gerais do procedimento científico:
Mais uma vez encontramo-nos engajados no conflito familiar entre a ver-
dade científica e a verdade da imaginação. Isso não quer dizer absoluta-
mente que uma verdade científica não seja capaz de corroborar, de servir
e mesmo de iluminar uma verdade da imaginação. Isso quer dizer, entre-
tanto, que a pré-possessão científica pode entravar seriamente a intuição
imaginativa.14
Retomando e sublinhando o termo “pré-possessão”, uma outra críti-
ca está de acordo: “Devemos concordar, acredito, que os críticos freu-
dianos da fábula estão fortemente ‘pré-possuídos’”, escreve por sua vez
Mark Spilka.15 Ora, o que é um crítico “pré-possuído”, senão aquele
cujo espírito está, de início, possuído por algum demônio, um crítico
que, como as crianças de James, estaria também possuído? Possuído
pelo fantasma de Freud? Fica claro, em todo caso, que a urgência da
operação de “salvamento” do texto, numa crítica como a de Heilman,
se parece com as operações exorcizantes da governanta diante das
crianças possuídas, e que a confrontação crítica constitui, também,
uma espécie de combate contra algum efeito de fantasma levantado
pela psicanálise. A cena do debate crítico parece ser uma repetição da
cena dramatizada pelo texto. A leitura crítica, em outros termos, faz
mais do que elucidar o texto, ela o repete, isto é, participa dele sem
saber. Por sua própria leitura, o texto, pode-se dizer, “passa ao ato”,
dramatiza-se.
Eis um estranho efeito de leitura: de qualquer maneira que o leitor
seja capturado aí, ele só pode ser preso pelo texto, isto é, preenchê-lo,
repetindo-o. É talvez essa a famosa armadilha tão sutil e sofisticada que
Henry James, em seu prefácio, disse ter lançado ao leitor:
It is an excursion into chaos while remaining, like Blue-Beard and Cinderella,
but an anecdote – though an anecdote amplified and highly emphasized and
returning upon itself; as, for that matter, Cinderella and Blue-Beard return. I
need scarcely add after this that it is a piece of ingenuity pure and simple, of cold
artistic calculation, an amusette to catch those not easily caught (the “fun” of the
captures of the merely witless being ever small), the jaded, the disillusioned,
the fastidious.16

190
[É uma jornada no interior de um caos total, mas que não consiste, assim
como em Barba Azul e Cinderela, numa simples anedota –, entretanto, é
uma anedota, altamente ampliada, em relevo e voltando-se sobre si mes-
ma; como, aliás, Cinderela e Barba Azul também retornam. Tenho apenas
necessidade de acrescentar, depois disso, que é um puro e simples jogo de
engenhosidade, de frio cálculo artístico,17 uma amusette para capturar aque-
les que não são facilmente capturáveis (o prazer de capturar aqueles que
só são inteligentes sendo medíocres), os blasés, os desiludidos, os difíceis.]
Voltaremos sobre esse instigante propósito, presente no prefácio,
para tentar compreender a enigmática distinção que James faz entre
leitores ingênuos e leitores engenhosos, e para examinar como a volta
sobre si mesmo do texto funciona como uma armadilha – ainda que
de maneira diferente – para uns desses leitores, assim como para ou-
tros. Eu queria até aqui, simplesmente, sugerir, tornando-a evidente,
a potência capturante do efeito de leitura suscitado por esse texto.
Gostaria, agora, de fazer um estudo do texto, cuja tarefa seria, simul-
taneamente, levar em conta esse efeito de leitura: uma leitura do texto
que se articularia sobre uma leitura de sua leitura. Essa leitura, em
duplo plano, que deveria também, voltada sobre si mesma, se preo-
cupar com as questões seguintes: o que é um efeito de leitura? De
modo geral, o que é uma leitura? O que diz o texto sobre sua própria
leitura? O que é uma “leitura freudiana” (o que ela é e o que não é?)
O que do texto convida, solicita uma exegese psicanalítica, e o que do
texto resiste, se recusa a ela? De que maneira a literatura autoriza a
psicanálise a manter um discurso sobre ela, e, de que maneira, tendo-o
autorizado, desqualifica esse discurso? Uma leitura conjugada, em ou-
tros termos, de A volta do parafuso e de sua exegese psicanalítica será
dada como objeto de reflexão, não somente a maneira como a psica-
nálise diz alguma coisa sobre o texto literário, mas também a maneira
como o texto literário diz alguma coisa sobre a psicanálise. Veremos,
a partir desse duplo encontro, os limites e as condições da relação de
inteligência possível entre literatura e psicanálise: e em que consistem
seus entrecruzamentos.
O QUE É UMA “LEITURA FREUDIANA”?

The freudians err in the right direction.


Mark Spilka
Gostaria de começar aprovando o que Mark Spilka propõe:
a questão que me preocupa (…) é a pobreza de imaginação de grande parte
da crítica freudiana, sua grosseria e sua rigidez na aplicação de intuições
psicológicas válidas, sua concepção estreita de melhores possibilidades (…):

191
Passadas quatro décadas, os críticos freudianos transformaram a fábula
de James em uma cause célèbre. A fábula sustenta a cause através de suas
ambiguidades eróticas. Porque ela provoca terrores infantis, e talvez mes-
mo seja proveniente deles, podemos dizer que a aproximação freudiana
deve funcionar aqui ou em nenhuma outra parte. Entretanto, os adversá-
rios acusam os críticos freudianos de haver reduzido a fábula a “um banal
documento clínico”. Ainda que eles tenham perfeita razão, minha própria
acusação parece mais pertinente: esses críticos freudianos não foram suficien-
temente freudianos.18
Essas observações sutis e provocativas erram somente ao conside-
rar como resolvida e não problemática a questão que, entretanto, elas
convidam a abrir: até que ponto se pode ser freudiano? A partir de que
ponto assim se torna? A partir de que limite, ou medida, uma “leitura
freudiana” é suficiente? O que há de freudiano numa “leitura freudia-
na” e como determinar a medida?
Usualmente, caracteriza-se e se reconhece a “leitura freudiana” pela
importância que ela dá ao sexo: à referência dada a seu lugar central,
a seu papel determinante no texto. O problema teórico focal que le-
vanta, claramente, a exegese literária analítica é, então, o do estatuto
da sexualidade no texto. É assim que Wilson explica, com efeito, toda
a história de A volta do parafuso pela frustração sexual da governanta
apaixonada pelo mestre, a qual, incapaz de confessar a si mesma seus
próprios desejos sexuais, os projeta obsessivamente, histericamente,
sobre as crianças, percebe-os como exteriores a ela mesma, sob a forma
alucinada de fantasmas. “A teoria é, então, que a governanta que conta
a história é um caso neurótico de recalque sexual, e que os fantasmas
não são fantasmas reais, mas alucinações da governanta.”19
Para consolidar essa sua teoria, Wilson insiste sobre o valor cla-
ramente erótico das metáforas e sublinha os símbolos fálicos:
“Observem, do ponto de vista freudiano, a significação do interesse da
governanta pelas peças de madeira da menina, e o fato de que a apari-
ção masculina toma forma, desde o início, de uma torre, e a aparição
feminina sobre um lago.”20
Deve-se lembrar, como o sublinha de início o título mesmo do artigo
de Wilson, que aquilo que, do texto, solicitou a exegese analítica, con-
vidou a “observar” o “ponto de vista freudiano”, foi a “ambiguidade
de James”. O texto, diz Wilson, é ambíguo, provoca questões, exige
uma resposta analítica, de três maneiras diferentes: 1) Por sua retóri-
ca: pela proliferação dos símbolos e das metáforas eróticas, sem que,
entretanto, o elemento sexual seja aí propriamente nomeado;21 2) Por

192
sua temática sobrenatural, fantástica, seus acontecimentos anormais,
“subversivos e furtivos”;22 3) Por sua estrutura narrativa elipticamente
incompleta, que é a do enigma.23
Interrogado por esses três modos de questionamento do texto – o
narrativo, o temático, o retórico – o crítico “freudiano” se vê, na ótica
wilsoniana, intimado a eles responder. À questão narrativa, à estrutura
elíptica e incompleta do enigma, ele responde completando-a, indican-
do “a palavra do enigma”, a solução do mistério, no desejo inconscien-
te da governanta pelo mestre; à questão temática da estranheza fantás-
tica, responde com um diagnóstico: trata-se de sintomas anormais de
uma frustração sexual, de um recalque patológico; à questão retórica
da ambiguidade simbólica, responde explicitando o sentido próprio
das metáforas fálicas.
Referida ao “ponto de vista freudiano”, a sexualidade, valorizada
como referência e fundamento da interpretação, recebe, então, aqui o
estatuto de uma resposta à questão do texto. Lógica e ontologicamente,
a resposta (sexual) preexiste à questão (textual). A questão se formula
(retoricamente, tematicamente, narrativamente) a partir do único fato
de que a resposta está escondida. A questão é apenas, em realidade,
uma resposta dissimulada, um esconderijo da resposta. O papel do crí-
tico é, assim, de fazer sair a resposta de seu esconderijo, de responder,
não tanto ao texto, mas a partir do texto: responder por ele, em seu
lugar; substituir a questão textual pela resposta analítica.
Frente a tal operação, duas questões podem e devem se fazer: 1)
“James” (ou o texto jamesiano) autoriza, dessa maneira, a responder a
partir dele? 2) “Freud” (ou o texto freudiano) autoriza essa forma de
responder por ele?
A questão da possibilidade de responder a partir do texto, da mesma
forma que a do estatuto da resposta como tal, é, de fato, levantada
pelo texto mesmo, desde sua capa, quando Douglas, tendo prometido
contar uma história terrificante, deixa entender que se trata de uma
história de amor, que a heroína (a governanta) tinha lhe confiado:
Mrs. Griffin, however, expressed the need for a little more light.
“Who was it she was in love with?”
“The story will tell”, I took upon myself to reply.
(…)
“The story won’t* tell” said Douglas; “not in any literal, vulgar way”24
[Sra. Griffin (…) expressou a necessidade de ter um pouco mais de luz
[sobre a história].*

193
“Ela estava apaixonada por quem?”
“A história dirá”, retruquei.
(…)
“A história não dirá”, retomou Douglas; “não de forma literal e vulgar.”]25
Tomando para si mesmo a tarefa de responder, explicitando justa-
mente por quem a governanta estava apaixonada, dando a palavra do
enigma ao desejo recalcado da governanta pelo Mestre, o que Edmond
Wilson faz? O que faz o exegeta “freudiano”, senão, precisamente, o
que o texto nos indica, de início, como isto que ele não fará: “A história
não o dirá, não de forma literal e vulgar.” Essas linhas do texto não
comportariam um comentário jamesiano sobre a exegese wilsoniana?
Um comentário sugerindo que o erro de tal exegese é de ser, não ne-
cessariamente incorreta ou falsa, mas vulgar.
Ora, o que é a vulgaridade? E, segundo essa problemática jamesiana,
como definir, desde o início, numa leitura (seja ela freudiana ou ou-
tra), não simplesmente sua justeza, mas seu tato? Em que consiste a
vulgaridade da exegese wilsoniana? Em relação a quem, ou de que, se
pode dizer que a essa exegese falta tato?
“É a dificuldade mesma que protege contra a vulgaridade”, escrevia
James a H. G. Wells.26 E, no prefácio da edição novaiorquina de A volta
do parafuso, ele explica mais claramente a natureza dessa dificuldade,
dessa questão que está subentendida em seu esforço de escrita?
Portentous evil – how was I to save that, as an intention on the part of my de-
mon spirits, from the drop, the comparative vulgarity, inevitably attending,
throughout the whole range of possible brief illustration, the offered example, the
imputed vice, the cited act, the limited deplorable presentable instance?27
[Um mal prodigiosamente ameaçador, obscuramente monstruoso – como
deveria eu salvar tal coisa, como uma intenção da parte de meus espí-
ritos demoníacos, da queda, da vulgaridade relativa, que inevitavelmente
acompanha o exemplo dado, o vício imputado, o ato citado, o caso limite
deplorável e apresentável?]
O que é vulgar é o “exemplo dado”, o “vício imputado”, explicitado: a
ilustração específica na medida em que é unívoca e imediatamente re-
ferencial. O vulgar é o literal, na medida em que é não ambíguo: “A his-
tória não dirá; não de maneira literal e vulgar.” O literal é vulgar porque
estanca o movimento do sentido e seu processo infinito de substituição
metafórica. É, então, vulgar aquilo em que falta a dimensão simbólica,
isto é, o que, do simbólico, faz faltar a fuga, o que do sentido, exclui a
perda, o que tende a eliminar, do seio mesmo da linguagem, o silêncio.

194
A vulgaridade que James queria, antes de tudo, evitar, é uma linguagem
sem resto e sem fuga, amputada de sua reserva silenciosa, de sua possi-
bilidade de silêncio: uma linguagem sem o poder de se calar.
Ora, se a vulgaridade é, assim, uma redução da retórica, uma elimi-
nação da ambiguidade do texto, não é precisamente em direção a esse
fim que a análise de Wilson tende, logo que ele concebe que o papel
do processo exegético vai na direção de uma literalização (Isto é, em
termos jamesianos, de uma vulgarização) da sexualidade no texto? Se
Wilson, com efeito, está consciente da questão retórica indecidível do
texto: “a questão fundamental se apresenta e parece permanecer sem
resposta: o que devemos pensar do protagonista?”28
Ele somente destaca essa questão para, precisamente, reduzi-la, para su-
plantar a ambiguidade, fornecendo justamente uma resposta cuja lite-
ralidade grosseira é, realmente, rudimentar. “O que devemos pensar do
protagonista?” É mesmo o tipo, sugere Wilson, da solteirona frustrada, a
celibatária anglo-saxônica; e nos lembramos na obra de James de casos ine-
quívocos de mulheres que se enganam e enganam os outros sobre a origem
de seus fins e de suas emoções. (…)
O universo de James está cheio dessas mulheres. Elas não são sempre afe-
tivamente pervertidas. Às vezes são apáticas (…)
Ou bem têm grande desejo de afeição, mas são demasiado inibidas ou
passivas demais para obtê-la por si mesmas.29
Literalizar dessa maneira a sexualidade no texto, é isso que o “ponto
de vista freudiano” solicita e legitima? Esta literalização vulgarizante
que é invalidada, como acabamos de ver, por James, é confirmada por
Freud? Se para James, o literal é vulgar, pode-se dizer que, na ótica
freudiana, o sexual é, como tal, literal? Para responder a essa questão,
gostaria de citar alguns fragmentos de um texto pouco conhecido de
Freud, publicado em 1910, sob o título de “Psicanálise ‘selvagem’”:30
Uma dama de certa idade (…) veio me ver, há alguns dias, para uma con-
sulta, queixando-se de sofrer de crises de angústia. (…) A causa precipitan-
te do desencadeamento dessas crises tinha sido seu divórcio de seu último
marido; mas sua angústia, segundo o que ela dissera, fora consideravel-
mente intensificada, desde que consultara um jovem médico no bairro
onde morava, pois esse último havia-lhe informado que sua angústia pro-
vinha de uma ausência de satisfação sexual. Ele dissera que ela não podia
suportar a interrupção das relações com seu marido, e, por conseguinte,
ela só tinha três meios para recuperar sua saúde – devia retornar para seu
marido, ou arranjar um amante, ou bem, obter satisfação por si mesma.
Desde então ela se convenceu de que era uma doente incurável. (…)

195
Ela veio, entretanto, me ver, pois o médico lhe havia dito que era uma
descoberta de minha responsabilidade, e que lhe bastava me perguntar, e
que eu confirmaria que o que ele dizia não era mais que a estrita verdade.
Não me demorei na situação desconfortável em que a visita me colocou,
mas consideraria antes a conduta do prático que me enviou essa dama (…)
retomando minhas observações sobre a psicanálise “selvagem” em relação
a esse incidente.31
É tentador sublinhar a analogia sugestiva entre a situação cômica
esboçada por Freud e o tratamento, supostamente, “freudiano” da go-
vernanta elaborado por Wilson. Nos dois casos, a referência freudiana
é também brutalmente literal, na medida em que reduz sumária e crua-
mente a explicação analítica para a “ausência de satisfação sexual”.
Vejam-se, então, sob esse ponto, os comentários de Freud, que começa
por lembrar, como James, que uma interpretação é válida, não simples-
mente em função de sua verdade mas também de seu tato: “qualquer
pessoa levantaria a crítica de que, se um médico julgar necessário dis-
cutir a questão da sexualidade, (…) deve fazê-lo com tato (…).”32
Entretanto, o tato não é simplesmente uma necessidade prática da
intervenção analítica, sua importância e suas implicações são igual-
mente teóricas, uma vez que marcam, por certa retenção do discurso
interpretativo, uma margem de erro possível, uma posição incerta, em
relação à verdade.
À parte tudo isso, é sempre possível tirar uma falsa conclusão, e ninguém
está em posição de descobrir toda a verdade. A psicanálise se confere regras
técnicas bem definidas, com a finalidade de substituir o indefinível “tato
médico” considerado um dom especial.33
À análise do “psicanalista selvagem” faltava, então, o tato necessário,
mas isso não é tudo.
Ademais, o médico em questão ignorava, ou bem havia mal compreen-
dido, certo número de teorias científicas [Freud sublinha] da psicanálise,
e mostrava o quão superficial era sua compreensão de sua natureza e de
suas finalidades.
(…) O conselho do médico à dama mostra claramente em que sentido
compreendia a expressão “vida sexual” – no sentido popular, a saber, aquele,
segundo o qual, as necessidades sexuais não significam nada além do que
a necessidade do coito. Ora, na psicanálise, o conceito do que é sexual com-
preende muito mais, estendendo-se para além e para aquém do sentido popular.
(…)
A ausência mental de satisfação e todas as suas consequências podem exis-
tir onde as relações sexuais não faltam (…). Sublinhando exclusivamente o
fator somático na sexualidade, esse jovem médico simplifica, sem dúvida,
consideravelmente o problema.34

196
A sexualidade, diz, então, Freud, não deve ser compreendida em seu
sentido literal, popular: em sua extensão analítica, ela vai, ao mesmo
tempo, para além e para aquém do sentido literal. A relação do sexual
analítico com o ato sexual não é simplesmente uma relação de adequa-
ção literal, mas, bem ao contrário, uma relação, se possível dizer, de
inadequação: a sexualidade psicanalítica, nos diz Freud, é, ao mesmo
tempo, mais e menos que o ato sexual literal. Ora, o que é uma exten-
são de sentido que não é simplesmente a mais, mas também a menos
que o sentido literal? É nesse paradoxo aparente que reside, na con-
cepção freudiana, a complicação inerente à sexualidade humana. Mas
não se trata mais tanto do sentido do sexual, e sim de uma complexa
relação do sexual ao sentido, relação que não é simplesmente desvio,
frente a frente ao sentido literal, mas uma problematização da literali-
dade como tal.
Entretanto, a literalização simplista da psicanálise “selvagem” com-
porta igualmente um outro erro, cuja crítica Freud elabora:
Um segundo mal-entendido, também grosseiro, se distingue por trás do
conselho do médico.
É verdade que a psicanálise indica a ausência de satisfação como causa das
desordens nervosas. Entretanto, não afirma ela mais do que isso? Seu ensi-
no deve ser escamoteado, como complicado demais, quando declara que os
sintomas nervosos provêm de um conflito entre duas forças – de uma parte,
a libido (que em regra geral tornou-se excessiva), e, de outra parte, uma re-
cusa da sexualidade, ou um recalcamento tornado demasiadamente severo?
Logo que se lembra desse segundo fator, que não é, de forma nenhuma, secun-
dário em importância, pode-se acreditar que a satisfação sexual em si mes-
ma constitui um remédio infalível para o sofrimento dos neuróticos. Bom
número dessas pessoas é, com efeito, (…) em geral, incapaz de satisfação.35
Os sintomas nervosos, insiste Freud, provêm não simplesmente
de uma “ausência de satisfação sexual”, mas de um conflito entre duas
forças. O recalcamento é constitutivo da sexualidade: o segundo fator
não é de forma nenhuma secundário em importância. Mas o segundo
fator é, como tal, a contradição do primeiro. Isto é, não é somente o
sentido literal – o primeiro fator – que é prioritário ou primeiro em
sua primazia e sua prioridade. Isto é, o que o constitui precisamente,
como sentido literal, sua essência de literalidade, é, como tal, subver-
tida e negada pelo sentido segundo, que não é secundário. Estando a
sexualidade constituída por esses dois fatores, seu sentido é sua própria
contradição; o sentido da sexualidade é sua própria barragem.

197
“A ausência de satisfação”, em outros termos, não é simplesmente
um acidente da vida sexual, mas, antes, um traço essencial a ela. “Toda
formação humana [diz Lacan depois de Freud] tem por essência, e não
por acidente, reprimir o gozo.”36
Aí está um ponto capital que Wilson, com efeito, desconhece, colo-
cando “a ausência de satisfação” em oposição ao “sexo”, considerando
o que chama “frustração” da governanta (“the thwarted Anglo-Saxon
spinster”) como um puro acidente anormal que aponta para a patolo-
gia. Ora, o que é anormal, senão precisamente, ainda, o que se afasta
do literal? É impossível que o sexo literal, como simples fato positivo,
possa se negar, faltar a seus próprios fins, comportar sua própria ne-
gação, como uma propriedade que lhe é inerente. Com efeito, para
Wilson, o sexo é “simples”, isto é, inteiramente adequado em relação a
si mesmo.37 É assim que Wilson escreve a propósito de A fonte sagrada,
outro romance obscuro de James, para esclarecer sua obscuridade: “E
se o tema escondido de A fonte sagrada, fosse, ainda, simplesmente o
do sexo?”38 Ora, não somente para Freud, como acabamos de ver,
o estatuto da sexualidade não é simples; mas constituído por dois fa-
tores dinamicamente contraditórios; assim, a sexualidade, como tal, é
o que impede a simplicidade. É porque a sexualidade é essencialmente
a violência de sua não simplicidade, a violência de sua própria divisão
e de sua própria contradição, que ela é sentida como despedaçadora e
vivida como ameaçadora: terrificante. O efeito de terror que a história
de A volta do parafuso provoca é, em realidade, ligado pelo texto, dis-
creta, mas sugestivamente, a esse efeito de não simplicidade. Douglas,
tendo prometido contar a história, antecipa:
“It’s quite too horrible.” (…)
“It’s beyond everything. Nothing at all that I know touches it.”
“For sheer terror?” I remember asking.
He seemed to say it was not so simple as that; to be really at a loss
how to qualify it.39

[“É horrível demais.” (…)


Vai além de tudo. Não conheço nada que se aproxime disso.”
“Como efeito de terror?” perguntei.
Pareceu que ele quis dizer que não era tão simples assim, mas que
ele não podia encontrar palavras para qualificá-lo.]40

198
Se a sexualidade não aponta para a simplicidade num sentido lite-
ral, mas, ao contrário, para a complexidade de fatores heterogêneos e
contraditórios, a pluralidade de forças em conflito, se o sentido da se-
xualidade é sua própria divisão e sua própria contradição, esse sentido
não pode ser unido, unívoco, mas é necessariamente ambíguo. Não é a
retórica que dissimula e esconde a sexualidade; a sexualidade é a am-
biguidade: a coexistência de sentidos dinamicamente antagonistas. A
sexualidade é a divisão do sentido, e o sentido como divisão; é conflito
de sentidos, e o sentido como conflito.
Ora, é precisamente esse conflito inerente ao sentido como tal, esse
conflito que estrutura a relação sexual ao sentido, que é o tema d’A
volta do parafuso.
A governanta, escreve muito pertinentemente John Lydenberg, pode in-
distintamente perceber os fantasmas como a essência do mal e, como
Heilman o faz notar, ela escolhe certamente palavras que os identificam a
Satã e que identificam a ela como o Salvador. Mas nosso ponto de vista é
diferente do da governanta: vemo-la como um dos combatentes, e, à me-
dida que a história progride, ficamos cada vez menos certos sobre quem
luta com quem.41
Dramaticamente, no texto, através do conflito dos sentidos, conside-
rando-se o sentido como conflito, a sexualidade não é, entretanto, “o
sentido do texto”, mas, bem ao contrário, o que coloca o sentido do texto
como fracasso: o que só pode engendrar um conflito de interpretações,
isto é, justamente, uma discórdia crítica, tal como ilustra aqui o vivo de-
bate polêmico. “Se o discurso analítico [escreve Lacan] indica que (…)
[o] sentido é sexual só falta dar razão a seu limite. Em nenhuma parte
há a última palavra (…) O sentido indica a direção do seu fracasso.”42
A CENA DA CONTROVÉRSIA: O CONFLITO DAS INTERPRETAÇÕES

Et ma tête surgie
Solitaire vigie
Dans les vols triomphaux
De cette faux

Comme rupture franche


Plutôt refoule ou tranche
Les anciens désaccords
Avec le corps.
Mallarmé

199
Repetindo a cena primitiva da divisão do sentido no texto, os críticos
não podem esgotar, dominar o sentido dessa divisão, mas, por sua vez,
dela participar, dramatizá-la, completá-la. Ora, participar da divisão é,
ao mesmo tempo, lutar contra ela: se engajar, dinamicamente, elimi-
nando, com o adversário, a heterogeneidade do sentido, o escândalo
da contradição, do equívoco dos signos:
“Quase tudo do princípio ao fim”, declara Wilson, “pode ser lido num sen-
tido ou em outro”. “Quase tudo”! Mas, se houver uma coisa, uma pequena
coisa, que não possa ser lida em dois sentidos, qual não pode ser lida num
só sentido? Então, o quê? É estranho, com efeito, que Sr. Wilson não veja
que não importa que fato deste gênero possa ser a pequena pedra angular
sobre a qual sua teoria deva desmoronar.43
Os críticos freudianos falsificam os índices externos ao texto tão ousada-
mente como o fazem com os internos. A história comporta, certamente,
passagens que se podem ler como ambíguas; mas as passagens determi-
nantes sem ambiguidade, a partir das quais a crítica pode trabalhar são
tão numerosas que a utilização das passagens ambíguas, como pontos de
partida, não parece ser uma boa estratégia crítica.44
Admitindo-se que o texto tem níveis de sentido variados, pareceria, entre-
tanto, pouco sensato sustentar que eles são mutuamente contraditórios.45
Mas o esforço para diminuir a contradição participa, ele mesmo, da
contradição: o gesto que afirma o sentido como não dividido, ao mes-
mo tempo, exclui a posição antagônica; a homogeneidade do sentido
só se afirma pela expulsão de sua heterogeneidade. Buscando unifi-
car o sentido, estabelecê-lo como não ambíguo, os críticos só mar-
cam, mais ainda, sua divisão interna, sua duplicidade constitutiva. A
contradição, cada vez mais tenaz reaparece, ironicamente, nos termos
mesmos do discurso crítico que se esforça por eliminá-la. “[Minha]
interpretação tem o mérito de ser extremamente inclusiva; entretanto,
temo que ela não comporte lugar para (…) Sr. Wilson.”46
Ora, afirmar a contradição, negando-a, é precisamente ser pego no mo-
vimento de engajamento contraditório da narrativa, se engajar no impas-
se dinamicamente conflituoso em que se encontra a narradora: é, então,
repetir o processo do ato textual, desencadeado e posto em movimento
pelo equívoco sexual. Evidentemente, a crítica aqui somente fica de acor-
do com o texto, entrando no jogo da ação textual. “A volta do parafuso [es-
creve James] era desesperadamente uma ação, ou então, não era nada.”47
Dessa ação textual, os críticos, assim como os personagens, são os
agentes, os atores. A crítica aqui, para pedir emprestado os conceitos
de Austin, tem uma função não constativa, mas performativa do texto:

200
do sentido plural do texto, a crítica é, não tanto a constatação, mas a
passagem ao ato: ela é compreendida pelo texto, em vez de compreen-
dê-lo; é o texto que compreende a crítica, que orquestra, em sua pró-
pria leitura, o desacordo crítico na qualidade de performance e reali-
zação de seu próprio despedaçamento. “A ironia [como, aliás, escreve
Roland Barthes] é, então, o que é imediatamente dado ao crítico: não
ver a verdade, segundo a palavra de Kafka, mas ser a verdade.”48
Dramatizando dessa maneira, levando em conta o desacordo con-
flituoso sobre a verdade do texto, a verdade mesma como seu próprio
desacordo, os críticos, entretanto, fazem de Freud o responsável por
sua discórdia, pela causa e a linha de demarcação de sua divisão polê-
mica. Os estudos sobre A volta do parafuso dividem-se, naturalmente,
segundo sua própria definição, em estudos que se dizem “freudianos”
e aqueles que se tomam como “antifreudianos”. Se Ezra Pound chama
o romance de James de “um caso freudiano”,49 se Wilson convida os
leitores a “observar” – como vimos – o “ponto de vista freudiano”, se
Oscar Cargill celebra, no título mesmo da primeira versão de seu estu-
do d’A volta do parafuso, “Henry James como um pioneiro freudiano”,50
Katherine Anne Porter declara, em revanche, num programa de rádio:
“Eis, pelo menos uma vez, um lugar onde encontro Freud em total
derrota”.51 Para refutar a exegese de Wilson, Robert Heilman publica
um ensaio polêmico que intitula, de modo geral, “A leitura freudiana
d’A volta do parafuso” e que começa pela seguinte frase: “A leitura freu-
diana de A volta do parafuso (…) violenta, não só a história, mas tam-
bém o prefácio”.52 Em resposta a esse estudo polêmico e a outros, que
ele enumera, numa nota, como “ensaios antifreudianos”, John Silver
publica um estudo que “propõe dar apoio à exegese de Sr. Wilson” e
que intitula, por sua vez, “Nota sobre a leitura freudiana de A volta do
parafuso”.53 Entre “freudianos” e “antifreudianos”, no contexto do de-
bate jamesiano, o fantasma de Freud tornou-se, dessa forma, de modo
significativo, a marca e o signo da divisão. Como se “Freud” tivesse se
tornado o nome próprio da discórdia.
Ora, essa simetria polarizadora que opõe os “freudianos” aos “anti-
freudianos” repousa sobre um pressuposto também problemático que,
sendo objeto de debate, é também paradoxal. Como os dois campos
críticos se acreditam em espetacular desacordo, no que concerne ao
“verdadeiro sentido” de James, também manifestam um espetacular
acordo, no que concerne ao “verdadeiro sentido” de Freud, pressuposto
como conhecido, unívoco e indiscutível, à diferença do de James. Ora,

201
o “verdadeiro Freud” não nos é mais certamente nem imediatamen-
te acessível que o “verdadeiro James”. “Freud” também é um texto,
submetido às incertezas da interpretação. Talvez não seja suficiente se
dizer “freudiano” para o ser. Da mesma forma, não é suficiente se dizer
“antifreudiano”, para realmente poder tornar-se “antifreudiano”. Nesse
sentido, o nome próprio de Freud é nada menos que um nome próprio,
mas antes um fantasma, tão ambíguo como o de James, na medida em
que ele nos comunica não a garantia de uma verdade, um saber refe-
rencial, mas uma necessidade de interpretar. Uma “leitura freudiana”
não é, então, simplesmente uma leitura com a certeza de ter um saber
de Freud, mas, antes de tudo, uma leitura de Freud, que deve, como
tal, assumir seus riscos, sem poder estar segura de nada, não podendo
transgredir seu estatuto de leitura necessariamente submetida ao erro.
A questão não é simplesmente decidir se a leitura dita “freudiana” é,
sim ou não, verdadeira ou falsa, correta ou incorreta. Ela pode ser as
duas coisas ao mesmo tempo. Talvez seja correta, mas falta-lhe o es-
sencial, a complexidade textual. A questão da “verdade” de uma leitura
deveria, ao menos, ser complicada por uma outra questão que, desde
Freud, com efeito, aprendemos a colocar: o que essa “verdade” deixa
de lado ou exclui? O que dela é feito para faltar, em que deve fracassar?
Qual é, precisamente, seu resto? Se a cena crítica é, ao mesmo tempo,
repetitiva e performativa da cena textual, é a “falsidade” mesma das
leituras que faz sua “verdade”. A leitura “freudiana” é, sem dúvida,
“verdadeira”, mas não mais verdadeira que as posições antagônicas
que a contradizem, engana-se, assim, ao acreditar excluí-las. Essas po-
sições antagônicas, afirmando a contradição do texto, negando-a, são
“verdadeiras”, na medida mesma em que são “falsas”. Uma questão já
se coloca, ao mesmo tempo, a partir de James, assim como a partir de
Freud: uma leitura da ambiguidade é, como tal, possível, sem sua re-
dução, no processo mesmo da leitura? A ambiguidade e a interpretação
são, essencialmente, compatíveis?
Não se acentua suficientemente a que ponto a expressão “leitura
freudiana” é, em si mesma, uma expressão ambígua, podendo signi-
ficar ao mesmo tempo “freudiana” pelo que é lido (pelo conteúdo de-
preendido através da interpretação), ou bem, por sua maneira mesma
de ler. Então, é o primeiro sentido que domina, quase exclusivamen-
te, a concepção de uma leitura freudiana, no contexto americano. Na
França, a leitura de Freud por Lacan colocou em evidência a segunda
acepção possível da noção de “leitura freudiana”, aquela que se refe-

202
riria antes a um método de leitura. Para Lacan, com efeito, o incons-
ciente é, não somente, o que deve ser lido, mas ao mesmo tempo, e,
antes, o que se lê. Freud só pôde descobrir o inconsciente lendo no
discurso histérico seu próprio inconsciente, isto é, ali lendo o que nele
lia, lendo o que lia no que estava para se ler. O próprio da descoberta
freudiana consiste, então, para Lacan, não simplesmente na descoberta
de um novo enunciado: o inconsciente; mas na descoberta decisiva de
uma nova maneira de ler:
Freud (…) estava interessado, inicialmente, nas histéricas (…) Ele as ti-
nha escutado muito, e, escutando-as, produzia-se algo de paradoxal (…)
a saber, uma leitura. Foi escutando as histéricas que Freud leu que havia
um inconsciente, isto é, em suma, algo que ele só podia construir e que o
implicava no caso, nisso que percebia, com grande espanto, que ele não
deixava de participar do que dizia a histérica, que se sentia afetado por
isso. Naturalmente, na série de regras, através das quais ele instaurou a psi-
canálise como prática, tudo consistiu para ele em evitar essa consequência,
em se arranjar para não ser afetado.54
Proponho-me, dando atenção a essa tônica lacaniana, reler A volta do
parafuso, para buscar opor à concepção convencional de uma “leitura
freudiana” uma concepção de leitura diferente, cuja abertura franquea-
da por Lacan indica ao mesmo tempo a necessidade e as possibilida-
des.55 Tal concepção de leitura procurará, não capturar o mistério, mas
seguir de perto o percurso de sua fuga; não encontrar a “palavra” do
enigma, mas estudar desta, a estrutura; não literalizar a ambiguidade
dos signos, mas compreender sua necessidade e seu funcionamento
textual, retórico. A questão seria, então, não saber qual é o sentido des-
sa história, mas antes como essa história significa, de que maneira o
sentido – qualquer que seja ele – aí se inscreve e marca seu limite: a
direção para a qual seu fracasso aponta.
O CENÁRIO DA NARRATIVA: AS VOLTAS DO PARAFUSO DO PRÓLOGO

Parecia que a história que ele havia prometido ler para nós, para ser bem
compreendida, exigia realmente algumas palavras como prólogo.
James

A literatura é da linguagem (…); mas é da linguagem, ao redor da qual, desenhamos um


cenário, um cenário que indica uma decisão de considerar, através de uma tomada de
consciência totalmente particular, os recursos que a linguagem desde sempre possuía.
Stanley E. Fish

203
A história propriamente dita de A volta do parafuso (a dos fantasmas
e da governanta) é precedida por um prólogo que lhe é, ao mesmo
tempo, posterior e exterior: uma espécie de cenário, cuja função é a de
situar a origem do romance.
A história, ou o conteúdo da narrativa, se anuncia, assim, como o
centro do quadro, o ponto focal de um espaço narrativo que, do exte-
rior, a designa e a circunscreve como seu interior. Organizando-se ao
redor da história, o quadro narrativo do prólogo circunscreve, todavia,
uma lareira, no centro de seu espaço literal:
The story had held us, round the fire, sufficiently breathless (…) He began to
read to our hushed little circle (…) kept it, round the hearth, subject to a com-
mon thrill.56
[A história nos mantivera sufocados, ao redor do fogo (…) Ele começou a ler
para nosso pequeno círculo agora silencioso (…) mantendo-o próximo, ao
redor da lareira, numa mesma espera, com emoção apaixonada.]57
Uma vez que no gesto mesmo pelo qual o espaço narrativo do prólogo
se organiza como um enquadramento da história, igualmente se organi-
za como um círculo ao redor do fogo, e, assim, o fogo, como a história,
situa-se na lareira do espaço discursivo e da operação de enquadramen-
to, pode-se, então, permitir perguntar se o fogo e o conteúdo da história
não seriam metáforas um do outro. Tal relação metafórica se inclinaria,
por outro lado, a partir de seus dois termos, para a posição central?
Deixaremos em suspenso essa questão a que voltaremos mais tarde.
O prólogo enquadra a história tão bem temporal quanto espacial-
mente. Sendo posterior à história (à narrativa da governanta), relata,
ao mesmo tempo, um acontecimento anterior ao seguinte: o encontro
da governanta e do Mestre. Se o quadro deve determinar a origem da
narrativa, essa origem anuncia-se como, ao mesmo tempo, anterior e
posterior à narrativa mesma.
Anterior à história, mas posteriormente reproduzida e narrada, sua
origem, como tal, assinala a autoridade da voz narrativa, fonte da his-
tória e depositária do saber do qual ela procede e que deve desvelar.
Se, com efeito, a função do prólogo é situar a voz narrativa e sua re-
lação com a história, não é, entretanto, um narrador que o preâmbulo
introduz, mas três: o que diz “eu”, que nos fala, não tem relação direta
com a história; essa lhe foi recontada por seu amigo Douglas, que, por
sua vez, só a conheceu por ter ouvido a confidência da governanta,
narradora original e que foi sua heroína. Essa mulher que Douglas co-
nhecera, há tempos, como governanta de sua irmã e que amou secre-

204
tamente, mesmo sendo ela dez anos mais velha do que ele, havia-lhe
comunicado, por escrito, essa narrativa confidencial, quando estava
quase morrendo. Tendo – depois de quarenta anos de silêncio – con-
tado a história, ao redor do fogo, para um círculo de amigos, dentre
os quais o “eu” (narrador, que escolhera como ouvinte), Douglas, na
proximidade de sua própria morte, confiou o manuscrito a esse amigo
privilegiado, que, introduzindo o prólogo, vai se tornar o narrador e
confiar a história a nós, a partir da transcrição da narrativa escutada ao
redor do fogo que ele lhe fez, mas “muito mais tarde”.
A narrativa, dessa maneira, tem sua garantia somente pela existên-
cia de uma pluralidade, por uma série de narradores que se reveza-
vam entre eles mesmos, constituindo uma cadeia narrativa. A origem
da narrativa não é, então, assegurada por uma simples voz narradora,
mas, depois, pelo efeito do eco da voz que retoma outras vozes. Tudo
se passa como se o quadro se refletisse, se colocasse “em abismo”.58
Ora, multiplicando-se dessa maneira, reproduzindo o gesto narrati-
vo, o quadro torna-se, ao mesmo tempo, a colocação, em abismo, da
narrativa que ele próprio contém, e o lugar em que a narrativa logo
se abisma, em sua própria repetição. E se a narrativa se origina em sua
própria repetição é porque a operação do enquadramento, encenada
pelo prólogo, longe de apenas situar, como parece, a origem da narra-
tiva situa, em realidade, apenas sua perda: o infinito distanciamento. A
origem da narrativa é, precisamente, o esquecimento de sua origem: a
narrativa da origem da narrativa só se pode relacionar com sua perda.
Ora, pode-se perguntar: o esquecimento da narrativa e a narrativa mes-
ma desse esquecimento não caracterizam, justamente, a narrativa da
psicanálise e a psicanálise como narrativa? A volta do parafuso bem que
poderia ser uma narrativa desse gênero. Pelas voltas do parafuso do
prólogo, a história, com efeito, se origina na perda de sua origem. O
prefácio da New York, por sua vez, o acentua, acrescentado, ele tam-
bém, só depois, uma espécie de prólogo ao prólogo, na tarefa de suprir
a origem que falta, mas não fazendo mais do que reproduzir, e recome-
çar, a perda constitutiva do começo como tal.
The starting point itself – the sense (…) of the circle, one winter afternoon,
round the hall-fire of a grave old country house where (…) the talk turned, on I
forget what homely pretext, to apparitions and night-fears, to the market and
sad drop in the general supply (…) The good (…) ghost stories (…) appeared
all to have been told (…). Thus it was, I remember, that amid our lament for a
beautiful lost form, our distinguished host expressed the wish that he might but
have recovered for us one of the scantest of fragments of this format its best. He

205
had never forgotten the impression made on him as a young man by the withheld
glimpse, as it were, of a dreadful matter that had been reported years before, and
with as few particulars, to a lady with whom he had youthfully talked. The story
would have been thrilling could she but have found herself in better posses-
sion of it, dealing as it did with a couple of small children in an out-of-the-way
place, to whom the spirits of certain “bad” servants, dead in the employ of house,
were believed appeared with the design of “getting hold” of them. This was all,
but there had been more, which my friend’s old converser had lost the thread
of (…) He himself could give us but this shadow of a shadow – my own appre-
ciation of which, I need scarcely say, was exactly wrapped up in that thinness.59
[O ponto de partida mesmo – o sentido (…) do círculo, uma tarde de
inverno, ao redor da chaminé de uma velha casa de campo, onde (…) se
conversava sobre, esqueço a propósito de que pretexto doméstico, o tema de
aparições e medos noturnos e sobre a triste diminuição desse tipo de his-
tória, observada no repertório geral (…). Parecia que as boas histórias de
fantasmas já tinham sido todas contadas (…). Foi assim, lembro-me, que,
no meio de nossa lamentação sobre essa bela forma perdida, nosso anfitrião
manifestou o desejo de poder encontrar para nós um fragmento, mesmo
que mínimo, dessa forma, em sua perfeição. Ele nunca tinha esquecido
a impressão que, quando jovem, sofrera pelo efeito recalcado de um caso
aterrador, que havia sido relatado, anos antes, com poucos detalhes, a uma
dama com quem falara em sua juventude. Se, pelo menos, essa dama tivesse
mais dados sobre a história, esta teria sido apaixonante, tratando-se, como
era, de um casal de crianças, num lugar isolado, às quais os espíritos de
certos empregados malvados, mortos durante o serviço, apareciam, com o
desígnio de “se apossar” delas. Foi tudo, mas havia acontecido mais do que
isso, mas a interlocutora de meu velho amigo havia perdido o fio (…) Ele
mesmo só podia nos dar a sombra de uma sombra – da qual minha aprecia-
ção, não é preciso dizer, estava total e precisamente nessa miudeza.].
Claro que tal “quadro” não é um simples cenário, valorizando, do
exterior, o conteúdo interior da história, mas antes uma problemati-
zação da relação entre dentro e fora. De uma parte, como sugere uma
observação de Alexander Jones, o exterior do quadro alarga o interior
da narrativa, aí incluindo, ao mesmo tempo, o leitor e aquele que po-
deria passar pelo “autor”:
Colocando-se no interior dos confins da história, na qualidade de “eu”,
James se apresenta como um dos personagens mais do que um autor onis-
ciente. Ninguém é deixado no “exterior” da história e o leitor é convidado para
que ele mesmo e James façam parte do círculo ao redor do fogo.60
Ninguém é deixado fora da narrativa. Mas, se o quadro atrai dessa
maneira o fora para o dentro, ele opera igualmente no sentido inver-
so: passando pela pluralidade das vozes narrativas que se colocam em

206
abismo, é o próprio interior da narrativa que se torna exterior a ela
mesma, a qual foi relatada por uma voz estrangeira, que dela só repro-
duz “a sombra de uma sombra”,61 alienando-a ao dentro de si mesma,
comprometendo sua intimidade e sua presença em si. O quadro não
é, então, simplesmente exterior a seu conteúdo, que valoriza como
interior, mas é uma exterioridade que penetra intimamente em sua
interioridade, assim a comprometendo. É uma clivagem interna que se-
para o conteúdo da narrativa dela mesma, colocando-a distante de sua
própria autoridade referencial. Em relação ao conteúdo da narrativa, o
quadro opera, ao mesmo tempo, como inclusão do exterior e exclusão
do interior, obscurecendo a demarcação entre fora e dentro.
O círculo ao redor do fogo encerra, assim, não somente o conteúdo
da história, mas também sua leitura. Mas e se o conteúdo da história
fosse, justamente, sua leitura? Se a leitura – exterior – fosse justamente
o conteúdo – interior – da história, sendo igualmente que essa não
presença da história em si mesma, essa exterioridade do conteúdo a si
mesmo, pudesse definir o inconsciente como tal, poder-se-ia talvez ver
melhor a interdependência, nesse texto, da narrativa e do inconsciente
pelo viés mesmo da leitura. “No discurso analítico, trata-se somente
disto: do que se lê”, diz Lacan.62 Com efeito, a cadeia narrativa das
vozes que repete outras vozes constitui, ao mesmo tempo, uma cadeia
de leituras, que releem – e reescrevem – outras leituras, uma
cadeia de leitores que, simultaneamente, registram e interpretam a
história, depreendem seu sentido no tempo mesmo em que sofrem o
efeito de sua leitura:
I asked him if the experience in question had been his own. To this his answer
was prompt.
“Oh, thank God, no!”
“And is the record yours? You took the thing down?”
“Nothing but the impression. I took it here –” he tapped his heart. “I’ve never
lost it.”63
[Eu lhe perguntei se a experiência tinha sido propriamente a sua. Sua res-
posta não se fez esperar.
“Não, graças a Deus!
– E a narrativa é sua? Você observou a coisa por você mesmo?
– Eu só notei minha impressão. Eu a inscrevi lá – e ele se tocou no cora-
ção – jamais a perdi.”]64
No prefácio de outra novela, James elabora uma teoria dessa “im-
pressão” ou efeito de leitura suscitado por uma narrativa, como aquilo
que constitui decisivamente a matéria mesma do insólito.

207
The safest arena for the play of moving accidents and of mighty mutations and
of strange encounters, or whatever odd matters, is the field, as I may call it,
rather of their second than of their first exhibition. By which, to avoid obscurity,
I mean nothing more cryptic than I feel myself show them best by showing almost
exclusively the way they are felt, by recognizing as their main interest some
impression strongly made by them and intensely received. We but too probably
break down (…) when we attempt the prodigy (…) in itself; with its “objective”
side too emphasized the report (…) will practically run thin. We want it clear,
goodness knows, but we also want it thick, and we get the thickness in the human
consciousness that entertains and records, that amplifies and interprets it. That
indeed, when the question is (…) of the “supernatural”, constitutes the only
thickness we do get. Here prodigies, when they come straight, come with an
effect imperiled; they keep all their character, on the other hand, by looming
through some other history – the indispensable history of somebody’s normal*
relation to something.65
Para colocar em cena um verdadeiro jogo de acidentes que se movem,
de fortes mutações e estranhos encontros, ou de qualquer tipo de caso,
insólito que seja; a maneira mais certa, o melhor campo, se posso afirmar,
é aquele de sua segunda exibição, mais do que da primeira. É por isso, e
para evitar qualquer obscuridade, não sei de nada mais críptico do que
trazer essas bizarrias, mostrando, quase exclusivamente, a maneira pela
qual elas são percebidas. É melhor reconhecer o seu interesse principal, que
é uma impressão, por elas fortemente suscitada e intensamente sofrida. Muito
provavelmente, fracassamos (…) se tentamos abordar o prodígio (…) di-
retamente, através de seu lado “objetivo” demasiadamente acentuado, pois
assim a narrativa (…) perderá praticamente toda sua espessura. Deus sabe
a que ponto queremos que a narrativa seja clara, mas queremos, da mesma
forma, que ela seja densa. Achamos que é a densidade da consciência humana
que a mantém e a registra, que a amplia e a interpreta. Quando a questão é
(…) a do “sobrenatural”, é somente a densidade o que podemos obter.
Aqui, os prodígios, quando surgem sem mediação, correm o risco de pa-
recerem sem efeito; guardando, por outro lado, toda sua força, se surgem
através de uma outra história – a indispensável história da relação normal*
de qualquer um a qualquer coisa.
“O interesse maior” da história é, então, a “densidade” que ela ad-
quire por meio de sua própria leitura, por meio da “consciência hu-
mana que a registra e a mantém, a amplia e a interpreta”. O tema
mesmo do insólito como narrativa, sua condição, e desde já seu pró-
prio surgimento “através de alguma outra história”, sua narração no
outro e a partir do outro. Ora, o leitor aqui é este outro. O leitor quer
dizer também cada um dos narradores: Douglas em relação ao ma-
nuscrito da governanta; “eu” em relação a Douglas. O leitor-narrador
é aqui este outro, e sua narrativa (sua leitura) é significativa, na me-

208
dida mesmo em que interfere na história que conta. Toda narrativa é
aqui uma leitura do outro; toda leitura é aqui uma narrativa no outro,
uma narrativa de interferência significante e significância interferente.
Ora, o inconsciente mesmo é leitor: “O sujeito do inconsciente [diz
Lacan] é suposto saber ler. E não é nada mais que isso sua história
do inconsciente.”66 A narrativa do inconsciente assemelha-se, assim,
à narrativa de James, na medida em que é, uma como a outra, uma
narrativa através do leitor.
É assim que o narrador nos apresenta sua própria transcrição, feita
mais tarde, do manuscrito que Douglas, “a partir de um imenso efei-
to, (…) começou a ler para nosso pequeno círculo”.67 Para Douglas,
o papel do autor-narrador é, então, literalmente, um papel de leitor.
E, se o eu-narrador retransmite a história, repete essa leitura, é, sem
dúvida, por causa do imenso efeito que ela produziu sobre ele e que
ele espera, por sua vez, produzir sobre seus leitores. O ato mesmo da
narração procede, então, aqui da repercussão – quase infinita – de um
efeito de leitura produzido, cujo resultado é, precisamente, um efeito a
se produzir. A narrativa é, como tal, desde então, o testemunho da ação
de uma leitura e a encarnação de uma leitura em ação. Na primeira ob-
servação que Douglas faz, na primeira página do prólogo, o título salta
como a marca, ou a descrição, de seu próprio efeito de leitura:
I quite agree – in regard to Griffin’s ghost, or whatever it was – that its ap-
pearing first to the little boy, at so tender an age, adds a particular touch. But
it’s not the first occurrence of its charming kind that I know to have involved a
child. If the child gives the effect another turn of the screw, what do you say
of two children? “We say, of course”, somebody exclaimed, “that two children
give two turns! Also that we want to hear about them.”68
[“Reconheço – em relação ao fantasma de Griffin ou por tudo que vocês
queiram que seja – que o fato de aparecer, de início, para um menino de
idade tão tenra acrescenta à história um traço particular. Mas não é, pelo
que conheço, a primeira vez que um tal exemplo desse gênero delicioso se
aplique a uma criança. Se a criança dá mais uma volta ao parafuso no efeito
da narrativa, o que diriam de duas crianças?
– Diremos, claro, gritou alguém, que duas crianças dão duas voltas… E
queremos, então, saber o que lhes aconteceu.”]69
É de seu efeito de leitura que o texto recebe seu título, seu nome.
Esse título, ou bem, esse nome, não é, entretanto, dado pelo autor: foi
acrescentado, depois, pelo terceiro narrador, último receptor da cadeia
narrativa das leituras.

209
The next night, by the corner of the heart (…) he opened the faded red cover of
a thin old fashioned gilt-edged album (…). On the first occasion the same lady
put another question. “What is your title?”
“I haven’t one.”
“Oh, I * have!” I said. But Douglas, without heeding me, had begun to read
with a fine clearness that was like a rendering to ear of the beauty of his au-
thor’s hand.70
[Na noite seguinte, no canto do fogo, ele abriu um álbum fino com uma
capa de um vermelho pálido, com a lombada dourada como as antigas
(…). Na primeira ocasião a mesma senhora perguntou:
“Qual é seu título?
– Não tenho nenhum.
– Está bem, tenho um”, eu disse. Mas Douglas, sem me ouvir, começou a
ler, com uma articulação clara e pura, que tornava sensível aos ouvidos
a elegância da escrita do autor.]71
Assim, o título é literalmente um efeito de leitura do texto, pois o
nome da narrativa lhe vem do leitor, e não do autor. Da mesma forma
que ele problematiza a relação entre o exterior e o interior, o prólogo
desconstrói, assim, a relação entre leitor e autor. O que, em Douglas, o
narrador admira como imagem mesmo da “escritura do autor” é ape-
nas, de fato, o êxito de sua performance de leitor, que se torna metáfora
da escritura originária pelo ato de leitura que, por sua vez, ela inspira
e produz como seu próprio efeito. Assim que Douglas, em resposta à
questão “qual é seu título?”, retruca “não tenho nenhum”, sua resposta
pode, em realidade, ser escutada de duas maneiras diferentes: ele não
tem nome para sua própria narrativa; ou bem, ele não tem título, direito
de propriedade ou de autoridade sobre esse texto que não é seu, não
tem o direito de intitulá-lo, pois não é o titular do texto, não sendo o
autor, ou só é o autor, na medida em que é seu leitor.
Dentro desse quadro, a narrativa, de um golpe, perdeu não somente
sua origem, mas também, ao mesmo tempo, seu título: seu autor e sua
autoridade; seu poder de veridicamente se nomear. Da mesma forma
que o conteúdo da narrativa comunica, de alguma maneira, do ponto
de vista da governanta, a perda do Mestre da casa, que desde então se
torna uma casa mal-assombrada, o quadro-prólogo da narrativa comu-
nica a perda do proprietário da narrativa. Ora, essa insólita condição
da narrativa, que insiste do “dentro” como do “fora”, não deixa de
evocar a condição constitutiva do saber inconsciente, que é também
precisamente um saber sem proprietário, um saber que nenhum su-
jeito pode assumir ou atribuir a si, que nenhuma consciência pode

210
possuir. “Todo enunciado de autoridade”, escreve Lacan, a propósito
do discurso inconsciente, mas igualmente em termos que resumem as
condições narrativas de A volta do parafuso, “não tem outra garantia
senão sua própria enunciação”.72
Se a narrativa perdeu, como acabamos de ver, seu autor e sua auto-
ridade, sua origem e seu título, sem, entretanto, perder-se a si mesma,
sem que seja, por isso, apagada ou destruída, é porque a sua transcri-
ção escrita é, várias vezes, transferida: transferida, de início, na véspe-
ra da morte da governanta, que a envia a Douglas, para legá-la a ele;
transferida em seguida na véspera da morte de Douglas, que, por sua
vez, endereça o manuscrito ao eu-narrador, para legá-la a ele. É, então,
a morte que se torna, desta sorte, a fundadora da cadeia narrativa:
inaugurando o movimento de deslocamento do manuscrito e, em con-
sequência, o processo da substituição dos narradores, a morte aparece
não como um fim, mas, ao contrário, como um ponto de partida: pon-
to de partida da transferência da narrativa, isto é, de sua sobrevivência,
de sua capacidade de continuar, em virtude das passagens reiteradas
que ela opera da morte à vida.
Para quem recebe e mantém o manuscrito da narrativa, ela constitui,
para além da morte do destinatário, a sobrevida de sua língua e sua
sobrevida na língua: um retorno do morto no texto. O retorno dos
mortos, lembremo-nos, é também o tema – sobrenatural – do conteúdo
da narrativa, da história dos fantasmas contada pela governanta. O pró-
logo não tem nada de sobrenatural: entretanto, o retorno dos mortos,
a existência fantasmal dos que retornam, já está aí prefigurada, pelo
itinerário do manuscrito transferido.
Mas por que o manuscrito da narrativa é transmitido? Douglas su-
gere a razão disso:
“Then your manuscript?” (…)
“A woman’s. She has been dead these twenty years. She sent me the pages in
question before she died.” They were all listening now, and of course there some-
body to be arch, or at any rate to draw the inference. But if he put the inference
by without a smile it was also without irritation. “She was a most charming per-
son, but she was ten years older than I. She was my sister’s governess”, he quietly
said. “She was the most agreeable woman I’ve ever known in her position; she’d
have been worthy of any whatever. It was long ago, and this episode was long
before. (…) We had, in her off-hours, some strolls and talks in the garden – talks
in which she struck me as awfully clever and nice. Oh yes; don’t grin: I liked her
extremely and am glad to this day to think she liked me too. If she hadn’t
she shouldn’t have told me. She had never told anyone”.73

211
[“Então, seu manuscrito? (…)
– É uma escrita de mulher, de uma mulher que morreu há vinte anos.
Antes de morrer, enviou-me as páginas em questão.” Todos estávamos
escutando e, naturalmente, não faltou quem dissesse algo malicioso ou,
ao menos, quem não tirasse dessas frases a inevitável dedução. Mas, se
Douglas afastou a dedução sem sorrir, não mostrou também nenhuma
irritação.
“Era uma pessoa encantadora, mas dez anos mais velha que eu. Era a go-
vernanta de minha irmã, disse docemente. Nunca mais encontrei uma
mulher mais agradável, nessa posição. Ela seria digna de ocupar qualquer
uma. Aconteceu há muito tempo, e esse episódio aconteceu ainda antes.
(…) Lembro-me de nossas voltas no jardim e de nossas conversas em suas
horas livres, conversas em que ela me parecia tão inteligente e tão agradá-
vel! Sim, não riam. Ela me agradava enormemente e fico contente ainda hoje
ao pensar que eu lhe agradava também. Se não lhe agradasse, ela não me teria
contado essa história. Ela nunca a tinha contado a ninguém.”74
Douglas deixa discretamente que se compreenda que, se a narrativa
sobreviveu além da própria morte de sua autora, foi por causa do amor
que, outrora, o aproximara da governanta e que provocou de sua parte
essa última confidência. A razão da transferência do manuscrito não
foi, então, simplesmente a morte, mas o amor. Para Douglas, o manus-
crito comemora o encontro de uma mulher e de sua escritura: a narra-
tiva é, como tal, o resultado de um amor, da morte, de uma escrita, de
uma transferência.
Se a origem da narrativa se perdeu, não é simplesmente porque ela se
encontra, por causa da morte de sua autora, escondida na distância in-
finita de um passado irrecuperável; é também porque essa origem não
é uma referência como um ponto fixo, mas antes uma dinâmica, um
movimento: a origem da narrativa está na transferência. Ela não é assi-
nalável, em outros termos, ao “eu” de tal ou tal narrador, mas à relação
entre os narradores. A origem da narrativa não é um referente, mas o ato
mesmo da referência: o gesto mesmo – feito pelo amor e pela morte – de
se referir ao Outro como tal; o gesto da transferência de uma narrativa.
Os narradores, com efeito, não constituem simplesmente uma cadeia
narrativa, mas uma série de casais: a governanta e Douglas; Douglas
e o eu-narrador. Bem antes que a cadeia narrativa fosse constituída,
justamente pelo desaparecimento do casal (pela morte, a cada vez, de
um de seus elementos e pela transferência do manuscrito), os pares,
enquanto estavam vivos, eram unidos por uma relação discretamente
erótica, que subtende – e produz – uma relação linguística:
– Entre Douglas e a governanta:

212
We had, in her off-hours, some strolls and talks in the garden – talks in which
she struck me as awfully clever and nice. Oh yes; don’t grin: I liked her extremely
and I glad to this day to think she liked me too.75
[Lembro-me de nossas voltas no jardim e de nossas conversas em suas ho-
ras livres, conversas em que ela me parecia tão inteligente e tão agradável!
Sim, não riam. Ela me agradava enormemente e fico contente ainda hoje
ao pensar que eu lhe agradava também.]76
– Numa época posterior, entre Douglas tornado narrador e o “eu”
agora ouvinte:
It was to me in particular that he appeared to propound this – appeared almost
to appeal for aid not to hesitate (…). The others resented postponement, but it
was just his scruples that charmed me.77
[Era para mim em particular que ele parecia dirigir essas palavras, como
se ele pedisse uma ajuda para pôr fim a suas hesitações (…). Os outros
ressentiam por essa demora, mas eram justamente esses escrúpulos que
me encantavam.]78
Os casais são casais de início, em virtude de uma situação de diá-
logo, de uma condição de interlocução, de cujo interior se depreende
um sutil jogo de sedução. Ora, não se esqueça que essa estrutura é,
por excelência, a da situação analítica, cuja dinâmica, justamente, da
transferência em seu sentido estritamente analítico (do eu-narrador
sobre Douglas, de Douglas sobre a governanta, da governanta sobre o
Mestre), vai ao mesmo tempo motivar e modificar a narrativa, tornan-
do-se simultaneamente seu móvel e sua máscara: o que a coloca em
movimento e a partir de onde ela fala, mas também o que altera seu
alcance, a dissimula ou bem a deforma, pelos reflexos espelhados dos
espelhos da sedução.
Os jogos de sedução são enganadores, na medida em que, inscri-
tos no gesto mesmo da narração, se transformam em jogos de criar
uma crença, quando acrescentam fé na imagem idealizada de um ob-
jeto de amor especular e no discurso de que é responsável, e que se
tornam, então, ilusoriamente dignos de crédito. Porque é seduzido pela
governanta, Douglas, com efeito, torna digno de crédito seu discurso,
confere-lhe uma autoridade79 narrativa. E as declarações de Douglas
são, por sua vez, valorizadas, tornadas críveis e autoritárias, através da
admiração encantada, do olhar seduzido do eu-narrador.
A retomada da narrativa transferencial, a mise-en-abîme das vozes
narrativas que repetem outras vozes narrativas, constitui, assim, ao
mesmo tempo, uma dinâmica de olhares sedutores, um movimento

213
visual de reenvio e repetição de reflexos especulares, um jogo de es-
pelhos duais se refletindo indefinidamente. Em todos os sentidos do
termo, a narrativa de A volta do parafuso é uma reflexão sobre o ver,
uma mise-en-abîme80 de olhares de casais que se olham:
“… she like me too. If she hadn’t she wouldn’t have told me. She had never told
anyone. It wasn’t simply that she said so, but that I knew she hadn’t. I was sure;
I could see. You’ll easily judge why when you hear.”
“Because the thing had been such a scare?”
He continued to fix me. “You’ll easily judge”, he repeated: “you* will”.
I fixed him too. “I see. She was in love.”
He laughed for the first time. “You are* acute. Yes, she was in love. That is, she
had* been. That came out – she couldn’t tell story without its coming out. I saw
it, and she saw I saw it; but neither of us spoke of it (…).”81
[“… eu a agradava também. Se não a tivesse agradado, ela não teria me
contado a história. Não a tinha contado a ninguém. E não somente pelo
fato de ela ter-me dito que eu acreditava nela, mas eu sabia que ela não
teria dito nada dessa história. Estava seguro, via-se. Você compreenderá
por quê, quando tiver me ouvido.
– Por que o caso tinha sido tão perturbador?”
Ele continuou a me fixar com os olhos. “Você compreenderá facilmente, repe-
tiu, mas cabe a você* compreender.”
Por minha vez, fixei o olhar nele. “Estou vendo. Ela estava apaixonada.”
Ele riu, então, pela primeira vez. “Você é* bem perspicaz, com efeito. Sim,
ela estava apaixonada. Isto é, ela tinha* estado. Saltava aos olhos: ela não
podia contar a história sem que isso saltasse aos olhos. Eu via e ela via que
eu via, mas nenhum de nós falou nada.”]82
Entretanto, o que é “ver”? É também a questão que os fantasmas colo-
carão, não somente pelo fato de que sua emergência visual dependerá do
olhar da governanta, mas porque suas aparições, também, vão implicar,
a cada vez, um olhar de casal, uma confrontação especular, uma troca de
olhares simétricos e duais. Nessa mise-en-abîme dos olhares dos casais
que “se veem ver”, através da qual o prólogo, de novo, parece prefigurar
a história, o que significa, então, ver? “Eu via, e ela via que eu via”; “Eu
estava seguro disto: isso se via”; “Ele continuou a me fixar com os olhos
(…) Eu o fixei nos olhos, por minha vez”. “Eu vejo. Ela estava apaixo-
nada.” Evidentemente,83 no jogo das frases, ver é interpretar, interpretar
o amor é também interpretar pelo amor. O amor é, assim, de várias ma-
neiras, em vários níveis, e nos dois sentidos, o tema da interpretação.
Nessa dupla relação amorosa, nessa dupla relação transferencial, entre o
narrador e Douglas, entre Douglas e a governanta, o amor é, ao mesmo
tempo, o que é visto e o que vê; o que é lido e o que lê; o que, na troca
dos olhares, se deve interpretar, se interpreta, e o que, nessa troca, inter-

214
preta. Inversamente, o intérprete como tal, que o saiba ou não, que o
queira ou não, encontra-se preso na relação transferencial.
A transferência, diz Lacan, é a “colocação em ato da realidade incons-
ciente”.84 Poder-se-ia perguntar aqui, a partir do campo literário, se a co-
locação em ato do inconsciente é sempre a colocação em ato de uma
narrativa; se toda narrativa implica uma transferência, isto é, uma relação
amorosa que, de alguma maneira, a estrutura – e a mascara –, ao mesmo
tempo a decifra e a cifra, como seu próprio substituto e sua própria repe-
tição. A volta do parafuso parece, em todo caso, confirmar essa hipótese.
Não é um acaso se é um casal de apaixonados que preside à trans-
ferência do manuscrito e se o amor, desencadeando, por duas vezes,
a colocação em ato da narrativa, superpõe, sobre o casal transferen-
cial, o casal autor-leitor, distribuindo, no interior da relação amorosa,
as funções interdependentes daquele que destina a narrativa (seu au-
tor ou narrador) e daquele a que ela é destinada (ouvinte-receptor ou
leitor-intérprete).
I can see Douglas there before the fire (…) looking down at his converser with
his hands in his pockets. “Nobody but me, till now, has ever heard. It’s quite too
horrible”. (…) “It’s beyond everything. Nothing at all that I know touches it.”
“For sheer terror?” I remember asking.
He seemed to say that it wasn’t so simple as that; to be really at a loss to qualify
it. He passed his hand over his eyes, made a little wincing grimace “For dread-
ful – dreadfulness!”
“Oh, how delicious!” cried one of women. He took no notice of her; he looked at
me, but as if, instead of me, he saw he spoke of, he saw what he spoke of.
“For general uncanny ugliness and horror and pain.”85
[Vejo ainda Douglas diante do fogo (…) olhando seu interlocutor de alto a
baixo, com as mãos nos bolsos.
“Não há ninguém, exceto eu, que o tenha sabido. Por ser tão horrível.”
(…) “Está além de tudo que se possa pensar. Não sei de nada no mundo
que se aproxime.
– Como efeito de terror?” lembro-me de ter perguntado.
Parecia que ele queria dizer que não era tão simples, mas que não achava
palavras para que o qualificasse. Passou as mãos sobre os olhos, fez uma
careta dolorosa. “Um horror, um horror – horrível!
Ai, que delícia!”, gritou uma das mulheres. Ele pareceu não escutar; olha-
va-me, mas como se, no meu lugar, visse aquilo de que falava. “Como um
conjunto de estranha feiura e horror e dor.”]86
O jogo de olhares amorosos se complica, no momento em que o
olhar mesmo consiste em uma substituição. Através desse olhar, o
amor e, do mesmo golpe, o gesto da narração, visam, todos os dois,

215
a um lugar retórico, mais que um objeto em si: “Ele me olhava, mas
como se, em meu lugar, ele visse aquilo de que falava.” Essa frase tem
duas implicações: 1) “Aquilo de que o narrador fala” é equivalente
ao lugar daquele a quem ele se endereça: se nesse lugar se encontra
o leitor, o leitor é, então, o sujeito da narrativa; 2) para o narrador, o
leitor, tornado o sujeito da narrativa, se superpõe ao fantasma: o leitor
é, ele mesmo, um fantasma, ligado à relação insólita, terrificante, entre
o amor e a morte.
O leitor, por sua vez, mantém uma relação transferencial com o au-
tor ou com o narrador, na medida em que os investe do prestígio do
sujeito suposto saber. “A transferência [diz Lacan] só é pensável se se
prende desde o início no sujeito suposto saber; ele é suposto saber
aquilo de que ninguém saberia escapar, a significação.” É o eu-narra-
dor, já vimos, no seu papel de leitor-receptor, que confere a Douglas
sua autoridade, e à narrativa, seu título, seu nome: seu último saber de
seu próprio sentido. “A história o dirá, adiantei-me em responder.”87
O eu-leitor constrói, dessa maneira, seu saber do texto (do autor), a
partir do não sabido de sua própria leitura, da mesma forma que o fan-
tasma transferencial do analisando constrói o saber de seu analista a
partir do não sabido de sua própria história.
Operando, assim, sobre e pela transferência, a narrativa é, portanto,
uma relação, uma passagem, um constante vai e vem entre duas bor-
das: consciência e inconsciente, interior e exterior, escrita e leitura,
palavra e silêncio, vida e morte, sono e vigília:
The case, I may mention, was that of an apparition in just such an old house as
had gathered us for the occasion – an appearance, of a dreadful kind, to a little
boy sleeping in the room with his mother and waking her up in the terror of
it; waking her not to dissipate his dread and soothe him to sleep again, but
to encounter also, herself, (…) the same sight that had shaken him. It was
this observation that drew from Douglas – not immediately, but later in the
evening – a reply that had the interesting consequence to which I call attention.88
[No caso em questão (eu o disse de passagem), tratava-se de uma aparição,
numa velha casa, semelhante àquela onde nos encontrávamos reunidos, apa-
rição de horrível espécie, a um menininho que dormia no quarto de sua mãe
e, aterrorizado, a acordou, a acordou não para que ela dissipasse sua angústia e
o fizesse dormir de novo, mas para que ela tivesse também, por sua vez, (…) a
mesma visão que o abalara. Foi essa observação que inspirou a Douglas – não
imediatamente, mas, mais tarde, à noitinha – uma réplica, o que teve a inte-
ressante consequência sobre a qual eu queria chamar a atenção]89

216
Se a criança, no primeiro fragmento do prólogo, é, ao mesmo tempo,
a origem do sonho e a origem da narrativa onírica que a segue; ela
só acorda sua mãe para fazê-la entrar em seu sonho, isto é, em seu
próprio sono. Ultrapassando os limites que separam o sono da vigília,
a narrativa da criança os subverte, ou, pelo menos, os mistura. Como a
criança, o narrador (ou o autor), pela narrativa onírica em que ele se
empenha, a partir de uma relação transferencial, por sua vez, só nos
acorda para nos lançar, justamente, no interior do sono: acorda-nos
para o nosso sono.
Nessa conjuntura, seria esclarecedor lembrar que Freud introduz,
com efeito, a noção de transferência, pela primeira vez, em A interpre-
tação dos sonhos, quando reflete, justamente, sobre o que ele chama de
“relações de energia entre a vigília e o sono”,90 para explicar a intera-
ção e a troca entre os dois, isto é, a função dos “restos diurnos” e sua
relação com o “desejo do sonho”:
(…) o sonho seria um substituto de uma cena infantil modificado pela
TRANSFERÊNCIA num domínio recente. A cena infantil não pode realizar sua
própria reaparição; ela deve se contentar em voltar como sonho.91
Represento para mim mesmo que o desejo inconsciente só suscita o sonho
quando ele chega a ACORDAR um outro desejo, inconsciente e de mesmo
teor, pelo qual ele se acha fortificado.
Por isso, é preciso compreender a importância do desejo inconsciente, e
recorrer à psicologia das neuroses. Ela nos ensina que a representação in-
consciente não pode, como tal, penetrar no pré-consciente e que ela só
pode agir nesse domínio se se alia a alguma representação sem importância
que aí já se encontra, à qual ela TRANSFERE SUA INTENSIDADE e que lhe
serve de cobertura. É o fenômeno da transferência, que explica tantos fatos
espantosos da vida psíquica dos neuróticos.
Assim, então, os RESTOS DIURNOS (…) não só emprestam ao inconsciente,
quando têm um papel na formação do sonho, a força pulsional de que dispõe
o desejo recalcado, mas ainda oferecem alguma coisa ao inconsciente: O PONTO
EM QUE É NECESSÁRIO SE PRENDER PARA REALIZAR A TRANSFERÊNCIA.
Resumamos: (…) O trabalho da vigília pode ter deixado restos diurnos
(…). O desejo inconsciente franqueou uma via até esses restos diurnos e
realizou sobre eles sua transferência. Um desejo transferido sobre o mate-
rial recente aparece, então, ou bem, um desejo recém-recalcado se reani-
ma, retomando forças no inconsciente. Ele penetraria certamente na cons-
ciência (…) Mas ele esbarra na censura (…). Ele sofre, então, uma nova
deformação, cuja via foi já preparada pela transferência sobre o elemento
recente. Nesse momento, ele está numa via que poderia levá-lo à obsessão,
à ideia delirante etc., a todos os pensamentos reforçados pela transferência
e deformados pela censura.

217
O processo do sonho toma, então, a via da regressão, que precisamente
o sonho abre: ele obedece por aí à atração que exercem sobre ele grupos
de lembranças que só existem, em parte, sob a forma de investimentos
visuais, não como uma tradução em termos de sistemas ulteriores. É por
esse caminho que ele adquire a possibilidade de figuração (…) Ele agora
franqueia uma segunda etapa já bem acidentada.92
A análise que Freud faz aqui do vai e vem, das “relações de energia
entre a vigília e o sono”, pelo viés da transferência, não nos prepara
para encontrar, e para melhor compreender, essas figuras visuais oní-
ricas, que são, justamente, os fantasmas? Ver é, então, antes de tudo,
transferir. E se, como vimos antes, ver, no jogo de linguagem do pró-
logo, é sempre decifrar, ler, interpretar, isto é, investir de sentido, por-
que ler é também transferir: investir um significante “diurno” por uma
energia pulsional inconsciente, transplantar para um material recente
uma intensidade de sono arcaico. Ver será, então, sempre, onde for,
olhar com os olhos do inconsciente, isto é, de um modo ou de outro,
perceber através de um sonho: retoricamente, e não de modo próprio.
Os dois sentidos da transferência em Freud, a transferência como
mola da análise, como princípio estruturante, repetitivo, da relação
afetiva intersubjetiva, e a função retórica do material significante,
como transferência de intensidade por meio de um deslocamento de
significantes, encontram-se, assim, todos os dois, no prólogo de A vol-
ta do parafuso: é sua interação, justamente, que dá lugar à colocação
em ato da narrativa, como, ao mesmo tempo, uma relação de casal e
como o deslocamento de uma escrita, uma transferência de manuscrito
a narrativa é inteiramente tomada, e se joga, entre, de um lado, uma
tentativa de sedução, de captura, e, de outro, o deslocamento de um
significante, de um efeito de escritura.
“Well then”, I said, “just sit right down and begin”.
He turned round to the fire, gave a kick to a log, watched it an instant.
Then as he faced us again: “I can’t begin. I shall have to send to town (…) The
story’s written. It’s in a locked drawer. It has not been out for years.”93
[“Bem, eu, então, lhe disse, queira se assentar e começar.”
Ele se virou para a lareira, chutou um pedaço de lenha com o pé e o
contemplou por um instante. Depois ele nos olhou de novo: “Não pos-
so começar. Devo mandar alguém à cidade (…). A história está escrita.
Está guardada numa gaveta fechada à chave, sem ser tirada daí, há mui-
tos anos.”]94

218
A CENA DA ESCRITURA, OU AS CARTAS ROUBADAS

O que não se pode dizer, isso acaba por se escrever, não há meios
de se fazer sentir a dimensão do saber inconsciente.
Lacan

Para que haja carta roubada, diremos, a quem uma carta pertence?
Lacan
O fato de que “a história está escrita”, gerador de um efeito de sus-
pense que o marca e o sublinha, tem, então, duas implicações imedia-
tas: 1) A história, que consiste em um texto, não simplesmente numa
sequência de acontecimentos, tem uma existência e um lugar mate-
riais; 2) Essa existência e esse lugar são independentes daqueles do
narrador: é antes o narrador que se encontra na dependência do escri-
to: de seu lugar e de sua existência materiais.
Essa dupla significação do fato de que “a história está escrita” terá
três repercussões imediatas sobre a colocação em ato da narrativa:
1. A impossibilidade de começar; uma dificuldade ligada ao começo
como tal, de início adiada, em seguida substituída por um pró-
logo. “Não posso começar”, diz Douglas. “Devo mandar alguém
à cidade (…) A história está escrita.” Entretanto, quando o ma-
nuscrito chega, Douglas explica que há necessidade de preceder
sua leitura por “algumas palavras de prólogo”, que serão como o
começo: “O documento escrito levará a história a um ponto em
que, em suma, ela já terá começado.”95
2. Porque o lugar onde o texto está guardado é um lugar fechado,
protegido e secreto (uma “gaveta fechada à chave”), a narração,
necessitando da saída do manuscrito, implicará que se force a
vedação, um arrombamento, uma crise de abertura:
“The story (…) had not been out for years. I could write to my man and enclose
the key; he could send down the packet as he finds it.” (…) He had broken
a thickness of ice, the formation of many a winter; had had his reasons for a
long silence.
Mrs. Griffin spoke. (…)
“… it’s rather nice, his long reticence.”
“Forty years!” Griffin put in.
“With this outbreak at last.”
“The outbreak”, I returned, “will make a tremendous occasion of
Thursday night”.96

219
[“A história está numa gaveta fechada à chave. Não foi tirada de lá por
muitos anos. Mas eu poderia escrever a meu empregado e lhe enviar a
chave: ele me enviaria o pacote tal como está.” (…) Ele tinha quebrado uma
camada de gelo, amontoada por tantos invernos. Tinha razão de guardar
esse longo silêncio. (…)
Então Sra. Griffin falou: (…)
“… é verdadeiramente delicado, um silêncio guardado tanto tempo!
– Quarenta anos, notou rapidamente Griffin.
– Enfim com essa explosão.
– A explosão, repliquei, vai fazer da noite de quinta-feira algo de
formidável”.]97
3. Para que uma narração seja possível, Douglas fez chegar o ma-
nuscrito pelo correio. Sobre o texto há um endereço: a narrativa
é uma carta. Antes, o manuscrito já tinha sido enviado, como
uma carta, pela governanta a Douglas. Ele será, mais tarde, en-
viado, de novo, por Douglas ao eu-narrador. A narração implica,
então, ao mesmo tempo, uma troca de lugar e uma troca de ende-
reço da letra.
Ora, o manuscrito mesmo fala sem parar de cartas: da carta enigmática
que anuncia, sem expor os motivos, que Miles foi expulso da escola; das
cartas das crianças ao Mestre, interceptadas pela governanta; da carta que
Sra. Grose queria escrever ao Mestre, para lhe informar sobre as anoma-
lias em Bly, o que a governanta impede e promete, ela mesma, escrever; a
carta da governanta ao Mestre interceptada e destruída por Miles.
O que é espantoso é que todas essas cartas têm características que
lembram as do manuscrito da narrativa. São fechadas e endereçadas:
(…) my letter, sealed and directed, was still in my pocket.98
[(…) minha carta, selada e endereçada, estava ainda no meu bolso.]99
Sua abertura, feita com violência ao rasgá-la, constitui uma espécie
de arrombamento e de crise:
The postbag that evening (…) contained a letter for me which, however, in the
hand of my employer, I found to be composed but of a few words enclosing an-
other, addressed to himself, with a seal still unbroken.
“This, I recognize, is from the head-master, and the head-master’s an awful bore.
Read him please; deal with him; but mind you don’t report. (…)” I broke the
seal with a great effort – so great a one that I was a long time coming to it;
took the unopened missive at last up to my room and only attacked it just before
going to bed. I had better have let it wait till morning, for it gave me a second
sleepless night.100

220
[O correio de noitinha (…) trazia uma carta para mim. Ela estava escri-
ta por meu patrão, mas só tinha poucas palavras, e envolvia uma outra
endereçada a ele mesmo e cujo lacre não estava ainda rompido. “Eu a reco-
nheci como vinda do diretor do colégio e esse diretor era muito maçante.
Tome conhecimento, trate essa questão com ele, mas, sobretudo, não me
fale nada (…)”
Precisei fazer um grande esforço para romper o lacre – um tal esforço me foi
necessário um longo tempo para conseguir; finalmente levei a carta sem-
pre fechada para meu quarto e só a ataquei quando estava na hora de me
deitar. Teria feito melhor se a deixasse esperar até a manhã seguinte, pois
ela me provocou uma segunda noite sem sono.]101
Na narrativa, como no prólogo, a escritura material da carta, bem
como a existência material do manuscrito da narrativa, levanta uma
dificuldade inerente ao começo como tal. A governanta, assim como
Douglas, é incapaz de começar:
I went so far, as to make a beginning (…) I sat for a long time before a blank
sheet of paper (…). Finally I went out.102
[Ousei, enfim, de noite, tentar escrever um começo (…) Fiquei sentada dian-
te de uma página em branco (…) Finalmente, saí.]103
Saberemos mais tarde que essa carta da governanta ao Mestre foi
apenas, em realidade, a preparação de um envelope que continha, jus-
tamente, essa página branca: o começo continua não escrito, sempre
anterior e sempre excluído das informações dadas pelas cartas:
“I’ve just begun a letter to your uncle”, I said.
“Well then, finish it!”
I waited a minute. “What happened before?”
He gazed up at me again. “Before what?”
“Before you came back. And before you went away.”
… he was silent.104
[“Estou começando a escrever uma carta para o seu tio, eu lhe disse.
– Então, termine-a!”
Esperei um pouco.
“O que aconteceu antes?”
Ele levantou os olhos para mim.
“Antes de quê?
– Antes de sua volta para casa. E antes de sua partida também.”
Ele ficou em silêncio.]105
Na medida em que a narração está subordinada à escrita, na medida
em que a narrativa está determinada como efeito de escritura, contar
é, então, esbarrar na impossibilidade de escrever o começo ou dispor

221
dele sob forma de escrita; é forçar um fechamento, a fechadura de uma
gaveta ou o lacre de uma carta; é colocar em circulação um escrito, em
função de um novo destino; é mudar o endereço de uma carta e trocar
seu lugar material.
As cartas na narrativa se assemelham, então, singularmente, ao ma-
nuscrito da própria narrativa, enviado, ele também, como uma carta. E,
considerando que, no interior da história, as cartas permanecem quer
não escritas, quer interceptadas e destruídas, quer lacunares e enigmá-
ticas, a função delas não é diferente da carta do manuscrito, isto é, de
contar a história que está ocorrendo e da qual fazem parte.
“Do you mean you’ll write?” Remembering she couldn’t, I cought myself up.
“How do you communicate?”
“I tell the bailiff. He writes.”
“And should you like him to write our story?”
My question had a sarcastic force that I had not fully intended, and it made her
(…) inconsequently break down (…).
“Ah, Miss, you write!”106
[“Quer dizer que você lhe escreverá?” Lembrando-me de que ela não sabia
escrever, me corrigi:
– Como você se comunica?
– Recorro ao administrador. E ele escreve.
– E gosta, de fato, de fazê-lo escrever nossa história?”
Minha pergunta revelava mais sarcasmo do que eu gostaria, o que provo-
cou (…) lágrimas e soluços inconsequentes em Sra. Grose (…).
“Ah, senhorita! Então escreva você mesma!”.]107
O importante na carta é a narrativa. O que as cartas contam é o mes-
mo que a narrativa se conta, como a narrativa se narra, na qualidade
de efeito de escritura. As cartas no interior da história não são, então,
meramente metonímias do manuscrito que as contém, de que fazem
parte; são metafóricas, em relação a ele: nas cartas, é a narrativa em seu
todo que se reflete e se coloca “em abismo” [abîme]. Ler a narrativa é,
então, trabalhar para fazer uma leitura das cartas: seguir os traços, os
circuitos que elas fazem.
Ora, uma leitura das cartas deve tornar evidente que, de início, elas
só movimentam a narrativa porque são ilegíveis: ilegíveis, aliás, tanto
para o leitor como para os personagens que perguntam sobre elas, e
que são tão afetados por elas que não as podem compreender; ilegíveis
como o é, justamente, o saber inconsciente que rege uma “história”,
que determina toda uma vida, todo um destino, sem, por isso, dei-
xar-se reconhecer, penetrar ou compreender.

222
Se a resistência das cartas à abertura e à luz, à transparência e ao
sentido, pode indicar que as cartas, como tais, fazem parte de uma
economia inconsciente – que, significantes do inconsciente por exce-
lência, só podem significar através de uma censura –; se a narrativa do
inconsciente pode ser a da circulação de cartas indecifráveis, a questão
teórica crucial que, desde esse momento, se coloca e solicita, tanto a
atenção analítica quanto a literária, tanto o intérprete das letras quanto
o leitor do inconsciente, é, sem dúvida, esta: como se leem cartas, uma
vez que elas se oferecem a ler como, precisamente, ilegíveis? Questão
crucial que A volta do parafuso articula, faz surgir em todos os níveis,
pelos personagens da história, cujo drama é inteiramente regido pelo
mistério das cartas, assim como pelo leitor do texto.
Como se lê o ilegível? Essa questão é simples, pois a contradição
que comporta revela que ela subverte seus próprios termos: é que
ler realmente o ilegível, impor-lhe um sentido, é, ao mesmo tempo,
o ler, precisamente, como ilegível, mas reduzindo-o ao legível. Ora,
pode ser que o legível e o ilegível não se situem no mesmo nível: se
suas economias respectivas são regidas pela consciência e pelo incons-
ciente, seus funcionamentos poderiam ser radicalmente diferentes, na-
turalmente heterogêneos um em relação ao outro. Não poderiam ser
equivalentes, se reversíveis um no outro, por um simples esforço de
consciência ou de uma leitura melhor: não somente não seriam com-
paráveis, mas, ainda menos: seriam simplesmente opostos, não sendo,
sobretudo, simétricos. Talvez não seja necessário tentar ler o ilegível a
partir do legível, mas, ao contrário, repensar o legível e o ler a partir do
ilegível. Segundo essa ótica, a necessidade paradoxal de ler o ilegível
somente se poderia completar, modificando o sentido mesmo de ler.
Ler a partir do ilegível seria demandar não qual é o sentido do ilegível,
mas como o ilegível significa. Não qual é o sentido das cartas, mas de
que maneira as cartas acabam por escapar ao sentido. Como a fuga do
sentido vem a significar? Como as cartas significam, na qualidade de
in-significantes, ilegíveis?
Vimos que as cartas tornam-se um fator dramático da narrativa, por
causa mesmo de sua resistência em relação ao sentido: sua função
dramática de “dar o alarme”, de desencadear e de manter a narrati-
va, criando uma situação equívoca e contraditória, anda junto com a
opacidade persistente de sua função informativa e com a frustração
reiterada de seu viés narrativo: a de fazer a narrativa de uma gênese,
de “contar uma história” que possa integrar, ou conhecer, ao mesmo

223
tempo, tanto seu começo como sua causa. Ora, é porque as cartas fra-
cassam de maneira a fazer uma narrativa coerente, transparente, daqui-
lo que são encarregadas de transmitir, que há narrativa: há narrativa
porque há inconsciente, porque há o ilegível; há narrativa a partir do
momento em que há, paradoxalmente, uma impossibilidade de narra-
tiva, a partir do momento em que um impossível de contar é transmi-
tido pelas cartas e se desloca como efeito de escritura.
É, com efeito, o ilegível que determina a estrutura da narrativa. Os
acontecimentos se organizam em redor dos “alarmes” produzidos pe-
las cartas. Mas as cartas só dão nascimento uma à outra, através de
elipses, de lacunas, de silêncios que as constituem: elas só são ligadas
entre si pelos buracos que comportam. Da carta enigmática, elíptica do
diretor da escola de Miles à carta inacabada da governanta ao Mestre,
interceptada e destruída por Miles, a narrativa de A volta do parafuso se
organiza como uma impossibilidade contraditada por uma necessidade
de contar uma elipse: de escrever uma carta (ao Mestre) sobre o que
faltava na primeira carta.
É assim que a sequência inteira da narrativa está determinada pe-
las lacunas das cartas. Definindo-se por suas faltas estratégicas e por
seus aspectos negativos, a cadeia significante das cartas especifica-se
como tal por três atributos comuns: 1) Elipse ou supressão da men-
sagem ou do conteúdo das cartas; 2) Na ausência do conteúdo, o que
se conta é que adquire importância, é a sorte material das cartas, seus
deslocamentos, seu circuito; ora esse circuito é aquele do desvio, de
um curto-circuito do contato direto entre emissor e destinatário; 3) O
destinatário, que comanda o circuito, é desde então valorizado como
o elemento privilegiado e determinante da carta; o endereço, sendo
assim, nessas cartas misteriosas, é o único elemento que permanece
legível, e, às vezes, o único que se escreve. Ora, todas as cartas de A
volta do parafuso são endereçadas ao Mestre: aquela que a governan-
ta recebe (do diretor da escola de Miles) tem também o endereço do
Mestre como seu destinatário inicial que, ao recusar abri-la, a deslo-
cou, a fez seguir adiante. É momento de fazer uma pausa agora, então,
sobre a importância estruturante desse endereço crucial, na circulação
do ilegível.
A necessidade de escrever ao Mestre, para informar-lhe sobre as de-
sordens que ocorriam em Bly, está ligada ao fato de que o Mestre é seu
proprietário legítimo: que ele encarna, então, em relação às crianças e
em relação à propriedade, ao mesmo tempo, a instância suprema do

224
poder e a figura suprema da Lei. Entretanto, o Mestre, antes do início
da história, nessa parte justamente não escrita da qual o prólogo dá
conta, tinha instruído a governanta a jamais lhe escrever, sob nenhum
pretexto que fosse.
“He told her frankly all his difficulty – that for several applicants the conditions
had been prohibitive (…) It sounded strange; and all the more so because of his
main condition.”
“Which was –?”
“That she should never trouble him – but never, never; neither appeal nor
complain nor write about anything; only meet all questions herself, receive all
moneys from his sollicitor, take the whole thing over and let him alone. She
promised to do this, and she mentioned to me that when, for a moment, disbur-
dened, delighted, he held her hand, thanking her for the sacrifice, she already
felt rewarded.”
“But was that all her reward?”
“She never saw him again”108
[“Ele lhe falava francamente sobre toda sua dificuldade: para várias candi-
datas suas condições lhes proibiam aceitar – pareciam-lhes impossíveis (…)
Parecia estranho; mais estranho ainda quando se ficava a par de sua prin-
cipal condição.
– Qual era?…
– Que ela não deveria jamais vir a perturbá-lo, por absolutamente nada
que fosse, nunca, nunca; nem o chamar, nem se queixar, nem lhe escrever,
mas resolver sozinha todas as dificuldades que aparecessem, receber de seu
notário o dinheiro necessário, encarregar-se de tudo e deixá-lo em paz. Ela
lhe prometeu e me confessou, aliviada e encantada, que ele pegou em sua
mão, agradecendo-lhe seu sacrifício, o que a fez já se sentir recompensada.
– Mas nisso consistiu toda sua recompensa?
– Ela não o reviu nunca mais”]109
A paradoxal relação contratual que, desde logo, liga a governanta
ao Mestre é uma relação aporética, uma relação de não relação, um
contrato de não correspondência. É o mesmo que dizer que o discurso
do Mestre é considerado aqui, a partir do prólogo, como a condição
estruturante do discurso do inconsciente: segundo os termos iniciais
do contrato, a lei é nesse caso uma censura. Ora, essa lei, esse contrato
e, do mesmo gesto, esse imperativo de censura constituem a condi-
ção mesma de possibilidade da narrativa: condição de possibilidade
narrativa da impossibilidade de escrever uma carta (ao Mestre) sobre
o que faltava, numa outra carta (endereçada também ao Mestre, mas
recusada por ele, devolvida sem ter sido aberta). Determinando-se,
assim, alternadamente como um desejo de ignorância e como uma

225
recusa de informação, a instância da Lei e da Mestria se estabelece, em
sua função de barragem, de recusa, de apagamento e de recalcamento,
como a barra que vai radicalmente separar o significante de seu signi-
ficado, colocar as cartas sob o imperativo do não saber de seu próprio
conteúdo, por serem endereçadas ao Mestre, isto é, escritas por seu
próprio Censor.
A situação se complica, pois a governanta, evidentemente, logo cede
ao charme do Mestre e se apaixona por ele. O Mestre torna-se, en-
tão, ao mesmo tempo, uma figura de poder, uma instância de censura
e um objeto de amor, de transferência. Escritas para a Lei e para a
Autoridade, mas também para sua própria interdição e para sua pró-
pria censura, as cartas ao mestre constituem, também, demandas: de-
mandas de atenção e de amor.
Ora, o que acontece com uma demanda endereçada tanto à instân-
cia do poder quanto à instância do não saber? O que acontece com
o amor do Censor,110 com o amor da instância que censura o amor?
E como, então, escrever ao Censor? Como se escreve para aquele que,
como tal, significa a supressão mesma do que temos a lhe dizer? Eis a
questão crucial que se agita no texto de A volta do parafuso. É a partir
desse double-bind que a história é contada e escrita.
As cartas ao mestre não podem, então, veicular nada mais que um
silêncio, uma mensagem não só fracassada, mas que consiste em seu
próprio fracasso. Miles somente roubará a carta da governanta ao
Mestre, para constatar para si mesmo que o envelope nada continha:
“Tell me (…) if, yesterday afternoon, from the table in the hall, you took, you
know, my letter.”
(…)
“Yes – I took it.”
(…)
“What did you take it for?”
“To see what you said about me.”
“You opened the letter?”
“I opened it.”
(…)
“And you found nothing!” I let my elation out.
He gave the most mournful, thoughtful little headshake. “Nothing.”
“Nothing, nothing!” I almost shouted in my joy.
“Nothing, nothing”,111 he sadly repeated.
I kissed his forehead; it was drenched. “So what have you done with it?”
“I’ve burnt it.”112

226
[“Diga-me (…) se, ontem, de tarde, sobre a mesa do hall, você pegou, sabe
bem, minha carta?” (…)
“Sim, eu a peguei.”
(…)
“Por que a pegou?
– Para saber o que você disse de mim.
– Você abriu a carta?
– Abri.”
“E não encontrou nada!” Não contive minha alegria.
Ele balançou a cabeça pensativamente, muito melancolicamente:
“Nada.
– Nada! nada!” Quase gritei, sem poder conter minha exaltação.
“Nada! Nada!”, repetia ele tristemente.
Beijei sua testa; ele estava banhado em suor.
“E o que você fez dela?
– Eu a queimei.”113
Não é por acaso que as cartas ao Censor acabem por ser material-
mente suprimidas. Da mesma forma que a governanta suprime as
cartas das crianças ao Mestre, Miles, por sua vez, suprime a carta da
governanta ao Mestre, jogando-a ao fogo. Ora, o fogo, lembremo-nos,
aparecia desde a primeira frase do prólogo, como o centro do espaço
de desejo onde nasce a narrativa:
The story had held us, round the fire, sufficiently breathless…
[A história nos mantivera sem fôlego, ao redor do fogo]
Simbólica e estruturalmente, o fogo, no espaço do prólogo, pare-
cia ocupar o mesmo lugar central, em relação ao círculo da leitura,
como aquele do conteúdo da história, em relação ao quadro de sua
narração: no centro do círculo, no centro do quadro, tanto o conteú-
do das cartas quanto o fogo funcionavam como lareira, como inte-
rior do espaço da narração e da leitura. Ora, eis que, no “interior da
história”, o fogo, pelo gesto de Miles, se torna preciso como aquilo
cujo papel é, especificamente, o de esvaziar o conteúdo da carta, de
suprimi-la, materialmente, até o “nada” que ela contém. Uma vez que
as cartas são metáforas do manuscrito global da narrativa, isto é, da
história, em seu conjunto, como efeito de escritura, o que o fogo con-
some queimando o conteúdo da carta, é, assim, o “conteúdo” mesmo
da história.
The story had held us round the fire (…)
[A história nos mantivera, ao redor do fogo.]

227
Se a história é aqui a história da carta, é porque, em todos os senti-
dos do termo, a carta queima. Mas o fogo somente se encontra dessa
forma, no centro, como aquilo que suprime o centro:114 ele só é aná-
logo ao conteúdo da história, como aquilo que consome e queima o
conteúdo da história, assim como o interior da carta, tornando-os ile-
gíveis; para sempre ilegíveis, entretanto, de maneira a manter sempre
cerrado e “sem fôlego” o círculo dos leitores que o rodeiam. “Não se
vê aquilo que queima”, diz Lacan, em outro contexto, comentando
um outro fogo, uma outra queimação, cujo aspecto fantasticamente
fúnebre não é tão estranho como seríamos tentados a crer na queima,
aqui, da carta, “não vemos o que queima, pois a chama nos cega sobre
o fato de que o fogo trata (…) do real”.115
Mallarmé:
Toute l’âme résumée
Quand lente nous l’expirons
Dans plusieurs ronds de fumée
Abolis en autres ronds

Atteste quelque cigare


Brûlant savamment pour peu
Que la cendre se sépare
De son clair baiser de feu

Ainsi le choeur des romances


A la lèvre vole-t-il
Exclus-en si tu commences
Le réel parce que vil

Le sens trop précis rature


Ta vague littérature.116

A CENA DA LEITURA, OU A REEDIÇÃO DO NOME

It was a sense instinctive and unreasoned, but I felt from the first that if I was on the
scent of something ultimate I had better waste neither my wonder nor my wisdom.
I was on the scent – that I was sure of; and yet even after I was sure I should still have
been at a loss to put my enigma itself into words. I was just conscious, vaguely, of
being on the track of law, a law that would fit, that would strike me as governing the
delicate phenomena (…). The obsession pays, if one will; but to pay it has to borrow.
James

228
A narrativa de A volta do parafuso se organiza dessa maneira, de for-
ma paralela, em volta de um duplo mistério: o do conteúdo das cartas,
de uma parte; e o dos fantasmas, por outra. Como as cartas, os fantas-
mas também são figuras do silêncio:
It was the dead silence of four long gaze at such close quarters that gave the
whole horror, huge as it was, its only note of the unnatural.117
[Foi o silêncio de morte desse longo olhar que fixamos de muito perto um
sobre o outro que sozinho dava a todo esse horror, tão enorme que foi, seu
único toque sobrenatural.]118
Ora, se os fantasmas, que são, por definição, “horrores”,119 são
também silenciosos e mudos como as cartas, as cartas parecem, por
outro lado – em razão mesmo de seu silêncio –, conter ou implicar
“horrores”:
My fear was of having to deal with the intolerable question of the grounds of
his dismissal from school, since that was really but the question of the horrors
gathered behind.120
[O medo que eu sentia era de ter que lidar com a questão intolerável das
razões de sua expulsão da escola, pois isso era, no fundo, nada mais que a
questão dos horrores ligados a esse fato.]121
Aos olhos da governanta, os “horrores” definem, ao mesmo tempo,
o que são os fantasmas e o que falta na carta. Assim, poderíamos dizer,
consequentemente, que o horror dos fantasmas é simétrico ao conteú-
do faltante da carta? Como esse conteúdo, o fantasma também é um
significante barrado, só levando as marcas de sua própria rasura. Assim
como a carta aberta por Miles revela-se por não conter estritamente
“nada” (nothing), o fantasma se define como “ninguém” (nobody):
“What is he like?”
“I’ve been dying to tell you. But he’s like nobody.”122
[Com quem ele se parece?
– Morro de vontade de lhe dizer. Mas como? Ele não se parece com
ninguém.]123
No-thing, no-body: não-coisa, não-corpo. Afetados por signos da ne-
gação e da denegação, antecedidos por um “não” que os interdita, ao
mesmo tempo que os manifesta, os fantasmas – como as cartas – se
negam no momento mesmo em que se afirmam; seu modo de exis-
tência e de revelação é aquele de sua própria contradição. O estigma de
“horror” faz equivalerem os fantasmas e as cartas e o duplo escândalo
que, paralelamente, tanto uns como os outros parecem implicar, pode-

229
riam, nos dois casos, vir menos de um mal essencial que lhes seria ine-
rente, do que desse funcionamento autocontraditório. Eles poderiam
vir disso que a contradição que os funda comporta estruturalmente
nela mesma, por ela mesma, por incompatível e inaceitável, o veículo
de um poder escandaloso. O escândalo seria, assim, um escândalo de
estrutura, e não um escândalo de ética.
Se, então, marcados pela mesma negação, levados pela mesma con-
tradição, os fantasmas vêm, de qualquer maneira, povoar os vazios e
os buracos da carta, se eles ocupam um espaço homólogo ao espaço
vacante do conteúdo da carta, seria bem possível que os fantasmas
fossem em realidade, o conteúdo da carta.124 De outra maneira, po-
deria ser que o conteúdo da carta não fosse mais que um efeito de
fantasma.125
Os propósitos da governanta em relação a Peter Quint dariam o que
pensar quanto aos fantasmas estarem contidos nas cartas e sua existên-
cia estar ligada à existência da escritura:
So I saw him as I see the letters I form on this page.126
[Foi assim que o vi, como vejo as letras que traço nesta página.]127
Essa observação parece construir uma equivalência entre duas ativi-
dades manifestas como dois modos do ver:
     as
so I saw him = I see letters
    como
Eu o vi = eu vejo as cartas
Ver fantasmas = ver cartas
Ora, “ver cartas” é ler.128 “Vendo”, dessa maneira, as “letras que ela
traça sobre essa página” do manuscrito da narrativa, a governanta está
começando a ler sua própria história, que escreve, lembremo-nos, em
forma de carta a Douglas. Contido nas cartas e, ao mesmo tempo, con-
teúdo da carta, o fantasma evidencia, assim, tanto um efeito de escri-
tura quanto um efeito de leitura.
A governanta revela-se, de fato, amadora na leitura, na leitura não só
de sua própria história, mas também de romances do século passado.
É surpreendente que, por várias vezes, os fantasmas sejam associados
aos romances. A primeira aparição de Quint logo evoca na governanta
a lembrança de dois romances: essa lembrança de leitura interpreta o
fantasma.129 Na terceira aparição, a emergência do fantasma segue uma
cena de leitura: o ato de “ver cartas” precede, então, aqui o de “ver fan-

230
tasmas”, que lhe é contíguo e consecutivo. Por essa contiguidade que
os associa metonimicamente, o fantasma parece quase sair, de alguma
maneira, das páginas do romance que a governanta está lendo. Não é
aqui uma lembrança de leitura que interpreta o fantasma, mas o pró-
prio fantasma que parece interpretar o livro.130
A governanta é, então, uma leitora, sofrendo os efeitos das letras, das
cartas, tanto das que recebe pelo correio quanto das que encontra nos
livros. Sua primeira questão, com efeito, ao receber a carta do diretor
da escola de Miles, é a questão por excelência do leitor e do intérprete:
a do sentido.
What does it mean? The child’s dismissed his school.131
[O que isso quer dizer? O pequeno foi expulso da escola.]132
Preocupada, dessa maneira, com o sentido – um depois do outro,
fantasmas e cartas, e, em consequência, constantemente absorvida por
uma atividade de decifração – a governanta transforma, de fato, toda
sua experiência em Bly numa vasta aventura de leitura, numa procura
de sentido próprio, definitivo, das palavras e das coisas:
I had restlessly read into the facts before us almost all the meaning they were to
receive from subsequent and more cruel occurrences.133
I (…) read into what our young friend had said to me the fullness of
its meaning.134
I extracted a meaning from the boy’s embarrassed back.135
I suppose I now read into our situation a clearness it couldn’t have had at
the time.136
[Sem sossego, eu tinha lido nos fatos ocorridos diante de nós quase todo
o sentido que as circunstâncias mais cruéis deviam em seguida lhes dar.137
Eu só podia (…) ler, através das palavras pronunciadas por meu jovem
amigo, toda a plenitude de seu sentido.138
Eu extraía um sentido das costas que o menino me tinha virado, em seu
embaraço.139
Suponho que leio agora, nesta situação, uma espécie de clareza que ela
poderia ter tido na época.]140
Essa febre de decifração que implica a interrogação do sentido é de-
sencadeada pela percepção de uma ambiguidade.
• Ambiguidade das cartas:
Deep obscurity continued to cover the region of the boy’s conduct at school.141
[Uma profunda obscuridade continuava a cobrir a forma de comportamen-
to do menino na escola.]142

231
• Ambiguidade dos fantasmas:
… I caught at dozen possibilities (…) that I could see, in there having been in the
house (…) a person of whom I was in ignorance (…) My office seemed to require
that there should be no such ignorance and no such person (…) This visitant
(…) seemed to fix me (…) with just the question, just the scrutiny (…) that his
own presence provoked.143
[… cerca de uma dúzia de suposições se apresentaram em meu espírito
para explicar a presença, na casa, de uma pessoa que eu ignorava. (…) Em
minha situação, tal ignorância não era mais admissível do que a presença
de uma tal pessoa. (…) Esse visitante parecia me fixar, endereçando-me
justamente a mesma questão, o mesmo olhar perscrutador que provocava
sua presença.]144
• Ambiguidade das palavras:
… my impression of her having accidentally said more than she meant (…) I
don’t know what there was in this brevity of Mrs. Grose’s that struck me as am-
biguous. (…) I felt that (…) I had a right to know.145
[… minha impressão de que, inadvertidamente, ela dissera mais que do
queria (…) Não sei por que essas respostas curtas de Sra. Grose me espan-
tavam como ambíguas (…) Eu sentia (…) que tinha o direito de saber.]146
“Ver fantasmas”, “ver cartas”, é, então, perceber significantes ambí-
guos e contraditórios, perceber duplos sentidos. Entretanto, o processo
mesmo da leitura, desencadeado por essa percepção ambígua, se mani-
festa, paradoxalmente, como um processo de redução da ambiguidade:
I (…) opened my letter again to repeat it to her (…) “Is he really bad?”
The tears were still in her eyes. “Do the gentlemen say so?”
“They go into no particulars. They simply express their regret that it should be
impossible to keep him. That can have but one meaning. (…): that he’s an
injury to the others.”147
There was but one sane inference: (…) we had been, collectively, subject to an
intrusion.148
I had an absolute certainty that I should see again what I had already seen.
I began to take in with certitude, and yet without direct vision, the presence, a
good way off, of a third person. (…) There was no ambiguity in anything.149
“If I had ever doubted, all my doubt would at present have gone. I’ve been living
with the miserable truth, and now it has only too much closed round me…”150
[Eu (…) reabri a carta para ler para ela (…)
“É, realmente, um mau menino?”
Ela tinha sempre lágrimas nos olhos. “Esses senhores dizem isso?”
“Eles não dão nenhum detalhe. Só se lastimam por não poderem ficar com
ele. Isso só pode ter um sentido (…): que ele faz mal aos outros.”151

232
Somente uma conclusão lúcida se impunha: (…) éramos, coletivamente, ví-
timas de uma intrusão.152
Eu tinha certeza absoluta de que veria de novo o que já tinha visto.153
Comecei a perceber com certeza – entretanto, sem visão direta – a presen-
ça, bem afastada, de uma terceira pessoa (…) Não havia nada de ambíguo
em nada disso.154
Se eu tivesse duvidado alguma vez, minha dúvida hoje teria desaparecido.
Vivi muito tempo com a amarga verdade – e agora ela aperta meu peito e
me pressiona de todas formas.]155
Em seu esforço para reduzir a ambiguidade e a contradição, e para esta-
belecer o sentido como unívoco e único (“but one”), o método de leitura
da governanta não é radicalmente diferente daquele dos críticos-leitores
de James, que disputam entre si sobre o verdadeiro sentido do texto:
Mas o que dizer se houvesse ao menos uma única coisa (…) que não pu-
desse ser lida em dois sentidos diferentes, que só pudesse ser lida num
só sentido?156
As passagens determinantes, não ambíguas, a partir das quais a crítica
pode trabalhar, são tão numerosas que o emprego das passagens ambíguas
como ponto de partida não parece ser uma boa estratégia crítica.157
Pois – como o texto antecipa ainda em sua própria leitura, que co-
loca “em abismo” e, de alguma maneira, comenta antecipadamente
o desafio que o crítico encontra – toma aqui a forma de um convite
a ler, em segundo grau, justamente, a leitura que o texto sugere de
sua própria leitura: de que maneira, então, no texto mesmo, reflete-se,
analisa-se, comenta-se, a procura do sentido próprio, a passagem da
percepção equívoca ao estabelecimento do sentido unívoco, do fecha-
mento da verdade, em torno da narrativa?
A exclusão da incerteza e da dúvida provocadas por um significan-
te equívoco, a aquisição da clareza relativa ao sentido disso que, en-
tretanto, se manifestava, de início, como essencialmente ambíguo, o
coroamento da leitura, então, é muitas vezes expresso no texto como
uma reivindicação cognitiva, isto é, como afirmação de um saber:
“He was looking for little Miles.” A portentous clearness now possessed me.
“That’s whom he was looking for.”
“But how do you know?
“I know, I know, I know!” My exaltation grew. “And you know, my dear!”158
[“Ele procurava o pequeno Miles. Eu me sentia sob a possessão de uma
prodigiosa clarividência.
“Olha só o que ele procurava.
– Mas como é que você sabe?

233
– Eu sei, eu sei, eu sei!” Minha exaltação crescia. “E você o sabe também,
minha querida!”]159
A certeza do leitor está ligada à segurança de saber: o saber é, então,
um saber do sentido. “I don’t know what you mean”, dirá Flora.160 Esse
“saber” é conquistado por meio do “ver”:
Mrs. Grose of course could only gape the wider. “Then how do you know?”
I was there – I saw with my eyes.”
“For the woman’s a horror of horrors”. (…)
“Tell me how you know”, my friend simply repeated.
“Know? By seeing her! By the way she looked.”161
[Naturalmente, o espanto de Sra. Grose só podia crescer.
“Então, como você sabe?
– Eu estava lá, eu vi com meus olhos”
“Pois essa mulher é o pior dos horrores.” (…)
Minha amiga se contentou em repetir:
“Diga-me como você sabe.
– Como eu soube? Vendo-a! Por seu aspecto”]162
Se o “saber” é saber do sentido, o “ver”, em compensação, é a per-
cepção de uma figura que parece significante, que faz sinal:
There was a figure in the grounds – a figure prowling for a sight.163
[Havia uma figura, no meio dos canteiros, uma figura que rondava para
obter um olhar.]164
“Ver”, em outros termos, se relaciona com a ordem do significante (o
que é percebido como portador de sentido, e que está, então, começan-
do a significar), ao passo que “saber”, por outro lado, se relaciona com
a ordem do significado (o que foi significado: sentido completo e como
tal, conhecido, dominado, possuído). O “saber” está para o “ver”, as-
sim como o significado está para o significante: o significante é da
ordem do visto, o significado é da ordem do sabido. O significante é,
como tal, ao mesmo tempo ambíguo e obscuro; o significado, em com-
pensação, é luminoso, certo, unívoco. O equívoco pertence, então, à
ordem do “ver”:
… there are depths, depths! The more I go over it, the more I see in it, and the
more I see in it the more I fear. I don’t know what I don’t see, what I don’t fear!165
[… há abismos, abismos! Quanto mais eu aí volto, mais vejo coisas, e mais
vejo coisas aí, quanto mais vejo coisas aí, mais tenho medo. Não sei mais o
que não vejo – o que não temo!]166
Ele, o equívoco, é eliminado do “saber”:

234
The way this knowledge gathered in me was the strangest thing in the world
(…). I began to take in with certitude (…) the presence (…) of a third person.167
[A maneira como esse saber me penetrava foi a coisa mais estranha do
mundo (…). Comecei a perceber com certeza a presença (…) de uma
terceira pessoa.]168
O processo de leitura da governanta esboça, dessa maneira, uma re-
lação dinâmica, uma passagem do “ver” ao “saber”. Tentemos seguir de
perto essa passagem, através de índices insistentes do vocabulário do
texto, para procurar estudar em quais condições ele opera e de que
modo ele comanda a diacronia textual, determina a própria história
da governanta como história da evolução de uma leitura em direção a
sua solução final.
A leitura começa, então, pela percepção de significantes ambíguos,
de uma carta obscura, de um fantasma desconhecido: seu sentido é um
saber do qual a governanta é barrada (“Ele é… Deus que me perdoe
se sei o que ele é”169). Ora, se a leitura se desencadeia a partir de uma
ausência de saber, postula, ao mesmo tempo, que o saber existe, mas no
Outro; para que a leitura seja possível, deve existir um saber no Outro
(no texto, por exemplo), e é esse saber do Outro que deve ser lido. A
governanta postula, com efeito, que o significado do qual ela é barra-
da, o sentido que ela ignora, é sabido em alguma parte. A questão que
assombra a novela inteira, a do sentido, se transforma na questão: o
que é que sabe?
Se o inconsciente [diz Lacan] nos ensinou alguma coisa, foi, primeiro o se-
guinte, que em alguma parte, no Outro, isso sabe. Isso sabe porque isso se
baseia, justamente, nesses significantes, de que o sujeito se constitui (…)
O estatuto do saber implica, como tal, que já há saber ali no Outro, e que
ele deve ser tomado. É por isso que ele feito de aprender.”170
Lendo, a governanta, procura tomar o saber do Outro, aprender a
ler com ele o significado que ela ignora. O saber de Sra. Grose, logo
de início:
Then seeing in her face that she already, in this (…) found a touch of picture, I
quickly added stroke to stroke (…)
“You know him then?”
(…)
“You do know him?”
She faltered but a second. “Quint!” she cried.171
[Vendo, por sua expressão, que ela reconhecia (…) um traço característico,
rapidamente acrescentei ao retrato, pincelada a pincelada (…)

235
“Você o conhece então?
(…)
“Então o conhece?”
Ela desmaiou – por um segundo somente
“Quint!” gritou.]172
Mas é, sobretudo, o saber das crianças que a governanta procura ler:
“They know – it’s too monstrous: they know, they know!”173
I was ready to know the very worst that was to be known. What I had then had
an ugly glimpse of was that my eyes might be sealed just while theirs were most
opened. (…)
What it was least possible to get rid of was the cruel idea that, whatever I had
seen, Miles and Flora saw more* – things terrible and unguessable and that
sprang from dreadful passages of intercourse in the past.174
[“Eles sabem! É monstruoso! eles sabem! eles sabem!”175
Eu estava pronta para conhecer o pior que havia a conhecer. O que tive en-
tão foi um horrível vislumbre de que meus olhos pudessem estar selados,
enquanto os deles estavam bem abertos. (…)
Do que eu não podia me livrar era da ideia cruel de que, o que quer que
eu tivesse visto, Miles e Flora viram mais – coisas terríveis, impossíveis de
adivinhar, e que provinham dos momentos horríveis de intimidade que
viveram no passado.]176
Testemunhas ou cúmplices das relações sexuais que os ligavam aos
fantasmas, as crianças, aos olhos da governanta, são, assim, possui-
doras de um saber que é, ao mesmo tempo, um saber do sentido e
um saber sexual: “They know – it’s too monstrous; they know, they
know!”, o verbo mesmo do conhecimento, “to know”, guardando seu
valor cognitivo, retoma, ao mesmo tempo, a conotação arcaica e bíbli-
ca: “conhecer” = ao mesmo tempo “saber” e “ter uma relação sexual”.
O saber desejado do Outro remete, então, tanto a algo do conhecimen-
to quanto do gozo.
As crianças tornam-se, dessa maneira, aos olhos da governanta,
“sujeitos-supostos-saber”. Ora, “o sujeito-suposto-saber” define, para
Lacan, o suporte da transferência, na experiência analítica: “Acreditei
dever suportar a transferência, visto que ela não se distingue do amor,
da fórmula do sujeito-suposto-saber (…). Aquele a quem eu suponho
o saber, eu amo.”177 “A transferência é do amor (…). Insisto: é do amor
que se endereça ao saber.”178 A governanta, com efeito, talvez sem se
dar conta, apaixona-se pelo menino, a quem ela supõe o saber:

236
It was extraordinary how my absolute conviction of his secret precocity (…)
made him (…) appears accessible as an older person – imposed him almost as
an intellectual equal.179
… Miles stood again with his hands in his little pockets (…). We continued silent
while the maid was with us – as silent, it whimsically occurred to me, as some
young couple who, on their wedding-journey, at the inn, feel shy in the presence
of the waiter.180
[Era extraordinário como minha convicção absoluta de sua secreta preco-
cidade (…) o tornava, a meus olhos, tão accessível como uma pessoa mais
velha – eu o supunha quase como meu igual, intelectualmente.181
Miles se pôs de novo em pé, com as mãos em seus pequenos bolsos
(…). Permanecemos silenciosos, enquanto a empregada esteve lá – tão
silenciosos, pensei de maneira fantasiosa, como um jovem casal em via-
gem de núpcias, numa pousada, que se sente intimidado pela presença
do garçom.]182
De novo, como no prólogo, estamos em presença de uma relação de
leitura que comporta uma relação de transferência: a leitura se revela
ser, aqui ainda, a repetição de uma história de amor: de um amor que
se endereça ao saber do Outro. O processo de leitura da governanta – sua
busca de significado tomado como saber do Outro – a coloca, então,
paradoxalmente, em posição de analisanda em relação ao saber das
crianças, que se encontram ocupando, ao mesmo tempo, nada menos
que o lugar do analista.
Não é, entretanto, assim que a governanta vê as coisas: a seus olhos,
são, antes, as crianças que estão na posição de “pacientes”, e, ao con-
trário, seu próprio papel perto deles é o do terapeuta, do médico:
His clear listening face, framed in its smooth whiteness, made him for the minute
as appealing as some wistful patient in a children’s hospital: and I would have
given, as the resemblance came to me, all I possessed on earth really to be the
nurse or the sister of charity who might have helped to cure him.183
[Seu claro rosto atento, enquadrado em sua pálida brancura, tornava-o,
nesse momento, tão enternecedor quanto um pequeno paciente pensativo,
num hospital de crianças, e quando essa semelhança me veio ao espírito,
pensei que daria, de boa vontade, tudo que eu possuía no mundo para ser
a enfermeira ou a irmã de caridade que ajudaria a curá-lo.]184
Com efeito, ao fim do romance, a governanta concebe, como diz,
um “remédio”185 para curar Miles. O remédio se revela ser a confissão
à qual ela vai forçá-lo:
“I’ll get it out of him He’ll meet me He’ll confess. If he confesses, he’s saved.”186
[“Eu tirarei dele o que quero. Ele vai ceder – ele vai me confessar. Se ele
confessar, se salvará.”]187

237
É assim, em sua função de terapeuta, de médica da alma, que a go-
vernanta desencadeia a solução da novela, sob a forma da confissão-re-
médio. A importância que o “remédio” concede à palavra do “pacien-
te”, à nominação do mal, como meio de exorcizá-lo, sugere mesmo, de
longe, uma visada semelhante à da cura analítica.
Mas é também, como leitora que a governanta deseja obter a con-
fissão de Miles: exigindo do menino toda a verdade sobre o que ele
sabe, ela entende, justamente, que vai se apropriar do saber do Outro:
a pressão para que ele confesse é, tanto gozo quanto conhecimento. A
confissão do menino, revelando, de uma parte, o que fez na escola e
admitindo, por outro lado, sua cumplicidade com o fantasma, deverá
permitir à governanta tanto decifrar quanto ler o sentido do fantasma
e o conteúdo da carta. Esta confissão constitui, dessa maneira, o resul-
tado e o coroamento da atividade da leitura: a nominação do sentido.
They are in my ears still, his supreme surrender of the name and his tribute to
my devotion.188
[Escuto ainda ressoar em meus ouvidos, essa suprema rendição do nome,
essa homenagem dada por Miles à minha devoção.]189
Essa “suprema rendição do nome”, coroando o triunfo de esforço
de leitura, não permanece no texto menos ambígua e duplamente
problemática. De uma parte, essa nominação que a governanta inter-
preta como resposta decisiva a todas suas questões é, em realidade,
uma questão:
“It’s there – the coward of horror, there for the last time!”
At this (…) he was at me in a white rage, bewildered, glaring vainly over the
place and missing wholly, though it now, to my sense, filled the room (…)
“It’s he?”
I was so determined to have all my proof that I flashed into ice to challenge him.
“Whom do you mean by ‘he’?”
“Peter Quint – you devil!” His face gave again, round the room, its convulse
supplication. “Where?”190
[“Ele está aí, o covarde, o horror imundo, está aí, pela última vez!”
Com essas palavras (…) ele se jogou sobre mim, aflito, lançando, inutil-
mente, para todos os lados, olhares furiosos e não encontrando nada em
lugar nenhum – se bem que, para mim, o quarto tenha ficado agora total-
mente impregnado de sua presença (…)
“É ele?”
Eu estava agora tão determinada a obter a prova inteira, que me transfor-
mei numa estátua de gelo para desafiá-lo.
“De quem você quer falar?

238
– Peter Quint! Ah! Demônio!” Seu rosto dirigia para todo lado uma súplica
convulsiva: “Mas onde?”]191
Se a nominação – “Peter Quint” – nomeia o sentido, designa e cerne
a verdade, essa verdade, de fato, só se dá por meio do questionamento
sobre seu lugar. “Onde?”, pergunta Miles: última palavra da confissão.
O sentido aqui literalmente levanta a pergunta. Ora, a governanta a
sufoca, tomando-a como resposta.
Por outro lado, o triunfo da governanta como leitora e, ao mesmo
tempo, como médica, como intérprete e terapeuta fica comprometido
pela morte de Miles. Tratar-se, então, aqui de compreender por que e
como o sentido mata; por que e como o sentido mata a criança.
MATA-SE UMA CRIANÇA

Insuportável é a morte da criança: ela realiza o mais secreto e o mais profundo


de nossos desejos (…) É impressionante que, até hoje, estejamos fixados (…)
na constelação edipiana, [nos] fantasmas do assassinato do pai, da posse
ou do despedaçamento da mãe, abandonando a tentativa de assassinato do
Édipo-criança, cujo fracasso assegurou e determinou o destino trágico do herói.
Serge Leclaire
Com efeito, de que morre Miles? O último parágrafo deixa a enten-
der que sua morte foi acidentalmente provocada pelo abraço apaixona-
do da governanta, um abraço que literalmente o sufoca:
The grasp with which I recovered him might have been that of catching him in
his fall. I caught him, yes, I held him – it may be imagined what with a passion,
but at the end of a minute I began to feel what it truly was that I held. We were
alone with the quiet day, and his little heart, dispossessed, had stopped.192
[O abraço [grasp] com o qual o dominei poderia bem ter sido o gesto mes-
mo com que o agarrei em sua queda. Eu o agarrei: sim, eu o segurava bem,
pode-se imaginar com que paixão – mas, ao fim de um minuto, comecei a
perceber o que eu segurava realmente.
Estávamos sós no dia tranquilo, e o pequeno coração, enfim liberto, havia
cessado de bater.]193
A palavra grasp (“abraço”) que comanda esse último parágrafo pa-
rece, então, explicar a morte da criança. Ora, é surpreendente que a
mesma palavra, grasp, comande igualmente, de maneira simétrica, o
primeiro parágrafo do último capítulo: tudo se passa como se o início
e o fim do último capítulo se fizessem sinal, como se coubesse à pala-
vra grasp introduzir e fechar o fim do romance. Veja-se a primeira frase
desse capítulo final:

239
My grasp of how he received this suffered for a minute from something that I can
describe only as a fierce split of my attention – a stroke that at first, as I sprang
straight up, reduced me to the mere blind movement of getting hold of him,
drawing him close and, while I just fell for support against the nearest piece of
furniture, instinctively keeping him with his back to the window.194
[Minha percepção [grasp] do efeito que essa demanda produziu sobre
ele – no espaço de um minuto – sofreu algo que só posso descrever como
uma violenta ruptura de minha atenção, como um golpe que, ao me levan-
tar, me deixou limitada ao estrito movimento cego de segurá-lo, de o puxar
para perto de mim – e, apoiando-me ao acaso, em minha queda, no móvel
mais próximo, para, instintivamente, segurá-lo, com as costas viradas para
a janela.]195
Malgrado a simetria aparente de suas posições estratégicas, no prin-
cípio e no final do capítulo de conclusão, as duas ocorrências da pa-
lavra grasp remetem, entretanto, a dois sentidos diferentes: “my grasp
of how he received this” utiliza a palavra em seu sentido abstrato, de
“compreensão”, “percepção”; “the grasp witch I recovered him” a uti-
liza em seu sentido concreto, de um abraço físico com pressão mus-
cular.196 Ora, parece que, colocando a palavra grasp em suas duas co-
notações diferentes nessas duas posições estratégicas paralelas, James,
justamente, pretende jogar com os dois sentidos, sugerindo fortemente
sua cumplicidade e interdependência. A questão implícita nesse jogo
semântico que enquadra o último capítulo seria: o que é “saisir”?
Qual é a interação entre o ato de compreender (“my grasp of how he
received this”) e o ato de abraçar a ponto de sufocar (“the grasp with
which I recovered him”)? Curiosamente é por uma imagem semelhan-
te e por meio do mesmo equívoco entre o ato mental e o gesto físico
que Cícero, também, refletiu sobre o ato de compreender.
Salvo o sábio [escreveu ele] ninguém sabe o que seja, e isso Zenão mos-
trava através de um gesto. Mostrava sua mão, com os dedos esticados. É a
representação (visum), dizia. Depois ele dobrava um pouco os dedos. É o
assentimento (assensus). Em seguida, quando ele fechava completamente
a mão e mostrava o punho, declarava que era isso a compreensão (com-
prehensio). É por isso que ele lhe deu o nome de catalepse [“ação de pegar/
saisir”], que não era utilizado antes dele. Em seguida, ele aproximou a mão
esquerda da mão direita e fechou cerradamente seu punho, com força. Ele
dizia que estava lá a ciência (scientia), que ninguém possui, salvo o sábio.197
É assim que a “ciência” da governanta parece matar a criança. Da
mesma forma, para Cícero, a compreensão parece se ilustrar por meio
da imagem do punho cerrado, do fechamento da mão, e, assim tam-

240
bém, para James a compreensão se literaliza e, ao mesmo tempo, se
ironiza, no gesto físico do abraço sufocante, do fechamento dos braços:
Mightn’t one, to reach his mind, risk the stretch of a stiff arm across his
character?198
The grasp with which I recovered him (…) I caught him, yes, I held him.199
[Não seria permitido, para atingir seu espírito, arriscar a dureza de um
braço estendido através de seu personagem?200
O abraço com o qual o segurei (…) Segurei-o, sim, eu o agarrei…]201
A compreensão (“grasp”, “reach his mind”) do sentido, na qualidade
de saber do Outro, a solução da leitura, é, assim, concebida como um
gesto violento de apropriação do Outro. A leitura não tem somente
relação com o saber, mas também com o poder: ela não é uma simples
procura do sentido, mas uma luta por seu controle. O sentido, desde
já, só pode ser o resultado de um ato de violência:
To do it in any* way was an act of violence, for what did it consist of but the
obtrusion of the idea of grossness and guilt on a small helpless creature who
had been for me a revelation of the possibilities of beautiful intercourse? (…)
I suppose I now read into our situation a clearness it couldn’t have had at
the time.202
[Qualquer que fosse o meio que empregasse, eu cometeria um ato de vio-
lência, pois o que eu faria, senão atravessar, com uma ideia de grosseria e
de culpabilidade, uma pequena criatura sem defesa, que me havia revelado
a possibilidade de relações deliciosas? (…) Suponho que vejo agora, nessa
situação, uma espécie de clareza que ela não poderia ter naquele tempo.]203
Entretanto por que essa violência é necessária para que o sentido ad-
venha, justamente, como luz e como “clareza”? De que “sofre” a com-
preensão (“my grasp of how he received this”), até que a pressão física
de seu próprio abraço (“the grasp with which I recovered him”) a torne
triunfante? Examinemos de novo a frase inicial do último capítulo.
My grasp of how he received this suffered for a minute from something that I
can describe only as a fierce split of my attention – a stroke that at first, as
I sprang straight up, reduced me to the mere blind movement of getting hold of
him, drawing him close and, while I just fell for support against the nearest piece
of furniture, instinctively keeping him with his back to the window.204
[Minha percepção [grasp] do efeito que essa demanda produziu sobre ele – no
espaço de um minuto – sofreu algo que só posso descrever como uma violen-
ta ruptura de minha atenção, como um golpe que, ao me levantar, me deixou
limitada ao movimento cego de segurá-lo, de o puxar para perto de mim – e,
apoiando-me, ao acaso, em minha queda, no móvel mais próximo, para,
instintivamente, segurá-lo, com suas costas viradas para a janela.]205

241
Justo antes dessa passagem, a governanta fez a Miles a pergunta de-
cisiva: “ele roubara sua carta”? Entretanto, sua capacidade de capturar
o efeito provocado em Miles por sua própria pergunta sofre – como
ela mesma diz – “uma violenta divisão, ou fissura, de sua atenção”:
sua atenção fica dividida entre Miles e o fantasma na janela, entre um
significante consciente e o significante inconsciente, sobre o qual esse
se articula; entre uma percepção consciente e seu desdobramento fan-
tasmático, seu prolongamento contraditório no desejo proibido que
ela desencadeia. Ora, dividida dessa maneira, sua atenção fracassa em
capturar o sentido da reação do menino. O fracasso da compreensão
é, então, devido à “violenta fissura” – à Spaltung – do sujeito, à divisão
na qual o sentido segura o sujeito que o procura. Ora, é essa castração,
essa “fissura”206 ou ruptura, que é preciso negar, essa divisão que se
deve reduzir, superar ou conjurar, pela violência do abraço.
… something that I can describe only as a fierce split of my attention – a stroke
that at first (…) reduced me to the mere blind movement of getting hold of him,
drawing him close…
(…) yet I believe that no woman so overwhelmed ever in so short a time recov-
ered her command of the act.207
[… algo que só posso descrever como uma violenta ruptura em minha
atenção – como um golpe que, ao me levantar, me deixou limitada ao mo-
vimento cego de segurá-lo, de o puxar para perto de mim…
(…) entretanto, creio que nunca uma mulher tão perturbada recuperou,
num tempo tão curto, o domínio de seus atos.]208
Primeiro James escreveu “recovered her grasp of the act”; foi no
momento da revisão de seu texto para a New York Edition que ele
substituiu grasp por command. Qual é, então, o ato com que a gover-
nanta recobra a “compreensão” (grasp), mesmo o domínio, o contro-
le (command)?
It came to me in the very horror of the immediate presence that the act would
be, seeing and facing what I saw and faced, to keep the boy himself unaware.209
[No horror dessa presença instantânea, veio-me ao espírito que, vendo
e afrontando o que eu via e afrontava, o ato a se realizar seria impedir o
menino de tomar consciência dele.]210
A governanta, lembremo-nos, está, nesse último capítulo a ponto de
conseguir realizar sua leitura do saber do menino, logo, do sentido. Ora,
paradoxalmente, o ato mesmo de ler o saber da criança afirma-se como
um ato de recalcamento de uma parte desse saber. O saber infantil tor-
na-se, então, aqui, o emblema do saber inconsciente; o saber de uma

242
criança prometida à morte e, no entanto, indestrutível, sempre ainda a
ser morta: “um saber [diz Lacan] que não suporta que se saiba que se
sabe”,211 que se recusa, nos dois sentidos do termo, à reflexão consciente.
What was prodigious was that at last, by my success, his sense was sealed and
his communication stopped: he knew that he was in presence, but knew not
of what (…) My eyes went back to the window only to see that the air was clean
again (…) There was nothing there. I felt the cause was mine and that I should
surely get all*.212
[Foi prodigioso sentir, enfim, graças a meu sucesso, seus sentidos selados
e a comunicação rompida: ele sabia que estava em presença, mas não sabia
de quê (…) meus olhos retornaram à janela e só viram o ar transparente
(…) não havia nada na janela. Senti que tinha a causa ganha e que minha
conquista seria total*.]213
A leitura, entendida como esforço para pegar e para agarrar o sig-
nificado, corresponde à barra ou ao recalcamento de um significante,
recalcamento cujo objetivo é a divisão do sentido.
“The act would be, seeing and facing what I saw and faced, to keep the boy him-
self unaware (…) my eyes went back to the window only to see that the air was
clear again (…) There was nothing there.”
[“Vendo e encarando aquilo eu via e encarava, o ato a se realizar seria im-
pedir o menino de tomar consciência dele (…) Meus olhos retornaram à
janela e só viram o ar transparente (…) não havia nada na janela.”]
Ver (e, ao mesmo tempo, ler: “ver fantasmas”, “ver letras”), é, en-
tão, paradoxalmente, não somente perceber mas também não perceber:
determinar ativamente um campo, como invisível, como excluído da
percepção exterior – por definição – à visibilidade: é colocar um limite
além do qual a visão está barrada, interditada, impossível. A violência
do abraço, visando à compreensão, está ligada à violência necessária
para a própria imposição desse limite, além do qual, os olhos devem se
fechar. Pois não é o fechar dos olhos que determina o invisível como
seu resultado empírico; é, ao contrário, o invisível (o recalcado) que
(pré) determina o fechar dos olhos: o imperativo de fechar os olhos faz
parte, ativamente, do próprio esforço de ver – do esforço para ler, para
conhecer, para extrair o sentido:
… my equilibrium depended on the success of my rigid will to shut my eyes
as tight as possible to the truth that what I had to deal with was, revoltingly,
against nature. I could only get on at all by taking “nature” into my confidence
and my account (…) No attempt, none the less, could well require more tact
than just this attempt to supply, one’s self, all* the nature. How could I put even
a little of that article into a suppression of reference to what had occurred?

243
How on the other hand could I make a reference without a new plunge into
the hideous obscure?214
… meu equilíbrio dependia da vitória de minha impassível vontade, a von-
tade de fechar os olhos tão forte quanto possível a essa verdade: o caso que eu
tinha a tratar era revoltante e contra a natureza. Eu só podia me sustentar
se levasse em conta “a natureza”, fazendo-a minha confidente e minha alia-
da (…) Nenhuma empreitada, entretanto, exigia mais tato do que esse de
substituir sozinha, por si só, toda* a natureza. E como introduzir, mesmo
que fosse um átomo desse gênero de coisa, suprimindo a referência ao que
se passara? Como, por outro lado, eu poderia fazer uma referência sem, de
novo, mergulhar na horrível obscuridade?*]215
Pegar: fechar os braços/sufocar. Ver: fechar os olhos/suprimir uma
referência, ou, antes, fazer referência, mas, ao mesmo tempo, “mer-
gulhar de novo na obscuridade”, isto é, no invisível. Ora, é parado-
xalmente, essa barragem à visão, esse limite, que conjura a “fissura da
atenção” e, ao mesmo tempo, a divisão do sentido como totalidade:216
My eyes went back to the window only to see that the air was clear again
(…) There was nothing there. I felt that the cause was mine and I should sure-
ly get all*217
I seemed to myself (…) to have mastered it, to see it all.218
[Meus olhos retornaram à janela e só viram o ar transparente de novo
(…) não havia nada na janela. Senti que tinha a causa ganha e que minha
conquista seria total*.219
Parecia-me ver tudo, ter dominado a dificuldade.]220
O princípio da totalidade sendo o próprio princípio do limite e do
recalcamento que lhe é inerente, a ironia aqui sugerida pelo texto, é
que a ilusão de mestria, de “ver tudo”, é, em realidade, a contrapartida
do gesto de “fechar os olhos tão fortemente para a verdade quanto
possível”. “Mestrear” é tornar-se, por sua vez, um Mestre e tornar-se
como o Mestre: ora, o Mestre, nessa história, lembremo-nos, encarna a
lei da Censura e o princípio do limite como constitutivos da instância
da Autoridade: da instância da consciência como mestria. Com efeito,
“mestrear” nesse texto, tudo compreender, ver tudo, é, ironicamente,
juntar-se ao próprio lugar da cegueira que o Mestre assume, no prin-
cípio da história: lugar de um imperativo de ignorância, da supressão
da informação:221
… a stroke that (…) reduced me to the mere blind movement of getting hold
of him, drawing him close (…) instinctively keeping him with his back to the
window… (…)

244
He almost smiled at me in the desolation of his surrender (…) I was blind
with victory.222
(…) um golpe que me reduziu ao estrito movimento cego de segurá-lo, de
o puxar para perto de mim (…) de instintivamente o segurar com as costas
viradas para a janela. (…)
Ele quase sorriu para mim, parecendo desolado por causa de sua derrota.
(…) Eu estava embriagada, cega pela vitória.]223
“Mestrear”, “dominar”, “ver tudo”, é assim, não somente se cegar
pelo triunfo mas também, literalmente, triunfar pela cegueira.
A violência do abraço cego com o qual a governanta agarrou Miles
lembra a imagem metafórica do abraço quase convulsivo, mas possan-
te, do leme de um navio a naufragar, imagem com a qual a governanta
representou para si mesma a necessidade de seu próprio esforço de
domínio, ou mestria, de controle da situação:
It was (…) by just clutching the helm that avoided total wreck.224
[Foi (…) ao me agarrar ao leme que evitei o naufrágio total.]225
Essa metáfora do barco insiste no texto. Marcando aqui o fim da
história, ela figura igualmente no início: é com ela que se fecha o pri-
meiro capítulo:
It was a big, ugly (…) house (…) in which I had the fancy of our being almost
as lost as a handful of passengers in a great drifting ship. Well, I was strangely
at the helm.226
[Era uma grande casa velha e feia (…) Nosso pequeno grupo me parecia
quase perdido aí, como um punhado de passageiros em um grande navio
à deriva. E era eu, estranhamente, que segurava o leme.]227
A metáfora do leme evidencia a relação subjacente entre o poder e
o sentido: manter a barra, é, efetivamente, dar sentido ao movimento
do navio, dando-lhe uma direção: controlando sua direção. Durante
toda a história, com efeito, a leitura da governanta é uma imposição de
sentido, de direção sobre os outros:
This is why I had now given to Mrs. Grose’s steps so marked a direction – a
direction making her, when she perceived it, oppose a resistance (…)
“You’re going to the water, Miss? – you think she’s in*–?”228
I could only get on at all by taking “nature” into my confidence (…) by treating
my monstrous ordeal as a push in a direction unusual.229
“Is she here*?” Miles panted as he caught with his sealed eyes the direction of
my words.230

245
[Era a razão pela qual eu dirigia os passos de Sra. Grose numa direção bem
nítida, mas, quando ela percebeu, opôs uma resistência (…)
“Você vai para a lagoa, senhorita? Você acredita que ela está lá dentro?”231
Eu só podia prosseguir tomando consciência da natureza, fazendo dela
minha confidente e minha aliada (…) tratando minha monstruosa prova
como um impulso numa direção insólita.232
“Ela está aí?” Miles arquejou, logo que ele pegou, com seus olhos fechados,
a direção de minhas palavras.]233
Dando uma direção, dando sentido, segurando o leme, a governan-
ta, com a imposição de sua leitura, tomou, ao mesmo tempo, o sen-
tido como poder e o poder como sentido: ela nos faz acreditar, e faz
acreditar aos personagens que a cercam que é o sentido que está no
poder, e que o poder (que ela detém) tem sentido; “Ela tem autorida-
de”, diz James: “o que não é pouco ter-lhe dado”; “que ela seja capaz,
nessas condições, de fazer uma narrativa que tenha crédito em rela-
ção a tais bizarrices, não constitui, em verdade, falta de caráter.”234 A
governanta, ao pé da letra, governa, segurando, com força, o leme do
navio. A repetição textual da metáfora do navio é, então, ligada a essas
conotações do comando do leme, na qualidade de empreendimento
de controle do sentido.
Ora, curiosamente, a imagem do navio reaparece igualmente – em
contexto aparentemente diferente – num outro lugar estratégico do
texto; lá onde, na margem do lago, a governanta surpreende Flora (sob
a influência, acredita, de Srta. Jessel) se entregando ao jogo, suspeito a
seus olhos, da construção de um navio de brinquedo com pedaços
de madeira:
[Flora] had picked up a small flat piece of wood which happened to have
a little hole that had evidently suggested to her the idea of sticking in an-
other fragment that might figure as a mast and make the thing a boat. This
second morsel, as I watched her, she was very markedly and intently attempting
to tighten in its place. (…)
I got hold of Mrs. Grose as soon after this as I could (…) I still hear myself cry
as I fairly threw myself into her arms: “They know – it’s too monstrous: they
know, they know!”
“And what on earth –?”(…)
“Why, all that we* know – and heaven knows what else besides!”235
[[Flora] tinha apanhado um pedacinho de madeira plana, furada com um
pequeno buraco que lhe havia, evidentemente, sugerido de enfiar aí outro
fragmento que podia parecer um mastro e transformar a coisa em navio. Esse
segundo pedaço, enquanto eu a observava, ela tentava, com cuidado e
atenção incríveis, apertá-lo para firmá-lo no lugar.

246
(…)
Logo que pude, saltei sobre Sra. Grose (…) ouço-me ainda gritar, lançan-
do-me, por assim dizer, em seus braços:
“Eles sabem! É monstruoso! Eles sabem! Eles sabem!
– E o que sabem, pelo amor de Deus?
– Tudo o que nós* sabemos, e Deus sabe lá o que mais!]236
Essa passagem é crucial, não somente porque constitui, para a go-
vernanta, uma prova decisiva do saber das crianças mas também por-
que, literalmente, ainda que implicitamente, evoca uma imagem que
se relaciona com o título do texto: tentando fixar o bastão no interior
do buraco para construir o mastro do navio, Flora o faz dar uma volta
(“attempting to tighten it in its place”), tal como precisamente se dá
uma, uma volta no parafuso.
Ora, o que significa este gesto? É evidente que o parafuso – ou o
mastro –, ao menos aos olhos da governanta, seja, no caso, um símbolo
sexual, uma metáfora fálica. Essa conotação fálica foi vista e sublinha-
da, lembremo-nos, pela exegese de Wilson; mas ela aparecia como uma
resposta definitiva que colocava fim a todas as questões do texto, como
o sentido próprio que seria suficiente nomear, para compreender tudo,
“ver tudo”: emblema do ato sexual, o mastro do navio de Flora seria,
então, para Wilson, um simples índice do objeto real – do órgão lite-
ral – que a governanta deseja, sem querer ou sem poder admitir. Ora,
não é, na condição de resposta – sentido literal – que o texto evoca aqui
o falo, mas, ao contrário, na condição de questão, figuração, ela mesma,
ambígua, surgida do enigma do duplo sentido da equação metafórica:
falo = mastro do navio. Dizer: “mastro significa um falo” não é mais
esclarecedor, nem mais explicativo, que dizer: “um falo significa um
mastro”. A questão que se coloca é, desde então, o que é um falo, para
poder, dessa maneira, ser o que ele não é? E, da mesma maneira, o que
é um mastro, para poder significar outra coisa que não seja ele mesmo?
Qual o sentido do movimento de reenvio entre o falo e o mastro? Pois o
mastro que faz figura de falo, figura igualmente o parafuso, o que pa-
rece ser a questão crucial colocada pelo texto, anunciada e valorizada
pelo título: o que é, enfim, um parafuso no texto de A volta de parafuso?
Voltemos, então, ao navio de Flora. É como metáfora fálica que ele
perturba a governanta, convence-a da perversidade das crianças: “They
know – it’s too monstrous: they know, they know”. O parafuso (la vis),
ou o mastro fálico, constitui, então, aos olhos da governanta, uma cha-
ve do sentido, um significante-mestre: uma chave do saber do Outro.

247
Em tal contexto, é, sem dúvida, tentador notar a espantosa seme-
lhança, em inglês, entre a palavra mast (“mastro”/mât) e a palavra mas-
ter (“mestre”/maître), que não podem deixar de evocar: se o mastro,
com efeito, é uma espécie de “mestre”, a peça-mestre que suporta e
domina a articulação do navio, o Mestre pode ser uma espécie de mas-
tro que sustenta e governa a própria articulação do texto, toda a histó-
ria de A volta do parafuso. Dominando também o navio, o mastro não
deixa de ter relação com o leme – ou a barra – que a governanta agarra
e segura com a mesma violência, da mesma maneira que ela abraça
Miles237 (que é também um pequeno Mestre).238
Ora, sugerir, dessa maneira, que Miles abraçado pela governanta,
assim como a barra poderosamente apertada com o punho no leme
de um navio naufragando, da mesma maneira que o mastro do na-
vio de Flora, da mesma maneira que o parafuso d’A volta do parafuso,
significam, cada uma das expressões, o falo e o Mestre, é sugerir, jus-
tamente, uma cadeia significante na qual o falo (ou o Parafuso, ou o
Mastro, ou o Mestre), longe de encarnar o sentido literal, simboliza,
ao contrário, o deslizamento incessante, o princípio de movimento e
de deslocamento que, ao contrário, impede a cadeia (ou o texto) de
ter um sentido paralisado, literal. O falo, com efeito, é um significan-
te; um significante que é somente Mestre – chave do sentido e chave
do saber do Outro (do saber inconsciente que não pode saber-se, que
não suporta que se saiba que se sabe) – porque, como o Mestre, ele é
emblema da barra; o princípio mesmo do limite, do recalcamento e da
censura, princípio da própria barra do significado.
“A questão é, dizia Alice, se as palavras podem ter tantos sentidos
diferentes.”
“A questão é, dizia Humpty Dumpty, qual vai ser o mestre
– É tudo.”239
É, então, nos dois sentidos do termo que a governanta segura a bar-
ra: ela segura a barra que dirige o navio, que lhe dá sua direção e seu
sentido. Mas ela segura igualmente – e é a mesma coisa – a barra que
bate e recalca, que desloca e rasura o significado. Então, mesmo que ela
acredite estar em posição de controle de direção, de mestria do sentido,
ela somente agarra, apertando a barra ou o parafuso, um significado fe-
tiche, um tapa-buraco que, como a madeira-mastro de Flora, é somente
um simulacro. O parafuso, por sua vez, fecha o buraco e faz o buraco:
I was blind with victory, though even than the effect that was to have brought
him so much nearer was already that of an added separation.

248
The grasp with which I recovered him might have been that of catching him in the
fall. I caught him, yes, I held him – it may be imagined with what a passion; but
at the end of a minute I began to feel what it truly was that I held. We were alone
with the quiet day, and his little heart, dispossessed, had stopped.240
[Eu estava embriagada, cega pela vitória, uma vez que o efeito daquilo que
devia aproximá-lo era o de uma separação suplementar.
[O abraço [grasp]* com o qual o dominei poderia bem ter sido o gesto
mesmo com que o agarrei em sua queda. Eu o agarrei: sim, eu o segurava
bem, pode-se imaginar com que paixão – mas, ao fim de um minuto, co-
mecei a perceber o que eu segurava realmente.
Estávamos sós no dia tranquilo, e o pequeno coração, enfim liberto, havia
cessado de bater.]241
Ainda que, nesse abraço da compreensão, o “nome” tenha sido “ce-
dido” (pela insistência da governanta), e o sentido nomeado, a satisfa-
ção, no fim das contas, só termina ao preço de uma radical decepção:
o triunfal abraço do significado é somente o abraço de um cadáver. A
apropriação do sentido se revela a apropriação de nada – de nada, em
todo caso, que estivesse vivo: “… a desmontagem ímpia da ficção e
consequentemente do mecanismo literário, para ostentar”, como es-
creve Mallarmé, “a peça principal ou nada. (…) o consciente que falta
em nós explode no alto.”242
Mas o que é que explode, senão, justamente, a consciência mesma do
fato de que, não possuindo nada, ela é despossuída de sua própria mes-
tria? O que explode, senão a própria consciência, enquanto resta, jus-
tamente, estrangeira ao que explode, isto é, estrangeira a si mesma? O
que, então, novamente, mas dessa vez, de maneira definitiva, divide-se,
é, ao mesmo tempo, a unidade do sentido e a unidade mesma de seu
detentor. A tentativa de mestria do sentido, o que deveria, justamente,
unificá-lo, conjurar sua “fissura”, sua contradição e sua divisão, só se
realiza ao preço de uma ferida, de uma fissura ou distância suplementar,
de uma irreversível “separação”. A compressão do significante cria uma
perda irrecuperável, uma irremediável castração: o parafuso serrado, a
barra mantida somente cedem seu sentido, fazendo uma fenda no poder
desse (ou dessa) que acredita detê-los. A própria possessão do sentido
se revela, ironicamente, como despossessão de seu detentor. No fim das
contas, a tentativa de segurar o sentido e fechar a leitura, fazendo uma
decifração definitiva, somente encontra e dá a ler a morte.
Poder-se-ia considerar A volta do parafuso não somente como
uma notável história de fantasmas mas igualmente como uma não me-
nos notável história policial: a narrativa comporta, com efeito, a desco-

249
berta de um cadáver e um crime singularmente temível: o assassinato
de uma criança. Como em todo “policial”, o crime só se descobre no
final. Somente, à diferença dos “policiais” clássicos, o crime não surge
no início da história, mas em seu desvendamento: o desvendamento
precede o crime. Em sua função de leitora, a governanta é o deteti-
ve: a partir do início da história, ela tenta desvendar, a seu redor, por
induções lógicas e pela busca febril de “provas”, ao mesmo tempo, a
natureza do crime e a identidade do criminoso.
I remember (…) my thrill of joy at having brought on a proof.243
I was determined to have all my proof, that I flashed into ice to challenge him.244
I didn’t last as suspense – it was superseded by horrible proofs.245
[Lembro-me (…) de meu frêmito de alegria por ter, enfim, obtido uma
prova inegável.246
Eu estava agora tão determinada a obter a prova inteira, que me transfor-
mei numa estátua de gelo para desafiá-lo.247
O suspense não durou – ele cedeu lugar a provas espantosas.]248
Ora, não sabendo qual é o crime, a governanta acaba, ela mesma, por
cometê-lo. A estrutura policial insólita de A volta do parafuso encontra,
assim, a mesma estrutura do Édipo rei: num texto, como no outro, o
detetive descobre que ele mesmo é o autor do crime procurado, e que
o crime está nele. “O interesse do crime”, escreve James, a propósito
dos romances policiais modernos, “reside no fato de que ele compro-
mete a segurança (…) do criminoso”:
The play is a tragedy, not in virtue of an avenging deity, but in virtue of a
preventive system of law; not through the presence of a company of fairies, but
through that of an admirable organization of police detectives. Of course, the
nearer the criminal and the detectives are brought home to the reader,
the more lively his “sensation”.249
[A peça é uma tragédia, não em virtude de uma divindade vingativa, mas
em virtude de um sistema de lei preventivo; não pela presença de um
grupo de fadas, mas pela admirável organização de policiais detetives.
Certamente, quanto mais o criminoso e o detetive forem colocados próximos do
leitor, mais viva será sua “sensação”.]
A volta do parafuso parece, com efeito, realizar de forma máxima
esse ideal de proximidade, pois o criminoso está tão próximo quan-
to possível do detetive, e o detetive, por outro lado, só o é por sua
função de leitor: encarnados, um e outro, na governanta, o detetive
e o criminoso dramatizam, aqui, nada mais que a condição do lei-
tor. Introduzido na intimidade, na proximidade da governanta, como

250
leitora/detetive/criminosa, o leitor espreita o sentido escondido de
A volta do parafuso, detectando o “mal”, tentando situá-lo no texto,
também ele, como ela, o detetive de um crime que, em realidade,
está nele, que retorna sobre ele, que procede dele mesmo? Pois, se a
governanta, com efeito, acaba por cometer, ela mesma, o crime que
ela tenta descobrir, esse crime, ela o comete em sua qualidade de de-
tetive, por meio da investigação, forçando o suspeito a uma confissão:
o crime, paradoxalmente, é cometido pela ação detetivesca. É essa
investigação (a leitura) que é, ela mesma, o instrumento do crime, a
arma assassina. A história do sentido (ou da consciência) é a história
do crime, de sua investigação.
Da mesma forma que o detetive se descobre, no fim, criminoso, po-
de-se dizer que, no caso da governanta, pela morte de Miles, é como se
o médico se revelasse ser, ele mesmo, o doente; o analista se revelasse
ser o analisando. A volta do parafuso desconstrói todas essas oposições
clássicas: o possuído e seu exorcista, o sintoma e sua interpretação são
aqui intercambiáveis, ou, em todo o caso, indecidíveis. Considerando
que a medicina é doente, que o “remédio” da governanta é um sinto-
ma, que a “cura” da criança é seu assassinato, nada mais se parece com
a loucura do que a própria garantia da terapia. Para não deixar dúvida,
o naufrágio é real: o leme da governanta é o do navio ébrio.
               (…) DO FUNDO DE UM NAUFRÁGIO
O MESTRE (…)
               outrora ele empunhava o leme
inferindo
cadáver pelo braço         apartado do segredo que guarda
          Núpcias
            (…)
cujo
    véu de ilusão ressurto ânsia instante
    como o fantasma de um gesto
             vacilará
             se abaterá
             insânia250
             loucura251

LOUCURA E SENTIDO: A VOLTA DO PARAFUSO

But this is exactly what we mean by operative irony. It


implies and projects the possible other case.
James

251
Les hommes sont si nécessairement fous que ce serait être
fou par un autre tour de folie de n’être pas fou.
Pascal
A própria metáfora fundamental do título do texto – a volta do para-
fuso – experimenta uma volta de parafuso: no plano sexual, no abraço
ou na tomada do significante fálico como significante-mestre, fetiche
de plenitude, de poder, revela, no vazio da castração, a perda de poder.
No plano cognitivo, a compressão do significante, como chave do sa-
ber, revela a perda do bom senso, numa espécie de delírio, soldando-se
num último não sentido da morte. A metáfora do controle se transfor-
ma em metáfora da perda; especificamente da perda de controle sobre
o funcionamento mecânico: aquele que acredita rodar o parafuso, para
controlar a máquina, descobre-se, a si mesmo, como um parafuso na
máquina, que roda sozinha, num automatismo repetitivo.
We had, all three, with repetition, got into such splendid training that we went,
each time, almost automatically, to mark the close of the incident, through
the very same movements.252
[Adquirimos, nós três, pela repetição, um tal treino, que, a cada vez, esbo-
çávamos, quase automaticamente, os mesmos gestos para marcar o fechamento
do incidente.]253
O incidente, entretanto, não se fecha jamais, pois, em seu movimen-
to de espiral traçado pelo parafuso, o fechamento falta, fracassa: figura
exemplar do conceito freudiano de compulsão à repetição, a espiral é
uma repetição de círculos, onde aquilo que volta re-torna,254 mas onde o
que circularmente retorna não consegue completar o círculo, não con-
segue se fechar e se encontrar: o que na espiral se repete é um encontro
faltoso consigo mesmo, um encontro faltoso com o que retorna e que não
para, então, de retornar. Para ser funcional, o parafuso não pode fechar o
círculo, só pode repeti-lo, repetir a “volta”, através dos “mesmos gestos”.
De metáfora substancial,255 o parafuso se transforma, assim, em metá-
fora funcional, metáfora do movimento, no qual está preso: não é tanto
o parafuso que conta, mas a volta que o manipula, o movimento mesmo
de giro e os giros que ele marca. Com efeito, as aparições dos fantasmas
são constantemente ligadas aos giros e ao movimento de girar:
I could take a turn into the grounds and enjoy, almost with a sense of property
(…) the beauty and dignity of the place. (…) One of the thoughts that (…) used
to be with me (…) was that it would be (…) charming (…) suddenly to meet
someone. Someone would appear there at the turn of a path (…). What arrest-
ed me on the spot (…) was the sense that my imagination had, in a flash, turned
real. He did stand there (…) at the very top of the tower…256

252
I sat reading (…). I found myself, at the turn of a page (…) looking (…) hard
at the door of my room. (…) I went straight along the lobby (…) till I came
within sight of the tall window that presided over the great turn of the stair-
case (…). I required no lapse of seconds to stiffen myself for a third encounter
with Quint.257
[Eu podia fazer uma volta nos canteiros e gozar, com um sentimento quase
de propriedade (…) da nobreza e da beleza dos lugares (…) Um dos pen-
samentos que me acompanhavam nesses devaneios (…) é que teria (…)
muito charme se eu encontrasse subitamente alguém. Alguém apareceria lá
na curva de uma alameda (…) O que me deteve (…) foi a sensação de que
minha imaginação, num lampejo, tinha se tornado realidade. Ele estava
bem lá (…) no alto da torre.258
Eu lia, sentada, (…) parecia ter acabado de virar uma página, olhando
fixamente para a porta de meu quarto, olhando acima de meu livro (…).
Avançava direto pelo longo corredor (…) até chegar diante de uma alta
janela que dominava a vasta curva da escada (…) Foi necessário um lapso
de poucos segundos, para eu me enrijecer, diante de um terceiro encontro
com Quint.]259
Ora, o que é, precisamente, uma curva, senão uma modificação de
orientação no espaço, isto é, ao mesmo tempo, um deslocamento e uma
decisão do sentido? Não é de se espantar que, pelo que está em jogo no
sentido, A volta do parafuso se estruture como uma topografia de curvas.
Entretanto, o parafuso gira no mesmo lugar: a to­po­gra­fia das cur­-
vas, em realidade, o fecha, o encerra num espaço labiríntico:
It was a tighter place still than I had yet turned round in.260
[Era um lugar estreito, ainda mais fechado, no qual eu ficava dando voltas.]261
Se a curva marca a direção, o que caracteriza, em compensação, a
economia do labirinto, é uma perda de direção. Com efeito, a morte
de Peter Quint (o que o faz aceder ao estatuto de fantasma) é devida a
uma tal perda de direção, a um “erro de curva”:
Peter Quint was found (…) stone dead on the road from the village: a catastro-
phe explained (…) by a visible wound to his head; such a wound as might have
been produced (and as, on the final evidence, had* been) by a fatal slip, in the
dark and after leaving the public house, on the steepish icy slope, a wrong path
altogether, at the bottom of which he lay. The icy slope, the turn mistaken at
night and in liquor, accounted for much – practically, in the end, and after he
inquest and boundless chatter, for everything.262
[Peter Quint, frio como uma pedra, foi encontrado (…) na estrada que
vem da aldeia. A catástrofe foi explicada (…) por uma ferida visível na ca-
beça; ferida que pode ter sido provocada – e que, de acordo com as provas
definitivas, tinha realmente sido feita por um fatal passo falso, um erro

253
total do caminho que fez, na escuridão, deixando o cabaré, numa descida
íngreme, coberta de neve, ao pé daquela ele jazia. A descida gelada, o erro
da curva induzido pela noite e pelo álcool explicavam bem as coisas; no
fim das contas, depois da investigação e dos intermináveis falatórios, tudo
praticamente se explicou.]263
Se a má direção, a “curva errada” “explica bem as coisas”, se, “no fi-
nal das contas”, “pode-se explicar tudo”, e notadamente o acidente da
morte, talvez possa igualmente, de maneira paralela, no fim do roman-
ce, explicar o acidente da morte de Miles, duplo do desaparecimento
do fantasma, que é como uma “segunda morte” de Peter Quint. A pró-
pria loucura da governanta poderia ser, assim também, explicável por
um erro de curva, uma falsa tomada de direção (ou de sentido), um
erro de leitura que leva à morte. A própria palavra turn significa, em
inglês, ao mesmo tempo, uma “curva” e um ‘ataque”, um “acesso” de
loucura (a turn of hysteria); e certos momentos do texto parecem jogar
com um duplo sentido. No momento crucial em que a governanta,
nervosa e violentamente, acusa Flora de ver Srta. Jessel e de negar, Sra.
Grose, que não vê nada também, não deixa de protestar:
“What a dreadful turn, to be sure, Miss! Where on earth do you see
anything?”264
[“Certamente isso vai mal,265 senhorita! Onde, afinal, você vê alguma
coisa?”.]266
A palavra turn (“que ça tourne mal”: “what a dreadful turn”) significa
aqui uma “curva na história” (“volta diferente que as coisas tomam”),
ou “um ataque de nervos” (“um acesso de loucura ou de raiva”)? E, se
a expressão significa “uma curva na história”, a “curva” implica uma
simples mudança, um simples deslocamento do sentido, ou, ainda, seu
desvio aberrante, sua distorção delirante? Ou mesmo, a figura irônica
da própria possibilidade de sua radical inversão? O que quer que seja a
metáfora da “volta do parafuso”, referindo-se ao giro do sentido, liga
entre eles, numa equivalência e numa suspensão irônicas, a direção e
o desvio, a volta ou giro da interpretação e a volta ou giro da loucura.
A governanta está consciente da possibilidade da loucura – sua própria
loucura – como um risco de leitura, como avesso do sentido:
I began to watch them in a stifled suspense, a disguised tension that might well,
had it continued too long, have turned to something like madness. What saved
me, as I now see, was that it turned to another matter altogether (…) it was
superseded by horrible proofs. Proofs, I say, yes – from the moment I really
took hold.267

254
[Comecei a observá-los num suspense sufocante, numa excitação disfarça-
da que teria podido, com o tempo, me levar à loucura [literalmente: “fazer
uma volta em direção à loucura”]. O que me salvou, vejo agora, foi o giro
inteiramente diferente que as coisas tomaram (…) O suspense (…) cedeu
lugar a provas espantosas. Digo, com certeza, provas, sim, a partir do mo-
mento em que pude dominar a situação.]268
“Avoir prise”, “dominar” (to “take hold”), isto é, de novo, agarrar
e segurar o parafuso, esforçar-se para controlar o sentido, é, então,
concebido como um gesto de salvaguarda da lucidez e da sanidade,
uma proteção contra a loucura. A questão da tomada revela-se como uma
questão de equilíbrio:
I had felt it again and again – how my equilibrium depended on the success
of my rigid will (…) I could only get on at all (…) by treating my monstrous or-
deal as a push in a direction unusual, of course, and unpleasant, but demand-
ing, after all (…) only another turn of the screw of ordinary human virtue.269
[Quantas vezes não senti – que meu equilíbrio dependia da vitória de minha
impassível vontade (…) Eu só podia manter (…) tratando minha mons-
truosa prova como um impulso numa direção insólita, e desagradável, mas
só pedindo, depois de tudo (…) uma volta de parafuso a mais na virtude
humana comum.]270
A expressão explícita “volta do parafuso” figura, com efeito, duas
vezes no texto, em dois contextos inteiramente diferentes, que le-
vantam a questão de relacionar a intenção textual que as liga, apesar
de suas diferenças. Ora, se, no último contexto, a figura da “volta
de parafuso” é explicitamente ligada à questão do equilíbrio, e, con-
sequentemente, do desequilíbrio, da possibilidade de loucura, essa
questão está explicitamente ligada, em outro contexto – o do prólo-
go – à questão explícita da recepção da narrativa e de seus efeitos de
leitura. A partir da carta da “volta do parafuso” que as liga, a leitura e
a loucura se fazem signo de uma ponta a outra do texto, de um nível
do texto a outro, da narrativa principal a seu “enquadramento”. Mas
esse signo, dessa vez, nos implica, nos coloca em relação com a gover-
nanta, porque se trata, “no enquadramento”, precisamente, da “volta
de parafuso”, do efeito de leitura produzido pela própria história de A
volta de parafuso. É Douglas, lembremo-nos, que coloca, dessa manei-
ra, a questão que vai introduzir sua narrativa:
“I quite agree – in regard to Griffin’s ghost (…) – that its appearing first to the little
boy, at so tender an age, adds a particular touch. But it’s not the first occurrence
of its charming kind that I know to have been concerned with a child. If the child
gives the effect another turn of the screw, what do you say to two* children?”

255
“We say, of course”, somebody exclaimed, “that they give two turns!271 Also that
we want to hear about them.”272
[Reconheço bem – no que se refere ao fantasma de Griffin (…) – que
sua aparição, primeiro, a um menino pequeno, de idade tão frágil, acres-
centa à história um pormenor particular. Mas não é, pelo que conheço,
a primeira vez que um exemplo desse gênero delicioso se aplica a uma
criança. Se a criança dá um efeito a mais de volta de parafuso, o que diria de
duas* crianças?
– Dizemos, claro, gritou alguém, que duas crianças dão duas voltas, e que
queremos saber o que lhes aconteceu.”]273
Mas de que maneira, mais precisamente, a “volta de parafuso”, dada
aqui “ao efeito” produzido sobre o leitor se liga à “volta de parafuso”
dada pela governanta à “virtude humana comum”? Como o leitor da
narrativa dramatizada pelo enquadramento, a governanta, vimos, é
também, funcionalmente, uma leitora engajada num processo e num
projeto de decifração. Ora, o que ela nos diz a propósito da “volta do
parafuso” com relação à “virtude humana comum”? Que essa “volta
de parafuso” supõe ser a garantia de seu equilíbrio; que seu equilíbrio
depende de “sua rígida vontade”, isto é, de sua capacidade de apertar o
parafuso e de dominar seu “impulso” e sua direção, logo, seu sentido
(“a push in direction unusual (…) but demanding only (…) another
turn of the screw”): a virtude humana comum, em outros termos, não
passa aqui de um sistema de controle do sentido. Mas de que maneira
esse projeto de controle do parafuso – o domínio do sentido – que
constitui o fundo da narrativa é ligado ao efeito de leitura da narra-
tiva? A “volta do parafuso” do efeito de leitura implicaria, também,
um domínio?
Com efeito, paralelamente à maneira como a história termina, pa-
ralelamente à maneira como a governanta-leitora segura, ao mesmo
tempo o sentido e o menino (“the grasp with which I recovered him…
I caught him, yes, I held him”), pode-se ler desde a primeira frase
do prólogo:
The story has held us, round the fire, sufficiently breathless…274
[A história nos mantivera sem fôlego, ao redor do fogo…]275
Em relação à tomada do projeto de leitura (“a push in a direction
unusual… another turn of the screw of ordinary virtue”), a tomada
do efeito de leitura revela-se uma tomada inversa. Eis, então, a última
volta do parafuso da própria metáfora da volta do parafuso: tomar é
ser tomado. Manter o significante (ou o sentido) é ser tido ou tomado

256
por ele. Figura não cognitiva, constativa, mas performativa da força
irônica da inversão e do quiasma, figura da própria ironia da subversão
do sujeito pela língua, a “volta do parafuso”, ou A volta do parafuso
coloca em ato a própria história da leitura, enquanto ela subverte o lei-
tor. Acreditando dominar, compreender a história, é a história que nos
compreende, nos toma.
Mas de que maneira a história nos tem, nos domina? De que maneira
somos totalmente tidos e compreendidos pela história?
A LOUCURA DA INTERPRETAÇÃO: LITERATURA E PSICANÁLISE

“Do you know what I think?”


“It’s exactly what I’m pressing you to make
intelligible.”
“Well”, said Mrs. Briss, “I think you are crazy.”
It naturally struck me
“Crazy?”
“Crazy.”
I turned it over. “But do you call that intelligible?”
She did it justice. “No; I don’t suppose it can be so for you if you are insane.”
I risked the long laugh which might have seemed that of madness. “‘If I
am’, is lovely!” And whether or not it was the special sound, in my ear, of
my hilarity, I remember just wondering if perhaps I mightn’t be.
James

Literature as well as criticism (the difference between them being delusive)


are condemned to be forever the most rigorous and, consequently, the most
unreliable language in terms of which man names and modifies himself.
Paul de Man
James disse explicitamente que A volta do parafuso é uma armadilha
que se fecha sobre o leitor:
It is an excursion into chaos while remaining, like Blue-Beard and Cinderella,
but an anecdote – though an anecdote amplified and highly emphasized and
returning upon itself; as, for that matter, Cinderella and Blue-Beard return.
I need scarcely add after this that it is a piece of ingenuity pure and simple, of
cold artistic calculation, an amusette* to catch those not easily caught (the
“fun” of the capture of the merely witless being ever small), the jaded, the disil-
lusioned, the fastidious.276
[É uma jornada no interior de um caos total, mas que não consiste, assim
como em Barba Azul e Cinderela, numa simples anedota –, entretanto, é
uma anedota, altamente ampliada, em relevo e voltando-se sobre si mes-
ma; como, aliás, Cinderela e Barba Azul também retornam. Tenho apenas
necessidade de acrescentar, depois disso, que é um puro e simples jogo de

257
engenhosidade, de frio cálculo artístico,277 uma “amusette” para capturar
aqueles que não são facilmente capturáveis (é pequeno o prazer de capturar
os tolos), os blasés, os desiludidos, os difíceis.]
O que é interessante na armadilha é que ela aponta na direção de
uma alternativa proposta à leitura, mas que, ao mesmo tempo, anu-
la essa alternativa por sua própria capacidade de armadilha [piégean-
te/“armadilhante”].278 A alternativa, que a armadilha, então, ao mesmo
tempo, produz e suspende, é a de uma leitura ingênua (“the capture
of merely witless”), e de uma leitura sofisticada (“to catch those no
easily caught… the jaded, the disillusioned, the fastidious”). Mas a
armadilha é especificamente dirigida, não à ingenuidade, que será de
toda maneira capturada, mas à inteligência. Ora, em que consiste a in-
teligência senão, precisamente, em querer evitar a armadilha? “Aqueles
que não são fáceis de pegar” são precisamente aqueles que suspeitam
e que detectam as armadilhas, aqueles que não querem ser bobos: “os
desiludidos, os “blasés”, os “difíceis”. Nesse sentido, a “leitura ingê-
nua” seria, talvez, a que põe fé no testemunho da governanta e nos
valores temáticos do texto; ao passo que a leitura “desiludida” seria
aquela, ao contrário, que suspeita e que desmistifica a governanta: uma
leitura do mesmo tipo da de Wilson, que começa, com efeito, seu estu-
do colocando-nos em guarda contra uma armadilha jogada pelo texto:
Uma discussão sobre a ambiguidade de Henry James pode, de forma ade-
quada, começar por uma análise de A volta do parafuso. Essa história (…)
esconde talvez um outro horror atrás daquele que é evidente (…) a apresen-
tação de personagens sinistros por descrições que, inicialmente, parecem
lisonjear o leitor não são uma astúcia [trick] pouco frequente em James e
não deveriam nos enganar.279
Como a armadilha jogada pelo texto de James visa, precisamente,
àqueles leitores que são “difíceis de capturar” – esses mesmos, em ou-
tros termos, que desconfiam das armadilhas e procuram evitá-las – po-
demos dizer que A volta do parafuso, sendo uma armadilha para qual-
quer leitor, é um texto que, mais especificamente, faz-se armadilha
para o leitor analítico, que, por excelência, é aquele que não quer ban-
car o bobo. De que maneira se pode sustentar que a literatura, em A
volta do parafuso, constitui uma armadilha para a psicanálise?
Retomemos, uma última vez, a exegese de Wilson que tomamos aqui,
bem entendido, não como modelo de “leitura freudiana”, mas como
emblema, ao mesmo tempo de uma tendência e de uma tentação da
psicanálise, quando ela se põe a “explicar”, a interpretar a literatura.
Logo que Wilson fica convencido, sob a pressão de seus opositores, de

258
que para James os fantasmas existiam realmente, de que James, cons-
cientemente ao menos, pretendia apresentar uma história de fantasmas,
e não uma história clínica, Wilson não deixa de teimar, entretanto, que
os fantasmas são, em realidade, alucinados pela governanta, mas, nesse
caso, acrescenta a nota de concessão seguinte: “Somos levados a con-
cluir que, não somente, em A volta do parafuso, a governanta se ilude,
mas que James também se ilude [is self-deceived] a seu respeito.”280
Essa frase poderia emblematizar o desejo que subjaz ao projeto da
exegese analítica: o desejo de não ser bobo, de revelar, e, ao mesmo
tempo, de evitar, as armadilhas mesmas do inconsciente. Ora, o tex-
to de James é, em realidade, feito de armadilhas e bobagens: pois a
governanta nessa história é, numa ótica analítica, boba, engana-se
a si mesma: boba de seu inconsciente; deixa-se enganar por seu in-
consciente; o autor, segundo Wilson, também é enganado; o leitor,
por sua vez, é enganado pela retórica do autor, de seu trick ou da
astúcia de sua técnica narrativa, que consiste em apresentar “casos
de autoengano” [self-deception], “de seu próprio ponto de vista”.281
O crítico, somente ele, exclui a si mesmo, por sua exegese analítica,
do círculo de enganos: evitando a dupla armadilha da retórica e do
inconsciente, permanecendo no exterior do erro de leitura, que cega
os personagens e mesmo o autor, torna-se, sozinho, agente da verda-
de do texto.
Ora, esse modo de pensar é o mesmo da governanta, que, também,
procura não ser boba, isto é, revelar e evitar as armadilhas que são lan-
çadas à sua credulidade. Assim como Wilson suspeita que a retórica
narrativa de James comporta um trick – uma estratégia, uma astúcia ou
um jogo –, a governanta, por sua vez, suspeita da retórica das crianças:
“It’s a game”, I went on, “it’s a policy and a fraud!”282
[“É um jogo”, continuei, “é uma tática e uma fraude!”]283
Da mesma forma, Wilson, surpreendido pela ambiguidade do texto,
conclui que a governanta, dizendo menos que a verdade, diz mais que
ela deseja, da mesma forma, a ela, surpreendida pela ambiguidade dos
propósitos de Sra. Grose, conclui, de maneira paralela, que Sra. Grose,
não dizendo tudo, diz mais do que pretende:
… my impression of her having accidentally said more than she meant…
(…)
I don’t know what there was in this brevity of Mrs. Grose’s that struck me as
ambiguous.284
I was (…) still haunted with the shadow of something she had not told me.285

259
[… minha impressão de que, inadvertidamente, ela falou mais do que queria…
(…)
Não sei o que havia nessas breves respostas de Sra. Grose que me espanta-
ram, por me parecerem ambíguas.286
Eu ainda estava assombrada pela suspeita de que ela não me havia
dito tudo.]287
Como Wilson, a governanta suspeita da ambiguidade dos signos e de
sua reversibilidade retórica; como Wilson, é invertendo os signos e con-
fundindo as aparências que ela se esforça para ler o mundo que a rodeia.
Num caso como no outro, a leitura procede da suspeita.
Mas a armadilha feita por James não é, em seus próprios termos,
precisamente uma armadilha para a suspeita?
… an amusette to catch those not easily caught (…) Otherwise expressed, the
study is of a conceived “tone”, the tone of suspected and felt trouble, of an inor-
dinate and incalculable sore – the tone of tragic, yet of exquisite, mystification.288
[(…) uma “amusette” para capturar aqueles que não são facilmente cap-
turáveis (…) Em outras palavras, o estudo tem certo “tom”, o tom de uma
perturbação ressentida e suspeita, de uma dor desmesurada e incalculável,
o tom de uma trágica e, entretanto, requintada mistificação.]
A volta do parafuso constitui, então, uma armadilha para a psicanálise,
na medida em que constitui, justamente, uma armadilha em suspeição.
Diz-se da psicanálise, com efeito, que ela é uma “escola de suspeita.”289
Mas o que é a suspeita? “Oran era uma cidade sem suspeita”, escreve
Camus no início de A peste. Produzida pela peste, a suspeita, nesse caso,
significa o despertar mesmo da consciência, em contato com a morte,
com o medo, com a dor, para prevenir ou para combater um desastre
de origem ignorada. Ora, se é “a peste” que provoca a suspeita, sabe-se
bem que Freud, no momento de seu desembarque na América, dizia
precisamente trazer com ele “a peste”… A psicanálise poderia, então,
ser uma escola de suspeita. Mas qual é a alternativa para a suspeita?
Retomemos o texto de James, que poderia, talvez, nos esclarecer. No
prefácio da New York, de início, a alternativa ao leitor “suspeitoso” é o
leitor “ininteligente” (“the fun of the capture of the merely witless being
ever but small”); a suspeita é, então, equivalente, aqui, à inteligência do
leitor. No texto mesmo de A volta do parafuso, por outro lado, a alter-
nativa à suspeita da governanta é, simetricamente, a crença ingênua de
Sra. Grose, dando fé ao que diz esta última. E, se o próprio nome de Sra.
Grose não nos indicava, de forma suficiente, o que pensa James dessa
atitude de crença oposta, justamente, à suspeita, o fato de Sra. Grose

260
ser nomeada como a que não sabe ler (“my counselor couldn’t read!”,
Norton, II, p. 10) sugere suficientemente sua equivalência precisa ao
“leitor ininteligente” que o prefácio da New York também opõe ao “lei-
tor suspeitoso”, incrédulo, ao leitor difícil de capturar. A psicanálise,
por chegar a esse ponto, é, assim, uma escola de suspeita, na mesma
medida em que ela é, realmente, uma escola de leitura.
Praticada pela governanta e por Wilson, mas desconhecida por Sra.
Grose, a “suspeita” é, de início, a do arbitrário do signo, sua não ade-
quação a si mesmo, a diferença que separa o significante de seu signi-
ficado. Mas, se a suspeita constitui, dessa maneira, a própria geradora
da leitura e a força motriz de sua inteligência (wit) e de sua inteligência
do texto, o leitor, entretanto – não nos esqueçamos –, é aqui preso na
armadilha não somente a despeito mas por causa mesmo de sua inteli-
gência. Da mesma maneira que a crença (a leitura ininteligente) é presa
na armadilha, a suspeita é aqui uma forma de armadilha.
É que essas duas atitudes possíveis de leitura são, as duas, implica-
das e compreendidas pelo texto. O leitor de A volta do parafuso pode
escolher, seja acreditar na governanta, comportar-se, então, como Sra.
Grose, seja não acreditar nela, mas, ao mesmo tempo, comportar-se
como ela. A governanta ocupa, nesse texto, a posição de intérprete: sus-
peitar dessa posição de intérprete é, ao mesmo tempo, pôr-se a traba-
lhar. Desmistificar a governanta somente é possível à condição de se
repetir seu gesto. A armadilha de James é, assim, ao mesmo tempo, a
armadilha mais sofisticada e a mais simples do mundo; a armadilha é
um texto, isto é, simplesmente um convite para ler. Mas o convite para
ler A volta do parafuso é necessariamente um convite para repeti-lo: um
convite para entrar no texto, isto é, não poder mais sair dele.
É à maneira da governanta que Wilson procura não ser bobo: o
não ser bobo da governanta [“à ne pas être dupe de la governante”].
Continuando cego em relação a sua semelhança com ela, ele repete,
um após o outro, os gestos e as próprias ilusões de seu método, de seu
processo de leitura. “Observem [diz Wilson] o sentido, de um ponto
de vista freudiano, do interesse da governanta pelos pedaços de ma-
deira da menina.”290 Ora, “observar” o significado atrás do significante
“madeira” é “observar”, então, o sentido do interesse por esse signi-
ficante, precisamente, o que faz, e nos convida a fazer, a governanta,
quando grita: “They know – it’s too monstrous: they know, they kno-
w!”291 É à maneira da governanta que Wilson, assim, fetichiza o simu-
lacro fálico – ou o mastro do navio de Flora – erigido e promovido a

261
significante-mestre. Longe de seguir o movimento de deslizamento,
de deslocamento na cadeia significante – o incessante movimento de
reenvio de um significante a um outro – o projeto do crítico, como o
da governanta, é de parar o sentido, por meio, justamente, da tomada
do parafuso, da introdução do significante-mestre:
E se o tema escondido (…) for, simplesmente, ainda, a sexualidade? (…) a
chave da experiência [clue of experience.]292
Tendo-a alcançado [got hold] essa chave do sentido de A volta do parafuso
[the clue to this meaning] é espantoso que se tenha podido perdê-la.293
Compartilhando com a governanta a ilusão de ter compreendido
tudo, de dominar o texto, apertando o significante-mestre, Wilson te-
ria podido dizer, como ela – com ela, mas contra ela:
I seemed to myself (…) to have mastered it, to see it all.294
[Pareceu-me ter visto tudo, ter dominado a coisa.]295
Ora, no caso de Wilson como no da governanta, a convicção de to-
tal domínio, em realidade, implica a violência de um gesto de exclu-
são e de recalcamento. “Nossa maneira de excluir [escreve Maurice
Blanchot] se realiza, precisamente, lá onde nos vangloriamos de nos-
so dom de universal compreensão.” O que Wilson, como a governan-
ta, por seu discurso de domínio, de poder totalitário, tenta excluir é
a ameaça mesma da retórica – da sexualidade como divisão e como
fuga do sentido, como contradição e como ambivalência – a amea-
ça, em outros termos, do não domínio e da impotência, da castração
inevitável, inerente à linguagem. Do aperto de sua apreensão, de sua
compreensão, Wilson recalca, então, o papel da linguagem, isto é, o
próprio tema de seu estudo: a ambiguidade de James.
Henry James parece nunca tomar consciência do enorme espaço que des-
perdiça, por suas longas formulações abstratas que passam pelos detalhes
concretos, as circunlocuções supérfluas e o palavrório gratuito e destituído
de sentido – os “como se” e “se posso afirmar” e todo o resto – todas as
palavras com as quais ele recheia suas frases e que são provavelmente sin-
tomáticas de uma tendência a adiar os problemas principais.296
Como escreve, em outro lugar, Jean Starobinski, “o psicanalista, es-
pecialista em retórica inconsciente, não quer ser ele mesmo um retó-
rico. Ele faz o papel que Jean Paulhan atribui ao terrorista: quer que
se fale com clareza”.297 Wilson quer que o texto fale com clareza, reve-
lando dessa maneira o estatuto terrorista de sua exegese analítica. Ora,
a governanta também quer que se fale com clareza: ela exige da crian-
ça – aterrorizando-a – que “entregue o nome”, isto é, que dê ao fan-

262
tasma seu nome próprio. Wilson trata o texto, ponto por ponto, como
a governanta trata a criança: ele força o texto a fazer uma confissão. E,
na realidade, como tenta todo intérprete analítico, tenta constranger o
texto (constranger a linguagem textual) a confessar: confessar – como
o menino – não somente seu sentido mas também seu gozo: confessar
aquilo que neles é inconfessável.
Não é, então, indiferente à sutil forma de armadilha da psicanálise e
de sua nominação do sentido, que a governanta mate a criança. Não é
indiferente, além disso, que, em sentido etimológico, “enfant” (latim:
infans) signifique “não falante”, “aquele que não sabe falar”. Não po-
deríamos, justamente, dizer que a exegese de Wilson, pressionando
o texto a confessar, a se explicitar, a se nomear propriamente, comete
também um crime (e está aí de novo a questão do tato), matando, no
seio mesmo da linguagem, o silêncio, esse silêncio que o texto carrega
e a partir do qual ele fala?
A stillness, a pause of all life, that had nothing to do with the more or less noise
we at the moment might be engaged in making…298
[Um silêncio, uma pausa em toda vida, que não tinha nada a ver com o
maior ou menor barulho que podíamos estar fazendo, no momento.]299
É na condição de saber que não pode saber-se, que não pode, então,
refletir-se, nomear-se, que a criança, na história – vimos –, encarna o
saber inconsciente. Ora, abraçar apertado a criança – como o fazem a
governanta e Wilson – a ponto mesmo de sufocá-la, isto é, a ponto de
matar seu silêncio, é, precisamente, recalcar o inconsciente.
Eis o cúmulo da aberração que a psicanálise pode cometer, quando
tenta explicar, dominar a literatura (isto é: não ser boba, ingênua): ma-
tando no texto sua reserva de silêncio, o que especificamente – no in-
terior da palavra – não sabe falar; matando o silêncio mesmo da palavra
por excelência literária – de uma palavra que não sabe dizer o que ela
sabe –, é a psicanálise que acaba, paradoxalmente, por recalcar o incons-
ciente que ela “explica”. Exercer a mestria aqui como em todo lugar
(tornar-se o Mestre) é, precisamente, proibir-se de ler cartas/letras; “ver
tudo”, aqui como em todo lugar, é “fechar os olhos tão forte quanto
possível à verdade”; é excluir e, especificamente, excluir o inconsciente.
Repetido em muitos níveis, tanto na cena textual como na cena críti-
ca, na própria história como na leitura, esse gesto de recalcamento, de
exclusão, garante-se, às vezes, por um nome, que assegura a exclusão,
ao mesmo tempo em que designa o excluído. Esse nome é a marca de
“loucura”, através da qual o intérprete demarca, justamente, o recalca-

263
do como forcluído, como exterior ao Sentido. Wilson sugere, com efei-
to, que a governanta é louca, isto é, que seu ponto de vista está excluído
da “verdade” ou do sentido da história. Mas a própria governanta, em
seu processo de leitura, não deixa de se referir à loucura. Ela se preo-
cupa com a alternativa da loucura e do sentido, como exclusivos um300
em relação ao outro; e reconhece bem, no caso da própria loucura, o
contrário, simplesmente, da questão do controle do sentido, isto é,
do domínio301 e do recalcamento, da exclusão do Outro. Ter o sentido
será, ao mesmo tempo, situar a loucura – no Outro: lançar a loucura
sobre o Outro, enquanto ele escapa justamente ao domínio. A gover-
nanta pretende, com efeito, que as crianças sejam loucas.302 Quando
Sra. Grose lhe recomenda que escreva ao Mestre sobre as crianças para
preveni-lo de seu comportamento, a governanta se defende:
“By writing to him that his house is poisoned and his little nephew and
niece mad?”
“But if they are*, Miss?”
“And if I am myself, you mean? That’s charming news to be sent him by a
person enjoying his confidence and whose prime undertaking was to give him
no worry.”303
[“Escrevendo-lhe que sua casa está envenenada e que seu sobrinho e sua
sobrinha estão loucos?
– Mas e se eles estão, senhorita?
– Você quer dizer que eu mesma estou? São notícias encantadoras para lhe
enviar da parte de alguém que goza de sua confiança e cuja tarefa principal
seria a de lhe poupar qualquer aborrecimento.”]304
É assim: ou a governanta ou as crianças estão loucas. Se as crian-
ças não estão loucas, a governanta poderia bem estar; se as crianças
estão loucas, a governanta “está com a verdade”, com o sentido, em
seu “bom” senso. Provar que as crianças estão loucas (possuídas pelo
Outro, pelos fantasmas), provaria que a governanta não está louca:
o gesto de mostrar a loucura do outro comporta sutilmente, o ges-
to – decisivo – da denegação da própria loucura. A loucura do Outro
se torna, dessa maneira, uma garantia de sua própria saúde e de seu
próprio bom senso.
Miss Jessel stood before us (…) I remember (…) my trill of joy at having brought
on a proof. She was there, and I justified; she was there, so I was neither cru-
el nor mad.305
[Srta. Jessel estava lá, em pé, diante de nós (…) Eu me lembro (…) meu
frêmito de alegria de ter enfim obtido uma prova inegável. Ela estava lá, e
eu estava justificada; ela estava lá, eu não era, então, nem cruel, nem louca.]306

264
O (bom) senso da governanta funda-se, então, na loucura das crian-
ças. Ora, é da mesma maneira que o sentido (inversamente) propos-
to por Wilson (a lógica de sua leitura) é também fundado na loucu-
ra – mas na loucura da governanta. É a loucura da governanta, isto é,
a exclusão de seu ponto de vista, que permite a leitura de Wilson, que
permite a seu sistema de leitura funcionar como sistema ao mesmo
tempo integral e coerente, assim como a loucura das crianças, isto é, a
exclusão de seu ponto de vista, é o que permite a leitura da governanta
e seu funcionamento totalitário.307
“Não é encarcerando seu vizinho [escreve em algum lugar Dostoiévski]
que se convence a si mesmo de seu próprio bom senso”. É, entretanto,
o que parece que Wilson faz, na medida em que repete o gesto da go-
vernanta; é, então, precisamente, o que faz a psicanálise, todas as vezes
em que cede à tentação do diagnóstico, à tentação de indicar, de mostrar
ou de situar justamente a loucura na literatura, acreditando chegar ao
ponto de “explicar” o sintoma mesmo do fenômeno literário. A psicanáli-
se, como a governanta, somente diagnostica a literatura para se justificar
para garantir seu controle do sentido – para denegar sua própria leitura.
Paradoxalmente, a armadilha de A volta do parafuso é tal que, denun-
ciando, analisando a loucura da governanta, Wilson, sem se dar conta,
imita essa loucura e dela participa. Se o gesto do diagnóstico, o gesto
de indicar a loucura do outro visa precisamente a se excluir da loucura,
aqui, a própria exclusão é inclusão: excluir a governanta como louca é
repetir seu gesto de exclusão, isto é, incluir-se na sua loucura. Wilson
não percebeu o quão certo estava, quando afirmou de um dos textos de
James: “O livro não é simplesmente obscuro – é um livro que provoca
a loucura.” [“The book is not merely mystifying but maddening.”]
É assim que A volta do parafuso faz uma armadilha para o exegeta
analítico que solicita, mas cuja autoridade, ao mesmo tempo, descons-
trói, convidando-o a entrar na armadilha de seu movimento retórico.
Seduzindo a psicanálise, a literatura, na realidade, somente a convida a
se subverter.
Com efeito, o movimento retórico do texto, como já vimos em seu
funcionamento interno, (a reversibilidade dos papéis da governanta e
das crianças), e, como acabamos de ver, em sua performance tática em
relação ao crítico que o interpreta (a simetria dos papéis da governanta
e de Wilson), consiste justamente em subverter a polaridade, a alter-
nativa que opõe, como tais, o analista ao analisando, a interpretação
ao sintoma, a teoria ao delírio, a psicanálise mesma à loucura. Freud

265
e Lacan reconhecem bem que a psicanálise, face à loucura, seja colo-
cada em posição especular. E os dois reconhecem, com efeito, que o
valor – mas igualmente o risco – da psicanálise, sua luz mas também
sua cegueira, sua verdade mas também seu erro, residem justamente na
volta do parafuso: “O discurso da histérica [escreve Lacan] ensinou [a
Freud] essa outra substância que, afirma inteiramente que aí há signifi-
cante. Ao recolher o efeito desse significante, no discurso da histérica,
[Freud] soube fazê-lo dar um quarto de volta, o que fez dele discurso
analítico.”308 É com o delírio de Schreber que Freud, por sua vez, reco-
nhece uma surpreendente concordância com sua teoria. “O futuro dirá
[escreve Freud] se a teoria contém mais loucura do que eu gostaria, ou
a loucura mais verdade que outros estão hoje dispostos a acreditar.”309
Não é, então, por um acaso que o drama de Édipo – mito por exce-
lência da psicanálise – não é simplesmente o drama do sintoma mas
também o drama – ou a tragédia – da interpretação. Édipo, enfim, é a
história, tanto do analista como do analisando; e, especificamente, da
desconstrução, da subversão da polaridade que distingue e opõe essas
funções. Ora, o assassinato cometido por Édipo é, talvez, constitutivo
tanto do impasse no qual se encontra o intérprete quanto da tragédia
do interpretado. Pois é o assassinato que funda o movimento retórico
da substituição como movimento cego, permitindo a comutação entre
interpretante e interpretado: é pelo assassinato que o intérprete toma
o lugar do sintoma a ser interpretado. Pela substituição cega pela qual
Édipo – sem saber – toma o lugar do mesmo que ele matou, colocan-
do-se, assim, na qualidade de intérprete (detetive que procura resolver
o enigma do crime) e, sem saber, igualmente, toma o lugar preciso do
alvo do golpe destinado ao Outro. Ora, é isso que faz Wilson, precisamen-
te, repetindo, sem se dar conta, o próprio gesto da governanta à qual
ele destina seu “golpe” e do qual ele toma o lugar na estrutura textual.
É pelo assassinato que Édipo se torna mestre. É matando o silêncio,
que habita como tal a linguagem literária que Wilson acredita domi-
nar o texto (e que a psicanálise acredita dominar a literatura). Mas
Édipo só se torna mestre para logo cegar a si mesmo. Cegar-se: último
gesto de mestre, para se dar a ilusão de que comanda até sua cegueira
(quando, em realidade, esta preexiste àquele que se inflige esse cas-
tigo), cuja castração domina (ao passo que, em realidade, ele a sofre
totalmente); cegar-se, então, menos talvez para se punir, castrando-se,
do que para não ver, justamente – para ainda denegar –, a realidade
de sua castração, que existe fora a seu próprio gesto, pelo fato de o
próprio domínio de sua consciência se encontrar subvertido, pelo fato

266
de ter sido preso na armadilha de sua descoberta, pelo fato de o Outro
ser ele próprio. Furar-se os olhos, não ver, não é, igualmente, a função
do Mestre, na narrativa de A volta do parafuso? Desejando dominar a
literatura, a psicanálise, justamente nela, se cega: para denegar, para
não ler aí a subversão de sua própria mestria, sua própria castração.
A ironia é que, julgando dessa maneira a literatura, do alto mesmo de
sua posição de Mestre, a psicanálise, como Wilson, reúne, no próprio
interior do texto, a posição específica do Mestre de A volta do parafuso:
o lugar de seu ponto cego.
Ora, ocupar o ponto cego é ignorar que se ocupa um lugar no interior
mesmo da cegueira que se busca desmistificar, é ignorar que se está na
loucura, que se está necessariamente na literatura, é acreditar que se
possa estar fora: fora da armadilha da literatura, do inconsciente ou
da loucura. A armadilha de James era, então, convidar o leitor, justa-
mente, a tentar escapar da armadilha: a acreditar que há um fora da
armadilha. Ora, essa crença participa da armadilha e faz parte dela.
Tentar escapar da armadilha é precisamente nela cair, nela se prender.
“O inconsciente [diz Lacan] nunca se desvia melhor do que quando é
pego com a boca na botija.”310 É o que diz James em A volta do parafuso.
E o que tenta fazer, pela ação performativa do texto, é precisamente
nos desviar, nos pegar, convidando-nos, ao contrário, a pegar o in-
consciente com a boca na botija. Quando pretende escapar ao erro de
leitura constitutiva da retórica, quando pretende escapar ao erro retó-
rico constitutivo da literatura, quando pretende dominar a literatura
para não ser ingênua, a psicanálise é duplamente ingênua, ignora que
está na literatura, que está necessariamente no erro retórico e que, a
partir desse erro, ela exemplifica o ponto cego, esse ponto mesmo em
que afirmar seu domínio a faz voltar a se subverter, se castrar. “Les
non-dupes errent”,311 diz Lacan. É também o que diz James, dizen-
do-nos, igualmente, que essa frase, que nos prende na armadilha, à ma-
neira da “volta do parafuso”, esse enunciado que não se pode afirmar,
sem, ao mesmo tempo, negar, que não se pode dizer, sem contradizer,
constitui a própria posição do sentido da enunciação literária: posição,
por excelência, retórica, que implica uma relação de subversão e de
radical contradição entre o enunciado e a enunciação.
Freud, nos melhores momentos de seu texto, não deixava de afirmar
(a despeito da tentação inversa – a tentação do mestre – à qual su-
cumbiu, como se sabe, em outros momentos) que não existe o fora da
literatura, nem o fora garantido e certo da loucura, de onde desmisti-

267
ficá-la, de onde situá-la no Outro, sem ser por ela afetado. Falando do
Homem da areia e da inquietante estranheza que provoca, pela retórica
de Hoffmann, a loucura de Nathanael – essa loucura que o texto marca
e metaforiza, pelo olhar (deformado) do herói, através dos óculos do
homem da areia (os óculos que o óptico Coppola lhe tinha vendido):
olhar que precede, a cada vez, o acesso de loucura do herói e suas
tentativas de assassinato –, Freud insiste sobre fato de que o leitor está
retoricamente localizado no interior dessa loucura, que não é dado ao
leitor julgar a loucura de fora:
Vemos que ele [Hoffmann] tem a intenção de nos fazer olhar, a nós também,
através dos óculos mortíferos de Coppola (…) Sabemos agora que a nós não é
possível sermos espectadores de produções de uma imaginação demente,
atrás da qual nós, com a superioridade de espíritos racionais, seríamos
capazes de perceber e de detectar a sóbria verdade.312
Ora, de maneira paralela, o texto de A volta do parafuso coloca a
loucura da governanta como a condição retórica de nossa percepção
da história. Em James, como em Hoffmann, a loucura é inquietante
(unheimlich) porque ela é insituável, porque ela é o próprio espaço da
leitura. É um irônico julgamento de loucura reenviado àquele que diz
“eu”, que fecha uma outra narrativa de James, intitulada The Sacred
Fount, quando Sra. Briss diz ao narrador-detetive-leitor:
“You are crazy, and I bid you good night.”
[“Você é louco, e eu lhe dou boa noite.”]
Mas o narrador, nessa “última palavra”, só se refere a si mesmo como
insituável: “uma última palavra como essa [comenta] me colocou in-
teiramente em nenhum lugar.”313
“É um jogo”, diz a governanta sobre o comportamento das crianças,
cuja “loucura” ela quer estabelecer (a possessão pelo Outro):
– “It’s a game, it’s a policy and a fraud!”314
[“É um jogo, uma tática e uma fraude!”]315
– “It’s all mere mistake and a worry and a joke.”316
[“É tudo um erro, um aborrecimento e uma blague.”]317
Replica indiretamente Sra. Grose, quando se dá conta, por sua vez,
da loucura da governanta e quando tenta acalmar a menina, garan-
tir-lhe que os fantasmas não existem. James, à sua maneira, diz, no
prefácio da New York Edition, que o erro é trágico e cômico, ao mes-
mo tempo, que é “um aborrecimento” e “uma blague”:

268
The study is of a conceived “tone”, the tone of suspected and felt trouble, of
an inordinate and incalculable sore – the tone of tragic, yet of exquisite,
mystification.318
[O estudo é o de um certo “tom”, o tom de uma perturbação sentida e
suposta, de uma dor desmesurada e incalculável – o tom de uma trágica e,
entretanto, requintada, mistificação.]
Porque o gesto de Wilson repete o gesto da governanta, porque o
crítico participa da loucura que denuncia, a desmistificação da exegese
analítica reproduz a mistificação da linguagem literária. A própria mis-
tificação era, então, deixar de acreditar numa diferença fundamental,
numa oposição radical entre a volta do parafuso da desmistificação e
a da mistificação. Ora, é paradoxalmente a mistificação literária que
desmistifica – que prende na armadilha – o desmistificador, mistifican-
do-o ativamente.
“Logo estaríamos a nos perguntar”, escreve Lacan, a propósito de A
carta roubada de Poe – o que seria também verdade para A volta do pa-
rafuso –, “Logo estaríamos a nos perguntar se (…) não é o fato de todo
mundo ser ludibriado que produz aqui o nosso prazer.”319 Se a mistifica-
ção, nos termos de James, é “requintada”, é porque ela é, justamente,
uma fonte de prazer: compreendê-la é ser compreendido por ela; jogar
é se encontrar fora do jogo. Se, a “blague” é, entretanto, um “aborreci-
mento”, se, por mais requintada que seja, a mistificação é “trágica”, é
porque o “erro” (a loucura mesma do intérprete) é o da vida. “A vida é a
condição do conhecimento”, escreve Nietzsche. “O erro é a condição da
vida, quero dizer, o erro inato. Saber que se erra não suprime o erro.”320
UM FANTASMA DE MESTRE

The whole point about the puzzle is it’s ultimate insolubility.


How skillfully he managed it (…) The Master indeed.
Louis D. Rubin

Note how masterly the telling is (…) still we must own


that something remains unaccounted for.
Virginia Woolf

On me voulut un rôle plus efficace quoiqu’il ne convient à personne.


Mallarmé
É assim que, no espaço da blague, que é também um espaço de abor-
recimentos, no espaço do prazer e do riso, que é também um espaço de
cuidado, Henry James, como mestre do jogo, dá uma volta no parafuso
que comanda a mola de nosso interesse:

269
That was my problem, so to speak, and my gageure – to work my (…) particu-
lar degree of pressure on the spring of interest.321
[Aí estava meu problema, por assim dizer, meu desafio – para efetuar meu
grau particular de pressão sobre o desafio do interesse.]
“Você por pouco me matou”, protesta o valete de Don Juan, Leoporello,
na ópera de Mozart, Don Giovanni. “Você é louco, isso não passou de
uma blague”, replica, rindo, seu mestre. Se a blague/pilhéria de James é
a dos fantasmas, é porque, como mestre de “voltas do parafuso”, James
também escolheu, justamente, fazer blague com a própria morte. Fazer
blague com a morte: tornar-se mestre de letras/cartas, jogador de fan-
tasmas. Pois os fantasmas, como as letras/cartas, são somente “termos
operatórios” do movimento da morte no significante, da capacidade
de substituição que funda a literatura, como espaço paradoxal de gozo
e de decepção:
What would the operative terms, in the given case, prove, under criticism, to
have been: a series of waiting satisfactions or an array of waiting misfits? The
misfits had but to be positive and concordant, in the special intenser light, to
represent together (as the two sides of a coin show different legends) just so
many effective felicities and substitutes. (…) Cristicism after the fact was to
find in them arrests and surprises, emotions alike of disappointment and of ela-
tion: all of which means, obviously, that the whole thing was a living* affair.322
[O que os termos operatórios, no caso dado, afirmarão ter sido no exame
crítico: uma série de satisfações em reserva ou uma gama de incongruências
por vir? As incongruências só tinham que ser positivas e concordantes, à
luz especial mais intensa, para representarem juntas (como as duas faces
de uma moeda apresentam legendas diferentes) tantas felicidades e substitutos
efetivos. (…) A crítica, logo após, devia achar aí temas de espanto e de
surpresas, de emoções e, ao mesmo tempo, de decepção e de encanta-
mento: tudo isso voltando a dizer, bem evidentemente, que o todo era um
assunto vivo*.]
Se, em certo sentido, a morte é uma blague, é porque, como diz Bataille,
“a morte é uma impostura”. Como os fantasmas, a morte é, precisa-
mente, o que não morre: é, então, dos fantasmas, da morte mesma,
que se pode dizer que é, por excelência, “um assunto vivo”, o assunto
dos vivos.
Mestre dos fantasmas como das cartas, James, ao contrário de seus
intérpretes, se faz também de tão bobo quanto possível de sua litera-
lidade. É como bobo mesmo da letra de seu texto que ele permanece,
justamente, o Mestre, que desmonta o jogo de nossos ataques críticos
e nosso esforço para dominá-lo. Ele afirma nada saber do conteúdo

270
ou do sentido de sua própria letra/carta. Como as cartas de A volta
do parafuso, sua carta, diz ele, nada contém. Seu texto é, então, ao
pé da letra:
a poor pot-boiling study of nothing at all, qui ne tire pas à conséquence*.
It’s but a monument to my fatal technical passion, which prevents my ever giving
up anything I have begun. So that when something that I have supposed to be
a subjet turns out on trial to be none, je m’y acharne d’autant plus [sem
consequências*].
As regards a presentation of things so fantastic as in that wanton little Tale, I can
only blush to see real substance read into them.323
My values are positively all blanks save so far as an excited horror, a promoted
pity, a created expertness (…) proceed to read into them more or less fantas-
tic figures.324
[um pobre ganha-pão, um estudo totalmente de nada, que não traz con-
sequência. Nada mais é que um monumento à minha fatal paixão técni-
ca, que não me deixa desistir de nada que tenha começado. De maneira
que, quando suponho que um tema seja bom e vejo que não o é, obstino-me
mais ainda.
Quanto à apresentação de coisas tão fantásticas quanto as desta pe-
quena Fábula aturdida, só posso ficar rubro, ao ver que se lê aí coisas
substanciais.
Meus valores são positivamente casas vazias, salvo quando um horror ex-
citado, uma piedade exacerbada, uma avaliação feita (…) façam ver neles
figuras mais ou menos fantásticas.]
Mestre de sua própria ficção, porque nela ele é, justamente, o bobo,
James, como o Mestre de A volta do parafuso, disso nada quer saber;
ele recusa, também, ler nossas cartas, as desvia, as faz retornar a nós,
quase sem abri-las:
I’m afraid I don’t quite understand the principal question you put to me about
The Turn of the Screw. However, that scantily maters; for in truth I am afraid
(…) that I somehow can’t pretend to give any coherent account of my small in-
vention “after the fact”.325
[Temo não compreender a questão principal que vocês me colocam a pro-
pósito de A volta do parafuso. Isso pouco importa, entretanto; pois, na ver-
dade, confesso-me, de algum modo incapaz de dar qualquer explicação
coerente sobre minhas pequenas invenções “après coup”.]
Assim, a mestria de James consiste na desconstrução, justamente,
de sua própria mestria. Como o Mestre de A volta do parafuso, frente
às crianças e a Bly, James só se afirma como Mestre, reivindicando, em
relação a sua “propriedade” literária, a “licença”, como ele mesmo diz,
“do desengajamento e do desmentido”.326 Aqui, como em outro lugar,

271
a “mestria” se afirma como uma autodespossessão. Despossuindo-se de
sua própria história, James, de uma só vez, despossui sua história
de seu mestre. Mas não seria exatamente isso que faz o Mestre de A
volta no parafuso, quando, despossuindo, por sua vez, a governanta
de seu mestre (ele próprio), dá-lhe “uma suprema autoridade”? É de
uma “suprema autoridade” que James igualmente investe o leitor, pela
desconstrução de sua própria mestria. Ora, dar ao leitor, como à go-
vernanta, uma suprema autoridade não é justamente torná-los loucos?
That one should, as an author, reduce one’s reader (…) to such a state of
hallucination by the images one has evoked (…) – nothing could better consort
than that (…) with the desire or the pretention to cast a literary spell.327
[Que, como autor, se reduza seu leitor (…) a tal estado de alucinação pelas
imagens que se evocou (…) nada pode se aliar mais que isso (…) com
o desejo ou a pretensão de criar, como por mágica, um estado de feitiço
literário.]
É porque a mestria de James consiste em saber que a mestria somen-
te pode ser assim como ficção, que sua própria lei de Mestre, como
a do Mestre de A volta do parafuso, é uma lei da fuga. Ora, é em ra-
zão de sua fuga, em razão de seu desaparecimento, que o Mestre de
A volta do parafuso se transforma, precisamente, em fantasma. E, da
mesma maneira, pode-se dizer que James torna-se, por excelência, um
Mestre-fantasma, segundo sua própria definição do fantasma:
Very little appears to be [done] – by the persons appearing; (…) this neg-
ative quantity is large (…). Recorded and attested “ghosts” are in other words
(…), above all, as little continuous and conscious and responsive, as is
consistent with their taking the trouble – and an immense trouble they find it, we
gather – to appear at all.328
[As pessoas que aparecem parecem não fazer quase nada (…). Essa quan-
tidade negativa é bem grande (…) os “fantasmas”, atestados e registrados,
são, em outros termos, antes de tudo, tão pouco contínuos e conscientes e sus-
ceptíveis de responder, que é inconcebível, dada a pena que eles provocam
(e essa pena, parece, é imensa), que decidam mesmo aparecer.]
Constatar, dessa maneira, que o Mestre se tornou um fantasma, é
repetir, num certo sentido, a própria constatação de A volta do parafu-
so: há letras/cartas, a partir do momento em que não há mais Mestre
para recebê-las – para as ler. Ora, essa constatação poderia implicar
uma definição de literatura tal como a prática de James a sugere: a li-
teratura é a morte do Mestre, sua transformação em fantasma, que de-
fine, como tal, justamente, a literalidade; a literalidade que permanece

272
impermeável à interpretação, já que é, justamente, seu resto: “todo o
resto é literatura”, diz Verlaine.329 The rest is the madness of art, escreve
James:330 o resto, ou a literalidade, como ela tem o poder de nos tornar
para sempre bobos, como o saber que veicula, que não pode saber-se,
que nosso saber não pode integrar, nos despossui de nossa mestria
e de nosso Mestre. “Que todo texto [escreve Lacan] veja sua literali-
dade crescer em prevalência daquilo que implica propriamente como
afronta à verdade, é nisso que a descoberta freudiana mostra a razão
de estrutura.”331
Ainda James:
It’s not that the muffled majesty of authorship doesn’t here ostensibly* reign; but
I catch myself again shaking it off and disavowing the pretense of it while I get
down into the arena and do my best to live and breathe and rub shoulders and
converse with the persons engaged in the struggle that provide for the others in
the circling tiers the entertainment of the great game. There is no other partici-
pant, of course, than each of real, the deeply involved and immersed and more
or less bleeding participants.332
[Não é que a majestade sufocada do “autor” não reine aqui em aparência;
mas me surpreendo de novo sacudindo-a, desacreditando de sua preten-
são, enquanto desço na arena e faço como posso da melhor maneira para
viver e para respirar, e para esfregar os ombros e fazer a conversação com
as pessoas engajadas na luta, e que fornecem aos outros, nas posições cir-
cundantes, o divertimento do grande jogo. Só há outro participante, certa-
mente, como aqueles, reais, que estão profundamente engajados, submer-
sos e que estão todos, mais ou menos, sangrando em suas feridas.]
Os participantes do círculo que sangram são, precisamente, os mem-
bros em volta da lareira, que somos nós. Reenviando-nos à loucura de
nossa própria leitura, é a nós que James faz rir – e sangrar. Os erros e
aborrecimentos são os nossos, a blague é aquela de que somos joguete.

Outubro de 1976/ março de 1977.

273
NOTAS

1  Título original: The Turn of the Screw. Tradução francesa oficial: Le Tour d’écrou,
Paris, Stock, 1968 (Trad. fr. de M. Le Corbeiller). As referências a essa edição france-
sa do texto de James serão daqui por diante feitas pela abreviação Stock. Entretanto,
manterei uma tradução modificada do título, mesmo do texto que traduzo: Le Tour
de vis. A nuance é importante, por várias razões que se esclarecerão posteriormente,
no curso de minha análise. A mais importante é que o título reenvia precisamen-
te à expressão literal “dar uma volta de parafuso a”, que figura, dessa maneira,
duas vezes no texto. [A expressão donner un tour de vis à (verificar no dicionário Le
Petit Robert, no verbete vis. Donner un tour de vis = serrer la vis à qqn, le traiter avec
une grande severité, restreindre ses libertes = dar uma volta no parafuso em alguém,
tratá-lo com grande severidade, restringir suas liberdades), no caso do estudo de
Felman, seria, mais proximamente, forçar alguma coisa ou alguém. A autora, no
final deste ensaio reitera a ideia de que o leitor não deve forçar o sentido de uma
narrativa enigmática, pois corre o risco de ficar preso nela. Essa questão é desenvol-
vida para que a expressão donner un tour de vis à, presente no título que a ensaísta
preferiu, se justifique de forma mais precisa. (N.T.)].
2  New York Preface, em Norton Critical Edition of The Turn of the Screw, Robert
Kimbrough (ed.), New York, Norton, 1966. Vou me referir, daqui em diante, a essa
edição crítica pela simples abreviação Norton. Salvo indicação contrária, ou reenvio
a uma edição francesa, a versão em francês entre colchetes, refere-se a minha pró-
pria tradução. [A versão em francês foi substituída nesta tradução pela versão em
português. (N.T.)].
3  The Outlook, LX, 29 out. de 1898, p. 537; Norton, p. 172. Em regra geral, todas
as citações de jornais e críticas de língua inglesa estão traduzidas aqui em francês
por mim mesma.
4  The Independent, LI, 5 jan. de 1899, p. 73; Norton, p. 175.
5  John Silver, A Note on the Freudian Reading of The Turn of the Screw, em A
Casebook on Henry James’s “The Turn of the Screw”, Gerald Willen (ed.), New York,
Thomas Y. Crowell Company, 1969, 2. ed., p. 239. Essa coleção de artigos críticos
será daqui em diante designada pela abreviação Casebook.
6  Nathan Bryllion Fagin, Another Reading of The Turn of the Screw, em Casebook,
p. 154. (Grifo meu). Daqui em diante tomarei a liberdade de sublinhar os textos
citados, sem o indicar, a cada vez. Um asterisco sinalizará os itálicos do autor.
7  Robert Heilman, The Freudian Reading of The Turn of the Screw, em Modern
Language Notes, v. LXII, n. 7, nov. 1947, p. 433. Esse ensaio será designado, daqui
por diante, pela abreviação “Heilman, FR, MLN”.
8  Oliver Evans, James’Air of Evil: The Turn of the Screw”, em Casebook, p. 202.
9  Katherine Anne Porter, James: The Turn of the Screw – A Radio Symposium, em
Casebook, p. 167.

274
10  As interrupções entre colchetes feitas dentro de citações, são de Shoshana
Felman, salvo as assinaladas com *, que são da tradutora. (N.T.).
11 Heilman, FR, MLN, p. 434.
12  Idem, The turn of the screw as Poem, em Casebook, p. 175.
13  Idem, FR, MLN, p. 443.
14  Ibidem, p. 444.
15  Mark Spilka, Turning the Freudian Screw: How Not to Do It, em Norton,
p. 249-250.
16  Norton, p. 120.
17  A autora não traduz a expressão de James “of cold artistic calculation” que, en-
tretanto, acrescentei e traduzi como “de frio cálculo artístico”. (N.T.).
18  Spilka, “Turning the Freudian Screw…”, art. cit., p. 245.
19  Edmund Wilson, The Ambiguity of Henry James, em The Triple Thinkers,
Penguin, 1962, p. 102. Esse ensaio será designado, doravante, pela abrevia-
ção Wilson.
20  Wilson, p. 104.
21  Cf.:, por exemplo, Wilson, p. 126: “o sexo aparece em sua obra, torna-se mesmo
uma obsessão”, de que somos separados por “cortinas espessas”.
22  Wilson, p. 112. Cf.: p. 126: “As pessoas que rodeiam o observador tendem a
assumir os valores diabólicos dos espectros de A volta do parafuso, e esses valores
diabólicos são quase invariavelmente ligados a relações sexuais que são sempre
dissimuladas e que somos forçados a adivinhar.”
23 Cf.: Wilson, p. 108: “Logo que capturamos o fio condutor, espanta-se de que o
índice do sentido d’A volta do parafuso nunca possa faltar. Ora, ele se perdeu por
uma boa razão, pois James não deixa nada de maneira não equívoca: quase tudo, do
princípio ao fim, pode ser lido igualmente, num sentido, como num outro.”
24  Prólogo, em Norton, p. 3. (Grifo de James).
25  Stock, I, p. 126. (Trad. modificada).
26  Norton, p. 111.
27  Ibidem, p. 122.
28  Wilson, p. 112.
29  Ibidem, p. 110-111.
30  O título do capítulo em que Freud trata da questão foi traduzido, da edição de
James Strachey, como “Psicanálise ‘silvestre’”. (N.T.).
31  Traduzo, a partir da tradução inglesa de James Strachey: Wild’ Psychoanalysis,
em The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, v. XI,
1910, p. 221-222. Essa edição dos escritos de Freud será, daqui em diante, indica-

275
da pela abreviação Standard. [Traduzi essa e outras passagens de Freud a partir de
Felman. (N.T.)]
32  Standard, p. 22.
33  Ibidem, p. 226.
34  Ibidem, p. 222-223.
35  Ibidem, p. 223.
36  Jacques Lacan, Discours de clôture des journées sur les psychoses chez l’enfant,
em Recherches, dez. 1968, p. 145-146. (Número especial Enfance alienée).
37  E, se essa adequação não transparece na obra de James, é porque, segundo
Wilson, James, assim como a governanta, não conhece, do sexo, a simplicidade do
estatuto normal, mas somente a ausência de satisfação do estatuto patológico. Cf.:
Wilson, p. 125: “Os problemas da paixão sexual começavam a tornar-se temas de
um interesse abrasador. Mas é provável que James, nessa época, tenha reconhecido
sua inadequação [unfittedness] ao tratar deles, e foi honesto demais para dissimular.”
38  Ibidem, p. 115.
39  Prólogo, em Norton, p. 1.
40  Stock, I, p. 124. (Trad. modificada).
41  Casebook, p. 289.
42 Lacan, Le Séminaire, livre XX, Encore (1972-1973), Paris, Éd. du Seuil, 1975, p.
66. Esse seminário será, daqui por diante, designado pela abreviação Encore.
43  Arthur John Alfred Waldock, Casebook, p. 172.
44 Heilman, FR, MLN, p. 436.
45  Alexander Jones, Casebook, p. 301.
46 Evans, Casebook, p. 211.
47  New York Preface, em Norton, p. 121.
48  Roland Barthes, Critique et vérité, Paris, Seuil, 1966, p. 75.
49  Ezra Pound, citado por Harold C. Goddard, A Pre-Freudian Reading of The Turn
of the Screw, em Norton, p. 182.
50  Oscar Cargill, Henry James as a Freudian Pioneer, em Casebook, p. 244.
51  “Here is the place where I find Freud completely defeated.” (Casebook, p. 167).
52 Heilman, FR, MLN, p. 433.
53  Casebook, p. 239.
54  Pronunciado por Jacques Lacan, em novembro de 1975, na Universidade de
Yale (“Kanzer Seminar”).
55  Tentando explorar a abertura franqueada pelo trabalho lacaniano, citarei Lacan,
não tanto para fazer valer teses reificadas como para fazer jogar os silêncios suges-

276
tivos e o movimento de jogo aporético que comporta sua notável linguagem, cuja
extensão (a carga de alteridade que curto-circuita a mensagem) consiste justamente
num trabalho subversivo de toda reificação. Pela referência a Lacan, não se trata,
em outros termos, de fazer prevalecer meu estudo da autoridade adquirida de um
dogma teórico consagrado, mas de fazer agir, explorar, tirar as consequências retó-
ricas (e os mal-entendidos teóricos) da complexidade das fórmulas de Lacan, na sua
interação, justamente, com as fórmulas (os silêncios) de James.
56  Prólogo, em Norton, p. 1-4.
57  Stock, I, p. 123-128. (Trad. modificada).
58  A expressão em francês é “en abîme”, presente no conceito de “mise-en-abîme”
e remete a narrativas que têm outras narrativas em seu centro, aprofundando-se e
comunicando-se entre si. Constrói-se, assim, uma significação plural, interdepen-
dente. (N.T.).
59  New York Preface, em Norton, p. 117-118.
60  Casebook, p. 299.
61  Cf.: New York Preface, Norton, p. 118.
62  Encore, p. 29.
63  Prólogo, em Norton, p. 2.
64  Stock, I, p. 125.
65  Prefácio à novela The Altar of the Dead, em Henry James, The Art of the Novel,
Critical Prefaces (ed. R. P. Blackmur), New York, Charles Scribner’s Sons, 1962
(*Grifo de James). Salvo indicação contrária, todas as citações tiradas dos prefácios
de Henry James remetem a essa edição, que será, daqui por diante, assinalada pela
abreviação NA. As versões francesas dos prefácios são traduzidas por mim.
66  Encore, p. 38.
67  Prólogo, em Stock, p. 128.
68  Prólogo, em Norton, p. 1.
69  Stock, I, p. 124. (Trad. modificada).
70  Prólogo, em Norton, p. 6. (*Grifo de James).
71  Stock, I, p. 131.
72 Lacan, Écrits, op. cit., p. 813.
73  Prólogo, em Norton, p. 2.
74  Stock, I, p. 125-126. (Trad. modificada).
75  Prólogo, em Norton, p. 2.
76  Stock, I, p. 125-126.
77  Prólogo, em Norton, p. 2.

277
78  Stock, I, p. 125. (Trad. modificada).
79  Crucial em A volta do parafuso, a autoridade, como tal, se revela, de um gol-
pe, uma ficção, um erro de perspectiva produzido pelas ilusões óticas da estrutura
transferencial. Cf. o comentário de James sobre a autoridade da governanta no pre-
fácio da New York:
 I recall (…) a reproach made me by a reader capable evidently, for the time, of
some attention, but not quite capable of enough, who complained that I hadn’t suf-
ficiently “characterized” my young woman engaged in her labyrinth (…) hadn’t in
a word invited her to deal with her own mystery as well as with that of Peter Quint
(…) I remember well (…) my reply to that criticism (…) We have surely as much of
her own nature as we can swallow in watching her reflect her anxieties and induc-
tions. It constitutes no little of a character indeed, in such conditions, (…) that she
is able to make her particular credible statement of such strange matters. She has
“authority”, which is a good deal to have given her, and I couldn’t have arrived at so
much had I clumsily tried for more. (Norton, p. 120-121)
 [Lembro-me de uma crítica que me fez um leitor capaz evidentemente, por um
tempo, de um pouco de atenção, mas não de atenção suficiente, e que se queixava
do fato de que eu não tinha descrito de forma suficiente o “caráter” de minha jovem
mulher engajada em seu labirinto (…) em uma palavra, que eu não o tinha convi-
dado a se preocupar de seu próprio mistério como o de Peter Quint (…) lembro-me
bem de minha resposta a essa crítica (…) Vendo-a refletir sobre suas angústias e
suas induções, acabamos por possuir, certamente, algo de sua própria natureza que
podemos engolir. Que ela seja capaz, em suas condições, de fazer uma narrativa
crível de tais bizarrias não constitui pouco caráter. Ela tem autoridade, o que não
é pouco a lhe dar, e eu não poderia atingir tanto se tivesse, desajeitadamente, ten-
tado mais.]
80  O conceito de “mise-en-abîme” está explicado na nota 58. (N.T.).
81  Prólogo, em Norton, p. 2-3 (*Grifo de James).
82  Stock, I, p. 126. (Trad. modificada).
83  Certamente, essa “evidência”, também se levanta da ordem do ver: eis-nos,
por nossa vez, envolvidos pelo ver em questão, comprometidos pelo jogo que
analisamos.
84 Lacan, Le Séminaire, livre 11, op. cit., p. 158.
85  Prólogo, em Norton, p. 1-2.
86  Stock, I, p. 124. (Trad. modificada).
87  Ibidem, I, p. 126.
88  Prólogo, em Norton, p. 1.
89  Stock, I, p. 123. (Trad. modificada).
90  Sigmund Freud, L’Imterpretation des rêves, op. cit., p. 447.

278
91  Nesta citação e nas que se seguirão de L’interprétation des rêves, os itálicos são
grifos de Freud, as palavras em maiúsculas são grifos meus.
92  Ibidem, p. 470-488.
93  Prólogo, em Norton, p. 2.
94  Stock, I, p. 124-125.
95  Ibidem, II, p. 127-128. (Trad. modificada).
96  Prólogo, em Norton, p. 2-3.
97  Stock, I, p. 125-127.
98  Norton, XVIII, p. 65.
99  Stock, XIX, p. 215.
100  Norton, II, p. 10.
101 Stock, III, p. 136-137. (Trad. modificada).
102  Norton, XVII, p. 62.
103  Stock, XVIII, p. 209.
104  Norton, XVII. p. 64-65.
105  Stock, XVIII, p. 213-214.
106  Norton, XVI, p. 61-62.
107  Stock, XVII, p. 209.
108  Prólogo, em Norton, p. 6.
109  Stock, I, p. 131. (Trad. modificada).
110  Cf.: Pierre Legendre, L’amour du censeur. Essai sur l’ordre dogmatique, Paris, Ed.
du Seuil, 1974.
111  Que a carta do Nada possa ser uma carta de amor, sabemos desde o Rei Lear, e a
confissão de amor singular que atrai, da parte de sua filha Cordélia, sua autoridade
paterna e real:
 Lear: … Now, our joy.
 Although the last, not the least, to whose young Love
 The vines of France and milk of Burgundy
 Strive to be interested, what can you say to draw
 A third more opulent than your sisters? Speak.
 Cordelia: Nothing, my lord.
 Lear: Nothing!
 Cordelia: Nothing.
 Lear: Nothing will come of nothing. Speak again. (Shakespeare, King Lear, I, i).

279
112  Norton, XXIII-XXIV, p. 84-86.
113  Stock, XXIII-XXIV, p. 241-243.
114  Não é indispensável, mas também não é indiferente lembrar aqui da impor-
tância crucial do fogo na vida de Henry James, seu papel recorrente, simbólico ou
real, como agente de castração: assim como o pai de Henry James perdeu a perna ao
tentar apagar um incêndio, leve-se também em conta o misterioso acidente em que
James feriu as costas, por ocasião de um incêndio, de maneira a sofrer por isso – em
parte neuroticamente – por toda sua vida. (Cf.: Dr. S. Rozensweig, The Ghost of
Henry James. A Study in Thematic Apperception, em Character and Personality,
dez. 1943).
115 Lacan, Le Séminaire, livre XI, op. cit. p. 58.
116  Stéphane Mallarmé, Oeuvres, op. cit., p. 73. [Toda a alma num resumo/Quando
lentamente expira/Em cada espira de fumo/Abolida à nova espira/Atesta qualquer
cigarro/Queimando sábio por pouco/Que uma cinza se separe/De um claro beijo de
fogo/Tal o coro das violas/Ao lábio voa servil/Exceto se tu violas/O real porquanto
vil/Ser mais preciso rasura/Tua vaga literatura. Trad. port. Augusto de Campos, em
Augusto de Campos; Décio Pignatare e Haroldo de Campos, Mallarmé, São Paulo,
Perspectiva, 1991, p. 71. (N.T.)].
117  Norton, IX, p. 41.
118  Stock, X, p. 180. (Trad. modificada).
119  “What is he? He’s a horror” (Norton, V, p. 22).
 “For the woman’s a horror of horrors” (Norton, VII, p. 32)
 [“O que ele é? É um horror” (Stock, VI, p. 154)
 “Pois essa mulher é o horror dos horrores” (Stock, VIII, p. 167).]
120  Norton, XV, p. 57.
121  Stock, XVI, p. 203. (Trad. modificada).
122  Norton, V, p. 23.
123  Stock, VI, p. 155.
124  A cadeia significante das cartas seria, ao mesmo tempo, uma cadeia significante
de fantasmas; o retorno da carta rasurada teria algo a ver com o retorno dos mortos
sobre a terra; a escritura, suas rasuras e seus deslocamentos, marcaria a insistência,
o retorno daquilo que se supõe que não deve retornar, do que se supõe estar “morto
e enterrado”; a narrativa do inconsciente seria a do retorno do recalcado, através da
insistência do significante.
 … the element of the unnamed and untouched became, between us, greater than
any other, and (…) so much avoidance couldn’t have been made successful without
a great deal of tacit arrangement. It was as if, at moments, we were perpetually
coming into sight of subjects before which we must stop short, turning suddenly
out of alleys that we perceived to be blind, closing with a little bang that made
us look at each other – for, like all bangs, it was something louder than we had

280
intended – the doors we had indiscretely opened. All roads lead to Rome, and
there were times when it might have struck us that almost every branch of study
or subject of conversation skirted forbidden ground. Forbidden ground was the
question of the return of the dead in general and of whatever, in special, might
survive, for memory, of the friends little children had lost. (Norton, XII, p. 50-51).
 (…) o elemento inominado e intocado crescia entre nós às custas de todo o resto
(…) Para conseguir evitar tanta coisa, seria necessário entre nós um forte e tácito
consentimento. Era como se, por momentos, nós chegássemos frente a assuntos
diante dos quais seria necessário acabar depressa, abandonando subitamente ca-
minhos em que percebíamos impasses, fechando, com um barulho que nos fazia
olharmo-nos uns aos outros – pois, como todos os barulhos, era sempre mais forte
do que queríamos – portas indiscretamente abertas. Todos os caminhos levam a
Roma e, em certos momentos, parecia que todos os assuntos de estudos e todos
os temas de conversa roçavam o terreno proibido. O terreno proibido era, de um
modo geral, a volta dos mortos sobre a terra e, especialmente, a discussão sobre o
que pode sobreviver, na memória de crianças pequenas, acerca de amigos perdidos.
(Stock, XIV, p. 194. Trad. modificada).]
125  Pois, como vimos acima, as cartas aqui são metáforas do manuscrito global da
narrativa, e o conteúdo da carta representa, então, também, o conteúdo da história,
o interior do quadro. Assim não é espantoso ver o fantasma emergir, desde sua pri-
meira visita, “como um quadro dentro de uma moldura”:
 … the man who looked at me over the battlements was as definite as a picture in a
frame. (Norton, III, p. 16)
 [… o homem que me olhava por cima da ameia da torre parecia um quadro dentro
de uma moldura. (Stock, IV, p. 146)]
126  Norton, III, p. 17.
127  Stock, IV, p. 146.
128  O avesso dessa equivalência, mas que a confirma, ilustra-se por Sra. Grose:
ela não vê os fantasmas, de uma parte, e, de outra, ela não sabe ler: não ler = não
ver fantasmas. [Observe-se a equivalência, em francês e em inglês de lettre/letter e
carta/letra. Optei por usar ambas, atentando para o jogo de palavras proposto pela
autora. (N.T.).]
129  “Was the secret at Bly – a mystery of Udolpho or an insane, an unmentionable
relative kept insuspect confinement?” (Norton, IV, p. 17).
 [Há um segredo em Bly? Um mistério de Udolfo, ou de algum parente alienado
que não se pode mencionar, sequestrado num esconderijo insuspeito?” (Stock,
V, p. 147).]
 A referência é aqui, de uma parte, aos Mistérios de Udolfo de Anne Radcliffe, que
evocam uma atmosfera de estranheza sobrenatural e a presença de um fantasma, e,
de outra parte, à Jane Eyre, de Charlotte Brontë, que evoca um amor entre uma go-
vernanta e seu Mestre; um amor impossível, pois o Mestre está secretamente ligado

281
por um casamento irrevocável com uma mulher que ficou louca, que ele sequestra
e esconde num cômodo isolado de sua propriedade.
130  I sat reading by a couple of candles (…) I remember that the book I had in
my hand was Fielding’s Amelia; also that was wholly awake. I recall further both a
general conviction that it was horribly late and a particular objection to looking at
my watch (…) I recollect (…) that though I was deeply interested in the author, I
found myself, at the turn of a page and with his spell all scattered, looking straight
up from him and hard at the door of my room (…)
 … I went straight along the lobby (…) till I came within sight of the tall window
that presides over the great turn of the staircasse (…) My candle (…) went out (…)
Without it, the next instant, I knew that there was a figure on the stair. I speak of
sequences, but I required no lapse of seconds to stiffen myself for a third encounter
with Quint. (Norton, IX, p. 40-41).
 [Eu lia, sentada, à luz de duas velas (…) Lembro-me de que o livro que eu segurava
era a Amélia de Fielding e que eu estava bem acordada. Lembro-me também de
ter tido uma vaga ideia de que era horrivelmente tarde e que eu não queria olhar
as horas (…) lembro-me de que, apesar de estar vivamente interessada na leitura,
percebi, ao passar uma página, que tinha perdido subitamente o fio da história, e,
fixando a porta de meu quarto, levantando os olhos sobre meu livro (…)
 … saí direto do quarto (…) avancei direto pelo longo corredor (…) até que chegas-
se diante da alta janela que dominava a vasta curva da escada (…) minha vela tinha
apagado (…) Sem ela, um instante depois, eu sabia que havia uma forma humana
na escada. Falo de sucessão de ideias, mas foi preciso muitos segundos para me
erguer para um terceiro encontro com Quint (Stock, X, p. 179-180.)].
 Ver fantasmas é, então, ler letras; ler cartas é estar acordada tarde na noite: a leitura
está ligada à noite como o fantasma, à escuridão. Ler (ver cartas, ver fantasmas) é,
então, olhar, perceber no escuro. Para perceber no escuro (então, para ler) é preciso
abrir ou fechar os olhos? A governanta nos afirma que não estava dormindo, que ti-
nha os olhos abertos, apesar da tentação das horas. Se nos permitimos duvidar dela,
o fantasma poderia tão somente ser um sonho das cartas; a leitura estaria aberta às
aparições do sono que a escritura comporta.
 Cf. a descrição do Mestre (“um tipo, enfim, que nunca, salvo num sonho ou num
romance de antigamente, poderia aparecer…” (Prólogo, em Norton, p. 4; Stock. I, p.
128) e a casa de Bly (“parecia-me um castelo de romance (…) um lugar perto do
qual empalideceriam os contos de fadas e as mais belas histórias infantis. Tudo aqui
não seria um conto, sobre o qual eu cochilava e devaneava? Não…” (Norton, I, p. 10;
Stock, II, p. 136).
131  Norton, II, p. 10.
132  Stock, III, p. 136.
133  Norton, VI, p. 27-28.
134  Ibidem, XV, p. 57.

282
135  Ibidem, XXXIII, p. 82.
136  Ibidem, XXIII, p. 84.
137  Stock, VII, p. 161. (Trad. modificada).
138  Ibidem, XVI, p. 203. (Trad. modificada).
139  Ibidem, XXIII, p. 238. (Trad. modificada).
140  Ibidem, XXIII, p. 241. (Trad. modificada).
141  Norton, IV, p. 19.
142  Stock, V, p. 149.
143  Norton, III, p. 17.
144  Stock, IV, p. 146.
145  Norton, II, p. 12-13.
146  Stock, III, p. 140.
147  Norton, II, p. 11.
148  Ibidem, IV, p. 18.
149  Ibidem, VI, p. 26-29.
150  Ibidem, XX, p. 73.
151  Stock, III, p. 137.
152  Ibidem, V. p. 148. (Trad. modificada).
153  Ibidem, VII, p. 159.
154  Ibidem, VII, p. 163.
155  Ibidem, XXI, p. 225.
156 Waldock, Casebook, p. 172.
157 Heilman, FR, MLN, p. 436.
158  Norton, VI, p. 25-26. (Grifo de James).
159  Stock, VIII, p. 158.
160  Norton, XX, p. 73; Stock, XXI, p. 225.
161  Ibidem, VII, p. 30-32.
162  Stock, VIII, p. 165-167.
163  Norton, X, p. 44.
164  Stock, XI, p. 184-185.
165  Norton, VII, p. 31. (Grifo de James).
166  Stock. VIII, p. 166. (Trad. modificada).
167  Norton, VI, p. 29.

283
168  Stock, VII, p. 163. (Trad. modificada).
169  Norton, V, p. 22; Stock, VI, p. 154.
170  Encore, p. 81-89.
171  Norton, V, p. 23-24.
172  Stock, VI, p. 155-156.
173  Norton, VII, p. 30. (Grifo de James).
174  Ibidem, XIII, p. 52-53. (*Grifo de James).
175  Stock, VIII, p. 165.
176  Ibidem, XIV, p. 196-197. (Trad. modificada).
177  Encore, p. 64.
178 Lacan, Scilicet, op. cit., n. 5, p. 16.
179  Norton, XVII, p. 63.
180  Ibidem, XX, p. 81.
181  Stock, XVIII, p. 211-212. (Trad. modificada).
182  Ibidem, XXIII, p. 237. (Trad. modificada).
183  Norton, XVII, p. 63.
184  Stock, XVIII, p. 211.
185  Norton, XXI, p. 76.
186  Ibidem, XXI, p. 78-79.
187  Stock, XXII, p. 233.
188  Norton, XXIV, p. 88.
189  Stock, XXIV, p. 247.
190  Norton, XXIV, p. 88. (Grifo de James).
191  Stock, XXIV, p. 246-247. (Trad. modificada).
192  Norton, XXIV, p. 88.
193  Stock, XXIV, p. 247. (Trad. modificada).
194  Norton, XXIV, p. 84-85.
195  Stock, XXIV, p. 241-242. (Trad. modificada).
196  Em francês, o equivalente de grasp seria o verbo saisir (“pegar”), em seu duplo
sentido de gesto físico e de ato mental, intelectual.
197 Cicéron, Premiers Analytiques; citado por J.-A. Miller, “Théorie de Lalangue (ru-
diment)”, em Ornicar, n. 1, jan. 1975, p. 22.
198  Norton, XXII, p. 81.

284
199  Ibidem, XXIII, p. 88.
200  Stock, XXIII, p. 236. (Trad. modificada).
201  Ibidem, XXIV, p. 247.
202  Norton, XXIII, p. 84. (*Grifo de James).
203  Stock, XXIII, p. 240-241. (Trad. modificada).
204  Norton, XXIV, p. 84-85.
205  Stock, XXIV, p. 241-242. (Trad. modificada).
206  Shoshana Felman repete a palavra “fissura”, cuja tradução deve remeter a algo
que se quebra, que produz uma ruptura que se pode associar à castração, tal como
a autora vem trabalhando nas últimas páginas. (N.T.).
207  Norton, XXIV, p. 84-85. (Grifo de James).
208  Stock, XXIV, p. 242.
209  Norton, XXIV, p. 85.
210  Stock, XXIV, p. 242. (Trad. modificada).
211 Lacan, Séminaire, 1973-1974, “Les non-dupes errent” (inédito).
212  Norton, XXIV, p. 85-86. (*Grifo de James).
213  Stock, XXIV, p. 243. (Trad. modificada; * Grifo de James).
214  Norton, XXII, p. 80. (*Grifo de James).
215  Stock, XXIII, p. 235-236. (Trad. modificada; *Grifo de James).
216  A totalidade é, como tal, ao mesmo tempo única (pois integra tudo, não há
nada fora dela) e unívoca (homogênea, contínua, não dividida, coerente). É assim
que a governanta pode dizer:
 That can have but one meaning (…) to put the thing with some coherence…
(Norton, II, p. 11).
 [Isso pode ter um só sentido (…) para falar dessa coisa com alguma coerência…
(Stock, III, p. 137. Trad. modificada).
 “O princípio da coerência [escreve E. D. Hirsch] é precisamente o mesmo que o
princípio de um limite. Tudo o que é contínuo com a parte visível de um ice-
berg encontra-se dentro de seus limites, e tudo o que se encontra no interior de
seus limites cai sob um critério de continuidade. Os dois conceitos são definidos
conjuntamente, ao mesmo tempo, dentro do mesmo critério.” (Hirsch, Vality in
Interpretation, New Haven, Yale University Press, 1967, p. 54).
217  Norton, XXIV, p. 86. (*Grifo de James).
218  Ibidem, XXI, p. 78.
219  Stock, XXIV, p. 243. (Trad. modificada; *Grifo de James).
220  Ibidem, XXII, p. 233. (Trad. modificada).

285
221  Essa supressão da informação é igualmente a função do diretor (headmaster) e
dos mestres da escola de Miles, que suprimem de sua carta as razões da expulsão
de Miles da escola:
 I turned it over. “And these things came round…?”
 “To the masters? Oh yes!” he answered very simply. “But I didn’t know they’d tell.”
 “The masters? They didn’t – They’ve never told. That’s why I ask you” (Norton,
XXIV, p. 87).
 [Pensei um pouco. “E… essas coisas… aconteceram…?
 – Aos mestres? Ah! Sim! respondeu ele, muito naturalmente. Mas eu não sabia que
eles iam repetir.
 – Os mestres? Não. Eles nunca disseram nada. É por isso que eu lhe pergunto. (Stock,
XXIV, p. 245).]
 A palavra “mestre” significa, nesse texto, o princípio mesmo do recalcamento, a
autoridade da repressão, ao mesmo tempo mental e física, analítica, mas também
política. Cf. a expulsão de Miles da escola, e, finalmente, seu assassinato.
222  Norton, XXIV, p. 84-85, 87.
223  Stock, XXIV, p. 242-244.
224  Norton, XXII, p. 79.
225  Stock, XXIII, p. 234.
226  Norton, I, p. 10.
227  Stock, II, p. 136.
228  Norton, XIX, p. 68. (*Grifo de James).
229  Ibidem, XXII, p. 80.
230  Ibidem, XXIV, p. 88. (*Grifo de James).
231  Stock, XX, p. 218-219. (Trad. modificada).
232  Ibidem, XXIII, p. 236. (Trad. modificada).
233  Ibidem, XXIV, p. 246. (Trad. modificada).
234  New York Preface, em Norton, p. 121.
235  Ibidem, VI-VII, p. 30. (*Grifo de James).
236  Stock, VII-VIII, p. 164-165. (Trad. modificada; *Grifo de James).
237  Cf.: My face must have shown him I believed him utterly; yet my hands – but it
was for pure tenderness – shook him (…) He might have been standing at the bot-
tom of the sea and raising his eyes to some faint green twilight. (Norton, XXIV, p. 86)
 [Ele pôde ler no meu rosto que eu acreditava nele absolutamente. E, entretanto,
minhas mãos – mas era por pura ternura – o sacudiam (…) Ele olhava tudo a sua

286
volta (…) Podia-se acreditar que ele estava no fundo do mar, tentando ver através do
glauco crepúsculo (Stock, XXIV, p. 244).]
238  Cf.: At this, with one of the quick turns of simple folk, she suddenly flamed up
“Master Miles! – him* an injury? (Norton, I, p. 11. *Grifo de James).
 [Com essas palavras, com uma dessas bruscas maneiras das pessoas simples, ela
se inflamou subitamente: “Mestre Miles? Ele, prejudicar aos outros?” (Stock, III, p.
137-138. Trad. modificada).]
239  Lewis Carrol, Through the Looking Glass, VI.
240  Norton, XXIV, p. 87-88.
241  Stock, XXIV, p. 244-247. (Trad. modificada).
242  Mallarmé, La musique et les Lettres, em Oeuvres complètes, op. cit., p. 647.
243  Norton, XX, p. 71.
244  Ibidem, XXIV, p. 88.
245  Ibidem, VI, p. 28.
246  Stock, XXI, p. 222.
247  Ibidem, XXIV, p. 247.
248  Ibidem, VII, p. 172. (Trad. modificada).
249  Extraído do relatório de James sobre “Aurora Floyd”, de M. E. Braddon, em
Norton, p. 98.
250  Tradução de Campos et al., Mallarmé, São Paulo, Perspectiva, 1991.
251  Mallarmé, Un coup de dés, em Oeuvres complètes, op. cit., p. 459-464.
252  Norton, XIII, p. 53.
253  Stock, XIV, p. 197. (Trad. modificada).
254  Cf.: All roads lead to Rome, and there were times when it might have struck us
that almost every (…) subject of conversation skirted forbidden ground. Forbidden
ground was the question of the return of the dead… (Norton, XIII, p. 51).
To bring the bad dead back to life a second round of badness is to warrant them as
indeed prodigious. (New York Preface, em Norton, p. 122)
[Todos os caminhos levam a Roma e, em certos momentos, parecia que (…) todos
os temas de conversa roçavam o terreno proibido. O terreno proibido era o retorno
dos mortos à Terra. (Stock, XIV, p. 194).
Trazer os maus mortos à vida, por um segundo turno de maldade, é legitimá-los
como realmente prodigiosos. (New York Preface, em Norton).]
255  Cf. o mastro do navio de Flora: parafuso = substância que enche um buraco =
falo ou sentido, plenitude central, o suporte de um projeto de fixidez.
256  Norton, III, p. 15-16.

287
257  Ibidem, IX, p. 40-41.
258  Stock, IV, p. 144.
259  Ibidem, X, p. 179-180.
260  Norton, XXII, p. 179.
261  Stock, XXIII, p. 234. (Trad. modificada).
262  Norton, VI, p. 28. (*Grifo de James).
263  Stock, VII, p. 161-162. (Trad. modificada).
264  Norton, XX, p. 27.
265  Shoshana Felman faz um jogo com o verbo “tourner”, em francês, que aparece
na expressão “ça tourne mal”, em seu texto, desde o título do livro de James. Essa
insistência é importante para sua análise que leva em conta os significantes, o que
tenho tentado manter em minha tradução. No caso acima, não foi possível achar
uma expressão do “vai mal” em português, em que aparecesse o verbo “voltar”, ou o
substantivo “volta”. No dicionário Petit Robert, o verbete “tournant” pode significar
ângulo, canto, porção mais curva de uma rua e também o que “muda de direção,
torna-se outra coisa”. Pode significar também “operar uma reconversão, uma modi-
ficação completa de orientação”. (N.T.).
266  Stock, XXI, p. 224. (Trad. modificada).
267  Norton, VI, p. 28.
268  Stock, VII, p. 162. (Trad. modificada).
269  Norton, XXII, p. 80. Cf., ainda, essas outras metáforas de uma “tomada” (um
domínio) ligada a uma perda de equilíbrio:
 The grasp with which I recovered him might have been that of a catching him in his
fall. I caught him, yes, I held him… (Norton, p. 88)
 … this mere blind movement of getting hold of him (…) while I just fell for support
against the nearest piece of furniture… (Norton, p. 85)
 [O abraço com o qual o segurei poderia ter sido o mesmo com que o teria agarra-
do em sua queda. Eu o peguei: sim, o mantive bem… (Stock, XXIV, p. 247. Trad.
modificada).
 … o estrito movimento cego de segurá-lo, (…) enquanto eu procurava me apoiar, em
minha queda, em direção ao primeiro móvel que vi… (Stock, XXIV, p. 242. Trad.
modificada.).]
270  Stock, XXIII, p. 235-236. (Trad. modificada).
271  Se a presença de uma criança, numa história de fantasmas, “dá uma volta de
parafuso” ao efeito de horror produzido sobre o leitor, é bem evidente, em com-
pensação, que duas crianças não dão “duas voltas”, e que essa resposta somente
corresponde à intenção de Douglas, quando coloca a questão. Não se pode dizer
“dar duas voltas de parafuso”, pois não se pode modificar um clichê, uma expressão

288
fixa. A resposta à questão de Douglas só pode repetir a própria proposição da ques-
tão: “duas crianças dariam ainda mais uma volta de parafuso ao efeito de horror”.
Nesse sentido, a questão de Douglas é retórica, uma afirmação que não interroga,
não pede resposta.
 Por outro lado, se o efeito de horror está ligado à presença de uma criança, essa
relação de causa e efeito (a relação entre a criança e o horror) é uma relação quali-
tativa, e não quantitativa: o que produz o efeito é a qualidade da infância, e não a
quantidade das crianças. O número dois, na boca de Douglas, significa um efeito
de superlativo, e não uma medida de multiplicação; trata-se de um redobramento
retórico, e não aritmético. Douglas propõe um outro exemplo, melhor ainda, do
mesmo gênero (o gênero que liga o horror à infância): duas crianças dá no mesmo.
 A interpretação do ouvinte: “duas crianças = duas voltas” é, então, (ainda) um erro
de leitura. O ouvinte, com efeito, se engana tomando a retórica (ao mesmo tempo a
questão retórica e o redobramento retórico) ao pé da letra.
 Respondendo “two turns” (“duas voltas”), a leitura produz, então, uma diferença,
uma fissura dentro da mesma coisa. Mas, sugerindo dessa maneira ou deixando
entender que a história terá duas voltas, dois sentidos diferentes, o menosprezo do
leitor encontra, paradoxalmente, a verdade do texto: a da ambiguidade. E o texto
poderia dizer do leitor, como a governanta, de Miles:
 “Horrible as it was, his lies made up my truth.” (Norton, XXIII, p. 84)
 Começando por seu próprio tropeço de leitura, dramatizando sua própria retorici-
dade como uma capacidade diferencial, no seio da categoria do mesmo, como uma
capacidade de erro que desconstrói a polaridade decidível entre verdade e erro, a
metáfora da “volta de parafuso” associa, dessa maneira, por uma volta de parafuso,
o efeito de leitura e o erro de leitura.
272 Prólogo, em Norton, p. 1. (*Grifo de James).
273  Stock, I, p. 123. (*Grifo de James).
274  Prólogo, em Norton, p. 1.
275  Stock, I, p. 123.
276  New York Preface, em Norton, p. 120. (*Grifo de James).
277  A autora não traduz a expressão de James “of cold artistic calculation” que,
entretanto, acrescentamos e traduzimos como “de frio cálculo artístico”. (N.T.).
278  Essa alternativa não deixa de lembrar a ilusão de “duas voltas” do parafuso,
ou “two turns”, que o erro de leitura, na primeira página, acredita encontrar ou
produz, na história, a partir da própria figura da “volta do parafuso” que a porta
e que emblematiza seu efeito (Cf. nota precedente). Ora, sabemos que, ao menos
no que concerne ao “efeito” de leitura, as “duas voltas” do parafuso dão no mesmo:
fundadas sobre a simetria mesma das “duas crianças”, a aparente diferença que
distingue as “duas voltas” é puramente especular: é a última ironia da metáfora da
“volta do parafuso”: tendo a aparência de se multiplicar e de se desdobrar, a volta

289
do parafuso, em realidade, se repete, tendo a aparência de “mudar” de “volta”, de
direção ou de “sentido”. O sentido, na realidade, não muda, pois o parafuso retorna
sobre si. E é por esse retorno sobre si, sugere James no prefácio da New York, que a
armadilha, justamente, torna a se fechar.
279  Wilson, p. 102.
280  Ibidem, nota de 1958, p. 143.
281  Ibidem, p. 142.
282  Norton, XII, p. 48.
283  Stock, XIII, p. 191. (Trad. modificada).
284  Norton, II, p. 12-13.
285  Ibidem, VI, p. 27.
286  Stock, III, p. 140.
287  Ibidem, VII, p. 161.
288  New York Preface, em Norton, p. 120.
289  A fórmula é de Paul Ricoeur.
290  Wilson, p. 104.
291  Norton, VII, p. 30.
292  Ibidem, p. 115.
293  Ibidem, p. 108.
294  Ibidem, XXI, p. 78.
295  Stock, XXII, p. 233. (Trad. modificada).
296  Wilson, p. 129.
297  Jean Starobinski, La Relation critique, Paris, Gallimard, 1970, p. 271.
298  Norton, XIII, p. 53.
299  Stock, XIV, p. 197. (Trad. modificada).
300 Cf.: I began to watch them in a stifled suspense (…) that might well (…)
have turned into something like madness. What saved me, as I now see, was that
it turned to another matter altogether (…) from the moment I really took hold.
(Norton, VI, p. 28)
 [Pus-me a observá-los num suspense sufocante, numa excitação disfarçada que po-
deria bem, em longo prazo, me levar à loucura. O que me salvou, vejo agora, foi a
volta, o rumo inteiramente diferente que as coisas tomaram (…) a partir do momento
em que pude dominar a situação. (Stock, VII, p. 162; Trad. modificada)]
301  Cf.: “I go on, I know, as if I were crazy, and it’s a wonder. I’m not. What I’ve seen
would have made you* so; but it has only made me more lucid, made me get hold
of still other things.” (Norton, XII, p. 48)

290
 [Continuo, eu sei, como se estivesse louca, e é realmente um milagre que eu não
esteja. No meu lugar, vendo o que vi, você também estaria; mas isso somente me
tornaria mais lúcida, me daria domínio sobre outras coisas.” (Stock, XIII, p. 190; Trad.
modificada)]
302  Isto é, logo de início, possuídos pelo Outro. Cf.: “Yes, mad as it seems! (…)
They haven’t been good – they’ve simply been absent (…) they’re simply leading a
life of their own. They’re not mine – they’re not ours. They’re his and they’re hers!”
(Norton, XII, p. 49)
 [“Sim, tão louco como parece! (…) Não era que fossem sábios: eram ausentes, eis
tudo (…) levam simplesmente uma vida própria. Eles não pertencem a mim – não
pertencem a nós. Pertencem a ele – pertencem a ela!” (Stock, XIII, p. 191)]
303  Norton, XII, p. 49-50.
304  Stock, XIII, p. 192. (Trad. modificada).
305  Norton, XX, p. 71.
306  Stock, XXI, p. 222. (Trad. modificada).
307 – A exclusão, pela governanta, do ponto de vista das crianças:
 “It’s a game” I went on, “it’s a policy and a fraud.” (Norton, XII, p. 48)
 [“É um jogo, continuei, é uma tática e uma fraude!” (Stock, XIII, p. 191)]
 – O funcionamento totalitário da leitura da governanta:
 “Yes, mad as that seems!” The very act of bringing it out really helped me to trace
it – follow it all up and piece it all together. (Norton, XII, p. 48-49)
 [“Sim, tão louco quanto parece!” O fato mesmo de o expressar me ajudou a remon-
tar à fonte e a reconstituir o todo. (Stock, XIII, p. 191)]
308  Encore, p. 41.
309 Freud, Cinq psichanalyses, Paris, Puf, p. 321.
310 Lacan, Scilicet, op. cit., n. 1, p. 31.
311  O título do Seminário XXI de Lacan, Les non-dupes errent, tem um duplo sentido
em francês. Ao afirmar que os não tolos erram, Lacan nos faz escutar o conceito do
nome-do-pai (nom du père) no plural, além de outras homofonias: non (não) e nom
(nome). (N.T.).
312  Shoshana Felman não localiza, em seu livro, de onde essa passagem foi ex-
traída, mas podemos facilmente reconhecê-la como trecho do artigo “O Estranho”
[1919], de Freud, aqui já referido. (N.T.).
313 James, The Sacred Fount, New York, Charles Scribner’s sons, 1901, p. 318-319.
(Trad. minha).
314  Norton, XII, p. 48.
315  Stock, XIII, p. 191. (Trad. modificada).

291
316  Norton, XX, p. 72.
317  Stock, XXI, p. 225.
318  Norton, p. 120.
319 Lacan, Écrits, op. cit., p. 17. [O parágrafo completo é: “A pousser un peu ce
sentiment de poudre aux yeux, nous en serions bientôt à nous demander si, de la
scène inaugurale que seule la qualité de ses protagonistes sauve du vaudeville, à la
chute dans le ridicule qui semble dans La conclusion être promise au ministre, ce
n’est pas que tout le monde soit joué qui fait ici notre plaisir.” (N.T.).]
320  Friedrich Nietzsche, La volonté de puissance.
321  James, prefácio, em The Golden Bowl, AN, p. 331.
322  Ibidem, p. 341-342. (*Grifo de James).
323  Carta ao Dr. Waldstein, 21 de outubro de 1898, Norton, p. 110.
324  New York Preface, em Norton, p. 123.
325  Carta a F. W. H. Meyers, 19 de dezembro de 1898, Norton, p. 112.
326  AN, p. 348.
327  Ibidem, p. 332.
328  New York Preface, em Norton, p. 121.
329  É preciso também que não tenhas/ que escolher tuas palavras sem algum des-
prezo:/ Nada mais caro que a canção cinza/ Onde o Indeciso ao Preciso se junte/
(…) E todo o resto é literatura. Paul Verlaine, “Arte Poética”. (N.T.).
330  Esta frase é dita justamente pelo artista moribundo em The Midlle Years.
331 Lacan, Écrits, op. cit., p. 364.
332  AN, p. 328. (*Grifo de James).

292
SÓ-DEPOIS1

A LOUCURA E A COISA LITERÁRIA:


EM TORNO DA QUESTÃO DO LIVRO
De que maneira a loucura testemunha a coisa literária? Por que lou-
cura? No fundo, eu não poderia ter dito razão do texto? Trata-se aqui,
em suma, dos textos da loucura, ou, antes, da loucura dos textos?
Esse livro procurou, justamente, pensar a relação entre os dois: pen-
sar sobre isso que falar da loucura quer dizer, a partir da exploração da
relação entre os textos da loucura e a loucura do texto; eu gostaria de
indicar como a loucura da retórica e a retórica da loucura efetivamente
se encontram, e não apenas em virtude do jogo de palavras.
Temos, nesses textos, num primeiro nível, a tematização de um certo
discurso sobre a loucura, destacando uma certa eloquência linguística
pela qual a loucura se afirma como sentido, se estabelece como enun-
ciado do texto. É o que chamo, neste livro, de “retórica da loucura”.
Ora, que esse discurso sobre a loucura seja uma maneira de dizer “eu”:
um grito do sujeito que, dizendo-se “louco”, reivindica um sentido
para sua própria loucura e se reivindica para si um estatuto de exce-
ção (o narrador de Memórias de um louco), ou uma maneira de dizer
“ele”, de esboçar o gesto do diagnóstico pelo qual, rejeitando a loucura
por fora, é possível situá-la em um Outro (Wilson explicando a loucu-
ra da governanta, e esta afirmando a loucura das crianças), a retórica
da loucura se revela sempre mistificada, mistificante: falar da loucura
é sempre, de fato, negar a loucura; seja pela maneira como se possa
representar a loucura ou se representar diante dela, (se) representar a
loucura é sempre (quer se saiba, ou não; quer ela seja controlada, ou
não) fazer a cena da denegação de sua própria loucura.
Mas, se o discurso sobre a loucura não é um discurso da loucura, não
é, propriamente, um discurso louco, não existe, nesses textos, uma
loucura que fala, uma loucura que se encena sozinha através da lingua-

293
gem, mas sem que ninguém possa se tornar sujeito falante daquilo que
se encena. É o movimento do jogo linguístico não totalizante, da não
mestria, esse movimento de jogo que neutraliza o sentido e pelo qual
o enunciado se aliena na performance textual, que eu denomino, neste
livro, de “loucura da retórica”.
Paradoxalmente, então, a loucura da retórica é aquilo que subverte,
justamente, a própria retórica da loucura. Lá onde se subverte tanto o
pathos mistificado do grito do sujeito quanto a falsa neutralidade cien-
tífica da exclusão do Outro, lá onde se subverte a retórica da loucura,
situa-se, justamente, a loucura (da retoricidade) do texto. Se a retórica
da loucura é uma retórica da denegação, a denegação se afigura habi-
tada, ela mesma, pela loucura que nega.
A loucura, em outros termos, é isso que o sujeito falante não pode
simplesmente negar nem simplesmente afirmar (assumir).
É entre sua afirmação da loucura e sua denegação da loucura que
os textos da loucura se representam e que representam a si mesmos
como loucura, ou seja, como irrepresentáveis. É entre sua retórica lite-
rária da loucura e a própria loucura de sua retórica literária que esses
textos, falando de loucura, fazem ato de loucura, fazem ato, justamen-
te, do encontro entre “falar de loucura” e a “loucura que fala”. Se os
textos da loucura não são presentes para sua própria loucura, é, então,
paradoxalmente, porque eles são a loucura da qual falam.
Mas loucura, dirão, em que sentido? O que significa afinal a lou-
cura neste livro? Qual é o estatuto retórico do termo “loucura” em
meu próprio discurso teórico e crítico? A loucura é tomada aqui em
sentido próprio, ou ela é pura metáfora?
Os textos estudados neste livro não permitem responder de uma
maneira unívoca ou simples. Quer tratem da psicose, da neurose ou
do estereótipo, os textos da loucura desenraizam justamente o saber
que se pode ter inclusive quanto ao estatuto retórico da loucura da
qual eles falam e sobre a qual interrogam. Ao fim dessas análises, este
livro gostaria de colocar a seguinte questão: não seria possível pensar
a própria especificidade da literatura como aquilo que não se permite
responder, como aquilo que suspende a resposta para a questão de saber
se a loucura da qual se fala é “própria”, ou pura figura? O próprio da
coisa literária é fazer de maneira que não se possa saber qual o estatuto
retórico de sua própria loucura.

294
Gostaria de sugerir, em outros termos, que a própria especificidade
da maneira pela qual a literatura fala da loucura provém, nesse es-
tabelecimento de relações, não somente do sintoma e da metáfora, da
“loucura que se encarcera” e da “alucinação das palavras”, mas, mais
especificamente e mais estranhamente, da psicose e do estereótipo, da
loucura de Aurélia e daquela de Memórias de um louco. O insólito do
ensino literário reside no insólito mesmo desse encontro, do estabele-
cimento de relações operado pelo significante “loucura”, entre o fun-
cionamento do clichê e o funcionamento mesmo da psicose.
Não é certamente um acaso se Jacques Lacan, estudante dos escri-
tos psicóticos, que em primeira abordagem aparecem como “escritos
inspirados”, descobre neles, como caractere marcante, a estereotipia,
ou seja, a parte de automatismo: “Nada é em suma menos inspirado
[escreve ele] que esse escrito tido como inspirado.” Desse estudo pro-
priamente clínico, Lacan destaca a função essencial do ritmo nos es-
critos psicóticos:
As formulações conceituais (…) não têm mais importância que as palavras
intercambiáveis de uma canção em versos. Não é que elas motivem a melo-
dia, é ela que as sustenta (…) Nesses escritos, só a fórmula rítmica é dada,
os conteúdos ideológicos [idéiques]* devem ser preenchidos.2
Ora, a literatura, ela também, através do próprio topos da loucura,
aponta para a conivência, justamente, entre os signos de inspiração
e os signos de automatismo. Parece-me que a coisa literária poderia
dizer alguma coisa inédita sobre o ritmo e sobre o enigma do próprio
sentido do automatismo, se apenas se soubesse escutá-la; e que o saber
que comporta o insólito estabelecimento de relações entre a psicose
e o estereótipo é talvez a questão do amanhã: a questão por vir que a
literatura, de seu lugar específico, nos convida a colocar, e aquela que,
de seu lugar específico, ela endereça à psiquiatria, à psicanálise, à bio-
logia, tanto quanto à linguística.
Se a literatura, de seu lugar específico, nos ensina sobre a lou-
cura, a loucura pode, por sua vez, nos ensinar sobre a coisa literá-
ria? Parece-me que, se existe de fato alguma coisa como a coisa
literária, ela não se dá, como se pôde pensar, em virtude de uma “su-
blimação”, ou de uma função propriamente terapêutica da escrita, mas
em virtude de uma irredutível resistência da coisa à interpretação. A
loucura, em última instância, será definida neste livro como uma re-
sistência em ato à interpretação. A loucura, em outros termos (como
a coisa literária), não consiste nem em sentido, nem em não sentido;

295
ela não é um significado último, igualmente em falta ou dissemina-
do que se pudesse imaginar, nem mesmo um significante último que
resiste à decifração exaustiva, e sim um tipo de ritmo imprevisível,
incalculável, inarticulável, mas estritamente narrável, através da nar-
rativa do deslizamento de uma leitura entre o muito-pleno-de-sentido
e o muito-vazio-de-sentido. Toda leitura é uma narrativa ritmada pela
retórica de sua falta-a-dizer sobre sua relação com o texto e com a
loucura do texto.
A última proposição teórica que se destaca das análises deste livro é,
então, a seguinte:
Quanto mais um texto é “louco” – em outros termos, quanto mais
ele resiste à interpretação –, mais são os modos específicos de sua pró-
pria resistência à leitura que constituem seu “sujeito” e sua literarieda-
de. O que a coisa literária, em cada texto, nos conta é precisamente a
especificidade mesma de sua resistência à nossa leitura.
Eis aí, pelo menos, a maneira pela qual vejo hoje a relação entre lite-
ratura e loucura. Tal é, então, a nova narrativa (teórica e retórica) que
este livro gostaria de abrir como questão e que ele gostaria de assinalar
em direção a um interpretante por vir.

Setembro de 1977.

NOTAS

1  Posfácio de Shoshana Felman ao livro A loucura e a coisa literária. (N.T.).


2  Jacques Lacan, Annales médico-psychologiques, 1931.

296
PARTE II 
SEMINÁRIO DE
SHOSHANA FELMAN
(Aula de encerramento
do seminário de Shoshana Felman:
“Entre Espinosa e Lacan e nós”)1
OBSERVAÇÕES PEDAGÓGICAS

S.F. – Temos uma sessão bastante ambiciosa, como vocês devem ter
percebido ao ler os textos. De certa maneira, pode ser muito ambicioso
encerrar o curso com isso, mas, por outro lado, isso pode lançar algu-
ma luz também sobre o curso todo.
Agora, antes de iniciarmos a tarefa de elucidar o texto de Lacan, quero
dividir com vocês mais alguns pensamentos sobre minha pedagogia
em geral, porque o que parece evidente para nós, como professores – o
racional, por detrás de nossos métodos –, nunca é realmente claro
para todos.
Então, permitam-me contar para vocês algo sobre minha percepção des-
te curso e sobre minha percepção do seminário como tal. Para mim, um
seminário não é um curso de palestras. Porque um curso de palestras
pressupõe alguma coisa que está terminada, você chegou a entendimen-
tos finais sobre algo, traduziu-os em conhecimento e apresenta uma
interpretação que é conclusiva. É isso o que faço em meus livros e em
minhas palestras. Não em minhas aulas. Um seminário, na minha con-
cepção, é um processo de investigação. Essa é, em geral, a concepção de
um seminário, embora nem todos os professores a apliquem à prática…
É um processo de investigação e, porque somos um grupo, trata-se
de um dinâmico processo grupal de investigação do qual vocês são
chamados a participar, dentro da estrutura dada ao curso pelo crono-
grama. O seminário é destinado a desenvolver uma perspectiva, ele
definitivamente tem uma estrutura, e essa estrutura é dirigida por uma
visão criativa que está por detrás dele. E essa visão criativa não está de
todo desenvolvida em minha mente. Estou seguindo uma intuição,
uma direção. Mas a intuição não é acabada. A visão não está terminada.
Não está inteiramente clara nem mesmo para mim, então não pode ser
inteiramente clara nem completamente apreendida por vocês. Porém
a confusão, o debate, a luta com os textos e com o que eles têm em
comum – revelam em comum – é o que estamos procurando.

299
Todas as minhas aulas estão tentando comunicar, acima de tudo,
uma experiência emocional e intelectual dos textos, uma experiência
que procuro tornar a mais primordial e vital possível. A experiência é
o que importa. A experiência é um fato ou um evento criado através
de uma prática. Uma aula é, para mim, um campo de prática, não um
conceito acabado. Se a experiência criada na aula é forte o suficiente,
vai, eventualmente, criar sua própria conceitualização. Mas isso será
apenas no fim do processo, no horizonte.
Então, ofereci aqui uma significativa escolha de escritores, uma série
de textos para serem experienciados em sua singularidade, mas também
em sua significante (progressiva) relação um com o outro. Projetei o
curso em torno de uma visão – que é basicamente uma intuição que
tive –, na vanguarda do meu próprio pensamento. Essa é a direção
para onde estou indo, mas aonde ainda não cheguei. Estou levando
vocês comigo e estou convidando vocês a participarem desse processo
de criação. Então, vocês têm que adquirir maturidade para lidar com
aquilo que não entendem e para lidar com a confusão que isso desen-
cadeia, porque isso é precisamente parte da pesquisa: não simplesmen-
te adquirir o material mastigado que é chamado de conhecimento.
O conhecimento é, sem dúvida, compartilhado na sala de aula, mas
meu propósito não é transmiti-lo acabado, é convidar vocês a entrarem
no processo de minha própria investigação. Vejo meu lugar num semi-
nário um pouco como o de um maestro produzindo música com uma
orquestra. Vocês são a orquestra. Cada instrumento musical é muito
importante, e cada instrumento musical tem sua própria interpreta-
ção. É um tipo de música que é, ao final, produzida pelo conjunto da
orquestra, pela interação entre indivíduos que tenho a função de ins-
pirar, guiar e moderar. Essa é minha concepção geral de um seminário.
Agora vou dizer algumas coisas sobre a intuição que guiou este semi-
nário. Mas, antes de tudo, quero deixar claro o método pedagógico que
usei aqui. Obviamente, todos os escritores que estudamos têm em co-
mum o fato de que foram colocados sob julgamento, com exceção do
julgamento ficcional dramatizado na novela de Forster. A fim de enten-
der os julgamentos reais que condenaram esses escritores, tínhamos
que olhar para suas vidas, e não apenas para seus trabalhos, e fizemos
isso. Olhamos para a história. Olhamos para os eventos que rodeavam
sua escrita. Pelo menos para alguns eventos.

300
Eu disse a certo ponto neste curso que, depois de tê-lo ministrado três
vezes – esta é a terceira vez (eu o ofereci antes, duas vezes em Yale) –,
descobri neste ano, pela primeira vez, que ele é muito sobre biografia.
E não é somente biografia, porque, muitas vezes, é autobiografia – é a
maneira como a biografia está aí implicada com o texto e a maneira
como esses textos são autobiográficos. E eles o são antes e depois do
evento. Alguns são de certo modo proféticos, e outros são autobiográ-
ficos depois, no impacto do evento.
Então o que é importante ver é que não se trata aqui da vida e da li-
teratura como uma dicotomia. O que é inovador nessa compreensão
emergente da vida em relação com o texto é que a dicotomia, a opo-
sição entre vida e literatura no sentido tradicional – a crença de que a
vida é feita de alguns fatos empíricos que são dados a nós e conhecidos
e, então, temos a literatura, que se torna um espelho ou uma represen-
tação simétrica desses fatos empíricos –, essa compreensão simplista e
sua demarcação convencional explodiram neste curso.
Biografia nesse sentido é um conceito muito redutor, que a velha crí-
tica tinha o hábito de usar. E não é isso, definitivamente, o que estou
tentando trazer para este curso, discutindo a saga épica desses escri-
tores, que se viram diante – através de suas próprias perseguições pú-
blicas – do imprevisto drama e da inesperada crise legal de algo que
sustentavam mas que estava além deles, alguma coisa que era desen-
cadeada por seus textos, pelo evento da literatura. É antes um processo
de desconstrução da oposição entre vida e texto, desconstrução das
polaridades que são tão populares em departamentos acadêmicos – po-
laridades como arte e realidade, arte versus realidade. Estou tentando
olhar para a arte como parte da realidade e para a realidade como parte
da arte. Então, não há oposição entre as duas. Elas vão juntas. Quero
dizer, aparência e realidade, vida e arte – todas essas polaridades fo-
ram aqui explodidas, no sentido de que o limite entre elas se quebrou.
Elas estão realmente trabalhando juntas. Estão inextricavelmente im-
plicadas uma com a outra. É difícil dizer onde a vida termina e onde a
literatura começa. Algumas vezes há mais mistério e demanda de inter-
pretação sobre a vida que sobre os textos. Os textos às vezes são mais
claros que a vida. O que está em jogo é um enigma. É sempre sobre um
enigma na relação do texto com a vida.
E a questão, é claro, é por que essas pessoas tão incríveis – e esse é,
para mim, o significado deles, acredito que todos os autores que estu-
damos neste curso são grandes, incríveis seres humanos, tanto quanto

301
excepcionais pensadores, criativos e brilhantes escritores – acabaram
por atravessar um julgamento. E tiveram um impacto na posteridade
também. Quero dizer, sua genialidade teve consequências. Então, por
que todos eles atravessaram um julgamento?
Essa é minha questão. Não tenho e não acho que um dia terei uma
simples resposta para ela. Mas acho que é uma questão interessante.
Vocês sabem, um outro jeito de colocar a questão, retrospectivamen-
te – um outro jeito de lidar com a intuição que sustenta o curso – seria
dizer que este foi realmente um curso sobre a grandeza. Sobre o que
faz os grandes criadores e sobre o preço pago pela grandeza. Porque
a grandeza não é simplesmente dada como um presente de Deus. É
adquirida. É adquirida no decorrer de uma luta, através dos textos e da
vida. E, de certa maneira, estivemos estudando o que Hannah Arendt
chama de “anedotas do destino”. Anedotas do destino. Estivemos es-
tudando fatos. Os fatos são inscritos em textos. Mas os textos são parte
dos eventos que deram origem aos fatos. Eles não são simplesmente
um reflexo dos fatos, ou uma representação, ou uma mimese. Mas eles
são uma inscrição dos eventos. Na medida em que a literatura inscreve
os eventos da vida que permanecem enigmáticos até o fim, a literatura
participa da eventualidade.
Não se trata de dizer simplesmente que a literatura é parte da reali-
dade, e não é meramente ficção – no sentido convencional do ter-
mo –, mas que a literatura em si é um evento, um evento incalculável.
Há algo que constitui um evento literário em performático – ele faz
alguma coisa. Em atos. E essa ação textual explica a grande influên-
cia que esses escritores têm, o impacto que tiveram e também a ameaça
que colocam. É por causa do que eles fazem com o que dizem, e não
somente por causa do que dizem.
Então, essa intuição foi o tronco deste curso. Talvez, depois de eluci-
darmos Lacan, possamos começar a articular um esboço, um panora-
ma da perspectiva do que é comum a todos os escritores estudados,
apesar de sua singularidade e das muito óbvias diferenças históricas, fi-
losóficas, políticas e literárias que os separam e que não permitem a as-
similação de um ao outro ou sua redução a um denominador comum.

302
APRESENTAÇÃO DOS ALUNOS: ELUCIDAÇÃO
E DISCUSSÃO DO TEXTO DE LACAN2

S.F. – Gostaria agora de dar a palavra a dois alunos que, tendo tra-
balhado juntos, vão apresentar para nós a leitura de hoje: a palestra
de Lacan, de 1964, intitulada “Excomunhão”. Esse texto é a respos-
ta pública de Lacan a sua expulsão da Associação Internacional de
Psicanálise (IPA). Foi pronunciado na primeira sessão do seminá-
rio anual de Lacan, hoje publicado como o primeiro capítulo d’O
Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
A. (Jessi) – OK. Vou começar dando o pano de fundo dos fatos que
contextualizam o texto… Lacan faz a formação de analista e torna-se
membro da IPA…
S.F. – O Instituto Francês, vamos chamá-lo de Instituto Francês.
A. (Jessi) – OK. Nessa época, ele e alguns outros de seu grupo estavam
descontentes com a direção autoritária que essa organização e outras,
em outras cidades, como Nova Iorque, vinham tomando. Houve rup-
turas com a central da organização, e o grupo que rompeu havia sido
reconhecido. Então, eles pensaram, “bem, vamos fazer o mesmo e tere-
mos nossa organização funcionando mais na direção que projetamos”.
Assim, deixaram o Instituto Francês.
S.F. – Em que ano isso se dá? Vamos relembrar as datas. É 1963, um
ano antes de ele pronunciar a palestra. Lacan e alguns outros psicana-
listas deixam a organização a que pertenciam e, enquanto a deixam,
solicitam o reconhecimento, pela IPA, do novo grupo que estavam
constituindo.
A. (Jessi) – E a IPA recusou o reconhecimento. Recusou em um pri-
meiro momento, embora tivesse havido precedentes, em Nova Iorque
e em outros lugares, para que esse grupo fosse reconhecido. Por isso
eles sentiram que, deixando a Associação, poderiam ganhar reconhe-

303
cimento. No entanto, a IPA se aborreceu, especialmente com Lacan, e
então disse ao grupo: “Bem, deixaremos vocês voltarem se retirarem
Lacan da lista dos analistas didatas.”
S.F. – Vamos só ter certeza de que todos entendem o que quer dizer
“analista didata”. Você pode explicar isso, Jessi?
A. (Jessi) – O que entendi dos seus textos e dessas pequenas biografias
que li é que o analista didata é aquele que tem seus estudantes em
formação, sob sua supervisão, e esses estudantes têm que passar pelo
processo de ser analisandos – alguém que é analisado – e, uma vez que
eles passam por essa descoberta de ser analisado e saber o que isso é,
então podem começar a analisar alguém. Mas têm que ser treinados no
método para fazer isso, seguindo Freud.
S.F. – Correto. Estamos falando do processo de ensino da psicanálise,
ensino que implica ser autorizado para praticá-la. Isso acontece em
institutos de psicanálise. Para ter o que é necessário para se tornar
um analista, cada candidato deve se submeter a uma psicanálise para,
nos termos de Sócrates, aprender a conhecer a si mesmo, antes de
tudo. Isso é chamado de “psicanálise didática”, que tem duas partes.
Numa delas, os candidatos devem ter cursos de psicanálise. Mas, se
essa psicanálise é didática, eles devem ser treinados por um “analista
didata”. Cada instituto nomeia seus analistas que têm mais autoridade
no domínio da psicanálise, os mais experientes – e são apenas esses
nomeados autoridades que, em um instituto de psicanálise, terão o
direito de autorizar os futuros analistas praticantes. Cada instituto tem
cerca de dez analistas didatas, enquanto a escola deve ter cerca de cem
ou duzentos analistas. Essa é a estrutura internacional. Então, de certa
maneira, os analistas didatas são os mais importantes, aqueles a quem
pertence exclusivamente o direito de autorizar. E Lacan era um ana-
lista didata dessa sociedade antes de deixá-la. Então, ele e seu grupo
de amigos, ou colegas, deixaram esse instituto na França, porque não
gostavam da direção que ele vinha tomando – eram críticos em relação
a ele. Esperavam fundar uma nova sociedade que consequentemente
seria reconhecida pela IPA, e Lacan seria um analista didata nessa nova
sociedade. A psicanálise é cheia de divisões – isso é parte de sua histó-
ria. Essas divisões ocorrem como resultado de uma disputa, em razão
de entendimentos diferentes. Então eles se dividem e formam novas
sociedades. Foi isso o que Lacan fez, com vários outros, em 1963.

304
A. (Jessi) – E, então, a IPA respondeu dizendo: “concedemos a vocês
o reconhecimento se retirarem Lacan da lista dos analistas didatas.”
S.F. – Começou dizendo que Lacan deveria desistir de algumas de suas
aulas. Havia uma lista específica de coisas que ele deveria corrigir, mas
ele era intransigente. Então, esse era, antes de tudo, um processo de
negociação sobre o que ele poderia desistir de fazer ou censurar em
sua própria teoria ou em sua própria prática. Como Lacan não con-
cordou, a IPA veio com essa ideia de que sua nova associação seria
reconhecida na condição de que ele fosse excluído como um analista di-
data. Isso não significava que ele não continuaria sendo um analista.
Significava que seus analisandos – seus pacientes – não teriam o direi-
to de se tornar analistas.
A. (Jessi) – Havia vários analisandos que queriam ser treinados por
Lacan. Então ele continuou com os seminários que vinha fazendo há
dez anos. Toda sessão inicial de seus seminários, ele começava com a
questão: “Sou qualificado? Vamos discutir se sou, ou não, qualificado.”
S.F. – Correto, deixe-me apenas acrescentar, didaticamente, alguns
esclarecimentos. Antes de fazer essa palestra, “Excomunhão”, uma
decisão estava tomada. Dois anos antes, tinha havido uma negocia-
ção entre os representantes dessa nova sociedade, que seria chamada
de Sociedade Francesa de Psicanálise, e os representantes da IPA. No
final, disseram que Lacan deveria ser afastado como analista didata.
A decisão tomada por sua associação foi aceitar. Essa decisão por ex-
cluí-lo foi tomada por seus amigos, seus colegas, e alguns deles eram
seus discípulos: seus alunos e seus analisandos. Um dia, em setembro
de 1963, Lacan fica sabendo sobre essa decisão. Seu grupo tinha sido
reconhecido, ele, contudo, não era mais um analista didata. Esse é o
pano de fundo.
A. (Jessi) – É nesse ponto que gostaria de entrar no texto da “Excomunhão”,
porque, como ele diz à página quatro, “Fui o objeto do que eles cha-
mam um negócio” – um negócio foi o que foi feito. Por todo esse outro
pessoal, Lacan foi colocado em jogo. Ele diz: “Não havia nada de parti-
cularmente excepcional, então, sobre minha situação, exceto pelo fato
de que ser negociado por aqueles a quem eu, até aquele momento, me
referia como colegas, e mesmo alunos, é algumas vezes visto de fora,
chamado, por um nome diferente.”
S.F. – Qual é o nome que ele não menciona, mas que está subentendido?
A. (Jessi) – Eu tenho um monte de nomes diferentes…

305
S.F. – Bem, sugira um nome com que alguém de fora poderia nomear
a situação.
A. (Jessi) – Traição.
S.F. – Traição! Isso remete ao sentido de traição em Wilde. No fi-
nal – vocês se lembrarão – de The Judas kiss, Wilde fala da traição de
um amante, um discípulo, da mesma maneira que Cristo foi traído por
Judas! E por que Cristo foi traído por Judas? Por dinheiro. Aqui te-
mos algo da mesma natureza, que Lacan nunca nomeia explicitamente
como traição – é interessante que a palavra permaneça impronunciável
nesse texto. Ele diz: “Alguém de fora teria nomeado isso por um nome
diferente.”
A. (Jessi) – E penso que a separação é realmente interessante – como
ele faz essa diferenciação entre um dentro e um fora. Como, no prin-
cípio, ele compara isso, tortuosamente, com uma igreja. E toda a ideia
de excomunhão, tal como a examinamos com Espinosa, é a expulsão
religiosa de uma comunidade.
S.F. – De uma comunidade de fé. De uma comunidade religiosa.
A. (Jessi) – Então, temos esse dentro da comunidade psicanalítica, mas
ele diz que isso pode ser apreciado apenas por um psicanalista. Ele está
falando da comunidade, mas está também bastante consciente sobre o
que um elemento de fora poderia ver, porque, em certo sentido, ele foi
colocado para fora. Ele esteve dentro e foi colocado para fora.
Para prosseguir a partir daí, em termos de “Excomunhão”, um dos
meus primeiros pensamentos – para além das implicações religio-
sas – é que Lacan era católico, ele se refere a Espinosa e à excomunhão
judaica, e é esse o sentido de ter sido amputado de um discurso – de
um antigo discurso – do qual ele foi retirado. Mas, ministrando o se-
minário, ele continuou um discurso: continuou apesar do esforço de
outras pessoas para fazê-lo parar de ensinar. Por que a comunidade o
quereria fora dali? Por que Lacan era um perigo? Tudo isso nos remete
ao que vimos com Sócrates, ao que vimos com Wilde – o ensino é uma
ameaça para a juventude. Esses novos analisandos em ascensão estão
sendo ensinados por alguém que a IPA sente que não vai em direção ao
que ela espera do futuro. Então, há perigo em Lacan – ele está traba-
lhando contra os princípios do conjunto, contra as convenções.
S.F. – Sim. Permita-me apenas acrescentar um detalhe esclarecedor.
Lacan foi acusado também por sua prática, que não seguia as regras
estabelecidas por Freud.

306
A. (Jessi) – As sessões curtas.
S.F. – Sim, as sessões curtas. Uma das regras da prática estabelecida por
Freud é que a sessão tem um tempo limitado – normalmente Freud
via seus pacientes por cinquenta minutos. Os psicanalistas modernos
cortaram para 45 minutos. Mas hoje é sagrado que 45 minutos é o
tempo da sessão. Lacan tinha muitos analisandos e não queria recusar
os novos que queriam trabalhar com ele, então tinha que jogar com o
tempo. Isso, na minha interpretação… O que ele verdadeiramente fez
foi dizer que estava instituindo uma sessão que não tinha tempo fixo.
Em outras palavras, o analisando vinha para 45 ou cinquenta minu-
tos, mas Lacan, não. Ele vinha para um espaço de tempo indefinido e
começava a análise. Ele tinha uma teoria sobre isso: quando ele termi-
nava uma sessão de repente, era como uma intervenção ou uma inter-
pretação. Quando pensava que alguma coisa importante tinha aconte-
cido, ele a interrompia ali. E isso tinha um impacto sobre o paciente.
Também alegava que os pacientes, muitas vezes, ficavam apenas no blá
blá blá, com nada frutífero e, se soubessem que poderiam ser cortados
a qualquer momento, iriam até o ponto mais rápido. Essa era a teoria.
A. (Jessi) – Ele se referia a isso, ele agilizou a análise.
S.F. – Sim, ele agilizou a análise e interpretava fazendo do fim da sessão
um ponto teórico. Entretanto, suas sessões, em geral, eram menores
que 45 minutos, e ele chegou a fazer sessões de cinco ou três minutos.
Isso não impediu que as pessoas se aglomerassem em torno dele em
busca de um psicanalista, mesmo sabendo que teriam sessões curtas.
Havia esse desejo de tê-lo como analista. Isso tem suas próprias razões.
Sabe Deus, admiro Lacan e penso que ele era um gênio… mas posso
entender que a IPA tenha pensado que ele era extremamente perigoso.
A. (Jessi) – Lacan baseou essa sessão curta em toda a ideia de que o
inconsciente não tem limite de tempo.
S.F. – Sim, ele tinha uma teoria que o legitimava pela fundamentação.
O tempo do inconsciente, em Freud, é diferente da temporalidade da
consciência, e, então, ele queria jogar com o tempo do inconsciente.
Vamos passar agora à segunda apresentação.
A. (Devin) – Vou focalizar em “Excomunhão”. Achei um texto mui-
to cheio de camadas e o li muitas vezes. Vou tentar focar a leitura
desse texto como uma ilustração do que Dr.ª Felman apontou mais
cedo: não é simplesmente que o texto significa algo, mas que o tex-

307
to faz algo. Penso que o fazer começa com a questão que coloca no
princípio (“Sou qualificado?”) e culmina em sua crítica ao desejo de
Freud, no final.
S.F. – Devin, se eu puder interceder imediatamente, porque mais tarde
vou esquecer…
Não estou certa se é acurado dizer que o que ele está fazendo é uma
“crítica ao desejo de Freud”. Eu diria que ele está questionando o que
é o desejo freudiano. E essa questão é já percebida como um sacrilé-
gio – mas questionar e interpretar o desejo de Freud não é necessa-
riamente criticá-lo. Ele pode ser crítico com relação a outras coisas,
mas não ao desejo de Freud. Embora, obviamente, o conceito de de-
sejo – e seu questionamento do desejo de Freud – esteja no centro do
que Lacan está fazendo.
A. (Devin) – … então, quando ele diz “Serei qualificado para fazer
isso?”, é o começo da questão: quem é qualificado para fazer isso? Esse
se torna um discurso herético. E, enquanto ele diz “Eu considero esse
problema diferido, por enquanto”, não penso que ele difere, e sim,
coloca a questão sutilmente – “Serei qualificado para fazer isso?” e
“Que qualificações são essas?”, assim como suas respostas – através de
todo o texto. Fui lá atrás e pesquisei a definição de “excomunhão”. É
“uma censura usada para privar ou suspender a filiação dentro de uma
comunidade religiosa”. Então encontrei uma definição secundária, que
literalmente significa “fora da comunhão”. Comunhão, no contexto
religioso, é “o mútuo reconhecimento pelos membros de que uma pes-
soa ou uma igreja, dentro daquela religião, tem os elementos essenciais
daquela fé”. Então, esse mútuo reconhecimento é o elemento definidor
que estrutura o resto do texto. O que acontece quando você é exco-
mungado? Você é como que cortado.
É negada a você essa forma de comunicação com sua comunidade. É
dessa posição de silêncio que se torna muito importante para Lacan
articular esse discurso, que será considerado problemático ou nocivo
para o entendimento comum da psicanálise. E ele termina sua sessão
introdutória dizendo: “Tudo isso concerne à base – num sentido topo-
gráfico e mesmo militar da palavra –, a base do meu ensino. E devo ago-
ra me voltar para aquilo de que se trata – os princípios fundamentais da
psicanálise.” Quando as pessoas estavam ajustando os detalhes do que
era a psicanálise e ainda interpretando dentro dos limites dos textos
de Freud, eles estavam ainda autorizados a praticar e ensinar. Mas no

308
ponto em que Lacan passa a questionar essa base é que o maior impacto
começa a ocorrer, e é por causa disso que eles o temeram tanto.
S.F. – Sim. Você está certo. E quero reforçar isso imediatamente. Ele
diz: “Meu tópico são os princípios fundamentais da psicanálise.” O ato
sacrílego é questionar os princípios fundamentais. Questionar os fun-
damentos. O ato de questionamento, como vimos em todos os nossos
escritores, começa com Sócrates – introduzindo o ato de questionar
como um novo método –, e é o que faz com que isso seja tão perigoso.
A. (Devin) – … o que torna isso tudo mais interessante à medida que
ele se alia a Espinosa, que vem de uma fé judaica. E ele vem da tradição
católica, mas está se referendando em Espinosa. O elemento unificador
entre os dois é o que se torna uma heresia para os dois.
S.F. – Apenas para reforçar, novamente, alguma coisa a que você alude:
você está certo em dizer “Por que ele está se comparando a Espinosa
e à excomunhão judaica quando ele é de origem católica?”. Quero
enfatizar o fato paradoxal de ele se comparar a Espinosa, que é judeu,
e essa comparação paradoxal requer uma interpretação, porque – que-
ro agora acrescentar um fato – na história existe uma excomunhão
católica: quando ele diz “excomunhão maior”, está implicitamente se
referindo a um pensador católico, Lutero, que, um século antes de
Espinosa, sofreu o que é chamado de “excomunhão maior” pela Igreja
Católica e fundou o Protestantismo. Então, o que está em jogo, im-
plícito, é também um ato de fundação. Quando ele diz “excomunhão
maior”, esse termo não é exato para Espinosa – o que foi feito com
Espinosa não foi uma “excomunhão maior” do que a que foi feita com
Lutero. Logo, ele faz aí uma referência a Lutero também. “Então [diz
Lacan] o que a isso equivale é algo estritamente comparável ao que foi
chamado em outro contexto de excomunhão maior… Esse segundo
caso existe apenas numa comunidade religiosa designada pelo termo
simbólico, significante, sinagoga, e a isso que Espinosa foi condenado.
Em 27 de julho de 1656 – um bicentenário singular, uma vez que
corresponde ao de Freud – Espinosa foi feito objeto de kherem, uma
excomunhão que corresponde à excomunhão maior. Não estou dizen-
do – embora isso não seja inconcebível – que a comunidade psicanalí-
tica é uma igreja. Ainda assim, a questão indubitável que surge daí é o
que nessa comunidade é tão remanescente da prática religiosa?”
Agora, a questão sobre a qual gostaria de pensar e tentar responder
depois – trazendo isso de sua exposição, Devin – é a seguinte: em toda
essa comparação lacaniana, que é muito complexa – da comunidade

309
psicanalítica com a comunidade religiosa e mesmo da prática psicanalí-
tica com a prática religiosa, e seu questionamento irônico subjacente –,
por que ele escolhe se comparar a uma figura judaica excomungada
da comunidade judaica? Por que ele não se compara a Lutero, quando
seu exemplo está aí? Isso significa que ele escolhe se comparar a um
judeu por uma causa.
A. (Devin) – Sempre parece um pouco estranho – para mim, que pen-
so que ele se compara a um judeu – quando ele está falando sobre
a Igreja: é verdade que a comunidade psicanalítica foi fundada por
Freud. Ainda que Freud fosse um judeu secular, ele era uma figura
judaica bastante proeminente.
S.F. – Sim, isso é importante. Então, Lacan está vendo uma linhagem
de Espinosa a Freud. Os dois sendo judeus, os dois sendo judeus uni-
versais. O que criaram não é judeu. Há aí mais do que Lacan estava
pensando. Quero dizer, Freud era um judeu assimilado. Seu judaísmo
não lhe importava até que os nazistas começaram a persegui-lo. E, quan-
do ele foi perseguido, quando o antissemitismo se tornou uma fúria
na Áustria, foi quando ele disse: “Ok, agora vou me definir como um
judeu.” Vocês sabem, é o mesmo tipo de desafio a que Sócrates e Wilde
se referem ao dizer: “Você não vai sair correndo.” Freud fugiu, sim,
da Áustria no final, porque seus discípulos o pressionaram a deixar o
país, e ele foi salvo por essa partida, enquanto todas as suas irmãs que
ficaram lá morreram nos campos de concentração. Ele se salvou. Mas
ele começou a se identificar como judeu apenas aí, como uma definiti-
va resposta à perseguição. Então, escreve um de seus mais importantes
trabalhos finais, que é realmente um trabalho sobre o trauma. Moisés e
o monoteísmo, no qual ele traz uma história muito estranha – estranha
para os judeus – de que Moisés era um egípcio, de que Moisés fundou
a nação hebraica, vindo de sua própria nacionalidade como um egíp-
cio. Isso foi bastante não ortodoxo para os judeus. Mas essa era a com-
preensão de Freud, nascida como uma resposta à perseguição. Agora,
Lacan, por sua vez, identifica-se com o trauma da perseguição e esco-
lhe se identificar com a comunidade judaica, embora não seja judeu,
porque quer se identificar com o Outro. Com o perseguido – e com
Freud, que ele admira. Ele reconhece que há algo da tradição judaica
ali, e isso está na linhagem de Espinosa. Então, Freud e Espinosa, dois
judeus, dois hereges, dois fundadores com os quais Lacan se identifica.

310
A. (Lauren) – Penso que, além do fato de se identificar com o Outro,
há também interseções maiores entre a filosofia de Espinosa e o pro-
cesso psicanalítico de Lacan.
S.F. – Certamente. Lacan vê esse processo de liberação na Ética de
Espinosa. Você não precisava ler isso para hoje, mas o convido a ler
depois do curso. Espinosa é a primeira pessoa que define o desejo
como essência do homem. Depois, define as emoções. Depois, define
o que chama de “servidão humana”, que é o caminho pelo qual somos
escravos de nossas emoções, sem estarmos conscientes delas, sem mes-
mo estarmos conscientes daquilo que nos dirige.
Então, podemos dizer que a Ética de Espinosa é toda sobre o incons-
ciente e, de certa maneira, prefigura a psicanálise. Essa é a genialidade
de Espinosa. Isso no século XVII! A psicanálise é uma invenção do sécu-
lo XX, e ele descobre isso já aí, por si mesmo, na sua solidão, imagine,
três séculos antes. Mas a sua Ética é também uma resposta a todos os
traumas que sofreu, incluindo o trauma da excomunhão. Ele entende a
natureza humana como uma natureza que pode traumatizá-lo também.
É um entendimento da humanidade cheio de perdão. Você está cer-
to, Lacan também compara, implicitamente, sua teoria com a teoria de
Espinosa. E deixe-me fazer uma confissão pessoal: pensei, de maneira
superficial – quando, num primeiro momento, li Espinosa com Lacan
neste curso –, que Lacan convenientemente se comparou a Espinosa,
quando foi expulso da IPA, porque isso lhe ofereceu uma metáfora con-
veniente de si mesmo. Mas depois descobri que a tese de Lacan em
medicina, datada de 1932, já começa com uma epígrafe de Espinosa.
Lacan tem 32 anos quando escreve essa tese em medicina e, quando faz
a palestra chamada “Excomunhão”, em 1964, tem 63. Ainda na idade
de 32, fazendo sua tese em medicina, começa com uma epígrafe de
Espinosa. E, ainda mais: em Latim, língua de Espinosa, então as pessoas
normais não podem entendê-la. Mas ele nos dá a referência: “Espinosa,
Ética, III, proposição 52”. Assim, podemos buscá-la e lê-la em inglês.
“Qualquer emoção de um dado indivíduo [é uma citação bastante her-
mética] difere da emoção de um outro indivíduo, apenas na medida em
que a essência de um indivíduo difere da essência do outro.” Mais tar-
de, na Ética, Espinosa vai dizer que a essência do indivíduo é o desejo.
Então, a emoção difere, na medida em que o desejo difere.
Mas, de toda forma, você vê que Lacan foi desde muito cedo inspirado
por Espinosa. Ele estava lendo Espinosa – era um leitor devotado de
velharias. Ele era uma enciclopédia ambulante, como se diz, de ciên-

311
cia, poesia, religião… Espinosa era uma de suas leituras da juventude.
E ele deve ter reconhecido que Espinosa disse tudo o que se deveria
dizer sobre psicanálise. Em certo sentido, todo o ensino de Lacan pode
ser entendido como colocando Freud e Espinosa juntos. Verificando
como eles podem ser colocados juntos. Então, você está certo, Lauren,
é por causa do que Espinosa escreveu.
E a Ética continua a impactar Lacan, que intitula um de seus semi-
nários de A ética da psicanálise. Então, sua preocupação com a ética
é herdada de Espinosa. Logo, ele é importante. Isso não aparece só
quando Lacan é excomungado. Há uma influência de Espinosa e talvez
uma identificação com ele desde antes. Eu diria de uma vez – mesmo
interrompendo Devin – que o que caracterizou Espinosa, além do con-
teúdo psicanalítico, foi a descoberta do inconsciente no novo conceito
que forjou como “servidão humana”. E também toda essa pesquisa na
Ética sobre as condições da felicidade: o que, dadas a natureza humana
e a servidão humana, pode trazer para o ser humano – que tem uma
condição humana que é fundamentalmente miserável – a felicidade?
O que pode dar lugar à felicidade nessa condição? Essa é a questão de
Espinosa na Ética, e essa é a questão de um curandeiro. Um curandei-
ro! Não apenas um filósofo ou um especialista, mas um curandeiro.
E Espinosa chama essa condição de felicidade que pode ser atingida
pela Ética de benção. Seu próprio nome é “bento [Baruch]”. Então, de
certa forma, é sua assinatura também. É o que ele estava tentando dar
a si mesmo. Sua identidade estava conectada à maldição de sua exco-
munhão e, assim, com sua tradução dessa maldição em sua assinatu-
ra – seu nome era Bento em português, o que significa “abençoado”,
Baruch em hebraico, uma tradução de “abençoado”, e ele se nomeia
Benedictus depois de ser excomungado, o que também significa “aben-
çoado” em latim. Ele vai para a língua universal, que é o latim, a lín-
gua dos acadêmicos e da ciência nesse período, uma língua que Lacan
também continua.
Ok, desculpe-me por ter interrompido você, Devin.
A. (Devin) – Está bem. Eu acho… a questão da maldição… Lacan
entra nessa questão, e isso de certa forma o ajuda em sua discussão
posterior sobre ciência e religião. Jessi leu o parágrafo no qual ele é ob-
jeto dessa negociação e depois, nos parágrafos subsequentes, começa
a tratar sobre a troca e a produção da verdade através da intersubjeti-
vidade, em lugar da relação sujeito-objeto. E isso se torna este impor-
tante elemento para a psicanálise: por um lado, ele está nessa posição

312
da margem, por causa dessa ideia mutuamente definida, mutuamente
entendida do que a psicanálise é, e, ao mesmo tempo, há o intersubje-
tivo. É isso que define a psicanálise.
Então, de um lado, estão usando o intersubjetivo para expulsá-lo, mas,
por outro, não o estão interrogando sobre o que o intersubjetivo pode
fazer e como ele pode produzir novo conhecimento para além do que
Freud pôde dizer. Na seção seguinte, ele começa a definir questões da
prática e por que isso se torna importante. Para ele, isso se torna im-
portante porque a psicanálise é definida por sua prática. Você não pode
separar a ideia da prática, ser um analista ou ser um analista didata a
menos que você tenha essa prática. Por isso, o campo da psicanálise
como uma ciência, ou como uma religião, vai ser sempre demarca-
do – sempre definido – pelo fato de ser envolvido em uma prática.
Nessa seção, ele oferece algumas analogias importantes do termo reli-
gioso de uma shibbollet. Shibbollet é uma palavra hebraica e tem sido
usada no contexto do círculo restrito, o dentro como oposto ao fora.
Isso se torna uma analogia para sua excomunhão.
S.F. – Sim. Para tornar isso mais claro: é um tipo de conduta ou se-
nha que é reconhecível – codificada como definidora de pertenci-
mento. Você diz uma senha e é definido como sendo daquele cam-
po. Shibbollet. Então, ele está questionando isso. E é isto que ele não
aceita: que, dizendo a senha, você seja definido como pertencente à
psicanálise.
A. (Devin) – E é essa a questão de “Pode haver apenas uma senha?” Ele
então entra na discussão de: “se vamos tomar as ideias e conclusões de
Freud – a psicanálise é supostamente uma ciência – como a definimos
como uma ciência?” Ele começa essa questão, tomando emprestado
de Saussure, dizendo que se supõe que a ciência seja necessariamente
definida por um objeto. Mas a natureza da psicanálise, sendo ela um
tipo de prática, e prática que é dada pelo intersubjetivo, não possui
um objeto de investigação estável. Então, não é necessariamente uma
ciência, no sentido tradicional.
S.F. – E isso, Devin, é novamente uma questão sacrílega, porque Freud
disse que queria que a psicanálise fosse uma nova ciência, e todo mun-
do aceita isso. Mas Lacan vai chegando e dizendo: “a psicanálise é uma
ciência?” Ele está perguntando seriamente. E, a propósito, aqui não dá
uma resposta, no entanto mais tarde em sua vida dará, dizendo que a
psicanálise não é uma ciência, e sim uma prática, mas dá no mesmo, é
uma prática que tem suas consequências.

313
A. (Devin) – Então, essa distinção que ele está fazendo sobre ser pos-
sível ou não a chamar de ciência leva para a afirmativa conclusiva da
seção, que é: “O que é o desejo do analista?” Isso é similar à questão
sobre o que é o desejo de Deus. “Por que me abandonaste?” Esse ul-
timato torna-se a questão culminante, que faz com que ele irrompa,
desse discurso normal e totalmente integrado de Freud, em direção
à questão sobre o desejo da pessoa que criou isso. Assim, nos dirige
para a última seção – que é uma das mais difíceis –, para aquilo que ele
quer dizer sobre a psicanálise ter sido até então ignorante com relação
à maneira como o desejo de Freud esteve totalmente implicado no sis-
tema. Penso que isso vem de sua herança estruturalista, especialmente
com relação à questão de se está ou não entrando num psicologismo,
ou fazendo psicanálise, ao indagar sobre o desejo de Freud. Para ele,
isso se torna…
S.F. – Ele está respondendo… está dizendo: “Quando falo sobre o de-
sejo de Freud, não estou psicologizando.” Isso é muito importante.
A. (Devin) – Sim. Para ele, torna-se um desejo estrutural, que é a for-
ça geradora da psicanálise. A análise deve necessariamente vir dessa
origem, desse código, dessa estrutura que pode produzir essas ideias
diferentes – mas, na base disso, há esse desejo que situa o sistema para
ele. Os freudianos não interrogaram verdadeiramente – não pensaram
verdadeiramente sobre o desejo nessa direção –, o que tem implicações
particulares sobre por que ficaram presos a esse sistema, por que não
podem escapar das ideias dos textos de Freud, desenvolver ideias fora
deles ou questionar suas bases. E é esse questionamento do desejo de
Freud, essa questão herética, que se torna a base que causa todos os
problemas dentro desse tipo de drama.
S.F. – Permita-me acrescentar uma coisa desde já. Concernente ao seu
questionamento do desejo de Freud – que é bastante profundo, e ele
apenas nos dá a ponta do iceberg disso –, quero acrescentar que a visão
de Lacan – porque psicanálise é sobre desejo – não é fazer exatamente
uma psicanálise de Freud. É por isso que não é psicológica, e sim es-
trutural, como você disse. Mas também, na medida em que Freud teve
esse desejo, e que esse desejo criou a psicanálise – indo além dele –,
ele diz que “desejo é sempre inconsciente, pelo menos em parte” – e
o que isso significa é que parte da própria descoberta de Freud era in-
consciente para ele. É por isso que há mais para fazer nesse campo,
além de Freud. Freud fez uma autoanálise – foi o único analista que
não foi submetido à sua própria regra de que cada psicanalista deve

314
ser psicanalisado, porque ele foi psicanalisado por ele mesmo – usando
a Interpretação dos sonhos. Ele descobriu seu próprio inconsciente es-
crevendo seus sonhos e interpretando-os. Lacan disse que não importa
o quanto ele possa ter descoberto em uma autoanálise, há sempre um
inconsciente ali, algo “inanalisado”. Assim, quando fala sobre o desejo
de Freud, fala sobre o que permanece impensado na teoria psicanalí-
tica, na estrutura de Freud. O que permanece impensado precisa ser
pensado – então há lugar para a continuação. Eu apenas queria acres-
centar isso à sua elucidação bastante acurada sobre o que ele diz a
respeito do desejo de Freud.
A. (Devin) – Ele quer questionar as bases, e não está sendo crítico.
Está apenas questionando como chegamos às bases da psicanálise. E
termina na página doze, dizendo: “Então, a histeria nos coloca, eu di-
ria, atrás de algum tipo de pecado original na análise. Tem que haver
um. A verdade é talvez simplesmente uma coisa, nomeadamente, o
próprio desejo de Freud, o fato de que alguma coisa em Freud nunca
foi analisada.” Logo, isso se torna o pecado original, sua ação origi-
nal – a ação geradora que muda o universo inteiro. Comer a maçã – al-
guma coisa que se torna a força geradora para todo o resto da psicaná-
lise. Mas, ao mesmo tempo, é porque é uma força geradora, porque há
alguma coisa desconhecida sobre isso, porque essa origem permanece
inconsciente, que nós podemos continuar a falar de coisas que não
são simplesmente limitadas aos escritos de Freud, que podemos inves-
tigar o inconsciente de Freud e o que ele ignorou. E, por essa razão,
li esse texto como sendo essa ação performativa – porque esse é o
maior seminário que ele deu depois de ter sido excomungado, isso se
torna o ato constitutivo. Não simplesmente indo embora, mas dando
essa nova…
S.F. – … fundamental.
A. (Devin) – … análise fundamental, ele oferece a base de um novo
caminho para entender Freud e para ir além de Freud.

315
PENSAMENTOS POSTERIORES, DISCUSSÃO
GERAL, PANORAMA DO CURSO

S.F. – Muito bem. Mesmo! Eu lhes agradeço muito por essas apre-
sentações – vocês dois foram realmente fantásticos ao enfrentarem a
dificuldade desse texto.
Agora, podemos fazer uma das duas coisas: ou enveredarmos numa
leitura linha por linha desse texto de Lacan – que é realmente um tex-
to incrível, muito complexo, muito irônico –, ou podemos tentar com-
parar Lacan com os outros escritores que estudamos. Não acho que te-
remos tempo para fazer as duas coisas… Então, o que vocês escolhem?
A. – Comparar.
S.F. – Comparar. Ok. Vamos voltar a Espinosa, porque não terminamos
com a comparação. A comparação com Espinosa em si é uma compa-
ração de gênios. Sim?
A. – Algo que parece uma característica marcante de Lacan e de
Espinosa é que os dois protestam contra a excomunhão. É como se
Lacan precisasse da excomunhão para ir adiante e escrever outra coisa.
S.F. – Certo. Isso conduz à recuperação de sua própria teoria, de sua
própria inovação. Embora anteriormente, como Jacques-Alain Miller
testemunha, ele desse seminários sempre tomando um texto de Freud
para entender, depois ele permanece muito próximo do trabalho de
Freud, mas recuperando sua própria contribuição. Sim, Jessi?
A. (Jessi) – E quase recuperando sua própria voz, porque Jacques-Alain
Miller fala como o seminário de Lacan foi anunciado como sendo “Os
nomes do pai”, o que obviamente tem outras implicações religiosas.
Mas, você sabe, havia essa disputa – “eles estão prontos para essa
ideia?” –, e ele dando esse seminário, mas com um título diferente:
“Os conceitos fundamentais da psicanálise”…
S.F. – … sim.

316
A. (Jessi) – … é mais aceitável para a comunidade.
S.F. – Sim. Toda essa coisa misteriosa: Lacan quer dar um seminário…
depois diz que nunca vai dar… depois dá com nomes diferentes… e de-
pois permanece o enigma do que é impronunciável em Lacan. Esse título
autocensurado permanece sendo a única referência dele a algo que é
impronunciável, embora a censura contra ele não funcione – ele não é
silenciado.
Está verdadeiramente recuperando sua voz. Mas muda sua audiên-
cia. Em lugar de se endereçar apenas aos analistas profissionais, agora
se endereça à coletividade dos intelectuais – à inteligência parisiense
como tal. Os cientistas, os filósofos, os artistas, os escritores de lite-
ratura e, é claro, os psiquiatras também, agora todos vinham para os
seminários de Lacan. Tive a chance de estar em alguns deles, e eram
realmente incríveis. Isso foi na última fase, quando vinham seiscen-
tas pessoas. Ele tinha um auditório onde cabiam trezentas, e vinham
seiscentas. Fazia isso duas vezes por mês, das doze às duas da tarde.
Então, se você queria entrar naquela sala, tinha que ir às nove. Eu ia às
nove – e não sou uma pessoa das manhãs. Mas eu queria estar lá. Você
tinha que chegar às nove, se quisesse sentar.
Depois, tinha gente em pé. E era realmente uma tortura ficar naquela
sala, de nove a meio-dia. A sala ficava tão cheia de fumaça que você não
podia respirar. Verdade, eu estava realmente imprensada ali e ficava até
as doze. Lacan chegava e falava por duas horas. E era absolutamente
ininteligível até os quinze minutos que antecediam a última hora. De
repente, havia uma iluminação – algo do gênio lhe atingia. Você não ia
até ali com a ideia de que entenderia cada palavra que fosse dita. Quero
dizer, era um discurso notoriamente ininteligível – discurso difícil.
Houve poucas figuras como essa na história – quanto mais difíceis
foram, mais atraíram os estudantes. Mallarmé, o poeta francês, dava
palestras que eram chamadas Les causeries du mardi [O convívio da
terça-feira], e ele só falava como seus poemas. Os poetas iam escutá-lo.
E era impossível entender, mas as pessoas ficavam fascinadas, porque
sentiam que devia haver algo extraordinariamente significante naque-
la linguagem ininteligível. Um outro filósofo assim era Wittgenstein.
As pessoas não o entendiam, no entanto elas iam em massa. E outras
atacavam de fora esse fenômeno, que chamavam de “obscurantismo”
– davam um monte de nomes para isso –, como se essas figuras esti-
vessem tentando ser deliberadamente obscuras.

317
Mas havia alguma coisa misteriosa ali. Meu entendimento é que Lacan
não podia falar simplesmente, primeiro porque o que tinha a dizer
era muito complicado; depois, porque tudo o que tinha a dizer era
combativo. Então, ele só podia falar de maneira tortuosa – não é que
escolhesse ser difícil. Mesmo assim, as pessoas iam, porque sentiam
que estavam em contato com um gênio. É isso! Então, isso é apenas
uma anedota.
A. (Lauren) – Quando você estava nos contando sobre como costuma-
va ir e ouvir Lacan, me fez pensar na conexão que vejo entre todas as
pessoas que lemos: é que eles têm esse impulso pedagógico. Acho que
é interessante que Lacan não tenha sido realmente excomungado, per
se, mas apenas proibido de ser um analista didata. Essa exclusão era
tão importante para ele… ele não poderia ser mais parte da comunida-
de se não pudesse ensinar.
S.F. – Certo, certo.
A. (Lauren) – Penso que isso é verdade para as outras pessoas que
lemos também.
S.F. – Sócrates diz: “Se você me condena a cem mortes e me obriga a
parar de ensinar sob a condenação de cem mortes, eu me submeteria
a todas essas mortes em lugar de parar de ensinar o que quero ensi-
nar.” Isso é muito bom, Lauren. Todas essas pessoas têm uma vocação
para ensinar – não estão simplesmente curtindo a provocação. Eles se
sentem compelidos a ensinar o que têm que ensinar – para contribuir.
Sim?
A. – Como Forster cabe aí?
S.F. – O caminho pelo qual Forster pode ser conectado a isso é o se-
guinte: há dois julgamentos reais atrás de sua novela Uma passagem
para a Índia [A Passage to India]. De fato mencionamos um, quando
estávamos lendo Wilde. O julgamento de Wilde por homossexualidade
concernia a muitos outros além dele mesmo; dentre eles, a Forster,
porque ele era, por sua vez, um homossexual e, como muitos ou-
tros, estava vivendo sob a sombra política do aterrorizante veredito
legal contra Wilde. Depois do julgamento de Wilde, homossexuais na
Inglaterra foram para as colônias, também por causa disso, como uma
espécie de refugiados. Então, há, por trás de Forster, esse julgamento
histórico real de um companheiro escritor, essa condenação legal por
uma sexualidade com a qual ele se identifica. A homossexualidade está

318
presente também – embora implícita – em Uma passagem para a Índia,
que é subscrita por implicações sexuais, indiretas e elípticas – lembram
como o livro resolve a questão da amizade entre Aziz e Fielding? –,
da mesma maneira que O retrato de Dorian Gray é subscrito pela ami-
zade homoerótica entre homens.
O segundo julgamento, pertinente à realidade histórica e legal, que
está por trás da novela de Forster é um julgamento político, concer-
nente ao colonialismo. Era um julgamento que estava tendo lugar na
Inglaterra no final do século XVIII: seus processos foram realizados
antes da Câmara dos Lordes e ficaram conhecidos como “O impeach-
ment de Warren Hastings”. Warren Hastings, um importante emissário
inglês, era o diretor da East India Company, uma companhia comercial
inglesa, por meio da qual a Inglaterra explorava os recursos da Índia.
Hastings havia sido acusado de corrupção, e Edmund Burke foi seu
acusador e seu perseguidor. Burke escreveu belos discursos para in-
diciar os abusos de poder do Império Britânico e protestar contra a
usurpação econômica corrupta do poder dessa companhia na Índia.
Ele era politicamente um conservador, mas viu a tremenda injustiça
do colonialismo através do caso de Hastings contra aqueles de quem
ele estava sugando as energias. O julgamento durou sete anos. Mas, no
final desse longo e caro processo, Hastings foi absolvido: os ingleses
não conseguiram condenar um dos seus, deslegitimar o homem que
havia agido como representante e símbolo do poder de seu Império,
embora a culpa desse homem estivesse provada. Então, em 1795, final-
mente o absolveram. Isso é inversamente paralelo a como os franceses
não absolveram Dreyfus. Embora tivessem provas de sua inocência,
continuaram a condená-lo até o final e, só então, o perdoaram, para
reverter a condição que sabiam ser injusta. No caso de Hastings, tam-
bém era sabido que ele era culpado, mas houve uma absolvição, uma
consagração oficial da injustiça do colonialismo.
Então, Forster escreve sob a sombra desses dois julgamentos e o im-
pacto simbólico desses dois veredictos: a condenação de Wilde por ho-
mossexualidade de um lado, e a absolvição de Hastings das acusações
de abusos de poder colonial do outro. A novela de Forster confronta
a realidade política do colonialismo. Ele simboliza essa realidade por
meio do drama ficcional de um linchamento-julgamento, representan-
do a perseguição comum de um indiano por um inglês, baseada na
falsa acusação de que o indiano haveria estuprado uma mulher in-
glesa. Como vocês sabem, essas falsas acusações de estupro, com um

319
pano de fundo de racismo e de conflito racial, não são incomuns na
história: há vários linchamentos-julgamentos na história atual – eles
respondem ao que é percebido como uma ameaça pela atração eróti-
ca inter-racial. E Forster faz de um símbolo político dessa ordem um
drama arquetípico em sua novela Uma passagem para a Índia. Então,
este é o caso de Forster: ele era parte de uma minoria; e, como tal,
tornou-se simpatizante político, por assim dizer, dos dominados, e não
dos dominadores. Ele foi para as colônias como parte de uma minoria
que busca refúgio.
Isso me traz de volta a Lacan. Não clareamos sua referência à “sua
posição como um refugiado”. O conceito de refugiado é importan-
te – isso em 1964, aproximadamente duas décadas depois da Segunda
Guerra Mundial. Quando se pensa sobre refugiados, não se pode não
pensar sobre a realidade do Holocausto, na sequência da guerra. De
fato, o Seminário XI, que se abre com a leitura da “Excomunhão”, sig-
nificativamente termina com uma explícita referência de Lacan ao
Holocausto, que, até onde sei, é a única referência que ele já fez ao
fato. Então, o Holocausto está aí como pano de fundo, como horizon-
te, por assim dizer, desse seminário, inaugurado por sua nomeação
como um refugiado de seu grupo e da IPA. Lacan verdadeiramente di-
fere do judaísmo de Freud. Está atraído por essa outridade. Fala muito
sobre o outro – ele é um libertador, uma vez que quer que entendamos
o outro em lugar de o excluirmos.
Outros escritores que estudamos aqui podem igualmente ser vistos
como libertadores – libertadores. Sócrates era um libertador, certa-
mente. Zola estava tentando ser um libertador. Wilde era um liber-
tador. Então, a referência de Lacan ao judaísmo é também muito in-
teressante e fecunda, com um significado implícito. Vocês sabem, ele
se casou duas vezes. E sua segunda mulher era judia. E ele se casou
com ela antes da Segunda Guerra Mundial. Então, durante a guerra
e a ocupação nazista pela França, Lacan estava realmente vinculado a
essa comunidade judaica, experienciando a guerra por essa perspec-
tiva especial. Lembremos como Freud era desafiador. A situação da
guerra nesse contexto de fanatismo dos alemães antissemitas sempre
significou perigo para os judeus. Ainda assim, Lacan chamou sua fi-
lha – nascida em 1941– de “judia”. Durante a guerra, ele a chamou de
Judith, o que significa “judia”. Essa troca entre catolicismo e judaísmo
é já muito interessante.

320
Agora, isso pode ser visto também na existência de Espinosa. A tro-
ca entre catolicismo e judaísmo, que constitui a ambiguidade de
Espinosa, é precisamente o que dá origem à sua censura, sua excomu-
nhão da comunidade judaica – a expulsão da comunidade pela ameaça
dessa ambiguidade. Isso historicamente provém da conversão de gera-
ções anteriores de judeus – dentre os quais, os pais de Espinosa, que,
nascidos em Portugal, emigraram para a Holanda.
Há uma outra interessante temática que emerge do fato de Espinosa
ser a pessoa com quem Lacan se identifica – alguém pode vê-la? Quais
de vocês diriam ser os dois conceitos-chave que Lacan está explorando
nesse seminário que não estão entre “os quatro conceitos fundamen-
tais da psicanálise”, que são mais suas ferramentas de interrogação,
conceitos através dos quais ele coloca a psicanálise em xeque?
A. (Devin) – Desejo!
S.F. – Desejo é, com efeito, muito importante, como essência do ho-
mem e como essência de Freud. Mas seriam mais as duas disciplinas:
religião e ciência! Essa é uma aparente oposição, certo? Normalmente,
a ciência é secular e, como tal, ela é, fundamentalmente, não religiosa.
Foi assim que a ciência nasceu, da secularização do século XVII, com
todos aqueles gênios filosóficos e científicos. Agora, Espinosa é preci-
samente essa figura ambígua, na medida em que surge a questão: ele
era um cientista ou um religioso?
Vocês sabem, falei para vocês que existe uma controvérsia entre os pes-
quisadores para determinar se Espinosa era um religioso de maneira
pouco convencional, ou se estava apenas se escondendo atrás de uma
aparência religiosa e era realmente, em seu coração, um ateu. Se havia
essa ambiguidade na religião de Espinosa, é porque ele era um devo-
rador de todas as leituras de filosofia e de ciência do século XVII – era
um cientista, em sentido amplo. E estava realmente avançando entre
ciência e religião.
Espinosa está situado na precisa borda entre ciência e religião.
Dissemos que os dois termos-chave que Lacan usa para questionar a
psicanálise são precisamente, por um lado, a religião (Será a psicaná-
lise uma religião? Por que está se comportando como uma religião?)
e, por outro lado, a ciência (Freud se esforça por garantir um esta-
tuto científico para a psicanálise, e a psicanálise toma esse estatuto
como garantido). Lacan chega e, muito provocativamente, questiona:
“Será a psicanálise uma ciência?” No final, diz que não é uma ciência,

321
mas isso não significa que não seja importante. Ele também fala aqui
de religião – de um modo mais sarcástico, irônico, espirituoso, mas,
ainda, bastante sério – quando pergunta: quais são os denominadores
comuns entre a psicanálise e a religião?
Obviamente, o título “Excomunhão” é tremendamente irônico, porque,
uma vez que sabemos que a psicanálise é uma ciência, sabemos que
não é uma religião. Mas Lacan suspende esses dois tipos de conheci-
mento e até mesmo oscila entre eles, apesar – e talvez por causa – de
sua aparente contradição. “Vocês realmente sabem o que é a ciência?
Vocês realmente sabem o que é a religião?” Esse é seu trabalho real de
questionamento. Ele suspende as respostas do lugar-comum, as de-
finições opositivas! Não tenhamos tanta certeza – não sabemos se é
realmente uma ciência e não sabemos se é uma religião, porque a insti-
tuição funciona como as instituições religiosas funcionam, expulsando
e censurando a outridade. E Lacan diz que essa expulsão, essa excomu-
nhão, tem uma lógica psicanalítica – não é por acaso que isso acontece.
A religião não comparece nesse texto apenas em termos de iro-
nia – destacando o fato de que a psicanálise se comporta como uma
igreja. À medida que sua questão se desenvolve, há um caminho pelo
qual a ambiguidade cessa de ser irônica, e ele está vendo muito se-
riamente que há algo misterioso que permanece enigmático na psica-
nálise, e esse algo, esse mistério, pode ser equiparado ao que reitera
e dirige a prática religiosa. Por exemplo, “Eu não procuro, a menos
que já tenha encontrado”. Isso, e algumas outras passagens, estão, na
verdade, dizendo que a religião, em seu sentido profundo, tem um
significado que não podemos completamente excluir. Isso vem de uma
pessoa cuja tese em medicina é dedicada a seu irmão, que é um cató-
lico fervoroso.
Então, há também uma questão séria – Lacan é ambíguo –, se falar
sobre religião é uma piada ou se é sério. E vocês não poderiam saber.
Ele está realmente oscilando aí e está usando o movimento entre religião
e ciência precisamente como um movimento que é filiado a Espinosa.
Espinosa fazia isso muito seriamente, tomando a ciência muito seria-
mente e a religião também, fazendo alguma coisa entre. Esse entre é o
trabalho de transposição.
Assim – para retornar à nossa comparação – todos esses são pensado-
res da ética, alguns diretamente, outros indiretamente. Sócrates, in-
ventou a ética. Mas, mesmo para alguém como Wilde, que diz que a

322
literatura é sobre estética, e não sobre ética, é absolutamente da ética
que se trata para ele também, embora de maneira provocativa. Os pro-
vocativos gracejos de Wilde – afirmativas como: “Não existe essa coisa
como um livro moral, ou imoral. Os livros são bem escritos, ou mal
escritos. Isso é tudo.” – não podem ser tomados por sua aparência. O
que ele quer arrancar da literatura é essa visão moralizante – morali-
zação não é ética. Então, todos eles, de certa forma, estão interessa-
dos na fundação de uma nova religião, boa ou má. Todos eles, como
Espinosa, são figuras absolutamente sós. Há uma solidão na figura de
Lacan. Apesar das centenas de pessoas que se aglomeravam em seus
seminários e que vinham para ser analisadas por ele e para estudar
com ele, ele é sozinho. Ele é sozinho. E “Excomunhão” é o discurso de
alguém sozinho. Como Devin evidenciou muito acuradamente em sua
definição de excomunhão, parte disso significa que eles são proibidos
de se comunicar. Eles não aceitam isso, mas, ainda assim, isso é uma
ferida que carregam.
São escritores feridos. Os julgamentos, para a maior parte deles, fo-
ram traumas. São todos pensadores do desejo. Espinosa começa por
estabelecer o desejo como um conceito filosófico central. Mas Sócrates
também implicou o desejo, ao dizer que o filósofo é “um amante da
sabedoria”. É isso que filósofo significa, etimologicamente: um aman-
te. Amante da sabedoria. Isso significa que a filosofia é motivada pelo
desejo. O desejo de um amante da sabedoria. Eles todos estão tentando
ser curandeiros. É surpreendente que Sócrates, que é um filósofo, diga
que é função do filósofo “curar-se da ferida do argumento” e da incer-
teza sobre a imortalidade da alma. Então, mesmo Sócrates é um curan-
deiro – suas últimas palavras: “Críton, devo um galo a Asclépio” –
confirmam isso: esse fecho surpreendente do Fedro, que nomeia em
aberto, no final da vida de Sócrates, uma dívida interminável com
Asclépio, o deus da cura, significa que a filosofia é, nos termos de
Platão, “a prática da morte”, apenas na medida em que é também sobre
a cura da condição humana.
Eles todos são pela cura da condição humana e pela liberdade – são
libertadores. Espinosa vai colocar a liberdade como um conceito bas-
tante central, como o aboutissement da Ética: o coroamento da ética é a
liberdade. A realização da liberdade. Todos eles entendem que a liber-
dade não é dada. E aquele que está praticando a pseudoliberdade, num
caminho promíscuo… Wilde, em sua rebelião e em sua libertinagem
provocativa, ele é, de fato, dentre todos esses autores, um dos mais

323
escravizados pelo que Espinosa denominou de “servidão humana”.
Então, a liberdade não é dada, mas é algo procurado. Todos eles são
pensadores radicais – vocês vão se lembrar da definição de Peirce para
radicalismo que lemos da vez passada. “Conservadorismo, no sentido
do pavor das consequências, é totalmente fora de lugar na ciência, que
sempre avançou por força dos radicais e do radicalismo, no sentido da
ânsia por levar as consequências a seus extremos.” Essas pessoas não
têm medo de enfrentar as consequências – eles estão sempre levando
as consequências a seus extremos. Isso é o que os faz perigosos. São
objetivamente pessoas perigosas para as instituições e os axiomas que
os cercam. Por isso, provocam a censura – o julgamento chega para
censurar essas pessoas, para censurar seu ensino –, e o que precisa ser
censurado é justamente seu implacável questionamento, o infinito, in-
terminável questionamento que os leva a desenvolver a autocrítica de
sua própria disciplina e questionar seus fundamentos.
Eles são todos – todos eles – tremendamente irônicos. Lacan é incri-
velmente espirituoso. Lendo-o em francês, você vê a agudeza de seu
espírito, seu senso de humor, que não é o do wit, do wit britânico ou
irlandês de Wilde, mas o espírito francês, o senso de humor especifi-
camente francês. Eles são todos irônicos. São todos irreverentes com
as convenções. E, com relação a todos eles, o que é temido é que são
professores criativos. Sua criatividade é traduzida em seu estilo.
Acho que termino meu ensaio sobre educação com uma citação ma-
ravilhosa de Lacan – sua enigmática citação – de que tudo o que ele
tinha para transmitir a seus alunos era um estilo. “Qualquer retorno
a Freud fundado num ensino digno desse nome pode ocorrer apenas
nessa via… onde a verdade se torna aparente nas revoluções da cul-
tura. Essa via é o único ensino que podemos reivindicar transmitir
para aqueles que nos seguem. É chamado – um estilo.” Todos esses
pensadores e artistas têm um estilo. É o estilo que os distingue. Ele não
se opõe ao conteúdo do seu pensamento, é uma via para a verdade, a
verdade que eles transmitem – e performam. Todos eles são professo-
res precisamente e na medida em que têm uma assinatura, um estilo.
Bem, essa é, mais ou menos, a intuição que ofereço a vocês, mas estou
realmente, realmente interessada em suas respostas a essa intuição, o
que espero ler nos trabalhos finais. Então, quero agradecer a todos por
terem feito este curso. É isso.

324
NOTAS

1  Título do curso: “Arte e atos de justiça”, transcrição Charles Boardman, 6 de


dezembro de 2004.
2  Não há referências completas dos alunos participantes no texto original, por isso
eles foram identificados apenas pela abreviação “A.” seguida dos nomes, quando
citados por Shoshana Felman. (N.T.).

325
PARTE III 
ENTREVISTA COM
SHOSHANA FELMAN
A COISA LITERÁRIA, SUA LOUCURA, SEU PODER

(Entrevista a Philippe Sollers para a Revista Tel Quel)1

I
P.S. – Você acaba de publicar seu livro intitulado La folie et la chose
littéraire (Seuil, 1978). É uma coletânea de ensaios que você articu-
lou a um projeto global. O que você desejava fazer, exatamente, ao
agrupar os textos em questão sob essa unidade particular? O projeto
estava totalmente em sua cabeça desde o início, ou você o descobriu
pouco a pouco? Em que ordem o projeto se desenvolveu e como
você vê o seu desenvolvimento futuro? Tente responder às ques-
tões na ordem.
S.F. – O que eu queria com esse livro? Penso que a questão central
que tentei tanto explorar quanto articular foi a relação entre a loucu-
ra e o que chamei, por falta de expressão melhor, a coisa literária: o
que há num texto em que um evento literário está acontecendo (“li-
terário”, claro, resta a ser definido; a coisa literária não é um simples
equivalente para “literatura”, no sentido convencional e institucional
da palavra).
O que, então, faz a unidade desse empreendimento e, ao mesmo tem-
po, constitui sua diversidade e sua complexidade? Penso que o que
estou tentando indicar com a coisa literária é algo que é da mesma
ordem em todos os textos que estudo. Mas a noção de loucura não é,
de forma alguma, da mesma ordem nessa série de textos. Essa noção
refere-se a coisas diferentes e não tem nem o mesmo sentido, nem o
mesmo status, num e noutro texto, num e noutro autor.
Se o significante “loucura” é interpretado, em meu livro, diferentemen-
te e especificamente, dependendo da perspectiva de cada texto, é por-
que a noção de loucura, no meu texto, nunca é dada. Não é um tema,

329
um objeto de estudo, mas uma palavra. Ao explorar textos cuja única
ligação entre si é a presença da palavra “loucura”, cheguei à conclusão
de que não tinha ideia, a priori, do que seria “loucura”. Meu ponto de
partida não foi uma hipótese sobre o que é a loucura, mas, antes, no
começo de tudo, mesmo antes desse livro, comecei de maneira bastan-
te cega a seguir o curso de uma intrigante e insistente palavra, sem ter
ideia de aonde isso levaria.
Isso foi quando eu estava escrevendo minha tese (que se tornaria meu
primeiro livro).2 Percebi que a repetição, a frequência da palavra “lou-
cura”, em Stendhal, pelo menos não no nível temático, óbvio, a pró-
pria ideia de loucura parecia escandalosa, impossível, irreconciliável
com o clichê do claro, racionalista, Stendhal, que chegou a nós como
advindo de uma certa tradição. O que essa “loucura” possivelmente
significa, então? Eu não tinha a menor ideia disso. A palavra, algu-
mas vezes, parecia mesmo reunir todos os sentidos juntos, como fre-
quentemente ocorre em expressões do tipo “loucamente apaixonado”,
ou “cometer loucuras”, ou “isso me leva à loucura”, ou “louca pai-
xão”, ou “louca dor de cabeça”. E, ainda, a frequência surpreendente
da palavra era tal que, em si mesma, não podia simplesmente ser in-
significante. No meu primeiro momento de trabalho sobre Stendhal,
o que me ocorreu e me intrigou no significante “loucura” foi o para-
doxo do fato de que a palavra, insignificante em si, invadiu o texto de
uma forma quase obsessiva. Esse foi o ponto que deu origem ao meu
pensamento sobre a loucura; ponto de origem que explica não como
cheguei a escolher o tópico, mas como o tópico me escolheu.
Uma vez que a abordagem se tornou extremamente rica e reveladora
da complexidade do trabalho de Stendhal e descobriu um Stendhal
completamente diferente, fiquei ansiosa por tentar essa leitura em
outros escritores e seguir adiante com as questões teóricas impli-
cadas na loucura e oriundas de todo o problema dela e de sua ins-
crição em um texto. Essa é a origem de La folie et la chose littérai-
re/Writing and Madness, literalmente “A loucura e a coisa literária”,
que aborda a questão da loucura em uma série de escritores – Nerval,
Balzac, Flaubert, James – mas também no trabalho de certos teóricos:
Foucault, Derrida, Lacan. Tento pensar sobre uma através da outra,
a coisa teórica e a coisa literária, pelo caminho da relação de cada uma
com a loucura, tento elaborar uma teoria da loucura – lado a lado à
própria loucura da teoria.

330
Você me perguntou se o projeto como um todo precedeu a escrita do
livro ou foi se revelando pouco a pouco, enquanto eu o escrevia. A
resposta seria: um pouco dos dois. Você pode ver que uma ideia inicial
presidiu o trabalho do livro, mas essa ideia foi primeiro uma direção
de pesquisa. O que eu estava buscando? Coloquei para cada escritor a
questão e cada um respondeu de maneira bastante diferente. A questão
da loucura não é a mesma em Flaubert, especialmente em seus primei-
ros trabalhos, “loucura” tem a ver com o clichê romântico do autor
louco: “Um louco escreveu estas páginas”, diz o narrador em Memórias
de um louco, de Flaubert.3 A questão, assim, é situada na discrepância
entre a gravidade do fenômeno da psicose e o vazio do tique retórico
que tenta proclamar a loucura. Essa questão, que leva Flaubert à ma-
turidade à medida que ele a toma mais e mais seriamente, é também
a questão que, historicamente, aponta para os limites do romantismo.
Pois, sob a rubrica da “loucura” em Flaubert, estudo como o clichê
romântico no trabalho de um escritor que terminou por precisamente
subverter o romantismo, e como a tomada de consciência em Flaubert,
que foi pouco a pouco abandonando o clichê da loucura, tornou-se
uma reflexão sem precedentes sobre a loucura do clichê.
Em Nerval, o que está em questão é diferente, uma vez que ele teve a
experiência clínica da loucura, foi hospitalizado, e o que ele buscou
em Aurélia, por exemplo, foi precisamente dar voz à experiência da
loucura, contar isso de tal maneira que, contrariamente às ideias pre-
concebidas, de fato teve um sentido que alcançou as verdades mais
profundas. Quando Nerval teve o seu segundo surto, seus amigos es-
critores o edulcoraram em um discurso laudatório, como se ele tivesse
morrido, e morrido especificamente como um escritor. Quando reco-
brou a lucidez e leu o discurso, Nerval nunca parou de protestar con-
tra o louvor e o afeto que o mataram. Isso foi quando ele escreveu uma
de suas obras-primas, nascida de seu intenso desejo de provar que ele
não tinha morrido como escritor, que a loucura marcava não um ponto
final, mas, ao contrário, um recomeço, que como escritor ele estava
mais profundamente aberto, por causa de sua experiência biográfica
de despedaçamento.4
Como Flaubert, Nerval é assombrado, mas, bem diferentemente, pela
repetição. Enquanto em Flaubert a loucura se relaciona ao clichê, à
mecânica repetição da língua, em Nerval é a compulsão à repetição na
vida que toma o aspecto delirante: “O décimo terceiro retorna e ainda
é o primeiro”. O pathos da repetição, em Nerval – que é lírico na es-

331
crita, alucinatório na vida –, é a sombra do amor impossível de viver,
a figura da mulher como fundamentalmente perdida, encarnando o
retorno da morte na vida.
No trabalho de Rimbaud [a quem outro capítulo não traduzido na
edição em inglês é dedicado], a loucura cessa de relacionar a repetição
ao passado e começa a girar em torno do desejo por um começo to-
talmente novo: “Deve-se ser absolutamente moderno”, diz Rimbaud.
A loucura não é mais um destino ao qual se é submetido, mas uma
experiência de poético delirium, conscientemente buscada e cultivada.
Há dois tipos de delirium: “Delírios II – A alquimia da palavra”, um ex-
perimento linguístico, o desregramento da linguagem que busca, rom-
pendo com códigos estruturados, dar origem a novos sentidos, através
da “alucinação das palavras”; e um experimento sexual – “Delírios
I – Loucura (ou louca) virgem, infernal esposa”, o desregramento de
todos os sentidos, de todos os códigos da vida e do corpo, abrindo-se,
a partir do desejo liberado, ao poder de uma visão superior: “O poeta
torna-se um profeta”. A poesia se torna um meio de conhecimento
do corpo sem a intervenção da consciência, comunicando-se direta-
mente com o verdadeiro corpo da língua. “Todas as formas de amor, de
sofrimento, de loucura”. “Nenhum dos sofismas da loucura – do tipo
daqueles fechados em si mesmos – foi deixado de lado por mim: eu
poderia recitar todos eles, eu conheço o sistema”.
E Rimbaud ainda considerava essas tentativas de “ver” através do ca-
minho do delírio poético como um fracasso desapontador, que ele
julgou mais tarde, precisamente, como uma “loucura”: “Minha vez. A
história de uma das minhas loucuras.” A poética da loucura terminou
por se mostrar incapaz de “mudar a vida”. Deve ter sido por essa razão
que Rimbaud – um gênio poético – escolheu tão cedo na vida abando-
nar suas tentativas literárias todas de uma vez: por declínio silencioso.
Descolonizado, movente e ambíguo, o silêncio de Rimbaud não deixou
de ter a aparência do último golpe do gênio: uma questão-limite sobre
a absoluta modernidade, o desejo por radicalismo e a relação essencial
entre silêncio e loucura.
Em Balzac, a loucura não é mais referencial, ou seja, ligada à fun-
ção do poeta louco ou do poeta que secreta a loucura: é tematizada
ficcionalmente, encarada por personagens loucos. Estudo dois contos
de Balzac: um deles é “O Ilustre Gaudissart”, em que, antes de tudo,
o personagem do louco serve para desmistificar o pescador viajante,
que é ele próprio um símbolo do discurso mistificador da economia

332
burguesa. O nonsense da loucura termina por se revelar o reverso sub-
versivo do aparente, mas fantasmático, sentido da ideologia reinante.
No segundo conto de Balzac que analiso, Adeus, a heroína fica louca de
amor quando perde seu amante na guerra. Pode-se suspeitar que isso
seja, uma vez mais, o romântico clichê da “paixão louca”, mas, atrás
do drama da paixão, uma vez mais o nonsense da loucura revela seu pa-
tamar ideológico: o código social das funções de gênero e a natureza da
feminilidade. Há todo um jogo entre um homem – são – e uma mulher
que ficou louca: o homem tenta curar a mulher, mas, no clímax, quan-
do ele enfim consegue curá-la, descobre que a matou. A questão que
se coloca aí é: por que a recuperação da loucura é o mesmo que morrer?
P.S. – Ah! Como em Cervantes.
S.F. – De fato, o mesmo irônico paradoxo, mais explícito talvez, ocor-
re no fim de Dom Quixote: “E um dos sinais através dos quais eles
concluíram que ele estava morrendo foi a facilidade com a qual ele se
transformava de louco em são.”5
P.S. – Você fala de Cervantes?
S.F. – Trago Cervantes duas vezes no livro. A primeira vez é no início
de minha análise de “O Ilustre Gaudissart”, numa seção chamada “A
loucura e a novela”, na qual desenvolvo uma reflexão teórica sobre a
relação inerente entre loucura e ficção, como esta: Dom Quixote é ob-
viamente o principal exemplo da loucura da novela e um arquétipo da-
quilo que chamo de esquizofrenia estrutural, que o constitui: a novela é
ela própria o perigo existente para prevenir o leitor contra esse perigo,
e seu modo de funcionamento é o de sua própria negação. Menciono
Cervantes novamente numa nota a meu estudo de Flaubert, A moder-
nidade do lugar comum, o fim da curta novela Novembro, de Flaubert
– “ele morreu… como alguém morre de tristeza” – remete-nos direta-
mente para o Dom Quixote:
“Oh, não morra, querido mestre!” – disse Sancho, em lágrimas. “Siga meu
conselho e viva muitos anos. Pois a pior coisa que um homem pode fazer
em sua vida é deixar-se morrer assim, sem ninguém o matar, mas se ani-
quilando por sua própria melancolia.”6
É óbvio que a ironia de Cervantes – e a loucura de Dom Quixote – ti-
veram um efeito indelével sobre a escrita de Flaubert.
O último escritor sobre o qual eu falo é Henry James. Falando ali sobre
a loucura da interpretação, refiro-me aos meios pelos quais o sistema
textual de James, no que concerne à loucura, implica o leitor. O texto

333
em questão é A volta do parafuso, um texto que nem tanto tematiza a
loucura, mas, antes, dramatiza-a, sem dizê-lo. Em nenhum momento
nos é dito que há loucura nessa história, mas o intérprete astuto é con-
vidado a entender que a narradora – através da qual a narrativa nos é
transmitida – pode bem ser louca e, nesse caso, o sentido da história
pode ter eclodido em sua cabeça. Isso é algo que os críticos claramente
perceberam. Mas o que me pareceu particularmente significante é que
a narradora insana é também, antes de mais nada, uma leitora apaixo-
nada, alguém que ocupa, dentro da própria história, a posição do intér-
prete por excelência, a escavadora do sentido. Mas, tecnicamente, em
relação a qualquer intérprete da história, ela funciona como o olho da
câmera; se ela é louca, nós não ocupamos nenhuma posição fora dela
para dizer isso – a história nos alcança apenas através de sua loucura. A
loucura (quer dizer, uma interpretação totalmente errônea da história
que nos é imposta pela convicção da narradora de que isso é corre-
to) é a condição retórica da nossa leitura. Mas o que fazemos, como
intérpretes, no saber, para reverter o sentido proposto pela narradora,
declarando-a como não confiável, ou seja, louca? Nós podemos ape-
nas – e aí está a sutil ironia de James – repetir seu gesto! Pois ela, tam-
bém, lê revertendo os signos, recusando-se a aceitar a versão da história
dada pelas crianças e considerando-as loucas. É então que a loucura do
texto eclode e se volta contra nós. Parece-me que James sugere que, no
que concerne à loucura, não há metalinguagem. Se a loucura como tal é
uma questão posta pelo mundo, é também uma incerteza que não pode
se tornar uma certeza, ninguém pode estar certo de que o outro é real-
mente louco – quer dizer, que esse que afirma a loucura do outro não
é, ele próprio, louco. Não existe uma posição a partir da qual se pode
julgar, situar a loucura no outro, sem se tornar suspeito, contaminado e
incluído na loucura que se quer localizar em outro lugar.
P.S. – O que, em sua opinião, causa a impossibilidade de identificar
completamente a existência da loucura no outro?
S.F. – Tento refletir sobre esse problema nas páginas finais do livro.
Parece-me que, se houvesse alguma coisa que se pudesse chamar de
loucura, seria aquilo que um sujeito falante não pudesse nem total-
mente negar, nem assumir. Como aconteceu, os dois extremos literá-
rios nos textos que estudei adotaram precisamente essas duas atitu-
des, cada uma tão insustentável e ilusória quanto a outra: tanto dizer
“sou louco” quanto dizer “o outro é louco”. De um lado, há o jovem
Flaubert, dizendo: “Estas páginas foram escritas por um louco”. Mas

334
a afirmativa “eu sou louco” subverte o que ela própria articula, por-
que, se alguém é louco, então essa afirmativa não pode ser verdadeira,
ou pelo menos confiável, enquanto, se alguém é confiável, não pode
ser louco. Por outro lado, para dizer “o Outro é louco”, em James,
isso significa dizer o que tanto a governanta quanto seus críticos es-
tão dizendo e, consequentemente, os críticos estão involuntariamente
repetindo o gesto da governanta no próprio ato de denunciá-la. Em
outras palavras, “o Outro é louco” é uma ilusão, a ponto de implicar a
negação da própria loucura com o projeto de provar a si mesmo ou aos
outros que esse alguém não é louco.
“Não é suficiente trancafiar o vizinho para demonstrar a própria sa-
nidade”, diz Dostoiévski, numa frase admirável. Mas, de fato, pare-
ceu-me que todo gesto em direção ao diagnóstico – seja científico
ou popular – sustenta-se na negação que se enraíza no bom senso de
quem faz o gesto. A frase “ele é louco”, situando como situa a loucu-
ra no outro, nunca é um gesto inocente, mas estanca a ansiedade de
que a loucura possa existir no sujeito falante. Não sei se respondi à
sua questão.
P.S. – Perfeitamente. Aqui, então, eis a próxima questão. Seu iti-
nerário é bem preciso: Stendhal – Nerval – Rimbaud – Balzac –
Flaubert – James. Você pode dizer rapidamente por que escolheu
esses autores em particular? É uma escolha que deve estar ligada a
alguma trajetória biográfica…
S.F. – Provavelmente, sim. A resposta circunstancial é que, uma vez
que dou aula sobre o século XIX, esses são os autores que conheço
melhor. Mas há uma outra resposta possível. Estou certa em presumir
que você quis saber por que escolhi autores do século XIX em vez de
autores do século XX (embora James esteja, é claro, à margem do sé-
culo XX, e os teóricos a que me refiro sejam todos contemporâneos)?
Bem, eu quis precisamente testar as teorias do século XX em textos que
não foram conscientemente escritos a partir delas, de maneira a verifi-
car a relação constitutiva entre a loucura e a coisa literária. É bastante
impressionante que a literatura moderna, e ultramoderna, seja obsessi-
vamente preocupada com a loucura, praticamente só conta histórias de
loucura, nas quais a própria técnica narrativa é quebrada e incoerente,
como se as percepções ou narrativas fossem (mesmo que tenuemente)
delirantes. Essas histórias não são mais compreensíveis, por isso não
são mais histórias: a loucura invadiu a possibilidade de uma histó-
ria ser narrada coerentemente. É, então, uma questão bastante óbvia,

335
tematizada e consciente de si mesma: o gesto consciente de trazer a
loucura à luz como questão. Ao passo que me pareceu que (exceto no
caso de Nerval, em que a loucura é biográfica) os escritores do século
XIX não trouxeram a loucura à luz como questão. E, nessa perspectiva,
pareceu-me mais pertinente e significativo implicar a relação não entre
a loucura e um acidente da vida, ou um modo literário, ou um tema
historicamente marcado, mas a relação fundamental entre a loucura e
a coisa literária como tal.
P.S. – Precisamente, a coisa literária é uma interessante formulação.
Você pensa, ao usar essa expressão, que a palavra “coisa” foi usa-
da – de outra forma – por Lacan, que fala de “Coisa freudiana”?
Se você vê essa proximidade, o que diferencia a palavra “coisa”,
como você a emprega, modificada pelo “literária”; de “coisa”, como
Lacan a emprega, modificada pelo “freudiana”?
Por outro lado, você não acha que Stendhal, seu ponto de partida,
permanece sendo externo ao problema da loucura? Você disse que
o que lhe saltou aos olhos foi a ocorrência da palavra “louco” em
frases feitas – como “amar loucamente”, “uma louca dor de cabeça”
etc. –, mas me parece que aí a palavra loucura aparece circunscrita
a um horizonte clássico, cercado por um tipo de retórica da paixão
amorosa, na forma mais racionalista do século XVIII. O que vem de-
pois disso – você não acha? –, com Flaubert, Nerval e Rimbaud, é
uma experiência do sujeito que, somada às suas dimensões clínicas,
está conectada à experiência religiosa – inefável, mística ou esoté-
rica. Da Tentação de Santo Antônio, de Flaubert, à Aurélia, de Nerval,
passando pelo caminho de Rimbaud, pode-se ver que cada um des-
ses textos trata de um certo retorno à experiência religiosa ou místi-
ca, que explicitamente contrasta com o racionalismo que veio antes.
Pode-se, portanto, perguntar (e mesmo em Balzac, seus últimos tex-
tos são bastante explícitos sobre isso) se esses autores não testemu-
nham sobre um tipo de fracasso do iluminismo filosófico, a ponto
de poderem parecer reacionários do ponto de vista do iluminismo, da
Aufklärung, a razão em si. Nesse ponto, então, deve-se perguntar se a
“loucura” definida pelo iluminismo é de fato um problema em si ou
se é apenas um fenômeno do retorno do recalcado. Essas são – por
ora – minhas duas questões principais.
S.F. – Com relação à coisa literária, antes de tudo, tenho que dizer
que, quando escolhi esse título – La folie et la chose littéraire –, eu não
estava conscientemente imitando ninguém. Obviamente, inconscien-

336
temente, posso ter sido influenciada por muitas coisas (coisas, precisa-
mente…). Conscientemente, a palavra “coisa” veio para mim – na falta
de um termo melhor – quando eu estava procurando evitar o termo
mais comum, que é “literatura”, uma vez que esse termo era muito
carregado ideologicamente.
P.S. – Concordo inteiramente com a sua escolha.
S.F. – Mas, ao mesmo tempo, não aceito a ideia em moda de que a li-
teratura, de fato, não existe; de que a literatura é apenas sua bagagem
ideológica; de que, à parte a instituição burguesa das “Belas Letras”,
não haja nada que corresponda ao termo “literatura”. Parece-me que,
ao contrário, há um tipo de experiência muito particular chamada ex-
periência literária. Em que isso consiste? Num evento. Ou seja, algo
acontece num texto, ou acontece com o leitor, e isso é o que, para mim,
é especificamente literário. Obviamente, o texto literário – ou, antes,
a coisa literária num texto – não pode ser simplesmente definida den-
tro dos limites da instituição ou da academia, como uma divisão do
conhecimento. Os textos literários não estão confinados àqueles estu-
dados em departamentos de literatura: qualquer texto pode se tornar
literário se for atravessado pela coisa que faz a literariedade. Foi isso o
que tentei alcançar com a formulação da coisa literária.
Não há dúvida de que fui também influenciada pela formulação enge-
nhosa de Lacan, sem perceber. Além disso, a formulação de Lacan é
provavelmente influenciada pela ideia de Heidegger sobre “A Coisa”
– das Ding –, o que remete à formulação de Kant, Ding an sich, de ma-
neira a transformar tudo isso numa questão ao mesmo tempo poética
e filosófica. Recentemente me lembrei do pensamento de Heidegger
por um belo seminário de Jacques Derrida, em Yale, sobre “A Coisa”. A
expressão coisa literária foi também usada – com uma ênfase diferen-
te – por Maurice Blanchot, em seu admirável texto “A Literatura e o
direito à morte”. Mas Blanchot escreve com letra maiúscula, “Coisa”;
para ele, “a Coisa” é parte do progresso da dialética hegeliana, de acor-
do com a qual a literatura ultrapassa a si mesma, negando-se. Em ou-
tras palavras, “a Coisa literária”, para Blanchot, é paradigmaticamente
“a Coisa”, conferindo-lhe, pelo uso da maiúscula, o status de alegoria.
Em minha formulação, por outro lado, a coisa não é, de maneira al-
guma, alegorizada, é uma coisa entre outras, uma coisa material que
o adjetivo – literária – modifica e torna particular, sem dissociá-la do
status de “in-definida”. Nesse sentido, a coisa literária teria de fato
um acento mais lacaniano que hegeliano. Mas você pode ver: Lacan,

337
Heidegger, Derrida, Blanchot – todas essas referências devem ter in-
conscientemente informado minha escolha do título. Não tenho dúvi-
das de que é a riqueza de todos esses pensamentos que fez a expressão
“coisa” ressoar para mim exatamente da mesma maneira que a empre-
go em a coisa literária.
P.S. – Isso me faz pensar em um dos títulos de James, o título de uma
de suas histórias…
S.F. – Sim, precisamente, “A coisa real”.
P.S. – Sim, que alguém poderia traduzir como “O real da coisa que
deve ser feita”…
S.F. – Sim, em vez do mais literal “A coisa verdadeira” ou “A realidade
da coisa”. Essa história de James é precisamente sobre a relação – e a
fenda – entre a realidade referencial (encontrada) e a realidade literária
(construída). Um pintor, que tenta representar a aristocracia em suas
pinturas, veste e disfarça; um dia, ele cruza com verdadeiros aristo-
cratas que, por necessidades financeiras, estão procurando trabalho
como modelos para artistas. Mas, copiando o a coisa real, o artista só
produz uma arte ruim. Ele tem que mandar embora os modelos, que o
presenteiam com a coisa autêntica. A questão que o texto coloca é ób-
via: o que, então, é a coisa artística; em que consiste a sua realidade? A
resposta sugerida pelo texto tem a ver com a sua formulação: a “coisa
real” no texto é aquilo que ele faz.
O “real da coisa a ser feita” vai diretamente na direção em que me
situo, com o acréscimo, para mim, de que a coisa é sempre ligada a
um ato: a coisa literária é um ato por vir; ela faz alguma coisa conos-
co. Não é uma coisa no sentido de uma substância, sobretudo não é
uma substância. Normalmente, quando se fala de “literatura”, fala-se
de uma coisa substantivada, alguma coisa que possui seu próprio com-
partimento na gaveta geral do conhecimento. Para mim, não é isso de
maneira alguma, mas alguma coisa que só pode ser conhecida por seus
efeitos – alguma coisa que faz a diferença. É alguma coisa da ordem do
performativo, não da ordem do constativo ou do cognitivo, para usar a
terminologia inventada por Austin, que nos ensina, afinal das contas,
“como fazer coisas com palavras”.

338
II
P.S. – Uma vez que seu livro dedica toda uma seção à psicanálise
(“Loucura e psicanálise”), permita-me trazer o seguinte pensamen-
to para você. Como você sabe, há um considerável deslocamento
do discurso psicanalítico de Freud para Lacan. Com relação à coisa
literária (e concordo com sua formulação), esse deslocamento é al-
cançado pela própria forma das questões colocadas. Por exemplo,
tome um texto absolutamente fascinante de Freud sobre Dostoiévski
e pergunte a si mesma qual, dentre as questões colocadas por Freud
sobre Dostoiévski, foi traduzida em questões que Lacan coloca, por
exemplo, sobre Joyce. Nesse meio tempo (são cinquenta anos entre
Freud e Lacan e mais ou menos 65 entre Dostoiévski e Joyce), penso
que se pode dizer que ocorreu um mesmo tipo de transformação nos
dois casos. O que você acha disso?
S.F. – Essa sugestão é bastante surpreendente – e penso que é abso-
lutamente brilhante. Admito que nunca pensei sobre isso. Mas é ex-
tremamente estimulante pensar que houve algo na transformação da
coisa literária que provocou a transformação na psicanálise…
P.S. – Não foi exatamente o que eu disse…
S.F. – Você estava falando especificamente sobre as relações variáveis
entre literatura e psicanálise?
P.S. – Sim.
S.F. – Não pensei na questão nesses termos. Se você quiser, vou de-
linear o modo como pensei sobre isso. O que é transformado na re-
lação entre psicanálise e literatura quando se desloca de Freud para
Lacan? Freud (e muitos outros depois dele) pensou suas investigações
literárias como “psicanálise aplicada”. A frase, em si mesma, dá uma
indicação de suas limitações. Aplicação implica uma relação de mútua
exclusão entre o conhecimento científico e seu objeto. Da mesma for-
ma, aplicação pressupõe um processo de mão única: assume-se que
há uma teoria que é dada a priori, um conhecido que vai elucidar um
desconhecido. É, assim, uma ponte entre o conhecido e o desconheci-
do, mas, finalmente, tudo o que se pode fazer é reconhecer, no domínio
do desconhecido, a mesma coisa que já se conhece: não se descobre
nada novo.

339
O que Lacan faz é completamente diferente. Vamos tomar o texto mais
completamente desenvolvido de Lacan sobre a coisa literária: “O semi-
nário sobre ‘A carta roubada’”. O que é impressionante é que, embora
esteja preocupado com uma questão analítica, e não literária – uma
elucidação sobre a compulsão à repetição, tal como é explorada por
Freud em “A compulsão à repetição” – e que Edgard Allan Poe seja
chamado apenas para ilustrar esse conceito, o que acontece no semi-
nário realmente vai nas duas direções. Não se trata simplesmente de
uma leitura do texto de Freud elucidando o texto de Poe, mas, antes,
do texto de Poe reinterpretando Freud.
Freud, em outras palavras, não é concebido por Lacan como uma fon-
te de saber garantida e conhecida de antemão, mas, antes, como uma
coisa literária, um texto que requer interpretação. Além disso, o texto
literário de Poe, em si mesmo, contém saber. Entre essas duas formas
de saber, há uma troca, um diálogo. É através do encontro entre esses
dois textos, que não meramente informam um ao outro mas também
deslocam um ao outro, que Lacan é capaz de elaborar o conceito de
significante como fundamental para a compulsão à repetição. Poe, lido
por Lacan, deu origem a uma reinterpretação não apenas da literatura,
mas da própria psicanálise. O trabalho de Lacan sobre a coisa literária,
assim, não pode ser mais chamado de “psicanálise aplicada”, porque
não há mais essa relação unilateral entre uma ciência-mestre e um tex-
to-escravo. O que Lacan faz (sem teorizar ou mesmo tematizar sua
explicitude) é algo que, em contraste a uma aplicação, é da ordem de
uma implicação. O trabalho de Lacan vai na direção de uma interimpli-
cação entre a coisa literária e a “Coisa freudiana”.
Essa, então, é minha definição do que foi transformado, de Freud a
Lacan, na abordagem e pertinência da coisa literária para a psicanálise.
Penso, contudo, que essa relação lacaniana com a coisa literária não
existe em Freud: existem condições preexistentes, no texto de Freud,
para o tipo de análise que Lacan empreende com Poe, mas elas justa-
mente não têm a ver com literatura. A análise literária de Freud pode
ser encontrada, por exemplo, em A interpretação dos sonhos.
P.S. – Mas o que você faz com o bastante impressionante fato de que
o conceito central da psicanálise – o complexo de Édipo – seja ele
próprio transferido (no sentido forte do termo) da literatura? Freud
volta a isso por um caminho um tanto impressionante, a propósito
de Dostoiévski, quando ele se pergunta por que é de fato apenas na
literatura que ele pode encontrar uma versão indisfarçável do que

340
ele tinha descoberto: o assassinato do pai não parece se manifestar
em si mesmo em nenhum lugar, mas apenas no Édipo de Sófocles, no
Hamlet de Shakespeare, e nos Irmãos Karamazov de Dostoiévski. Dali
em diante, pode haver de fato uma psicanálise aplicada que amarra
o (literário) insabido ao (analítico) sabido, mas o sabido em si mesmo
vem dessa região do insabido.
S.F. – Então a psicanálise segue lado a lado à literatura, desde o co-
mecinho, por um caminho ainda mais óbvio do que normalmente se
admite. Em vez de simplesmente estabelecer fontes para determinar
uma genealogia, essa evidência literária funciona um pouco como a
própria carta roubada: está escondida porque pode ser vista a olho
nu. Você fala do fato essencial de os conceitos cardinais da psicanáli-
se – ou, pelo menos, os importantes – terem suas raízes na literatura:
não apenas complexo de Édipo, mas narcisismo, masoquismo, sadismo
são todos nomes extraídos da literatura, seja referencialmente (de au-
tores que realmente existiram na história), seja ficcionalmente, simbo-
licamente (de personagens ficcionais ou míticos). A coisa literária está,
assim, mais do que implicada com a teoria analítica: é o próprio nome
da teoria; ela dá nomes ao corpo conceitual da psicanálise.
P.S. – Seu comentário me parece muito fecundo. Eu mesmo tentei
dizer alguma coisa parecida com isso sobre Sade, perguntando como
alguém pode transformar seu nome próprio em um nome comum e
em um conceito.
Agora vou te colocar uma simples e mínima questão: não faria mais
sentido chamar “complexo de Sófocles” em vez de “complexo de
Édipo”? Por que isso aconteceu? Por que Freud não o nomeou “com-
plexo de Sófocles”?
S.F. – Porque, então, ele estaria fazendo crítica literária, e não “psica-
nálise aplicada”. Psicanálise aplicada sempre termina falando do in-
consciente do autor. Mas, mesmo antes que o conceito de inconsciente
do autor pudesse existir, Freud teve que escutar a coisa literária, de
maneira a colocá-la em primeiro lugar.
P.S. – Mas você vê o que quero dizer: no caso de Sade, nós dizemos
“sadismo”, mas, no caso de Sófocles, acreditamos em um de seus
personagens.
S.F. – No caso de Sade, as histórias e os personagens contam menos
que o conteúdo fantasmático de todo o trabalho do autor, a energia li-
bidinal que o conduz. Em contraste, no Édipo de Sófocles, o que Freud

341
encontra não é apenas um conteúdo libidinal ou fantasmático – o de-
sejo de matar o pai – mas também, e especialmente, uma estrutura
dramática e narrativa – que é também, como acontece, a estrutura de
uma análise. O que está em questão, então, não é a psicologia de um
personagem tipo em oposição à de um autor, mas uma troca textual e
uma interpretação à qual Édipo serve como um nó estrutural. Não há
dúvida quanto à razão por que falamos “complexo de Édipo”, e não
“complexo de Sade”.
Além disso, acho que há muito mais coisas no complexo de Édipo do
que usualmente notamos, e mesmo Freud, depois do seu trabalho com
A interpretação dos sonhos, tende a focalizar na morte do pai, obscu-
recendo, assim, a complexidade dessa importação literária. No meu
capítulo sobre James (“Loucura e interpretação”), sugiro algumas das
implicações dessa importação, ou dessa transferência, como você a co-
loca tão bem. As pessoas usualmente associam o “complexo de Édipo”
ao paciente, ao analisando, elas menos comumente veem que
Édipo, ao mesmo tempo, ocupa o lugar do analista. O Édipo de Sófocles
não é simplesmente um sintoma, mas um intérprete do sintoma. A im-
plicação da peça reside simplesmente na desconstrução da polaridade
que opõe o analista ao analisando.
P.S. – Certo. Mas tudo isso é óbvio em Sófocles.
S.F. – Pode ser óbvio em Sófocles, mas, ainda assim, alguém precisa
ver isso, ler isso. A luz lançada mais e mais por Freud lança uma som-
bra sobre o texto de Sófocles. Nós nos tornamos cada vez mais cegos
pela luz de Freud. Cessa-se de ver, por exemplo, que Édipo é uma tra-
gédia da interpretação, e não apenas do que é interpretado.
P.S. – Vamos voltar à transformação que ocorreu entre Freud e Lacan
e abordá-la a partir de uma nova direção. O que importava a Freud
era mostrar que Dostoiévski não era um epilético, mas um profundo
histérico (juntamente com outras considerações sobre a personali-
dade de Dostoiévski, mais morais ou políticas). Com Lacan, esta-
mos em outro registro de questões, como você brilhantemente de-
monstrou com Edgar Allan Poe: um texto clássico, ou seja, um texto
pré-analítico é usado para iluminar e questionar um texto de Freud.
Mas o problema de Lacan é bem diferente, porque, se isso aconteceu
depois de Dostoiévski (e mesmo depois de Freud), ainda há escri-
tores – ninguém ainda parou de escrever. O que permite a Lacan
fazer dois comentários, ou colocar duas questões. Primeira: “Joyce
era louco?” (Ao passo que Freud pergunta “Dostoiévski era histéri-

342
co?” – você vê o deslocamento). E segundo: no prefácio para a edição
inglesa dos Escritos, Lacan sugere que “Joyce é o que acontece quan-
do você recusa uma análise”. Esta é a questão implícita no trabalho
de Freud sobre Dostoiévski também: o que Dostoiévski poderia ter
se tornado se ele estivesse vivo hoje? Esse é um dos poucos textos
que Freud escreveu sobre uma pessoa morta, e Joyce também estava
morto no momento em que Lacan falou sobre ele: nos dois casos, um
texto é endereçado na ausência do seu autor. Freud fez isso apenas
nos casos de Schreber e Dostoiévski, que eu saiba; Lacan, nos casos
de Edgar Allan Poe e Joyce. O que você pensa disso? A loucura é con-
cernida aqui também, o que mostra que a psicanálise, no mínimo,
não foi bem sucedida na tentativa de esterilizar essa questão. Ela
assume uma nova vida a cada vez que alguém é interpelado em nome
da “razão”.
S.F. – Sim, penso que, em geral, Freud estava essencialmente preo-
cupado – pelo menos quando ele falava explicitamente sobre escri-
tores – com o diagnóstico clínico. Ao se diagnosticar o autor, de qual-
quer forma permanece o leitmotiv da psicanálise aplicada. Mas, quando
Lacan levanta a questão da loucura do escritor, parece-me (a menos
que eu esteja errada) tratar-se de outra coisa.
P.S. – Mas é exatamente a mesma coisa!
S.F. – Um diagnóstico clínico?
P.S. – Sim, claro!
S.F. – Mas, se “Joyce é o que acontece quando alguém recusa uma
análise”, não se trata apenas de uma questão de rotular corretamente
os sintomas; a psicanálise ocupa um lugar no mundo, e isso está im-
plicado de uma maneira totalmente diferente.
P.S. – Sim, mas e daí? Isso não impede um diagnóstico clínico!
S.F. – Penso que a questão do diagnóstico clínico vai além do ponto
de compreensão da coisa literária; pode ser interessante, mas é de uma
ordem diferente. Na tradição da psicanálise aplicada, supõe-se que o
diagnóstico explica o texto literário: o intérprete lê o texto em direção
à doença do autor. Vamos tomar Poe novamente, como um exemplo,
porque ele foi estudado não apenas por Lacan mas também, de outra
maneira, por Marie Bonaparte, cujo estudo sobre Poe constitui um mo-
delo – clássico – de psicanálise aplicada. Bonaparte reduz a poesia de
Poe à psicose ou à extrema neurose, ao ponto em que não há nenhuma
diferença entre poesia e doença: o texto é construído como um sinto-

343
ma – puro e simples – da necrofilia de Poe. Uma análise desse tipo per-
de completamente a marca, perde completamente a especificidade da
coisa literária. Marie Bonaparte não explica por que outros necrófilos
não produziram o trabalho de Poe. Da mesma forma, a necrofilia não
conta nem para a impressionante inteligência do texto, nem para sua
igualmente impressionante engenhosidade linguística, nem para
sua força de domínio consciente e de virtuosidade. Marie Bonaparte, em
outras palavras, conta apenas com a incompetência de Poe, não com sua
competência. E a competência literária não pode ser explicada apenas
através do tipo de incompetência que uma doença poderia acarretar.
Vamos tomar uma outra visada, em contraposição, com a abordagem
de Lacan de “A carta roubada”. Ela é iluminadora, precisamente por-
que Lacan é capaz de ver na narrativa um tipo de alegoria da pró-
pria psicanálise. Há duas cenas nesse teatro, se você se lembra, e a
leitura de Lacan realça o fato de que a segunda é uma repetição da
primeira, assim como a psicanálise pode ser, através da transferência,
a repetição da cena primitiva. De fato, a primeira cena, representada
por Dupin, impossibilita-nos de entender – ou melhor, de analisar – a
primeira cena (original), e essa análise produz a solução do problema,
literalmente o dénouement [desenlace] do drama. Dupin é, assim, para
Lacan, a figura do analista. Mas Poe também chama Dupin de poeta.
Que eu saiba, além de você, ninguém destacou esse importante fato.7
Então os dois personagens que se mostram capazes de escapar da po-
lícia – Dupin e o ministro – e que ocupam a posição estrutural que
Lacan identificou como sendo a do analista, são ambos, como se isso
fosse por acaso, chamados de poetas. De fato, é porque a polícia acre-
dita que, sendo poetas, eles são necessariamente loucos (exatamente
como Marie Bonaparte), que a polícia foi incapaz de encontrar o que
eles esconderam.
Então este é o meu ponto: para a psicanálise aplicada, que diagnostica
o escritor, não há dúvida sobre quem está no divã: ao extrapolar a si-
tuação psicanalítica para a situação literária, o escritor toma o lugar do
paciente, e o intérprete, o do analista. Embora Lacan não teorize sobre
isso explicitamente, depreende-se de sua análise que a figura do poeta
(Dupin) ocupa o lugar não do paciente, mas do próprio analista. O que
já é uma subversão e tanto.
Dessa maneira, penso que, na abordagem de Lacan, mesmo nos casos
em que a loucura do escritor é relevante, o status do escritor não é
simplesmente clínico. O analista e o paciente não são mais opostos:

344
se há loucura (de Dupin – ou de Poe), ela é também a loucura da in-
terpretação; se há alguém que tem um estatuto clínico, esse é tanto o
intérprete quanto o escritor. É o que me leva a dizer que há aí alguma
coisa radical que não pode ser reduzida a um simples diagnóstico.
Além disso, Lacan escolheu um título muito bonito para seu seminário
sobre Joyce: “Joyce, o Sinthoma”. O que se esperaria se fosse sobre um
diagnóstico seria, antes, “O sintoma de Joyce”. Como você pode ver,
“Joyce, o Sinthoma” é muito mais literário, porque é mais ambíguo,
mais incerto acerca do verdadeiro objeto da definição clínica: um sin-
toma de quê? De quem? Pode-se tentar fazer uma diferença de Lacan,
em relação a Freud, com base na ambiguidade do título: é a literatura,
ou o trabalho de Joyce que é o sintoma; ou Joyce, ele próprio, é o sinto-
ma da literatura? Para Freud, a literatura sempre constituiria o sintoma
de Joyce. Mas Lacan ao menos deixa aberta a segunda possibilidade,
e é assim que eu o entendo. Eu até mesmo extrapolaria – ativamen-
te – esse título e diria: se há loucura em Joyce, se há aí uma implicação
psicanalítica, essa loucura e essa implicação seriam antes um sintoma
da coisa literária, e não o inverso.
Mas novamente: essa oposição entre Freud e Lacan não é absoluta:
assim como a nova teoria literária não é tematizada por Lacan, mas
antes implícita em sua retórica, assim, também, há, dentro dos textos
de Freud sobre a literatura, uma teoria outra, diferente daquela que
ele articula conscientemente. Parece-me que Freud constantemente
simplifica sua impressão da coisa literária ao articulá-la demonstrati-
vamente. Mas é a complexidade da sua impressão da literatura que
o estimula quando ele não está falando sobre literatura e quando ele
não está, de maneira alguma, fazendo psicanálise aplicada. E talvez um
dos grandes méritos de Lacan tenha sido descobrir a coisa literária no
próprio Freud, ou seja, descobrir que as genuínas proposições teóricas
de Freud são todas cartas roubadas, escondidas a olho nu, onde menos
se espera que estejam.
Para colocar de outra forma, a teoria literária é, sem dúvida, o incons-
ciente da teoria analítica, e vice-versa. Assim como a psicanálise nos
ensina que ela implica o inconsciente, nós podemos dizer que a rela-
ção entre a psicanálise e a coisa literária é, por excelência, o que per-
manece insabido na teoria analítica.
P.S. – Não é apenas a psicanálise que tenta pensar sobre o que é
louco na coisa literária. Exceto pela ciência – cuja linguagem é prin-
cipalmente artificiosa para evitar trazer a questão à tona – a filosofia

345
sempre esteve também preocupada com essa questão. Você sabe que
Heidegger, por exemplo, continuou se perguntando o que a questão
do incontível, baseada na experiência de Hölderlin, tem a colocar
para qualquer metafísica. E não encontramos nenhum filósofo que
não tenha, em um ou outro momento, recorrido à literatura, seja
Sartre com Flaubert, Deleuze com Kafka, Foucault com Sade ou
Artaud, ou Derrida com, particularmente, Mallarmé. Você quer ver?
É uma figura que trago comigo. Existe um tipo de triângulo com três
pontos: em um deles, o discurso filosófico está brigando em duas
frontes, em relação à literatura, mas também em relação à psicaná-
lise; então, há o discurso analítico, que é obrigado a se diferenciar da
filosofia, no sentido tradicional, mas que é também constantemente
atravessado por questões literárias; e, finalmente, a literatura em si
mesma, o terceiro ângulo, que tem que responder tanto para a filoso-
fia quanto para a psicanálise.
Nessa configuração, como você localiza a coisa literária? Porque o
que você faz não é propriamente teoria psicanalítica, nem filosofia,
nem mesmo teoria literária, no sentido convencional do termo. Como
você define, então, a sua trajetória? Encontra-se no seu livro uma sé-
rie de escritores que permitem que você enraíze muito profundamen-
te as suas questões: Nerval, Rimbaud, Balzac, Flaubert, Henry James,
você cita Poe; falamos sobre Dostoiévski, Sófocles e Shakespeare – os
nomes poderiam fazer uma multidão, não poderiam? E, então, você
devotou, muito sintomaticamente, toda uma seção do seu livro à filo-
sofia (“Foucault/Derrida: a loucura do pensamento/sujeito falante”)
e uma outra à psicanálise: “Jacques Lacan: a loucura e os riscos da
teoria”. Você está exatamente onde a questão desse famoso triângulo
desponta. Então onde você situa a questão da filosofia com relação à
psicanálise e com relação à coisa literária?
S.F. – Acho que a filosofia moderna está para a filosofia clássica assim
como a psicanálise está para a psicologia. A filosofia clássica precisou de
Deus, da Razão, do Conhecimento Absoluto, do Sujeito Absoluto,
de maneira a colocar a questão: o que é o pensamento? Mas a questão
moderna que a filosofia coloca, diferentemente, é: o que é pensado na
ausência de qualquer Sujeito Absoluto do conhecimento?
Assim como a psicanálise pergunta: “o que é um sujeito, se a consciên-
cia não é tudo?”, a filosofia moderna pergunta: “o que é pensamento,
se o sujeito não é tudo?”. Sugiro, em meu livro, que a tarefa paradoxal
e contraditória da filosofia hoje é articular, em termos coerentes ou

346
contínuos, a radicalidade da descontinuidade. A posição de Lacan aqui
incorpora dois horizontes aparente e mutuamente exclusivos: de um
lado, ele procura encapsular o inconsciente numa simples fórmula ma-
temática; de outro, seu próprio estilo é tão complexo quanto é possível
ser complexo. Essas duas posições simetricamente contraditórias são
sintomáticas da dificuldade e da ambiguidade do que está em jogo na
cultura moderna: a busca por uma nova categoria de discurso, um dis-
curso que não seria, precisamente, o da razão clássica. Se tanto a psi-
canálise quanto a filosofia defrontam-se com a necessidade de quebrar
o Sentido, radicalmente “saindo fora” da epistemologia da presença e
da consciência, as duas têm problemas em erigir seu discurso ao nível
das suas descobertas e programas. Na medida em que a psicanálise,
como raciocínio teórico, pode às vezes parecer contar com categorias
clássicas, ela fica aquém de suas próprias descobertas. E, na medida em
que a filosofia, como raciocínio teórico, pensa que pode simplesmente
eliminar o problema do sujeito, ela também fica aquém de suas pró-
prias descobertas. O que ambas estão tentando articular é realmente se
a linguagem é capaz de dar conta dos efeitos da linguagem. A filosofia
tenta analisar a linguagem sem um sujeito; a psicanálise tenta analisar
como a linguagem subverte o sujeito. Parece-me, então, que o objeto
do discurso das duas é o mesmo: o que difere é onde ele é escrito, onde
ele é inscrito e como é endereçado.
Qual, de fato, pode ser uma destinação dessa ordem? Ela própria se tor-
nou ambígua. É curioso notar que, através do intercâmbio e da tensão
entre filosofia e psicanálise, cada uma das duas disciplinas procura se
endereçar à outra, buscando permanecer a mesma. Enquanto a psica-
nálise cresce, cada vez mais, fora de uma prática, hoje ela tenta ao má-
ximo se tornar teórica. Ao mesmo tempo, enquanto a filosofia é cons-
truída como o discurso teórico em si, ela, por sua vez, está tentando se
tornar uma prática: a prática inscrita no ato de escrever, cujos efeitos de
escrita são investigados para seu próprio bem e, assim, apontam para
um objeto completamente diferente da transmissão transparente de um
tema ou mensagem teóricos. A filosofia, em outras palavras, se aproxi-
ma da psicanálise e da literatura quando ela busca não apenas teorizar
sobre os efeitos da linguagem mas também fazer uso deles.
De certa maneira, pode-se, então, dizer que a filosofia busca se tornar
literária. Ela tenta implicar a coisa literária da mesma maneira que o
faz a prática psicanalítica. O paradoxo é que a psicanálise – teoria ou
prática – permanece cega para essa coisa literária que se agita dentro

347
dela. Como disse antes (e não vou me estender aqui) a coisa literária é
precisamente o que constitui a teoria analítica do inconsciente.
Então, enquanto literatura é a última coisa que a psicanálise, fortemen-
te afetada pela coisa literária, quer se tornar, a filosofia, sim, quer se
tornar literária, de certa forma.
Mas penso que, assim como na psicanálise, a coisa literária está im-
plicada na filosofia num lugar diferente daquele em que ela aparece ex-
plícita. Isso foi precisamente o que tentei examinar em meu livro, sob
a rubrica “Loucura e filosofia”. Nele, estudo o debate entre Foucault
e Derrida sobre o livro de Foucault, História da Loucura, ou, antes,
sobre a relação entre loucura e filosofia, como tal. Para Foucault, toda
a história do pensamento ocidental tem sido uma conquista violenta
da loucura pela razão: o gesto essencial da filosofia é de repressão ou
de exclusão da loucura. Derrida protesta e contesta a interpretação de
Foucault: pare ele, o gesto da filosofia não é o de excluir, mas o de dife-
rir a loucura. Há uma economia ali de aproximação e de evitação, que
é inerente ao discurso em si; a exclusão da loucura não é uma exclusão
histórica (“a grande discriminação”), mas uma exclusão constitutiva,
que intervém em todos, que nos força, ao falar da loucura – mesmo se
for para proclamá-la –, a fazê-lo na linguagem da razão. Aqui, então,
residem as duas interpretações que, na sua diferença mesma, consti-
tuem as tentativas mais poderosas e sugestivas de alguma teorização
sobre as relações entre loucura e filosofia. Mas o que me impressionou,
já que analisei de muito perto os dois textos em que essas teorias fo-
ram abordadas, foi a maneira pela qual os dois textos foram furtiva e
diferentemente invadidos pela questão da literatura que, todavia, nunca
foi realmente tematizada ou indagada como tal. É claro que a questão
literária vai ser forçosamente erigida em outros textos, por esses dois
filósofos. Mas aqui sua própria relação com a coisa literária permanece
sendo o insabido, no interior dessas duas teorias sobre a loucura.
P.S. – Você quer dizer que a literatura constituiria o seu desejo
mais profundo?
S.F. – Eu não o colocaria dessa forma. Os dois teóricos, antes de tudo,
usam a literatura, cada um à sua maneira. Mas, mais do que isso – e
isso é o que me impressiona a cada vez que tento analisar os textos –,
eles se confrontam com a literatura: a literatura entra em um ângulo
não a serviço da filosofia, mas, de certa maneira, apesar dela. Agora,
sem dúvida, não é por acidente que a questão da literatura emerge
dessa forma, quase espontaneamente, fora da questão da relação entre

348
loucura e filosofia. Mas esse fato não é teorizado, não é integrado à
teoria: é um resto da teoria. E é precisamente fora desse resto que o
texto filosófico, excedendo sua própria teoria, é também sustentado
pela coisa literária.
P.S. – Você pode, como conclusão, tentar definir: 1) o desejo do fi-
lósofo em relação à literatura; 2) o desejo do analista em relação à
literatura; 3) o desejo dos teóricos da literatura – e você é um de-
les – em relação à literatura; 4) e o próprio desejo da coisa literária,
na medida em que ela tem um desejo?
Como esses desejos cruzados e emaranhados – frequentemente iden-
tificados mas muito contraditórios – representam-se num palco que
é também a cena do poder sobre a linguagem? Como podemos ter
certeza de cada entendimento sobre a coisa?
S.F. – É uma questão difícil: todos esses discursos tentam articular al-
guma coisa como uma teoria do desejo – e você está me pedindo para
identificar o desejo por detrás dessas teorias do desejo… As ramifica-
ções da sua questão lançam uma ampla discussão, embora (desde que)
no que diz respeito ao desejo, não haja metalinguagem; cada teoriza-
ção é uma intervenção na cena do desejo e do poder. Vou tentar, então,
responder.
Como Platão sugere no Fedro, o desejo constitutivo da “filo-sofia” é, como
o nome implica, ser um “amante da verdade”, ou, mais exatamente,
um amante do saber. O que funda a filosofia como tal é, então, o de-
sejo de saber, o desejo de saber cuja autoconcepção tem, no entanto,
mudado ao longo dos anos. Enquanto a filosofia clássica visava ao
Saber Absoluto como seu objeto, a filosofia moderna tenta fazer de
seu objeto o fato de que essa coisa não existe, o que significa dizer
que o que a filosofia moderna quer saber é, paradoxalmente, de seu
próprio não saber. Eu disse, há alguns instantes, que a filosofia hoje
tenta ser literária. Esse desejo também tem uma relação com o saber.
A coisa literária consiste, na minha concepção, precisamente num sa-
ber que não pode saber de si, um saber que não é capaz de dizer o que
sabe. A relação da coisa literária com o saber é, então, totalmente dife-
rente da relação da filosofia com o saber: enquanto a filosofia clássica
pensava que poderia saber o que sabia, e enquanto a filosofia moderna
pensa que sabe que não sabe, a coisa literária sabe que sabe, mas não
sabe o quê. No entanto, a filosofia moderna quer precisamente saber o
que a coisa literária sabe, o que significa dizer que ela quer se tornar li-
terária enquanto permanece filosofia, e isso constitui seu double bind.

349
Vamos agora caminhar em direção ao desejo da psicanálise com re-
lação à literatura. De fato, já discuti isso: empreendendo a tarefa de
interpretar a coisa literária, o desejo primário do psicanalista é o
de confirmar a si mesmo, o de comprovar sua própria teoria. O que é
desejado é, então, uma autodemonstração da qual a literatura, no fi-
nal, é apenas um pretexto. Penso, entretanto, que tanto Lacan quanto
Freud manifestam um desejo que vai além da autodemonstração, algo
como um desejo escritural. O que se torna explícito no caso de Lacan,
cuja escrita constantemente afirma um “está escrito”. Aos meus olhos,
esse paradoxo lacaniano do “escrito para não ser lido” poderia preci-
samente definir o que quero dizer com a coisa literária.
P.S. –Essa poderia ser uma definição da coisa literária, tal como per-
cebida pelo desejo de se apropriar dela.
S.F. – Sem dúvida. E, de fato, pode ser dito que o desejo de se apropriar
da literatura impregna todos os discursos em questão e motiva tanto a
filosofia quanto a psicanálise.
Então o que dizer do meu próprio desejo? Sua questão me interpe-
lou como uma teórica da literatura: eu também quero me apropriar
da coisa literária? Seria ingênuo da minha parte pensar que isso seria
impossível, mas…
P.S. – O que isso faz na sua vida? Como você vive isso?
S.F. – Parece com um desejo de testemunhar algo, uma experiência
que percebo como crucial, mas não saberia como defini-la. Está mis-
turada com o pensamento e com o que não pode ser pensado; nasce
do que se quer contar sobre o que não pode ser evitado. Mas tenho a
impressão de que o que se diz sobre a coisa literária, que tem tão pode-
roso efeito em mim, é algo além do ponto abrangido. Isso não significa
que tive sucesso capturando a coisa literária, mas pelo menos tentei
falar sobre o valor do choque literário como tal.
P.S. – Você poderia me dar um exemplo de um tal afeto ou efeito?
Descrever para mim uma situação em que ele se manifestou?
S.F. – Seria difícil contar anedotas aqui…
P.S. – Vamos lá, só uma…
S.F. – Bem, ok, se você quer. Vou contar o que aconteceu uma vez,
quando estava dando aula sobre um texto literário. Eu estava precisa-
mente dando um curso sobre o assunto do meu livro, sobre loucura
e literatura e o problema da relação entre a loucura e a coisa literá-

350
ria. Estávamos lendo Aurélia, de Nerval. Como você sabe, em Aurélia,
Nerval não apenas conta o pesadelo de sua crise mas também, e espe-
cialmente, como ele escapou da tentativa de suicídio. Você também
sabe que Nerval, depois de terminar a história, realmente cometeu sui-
cídio: enforcando-se, pendurado em um poste. É, então, um suicídio
impressionante por ter sucedido sua negativa no texto, e ainda mais
eficaz e estranho por ser, em certo sentido, poético. Bem, depois de
uma das sessões do curso, um aluno, que eu mal conhecia, contou que
ele quase cometeu suicídio depois de ler Nerval! Era o meu primeiro
ano ensinando: não preciso te contar o quanto essa breve confissão me
chocou. Não foi exatamente isso de, então, eu ter começado a analisar
os riscos da profissão, mas de me dar conta do que aconteceu: isso me
ensinou o quanto a coisa literária não é apenas acadêmica e que, quan-
do se ensina literatura, pode-se involuntariamente colocar alguma coi-
sa às claras. Há uma ação da coisa literária, alguma coisa que pode
acontecer com as pessoas e talvez toque em assuntos de vida e morte.
Então, quando tento considerar a coisa literária, é também por isso que
quero testemunhar: que existe um poder na literatura – um
poder que opera completamente por si mesmo e do qual ninguém con-
segue se apropriar. Esse poder – que sinto em mim e sobre mim e cujos
efeitos nos estudantes eu posso ver –, tento analisar de onde ele vem,
em que ele consiste, aonde ele pode nos levar, o que ele pode nos dar.
P.S. – E se eu disser para você, por exemplo (porque isso retorna à
última questão, aquela sobre o desejo da própria coisa literária),
que esse poder tem um tal efeito, ou um tal poder, porque o que ele
propõe é precisamente a destituição de todo poder, você não pensaria
que há alguma coisa estranha acontecendo aí?
S.F. – É verdade. Isso iria de fato explicar porque um tal poder é frequen-
temente sentido como ameaçador: é um poder que carrega uma certa
estranheza. Para ilustrar esse poder e a ansiedade que ele evoca, pode-se
de novo voltar ao caso exemplar de Poe. Nós encontramos ali um efeito
literário de tipo poderoso, atestado pela influência internacional de Poe.
P.S. – Sim; e em que ele gastou todo seu tempo, senão, precisamente,
em descrever cenas de poder?
S.F. – As descrições de cenas de poder constituem uma das relações
textuais de Poe com o poder. Mas essa relação é mais complexa e opera
menos explicitamente em vários outros níveis que não esse da des-
crição temática. Eu gostaria de tentar analisar, primeiro e principal-

351
mente, a complexidade do poder do texto, atestado por sua estranha
influência. De um lado, existe a enorme, incontestável influência de
Poe no contexto francês, que o celebra como um gênio (para poetas
como Baudelaire, Mallarmé e Valéry, e para psicanalistas como Marie
Bonaparte e Lacan). E, por outro lado, na América, Poe é completa-
mente desvalorizado. Mas essa desvalorização crítica pode ser anali-
sada para testemunhar ainda mais poderosamente o poder ameaçador
de Poe. A vasta magnitude da literatura crítica produzida de maneira
a provar que Poe não tem qualquer importância é enorme. Diante de
uma quantidade tal, somos forçados a perguntar por que tanta gente
sentiu que era importante escrever sobre um autor menor para provar
sua falta de importância em grande extensão. Em tal caso, não é tanto
o que as pessoas dizem que é importante – o que atesta a importância
de Poe é o fato de que estão falando sobre ele em todos os níveis. Tal
recusa certamente será da ordem de uma negação.
Por outro lado, há a curiosa declaração de T. S. Eliot – quando ele mes-
mo participa da tradição da desvalorização de Poe –, de que nunca se
pode ter certeza, quando se escreve em inglês, que não se foi influen-
ciado por Poe. Isso é para dizer que a influência de Poe, o poder de
Poe é completamente insidioso, uma vez que ele escapa ao controle
da consciência de outros escritores. E eu não acho que tenha sido uma
coincidência o fato de Poe ter sido rejeitado pelas pessoas que falam a
sua língua nativa enquanto foi entronizado por aqueles que falam uma
língua estrangeira. Seu poder é menos ameaçador na tradução. Mas é
por causa desse poder que seus textos chamam pela tradução.
P.S. – Não é estanho que esse poder se vincule a uma impotência?
S.F. – Certo, seu comentário me leva de volta a uma outra das es-
tranhas relações de poder dos textos. É completamente fascinante ver
como todos os psicanalistas (com exceção de Lacan) relacionam a es-
crita de Poe à sua impotência sexual. E num esforço, sem dúvida para
se reassegurarem do que dizem, eles explicam que o escritor, incapaz
de relações normais, criou, em compensação por sua falta, todo um
universo de horror e destruição. Toda a cena crítica em torno de Poe,
então, relaciona-se, num caminho muito óbvio, ao poder: primeiro,
a ameaça é desviada, negando-se o valor ou a importância de Poe,
negando, assim, seu poder como escritor. Depois, a coisa toda é trans-
ferida para o domínio sexual e é proclamado que seu trabalho procede
diretamente de sua impotência sexual.

352
Mas sobre essa impotência eles deveriam antes consultar Artaud, que
disse coisas fundamentais sobre isso.
P.S. – Mas, ainda, admita que isso é muito estranho: chamar alguma
coisa de louca quando ela abandona todas as formas de poder.
S.F. – Sim, o que retorna à minha tese de que a loucura – seja o que
for que se nomeia como louco – tem uma ligação essencial com a coisa
literária. Essa ligação tem precisamente a ver com a complexa relação
entre a coisa literária e a cena do poder e especialmente com o fato de
que o que está se encenando fora do palco do poder não pode nunca
ser completamente entendido ou apropriado, assumido por aqueles que
o encenam.
No prefácio do meu livro, lanço a seguinte hipótese, que relaciona a
loucura e a coisa literária, ainda de uma outra maneira, à questão do
poder: observo que a cena contemporânea é governada por um para-
doxo: de um lado, a loucura é libertada e todos os códigos que a encar-
ceravam são deslocados; de outro, há uma espécie de tabu, ou de recal-
que da literatura. Já não é mais apropriado falar disso. Assim como a
loucura foi encarcerada em um asilo e submetida à redutora categoria
de doença mental, tende-se a confinar a coisa literária aos limites insti-
tucionais da literatura e finge-se não ter mais nada a ver com isso. Isso
é paradoxal, na medida em que todos concordam que é na literatura
que a loucura, silenciada e privada de linguagem em todos os outros
lugares, pode falar com relativa liberdade. Mas esse fato é curiosamen-
te esquecido, o que permite ao discurso da moda, dos dias de hoje,
negar e reprimir a noção de literatura, ao mesmo tempo em que pensa
estar liberando a loucura e conferindo-lhe um discurso. Então a aná-
lise dessa contradição sugeriu a seguinte hipótese: se, como Foucault
demonstrou, a loucura é precisamente constituída por sua repressão,
seria possível conceber para a literatura também, ligada a um espaço
de repressão, essa mesma constituição? É que, na qualidade de pensa-
mento, uma certa energia de repressão teve que ser dispendida: num
espaço de irredutível repressão, cada relaxamento (ou cada liberação)
vai solicitar uma nova repressão em outro lugar. E eu me pergunto se a
repressão contemporânea da literatura não foi uma compensação para
a liberação da loucura em outro lugar. O que você pensa?
P.S. – Penso que o que você diz está muito correto. Além disso, dentro
das palavras défoulement [unleashing; desenlace] e refoulement [repres-
sion; repressão] existe a palavra fou [mad; louco]… É plausível que,

353
quando o discurso social se fixa em uma ou outra palavra ou expe-
riência, é porque algum tipo de mutação está em processo: isso é
que é temido. Isso produz essa inflação do discurso sobre a loucura
e a concomitante repressão da literatura. O que é para ser temido é
que o futuro da coisa literária vai mostrar que nunca houve o locus da
loucura, mas, antes, um lugar do saber da verdade do sexo ou da his-
tória. É sobre essa verdade que ninguém quer ouvir. E é por isso que
a loucura é feita para falar mais e mais, para abafar a possibilidade
de que essa forma possa ser interpretada para servir a algum outro
propósito. Isso faz sentido para mim.
O que me interessa agora é descobrir o que você pretende fazer de-
pois, como seu pensamento vai se desenvolver.
S.F. – Eu gostaria de estudar esse conceito de linguagem performativa,
em relação à literatura, para seguir adiante com a ideia da coisa literá-
ria como um ato, que pertence ao registro, ainda tão enigmático, das
ações. Eu empreendi um estudo intenso, com isso em mente, do Don
Juan, de Molière…
P.S. – Mais um que você teria que necessariamente chamar de impo-
tente, certo?
S.F. – Certo! Don Juan constitui uma particular ameaça para os outros,
porque ele subverte todo poder e toda legitimidade. Penso que as rela-
ções entre linguagem e poder podem ser esclarecidas através de Don
Juan precisamente porque seus atos são estritamente atos de discurso.8
Uma outra coisa que estou tentando estudar é a polêmica em ge-
ral, porque lá novamente temos atos de discurso maquiando eventos
históricos.9
Comecei a imaginar se as polêmicas como tais vão levar a análises
teóricas. Eu gostaria de articular alguma coisa como uma teoria das
polêmicas.
Vou também continuar a explorar as relações entre literatura e psica-
nálise, agora focalizando especificamente a poesia, porque essa é a área
mais negligenciada pela psicanálise.10 Vou tentar entender por que a
psicanálise não tendeu a ser atraída pelos textos poéticos.
Essas são algumas das direções da minha pesquisa atual.

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NOTAS

1  Shoshana Felman, Tel Quel, Paris, n. 80, p. 73-83, 1978 e n. 81, p. 37-51, 1979,
entrevista concedida a Philippe Sollers.
2 Felman, La folie dans lóeuvre romanesque de stendhal, Paris, Corti, 1971.
3  Gustave Flaubert, Mémoires d’un fou, op. cit.
4  Num capítulo do livro em francês, não traduzido para o inglês, no poema “El
Desdichado”, de Nerval, Felman estuda a repetição e a forma da lírica. (N.T.).
5  Miguel de Cervantes, Don Quixote, tradução de J. M. Cohen, Harmondsworth,
Middlesex, Penguin, 1950, p. 936.
6  Ibidem, p. 937.
7  Philippe Sollers, Le Tri [Sorting], em Peintures, Cahiers Théoriques, n. 13,
p. 64, 1978.
8  Ver Felman, Le scandale du corps parlant: Don Juan avec Austin ou la séduction en
deux langues, Paris, Seuil, 1980.
9  Ver Felman e Dori Laub, Testemony: Crises of Witnessing em Literature,
Psychoanalysis and History, New York, Rotledge, 1992; Felman, O inconsciente ju-
rídico: julgamentos e traumas do século XX, São Paulo, Edipro, 2014; Felman, Le
discours polemique: propositions préliminaires pour une théorie de la polemique,
Cahiers de l’Association Internationale des études françaises, Paris, n. 31, maio 1979.
10 Felman, Jaqcues Lacan and the Adventure of Insight: Psychoanalysis in
Contemporary Culture, Cambridge, Harvard University Press, 1987; Felman, Le
scandale du corps parlant, Shoshana Felman, The Question of Reading: Otherwise,
Baltimore, The John Hopkins University Press, 1982.

355
POSFÁCIO

Neste posfácio, escrevo como tradutora e leitora de Shoshana Felman,


além de dar um testemunho de minha experiência docente com seu li-
vro A loucura e a coisa literária. Começo pelo último desafio, que foi ter
proposto a alunos de graduação, por volta de 1980, a leitura de capítu-
los desse livro impactante e necessário, tanto para mim mesma como
para esses alunos que, como Lucia Castello Branco, fizeram, na época,
alguns cursos comigo.
A questão era como lidar com a possibilidade desse enfrentamen-
to – literatura e psicanálise – tema que me levou a trabalhar, em semi-
nários, com psicanalistas do Círculo de Psicanálise de Minas Gerais.
Sempre me preocupava em não permitir que a literatura se reduzisse
a legitimar a psicanálise, através de interpretações semelhantes às de
Edmund Wilson, que Felman discute em seu livro, sobretudo no capí-
tulo que traduzi: “Henry James: loucura e interpretação”.
Foi uma época do triunfo do multiculturalismo na crítica literária
brasileira, avesso a considerar a literalidade do literário e pronto a
examiná-la sob o signo das ideologias vigentes. Vê-se que o desafio é
antigo e causador de inúmeras polêmicas, mas foi ele que, sem querer,
causou o outro desafio: o de refletir sobre a possibilidade de articu-
lações dos dois saberes. Tratava-se de verificar como se realizariam
essas articulações, dentro desse quadro que não se caracterizava por
privilegiar a literatura.
Lendo a entrevista de Lucia Castello Branco, realizada com a psi-
canalista, escritora e professora universitária Shoshana Felman, en-
trevista que “não deveu caber” neste livro, volto no tempo e destaco
justamente a questão da “especificidade do literário”, ponto fulcral da
teoria da literatura: a coisa literária, conceito que Shoshana nomeou
como tal, para não o reduzir depois a the literary thing, preferindo a
tradução “escrita e loucura”, para mais tarde voltar à “coisa literária”.
Voltas: os conceitos têm história, têm voltas, fazem voltas, vão-se cons-
truindo à medida que são pensados em circunstâncias várias.

359
Posso afirmar que há algo de babélico nos diálogos presentes neste
livro, algo que viaja por outros textos, outros autores, na impossível
tarefa de definir cada conceito de forma definitiva, quando eles têm
sempre uma abertura que acolhe a diferença, no tempo e nos diversos
contextos. Esses diálogos mostram como nascem e como se originam
dessa forma de enfrentamento, que é o embate de pontos de vistas
diferentes, que os fazem avançar, sempre atravessando ou se valendo
de paradoxos.
Não pode escapar a quem vai ler o livro que as principais figuras
em torno das quais volteiam os temas tratados são Freud e Lacan, seu
pensamento, suas formas de interpretação – o significante e a letra – e
o que de suas leituras marcou todo o século XX, não desaparecendo
no XXI, na medida em que há, tanto quanto na literatura, a força de
resistência da psicanálise.
As querelas, as identificações do intelectual entrevistador, Philippe
Sollers, mostram a presença viva da psicanálise não esgotada, não fe-
chada aos desafios, no panorama do século XXI. Além disso, confir-
mam o que afirmei sobre os conceitos se construírem nos diálogos,
no embate das ideias, nos pontos de vista que pontuam as diferenças
e as semelhanças das várias posturas. É dessa vertigem que nascem,
formando constelações que não se enclausuram em seus dogmas, pois
os diálogos são aberturas, discussões, encore…
No livro de Shoshana Felman, além dos escritores estudados, há
também não só referências a Freud e Lacan, como a poetas, filósofos
e linguistas, tornando seu pensamento uma rede de conceitos em per-
manente jogo de pensamentos, que apontam para além das estruturas
vigentes na época em que a autora escreveu A loucura e a coisa literária.
Tantos conceitos, tantas questões levaram Lucia a fazer um “bre-
ve glossário imperfeito de noções em tradução (em que se explicam
não-todas)”. Não-todas, pois não permanentes, não definidas, não de-
finitivas. Acrescento algumas dificuldades, especialmente no que se
refere à tradução do capítulo “Henry James: loucura e interpretação”.
Algumas armadilhas foram evitadas entre o francês e o português,
por exemplo: fantasme, em português, é “assombração”, na linguagem
comum, mas também é “fantasia inconsciente”. Em francês, “fanta-
sia inconsciente” é fantasme, fantôme é “assombração”. Fui seguindo
minhas intuições, ao optar por um ou outro significante, conforme o
romance ou a leitura de Felman indicavam.

360
O que mais me chamou a atenção nesse capítulo foi a escritora, ao
analisar o romance The turn of the screw, de Henry James, não ter ado-
tado a tradução existente em língua francesa, Le tour d’écrou, preferin-
do Le tour de vis. A explicação para essa preferência a própria autora
a dá, no corpo de seu texto, pois existe a expressão donner um tour de
vis, que, em português, seria: “não tratar severamente alguém”, “não
forçar”. Não “forçar a barra”.
A economia da expressão se revela na leitura de James, no momento
em que a personagem da governanta quer forçar as duas crianças das
quais é a tutora a confessar que viam fantasmas; e, na leitura analítica,
sugerindo que não se deve forçar o romance, reduzindo-o a uma inter-
pretação psicanalítica. Com esse gesto, a escritora dá várias voltas no
parafuso, muda de posição, quando necessário. E, segundo meu olhar,
faz girar sua leitura de acordo com os quatro discursos de Lacan, que
convido o leitor a descobrir.
Como tradutora, foi-me dado, através desse jogo de palavras, seguir
o raciocínio de Felman, que, ao mesmo tempo, critica de forma radical
as leituras ditas psicanalíticas da literatura, sobretudo a de Edmund
Wilson, e mostra como a literatura vai além, excede as interpretações,
devido à coisa literária, a seu ponto cego, seu ponto de silêncio, que é
também um ponto de resistência à leitura definitiva e totalizante.
Os seminários de Lacan, cujos títulos recorrem a jogos de palavras
em francês, assim como as citações lacanianas no corpo do texto,
por serem anotações de Shoshana Felman (que seguiu, na época, es-
ses seminários), traduzimos a partir do livro de Felman, segundo sua
orientação.
No caso do capítulo a que me refiro, ficamos sabendo, por sua entre-
vista a Lucia, que esse foi o único escrito em inglês, traduzido para o
francês, posteriormente, pela própria Shoshana. Assim, meu caminho
seguiu a travessia da autora, passando-o para o português a partir do
francês, numa tripla viagem. Para isso, às vezes recorri a meus amigos
franceses, Philippe Urvoy e Sylvie Debs, a quem muito agradeço.

Ruth Silviano Brandão

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SOBRE A AUTORA

Shoshana Felman é crítica literária e, atualmente, professora de


Literatura Comparada da Emory University. Especialista em literatu-
ra francesa, dedica-se, nos últimos anos, a questões relativas ao trau-
ma e ao testemunho. É professora emérita de Francês e de Literatura
Comparada da Yale University, onde lecionou de 1970 a 2004.
Felman trabalha principalmente na confluência da literatura com a
psicanálise, a partir das ideias de Jacques Lacan, que esteve, a seu con-
vite, na Yale University. Em profundo diálogo com o feminismo, em
articulação com o pensamento de Jacques Derrida, Paul de Mann e a
teoria dos atos de fala, de John Austin, Shoshana Felman, ainda pouco
traduzida no Brasil, é uma das mais fecundas pensadoras no campo da
teoria da literatura.

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