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Juracy Marques |

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

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Dr. Juracy Marques

A Ecologia de Freud:
Os Ecossistemas da Natureza
Humana

(1ª. Edição)

Petrolina – 2017
© Autor
Todos os direitos desta edição reservados à Juracy Marques
Coordenação Editorial
Juracy Marques

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V288p Marques, Juracy
A Ecologia de Freud: Os Ecossistemas da Natureza Humana, 2017. 194 p.

ISBN 978-85-5600-018-7 1. Psicanálise. Antropologia. Sociologia e Filosofia


CDDU 929
II. Título
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Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Contato com o autor: juracymarquespshy@gmail.com
A Ecologia de Freud:
Os Ecossistemas da Natureza
Humana

Dr. Juracy Marques


2017

O problema do planeta começa na


insustentabilidade do desejo humano.
O desejo humano é insustentável.
O problema da sustentabilidade é que o
desejo humano é insustentável.
Luiz Pondé
Fonte: www.cuekant.tumblr.com

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Apresentação
Que espécie é esta cujo desejo é insustentável? O que torna o desejo humano
insustentável se é que o é? Freud (1856-1939) dedicou uma vida em busca dessa
resposta. Mergulhou nos lugares mais profundos da mente e deixou, à humani-
dade, pistas de como entender o mistério da natureza humana.
Alguns estudos (RITVO, 1990; SACKS, 1998; ADES, 2001; MENDES, 1996)
revelaram a proximidade de Freud com o pensamento de Darwin (1809-1882),
Wallace (1823-1913), Goethe (1749-1832), Lamarck (1744-1829), Haeckel
(1834-1919), grandes expoentes do pensamento evolucionista dos séculos XIX
e XX, trazendo um aspecto de sua vida pouco conhecido.
Suas pesquisas no campo da zoologia mostraram quão apaixonado Freud fora
pela biologia, tendo, no início de sua vida, desenvolvido estudos em laborató-
rios de fisiologia, anatomia, neurologia, ao lado de grandes pesquisadores da
Universidade de Viena, como o professor de zoologia e diretor do Instituto de
Zoologia e Anatomia Comprada, Carl Clauss (1835-1899), o médico, professor
de fisiologia e diretor do Instituto Fisiológico, Ernst Brücke (1819-1892), e o
anatomista cerebral, neurologista e psiquiatra, Theodor Meynert (1833-1892).
Lucian Freud, extraordinário pintor figurativo do século passado, via seu avô
como um grande zoólogo, apaixonado pelo mundo animal. Sigmund Freud so-
nhava em um dia encontrar-se com um porco espinho, tão encantado era pela
parábola de Schopenhauer sobre a sociabilidade humana. Vira um, morto, na
ocasião de sua viagem aos Estados Unidos, em 1909. Como consolo, ganhara da
família Putnam, seus anfitriões, uma estatuazinha que passara a decorar o con-
sultório da Berggasse 19, em Viena.
O pai da psicanálise1, a qual se trata de um procedimento médico que visa à cura de
certas formas de doenças nervosas (as neuroses) através de uma técnica psicológica
1 O termo psicanálise denomina, concomitantemente, uma teoria psicológica, uma técnica terapêutica e um método de
investigação científica (BAIRRÃO, 2016).

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

(FREUD, 1913: 169), também conhecida como psicologia genética, era um bió-
logo encantado pela natureza. Isso sabemos, mas, aqui, quero demonstrar que se
trata de um dos maiores ecólogos humanos que a humanidade já teve.
A ecologia humana é a mais interdisciplinar das ciências que estudam o fenôme-
no humano. Esse campo de conhecimento, que teve como precursores os traba-
lhos de Durkheim (1858-1917), Darwin e do próprio Freud, foi sistematizado
na Escola de Chicago (EUA), nas primeiras décadas do século XX e objetivava
se constituir como um modelo de pensamento para a intepretação dos sistemas
humanos, culturais e naturais. Steiner e Nauser (1993: 24) a definem a partir de
uma perspectiva “trans-científica”.
Toma-se como marco da origem desse campo de conhecimento a publicação
do artigo Human Ecology no The Americam Journal of Sociology de autoria de
Robert Park, pesquisador da Escolha de Chicago (EUA), em 1936. Antes disso,
como escreve Iva Pires (2017), o primeiro registro que trata da Ecologia Huma-
na é um artigo de Harlan Barrows (1877-1960), intitulado Geography as Hu-
man Ecology, publicado em 1923 nos annals of the Association of American
Geographers. Barrows, na época da publicação desse artigo, era presidente da
Association of American Geographers, sendo este trabalho produto de uma
conferência que ele proferiu em Ann Arbor, em 1922.
Na maioria dos estudos, a ecologia humana é apontada como um paradigma cien-
tífico (BOMFIM, 2016), um sistema de ideias, níveis de pensamento interdisci-
plinar, multidisciplinar ou transdisciplinar (MACHADO, 1984: 23). Para Juan
Tapia (1993), trata-se de uma ética para a vida. Begossi (1993) destaca que a ecolo-
gia humana não é uma das ramificações da ecologia em si, ela transcende à ecologia.
Quando Darwin morreu (1882), tendo deixado ao mundo seu precioso traba-
lho sobre A Descendência do Homem e a Seleção Sexual, publicado em 1871, uma
das maiores referências a respeito da ecologia da espécie humana, Durkheim era
um jovem pesquisador, com 24 anos de idade. Para Iva Pires e Craveiro (2011),
o início da ecologia humana pode ser reportado aos trabalhos de Durkheim,
particularmente, suas reflexões sobre morfologia social e divisão do trabalho,
destacando que a adaptação da espécie humana é produto das pressões demográ-
ficas e disponibilidades de recursos.

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Darwin instituiu a perspectiva de análise da espécie humana ancorado no mode-


lo biológico, enquanto Durkheim analisava a dinâmica humana a partir da socio-
logia, ciência da sociedade recém-criada. Freud, contemporâneo de Durkheim,
para estudar o ser humano, não se prendera nem à biologia nem à sociologia. Seu
modelo inaugurou uma análise multidisciplinar da nossa espécie, acrescido da
revolucionária hipótese sobre a existência do inconsciente humano.
Assegura-nos Morin (2012: 65) de que o sentido do humano, a busca por uma
compreensão inteligível do que ele seja, desaparece em benefício dos genes para
um biólogo, das estruturas para um antropólogo estruturalista, de uma máquina
determinista para um mau sociólogo e, hoje, diria, para os algoritmos na visão de
um dataísta. Freud tentara escapar dessas reduções classificatórias quando pen-
sava o ser humano.
A psicanálise foi recebida nos braços da literatura, nas artes plásticas, particular-
mente entre os surrealistas, bem ou mal, no meio médico e neuropsiquiátrico, na
propaganda e no marketing, no cinema, na antropologia e em muitos outros es-
paços do conhecimento humano. Entretanto, nunca na ecologia. Freud concebia
sua teoria como uma ciência que teria como finalidade traduzir a epopeia psíquica
da espécie humana e de sua origem na língua dos mitos (ROUDINESCO, 2016:
236).
O pai da psicanálise não se deixava enquadrar nas nomenclaturas, não se
definia psiquiatra, nem médico, nem sexólogo. Havia, desde Freud, a aposta
numa perspectiva de análise para além das fronteiras disciplinares que liam o
comportamento da espécie humana. Roudinesco (2016: 156) traduz bem esse
espírito livre e inclassificável de Freud: Era antes de tudo um médico da psique,
um humanista das palavras, do sonho e das mitologias, um clínico do sofrimento
solitário, um homem de ciência formado em neurologia e na fisiologia. O mundo da
psiquiatria, com suas classificações normativas, seu universo asilar, sua observação
dos corpos e comportamentos, esse mundo, politicamente organizado como um Es-
tado dentro do Estado, mundo fechado – o de Bleuler, Jung, Binswanger e muitos
outros – não era o seu.
Temos, portanto, uma ecologia dos bichos e das plantas, oriundas da biologia, e
uma ecologia da espécie humana, que nasceu das fronteiras de diferentes campos
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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

de saberes, entre os quais a psicanálise. Roudinesco (2016: 251) mostra-nos que


Freud fundara uma “disciplina” que não podia se integrar ao campo das ciências
em si, tampouco das ditas ciências humanas. Muitos cientistas colocaram a psi-
canálise do lado da literatura, diz-nos. Para a antropologia e a sociologia, ela era
pensada como um novo nascimento das antigas mitologias. A psicologia sentia-
-se ameaçada. Para filósofos, era uma estranha psicologia, muitos até apontando
que se tratava de uma reescrita nietzscheniana.
Sabemos dos sonhos iniciais de Freud com a Filosofia. Em 1925, dirá: Li Scho-
penhauer muito tarde na vida. Quanto a Nietzsche, o outro filósofo cujas ideias e
percepções muitas vezes coincidem da maneira mais espantosa com os resultados la-
boriosos da psicanálise, evitei-o durante muito tempo precisamente por esta razão; o
pioneirismo na descoberta me importava menos do que não ter prevenções (in ROU-
DINESCO, 2016: 250).
Importante avançarmos quanto ao entendimento do que é a vida, base central
das ciências naturais. Parte da ecologia clássica a compreende como um animal
num jardim zoológico. Como regra, a vida não-idealizada é insubmissa (GO-
DOY, 2008: 23). A psicanálise, parece-me, tentou dizer algo que não sirva à
submissão, desvelando-a, e isso é algo caro ao pensamento ecológico, trazendo o
nômade no lugar do sedentário, o móvel no lugar do fixo.
Pensar analiticamente é como, ao nos deslocarmos do continente, perceber que
ele não deixa de ser sólido porque o experimentamos, agora, como líquido, inau-
gurando uma solidez na liquidade e, assim, tendo outro parâmetro para pensar a
ecologia que, segundo Godoy (2008: 26), é a gramática da vida.
A psicanálise foi trazida ao mundo por Freud e não pode ser lida como uma teo-
ria da clínica, apenas. É algo além disso. Roudinesco (2016: 135), na sua memo-
rável biografia sobre o criador desse revolucionário método de investigação hu-
mana, descreve a criação freudiana como uma estranha disciplina a meio caminho
da arqueologia, da medicina, da análise literária, da antropologia e da psicologia
social mais abissal – a de um mais além do íntimo. A psicanálise é uma ciência que
tenta explicar a vida pela perspectiva da interligação dos saberes, de suas interde-
pendências. Freud exercitou esse modelo até as últimas consequências.

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Teóricos da ecologia humana contemporânea situam-na numa dimensão adis-


ciplinar (DYBALL, 2009; LAWRENCE, 2001). Robert Dyball (2010: 275)
afirma que a ecologia humana é uma forma de construção do conhecimento sobre
as interações entre seres humanos, suas culturas e seus ecossistemas. Para Machado
(1984: 33), a ecologia humana deixa de ser um capítulo de uma ciência, não é
uma síntese de todas as ciências nem o estudo de áreas marginais de diferentes dis-
ciplinas, nem constitui a soma de áreas limitadas de diferentes ciências. É, ratifica,
um novo nível de pensamento ao alcance de diferentes disciplinas. Iva Pires (2011)
afirma que a perspectiva central da ecologia humana é de uma inadiável compati-
bilidade entre a sociosfera e a biosfera2. Em síntese, a ecologia humana visa estudar
as interações homem-ambiente (MORAN, 1999; 1994).
Nunca, em nenhum momento da história, se tornou tão urgente o estudo da
nossa espécie e suas relações com os ecossistemas. Antes, como assegura o es-
critor e professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, Yuval Harari (2016:
12), tratava-se de um agrupamentozinho de animais insignificantes, cujo impac-
to no ambiente não era maior que o de gorilas, vaga-lumes ou águas-vivas e que
ninguém imaginaria que seus descendentes viajariam a lua, dividiriam o átomo,
mapeariam o código genético e escreveriam livros, nem que seriam capazes de,
técnica e emocionalmente, organizarem as possibilidades para sua própria des-
truição. Freud ambicionava organizar uma ciência que dissesse algo plausível so-
bre essa complexa espécie.
Como mostra o percurso do pensamento de Freud, vemos o ser que, desde cedo,
rompera com as caixas das disciplinas, tendo estudado filosofia, teologia, litera-
tura, direito, psicologia, antropologia, sociologia, mitologia, bruxaria, linguísti-
ca, arqueologia, artes, biologia, zoologia, neurologia, psiquiatria, estética3, reli-
giões, escultura, geologia, química4, tentando evidenciar, diria mesmo, costurar,
uma complexa teia de conhecimentos para explicar o fenômeno humano.
Destaca-se, nessa seara, as grandes contribuições de Darwin, que situou, de forma
mais precisa, o ser humano como um animal natural e emprestou ao pensamento

2 O ecossistema dos ecossistemas (GODOY, 2008: 90).


3 A estética humana possui uma raiz profunda, anterior ao ser humano (MORIN, 2012: 133).
4 Freud fez dois semestres no laboratório de química do Dr. Carl Ludwig (ROUDINESCO, 2016: 43).
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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

de Freud a poderosa ideia da horda primitiva, uma hipótese para a origem das
sociedades5 humanas, em que machos fortes e ciumentos dominavam as fêmeas
e expulsavam os filhos e outros rivais. Esse é um recorte do que chamamos mi-
tologia freudiana. Roudinesco (2016: 250) nos diz que o que Freud resgata de
Darwin é o romance trágico de um homem que, após tomar-se por um deus, percebe
que é diferente do que julgava ser: um assassino, ou o descendente da espécie animal.
A descrição das observações de De Waal (in REGO, 2005: 197) sobre o com-
portamento de chimpanzés de Arnhem, num zoológico holandês, reafirma a
tese darwiniana da horda que tanto seduziu Freud: Eu às vezes me sinto como se
estivesse estudando a horda primitiva de Freud; como se uma máquina do tempo
me tivesse levado de volta aos tempos pré-históricos, de modo que eu pudesse ob-
servar uma aldeia de nossos ancestrais (...) quando Yeroen era o macho alfa, ele
sozinho era responsável por três quartos das cópulas. Se não contarmos as cópulas
com fêmeas jovens (que despertam menos rivalidade), sua quota era quase 100 por
cento. Ele possuía o monopólio sexual neste grupo. Essa situação terminou quanto
Luit e Nikkie se revoltaram contra ele. Yeroen não foi cortado em pedaços, mas ele
nunca mais foi capaz de conquistar novamente algo parecido com a sua antiga
quota de atividade sexual. Além disso, nenhum outro macho tornou-se forte o su-
ficiente para monopolizar as fêmeas no estro tão completamente como ele o fazia
antigamente.
As ciências, como os grandes impérios, ergueram-se afirmando seus brasões,
suas bandeiras. O pensamento disciplinar que marcou a estrutura desses reina-
dos tornou-se os portões desses enigmáticos castelos. A dicotomia clássica entre
ciências naturais (mecânicas) e ciências humanas (sociais) foi a marca do pensa-
mento da humanidade desde sempre na história das ciências, mas, sobretudo, a
partir do século XVII, com o advento do positivismo. Uma das marcas do pen-
samento freudiano é a ruptura com esse modelo dicotômico entre o naturalismo
e as humanidades.
Hilton Japiassu (1976: 19), em seu livro Interdisciplinaridade e Patologia do Sa-
ber, captura esse momento da tradução da escrita freudiana a respeito das ciên-
cias do homem: Todas as intenções, afeições e significações constitutivas da presença

5 Adorno afirma que a sociedade é um conjunto de indivíduos e a negação deles (in MORIN, 2012: 169).
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humana aparecem, então, como tantos outros obstáculos à verdade, como outras
tantas ilusões que convém destruir. O mundo familiar das evidências, do coração e
da fé, das crenças e das paixões contraditórias, converte-se num universo geometri-
zado onde reina a luz fria das demonstrações matemáticas. A racionalidade cien-
tífica desnatura a natureza e deshumaniza o homem. Freud, médico, neurocien-
tista, distanciara-se desses elogiados modelos mecânicos para se permitir pensar
em outras fissuras que trouxeram novas luzes sobre o comportamento humano.
Mas qual modelo de ciência se adequa ao estudo científico dessa complexa espé-
cie? Simanke (2009) discute que nessa guerra as ciências sociais sempre ficaram
em desvantagem, restando-lhes a estratégia de reivindicar outra ordem de cien-
tificidade, como assegura o surgimento da sociobiologia, a expansão das neuro-
ciências, particularmente a estruturação da neuroética e mesmo a afirmação da
ecologia humana, cujas tentativas de classificações, ao lado das ciências naturais
ou sociais, parecem estéreis. Alguém já viu uma pedra, um vírus, uma formiga
fazer ciência? Todas as ciências são humanas. São feitas pelos humanos.
No caso específico do campo da psicologia, ressalta Simanke (2009), observa-
mos, nitidamente, uma declarada organização inspirada na dicotomia. De um
lado, aquelas psicologias mais inclinadas ao naturalismo (funcionalistas, beha-
vioristas, cognitivistas e os evolucionistas); do outro, os que se agrupam no ter-
reno das humanidades (os psicólogos culturais, os fenomenologistas, os huma-
nistas, entre outros).
Simanke (2009) destaca que essas dicotomias, historicamente, foram sempre
contraproducentes, descrevendo que a psicanálise, nesse cenário, tornou-se uma
notável exceção, embora, assegura, entre as escolas pós-freudianas encontramos
os psicanalistas antinaturalistas, como é o caso do culturalismo norte-ameri-
cano, a psicanálise existencial, a psicanálise lacaniana, entre outras, bem como
aquelas filiadas ao naturalismo, a exemplo da psicologia do ego e dos neuropsi-
canalistas. Freud alertava que toda conversão é uma limitação. Em boa medida,
o freudismo virou uma religião.
Mezan (in REGO, 1988: 244), importante psicanalista brasileiro, vai destacar
que a criação freudiana está organizada, hoje, no mundo, sob o signo da disper-
são: cada corrente possui de si mesma e de seus adversários uma imagem idêntica:
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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

é ela a fiel depositária das descobertas de Freud, e as rivais não passam de traidores
execráveis de seu legado. São espelhos do arco-íris das interpretações bíblicas.
Uma leitura cuidadosa da obra de Freud mostra que ele não se aventurou pelas fendas
dessas rupturas científicas. Sua produção, desde seus primeiros estudos da histeria até
sua última obra, Moisés e o Monoteísmo (1939), deixa claro que a ciência natural é, ou
deveria ser, ciência social, humana, cultural. Freud escreveu: A psicologia também é
uma ciência natural. O que mais ela poderia ser? (in SIMANKE, 2009).
Simanke (2009) desnuda um Freud ao lado de um naturalismo integral, que
abarca tanto o psiquismo individual quanto o social, abordando tantos os as-
pectos psicodinâmicos e impulsivos da mente quanto sua dimensão qualitativa,
experiencial e subjetiva.
Como modelo adisciplinar, Freud nos instiga a abrir as formas, borrar as linhas,
ir além da vizinhança, derrubar paredes, transbordar os conceitos, as definições,
as classificações e, sendo estranho, deixar de ser estranho, pois só se pensa o pen-
samento na estranheza. Nada do que é humano me é estranho, escreveu Freud.
Sua verdade, que é a disciplina, é limitada ao deciframento do enigma humano.
Como saber terminal sobre a partialidade dos fenômenos, suas elaborações são
como cadeados, trancam ao invés de libertar, como está a vida presa ao orga-
nismo, e mesmo este nas grades da pele humana. É preciso atravessar a pele e
transpassá-la para penetrar Freud.
Há na disciplinaridade uma grave contradição: absurda-se com a totalização,
com o pensamento englobante e defende a natureza alienante das partes. Tam-
bém o fragmentário. A não totalização alienante o assusta. Heidegger afirmou
que questionar estilhaça a separação das ciências em disciplinas compartimentadas
(in MORIN, 2012: 17). Compreende-se pelas margens, pelos contornos, pelo
não transbordamento num certo sentido da totalidade.
Há sempre uma totalidade aprisionada nos contornos das disciplinas. Nego a to-
talidade e me fragmento, mas mantenho a totalidade da crença de que o fragmento
ameaça a totalidade. Um esquisito paradoxo, próximo ao conceito de negação em
psicanálise, em que finjo não existir o que existe tornando a minha existência um
fingimento. As classificações são totalidades das fragmentações e, conforme pensa
Morin (2012: 100), o separável e o inseparável são inseparáveis.
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Um bom exemplo dessa dimensão são as linhas que definem os estados nacio-
nais. O que separa a União Europeia da Síria, da África, são barreiras políticas,
linhas imaginárias que separam o humano do humano. Um deles lido como ani-
mal, como colonizado, como inferior. Os meridianos, os paralelos, esses rabiscos
que fatiam a Terra, de fato, são alucinações que demarcam separações. Só exis-
tem como separações.
Antes, se um dia retomarmos nosso ponto de ligamento como humanos todos,
nas nossas todas diferenças, perceberemos essas demarcações como linhas que
contornam profundamente nossos vazios, essa solidão infernal que nos domina.
Na existência, somos um borrão, uma mancha que carece de linhas, de contor-
nos que aprisionam o que ficará sempre fora. Somos ausentes quando presentes.
Freud não se descuidou dessa topologia da presença-ausente e foi buscar no in-
consciente um lugar para encontrar escondido o humano de nós, ou seja, em
fortalezas onde está aprisionada a nossa frágil criança.
Harari (2016: 374) nos dá uma prova inconteste de como a humanidade é cor-
tada por linhas esquizofrênicas: As nações síria, libanesa, jordaniana e iraquiana
são produtos de fronteiras aleatórias desenhadas na areia por diplomatas franceses e
britânicos que ignoraram a história, a geografia e a economia da região. Esses diplo-
matas determinaram em 1918, que as pessoas do Curdistão, de Bagdá e de Basra
seriam, dali em diante, “iraquianas”. Foram primordialmente os franceses que de-
cidiram quem seria sírio e quem seria libanês. Saddam Hussein e Hafez al-Assad
tentaram o possível para promover e reforçar sua consciência nacional fabricada por
britânicos e franceses, mas seus discursos bombásticos sobre a natureza supostamente
eterna das nações iraquiana e síria eram palavras vazias. Isso vale para a América
luso-espanhola e, como estamos assistindo, para as políticas insanas de proibição
de emigrantes mulçumanos nos EUA, que já começou a construir o muro que os
separarão dos seus vizinhos mexicanos. Somos, estranhamente, parte isolada de
uma bio-esfera, a Terra.
A biosfera, termo criado pelo geólogo austríaco Suess e desenvolvido pelo geo-
químico russo Wladimir Vernadsky, em 19206, concebe e encerra em si o ciclo
da vida, não a transborda. Isso também ocorre com o conceito de ecossistema

6 In Godoy (2008: 97).


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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

de Tansley, como uma contraposição, em que a noção de sistema, de totalidade


do sistema, deve ser tomada no sentido dado ao termo “sistema” em física. Os ecos-
sistemas corresponderiam à unidade básica da natureza na superfície terrestre;
tomados como unidades matemáticas, eles não seriam dados brutos da natureza,
mas unidades de cálculo aptas para extrair valores numéricos quantificáveis e não
conjuntos vagos (GODOY, 2008: 96).
Assim, a noção de ecossistema também se define por telas de fronteiras, por li-
nhas esquizofrênicas. Igualmente, o conceito de biodiversidade7, a biosfera das
biosferas, cunhado em 1980 por Walter Rosen8, uma tentativa de vincular todas
as coisas dos ecossistemas, tornou-se o mantra dos conservacionistas, uma luta
pela proteção da natureza da antinatureza humana. Só futuramente viria apare-
cer o termo sociobiodiversidade, num esforço estranho de incluir a espécie hu-
mana como biodiversidade. Os ecossistemas humanos são, antes, possibilidades,
a exemplo da sua total destruição.
Esses conceitos, base da história do pensamento ecológico, não problematiza-
ram o lugar que ocupa a espécie humana na sua condição singular de existência,
direcionando suas percepções mais às dinâmicas das plantas e dos outros bichos
não humanos. A preocupação ecológica voltada para a espécie humana é algo
recente, como atual é seu desconhecimento. Mesmo os avanços nesse sentido,
como o assegurado pela ecologia humana, ainda pensam a nossa espécie sem a
complexidade merecida ao buscarmos entender a dinâmica do bicho humano na
existência total da vida. Eis o esforço incansável de Freud, cujos desdobramentos
não podemos negligenciar.
Deveríamos aprender com a natureza. Nela, não há uma linha que separa as cores
do arco-íris, antes, há uma abertura em suas fronteiras que faz surgir novos tons.
Uma cor se empresta ao espírito da outra. E mais, sempre mais que isso, como as
notas musicais, os tons, em sua solidão, não se tecem como alma, mas são seus
abraços, seus intensos abraços, tocados pelo “sol”, que se desvirginando para fora
dos seus contornos sonoros, fazem surgir as canções nunca aprisionáveis. Não

7 Mediadora de sistemas ecológicos e sociais para a valorização das espécies e gestão dos recursos biológi-
cos (Convenção Sobre Diversidade Biológica – Decreto Legislativo 2-94, artigo 2).
8 In Godoy (2008: 133).
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há nenhum lugar onde se guardam as músicas, que nunca são reduzidas às notas,
senão, no espaço infinito do espírito humano. Sinto, elas moram em silêncio no
coração do céu, um lugar sem paredes.
A espécie humana como possibilidade não é aprisionável. O que na sua história
lembrava ser um fim, a morte, hoje, parece-nos, não limita em nada seu desejo de
imortalidade. Harari, em Homo Deus, afirma que a nova agenda da humanidade
para o século XXI é a imortalidade9, a felicidade e a divindade. Supõe: o homem
deseja se tornar “um deus”.
Ratifica que a humanidade ambiciona conquistar a amortalidade, ainda na pri-
meira metade do século XXI, como provam as volumosas pesquisas sobre essa
dimensão, financiadas por gigantes econômicos como o Google, cuja subcom-
panhia, chamada Calico, tem como missão “resolver a morte”.
Seu fundo de investimentos Google Ventures está aplicando 36% de sua carteira
de dois bilhões de dólares em star-ups na área de biociência, inclusive projetos
ambiciosos relacionados com a prorrogação da vida. Para isso a medicina terá
não só de realizar a reengenharia das estruturas e dos processos fundamentais do
corpo humano como também descobrir como regenerar órgãos e tecidos (HARARI,
2016b: 34; 37).
Esses desdobramentos só serão conquistados graças aos modelos polidiscipli-
nares, da era contemporânea, que tem a nossa espécie, seus complexos sistemas
bioquímicos e socioambientais como referências, incluindo-se, aqui, a ecologia
humana. A psicanálise, também atenta ao corpo, não deve apartar-se da questão
de como ficará a psique do Homo Deus, qual seria, por exemplo, o novo lugar das
religiões para um ser que dispensaria a eternidade espiritual? Como seria ter um
relacionamento amoroso com uma pessoa por 200, 300 anos? Qual o destino
dos sistemas de previdência? Se de sete bilhões pulássemos para 14 bilhões de
imortais, como ficaria a produção de alimentos e o uso dos bens da natureza para
a sobrevivência de um mundo superpovoado? O que a humanidade fará com
a massa de inúteis gerada pela excessiva quantidade de mão de obra desligada
das forças armadas em todo o mundo e de outras profissões substituídas pelas
9 Não quero atingir a imortalidade por meio do meu trabalho. Quero atingi-la não morrendo, disse Woody
Allen (HARARI, 2016b: 38).

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

máquinas? Amortais escolheriam a imortalidade mesmo ou, cansados por não


morrerem, optariam pela eutanásia e pelo suicídio existenciais? Quais os novos
sintomas que surgiriam com uma alma amortal?
Questionamo-nos qual seria, no século XXI, a ciência do homem capaz de dar
conta dessa nova estética da humanidade. É possível pensarmos num modelo
para essa tarefa neste novo século?
A disciplinaridade é conceber um rio contido em suas próprias margens, sem
nascente nem foz, sem ciclos, sem história, sem vida. Freud foi além das mar-
gens, deixou o lugar “confortável” da medicina e da neurologia para mergulhar
nas águas profundas da alma humana, e isso só foi possível porque ele viveu a
in-disciplina. Freud foi transdisciplinar. A transdisciplinaridade é quando o pen-
samento torna-se sentimento, fazendo a travessia com seus próprios atravessa-
mentos e repousando onde nada está terminado, parado, nem mesmo no lugar
da mentira ou da falseabilidade, quem dirá na verdade ou no coração da lei.
Neste livro, busco trazer a psicanálise para um público que não a lê, biólogos e
ecólogos, em especial, e a ecologia humana para a psicanálise, que, igualmente,
não a conhece. Essas separações repetem o equívoco que mantém as fragmenta-
das percepções sobre a espécie humana. Cada época e lugar inventou, escreveu
e esculpiu uma imagem do pai da psicanálise. Aqui, eu escrevo sobre o “Freud
Verde”.
Os escritos de Freud, reunidos hoje em mais de 23 volumes, incluindo-se livros,
artigos e cartas, produzidos ao longo de 40 anos de trabalho, são testemunhos
desse esforço de pensar o ser humano fazendo uso de diversos campos do co-
nhecimento, como propõe o modelo científico da ecologia humana. Parte subs-
tancial desse acervo encontra-se no Freud Museu de Londres e na Biblioteca do
Congresso de Washington.
Seu sistema de pensamento sobre a espécie humana e suas relações com o mun-
do, com a humanidade, com as sociedades, culturas e civilizações, sua concep-
ção de homem, aproxima-se do paradigma estrutural da ecologia humana, antes,
complexo e sistêmico, anti-disciplinar, adisciplinar, transdisciplinar, que vai na
direção do que propõe Marcuse (1898-1979): A fronteira tradicional entre psi-

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Juracy Marques |

cologia, de um lado, a política e a filosofia social, do outro, tornou-se obsoleta em


virtude da condição do homem na era presente: os processos psíquicos anteriormente
autônomos e identificáveis estão sendo absorvidos pela função do indivíduo no Es-
tado – pela sua extensão pública. Portanto, os problemas psicológicos tornaram-se
problemas políticos: a perturbação particular reflete mais diretamente do que antes
a perturbação do todo, e a cura dos distúrbios pessoais depende mais diretamente do
que antes da cura de uma desordem geral... A tarefa é, antes, desenvolver a substân-
cia política e sociológica das noções psicológicas (1999: 25). Freud, desde sempre,
esteve atento a isso, embora, na atualidade, pouca atenção tem sido dada, pelas
escolas clássicas de psicanálise, à substância política das noções psíquicas freu-
dianas.
Sigmund fora um herdeiro rebelde do Iluminismo do século XVIII e, pensando
no primeiro ano da sua universidade, escreveu ao amigo Silberstein: Vou dedi-
cá-lo inteiramente ao estudo de temas humanísticos, que não têm absolutamente
nada a ver com minha futura profissão, mas que não serão inúteis para mim (GAY,
1989: 43).
Lucille Ritvo, no seu precioso trabalho A Influência de Darwin sobre Freud
(1992: 253), vai falar sobre a forma como o pai da psicanálise entende a im-
portância do hambiente10 (espaço humano da natureza) sobre a nossa espécie:
Freud substituiu a etiologia da histeria pela mancha hereditária, que aprendera
com Charcot, por uma etiologia ambiental, as seduções na infância. Quando ele
percebeu que essas seduções eram, na maior parte, fantasias inatas, ele especulati-
vamente recuou o meio ou experiência para a história da humanidade. Sua grande
elaboração sobre o hambiente, sobre a natureza, diz respeito à sua teoria do des-
tino e às exigências da vida (1915).
Depois da teoria da evolução das espécies, as questões genéticas ganharam des-
taque em todos os ramos da biologia e em outros campos do conhecimento. A
própria psicanálise tem na genética um de seus pilares. Anna Freud (1895-1982)
10 Neste texto, base da conferência para o Congresso de Etnopsicologia da USP (2016), que me permitiu
unir três campos de conhecimento, os quais tenho estudado, sobretudo, em meu trabalho no mestrado de
Ecologia Humana da UNEB - a psicanálise, a antropologia e a ecologia -, escreverei ambiente (hambiente),
alma (halma), espécie (hespécie), ecologia (hecologia) e ecossistema (hecossistema) nessas formas en-
tre parênteses, para situar, efetivamente e de maneira radical, o lugar singular da marca humana nesses
fenômenos de suas existências.
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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

afirmou que nunca houve qualquer dúvida sobre a psicanálise como psicologia ge-
nética. O ponto de vista genético teve existência reconhecida desde o momento em
que a investigação psicanalítica se voltou dos problemas neuróticos da vida adulta
para seus precursores na infância e demonstrou o impacto de acontecimentos e pa-
drões precoces ou posteriores (in RITVO, 1992: 248).
Freud (1920: 64) defendera, em Além do Princípio do Prazer, que a psicanálise
deveria lançar seus olhares para o campo da biologia, afirmando: A biologia é,
verdadeiramente, uma terra de possibilidades ilimitadas. Podemos esperar que ela
nos forneça as informações mais surpreendentes e não podemos imaginar que res-
postas nos dará, dentro de poucas dezenas de anos, às questões que lhe formulamos.
Poderão ser de um tipo que ponha por terra toda a nossa estrutura artificial de
hipóteses.
A psicanálise não identifica esse passo mágico que a biologia suscita à estrutura
psíquica. Como afirma Morin (2012), é a cultura que opera uma mudança de
órbita na evolução. São as culturas que se tornam evolutivas. O ser humano sem
ela seria um primata do mais baixo escalão. A psicanálise estuda o psiquismo
nesse fluxo entre o biológico e o cultural. A biologia cultural de Freud não é da
mesma ordem da cultura biológica dos naturalistas.
Em Novas Conferências Introdutórias sobre a Psicanálise (1932: 120), destaca a
prevalência do fator biológico inamovível e da necessidade de uma psicologia
biológica, destacando que estamos estudando os concomitantes psíquicos dos
processos biológicos, de alguma forma, estava situando a psicanálise nesse ca-
minho intermediário entre a biologia e a psicologia. Longe de Freud, está pro-
pondo uma topografia localista do psiquismo humano, embora reconheça, por
vezes, que as atividades mentais estejam relacionadas às atividades do cérebro.
Em O Interesse Científico da Psicanálise (1913b: 217), julga que o psicanalista
deva, inclusive, manter certo afastamento de considerações essencialmente bio-
lógicas, mas que, depois de feito o trabalho psicanalítico, deva encontrar um
ponto de contato com a biologia.
Freud sempre foi um pai que permitiu que sua filha, a psicanálise, namorasse
outra mulher, a biologia. Via nelas relações que poderiam levar a grandes desco-

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Juracy Marques |

bertas, mas nunca perdeu de vista que sua filha devesse ter suas próprias roupas
e morasse em sua própria casa. Era contra a vida de aluguel. Assim tratou, res-
peitosamente, a força inovadora da biologia. Entretanto, com sua morte, parte
significativa dos psicanalistas deixou de ver os enraizamentos freudianos da psi-
canálise como ciência natural. Porém, pressionadas pelas excitantes descobertas
das neurociências, há ilhas que reivindicam esse retorno à biologia psicanalítica
de Freud, na maioria das vezes, de forma deturpada.
Em seu Pós-escrito à Questão da Análise Leiga (1926), no qual sustenta a tese
de que a psicanálise não é uma profissão-ciência exercida por médicos, ou seja,
um saber aprisionado numa disciplina, Freud escreve: O que é conhecido como
educação médica parece-me um modo árduo e tortuoso de se chegar à atividade de
análise. Sem dúvida oferece a um analista muito do que lhe é indispensável. Mas o
sobrecarrega com muito mais do que aquilo de que poderá fazer uso, e há um perigo
de afastar seu interesse e todo o seu modo de pensar da compreensão dos fenômenos
psíquicos. Ainda está para ser criado um programa de formação para analistas. Ele
deve incluir elementos das ciências mentais, da psicologia, bem como da anatomia,
biologia e o estudo da evolução. Pesquisando o percurso de Freud, observamos
que a gênese da psicanálise está fortemente relacionada com seus primeiros es-
tudos no campo da zoologia e, por consequência, da neurologia. Esses passos
levaram-no às inquietantes questões sobre nossa espécie, como um bicho que
integra a psicosfera.
Como escrevera num artigo publicado em húngaro, “Deve se Ensinar Psicaná-
lise nas Universidades?”, demonstrando sua esperança de um dia isso ser possí-
vel, quando seriam incluídos saberes de diferentes áreas do conhecimento, ainda
hoje, apesar de raríssimas exceções, como são alguns centros de pesquisas acadê-
micas, programas de pós-graduação, não temos consolidado o ensino da psica-
nálise nas universidades espalhadas pelo mundo.
A psicanálise tem aparecido como apêndice de cursos de psiquiatria, psicologia
e humanidades. Como visibilizada por Roudinesco (2016: 218), ela cindiu-se em
dois ramos: um, clínico, ligado ao ideal médico do cuidar; o outro, cultural, ligado
à filosofia, história, literatura e antropologia. Minha inquietação, neste trabalho,
é que a biologia (ecologia) levou Freud à psicanálise e, em muitos lugares, onde

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

se fala dessa ciência e de suas co-irmãs, é impensável que o saber analítico ponha
seus pés lá.
Jones, agora o secretário-mor do processo de organização internacional da psi-
canálise, contrariando o próprio Freud, nunca fora simpático a essa abertura da
psicanálise. Na sua política de organização da profissão do psicanalista, defendia
que ela deveria ser exercida somente por médicos, como era o caso nos Estados
Unidos. Na contramão disso, Freud fará um manifesto em defesa da análise lei-
ga. O criador, perdendo o controle sobre sua criação, teve que travar intensos
debates para fazer seus discípulos crerem que psicanálise e medicina são coisas
diferentes e que se deveria proteger a primeira do saber orgânico da segunda, no
qual, sabe-se, o psiquismo humano sempre foi banalizado.
Apesar de ter sido seduzido pela perspectiva mecânica da natureza, o desejo efe-
tivo de Freud era mergulhar nos mistérios da natureza humana; descrever a es-
tranheza das pessoas e adentrar, minimamente, no terreno da pele inconsciente.
Sua viva curiosidade infantil, as marcas da sua história de vida, deslocou-se para
o campo das investigações científicas, para os enigmas da mente humana, da cul-
tura e da civilização.
Num tempo de banalização e apagamento do sujeito, a psicanálise enraíza-se nas
suas possibilidades de existências. A psicanálise existe porque existe o sujeito,
o ser humano. É duvidoso pensar quem entrará primeiro em extinção. Freud
inventou um sujeito moderno dividido entre Édipo e Hamlet. Colocava o sujeito
moderno frente ao seu destino: o de um inconsciente que, sem privá-lo de sua liber-
dade, determina-o à sua revelia. E queria a todo custo que a psicanálise fosse uma
revolução simbólica com a vocação primordial de mudar o homem, mostrando que
“o eu não é o senhor em sua casa” (RODUINESCO, 2016: 98; 250).
Freud inaugura uma perspectiva para que possamos olhar a relação homem-
-mundo pelo viés do inconsciente, que não é o seu lado irracional, mas outra
racionalidade, ou seja, uma nova racionalidade a partir da arquitetura, das edifi-
cações do pensamento freudiano.
Trata-se de uma “ciência” fundada por Freud, que, ao mesmo tempo em que é
um método de investigação, para onde convergem diferentes campos de saberes,

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Juracy Marques |

é também uma técnica psicoterapêutica para análise do inconsciente. Freud em-


pregou inicialmente os termos análise, análise psíquica, análise psicológica, análise
hipnótica, no seu primeiro artigo As Psiconeuroses de Defesa (1894). Só mais tarde
introduziu o termo psycho-analyse num artigo sobre a etiologia das neuroses. O uso
do termo “psicanálise” consagrou o abandono da catarse sob hipnose e da sugestão,
e o recurso exclusivo à regra da associação livre para obter o material (LAPLAN-
CHE, 2001: 384).
Como podemos observar, a criação de Freud demonstra a radical necessidade de
um entendimento da vida humana, mergulhando desde suas raízes ancestrais,
míticas, até os galhos que sustentam suas imersões na civilização da qual é pro-
dutor e produto. Aqui, Freud demarca a natureza da sua ecologia. Deixa de lado
os peixes, os crustáceos, os cogumelos e vai em busca do bicho humano.
Sem sombra de dúvidas, a perspectiva mais forte sobre a dimensão ecológica da
obra de Freud foi a teoria da evolução das espécies, anunciada conjuntamente
por Wallace11 e Darwin para a Linnean Society12, em 1o de julho de 1858, em
Londres.
Freud escrevera com um respeito singular sobre o “Grande Darwin” em parte
significativa de seus trabalhos. Chegou a tratar da teoria da psicanálise como um
golpe psicológico na história narcísica da humanidade, como fora o corte cosmo-
lógico de Copérnico e a fenda biológica de Darwin, feridas incuráveis na pele da
nossa civilização.
Sobre isso, escreveu em sua Introdução à Psicanálise (1916): A ciência infligiu ao
egoísmo inocente da humanidade dois graves desmentidos. O primeiro ocorreu
logo que ela mostrou que a Terra, longe de ser o centro do Universo, era apenas
uma parcela insignificante do sistema cósmico, do qual podemos apenas imaginar
a grandeza. Atribuímos essa primeira demonstração a Copérnico... O segundo des-
mentido foi imposto à humanidade pela pesquisa biológica..., estabelecendo a sua
origem no reino animal e mostrando-lhe sua natureza animal indestrutível. Essa

11 Jovem naturalista, pobre, autodidata, que viajou pelo mundo colecionando animais raros e produziu,
na mesma época de Darwin, as bases epistemológicas que sustentaram a teoria da evolução das espécies.
12 A Sociedade não recebeu com entusiasmo a tese que jogou por terra as bases teóricas de todas as
ciências da vida e situou o homem no seu lugar comum da natureza, como mais uma espécie.

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

última revolução acontece em nossa época graças ao trabalho de Charles Darwin, de


Wallace e de seus predecessores.
O Grande Darwin estabeleceu uma regra de ouro, escrevera para demonstrar seu
encantamento e conversão à teoria da evolução, que ganhou corpo com a pu-
blicação da Origem das Espécies, em 1858. O criador da teoria do inconsciente,
antes de morrer, em seu exílio em Londres, em 1939, após a perseguição nazista,
destacou sua intensa alegria em assinar o santificado livro da Royal Society ao
lado dos nomes de Isaac Newton e Charles Darwin.

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Juracy Marques |

1. Hambiente
A paisagem é o que não há. Ela deve ser feita, e o será para ocupar
qualquer lugar, porque cria os lugares.

Ana Godoy

Por que podemos dizer que o mundo, o hambiente, é singular a cada sujeito?
Porque tudo que seu cérebro representa não existe no mundo exterior, mas é
uma tradução dos estímulos que chegam ao seu cérebro através dos sentidos,
que, processando essas informações e juntando-as às memórias combinatórias
do passado, constrói, na sua tela mental, uma nova informação, a exemplo da
imagem (ideias), do cheiro, do sabor, dos afetos e de outras significações. As
cores verde das matas, azul do céu ou amarelo do pôr-do-sol são tão abstratas e
fantasiosas quanto as nossas alucinantes paixões. As cores não existem na nature-
za (WILSON, 2013). Inspirados em Lacan, podemos dizer que o mundo é um
significante.
Os Sapiens conquistaram o mundo. Pintaram o piso das florestas, cobriram o
telhado da atmosfera, engarrafaram os rios e oceanos, implantaram milhares de
quilômetros de veias de ferro e fibras em todos os cantos da Terra, dominaram as
plantas e os bichos e, em seguida, arquitetaram modelos de dominação partilha-
dos entre seus semelhantes. A natureza do mundo natural é o espelho da sua pró-
pria natureza. Nosso planeta, um dia verde e azul, está se tornando um shopping
center de plástico e concreto (HARARI, 2016: 361). Esse cenário se tornou mais
grave após a Revolução Industrial, no século XVIII.
Trata-se de uma espécie assassina e criminosa, com ilhas de bondade, de generosi-
dade e de amor, diz-nos Morin (2012: 117). Freud (1920: 124), sobre ela, afirma
que o selvagem, como animal, é cruel, mas não tem a maldade do homem civilizado.
A maldade é a vingança do homem contra a sociedade, pelas restrições que ela impõe.
As mais desagradáveis características dos homens são geradas por esse ajustamento
precário a uma civilização complicada. É o resultado do conflito entre nossos instintos
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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

e nossa cultura.
Dez anos depois, em O Mal-Estar na Civilização, obra de Freud que virou best-
-seller, retoma a dimensão da natureza da agressividade da espécie humana: são
criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de
agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um aju-
dante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer
sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compen-
sação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses,
humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo (1930: 133). Eis a estética
da espécie que ocupou o mundo.
Em julho de 1932, a Liga das Nações, através do seu Instituto Internacional
para a Cooperação Intelectual, incitou Einstein (1879-1955) a convidar ou-
tro pensador de sua escolha para tratar de um tema relevante à humanidade.
Einstein escolheu Sigmund Freud e o indagou sobre a questão: Existe alguma
forma de livrar a humanidade da ameaça de guerra? Como resposta, escreveu
Freud (1932): É, pois, um princípio geral que os conflitos de interesses entre
os homens são resolvidos pelo uso da violência. É isto o que se passa em todo o
reino animal, do qual o homem não tem motivo do que se excluir. Sabemos, não
são as guerras que formam homens violentos. São homens violentos que forjam
as guerras. Freud não se intimidou em olhar essa parte destrutiva da nossa espé-
cie. Fez isso emprestando à história seu próprio corpo e alma.
Sigmund não acreditava numa civilização com a ausência da agressividade,
mesmo se todas as necessidades humanas fossem satisfeitas. Afirmou a existên-
cia de um instinto de violência nos humanos (instinto de morte) e, por um bom
tempo de sua vida, ocupou-se de estudar suas manifestações. Em carta a Freud,
Einstein também sustentou a hipótese de que existe, entre os homens, um ins-
tinto de ódio e destruição que os fazem se conectarem com os mercadores da
guerra.
Sobre isso, Freud (1932), ao concordar com a elaboração do seu correspondente,
apresenta sua teoria dos instintos, que guarda certa relação com a definição de
Darwin, na obra A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais (2000), do
instinto como aprendizagem herdada: De acordo com nossa hipótese, os instintos

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Juracy Marques |

humanos são de apenas dois tipos: aqueles que tendem a preservar e unir – que
denominamos de eróticos ou sexuais – e aqueles que tendem a destruir e matar, os
quais agrupamos como instinto agressivo ou destrutivo. Talvez, daqui tenha nasci-
do a pergunta: Gozar liberta?
A diferença entre instinto e pulsão, na obra de Freud, tem gerado infinitos de-
bates. Para Laplanche (2001: 241), quando Freud fala de “instinto”, refere-se ao
esquema de comportamento, próprio de uma espécie, que pouco varia de um indiví-
duo para o outro, que se desenrola segundo uma sequência temporal pouco susceptí-
vel de alterações e que parece corresponder a uma finalidade.
Freud, na obra Os Instintos e suas Vicissitudes (1915: 203), descreve a pulsão
como o representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo
e alcançam a mente. Destacamos que se trata de uma representação. Há algo que
sai do corpo e entra no psiquismo, na mente humana, que, alguns pensam, está
no corpo. Isso é a pulsão, uma impressionante projeção do inconsciente na realida-
de (ROUDINESCO, 2016: 392).
É na teoria dos instintos de Freud que reside a melhor compreensão de sua eco-
logia humana. Pensado como uma inscrição biológica que organiza um deter-
minado comportamento, em Freud, percebemos algo mais que isso, tratando-o
como um impulso orgânico, inconsciente, em que o organismo luta por sua per-
manência, que, no fim último, é a sua descida até seu estágio inorgânico, ou seja,
uma busca pela satisfação de suas necessidades, algumas delas mortíferas.
Nessa dialética, opera o que chamou de instintos de vida (Eros) e instintos de mor-
te (Tanatos). Seria mais salutar pensarmos onde idealizamos instinto, a pulsão,
algo que não se educa, não se governa nem se analisa no humano, cuja força (carga
energética) faz o organismo buscar a satisfação de seus objetivos. Segundo Freud,
uma pulsão tem a sua fonte numa excitação corporal (estado de tensão); o seu objetivo
ou meta é suprimir o estado de tensão que reina na fonte pulsional; é no objeto ou gra-
ças a ele que a pulsão pode atingir sua meta (LAPLANCHE, 2001: 394).
Darwin (2000) escreveu, em A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais:
Se há alguma explicação a ser encontrada para os chamados instintos dos animais,
que lhes permite comportarem-se desde o início em uma nova situação na vida,
como se fosse antiga e conhecida – se há alguma explicação afinal a ser encontrada
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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

para essa vida instintiva dos animais, só pode ser a de que trazem as experiências de
suas espécies com eles para sua nova existência – isto é, preservaram lembranças do
que foi experimentado por seus ancestrais. A situação do animal humano no fundo
não seria diferente. Sua própria herança arcaica corresponde aos instintos dos ani-
mais, embora seja diferente em seu âmbito e conteúdo. Eis uma das fontes preciosas
onde bebeu Freud.
O neurologista judeu acreditava nesta hipótese darwiniana de que as experiên-
cias filogenéticas eram materializadas na ontogênese dos indivíduos13, inclusive,
em suas vidas oníricas. Em A Intepretação dos Sonhos (1900), pedra fundamental
da psicanálise, obra que em seis anos vendera14 menos de 400 exemplares, Freud
escreveu que sonhar é no todo um exemplo de regressão à condição inicial de quem
sonha, uma revificação de sua infância... Por trás dessa infância do indivíduo temos
a promessa de um quadro de uma infância filogenética – um quadro da raça huma-
na, de que o desenvolvimento do indivíduo, é de fato uma recapitulação abreviada
influenciada pelas circunstâncias casuais da vida.
Para Freud (1913: 180), a linguagem dos sonhos pode ser encarada como método
pelo qual a atividade mental inconsciente se expressa, destacando que o inconscien-
te fala mais que um dialeto. Quando, desde Darwin, para estudar o comporta-
mento humano, valiam-se da sua biologia e história, Freud buscou esse entendi-
mento entrando em sua mente pelo caminho dos sonhos. Freud foi buscar, na
biologia humana, a humanidade da biologia, que nem é biológica nem humana.
Quando pensamos evolutivamente, psicanaliticamente, o inumano é o humano.
Falamos de algo sempre exterior ao humano, o Outro, a sua célula. A noção de
raça humana, geralmente pensada numa perspectiva biológica, nunca pode ser
ecológica. Trata-se de um conceito político. Por exemplo: a redução genética de
um branco lhe devolve ao mistério da África. Então, por que o negro-africano é
a antítese do alemão? O Europeu nos parece, muito provavelmente, uma especiali-
zação recente da raça mongoloide (BOAS, 2010: 82).

13 Para Morin (2012: 52-53), os indivíduos são produtos do processo reprodutor da espécie humana,
sendo, ao mesmo tempo, 100% biológico e 100% cultural.
14 Comparativamente, a primeira edição de A Origem das Espécies de Charles Darwin, publicada em 24
de novembro de 1859, foi totalmente vendida numa tarde.

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Juracy Marques |

Por que todos não são judeus? Raça não é um conceito biológico. Está inteira-
mente subordinada ao marco cultural (BOAS, 2010: 90). É um conceito políti-
co-cultural. Mesmo os sistemas endogâmicos não garantem a hereditariedade da
raça, sua pureza. Tudo o que sabemos é que cada grupo consiste de muitas linhagens
familiares divergentes. Não é possível efetuar a reconstrução das linhagens familia-
res “puras” originais das quais deriva a população atual (BOAS, 2010: 55).
O caso clínico do Homem dos Lobos (Serguei), analisado por Freud (1910), ilus-
tra bem a sua crença no fato de os indivíduos recapitularem, de forma abreviada,
todo o desenvolvimento da raça humana. Trata-se de um caso em que o menino
percebia o pai como um possível castrador, embora na sua vida real fossem as
mulheres, sua mãe e sua enfermeira, que, pela vigília, materializavam essa possi-
bilidade.
Seu pai, depressivo e alcoólatra, era um político culto e liberal, e tinha o hábito
de realizar caçadas aos lobos, bastante admiradas por Serguei. À noite, após a
caça, sua mãe, que sofria de diversos distúrbios somáticos, costumava dançar
com os dois filhos ao redor de um monte de animais transformados em troféus
(ROUDINESCO, 2016: 227).
Certo dia, Serguei fora assustado por sua irmã Ana, a quem amava muito, com a
imagem de um lobo feroz. Aos 10 anos de idade, passou a ter fobia desse animal.
Quando cursava o Liceu, Ana e, depois, seu pai cometeram suicídio. Paulati-
namente, foi sendo acometido por uma grave depressão, que o levou a buscar
tratamento e diversos sanatórios. Ao chegar às mãos de Freud, foi convidado a
se instalar em Viena e, também, a se iniciar em Psicanálise. Depois da terapia,
casara-se com Teresa, a mulher a quem amava, em 1914.
Fechava-se mais um caso de neurose obsessiva na clínica freudiana, estruturado
após a interpretação de um sonho que Serguei teve aos quatro anos. Ele sonhara
que, durante a noite, num período de inverno, a janela do seu quarto se abria
e, em frente a ela, estava um bando de lobos brancos sentados na árvore, uma
nogueira. Os lobos tinham caudas felpudas, parecendo-se mais com raposas ou
cães. Angustiado, temendo ser comido pelos lobos, gritou e acordou.
Para Freud, a cena dos lobos era a representação de uma cena amorosa que Ser-

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

guei observara dos pais, ainda bem pequeno. Tratava-se de uma interpretação,
uma ficção freudiana buscando atribuir sentido para o sonho do menino dos
lobos. O aristocrata rico, que também se tornou advogado, com as mudanças
políticas que experimentara ao lado a família, ficou pobre, empregando-se numa
companhia de seguros, onde trabalhou até se aposentar.
Teve novas recaídas na depressão e retornou, por duas vezes, à análise com Freud,
o qual, na segunda, o encaminhou a Ruth Mack-Brunswick, que o diagnosticou
com paranoia e não com neurose, como fez Freud.
No meio das interpretações, diria, de uma “psicanálise selvagem”, o Homem dos
Lobos, refugiou-se em Viena, onde passou a desenhar, sobretudo para analistas,
a representação de seu sonho com os lobos na árvore. Passou a ser paciente e
lenda ao mesmo tempo (ROUDINESCO, 2016: 235), até sua morte, em 1979.
Sobre o caso, diz Freud (1910): Nesse ponto o menino tinha de se adaptar a um
padrão filogenético, e assim fez, embora suas experiências pessoais possam não ter
entrado em concordância com ele. Embora as ameaças ou insinuações de castração
que se puseram em seu caminho tenham provido de mulheres, isto não podia ter
mantido o resultado final por muito tempo. A despeito de tudo, foi de seu pai que
no fim ele veio a temer a castração. Nesse aspecto, a hereditariedade triunfou sobre
a experiência acidental; na pré-história do homem era inquestionavelmente o pai
quem praticava a castração como punição e que depois a suavizou para a circun-
cisão. Na análise dos homens, numa perspectiva freudiana, o pai aparecerá, na
maioria dos casos, como um rival do filho, sobretudo no campo de suas fantasias
inconscientes.
Freud se desfez de um texto que escreveu em 1915, encaminhado ao amigo hún-
garo Sándor Ferenczi (1873-1933), que o chamou de Uma Fantasia Filogenética.
Nesse texto, ele retoma a ideia da horda primeva de Darwin, já trabalhada em To-
tem e Tabu (1913), e sustenta que as exigências da Idade do Gelo, suas adversida-
des, foram fatores catalizadores para o desenvolvimento da civilização.
Por exemplo, afirmava que os perigos do mundo tornaram a humanidade ansiosa
e que a privação de alimentos gerava conflitos entre o sentimento de autopreser-
vação e o desejo de procriar, fantasia comum em quadros neuróticos.

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Juracy Marques |

Em Além do Princípio do Prazer (1920), ao falar do desenvolvimento do instin-


to primário, diz que o organismo, na sua condição original, a vida inorgânica,
sofreu pressões exógenas a ela, essencialmente perturbadoras, que provocaram
o fenômeno da vida orgânica. Afirma que essas influências externas provocaram
alterações de tal ordem que obrigaram a substância ainda sobrevivente a divergir
ainda mais profundamente do seu curso original da vida.
Esses fatores, orienta Freud, devem ser buscados na história da Terra em que vi-
vemos e em suas relações com o sol. Entretanto, como contrapõe Marcuse (1999:
128), o desenvolvimento do homem animal não permanece encerrado na história
geológica; o homem torna-se, na base da história natural, o sujeito e objeto de sua
própria história.
Na tentativa de sustentar a hipótese de uma civilização não repressiva, com an-
coragem nas elaborações freudianas, Marcuse (1999: 130; 131) vai afirmar que,
no que concerne à perspectiva geobiológica sobre a origem da substância viva de
Freud, não se pode pensar em mudanças. Contudo, outras transformações que
ocorrem no limiar da civilização, a saber, as lutas entre os instintos de vida (Eros)
e de morte (Tanatos), no percurso da evolução da vida humana, pressupõem que
uma mudança qualitativa no desenvolvimento da sexualidade deve alterar, neces-
sariamente, as manifestações do instinto de morte... demonstrando-se a possibili-
dade de um desenvolvimento não-repressivo da libido, nas condições de civilização
amadurecida.
Destacando que Freud defende o campo da fantasia como uma atividade mental
com alto grau de liberdade, que foge, inclusive, aos mais elevados padrões da mais-
-repressão, Marcuse (1999: 134; 145; 151) vai defender que a imaginação, o poder
da fantasia, sustenta a reivindicação do indivíduo total, quando cria um universo
singular de percepção e de compreensão. A fantasia, sugere, opõe-se ao princípio
de realidade, sendo mais do que prazer. Um rabisco dessa possibilidade pode ser
observado no movimento hippie, a partir do marco civilizacional que representou
Woodstock, em 1969, em Nova York (EUA).
De alguma forma, sobre a defesa da liberdade sexual contra todas as formas de
opressão e de dominação, como apelo humanitário às raízes da liberdade, o teó-
rico da Escola de Frankfurt estruturou, como sua utopia: uma nova experiência
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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

de ser transformaria integralmente a existência humana. Isso, escreve, vai na con-


tramão do princípio da dominação e a oposição entre homem e natureza, sujeito e
objeto, é superada. O ser é experimentado como gratificação, o que une o homem à
natureza para que a realização plena do homem seja, ao mesmo tempo, sem violên-
cia, a plena realização da natureza. Essa não é a utopia freudiana.
Essa estratégia marcusiana é observada em alguns fragmentos do reino animal.
Os bonobos, primatas que vivem em florestas na África Central, na República
Dominicana do Congo, têm relações tanto homossexuais quanto heterossexuais,
objetivando minimizar as tensões. Em virtude desse tipo de comportamento, ra-
ramente exibem qualquer tipo de conflito. Nesse grupo, as fêmeas podem ser tão
dominadoras quanto os machos.
Smal, que estudou com profundidade esse grupo, escreve: bonobos machos e fê-
meas de todas as idades fazem sexo com todos os outros membros do grupo; eles
tocam com os dedos os genitais uns dos outros, esfregam-se mutuamente os genitais
e põem a boca naquilo que nós – mas claramente eles não – chamaríamos de partes
íntimas (...) As fêmeas mostram um tipo especial de comportamento chamado de
esfregação gênito-genital, durante o qual duas fêmeas se posicionam face a face ou
traseiro contra traseiro e esfregam suas saliências de fertilidade juntas e gritam de
prazer (...) sexo é a cola que mantém os bonobos juntos. Em momentos de stress eles
agem sexualmente (in REGO, 2005: 165).
Muito semelhantes às escolhas sexuais dos bonobos eram as teses defendidas por
Wilhelm Reich (1897-1957), judeu da Galícia, marxista, sexólogo e psicanalista,
expulso da Associação Psicanalítica Internacional (IPA), em 1930. Em seu livro A
Função do Orgasmo (1990), escreve: Quando o instinto sexual não é satisfeito, o ins-
tinto de destruição ganha importância. Durante muito tempo, entre os psicanalistas
do círculo freudiano, fora tratado como louco, a exemplo de Fliess ou Gross.
O próprio Freud se referiu a ele da seguinte forma: Temos aqui um doutor Reich.
Um bravo mas impetuoso montador de cavalos de batalha que agora venera no or-
gasmo genital o contraveneno de toda a neurose (in ROUDINESCO, 2016: 387).
Reich foi condenado à prisão, acusado de atividades subversivas, onde morreu,
em 1957, nos Estados Unidos. Quais grades separam Reich da psicanálise freu-
diana? Isso ainda precisa ser bem-dito.

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Juracy Marques |

Freud via-se perturbado com esses atravessamentos que seus discípulos criavam
nos seus estudos de psicanálise. O orgasmo como saída não repressiva da civili-
zação não agradava a Freud em nada, ao contrário, como mostra sua biografia,
ele parou de ter orgasmos, tornando-se abstêmio. Como repetia, a besta humana
precisava ser domada.
Apesar de Freud ter dado fim ao manuscrito, este sobreviveu graças ao seu anali-
sando húngaro, e se trata de uma obra na qual Freud objetivava compreender o
fator fisiológico do psiquismo humano, com forte imersão nas teorias evolucio-
nistas de Charles Darwin. Em Inibições, Sintomas e Ansiedade (1926) continua
sustentando essa perspectiva: A ansiedade não é recentemente criada na repressão;
é reproduzida como um estado afetivo em concordância com uma imagem mnêmica
já existente... Estados afetivos ficaram incorporados na mente como precipitação de
experiências traumáticas primevas, e quando uma situação semelhante ocorre, são
revividos como símbolos mnêmicos.
É no espaço humano (hambiente) que os organismos das pessoas são moldados,
transformando-se e adaptando-se. Suas necessidades de autopreservação os inse-
rem nas mais complexas formas de interação no hambiente, produzindo seu visível
desconforto na cultura, o qual, como afirma Freud (1930: 68), é produzido pelo
antagonismo irremediável entre as exigências do instinto e as restrições da civilização.
Este estado de sofrimento que experimenta o ser humano na atualidade, para
Freud (1930: 137), é o mais importante problema do desenvolvimento da ci-
vilização, sustentando que o preço que pagamos por nosso avanço em termos de
civilização é uma perda de felicidade15 pela intensificação do sentimento de culpa.
Freud alerta que a humanidade se culpa de algo que deseja, fez e continuará prati-
cando: a violência, a crueldade, a maldade. Lacan era incisivo quanto à ideia de que
a origem da culpa era o bem e não o mal. Escreve Freud (1930): não é, realmente,
uma questão decisiva se o indivíduo matou o próprio pai ou se se absteve desse ato; ele
sentir-se-á culpado, em qualquer dos casos, pois a culpa é a expressão do conflito de
ambivalência, a eterna luta entre Eros e o instinto destrutivo, ou de morte.

15 Para Freud, a felicidade está relacionada à satisfação dos desejos infantis, pois se trata de “uma
consumação subsequente de um desejo pré-histórico. É por isso que a riqueza dá tão pouca felicidade: o
dinheiro não era um desejo da infância” (in MARCUSE, 1999: 179).

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

O sentimento de culpa ocupa um lugar decisivo na elaboração de Freud sobre o


desenvolvimento da civilização. Tentou (1930) representar o sentimento de culpa
como o mais importante problema da evolução da cultura e dar a entender que o
preço do progresso na civilização é pago com a perda de felicidade, através da inten-
sificação do sentimento de culpa. Esse também era um tema caro ao biólogo da
evolução, Charles Darwin, que escreveu sobre civilização e instintos humanos.
Vejamos o estrago que fez uma mordidinha numa maça. Imergindo numa análi-
se sobre as culturas humanas, observamos que quanto mais repressão, mais cres-
ce a necessidade de reprimir, que é a necessidade de ser reprimido. O reprimido
alimenta-se da repressão e faz sempre novas alianças com os repressores. É, como
revelou Freud, uma dinâmica da civilização, por mais estranho que nos pareça.
Em O Mal-Estar na Civilização (1930), escreve: como a cultura obedece a um im-
pulso erótico interior que a manda unir a humanidade numa massa estreitamente
interligada, tal finalidade só pode ser conseguida por meio de sua vigilância para
que um sentimento sempre crescente de culpa seja fomentado. O que começou em
relação ao pai acaba em relação à comunidade. Se a civilização é um curso inevitá-
vel de desenvolvimento, do grupo de família para o grupo de humanidade como um
todo, então, uma intensificação do sentimento de culpa – resultante do conflito ina-
to de ambivalência, da eterna luta entre as tendências de amor e de morte – estar-
-lhe-á inextricavelmente vinculada, talvez até o momento em que o sentimento de
culpa atinja proporções de tal amplitude que os indivíduos dificilmente o suportem.
Não é possível ser livre quando a culpa de ser livre é a escravidão. A culpa por
algo que não fizemos, tão viva em nós, é a opressão da civilização. As lutas pela
liberdade, pela felicidade, em realidade, deparam-se sempre com essas celas ima-
ginárias, que nos dão sempre o cálice amargo da mais-repressão. Portanto, não
é, pois, o desejo que seja insustentável, mas o controle sofrido por ele, sob o sig-
no da mais-repressão, do domínio, que o torna insustentável. O desejo humano
sustentável é tornado insustentável. A insustentabilidade não é uma condição
natural, mas, sobretudo, uma construção política.
Nos termos freudianos a civilização tende para a autodestruição. Ela nasce em
Eros, princípio da energia vital criadora, que dá origem à cultura humana a partir
de atos sublimatórios, usando sempre essa energia sexual, por princípio, erótica.

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Juracy Marques |

Dos excessivos usos, enfraquecemos Eros, dessexualizamos seu espírito em ativi-


dades sociais “aceitáveis” pela civilização e, desse acontecimento, ganha força a
energia destrutiva da humanidade, a pulsão de morte, Tanatos, que, em princí-
pio, não deseja a destruição em si, mas apenas aliviar-se de tensões pulsantes que
se dirigem ao reencontro com o mundo inorgânico.
Então, o impulso à autodestruição é um princípio criador e, na sua escalada, no
pico do monte, quando chegar ao Everest, não criará nada. Por inferência, pode-
mos concluir que o poder sobre a natureza, sinônimo de civilização entre nossos
semelhantes, em que são empregados amplamente os nossos instintos destruti-
vos, são fontes de grandes gratificações. E o trágico é que isso também aparece
como Eros. A destruição que domina e mata toda a natureza objetiva destruir
toda a vida, ou seja, retornar ao princípio inorgânico da existência, digo, da ine-
xistência. Paradoxalmente, o desejo da vida é a morte e a necessidade da morte é
a vida. Isso se assemelha aos ensinamentos do budismo de Buda.
Em síntese, para Freud: 1. Eros sublimado se dessexualiza; 2. A sublimação, ao
dessexualizar Eros, serve ao instinto de morte e cria a civilização, envolvendo
culpa e repressão; 3. Criada a civilização, sem Eros, os instintos destrutivos (Ta-
natos) vencem e põem fim a ela. É a autodestruição, ou seja, a meta da vida é a
morte.
Para Marcuse: 1. Nem todo trabalho (sublimado) é dessexualizado; 2. A subli-
mação da cultura também trabalha contra o instinto de morte (Tanatos), como
é o caso da tela Guernica16 de Picasso, pintada em 1937, que denuncia a destrui-
ção da cidade espanhola pela guerra; 3. O trabalho civilizado também utiliza os
instintos destrutivos. A civilização é também morte, ou seja, a meta da morte é
também a vida, como podemos observador no comportamento dos machos da
viúva negra (Latrodectus mactans), do zangão entre as abelhas (Apis melífera) e
dos marsupiais australianos (Antechinus agilis), que morrem após a cópula. Essa
é a metáfora para a dialética da civilização.
Na espécie de aranha Amourobius ferox, quando nascem seus filhotes, após 20
dias de incubação, em um número que pode variar entre 60 e 130, a mãe, dentro
16 A tela ficou exilada por mais de 40 anos em Nova York e só retornou à Espanha em 1981. Hoje, encon-
tra-se no Museu do Prado (Madri-Espanha).

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

de até seis dias, entrega-se a esses filhotes, que a devoram. Assim como esse, en-
contramos muitos outros exemplos desse tipo de “suicídio altruísta”, que é, antes,
uma atitude em favor da vida, mesmo sendo morte (REGO, 2005: 143).
Entre os humanos, vemos muitas atitudes que lembram esses comportamentos
do reino animal. Os soldados, nossos heróis, não seriam esses escolhidos para a
prática desse suicídio altruísta em defesa da pátria? Foucault (1997:131), em
sua obra Vigiar e Punir, apresenta o soldado como exemplo de um corpo dócil
adestrado para tal fim.
A dominação da natureza, herança dada ao ego, para Marcuse (1999: 110) visa,
pois, em última instância, à dominação do homem pelo próprio homem. É uma
agressividade em relação a outros sujeitos: a satisfação do ego está condicionada pela
sua “relação negativa” com outro ego. Se só existisse Adão, não seria arquitetada
a escravidão, a repressão, a mais-repressão, ou seja, não seria necessário o desejo
da não repressão.
Diferentes teorias destacam os aspectos para o sucesso dos Homo sapiens: a evo-
lução de um cérebro maior, a fabricação e o domínio de tecnologias diversas,
tanto para a caça quanto para as lutas tribais que permitiam matar os inimigos,
bem como as mudanças climáticas.
Para Marean (2015), nenhuma dessas hipóteses oferece uma teoria abrangen-
te capaz de explicar, plenamente, a extensão do alcance do Homo sapiens. Diz:
Acredito que a diáspora ocorreu quando um novo comportamento social evoluiu em
nossa espécie: uma propensão geneticamente codificada para cooperar com indiví-
duos não aparentados. O acréscimo dessa tendência única às avançadas habilidades
cognitivas de nossos ancestrais permitiu que eles se adaptassem agilmente a novos
ambientes. Isso também fomentou a inovação, dando origem a uma tecnologia re-
volucionária que mudou tudo: armas avançadas de longo alcance. Equipados as-
sim, eles partiram da África, prontos para subjugar o mundo inteiro de acordo com
sua vontade.
Mas qual a natureza da humanidade? Qual a humanidade da humanidade? A
essência natural da espécie humana é cooperar ou dominar? Parte dos relatos
científicos vai apontar que a natureza humana é competitiva e, na maioria das

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Juracy Marques |

vezes, embasam-se nas teorias de Darwin. Essa tese é desmontada nos relatos de
grandes cientistas no documentário de Tom Sahdyac - I Am - (2012): Quando
Darwin escreveu A Descendência do Homem ele mencionou 2 vezes a sobrevivência
do melhor, e mencionou 95 vezes a palavra amor. Ele falou bastante sobre compor-
tamento como contribuição e colaboração. Ele descobriu nos mamíferos uma certa
linhagem, como ele mesmo diz, sobre a ética da reciprocidade para grandes ideais
religiosos. O modelo é tanto cooperativo quanto competitivo. Darwin foi interpreta-
do e popularizado por Huxley que tinha uma visão sombria da natureza humana
e realmente destacou a ideia que o mundo natural era uma anarquia do forte pi-
sando no fraco e isso criou uma visão distorcida que segue até o presente (MARC
LAN BARASCH).
Nesse mesmo documentário, Dacher Keltner fala que As pessoas não sabem disso,
mas em 1871 Darwin escreveu o 1o livro sobre a natureza humana e ele disse que
quando você pensa sobre como evoluímos como espécie, não somos rápidos, não somos
fortes, não temos grandes presas, não temos a massa muscular que os nossos parentes
primatas têm. Nós temos a habilidade de cooperar e cuidar uns dos outros. E ele
disse que a piedade é o instinto mais forte da natureza humana. E, infelizmente, as
pessoas que o popularizaram ignoraram essa parte de Darwin. Há realmente razões
profundas, sobrevivência, razões relacionadas à reprodução explicando o motivo
pelo qual evoluímos para sermos bons aos outros.
Essa é uma questão controversa nos estudos sobre nossa espécie, que mescla sua
capacidade de amar e de odiar. Na teoria de Freud, observamos que parte subs-
tancial da solidariedade e cooperação, entre nós, exige uma parcela significativa
dos membros das redes tocadas por esse altruísmo, um certo nível de subjugação,
como bem expressa aquele velho matema lacaniano: a solidariedade nasce a par-
tir da exclusão do um.
Como em nós, entre outros grupos de animais, as estratégias para se ter acesso
à solidariedade dos semelhantes são inúmeras. Chiglieri (in REGO, 2005: 226)
relata que um fêmea de chimpanzé em geral se acasala com a maioria dos machos
da comunidade, copulando em média 135 vezes antes de conceber (...) Isto leva a
que cada macho proteja todos os chimpanzés nascidos dentro do seu território como
se fossem seus. Coincidentemente, os índios barés, nos quais observamos a prá-

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

tica da paternidade coletiva, acreditam que uma criança não nasce do esperma
de um único homem, mas da acumulação do esperma no útero de uma mulher
(HARARI, 2016: 50).
Nesse jogo de controle e domínio do ego, o que seria então o mundo, a natureza,
para as sociedades modernas? Magaret Mead (1901-1978), importante antro-
póloga cultural norte-americana, no seu livro Sex and Temperament in Three
Primitive Societies (1952), naquilo que podemos pensar como uma contramão
do sentido que atribuímos à civilização, descreve que, para os Arapexes, o mundo
é um jardim que deve ser cultivado, não para nós próprios, não por orgulho e van-
glória, não por mesquinhez e usura, mas para que os inhames, e os cães, e os porcos,
e sobretudo as crianças possam medrar. Dessa atitude geral promanam muitas das
outras características Arapexes, a ausência de conflitos entre velhos e moços, a ausên-
cia de qualquer expectativa de ciúme ou inveja, a ênfase na cooperação. Isso prova
quão diversa são as culturas humanas e os sentidos atribuídos por elas às suas
existências. A repressão é um sintoma viral da humanidade, mas, descobre-se, há
grupos humanos imunes, ou que podem atingir a imunidade, acredita Marcuse.
Dawkins (2007), desesperançoso na capacidade de cooperação da espécie huma-
na e de todos os outros organismos, haja vista que sustenta a tese do gen egoísta,
diz-nos que se você desejar, como eu o desejo, construir uma sociedade na qual os
indivíduos cooperam generosa e desinteressadamente para um bem comum, você
poderá esperar pouca ajuda da natureza biológica. Tentemos ensinar generosidade
e altruísmo, porque nascemos egoístas.
Toda a experiência da vida humana está no gen, ele é a realidade toda, sustentam
evolucionistas como Dawkins. Harari (2016b: 308) diz que, de fato, Richard
Dawkins, Steven Pinker e outros defensores da nova visão científica do mundo re-
cusam-se a abandonar o liberalismo. Após dedicar centenas de páginas doutas a des-
contruir o eu e a liberdade do querer, eles realizam impressionantes saltos mortais
intelectuais que milagrosamente os fazem aterrissar de novo no século XVIII, como se
todas as espantosas descobertas da biologia evolutiva e das ciências neurológicas não
tivessem absolutamente nenhuma relevância nas ideias éticas e políticas de Locke,
Rousseau e Thomas Jefferson. Uma crítica brilhante a esse imobilismo existencial da
religião genética defendida por Dawkins.

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Uma das peças da engenharia mental humana é a não liberdade, a mais-repres-


são. Na nossa condição mental, só o animal humano, em seu estado de natureza,
é livre. Por analogia, o homem é não livre, institui sua cultura e sua subjetividade
à base da repressão e é, conforme as análises freudianas, sempre e eternamente
um ser preso, a não ser que volte à sua condição de animal, ou seja, livre. O ho-
mem é um bicho encarcerado em si mesmo.
Até sua última obra, Moisés e Monoteísmo (1939), Freud sustentou as ideias de
Darwin sobre a origem das sociedades humanas, bebendo também em novas re-
ferências, como a de Atkinson sobre a rebelião dos filhos no sistema paiverso da
horda primeva, com a teoria de Robertson Smith sobre a criação do clã totêmico
dos irmãos “canibais” no lugar do grupo humano primitivo dominado pelo pai.
Escreve Freud: Em 1912, tentei, em meu “Totem e Tabu”, reconstruir a antiga
situação... Para tal, fiz uso de algumas ideias teóricas apresentadas por Darwin,
Atkinson e particularmente Robertson Smith, e combinei-as com as descobertas e
indicações provenientes da psicanálise. De Darwin tomei emprestada a hipótese de
que os seres humanos originalmente viviam em pequenas hordas, cada uma das
quais ficava sob o poder despótico de um homem mais velho que se apropriava de to-
das as mulheres e castigava ou afastava os homens mais novos, inclusive seus filhos...
Esse sistema patriarcal terminou com uma rebelião dos filhos, que se reuniram con-
tra o pai, dominaram-no e o devoraram em comum [teoria de Atkinson]... A fim de
terem condições de viver em paz uns com os outros, os irmãos vitoriosos renunciaram
às mulheres pelas quais, no final das contas, haviam matado o pai, e instituíram a
exogamia [teoria de Smith]. O Poder dos pais foi rompido, e as famílias se organi-
zaram como matriarcado.
Observamos que, mesmo no fim de seu trabalho, Freud reafirmou sua concor-
dância com a tese da horda primitiva de Darwin em 1913, quando recortou a se-
guinte parte da obra A Descendência do Homem (2009): Podemos de fato concluir
a partir do que conhecemos sobre o ciúme de todos os quadrúpedes machos, armados,
como eles são, com armas especiais para combater seus rivais, que as relações sexuais
promíscuas em um estado de natureza são extremamente improváveis... Portanto,
se olharmos bem atrás na corrente tal do tempo,... avaliando a partir dos hábitos
sociais do homem como ele agora existe... a visão mais provável é a de que o homem
primevo vivia originalmente em pequenas comunidades, cada uma com tantas mu-
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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

lheres quantas pudesse sustentar e obter, as quais ele teria ciumentamente preserva-
do de todos os outros homens. Ou ele pode ter vivido com várias mulheres sozinho,
como o gorila; pois todos os nativos “concordam que apenas um homem adulto é
visto em um bando”; quando o jovem cresce, ocorre um combate pelo domínio, e o
mais forte, matando e expulsando os outros, impõe-se como líder da comunidade.
Os jovens, sendo assim expulsos e passando a vaguear, evitariam, quando por fim
bem-sucedidos no encontro de uma parceria, cruzamentos muito estreitos dentro
dos limites da mesma família.
Em Totem e Tabu (1913), Freud vai imergir na complexa análise sobre o tabu
do incesto (para muitos teóricos, um elemento fundante da cultura humana)
e, em conformidade com Darwin, vai divergir da hipótese de que a aversão do
homem ao incesto fosse inata, ao contrário, como escreve: as primeiras excitações
sexuais dos seres humanos jovens são invariavelmente de natureza incestuosa... tais
impulsos, quando reprimidos, desempenham um papel que dificilmente pode ser
superestimado como forças motivadoras de neurose na vida posterior.
Considerada por Freud a sua obra mais bem escrita, Totem e Tabu, depois de de-
senvolver uma análise preciosa sobre o fenômeno do incesto na espécie humana,
conclui-se afirmando que, todavia, no fim do nosso exame, só podemos subscrever
a resignada conclusão de Frazer. Ignoramos a origem do horror ao incesto e nem
mesmo podemos dizer em que direção procurá-la. Nenhuma das soluções propostas
para o enigma parece satisfatória (1913: 124).
Para um leitor desavisado, a preocupação freudiana com a questão do incesto na
espécie de humanos passaria, hoje, como um tema desnecessário. Parece-nos, à pri-
meira vista, um assunto “morto e enterrado”. Para Freud, ele está vivo, mas soter-
rado, tratando-se de uma das camadas mais espessas da alma humana. No fundo,
alerta Freud, ele é uma das raízes mais profundas dos sintomas humanos do passa-
do, no presente e, certamente, para o futuro da nossa civilização.
No Totem, aborda o lugar do incesto, particularmente sua interdição, na posição
e no estabelecimento da condição de nossa espécie. Desloca sua atenção para o
totemismo, que é o primeiro sistema de organização nas tribos primitivas, onde o
clã reverencia, na maioria das vezes, um animal do qual também foi originado.
Como regra totêmica geral, ninguém do grupo pode matá-lo ou ter relações se-

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Juracy Marques |

xuais com mulheres que integram o clã do totem. Freud vai relacionar o animal-
-totem à figura do pai (temido, adorado e, também, perseguido e morto).
Freud recupera essa dimensão da rivalidade pai e filho na mitologia. Relembra a
narrativa em que Cronos devorou seus filhos e emasculou seu pai Uranos, o qual
foi emasculado por seu filho Zeus. O tema do incesto, para ele, ainda vivo nas
fantasias humanas, pode ser pescado na história, como mostra a relação de Cleó-
patra com seu irmão mais novo Plotomeu, uma prática comum nas dinastias
egípcias. Os desejos incestuosos constituem um legado humano primordial e jamais
foram plenamente superados, sustenta Freud (1926: 205; 207).
Do ponto de vista psíquico, conforme podemos inferir a partir da teoria do
Complexo de Édipo de Freud, vivemos, nos nossos mundos subjetivos, parti-
cularmente aqueles ligados à nossa sexualidade, paixões por nossos pais, mães,
irmãos, tios etc. Um exemplo que atesta a vida do incesto nas sociedades ditas
civilizadas atuais é o processo impetrado na justiça mexicana por mãe e filho
(Mônica e Caleb), exigindo o direito de efetivar matrimônio.
Há duas destacadas dimensões da figura do pai analisadas na obra de Freud.
Temos o pai do Édipo, da tragédia de Sófocles (2009), por ele desconhecido e
morto, e o pai da horda primitiva, um mito freudiano, construído a partir das
ideias de Darwin de que os humanos viviam originalmente em bandos, cada um
dominado por machos ciumentos, poderosos e violentos. Na ficção freudiana, o
pai severo expulsa os filhos para manter ainda mais seu domínio sobre as mulhe-
res, sobre as mães. Estes, revoltados e com ciúme do pai, reúnem-se, matam-no
e o devoram.
Marcados pelo remorso, pela culpa de ter matado o pai, abrem mão das mulheres
do clã, buscando-as em outras tribos (exogamia). Essas atuações, após a morte
do pai, traça novas configurações para os agrupamentos humanos primitivos, se-
gundo Freud, marcando o começo da organização social, da religião e das restrições
éticas. Para Freud, esse pai morto tornou-se o protótipo do próprio Deus, a par-
tir do qual elabora a noção de um tipo de “sintoma universal” da humanidade, a
saber, a ideia de imortalidade.
Em cada época, as sociedades humanas escolhem um tipo de sintoma para viver

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

com elas. Como descreve Dunker (2012), nos anos 1940, observamos as neu-
roses de caráter, seguidas pelas personalidades17 narcísicas do pós-guerra e pelos
quadros borderlines dos anos 1980. Logo após, nos anos 2000, vimos se enrai-
zar os quadros de pânicos, anorexias, bulimias, toxicomanias, sintomas contem-
porâneos coroados com o reinado das depressões e pelo número assustador de
suicídios. Segundo Freud, o desejo de se matar deriva da inversão do desejo de
matar (ROUDINESCO, 2016: 238).
Durkheim, em sua obra El Suicidio (1971: 14), estudando uma dos fenômenos
sociais que tem vitimando, há séculos, diferentes grupos humanos, descreve o
suicídio como todo caso de morte que resulte direta ou indiretamente de um ato
positivo ou negativo, praticado pela própria vítima, sabedora de que devia produzir
esse resultado.
Observamos, em partes diferentes da história das civilizações, escolhas de gozos
diferentes que organizam seus modos particulares de satisfação, ou seja, de infe-
licidades ou felicidades, mobilizando seus instintos de preservação e de destrui-
ção que colaboram no processo de estruturação do hambiente, dos seus espaços
de convivência. No século XIX, por exemplo, observamos o reinado da histeria.
No século passado, a atuação do sujeito depressivo, cansado de si mesmo, para
recuperar uma análise de Roudinesco (2016: 81). Breve, estaremos nomeando
os sintomas que escolhemos para este novo século. Querer ser um “deus” será
um deles?
Para ilustrar melhor a plasticidade sintomática do mundo contemporâneo, po-
deríamos recorrer ao rápido crescimento do terrorismo ou, mesmo, ao fortale-
cimento da política conservadora em todos os lugares do mundo, marcada pela
xenofobia, pelo racismo e por tantas outras manifestações totalitárias, símbolos
das dificuldades humanas em conviver com as diferenças, mas recortarei, apenas,
uma cena que tem caracterizado este momento da história da humanidade: a
dramática situação dos imigrantes e refugiados que, observamos, negamos. São,
hoje, tratados como a escória da humanidade.

17 Foram descobertos indivíduos dispondo de mais de 20 personalidades, todas singulares e irredutíveis. A


ciclotimia, ou síndrome maníaco depressiva, alternância de melancolia e de exaltação, opera uma mudança
de psicologia que já é uma mudança de personalidade (MORIN, 2012: 88-89).

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Segundo Cláudio Blanc (2015), em 1995, havia 25 milhões de refugiados am-


bientais e 27 milhões de refugiados políticos ou de guerras. Até 2020, o número
de refugiados ambientais chegará a 50 milhões. Nos próximos 30 anos, 200 mi-
lhões de pessoas deixarão seus lugares. Dados das Nações Unidas (ONU) apon-
tam que, em 2015, o mundo tinha mais de 244 milhões de imigrantes, e mais
de um milhão de pessoas chegaram à Europa fugindo de guerras na Síria, no
Afeganistão e no Iraque. A consequência desses fenômenos migratórios é que
a União Europeia, agrupamento de países que atingiram um nível muito alto
de bem-estar social, vive uma dramática configuração identitária e territorial na
atualidade. Não sabe se constrói pontes ou muros.
Em 2007, na Sicília, Itália, sete pescadores foram a julgamento pelo crime de ter
resgatado 44 imigrantes africanos da morte certa no mar, ou seja, pelo “crime de
auxiliar e assistir imigrantes ilegais”. Terão de cumprir de um a 15 anos de prisão.
Trata-se de pescadores que estavam ancorados num recife, a cerca de 50 km ao
sul da ilha de Lampedusa, próximo à Sicília, e que foram acordados pelos gritos
de diversas pessoas famintas, as quais se encontravam num bote de borracha,
desesperadas. Ao se dirigirem ao porto mais próximo de Lampedusa para deixar
os refugiados, o comandante e o restante da tripulação foram presos (ZIZEK,
2011: 48).
Mais recentemente, em agosto de 2015, na Áustria, terra de Freud, 71 pessoas
foram encontradas mortas em um caminhão trancado, abandonadas por trafi-
cantes de seres humanos. A situação dos imigrantes na Europa passa a ter con-
tornos inimagináveis. Pela ocasião de sua visita a um abrigo de refugiados em
Heidenau, próximo de Dresden, a chanceler alemã Angela Merkel foi chamada
de “prostituta”, “vagabunda estupida” e “traidora do povo”, por militantes neo-
nazistas (KUNZIG, 2016).
A morte de Aylan Kurdi, criança sírio-curda de apenas três anos, em setembro de
2015, durante a tentativa de sua família de atravessar da Turquia para a Grécia,
no Mar Mediterrâneo, fugindo do grupo jihadista Estado Islâmico (EI), é outro
símbolo dessa traumática situação pela qual passam diversas pessoas em todo o
mundo.
As embarcações que contrabandeiam pessoas e comportamentos humanos são
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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

versões contemporâneas dos navios negreiros da era colonial, que só para as


Américas trouxeram 15 milhões de negros escravizados (CASHOMRE, 2000),
destes, 3,5 milhões para o Brasil (BASTIDE, 1971).
A trágica configuração da diáspora africana da era escravagista se reelabora em no-
vos e dramáticos trajes da modernidade. Em 06 de outubro de 2016, um navio de
resgate espanhol encontrou outro de madeira, com 3.000 imigrantes africanos (so-
malianos, nigerianos e congoleses), que estava a cerca de 20 quilômetros do litoral
líbio. No porão do navio, foram encontrados 32 cadáveres, vítimas de afogamento
ou sufocamento. Não mais o Atlântico nem o Pacífico são o cenário dessa tragédia
que envolve os povos negros. Agora, a cena acontece no Mar Mediterrâneo.
Na ONU18, espera-se, o drama dos imigrantes pode ter alguma esperança, pois o
atual Secretário Geral, o português Antônio Guterre, foi, durante 10 anos, alto-
-comissário para refugiados. Esse momento lembra a façanha de outro portu-
guês ilustre que salvou mais de 30 mil judeus da perseguição nazista, Aristides de
Souza Mendes, cônsul de Bourdeaux. Em 1940, quando os nazistas invadiram a
França, mesmo proibido pelo governo português de liberar vistos, quer seja para
Portugal ou para a Espanha, ou qualquer outro lugar, ele, com sua equipe, traba-
lhou dez dias e dez noites sem parar, carimbando os papeizinhos que salvaram
tantas vidas (HARARI, 2016b: 172).
Em janeiro de 2017, o fazendeiro francês Cédric Herrou, foi condenado pelo
tribunal de Nice por ter ajudado migrantes em situação de risco de vida, abrigan-
do-os em sua fazenda, perto da fronteira com a Itália.
Kunzig (2016), analisando a complexa imigração para a Europa, descreve que,
durante a Guerra da Independência (1954-1962), uma grande leva de argelinos
veio para a França, quando a Argélia ainda era sua colônia. Fala-nos da chega-
da, em 1990, de mais de 40 mil Somalis fugidos da guerra civil para a Suécia.
Também aponta a vinda de mais de três milhões de sul-asiáticos de ex-colônias
britânicas para a Grã-Bretanha, destacando-se o grande número de indianos.
Descreve um número na casa dos três milhões de turcos chegados à Alemanha
nos anos de 1960 e 70, como trabalhadores convidados.
18 Os americanos arcam com mais de 20% dos custos da ONU e da Organização do Tratado do Atlântico
Norte – OTAN (Veja, março de 2017).

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Como afirma Zizek (2011: 49), o que incidentes dessa natureza evidenciam é que
a noção de Agamben, do Homo sacer, o excluído da ordem civil que pode ser morto
impunimente, está em plena ação no coração da própria Europa, que se vê como últi-
mo bastião dos direitos humanos e da humanidade. Boas (2010: 25) descreve que
a moderna posição francesa de igualdade de todas as raças está ditada, possivelmente,
mais por razões políticas como, por exemplo, a necessidade de soldados – do que por
uma verdadeira ausência de qualquer sentimento de diferença de raças.
No nosso continente, indigna-nos a manutenção pela França da Guiana Fran-
cesa como a última colônia das Américas. Esse desprezo do humano pelo hu-
mano intrigou Freud no intervalo de duas grandes guerras mundiais, que aler-
tou: essa dimensão humana permaneceria viva. Observamos, está!
Nesse cenário, estranhamente, a Alemanha, que desde a Segunda Guerra rece-
beu mais de 50 milhões de imigrantes, é quem tem acolhido mais refugiados,
cuja Constituição garante o direito de asilo político. Uma em cada oito pessoas
que vivem na Alemanha nasceu em outro país (KUNZIG, 2016), entretanto,
até o ano 2000, para ter cidadania alemã, era preciso ter sangue alemão, ou seja,
pelo menos uma mãe ou um pai alemão. Hoje, qualquer imigrante que tenha re-
sidência legal por oito anos ou for filho de alemão pode se tornar cidadão. Há 75
anos, alguns alemães mandavam trens lotados de judeus para serem mortos em
campos de concentração sob o comando do parafrênico19 Adolf Hitler (1889-
1945).
Como denunciara Freud, esses laços de solidariedade são bastante frágeis. Após
o atentado terrorista que matou 12 pessoas em Berlim, no Natal de 2016, entre
os alemães, viu-se aumentar as motivações para que leis de apoio e proteção a
imigrantes fossem derrubadas.
Após grandes períodos de perseguição, no começo do século XX, na Europa,
os judeus, esse elemento estrangeiro, intereuropeu e não-nacional, único, torna-se
objeto do ódio. Com riqueza e sem poder, será sujeito à idealização. Esse ódio ao
judeu, que para as classes representava o Estado, transformou-se numa hipocondria
19 Termo proposto por Kraepelin para designar certas psicoses delirantes crônicas que, como a paranoia,
não são acompanhadas de enfraquecimento intelectual e não evoluem para a demência, mas que se apro-
xima da esquizofrenia pelas suas construções delirantes ricas e mal sistematizadas, à base de alucinações e
fabulações (LAPLANCHE, 2001: 33).
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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

de massa (BECKER, 1999: 102). Aqui, há um ponto de condensação sobre os


sentimentos diluídos na história a respeito do ódio aos judeus: a raça indestrutí-
vel, para recorrer a um modo de nomeação apresentado por Lacan (2005).
A experiência nazista mostrou que a pele que separava “o limite das raças”, o qual
chamamos de o espírito da solidariedade humana, é fina, é de vidro, e se estilhaça
com facilidade, quando se estimula a crueldade que adormece nas massas, acredi-
tava Freud, alma judia simbolicamente tocada pela manifestação de uma das faces
da identidade humana: a crueldade. Assim, como escreveu Hegel, a identidade é
a união da identidade e da não-identidade (in MORIN, 2012: 94). Não há como
pensar o povo judeu senão pelo caminho da diáspora.
Hoje, ainda nos perguntamos o que levou uma mente tão doentia como a de
Hitler a seduzir uma nação, que, pensava-se, estava ancorada em profundos sen-
timos humanitários, a praticar o horror do holocausto? Ou, como as pessoas co-
muns, por exemplo, os austríacos que “conviviam bem” com os judeus em Viena,
sentiram-se autorizados a atuarem contra a vida dos seus vizinhos-irmãos?
A questão específica de Freud a esse fenômeno é: onde tem origem a agressividade
humana? Importante observarmos quais mecanismos atuam nos comportamen-
tos das massas se queremos entender a alma do nazismo e tantas outras marcas
cruéis das civilizações, como o terrorismo e outros modelos fundamentalistas,
totalitários, encapados pela pulsão de morte.
Freud20 escreveu, durante o episódio da primeira guerra mundial (1914-1918),
que matou mais de 40 milhões de pessoas: Pense na colossal brutalidade, cruelda-
de e embuste que se permite agora que se propague sobre todo o mundo civilizado.
Acreditais realmente que um punhado de oportunistas sem escrúpulos e de corrup-
tores de homens teriam tido êxito em deflagrar este mal latente, se os milhões de seus
adeptos não fossem também culpados.
Freud (1921), em Psicologia de Grupo e Análise do Ego, evocando Le Bon, di-
z-nos que a peculiaridade mais notável apresentada por um grupo psicológico é
a seguinte: sejam quem forem os indivíduos que o compõem, por semelhantes ou
dessemelhantes que sejam seu modo de vida, suas ocupações, seu caráter ou sua in-

20 A General Introduction to Psychoanalysis.


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teligência, o fato de haverem sido transformados num grupo coloca-os na posse de


uma espécie de mente coletiva que os faz sentir, pensar e agir de maneira muito
diferente daquela pela qual cada membro dele, tomado individualmente, sentiria,
pensaria e agiria, caso se encontrasse em estado de isolamento... o grupo psicológico
é um ser provisório, formado por elementos heterogêneos que por um momento se
combinam, exatamente como as células que constituem um corpo vivo, formam, por
sua reunião, um novo ser que apresenta características muito diferentes daquelas
possuídas por cada um das células isoladamente.
Integrando um grupo psicológico, os indivíduos sofrem um tipo de contágio
que tem uma natureza hipnotizadora e os orientam a agir, por vezes, de forma
contraditória, inclusive, ao seu caráter e hábitos, sempre sugestionados por seu
operador, ou seja, ficam num estágio de fascinação, identificação e idealização,
que os comandam. Esse grupo, tendo consciência de sua própria grande força, é
tão intolerante quanto obediente à autoridade. Respeita a força e só ligeiramente
pode ser influenciado pela bondade, que encara simplesmente como uma forma de
fraqueza. O que exige de seus heróis, é força ou mesmo violência. Quer ser dirigido,
oprimido e temer aos senhores (FREUD, 1921: 89).
Esses agrupamentos humanos estão sempre sob o controle de um chefe, de um lí-
der que parece ter poderes mágicos nas palavras e é portador de incansáveis fon-
tes de admiração, causa fascinação e subjugação. Segundo Freud (1921: 95), os
membros que passam a integrar esses grupos é-lhe claramente perigoso colocar-
se em oposição a ele, e será mais seguro seguir o exemplo dos que o cercam, e
talvez mesmo “caçar com a matilha”.
Freud (1921: 89) alerta-nos que, quando os indivíduos se reúnem num grupo,
todas as suas inibições individuais caem e todos os instintos cruéis, brutais e des-
trutivos, que neles jaziam adormecidos, como relíquias de uma época primitiva,
são despertados para encontrar gratificação livre. Essa tese freudiana permite-nos
visualizar diferentes momentos da história, como os regimes nazistas, fascistas e
pseudocomunistas totalitários, diria também, as frágeis democracias, semblan-
tes dessas negações em todo o grande ocidente.
Não há senhor sem escravos. No imaginário dos que integram o grupo, o líder
aparece como totem invencível, indestrutível, por isso a ilusão de que ele é a
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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

pessoa ideal para comandar. Antes, porém, ele se apresenta como o ideal para
um processo de identificação e, em alguma medida, subjugação. A humilhação
aparece nos comportamentos biológicos das espécies, incluindo-se os humanos,
como uma estratégia de sobrevivência. Nessa condição, a vítima diz ao predador
que não há mais resistência da presa, que se entrega implorando a manutenção
de sua vida.
As teorias freudianas permitem-nos entender que, nas interações entre animais,
plantas e, sobretudo, com o bicho humano, a subjugação, a humilhação, tem
sido o mecanismo de proteção de organismos fracos e susceptíveis. Portanto,
trata-se de uma estratégia adaptativa que “foge à perspectiva da seleção natural”,
tornando-se uma das características fundamentais da seleção psíquica21, na qual
o parâmetro de eliminação diz respeito à existência de egos fracos e fortes, do
êxito do superego sobre o id e o resto da realidade humana.
Pouca atenção tem sido dada à questão da humilhação humana nos estudos que
objetivam o entendimento de seus comportamentos. Nessas condições, neuró-
ticos (histéricos e obsessivos) fantasiam desde a pactuação com seu algoz, como
também deliram e atuam desejando sua eliminação. A sombra do crime, por
exemplo, é a humilhação, lida pela perspectiva da passionalidade. Há uma ativi-
dade feroz, mortífera, que entra em jogo nesse estágio de adoecimento da psique
humana.
Como é possível aceitar que oito pessoas tenham nas mãos a riqueza equivalente
à da metade da população pobre do mundo? Como imaginar que documentos
papais, “representantes de Deus na Terra”, legitimaram a escravidão de negros e
indígenas, tratados como bichos sem almas pelos colonizadores? Como enten-
der que, há três mil anos, fosse criado, no norte da Índia, o sistema de castas que
estabelece diferenças abismais entre brâmanes e sudras? Como aceitar que um
sapiens, que “caga” como nós e morre, enfeite-se com uma coroa e um pedaço
de pano vermelho e, por isso, outros milhares da sua espécie o aceitem como
um rei? Como engolir a subjugação imposta por “meia dúzia” de espanhóis ao
Império Asteca (1521) e ao Império Inca (1532)? Como aceitar, no século da
21 Assim, a diversidade psicológica torna-se, como afirmou Morin (2012: 58), mais surpreendente que
a física. Personalidades, caracteres, temperamentos, sensibilidades, humores são de uma variação inacre-
ditável.

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Juracy Marques |

revolução feminina, que um livro que narra a submissão de uma mulher aos ca-
prichos sádicos de um pervertido sexual torne-se um fenômeno mundial na li-
teratura e no cinema e vire um fetiche de casais fracassados na cama, sobretudo
entre as mulheres? Como entender as razões pelas quais conservadores fascistas,
nazistas, racistas, homofóbicos, machistas, xenofóbicos, cheguem aos poderes de
quase todas as grandes nações do mundo, a começar pelos Estados Unidos, que,
como desabafou o escritor e documentarista norte-americano, Michael Moore,
colocou um “sociopata” para comandar a nação mais poderosa do planeta?
Há muitas hipóteses para esse fenômeno. Freud (1921: 107) afirma que en-
tre alguns tipos de grupos, sobretudo aqueles nos quais a presença do chefe é
determinante, como na Igreja e no Exército, cada indivíduo está ligado por laços
libidinais por um lado ao líder. Haveria, assim, uma identificação com o chefe. Para
Freud (1921: 116), a identificação é a forma mais primitiva e original do laço emo-
cional. Suponhamos os líderes terroristas, quais mecanismos levaram pessoas, em
todo o mundo, a se vincularem a esse movimento, alimentado pelo fanatismo, pela
violência, pela morte, inclusive, treinam esses organismos para matar sem sentirem
culpa ou remorso, ainda nos seus primeiros anos de vida.
Há outro fenômeno psíquico do grupo que Freud chama de idealização, uma
forma de supervalorização do ideal, em alguma medida sexual, que vai além das
fronteiras da identificação. Para Freud (1921: 123), nessa circunstância, o objeto
foi colocado no lugar do ideal do ego. Diz que, no caso da identificação, o ego se en-
riquece, pois supõe qualidades às características do objeto, do líder, apesar de sua
condição de servidão. Já na idealização, ele se empobrece, uma vez que se entrega
totalmente a ele, idealiza coisas que não possuem existência real, divinificando-
-o. Freud chega a comentar que, por vezes, essas coisas se interpenetram. Sobre
o estado de hipnose característico dessa relação, supõe se tratar de uma devoção
ilimitada de alguém enamorado, mas excluída a satisfação sexual. Sigmund afirma
que, mesmo isso acontecendo, não seria capaz de explicar a falta de independência
e iniciativa de seus membros, a semelhança nas relações de todos eles, sua redução, por
assim dizer, ao nível de indivíduos grupais (1921: 127).
Sabemos também que a idealização e culto aos líderes pode ser decorrente de
uma arquitetada fabricação da sua imagem, como fizera Hitler ao escrever uma

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

biografia intitulada Adolf Hitler: Sua Vida e Seus Discursos, assinada por Adof
Victor von Koerber, enaltecendo-se. Nela, Hitler é comparado a Jesus Cristo e
considerado o único capaz de salvar a Alemanha da degradação.
Na tentativa de se aprofundar nessas questões, Freud trabalha a noção de Trot-
ter sobre o instinto de rebanho, que ele supõe condição inata do ser humano, tal
como nas espécies de outros animais. Afirma que, nesse caso, o rebanho está sem
pastor. Nessa direção, concorda com Darwin sobre a hipótese de que a forma
primitiva da sociedade humana era de uma horda governada, despoticamente,
por um macho poderoso: O pai da hora primeva, porém, era livre. Os atos inte-
lectuais deste eram fortes e independentes, mesmo no isolamento, e sua vontade não
necessitava do reforço dos outros. A congruência leva-nos a presumir que seu ego
possuía poucos vínculos libidinais; ele não amava ninguém, a não ser a si próprio,
ou a outras pessoas, na medida em que atendiam às suas necessidades. Aos objetos,
seu ego não dava mais que o estreitamente necessário (1921: 133). Na horda, en-
contramos o gene do forte e o DNA dos fracos, para a mitologia freudiana.
Desde a vinda dos sapiens da África, há cerca de 200 mil anos, eles já estavam
sob o domínio de líderes? Já os obedeciam? Já seriam rebanhos governados por
machos dominantes? Qual seriam as funções dos subjugados?
O psicanalista Sérgio Becker, em seu livro A Fantasia da Eleição Divina: Deus e o
Homem, afirma que, no tempo do totemismo, a magia, o animismo e a onipotência
de pensamentos eram formas de saber. São esses saberes que formam a ilusão do na-
zismo. Há uma involução na experiência nazista. O totemismo retornou invertido
na parafrenia de massa do nazismo e caímos no holocausto (1999: 33).
A fantasia da eleição divina, proposta aqui, é algo mais que a identificação e
idealização. Trata-se de uma conversão a uma verdade, como um delírio, por
exemplo, a crença na pureza biológica de uma classe social, uma raça superior
branca, germânica22. Trata-se de um delírio biologizante que tomou conta de
parte das mentes alemãs e de outros grupos humanos durante a Segunda Guerra
Mundial. Pensando freudianamente, que persiste nas almas humanas até os dias
atuais.
22 Pesquisas revelaram que 1% a 4% do DNA das populações modernas no Oriente Médio e na Europa
são de neandertal (HARARI, 2016: 24).

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Há uma aposta que as massas atuantes no holocausto, como puxadas pelas for-
ças de um buraco negro, foram imatizadas para o delírio nazista. Como afirma
Lacan, no Seminário, Livro 3: As Psicoses (2008), todo delírio exige uma solução
final. Becker (1999: 158) vai dizer tratar-se de um delírio de natureza parafrê-
nica, pois parte para a aniquilação lenta e gradual do outro, tomado como objeto
irreal no campo de concentração, ao contrário da paranoia, que busca desespera-
damente uma estabilização do delírio na reconciliação com o Outro. Sustenta que
o fundamentalismo se fará sempre sobre o conteúdo da fantasia da eleição divina
(1999: 100).
Charles Mackey (1814-1889), no seu livro Ilusões Populares e a Loucura das
Massas (2001), diz-nos que os homens enlouquecem em bandos, ao passo que só
recobram a lucidez lentamente e um a um. Nietzsche, em A Genealogia da Moral
(1983), escreveu que a Terra é há muito tempo um manicômio. Se romantizar-
mos a natureza da espécie humana, poderemos supor impensáveis as atrocidades
praticadas por ela em seus próprios semelhantes, ao longo de seu processo de
humanização, antes, um permanente processo de animalização.
Freud, teórico da maldade humana, não acreditava, efetivamente, que aquele
mal que ele pensava o atingiria tão abruptamente. Chegou a duvidar de que a
Áustria seria anexada à Alemanha e, caso isso acontecesse, ingenuamente, não
pensava quão avassaladora seria a sua passagem por seu lar.
Marcuse (1999: 28) destacaria outro fenômeno dessa dimensão. Vai nos dizer
que os campos de concentração, extermínios em massa, guerras mundiais e bombas
atômicas não são “recaídas no barbasrismo”, mas a implementação irreprimida das
conquistas das ciências modernas, da tecnologia e dominação dos nossos tempos. E a
mais eficaz subjugação e destruição do homem pelo homem tem lugar no apogeu da
civilização, quando as realizações materiais e intelectuais da humanidade parecem
permitir a criação de um mundo verdadeiramente livre.
É. Pensando nos destinos possíveis da humanidade, não ter destino é uma dessas
possibilidades. À ciência que criou as armas de destruição em massa, que trouxe
esse fantasma para perturbar os sonos das nossas existências tão atormentadas,
Harari (2016: 383) sugere que tão monstruosa construção é digna de grandes
elogios humanitários, escrevendo: O Prêmio Nobel da Paz definitivo deveria ter
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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

sido dado a Robert Oppenheimer e seus colegas que criaram a bomba atômica. As
armas nucleares transformaram as guerras entre superpotências em suicídio coletivo
e tornaram impossível procurar a dominação mundial pela força das armas.
Não só as ameaças nucleares, mas, permanentemente, vivemos amedrontados
com a possibilidade de extinção da nossa espécie, que pode ser provocada por
fatores naturais, como a causa da extinção dos dinossauros, há 65 milhões de
anos, ou algum outro tipo de desastre biológico.
Já no século XX, a gripe espanhola exterminou um terço da população do pla-
neta. A epidemia de Ebola, nos anos de 2014 e 2015, na África Ocidental, que
deixou todo o globo em estado de alerta, tendo infectado 30 mil pessoas, das
quais 11 mil morreram, parecia algo fora do controle, mas, em 2016, a Organi-
zação Mundial de Saúde (OMS) declarou a sua erradicação. Desde sua primeira
irrupção, na década de 1980, a AIDS já matou mais de 30 milhões de pessoas
(HARARI, 2016b: 19; 21), sem contar o transtorno vivido pela ameaça da cria-
ção de um vírus terrorista.
Com suas carnificinas midiatizadas, grupos terroristas têm deixado a humani-
dade em sobressaltos. Harari (2016: 27-28) faz uma análise bastante curiosa a
respeito do seu êxito na atualidade: Em 2010 enquanto a obesidade e doenças
relacionadas a esse mal mataram cerca de 3 milhões de pessoas, terroristas mataram
7.697 indivíduos. Assegura: a Coca-Cola representa um perigo muito maior do
que a Al-Qaeda. Descrevendo o terrorismo como uma estratégia de fraqueza dos
fracassados, assegurando que eles são como uma mosca tentando destruir uma loja
de porcelana. A mosca é tão fraca que não é capaz de deslocar uma única xícara de
chá. Então ela encontra um touro, entra em sua orelha e começa a zunir. O touro
fica louco de medo e raiva – e destrói toda a loja de porcelanas.
Em 2012, morreram, em todo o mundo, cerca de 56 milhões de pessoas, destes,
620 mil foram em decorrência da violência humana (120 mil em guerras e 500
vítimas de outros crimes). São números significativamente menores que as mor-
tes contabilizadas em suicídios (800 mil) e, pasmem, 1,5 milhão causado pelo
diabetes. O açúcar é mais letal que a pólvora (HARARI, 2016: 24).
Aqui, retomamos uma dimensão clássica do pensamento de Freud, os conflitos

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entre o princípio de prazer e o princípio de realidade, a partir dos quais analisa-


mos seu conceito de civilização, para ele, produto da subjugação, diria mesmo,
repressão, dos instintos humanos. Freud não acreditava na possibilidade de uma
civilização não repressiva. Reafirmava que a besta humana tinha que ser domada.
Entretanto, o espírito de Eros e Civilização, uma obra clássica de Hebert Marcu-
se (1999: 28), propõe uma antítese às fendas dessa tese freudiana, afirmando: a
própria concepção teórica de Freud parece refutar a sua firme negação da possibili-
dade histórica de uma civilização não-repressiva; e, segundo, as próprias realizações
da civilização repressiva parecem criar as precondições para a gradual abolição da
repressão.
Godoy (2008: 198), analisando o pensamento do Thoreau, descreve que ele vis-
lumbrou uma natureza infinitamente mais vasta do que a imensidão selvagem: o
homem livre do peso das normas e das obrigações, livre da origem e do fundamento,
para quem conservar a wildness não era conservar no homem a natureza, tam-
pouco a natureza para o homem, mas conservar a liberdade como possibilidade de
vida, expressão de um modo de existência que inventa valores. Eis a força de Eros,
tanatizada por Freud.
O pai da psicanálise fala de um lugar da repressão como um rizoma23 da alma.
Marcuse busca, nas profundezas desses enraizamentos sem raízes, o lugar da do-
minação. Viveiros de Castro (2002), na sua obra A Inconstância da Alma Selva-
gem, traz o exemplo dos indígenas sob a cruz da dominação colonial: Eram como
sua terra, enganosamente fértil, onde tudo parecia se poder plantar, mas onde nada
brotava que não fosse sufocado “in continenti” pelas ervas daninhas. Esse gentio sem
fé, sem lei e sem rei não oferecia um solo psicológico e institucional onde o Evange-
lho pudesse deitar raízes. Como os índios de Viveiros, os homens, em estado de
repressão e silenciamento, escondem a palavra do selvagem, lugar da emoção e
da comoção, antes um grito latente de uma alma emudecida, cujo silêncio subju-
gado é uma fera acorrentada. Pode se soltar.
Marcuse (1999), cuja obra defende ser uma contribuição à filosofia da psicanáli-
se e não à clínica, sustentando a tese de que a civilização possa se desenvolver so-
23 Um bom conceito para entendermos o labirinto que é a alma humana, sem começo nem fim. Um caminho onde se
encontram o secreto conhecimento do nosso início e o inacessível saber sobre nosso término. Importante vivermos na
linha que liga esses dois impossíveis!

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

bre o princípio da não repressão, ao contrário do que escreveu Freud, para o qual
a história do homem é a história da sua repressão, toma o conceito de repressão
numa perspectiva sócio-histórica e, idealiza, a humanidade poderá desvincular-
-se dessa sua animalidade para um padrão civilizacional que não seja estruturado
sobre a égide da violência, do domínio e da repressão. Nessa perspectiva, numa
direção oposta ao pensamento freudiano, Deleuze e Guattari (1995: 58) vão
afirmar que a vida deve responder à resposta da morte, não fugindo a ela, mas
fazendo com que a fuga atue e crie.
A ecologia proposta por Marcuse se assemelha à ecologia selvagem de Thoreau,
uma ecologia como experimentação de si, na qual as condições de existência e os
modos de existência são imanentes (in GODOY, 2008: 295). Em Freud, essa
experimentação deságua no impossível e, em Marcuse, no possível. Trata-se de
uma escolha entre o otimismo e o pessimismo nas análises sobre as civilizações
humanas.
Hitler, em Mein Kampf24, obra que escreveu durante os três anos que esteve na
prisão (1923-1926), publicada em 1927, afirma que a massa é extremamente in-
fluenciável e crédula facilmente, é acrítica e o improvável não existe para ela... os
sentimentos das massas são sempre muito simples e exaltados. A massa não conhece,
portanto, nem dúvida, nem certeza.
Freud (1921), em Psicologia de Grupo, escreveu: um grupo é extremante crédulo
e aberto à influência; não possui faculdade crítica e o improvável não existe para
ele... Os sentimentos de um grupo são sempre muito simples e muito exagerados, de
maneira que não conhece a dúvida nem a certeza.
Esses fragmentos a respeito da análise das massas mostram como Hitler era um
leitor assíduo de Freud, a quem, certamente, pedira esmola nas calçadas de Viena
(EDMUNDOSON, 2009).
A ideia de uma pureza étnico-racial, viva, é, antes, uma estrutura imaginária,
haja vista não haver nenhuma prova de que, em algum canto deste planeta, os
restos e as sobras das espécies humanas que existiram, e mesmo da que restou
(sapiens), desde tempos primitivos, tenham se desenvolvido de forma isolada,

24 Minha Luta. Lisboa: Afrodite, 1976.


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Juracy Marques |

nem naqueles grupos em que a endogamia era mais severa. O código genético
humano, popularmente conhecido como genoma, é 99,8% igual em todas as
pessoas. Nossas insignificantes diferenças individuais são estabelecidas por essa
minúscula fração que fica de fora.
A superioridade ou inferioridade das raças é um jogo de poder. Só é factível
discutir «raça» porque as diferenças entre elas são estabelecidas por uma
ideologia de outra que ocupa lugar de supremacia, caso contrário, seria um
debate desnecessário. Hoje, esse fundamento se aninha nas consciências das
massas que consomem a fantasia da negação de si, para o bem e para o mal,
como uma verdade, ou seja, alucinam na afirmação de sua negação. Nessa di-
reção, Nietzsche pondera que não existe coisa em si, nenhum conhecimento ab-
soluto. O caráter perspectivista, ilusório, falsificador é intrínseco à existência (in
GODOY, 2008: 45).
Para Becker (1999: 71), o antissemitismo nazista tem suas origens nas mudanças
culturais do século XVIII. Nesse período, há o destaque dos judeus no campo
político, comercial e financeiro e o cristianismo sofre um momento de declínio.
Em A Fantasia da Eleição Divina (1999: 96), sugere que o mito ariano procurou
uma solução não judaico-cristã para a questão da origem do homem. Assim, o
nazismo reivindica para si todo o patrimônio cultural da humanidade através do
mito ariano. Os trabalhos de Darwin e Freud vêm promover um corte que nos con-
duz à compreensão do que está em jogo. Hitler transformou o falso mito ariano da
raça pura no eu ideal nazi. Becker afirma que o campo de concentração foi o fenô-
meno de deslibinização definitiva dessa representação-fantasia.
Por que os judeus? Pergunta, até hoje, a humanidade inteira. Observamos, os ju-
deus são alvo de perseguição bem antes do nazismo que foi, a partir de dois me-
canismos, a patologia de um indivíduo monstruoso, Adolf Hitler, e a manifesta-
ção da pulsão de morte “adormecida” nas consciências das massas, o coroamento
de uma das feições da crueldade humana.
Freud, nas suas últimas formulações, vai descrever essa potencialidade humana
de destruição, como uma força que se contrapõe às pulsões de vida e que tende
para a redução completa das tensões, isto é, tendem a reconstruir o ser vivo ao estado
anorgânico. Voltadas inicialmente para o interior e tendendo à autodestruição, as
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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

pulsões de morte seriam secundariamente dirigidas para o exterior, manifestan-


do-se então sob a forma da pulsão de agressão ou de destruição (LAPLANCHE,
2001: 407). Freud conseguiu chegar ao âmago do que traz como mistério à nossa
espécie: tanto quanto o poder de amar, o poder e o prazer de destruir, de matar.
Freud era judeu circuncidado, ou seja, possuía no corpo o corte, a marca da re-
lação entre Deus e Abraão. Era um escolhido. Ingressou no pacto judaico uma
semana após seu nascimento, em 13 de maio de 1856. Esse acordo consta no
livro de Gênesis (17): todo o que for do sexo masculino será circuncidado... aqueles
que recusarem aceitar os termos deste acordo terão de deixar de fazer parte do seu
povo, visto violam o meu contrato.
Essa cicatriz é a escrita no corpo da suposição da eleição divina, conforme o contex-
to do povo judeu. Antes, esse ato era feito pelos próprios pais, caracterizando-se,
para Freud, como um substituto da castração imposto pelo pai da horda primitiva,
tal qual suponha Darwin, o qual deduziu, a partir da observação dos hábitos dos
símios superiores, que a humanidade primeva vivia em pequenas hordas domina-
das pelos machos mais fortes, que subjugavam as fêmeas e os filhos.
Para Freud, conforme observa em estudos sobre costumes no Egito Antigo, a
circuncisão foi introduzida por Moisés entre os judeus na época do cativeiro no
Egito. Para Lacan (2005), Não há nada mais castrador do que a circuncisão, diga-
-se, uma letra judaica. Acrescentaria a esse ritual de mutilação do corpo humano
a excisão nos órgãos genitais femininos, ainda praticada em algumas culturas
contemporâneas.
Mas à revelia de tudo isso, Freud permaneceu judeu. No prefácio à tradução hebraica
de Totem e Tabu (1913: 19), destaca que nenhum leitor [da versão hebraica] achará
fácil colocar-se na posição emocional de um autor ignorante da linguagem da sagrada
escritura, completamente alheio à religião de seus pais – bem como a qualquer outra re-
ligião – e não pode partilhar ideias nacionalistas, mas que, no entanto, nunca repudiou
seu povo, que sente ser, em sua natureza essencial, um judeu e não tem nenhum desejo
de alterar essa natureza.
Além desse distanciamento da essencialidade judaica, em sua última obra, O
Moisés e o Monoteísmo (1939: 19), Freud quebra o pilar da estrutura judaica ao

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Juracy Marques |

sustentar a tese de que Moisés é egípcio e não judeu. Abre seu último artigo
dizendo: Privar um povo do homem de quem se orgulha como maior de seus fi-
lhos não é algo a ser alegre ou descuidadamente empreendido, e muito menos por
alguém que, ele próprio, é um deles. Mas não podemos permitir que uma reflexão
como esta nos induza a pôr de lado a verdade, em favor do que se supõe serem inte-
resses nacionais.
Como escreve Becker (1999: 29), é Paulo quem vai propor a ruptura dos novos
seguidores do cristianismo, que começou como uma seita judaico esotérica25, com a
circuncisão, ou seja, com o judaísmo: Paulo, ao perceber que sua propaganda não
iria se desenvolver, tomou a decisão capital de dispensar os novos simpatizantes da
circuncisão e, num ato, separou o cristianismo, agora a religião do Filho e não mais
do Pai, como é o judaísmo.
“Sigi” foi alfabetizado em hebraico por seu avô paterno, que sempre lia com
ele a Torah, o Velho Testamento. Também contou com um grande professor da
língua dos judeus, Samuel Hammerschlag, sobre o qual escreverá em 1904: em
sua alma ardia a centelha refulgente do espírito dos grandes profetas do judaísmo
(ROUDINESCO, 2016: 23).
A terrível expressão dos nazistas se deu, sobretudo, sobre o povo de Freud. Hitler
lera atentamente suas obras, particularmente Psicologia de Grupo e Análise do
Ego (1921). Foi analisando a obra Mein Kampf, a “bíblia” de Hitler, que o pai da
psicanálise percebeu ter sido cuidadosamente lido pelo pai do nazismo. O frus-
trado artista, rejeitado duas vezes na Academia de Belas-Artes de Viena, Adolf
Hitler, perseguiu Freud até seus últimos dias: interditou a fachada da Bergasse
19, consultório de Freud em Viena, com a suástica, destituiu a sociedade de psi-
canálise, fechou a editora e queimou seus livros, condenou-o a deixar seu país e
matou suas irmãs em campos de concentração.
Destaca o criador da psicanálise que a humanidade exerceu, inicialmente, a vio-
lência pelo uso da força bruta, depois pelos instrumentos e intelectos, transplan-
tadas para outras funções e usos pelas sociedades, pela civilização. Ao tratar da
hipótese da capacidade das coletividades, que suplantaram os estados individu-
ais de violência, inferiu que não há maneira de eliminar totalmente os impulsos
25 Harari (2016: 225).
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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

agressivos do homem; pode-se tentar desviá-los num grau que não necessitem encon-
trar expressão na guerra.
A pouca esperança de Freud era a sublimação: o acesso à civilização (cultura), úni-
ca instância capaz de permitir, mediante a sublimação, a dominação das pulsões de
destruição, isto é, do estado de natureza, desse estado selvagem e bárbaro que é um
componente da psique humana desde a antiga “horda selvagem” (ROUDINES-
CO, 2016: 394).
Vimos que a história humana é masculina, eu, esperanço-me com o papel civi-
lizador do feminino, como observado entre os elefantes e os bonobos, espécies
matriarcais. Defendo a sublimação feminina como revolução. Mas, estamos avi-
sados, a humanidade já recorreu à castração. Capou touros desde 10 mil anos
atrás, castratus, eunucos, inventou a circuncisão e excisão, e nada ainda. Está por
vir a beleza do feminino!
As cenas do mundo contemporâneo evidenciam quão atual são as teorias de
Freud sobre a dimensão humana, sobre seus desejos de amor (Eros) e morte (Ta-
natos). Freud vai pensar o animal humano a partir das tensões geradas nas suas
lutas de apaziguamento com as exigências da vida em sociedade, cujos recalques
serão base da sua estrutura inconsciente.
Em Formulações Sobre os Dois Princípios do Funcionamento Mental (1911),
Freud afirma que a função mental mais básica é relacionada ao inconsciente e às
fantasias que os bebês criam quando deparam pela primeira vez com o mundo exte-
rior. Conforme descreve Marcuse (1999: 34), em Freud, a passagem do homem
animal para o ser humano se dá a partir de uma mudança estrutural em sua natu-
reza, a transformação do princípio de prazer em princípio de realidade: com o esta-
belecimento do princípio de realidade, o ser humano que, sob o princípio de prazer,
dificilmente pouco mais seria do que um feixe de impulsos animais, converte-se num
ego organizado. Esse é o grande acontecimento traumático no desenvolvimento
do homem (1999: 36). O bicho, o id, virou homem, o ego, sobre o controle ex-
cessivo, vigilante e punitivo do hambiente, o superego.
Nos tempos de agora, qual a questão central sobre o ser? A vida, a morte, a guer-
ra, a agonia, a paz, o amor, a tristeza, a felicidade, a esperança, a natureza, a cul-

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tura, a doçura ou o amargo da existência? A eternidade? O que tornaria uma


pergunta sobre o ser humano algo ainda digno de ser pensado?
O animal humano é a estrutura epistemológica chave da ecologia humana e da
psicanálise. Escolhemos, como campo de análise, essa espécie como os botâni-
cos desejam saber sobre os segredos das flores, os ornitólogos dos pássaros, os
ictiólogos dos peixes. Nós ambicionamos desvendar o segredo da nossa própria
espécie. Queremos entender seu corpo, sua alma e seu espírito.
Os pesquisadores norte-americanos Peter Tompkins e Christopher Bird, no li-
vro A Vida Secreta das Plantas (1976), no qual defendem a tese de que as plan-
tas se comunicam, são sensíveis, memorizam experiências de prazer e dor, sen-
tem medo e afeto, são inteligentes e têm vontade, dizem-nos que, com exceção
de Afrodite, não existe nada neste planeta mais adorável que uma flor, nem nada
mais essencial que uma planta. A verdadeira matriz da vida humana é o relvado
de que se veste a Mãe Terra. Sobre a sobrevivência da nossa espécie, sabemos, ela
se alimentava de plantas e frutos e só depois se tornou carniceira. Éramos, antes,
animais herbívoros.
Uma das transições que estudamos do animal ao humano foi sua disposição para
comer carne, para se alimentar de outros bichos e, assim, caminhar, caminhar.
Hoje, a produção animal em grandes escalas está no cerne dos insondáveis pro-
blemas socioambientais, quer nos reportemos ao aquecimento do planeta ou,
mesmo, à destruição das florestas. Um ato radical da humanidade para resolver
graves problemas ecológicos seria: parar de comer carne de outros bichos. Isso
é uma herança de quando éramos feras. Acho, não estamos tratando desses ani-
mais que um dia fomos ao nos reportarmos aos humanos. Acho. E sobre as plan-
tas, alimentar-se de quaisquer partes delas, frutos, folhas, raízes, cascas, galhos,
permitindo-lhes que completem seus ciclos de vida.
Mas há quem defenda que, no fim da história, nossa era, os humanos estão voltan-
do à sua animalidade. Citando Kojève sobre esse retorno ao animal do humano, o
filósofo italiano Giorgio Agamben, no seu livro O Aberto: O Homem e o Animal
(2013), escreve: o retorno do homem à animalidade aparece então não como uma
possibilidade futura, mas como uma certeza já presente. Mas, ratifica, enquanto tiver
animais da espécie Homo sapiens disposto a servir àquilo que há de humano nos
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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

homens, essa possibilidade não se efetivará por completo. É assim que nos apaga-
mos para fazer existir o Outro, em que o animal se torna servo.
Escreve Agamben (2013): O permanecer humano do homem supõe a sobrevivên-
cia dos animais da espécie Homo sapiens que devem servir-lhe de suporte. O homem
não é uma espécie biologicamente definida nem uma substância dada de uma vez
por todas: é, acima de tudo, um campo de tensões dialéticas sempre já talhado por
cortes que nele separam toda vez, pelo menos virtualmente, a animalidade e a hu-
manidade que nele se encarna. Isso é essencialmente freudiano.
Ao pensarmos sobre o humano-animal ou o animal-humano, queremos saber o
que une um ao outro. Agamben (2013) fala que o que está entre um e outro é
o aberto, tomando uma análise apresentada por Heidegger. Com ele, pensamos
que entre o animal e o humano existe uma fenda, uma trans-rachadura.
É nesse abismo onde o Ser nasce. Sobre a existência, só o homem pode ser. Ter-
-ser sua própria realidade, ou seja, sair do ambiente (lugar do animal) e cons-
truir seu mundo (hambiente - lugar do ser). A essa ponte, aqui nomeada como
o aberto, chama-se trabalho, outros, linguagem. Sem esta última, para Agamben
(2013), o homem é um homem-animal e não um animal humano. A linguagem é
a morada do ser, ratificou Freud.
O animal não precisa de um mundo simbólico para viver. Basta-lhe um ambien-
te sem símbolos respectivos. Nós, animais humanos, sem ele, surtaríamos. O real
da nossa realidade é da ordem do insuportável. Quando nos falta o símbolo,
simbolizamos a falta do símbolo. Assim, inventamos o mundo das nossas vidas.
Criamos a ecologia do ser, que é a ecologia de Freud.
Pensa-se que os animais e as plantas vivem no ambiente, na condição de ator-
doados. Agamben (2013) exemplifica essa condição de ser-sem-o-mundo, a par-
tir de um experimento descrito por Heidegger, no qual uma abelha é colocada
frente a um pote de mel. Enquanto a abelha se lambuza com a doçura do mel e
todas as outras satisfações decorrentes, é feito um corte no seu abdômen. Ela,
tranquilamente, continua a sugar o mel que escorre por seu corpo aberto.
O ser do animal some na satisfação, é absorvido. A abelha está aberta, atordoa-
da, satisfeita, morta. Essa é a condição do animal. O ser é a abelha que percebe

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o corte no próprio corpo. É uma abelha que não entende a mensagem de uma
outra abelha quando comunica a descoberta do néctar da flor. O ser humano é
um peixe que deseja pastar com as ovelhas.
Segundo Agamben (2013), dois animais coabitam o humano: a vida orgânica
do animal-de-dentro que começa no feto, antes da vida animal, e o animal-de-
-fora, aquele que sobrevive à morte, após o envelhecimento e a agonia. Pensaria,
aqui, que o animal-de-dentro é a alma e o animal-de-fora, o espírito.
O corpo é o suporte para esses animais humanos que o habitam, dentro e fora,
no aberto e no fechado. À ciência ficou a obrigação de caminhar pelos trilhos da
verdade, e essa não seria uma elaboração possível. Em se tratando do humano,
tudo possível é impossível e nada do impossível não é possível. O impossível é
possível. O humano cabe numa perspectiva integral do ser que inclua seu corpo,
sua alma e seu espírito.
Mas Agamben (2013) não concorda com essa articulação e esse conjunção entre
corpo, alma e espírito. Escreve: Devemos, em vez disso, começar a pensar o homem
como aquele que resulta da desconexão desses dois elementos e investigar não o mis-
tério metafísico da conjunção, mas aquele prático e político da separação. O que é o
homem, se ele é o lugar, e, mais, o resultado, de divisões e cortes incessantes?
Deveras, Freud se apartou, estrategicamente, dessas análises transcendentais da
espécie humana, apontadas como ilusão, como obsessão, como histeria. Isso é
uma das telas que o separa de Jung. No campo da ecologia humana, eu me dedi-
quei, há um tempo, a essas separações que dão ideia de pedaços dissociados de
uma mesma unidade humana (corpo, alma e espírito).
São, antes, estruturas didáticas para, minimamente, anunciar a complexidade do
fenômeno humano que somos e estudamos. Para tanto, parto da premissa de que
a ecologia humana é uma ética para a vida (TAPIA, 1993), que diz respeito à
posição do ser nas suas dimensões mental-psíquica (Ecologia da Alma), biológi-
co-corporal (Ecologia do Corpo) e simbólico-espiritual (Ecologia do Espírito).
Durante um tempo da minha vida, dediquei-me a analisar cada uma dessas di-
mensões e suas interfaces com a ecologia humana. Desse esforço, produzi três
livros publicados no mestrado de ecologia humana da UNEB (Universidade do

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

Estado da Bahia), os quais considero serem as três ecologias do ser: Ecologia da


Alma (2012), no qual discuto o conceito de mente-alma-psiquê como um fe-
nômeno central da relação do ser-humano com a natureza; Ecologia do Corpo
(2015), em que abordo o corpo como um ecossistema, primeiro hambiente com
o qual nos relacionamos; e Ecologia do Espírito (2016), no qual postulo o espí-
rito como uma propriedade material fundamental da constituição do universo
e das relações entre os humanos e a natureza, agora apontada na sua dimensão
cósmica, deslocando os sistemas ecológicos para uma escala do universo, numa
perspectiva transcendente. Tudo isso integra o que chamo de ser. Esse não foi o
percurso de Freud.
Mas a nossa vida precisa ter-ser? Basta-nos o animal nos habitando ou o animal
deve ter-ser? Costurar nossas vidas remendando, com linha e agulha, o corpo, a
alma e o espírito? Esse remendo é feito pela linguagem, com a linguagem. Des-
creve Agamben (2013): O homem não possui nenhuma identidade específica que
não aquela de poder reconhecer-se. Mas definir o humano não por meio de uma
característica notável, mas por meio do conhecimento de si, significa que é homem
aquele que se reconhece como tal, que o homem é o animal que deve reconhecer-se
humano para sê-lo.
Lacan (1998) ratifica essa tese, quando afirma que: 1) Um homem sabe o que não
é um homem; 2) Os homens se reconhecem entre si como sendo homens; 3) Eu afir-
mo ser homem, por medo de ser convencido pelos homens de não ser homem. Assim,
o ser é aquele que reconhece que não é ser, ou seja, a descoberta humanística do
homem é a descoberta da falta de si mesmo, de sua irremediável carência (AGAM-
BEN, 2013), daí ser absurdamente inapropriado o termo “sapiens”. O ser existe
porque ele se falta, não sabe sobre sua existência.
Agamben (2013) vai apontar que o ser está no mundo, enquanto o animal, assim
como as plantas e os outros bichos, está no ambiente. As pedras e outras estru-
turas imóveis da natureza estão no terreno. Para Agamben, o ser no mundo é da
esfera do aberto, enquanto o animal, da esfera do fechado. Só se chega ao ser por
uma escavação, pela abertura do fechado e, sobretudo, pela abertura do aberto.
Em regra, tanto o homem como o animal estão abertos a um fechamento. Alerta
Agamben (2013): aquele que observa no aberto vê apenas um fechamento, ape-

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Juracy Marques |

nas um não ver. Permanecerão fechados enquanto não escavarem o fechado do


aberto. Descreve o que é o humano: esse se abrir angustiante e decidido a um não
aberto. O inconsciente freudiano foi uma das evidências dessa trans-rachadura
humana.
Hoje, a humanidade se fechou à sua própria abertura. Abrimos o fechado do
animal e fechamos o aberto do humano. Falaríamos, pois, de uma animalidade
aberta e de uma humanidade fechada? É a abertura do vazio que torna cheio o
significado da vida humana, que passa a ser atravessada pelo nada.
A natureza humana, hoje, pode ser pensada como uma esfera fechada (huma-
nosfera, antroposfera), como um mundo do fechamento? Quando esse fecha-
mento se abre é abertura. Quando o aberto se abre é transabertura, uma trans-
-rachadura, onde localizamos a natureza do animal humano, que é um devir que
está numa fenda, numa divisa, num corte.
O humano-animal não conhece nem aberto nem fechado. Como afirma Agam-
ben (2013), ele está fora do ser, fora em uma exterioridade mais externa que qual-
quer aberto, e dentro em uma intimidade mais interna que qualquer encerramen-
to. Deixar ser o animal significará então: deixá-lo ser fora do ser.
O animal humano que somos, esse ser, nunca, como antes, precisou tanto pensar
seu sentido. Nos nossos olhos dormem as estrelas, no assoalho da nossa alma, os
mares, as flores, os bichos. São, ao mesmo tempo, lâminas de sentidos que todo
nosso ser experimenta e acolhe no espírito.
Mas paira sobre esse olhar criança, na nossa inocência do bicho, do animal hu-
mano, diria mesmo do ser, mesmo as feras entre nós, por mais que neguem, so-
frem do desamparo sobre o enigma da sua vida e a clareza da sua morte, como o
sol que nasce após a turva noite, bela, enfeitada pela lua, pelos astros, pelo sono
e pelos nossos sonhos, e que depois dorme. Aliás, como nós, finge dormir, pois
somos eternamente acordados. Isso mostrou a tese freudiana da intepretação dos
sonhos. Estamos mais acordados do que nunca quando dormimos.
A morte é uma necessidade que escraviza outra necessidade: a descascação do
ser. Ninguém deveria morrer sem descascar-se. Como as aves perdem as plumas,
nós, humanos, devemos entender como perdemos o corpo. Sobre a alma e o es-

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

pírito, devemos desentender como achá-los. O que há depois do ser? Depois de


ser, nesta vida, ou em outras, o ser será outro ser? Ele está dentro ou fora de si?
Ser fora do ser. Somos. Somos um ser fora do ser. Se assim, a ecologia do ser é
uma experiência do que não fomos, apenas nos tornamos, sendo tornados. As
tempestades, as chuvas que nos descascam, que nos arranca a pele, a carne ou o
osso, deixa-nus com a esperança do que resta do ser: o ser do resto. Esse abrir,
que é o ser, é o nome que resta para desenhar o humano do ser, o ser humano.

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Juracy Marques |

2. Hecossistema
Eu me esqueço. Não seria essa a condição do ser? Se esque-ser? Quem se lembra
de si, dos seus sonhos, dos seus desejos, de onde veio? Quem lembra quem é?
Mal sabemos um nome, antes, um apagamento. O saber do ser não se sabe. O sa-
piens não sabe. Esquecemo-nos para nos lembrar de que não sabemos das nossas
lembranças, mas sabemos dos nossos esquecimentos.
O esquecimento, lembrado na psicanálise como recalque, talvez seja a estrutu-
ra mais importante dessa ciência do inconsciente. Segundo Laplanche (2001:
430), trata-se da operação pela qual o sujeito procura repelir ou manter no incons-
ciente representações (pensamentos, imagens, recordações) ligadas a uma pulsão.
O recalque produz-se nos casos em que a satisfação de uma pulsão – suscetível de
proporcionar prazer por si mesmo – ameaçaria provocar desprazer relativamente
a outras exigências.
O ser é cortado por janelas que abre o interior para dentro e fecha o exterior para
fora. Não ele, só Deus, está dentro e fora. Quando o ser está dentro, ele esquece
de fora e, quando fora, ele esquece de dentro. E mesmo as lembranças de fora
e de dentro deixam escapar o sentido das suas fendas, dos seus cortes, dos seus
abismos.
O filme Billy Elliot (2000, Inglaterra), de Stephen Daldry, narra a vida de uma
criança que descobre seu ser na agonia de ser outro ser. Esse ser sonhava em ser
dançarino. Pulava, gritava, corria, fugindo do desamparo que o habitava. Per-
guntaram-lhe: O que você sente quando você dança? A criança, pelo olhar, como
uma cachoeira, deixa escorrer seu estado de desamparo e responde: Não sei!
Continua: Me sinto bem. No começo é duro, mas quando começo, me esqueço de
tudo, e é como se eu desaparecesse, sinto algo mudando dentro de mim, como um
fogo no meu corpo, e fico lá, voando como um pássaro, é como a eletricidade.
Identifiquei-me profundamente com essa criança. A realidade desse filme se
parece com a ficção da nossa vida. Na maioria das vezes, suportamos a existên-
cia porque não estamos na existência. Se tivéssemos que dar nome à angústia
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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

do ser, só haveria uma palavra: ausência. Vivemos para fingir que temos uma
vida. Mentimos o tempo todo sobre as coisas que temos em nossas almas. Tra-
zemos no corpo um baú, onde os velhos mapas mostram-nos os caminhos de
como o bicho deu lugar ao animal e este ao humano, até que, um dia, este se
tornou ser. Acabou?
A evolução do espírito humano não termina aí. Tudo é o estranho. Um vento
que enche o ser de entusiasmo, quando é possível. Somos bolinhas de sabão, de
pele leve e colorida, mas cheios de ventos de outrem que nos levam. Essa casca
tão logo nos deixa longe, destrói-nos. O ser cheio de nada precisa de tudo para
esvaziar-se. Para ser ser, é preciso uma coragem inconfessável. Às vezes, requer
que troquemos a pele, as sombras, os órgãos, o sopro. Exige que nos descasque-
mos.
O Outro é o amuleto da ecologia do ser que mente como ser. Eis nosso hecos-
sistema: onde tudo parece verdade, tudo é mentira, ilusão. Há nele a força dos
galhos, das raízes e dos frutos, adormecidos como potência de vontade. Não de-
veríamos dar nenhum passo negando o nosso próprio desejo, mentindo para si,
mesmo que isso nos deixe nus, que todos os livros da nossa vida sejam rasgados,
que não sobre uma poesia sobre a pele do nosso espírito, mesmo as de Manoel de
Barros. Sobre a ecologia do nosso ser, sobre nossos hecossistemas, é preciso estar
atento ao que diz um dos versos do poeta persa Hafez: Nem mesmo sete mil anos
de alegria justificam sete anos de repressão.
Odeio aqueles que pactuam com seus carrascos, como eu fiz em tantas manhãs,
tardes e noites da minha vida. Isso se tornou a luta ecológica de Freud: derrubar
os impérios da opressão humana. Imagino que uma ecologia do ser seja antes
uma desobediência radical aos tiranos, sobretudo aos que domesticaram nossas
almas e aprisionaram nossos espíritos, depois de terem servido os pedaços do
nosso corpo aos seus gozos. Uma existência domesticada, dócil, subjugada, é a
ruína do ser que não existe nesses estados humanos. São estágios do fechado, do
atordoamento, do adormecimento, do adoecimento.
Uma flor não se nega, não mente. Nenhum dos bichos da natureza mente. Só o
ser-mente. Mas por que não somos sementes? O que estou propondo chamar
de ecologias do ser (alma, corpo e espírito), nos rastros de Freud, diz respeito

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Juracy Marques |

ao modo como cada pessoa experimenta sua existência e pensa de forma mais
profunda sobre os hecossistemas, as teias e padrões que conectam o ser humano
à vida.
Como uma invenção do Outro, cada um de nós tem que se tornar uma invenção
de si próprio. Criar e escrever sua própria ficção. Descobrir-se e, quiçá, assumir
uma posição amorosa e celebrativa da vida. Amar-se.
Uma vida amarga não deveria caber na vida. Oscar Wilde nos disse que o amor
deveria perdoar todos os pecados, menos um pecado contra o amor. O amor verda-
deiro deveria ter perdão para todas as vidas, menos para as vidas sem amor.
Como alguns passarinhos, nossas almas vivem em gaiolas; como alguns bichos,
nossos espíritos vivem aprisionados. As cidades, suas casas, não são hecossiste-
mas, são jaulas. O humano está preso em seu próprio corpo. Temos um corpo-
-gaiola, uma pele-jaula. O corpo é a arapuca da alma e do espírito para o animal,
mas o ser só é livre se ama. A psicanálise é, em essência, uma cura pelo amor, disse
Freud.
Esta dança de criação e destruição que recria o humano, o ser, segundo Freud
(1920), está relacionada ao esforço superlativamente universal de toda a substância
viva, ou seja, regressar à imobilidade, à quietude, do mundo inorgânico. A dialética
dos instintos (Eros e Tanatos), em Freud, pressupõe pensar que a morte encontra
expressão na pulsação da vida, ou seja, que a vida contém a morte, é nela que a des-
truição busca realização. É a vida mesmo que adoece do medo de viver26.
Temos assim o desenho do princípio do Nirvana27, a terrível convergência de
prazer e morte (MARCUSE, 1999: 44). Conforme escreve Freud, em sua obra
Além do Princípio do Prazer (1920): o esforço para reduzir, manter constante ou
eliminar a tensão interna devida aos estímulos (o princípio do Nirvana)... encontra
expressão no princípio do prazer; e o nosso reconhecimento desse fato é uma das mais
poderosas razões para acreditarmos na existência de instintos de morte.
No princípio, entendíamos como dualista a teoria dos instintos em Freud, en-

26 In Godoy (2008: 264).


27 O ideal do Nirvana contém a afirmação: o fim é a realização, a gratificação. Nirvana é a imagem do
princípio de prazer (MARCUSE, 1999: 113).

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

tretanto, desde a introdução do narcisismo28, Freud construiria uma noção bas-


tante diferente, para além do dualismo. Segundo Marcuse (1999: 46), o instinto
de morte torna-se um parceiro legítimo de Eros na estrutura instintiva primária, e
a perpétua luta entre os dois constitui a dinâmica primordial. Concordando com
Fenichel, diz que o próprio Freud propôs a existência de uma energia deslocável,
que em si mesma é neutra, mas capaz de aliar-se quer a um impulso erótico, quer a
um destrutivo, com o instinto de vida ou com o de morte.
Eis um desenho possível do nascimento e dinâmica da civilização humana na
teoria de Freud. Entretanto, essas manias de controle de uma coisa sobre si mes-
mo, o bicho submetendo-se à dominação de outros bichos já egocizados, não é
terminal nem unidirecional. Como observamos em toda a análise de sua obra, a
civilização não põe fim ao estado natural do homem, domestica-o apenas man-
dando, para os porões da alma, o inconsciente, os substratos dessa dominação,
completando o fenômeno que conhecemos como recalque, ou seja, o sono do
bicho que, vez ou outra, desperta no coração do próprio homem e no espírito da
civilização, culpabilizando-o.
Assim, como observamos nesse mecanismo e, em conformidade com as teses de
Marcuse (1999: 37), e do próprio Freud, entendemos que a repressão é um fenô-
meno sócio-histórico e que a subjugação efetiva dos instintos, mediante controles
repressivos, não é imposta pela natureza, mas pelo homem. Se não fosse o homem,
o nome da natureza seria liberdade. A escravidão, a dominação, a subjugação são
nomes para seu estado de satisfação. Estranho pensar que uma pessoa sofrendo
possa estar gozando, ou seja, tendo satisfação na insatisfação.
A biologia humana e a nossa condição subjetiva moderna, já na carcaça do Homo
sapiens, são produtos de dois modos de dominação amplamente relacionados
com a ancestralidade: o despotismo patriarcal da horda primordial, seguido pelo
do clã fraterno que autorizou a exogamia, ou seja, do domínio inicial do pai se-
guido pelo domínio substituto dos filhos.

28 Trata-se de um conceito muito caro à teoria psicanalítica. O termo aparece, pela primeira vez na obra
de Freud, em 1910, quando buscava explicar a escolha de objeto entre homossexuais que, avaliava, toma-
vam a si mesmos como objeto sexual. Freud vai explorar esse conceito em muitas de suas obras. Segundo
Laplanche (2001: 288), uma determinada imagem que o sujeito adquire de si mesmo segundo o modelo
do outro, e que é precisamente o ego. O narcisismo seria a captação amorosa do sujeito por essa imagem.

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Juracy Marques |

Assim, como defende Marcuse (1999: 50), os processos históricos da civilização,


mesmo em sua dimensão mítica, manifestam-se, nos são apresentados, como es-
tados naturais, ou seja, a filogênese atualizada na ontogênese29, por essa razão,
conclui: a biologia freudiana é histórico-social e não se pode reduzir as contingên-
cias históricas da civilização em necessidades biológicas apenas. Isso, supõe, não
pode ser a perspectiva da tradução do princípio de realidade em Freud. Sustenta
que esse princípio ampara o organismo no mundo externo. No caso do organismo
humano, é um mundo histórico. O mundo externo que o ego em evolução defronta
é, em qualquer estágio, uma organização histórico-social específica da realidade,
afetando a estrutura mental através de agências ou agentes sociais específicos.
Marcuse (1999: 51) aposta na tese de que, até agora, a percepção dos concei-
tos freudianos fora de uma perspectiva não histórica tem levado a um grande
equívoco quanto à sua compreensão da dinâmica da civilização humana. Sus-
tenta que sua substância histórica tem que ser retomada, não para elucidar fa-
tores socioantropológicos, somente, mas para revelar o seu próprio conteúdo,
destacando que porque toda a civilização tem sido uma dominação organizada é
que o desenvolvimento histórico adquire a dignidade e a necessidade de um desen-
volvimento biológico universal. Fico me questionando o que de sócio-histórico
tem nas glândulas mamárias masculinas, “inúteis” aos machos, e no “pênis” dis-
farçado de clitóris nas mulheres. O destino seria mesmo a anatomia?
Marcuse acrescenta, à clássica noção de repressão operada pelo ego, a perspecti-
va da mais-repressão (controles adicionais, gerados pelas instituições especificas
da dominação), substanciada e operacionalizada pelo superego, e propõe, como
antítese à tese freudiana da civilização reprimida, a possibilidade de uma civiliza-
ção estruturada na não-repressão, impensável a Freud, onde os sujeitos poderiam
desenvolver a consciência de que poderiam trabalhar menos e determinar suas pró-
prias necessidades e satisfações (1999: 99). Ilusão? Copenhague e Butão, lugares
da felicidade, caminham nessa direção.
Poderíamos supor, justificando o lugar da repressão dos desejos, das necessida-
des, das carências humanas, que, como sustentou Freud, a teoria da repressão dos
29 No fundo de nossas cavernas fervilham o Id inominável, o Nós anônimo, monstros, espectros; tudo o que
ameaçava o homem das cavernas, perigos, trevas, fome, sede, demônios, entrou em nossas almas (MORIN,
2012: 93).

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

instintos é um “fenômeno natural” organizador da civilização humana. Marcuse


afirma que esse argumento, o qual foi deslocado da metapsicologia de Freud, é
falacioso (1999: 51; 52). Defende, tomando como base os mecanismos da mais-
-repressão, da dominação subjacente ao processo de organização das civilizações,
em todos os tempos, mesmo na era dos símios, que a carência, ou escassez, pre-
dominantemente tem sido organizada de modo tal, através da civilização, que não
tem sido distribuída coletivamente de acordo com as necessidades individuais, nem
a obtenção de bens para a satisfação de necessidades tem sido organizada com o obje-
tivo de melhor satisfazer às crescentes dos indivíduos. Pelo contrário, a destruição da
escassez, assim como o esforço para superá-la, o modo de trabalho, foram impostos
aos indivíduos – primeiro por mera violência, subsequentemente por uma utiliza-
ção mais racional do poder.
Esse mecanismo é de tal forma exitoso que a fabricação das necessidades hu-
manas obedece, hoje, a uma regra do discurso capitalista, que planeja e modi-
fica os modos de demanda e de satisfação humanas. Ninguém mais pode ficar
só sem a alma desse discurso. Evidencia Marcuse (1999: 65): É nesse contexto
que a metapsicologia de Freud se defronta com a dialética fatal da civilização:
o próprio progresso da civilização conduz à libertação de forças cada vez mais
destrutivas.
Na maquiagem e plasticidade da era contemporânea, observamos que consumir
mais petróleo, escavar da Terra mais minérios, privatizar as grandes reservas de
água doce, destruir as florestas e explorar tudo que há nela, inclusive os nativos,
chamados de selvagens pelos colonizadores, estruturar os grandes monocultivos
de soja, algodão, eucalipto, milho, imensos desertos verdes, ampliar a produção
de frango, porco e gado, para dar conta da sede humana pela carne30, etc., em
última instância, representa o êxito do superego.

30 Hoje, o mundo tem cerca de um bilhão de ovelhas, um bilhão de porcos, mais de um bilhão de cabeças
de gado e mais de 25 bilhões de galinhas, e isso graças ao domínio de técnicas de domesticação de ani-
mais, cada uma mais cruel que a outra, como, por exemplo, os núeres, no Sudão, que matavam os filhotes
recém-nascidos, comiam sua carne, empalhavam o bebezinho e colocavam urina para que a mãe pensasse
que seu filhotinho estava vivo e produzisse mais leite para alimentá-lo, ou os tuaregues, povo criador de
camelos no deserto do Saara, que costumavam perfurar ou cortar partes do focinho e do lábio superior
de filhotes para tornar a alimentação dolorosa, evitando, assim, o consumo do leite. Dezenas de bilhões de
animais de criação vivem, hoje, como parte de uma linha de montagem mecanizada, e cerca de 50 bilhões
deles são abatidos anualmente (HARARI, 2016: 102; 104; 355).

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A ampliação desse consumo voraz não tem uma relação direta com o combate à
escassez ou satisfação das necessidades humanas, mas, mantém as carências entre
os carentes e as satisfações entre os satisfeitos, estes últimos, uma parcela mínima
da humanidade (oito pessoas concentram a mesma riqueza que a metade mais
pobre da população do mundo31). No início de 2016, as 62 pessoas mais ricas do
mundo valiam tanto quanto os 3,6 bilhões de mais pobres! Como a população
mundial é de cerca de 7,2 bilhões, isso significa que os 62 bilionários juntos de-
têm tanta riqueza quanto toda a metade de baixo do gênero humano (HARARI,
2016b: 350). Ainda há os que professam que a riqueza vem de Deus. Será?! As-
sim, a hipótese não reside sobre a insatisfação do desejo, mas sobre a fabricação
da necessidade e da escassez.
Como afirma Ana Godoy, no seu livro A Menor das Ecologias (2008), não é o
planeta que se dissolve, mas um modo de habitá-lo. A Terra, nosso espaço de exis-
tência, em sua condição natural, portanto dinâmica, não tem grandes proble-
mas. Como nos assegurou o psicanalista Erich Fromm (1979), o ser humano é o
único animal cuja existência é um problema a ser resolvido.
Assim, como é o dever de casa da ecologia, a Terra não pode ser pensada igno-
rando-se os modos de existência da dramática espécie humana. Os animais e os
homens não cessam de extrair mundos do mundo, fazendo com que o meio não seja
jamais anterior ao corpo: o meio será já o que se extraiu e, nesse sentido, afirma-se
que cada homem ou animal será um ponto de vista, uma perspectiva (GODOY,
2008: 73). A ecologia que luta contra as doenças da terra, no fundo, está lutando
com as doenças da alma humana, como nos assegura Nietzsche (2002): A Terra
sofre e adoece da mesma doença do homem: uma vida abrandada e enfraquecida.
A Terra mora na humanidade e não a humanidade na Terra, até porque ela não
tem chão, apenas enraíza-se com as copas de suas árvores, com os cabelos hu-
manos, com as pétalas das flores, com os pelos dos animais, com as assas dos
passarinhos e das borboletas no barro firme do céu, este enganchado ao univer-
so pelos fios do espaço-tempo. Essa humanidade, como escreve Godoy (2008:
145), é sempre dita por alguém, e algo sempre escapa do dito. A grande narrativa
da comunidade esconjura, sob o nome do indesejável, a intrusão inominável do

31 Oxfam (2017).
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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

fora... não há lar nem conforto em nenhum lugar... os lugares são antes de errância
do que de permanências. Ratificamos, paisagem é o que não há. Toda ecologia é,
pois, uma ecologia da inexistência.
Mas esse mecanismo também não foge à sua dialética. A dominação, pelo meca-
nismo da mais-repressão, também destrói os inimigos da dominação, subjuga-os
e, ao fazê-los, torna-se domínio da própria dominação. A sublimação para o tra-
balho trouxe, ao humano, necessidades que ele não tinha e que, agora, precisa
ter e pagar com sua existência. Cada hora de trabalho é paga com um tijolo do
material mais precioso da nossa vida, o tempo da nossa própria existência.
A civilização tem uma estrutura instintiva, pulsional. Essa energia é consumi-
da pelo trabalho. Trabalhamos e não recebemos nada, só pagamos nossa dívida
eterna com o que a eternidade nos deve. Mas, a desalienação, essa liberdade
feliz, de alegria, essa que não é uma crença freudiana, mas marcusiana, reside
na esperança de que a eliminação das potencialidades do trabalho (alienado)
cria as precondições para a eliminação do trabalho do mundo das potencialidades
humanas (1999: 103).
Só assim dominaríamos a dominação. Falaríamos, como propõe Marcuse (1999:
172), no grau supremo da maturidade da civilização, quando todas as necessidades
básicas podem ser satisfeitas com um dispêndio mínimo de energia física e mental,
num mínimo de tempo. Para Marcuse (1999: 214), o homem não é somente contra
si mesmo, mas também por si mesmo.

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Juracy Marques |

3. Hanimal e Hespécie
O clima, o vento, a estação, a hora não são de natureza diferente das
coisas, dos bichos ou das pessoas que os povoam, os seguem, dormem
neles ou neles acordam.
Deleuze e Guattari

Os casos clínicos de Freud (cerca de 160) permitiram a ele desenvolver teorias


sobre diferentes comportamentos da espécie humana. Seus estudos da histeria,
por exemplo, o levaram a formular o Complexo de Édipo, indicando que as fan-
tasias sexuais das suas pacientes histéricas são desejos percebidos, também, em
outras manifestações comportamentais humanas, que o levaram a inferir sobre
a universalidade de alguns aspectos dos desejos inconscientes.
O homem é um animal que deseja e essa forma de se posicionar no mundo, sua
angustia como resposta à frustação da satisfação, a dor existencial como leitura
possível desse impossível, da espécie mais frágil da natureza, nós, tocaram um dos
judeus mais emblemáticos da história, o famoso Freud, que estruturou um modo
muito particular de analisar o comportamento humano, suas culturas e os desdo-
bramentos da natureza, do destino, das exigências da vida sobre seus psiquismos.
No que tange à compreensão sobre o ser humano, continuando o poder das
ideais escavadas por Darwin sobre a nossa espécie, Freud tornou-se o mais po-
deroso e influente intelectual do século XX. A teoria do inconsciente está para
Freud como a da evolução para Darwin e da relatividade para Einstein.
À revelia dessa afirmativa, diversas formulações negam a importância e eficácia
da psicanálise. Mendes (1996: 80), referindo-se a uma matéria publicada na
revista Times, de 1992, sobre esquizofrenia e depressão, destaca como o texto
intitulado “Eclipse de Freud” faz um elogio ao advento da terapia com uso de
drogas e trata a psicanálise como “algo irrelevante.” Continua: O assunto já pas-
sou inclusive às páginas de imprensa nacional e, há algum tempo, foi avivado no
suplemento Mais da Folha de São Paulo (21.11.93), sob o sensacionalista título “A

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

Neurociência Avança e Ameaça Invadir a Prada da Psicanálise”. A notícia apare-


cida em Science, por exemplo, sobre a descoberta do gene determinante da homos-
sexualidade, mostraria que a questão foi transferida da psicanálise para a genética
molecular. Os psicanalistas contra-atacam e, embora reconhecendo a superioridade
das neurociências no tocante às psicoses, retrucam que seria de pouca valia “no cir-
cuito cotidiano das neuroses”, na decifração das intrincadas elaborações linguísticas
do inconsciente (1996: 82).
A respeito do tema da homossexualidade, que tem marcado a história da civili-
zação humana (Platão, Da Vinci, Michelangelo, Oscar Wilde, etc.), pode-se afir-
mar que ele é parte significativa da força psíquica da humanidade e que não fora
tomada pela psicanálise como algo de natureza orgânica, mas como uma ten-
dência inconsciente universal. Para Freud, tratava-se de uma das consequências
da bissexualidade fundamental à civilização e à continuação da nossa espécie.
Sem ela, escreve Roudinesco (2016: 119), os homens, submetidos a uma excessiva
virilidade, e poucos inclinados à sublimação, ter-se-iam condenado a um perpétuo
extermínio.
Uma trágica exceção. Jones, o herdeiro iluminado da psicanálise, durante seu
parcelado reinado no império de Freud, impôs a desastrosa decisão de que os
homossexuais não poderiam nem ser membros de uma associação nem se tor-
nar psicanalistas, pois, “na maioria dos casos, eles são anormais”. Contradito-
riamente, Freud apoiara a iniciativa de Magnus Hirschfeld, visando abolir o
parágrafo 175 do Código Civil alemão, que condenava à prisão os praticantes
de homossexualidade masculina, também subscrito por Albert Einstein e Ste-
fan Zweig (ROUDINESCO, 2016: 219). Alguém escutou a voz de algum
psicanalista quando, em 2013, o Parlamento de Unganda aprovou o Ato An-
ti-homossexualidade, que criminaliza as atividades homossexuais e as penaliza
com prisão perpétua?
Da matéria publicada na revista Super Interessante (2002), intitulada A Psicaná-
lise no Divã, recortamos as falas de alguns neurocientistas a respeito do método
criado por Freud: não se trata de uma crítica a Freud, trata-se de reconhecer que os
modelos da psicanálise não se encaixam com o que sabemos hoje sobre o funciona-
mento do cérebro... a psicanálise é cheia de metáforas que podem até ser úteis para

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Juracy Marques |

descrever algumas condições humanas. Mas útil não quer dizer verdadeiro, diz o
neurocientista Ivan Izquierdo, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Nessa mesma matéria, Renato Sabattini, da Unicamp, é taxativo: trata-se de reco-
nhecer que não há nenhuma base científica que sustente a psicanálise.
Por que a psicanálise é tão atacada hoje em dia? O que Freud depositou nela que
incomoda tanto? Elisabeth Roudinesco (2009: 223), historiadora e psicanalis-
ta francesa, destaca que, hoje, há duas grandes perspectivas científicas que têm
como objetivo atacar o inconsciente freudiano: uma tenta fazer do homem um
chimpanzé; a outra em transformar o cérebro humano num computador. Daí
essa insistência do homem comportamental destituído de subjetividade – meta-
de macaco e metade software.
Freud, como sabemos, sabia do cérebro, esse órgão fantástico trancado na caixa
craniana, pesando cerca de 1,4 kg, consumindo cerca de 25% da energia do cor-
po quando este está em repouso, um conjunto de 86 bilhões de neurônios que se
comunicam com o mundo exterior, por meio de terminais nervosos, e recebem
os estímulos dos nossos órgãos dos sentidos. Ele é responsável pela façanha do
nosso pulo evolutivo da animalidade para a humanidade.
Sigmund era um neurologista. A psicanálise nasceu porque não encontrou, nes-
sa parte do nosso corpo, explicações para uma infinidade de sintomas, entre os
quais a histeria. Para a psicanálise, a mente não é sinônimo de cérebro, trata-se,
pois, da existência de uma segunda consciência humana, escavada no e para além
dos sítios neuroarqueológicos, buscando a revelação de uma paleoconsciência32.
Estas qualidades humanas de pensar, sentir, simbolizar, que se complexificaram
com o acontecimento da revolução cognitiva (criativa) da humanidade, ou seja,
a consciência, são a eflorescência da inconsciência33.
Meynert, seu mentor no campo da neurologia, era localista. Buscava sempre a
correlação entre o comportamento e uma região orgânica do cérebro, diferente-
mente de Charcot, que o ensinara, com provas científicas experimentáveis, quão
equivocada era a correlação entre sintomas e sinapses.

32 Morin (2012: 110).


33 Schopenhauer (in MORIN, 2012: 111).
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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

Hoje, com o avanço das tecnologias, dos sistemas de ressonâncias magnéticas, a


religião do localismo cerebral retorna. Custará até que retomemos as escavações
freudianas, pois o saber científico, antes de servir a uma teoria da mente para a
emancipação plena do ser humano, é pastorado por uma poderosa indústria das
doenças e dos fármacos, cujo pragmatismo tornou imperialista a verdade de que
o comportamento humano está soterrado nas cavernas do tecido amarelo do
cérebro, ou seja, na máquina elétrica e bioquímica que ele é.
Freud tentou ir além dessas reduções. Aceitou o desafio de entender quão com-
plexa é a realidade humana. Entretanto, como problematiza Morin (2012: 103):
A dificuldade de pensar de maneira complexa é extrema. Quanto mais o espírito
enfrenta a complexidade, mais deve complexifiar o seu exercício e mais difíceis e
múltiplas são as combinações das diferentes qualidades que aciona. O localismo
devolve essa tranquilidade.
Antes há de se reconhecer que Freud e sua criação, a psicanálise, serviram de base
para o surgimento de um novo saber psiquiátrico. Reafirma Roudinesco (2009:
220): Hoje em dia, a longa duração do tratamento psicanalítico, seja qual for seu
âmbito e seja qual for seu modelo (cara a cara ou poltrona-divã), complementa, sem
dúvida alguma, o tratamento emergencial simbolizado pelo medicamento psico-
trópico. Porém, de um ponto de vista clínico, existe de fato uma antinomia entre as
duas práticas. Pois a psicanálise não consola, não adormece, não acalma e não traz
o conforto proporcionado pela psicofarmacologia. Ela desperta, revolve o passado,
faz sofrer. O enfrentamento trágico consigo mesmo e com seu destino seria, assim, a
própria essência da ética da psicanálise: não ceder quanto a seu desejo, segundo a
fórmula de Jacques Lacan.
A crença na ciência, desde o início da era moderna, as interessantes descober-
tas no campo das neurociências, inclusive com a produção de fármacos que
agem sobre o sistema nervoso, não foram perspectivas ausentes do pensamen-
to de Freud. Sigmund, certamente, não é partícipe da ideia imperativa de que
as pessoas devam comprar sua alma na farmácia, como ordena o saber capita-
lista de outrora, como evidencia essa verdade sobre o psiquismo humano na
era contemporânea, como se fosse possível anular o sofrimento e encontrar a
felicidade em cartelas de antidepressivos, ansiolíticos e neurolépticos.

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Juracy Marques |

Esqueça o crescimento econômico, as reformas sociais e as revoluções políticas: para


elevar os níveis globais de felicidade, precisamos manipular a bioquímica humana,
diz-nos Harari (2016: 47). Se antes as drogas psiquiátricas eram estigmatizadas,
hoje, viraram coqueluche, um souvenir, um acessório cotidiano de milhares de
pessoas em todo o mundo. Hoje, as pessoas, antes de dizerem “sou José”, dizem
“sou bipolar”, “borderline”, “tdah”, “tomo rivotril, quer?”.
As pessoas consomem essas drogas como chupam balas, como um “docinho”.
Usam-nas para dormir, para ficarem acordados, para sorrir, para inibir o riso,
para acelerar o pensamento e a aprendizagem, para se tranquilizar, enfim, para
tamponar o vazio que carregam, vindo de seus mundos subjetivos, mas lidos ape-
nas como falhas bioquímicas do sistema nervoso.
Trata-se de uma humanidade entorpecida, dopada, incluindo-se as crianças. Em
2011, 3,5 milhões de crianças americanas tomaram medicamentos para trans-
torno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). No Reino Unido, o nú-
mero se elevou para 92 mil crianças em 1997 e para 786 mil em 2013; 12% dos
soldados americanos no Iraque e 17% dos soldados americanos no Afeganistão
tomavam ou pílulas para dormir ou antidepressivos como recurso para lidar com
a pressão e a angústia provocadas pela guerra (HARARI, 2016: 48).
A realidade que governa o sentido de mundo, depois de Freud, da ruptura que
representou o lugar do inconsciente, nossas relações com o campo da fantasia,
revelou outra face do comportamento humano. As atuações das pessoas sobre o
hambiente, mais do que relacionadas às suas expressões racionais e conscientes,
são governadas por desejos reprimidos, ou seja, por forças sobre as quais não
temos total controle.
A psicanálise não é a ciência do macaco nem do cérebro. Então, que lugar é
esse do abismo humano, que Freud chamou inconsciente, estudado pela psi-
canálise? A quem se dirige essa ciência? O que seria pensar a ecologia humana
em Freud? Como a psicanálise, hoje, trabalha com a complexa situação e o
futuro da humanidade?
A psicanálise de Freud pode ser pensada como uma teoria sobre a natureza do
“homem”. Desenvolveu pouco suas análises sobre as mulheres, para ele, limita-

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

das pela biologia (não tinham o pênis, nasciam castradas). Freud as descreveu
como um “continente obscuro”, afirmado que, para o homem, elas eram um
enigma, e suas análises sobre elas foram marcadas por sua clássica pergunta:
“O que quer a mulher?”.
A respeito de serem pensadas como inferiores aos homens, defendia que essa
desigualdade não existe no inconsciente: é uma constatação da esfera da fantasia.
Via, aliás, no ódio às mulheres e em sua humilhação uma das raízes inconscientes
do antissemitismo (ROUDINESCO, 2016: 346).
Entretanto, era “apaixonado” pela mãe, e teve a vida marcada pela força de gran-
des mulheres, como Lou Andreas-Salomé (1861-1937), também psicanalista e
cortejada intelectual da Europa do final do século XIX e início do século XX,
integrante de um triângulo amoroso com Nietzsche (1844-1900) e o escritor
Paul Rée (1849-1901); a princesa Marie Bonaparte34 (1882-1962), que, após
sua terapia com Freud, apaziguou-se com sua frigidez, tornando-se escritora e
analista, foi a amiga que salvou sua vida da perseguição nazista e que esteve pre-
sente até os últimos instantes antes de sua morte; a cantora e atriz francesa Yve-
tte Gilbert (1865-1944), entre outras.
A psicanálise, num primeiro momento, foi nominada como “a ciência dos ju-
deus”, por ter sido, desde Freud, integrada por pensadores de origem judaica.
Tranquilamente, também poderia ser chamada “a ciência das mulheres”, pois
suas ideais iniciais foram influenciadas por analistas mulheres, como Hermine
Hug-Hellmuth (1871-1924), Helene Deutsch (1884-1982), Karen Horney
(1885-1952), Ruth Mack Brunswick (1897-1946) e Joan Rivera (1883-1962)
(CLACK, 2015: 25), e, sobretudo, por Sabrina Spielrein (1885-1942), rus-
sa, tratada por Jung em parceria com Freud, tornou-se médica e se especia-
lizou em psiquiatria e psicanálise, fundando um centro conhecido como
“Berçário Branco”, de atendimento para crianças, em Moscou. Foi amante de
Jung durante o tratamento. Posteriormente, casou-se e teve duas filhas, que
morreram assassinadas pelos nazistas, justamente com a mãe, que participou
ativamente da fundação do movimento psicanalítico na Rússia.
34 Quando conheceu Freud, em Viena, em 30 de setembro de 1925, a princesa frígida estava à beira
do suicídio. Sua terapia evitou o suicídio e muitas transgressões destrutivas. Era, para Freud, o eco, um
corpo, biologizado de suas teses (ROUDINESCO, 2016: 356-357-358).

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Depois da morte do pai da psicanálise, sua criação foi sustentada por nomes
como o de Melaine Klein (1882-1960), destacada aluna de Ferenczi, e muitas
outras grandes mulheres que assinaram a alma feminina na teoria criada pelo
macho Sigmund Freud. Entretanto, será a sua filha e herdeira, Anna Freud, a
mulher a quem a psicanálise renderá grandes elogios. Ela foi o “outro Freud”.
Segundo Roudinesco (2016: 282; 288), uma mulher que sentia atração pelas mu-
lheres, mas que desenvolveu uma certa rejeição pela homossexualidade, inclusive,
partilhando com Jones a ideia de que a homossexualidade era uma doença.
Foi apelidada por seu pai de “Antígona”, mas ela era bem “moderna”. Viveu ao
lado de Dorothy Tiffany, companheira da vida inteira. Além de administrar o
destino da obra de seu pai, trabalhou com a educação de crianças, utilizando
como base a psicanálise. Ela era Anna-Freud-Anna.
Freud era tímido, teve pouco contato com as mulheres e sustentou a sua relação
com a esposa por cartas de amor. Escreveu mais de 900 cartas a Martha Bernays
(1861-1951), amiga de sua irmã, que morava na Alemanha, nas quais a nomeou
como minha adorada princesa, meu amado tesouro. Retornando a Viena, em
1886, casou-se35 com a mulher pela qual se apaixonou, que o esperou durante
anos e com a qual teve seis filhos nos primeiros oito anos de casado: Mathilde,
Martin, Oliver, Ernst, Sophie e Anna.
A dama que roubara o coração de Freud nascera em Hamburgo, em 26 de julho
de 1861. Filha de Berman Bernays, negociante de panos e bordados, e Emmeli-
ne, a sogra famigerada de Freud. Em 27 de junho de 1882, ficaram noivos secre-
tamente e acordaram vivenciar um longo período de castidade pré-nupcial. Ca-
saram-se quatro anos depois. Roudinesco (2016: 48-49) descreveu o Freud dessa
época como alternadamente tirânico, impetuoso, ciumento, melancólico, prolífico
e capaz de elaborar planos minuciosos de vida cotidiana, a ponto de descrever an-
tecipadamente como via a organização de seu lar... Em suma, o estado amoroso e a
abstinência deixaram-no insuportável, despótico e irracional.

35 Além do seu casamento civil, que fora realizado em 13 de setembro de 1886, no dia seguinte, fora for-
çado a aceitar uma cerimônia religiosa celebrada, na sinagoga de Wandsbek, pelo rabino David Hanover.
Tão logo estava no seu novo apartamento, proibiu Martha de celebrar o Shabbat e de sozinhar segundo as
regras da alimentação kosher, tradições judaicas. Também tomaram a decisão de não submeter nenhum
dos seus filhos ao ritual da circuncisão (ROUDINESCO, 2016: 63).

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

Em 1891, já com a família formada, Freud muda-se para um apartamento amplo,


número 19 da Berggasse (Viena). No ano seguinte, alugou outro apartamento
no térreo, para montar o seu consultório, de onde só sairia após a expulsão nazis-
ta para Londres, em 1938.
Da família Bernays, depois de rivalizar com sua sogra e com seu cunhado, em vir-
tude do que identificou como uma pessoa de personalidade cáustica e brilhante-
mente inteligente, dedicou a Minna Bernays, irmã mais nova de sua esposa, um
carinho e uma atenção incomuns. Descrevia-a como Minha querida, minha irmã.
Ela veio morar com sua família para ajudar Martha a criar os filhos, bem como aju-
dar na administração da casa. Minna também veio cuidar de Freud. Na história da
psicanálise, vão chover rumores sobre o caso de amor entre Freud e sua cunhada.
Freud era contra o controle de natalidade, sobretudo o coito interrompido, que,
pensava, era a causa da ansiedade neurótica. Em 1895, nasceu Anna Freud, sua
sucessora. Ele a analisou sigilosamente em 1918. Acusam-no de incesto intelec-
tual. Depois desse período, Freud abriu mão do sexo por vários anos, tornou-se
abstêmio.
Transitou dos estudos biológicos da nossa espécie para um olhar cuidadoso de
sua alma, estruturando uma ecologia profunda da psiquê. Suas descobertas sobre
o inconsciente são pérolas que possibilitaram uma leitura radical da ecologia
humana, abrindo grandes janelas sobre a compreensão do fenômeno humano e
permitindo dizer algo novo sobre nossa espécie.
Freud, escreve Morin (2012: 172), percebendo que a família é o lugar primitivo
do sexo na sua ferocidade biológica e mitológica, camuflada sob todos os aspectos
atrativos, amáveis, úteis, funcionais, arrancou as pesadas cortinas que o ocultavam,
mostrando o subterrâneo da família. Rasgou a braguilha do pai e a roupa de baixo
da mãe para revelar, na glória terrível e soberana, o falo e a vagina.
A análise do desejo pelo viés do inconsciente fez de Freud um dos mais instigan-
tes ecólogos humanos da era contemporânea. Responder à pergunta “o que é a
espécie humana?” tornou-se, para ele, uma obsessão. Até hoje, suas respostas são
palco de fervorosas reflexões. O que inquieta mesmo é que, para um saber sobre
as ciências do homem, ele foi o próprio “macaco nu”.

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Juracy Marques |

Hoje, acredita-se, vivemos numa era técnica e um número muito grande de


pessoas acredita que a ciência (controlada mais por políticos e economistas
que por cientistas) e a tecnologia encerrarão as respostas para todas as per-
guntas humanas. As tecnologias de Freud foram a palavra e o inconsciente, a
máquina simbólica.
A humanidade se tornou joguete do saber científico. É só eles mandarem todo
mundo comer ovo que, como uma manada de bestas, todos saem comendo
ovo. O grave é que esse saber sempre serviu a ideologias colonialistas. Há
pouquíssimas disciplinas científicas que não começaram a vida como servas do
crescimento imperial e que não devem grande parte de suas descobertas, coleções,
edificações e bolsas de estudos à ajuda generosa de oficiais do exército, capitães da
marinha e governantes imperiais, diz-nos Harari (2016: 314). Lendo Freud,
salvaguardando sua equivocada estratégia no período nazista, a psicanálise
sempre se comportou como um saber anárquico, potente, revolucionário, ini-
migo mortal do discurso capitalista, mas, observamos, temos presenciado uma
era estéril nos cartéis da ciência do inconsciente.
Freud não se interessou pelo psiquismo de plantas e de bichos, embora tam-
bém tenha estudado botânica e zoologia, esta última, como ele mesmo des-
creve, sem muito êxito. Dedicou a vida ao estudo do animal humano. Buscou
compreender a estrutura complexa de sua alma, da sua mente, do seu psiquis-
mo. Desenvolveu uma das mais intrigantes teorias sobre a humanidade, a psi-
canálise, depois definida como a ciência dos processos mentais inconscientes,
também conhecida como psicologia profunda. Para Freud (1926: 238), uma
teoria do inconsciente mental pode tornar-se indispensável a todas as ciências que
se interessam pela evolução da civilização humana e suas principais instituições
como a arte, a religião e a ordem social.
Freud era um evolucionista36 em certo sentido, tendo bebido nas fontes de
Haeckel, Lamark e Darwin, além de ter estudado com profundidade as teorias
e contribuições da biologia moderna, da qual se destacam seus estudos sobre a
ansiedade, seu conceito mais evolucionista e biologicista. Para a teoria evolu-

36 Para Young (2006), no artigo intitulado Relembrando o Freud Evolucionista, as teorias evolucionistas
de Freud são, em certo sentido, muito semelhantes às narrativas evolucionárias modernas.

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

cionista, as bases da ansiedade estão relacionadas às respostas dos organismos


frente aos perigos vivenciados no meio ambiente.
Em Moisés e o Monoteísmo (1939), Freud demonstra sua admiração pela força
das teorias de Darwin: Tomemos, por exemplo, a história de uma nova teoria
científica, como a teoria da evolução de Darwin. De início, ela se defrontou com
acirrada rejeição e durante décadas foi violentamente contestada; mas não foi
necessário mais do que uma geração para que fosse reconhecida como um grande
passo à frente em direção à verdade. O próprio Darwin conquistou a honra de
um túmulo ou cenotáfio na abadia de Westminster... A nova verdade despertou
resistências emocionais; estas encontraram expressão em argumentos, pelos quais
a evidência em favor da teoria mal acolhida podia ser contestada; a luta de opi-
niões durou algum tempo; desde o início houve adeptos e oponentes até que por
fim prevaleceram; durante todo o tempo da luta o tema a que ela dizia respeito
nunca foi esquecido.
Freud, contemporâneo de Darwin, teve sua vida marcada pelas ideias evolu-
cionistas. Começou a receber as influências das teorias darwinianas durante
o seu período no Gymnasium de Viena, entre 1865 e 1873, ou seja, quando
ainda era um jovem garoto apaixonado pela biologia, seu campo inicial de in-
teresse científico.
Como sistematizou Lucille Ritvo, no seu livro A Influência de Darwin sobre
Freud (1992: 15), Freud em seus textos se referiu a Darwin e sua obra biológica
mais de 20 vezes, e sempre de modo muito positivo. Essas referências se estendem
desde a primeira obra psicanalítica de Freud, “Estudos Sobre a Histeria” (1895),
em colaboração com Joseph Breuer, ao último livro que completou “Moisés e o
Monoteísmo”, no derradeiro ano de sua vida. Para Freud, Darwin era o “Grande
Darwin”. O psicanalista Ernst Jones (1979), na sua biografia sobre o pai da
psicanálise, descreveu Freud como “O Darwin da Mente”.
Freud era apaixonado por plantas e animais. No verão, deixava o calor de Vie-
na e ia para os Alpes. Gostava de escalar montanhas com os filhos, apanhar flo-
res e identificar cogumelos. Era apaixonado por Mozart e pelas orquídeas, par-
ticularmente as gardênias. Sentia muito prazer em apreciar o lago do alto das

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Juracy Marques |

montanhas. É conhecida sua paixão por cães e sua quase antipatia por gatos37.
Tinha sempre ao seu lado “amigos” que amava, da raça chaw, a exemplo de
Lun-Yug, sua primeira cadela38, substituída por sua irmã Jo-Fi, após sua trági-
ca morte nos trilhos da estação ferroviária de Salzburgo. Jo-Fi morreu de um
ataque cardíaco e foi substituída por outra chaw chamada Lün, que o acompa-
nhou até seu exílio em Londres. Chegou a traduzir do francês para o alemão a
obra escrita pela princesa Marie Bonaparte, sobre sua cadela Topsy. Sabia, essa
forma de amor era intensa porque não se ancorava na ambivalência amor-ódio,
como os humanos.
Sobre a natureza dessas relações, escreve Freud39: Porque se pode amar um animal
como Jo-Fi com tal intensidade extraordinária: é um afeto sem ambivalência, com
a simplicidade de uma vida livre dos conflitos quase insuportáveis da civilização. A
beleza de uma existência completa em si mesma.
Interessante destacar que a maioria dos ecologistas de plantas40 e de bichos têm
dificuldades em pensar a espécie humana. Suponho, não suportam a ambivalên-
cia dos afetos nem os dramas existenciais que acometem nossa espécie. Não há
flores com transtorno bipolar, anorexia, bulimia, toxicomania, ou gatos e cães
com pânico, depressão41, transtorno obsessivo compulsivo (TOC), ou em esta-
dos borderline42. Nós, humanos, somos a única espécie que delira, que psicotiza;
que constrói muros para evitar que semelhantes se aproximem.
Não temos notícias de prisões feitas por pássaros. Pude conviver com renomados
37 Em 1913, Freud deixou-se seduzir por uma “gata narcísica”, de olhos verdes, oblíquos e gelados
(ROUDINESCO, 2016: 281).
38 O cachorro foi o primeiro animal domesticado pelo Homo sapiens, que datam de mais de 15 mil anos
atrás (HARARI, 2016: 55).
39 Edmundson (2009).
40 A história da botânica tem pouco a dizer sobre o sofrimento dos aborígenes australianos, mas, geral-
mente, encontra algumas palavras amáveis para James Cook e Joseph Banks (HARARI, 2016: 310).
41 Rego (2005: 252) apresenta, em sua tese, o caso da depressão de um macaco em Gombe, na África, a
partir do relato de Fouts: um jovem chimpanzé chamado Flint, que era apegado de modo incomum à sua
mãe, já velha, Flo. Flint tinha continuado a dormir com a mãe e a andar nas suas costas como um bebê
até ter oito anos de idade. Quando Flo morreu, em 1972, Flint caiu numa depressão profunda, definhou
e morreu.
42 Estado-limite entre neurose e psicose (ROUDINESCO, 2009).
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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

botânicos e zoólogos cujas obras são um tributo à beleza e sensibilidades da nature-


za, entretanto, suas relações com as pessoas e, diria, consigo mesmo, são desastrosas
e, em muitos graus, violentas. Alimentam-se de um amor direcional, passivo, sem
manifestações de seus contrários. Também ignoram os desejos das flores e dos bi-
chos e os tomam como objetos. Para estes, a biologia da vida é morta.
Sabemos das complexas armadilhas subjetivas do mundo das ambivalências hu-
manas. Roudinesco (1999: 223) sustenta a tese de que a maneira como vemos os
animais tem muito a ver com a maneira como desumanizamos o homem e, através
do homem, todos os humanos que não se adaptam ao ideal dominante. É crescente
uma redução desse conflito ao mundo das máquinas, aos apegos afetivos à ci-
bertecnologia, à imersão no universo virtual e ao amor aos “bichinhos de latas”.
Hoje, já temos casos de pessoas apaixonadas por robôs e, no campo jurídico,
profissionais especializando-se na esfera dos direitos das máquinas. O mundo é
uma Matrix.
Freud desenvolveu uma análise das origens evolutivas da mente humana, parti-
cularmente das estruturas neuróticas, mas, suas contribuições nesse campo de co-
nhecimento têm sido menosprezadas. Suas pesquisas nessa área influenciaram as
neurociências, a psiquiatria moderna, a biologia e a própria psicologia.
Darwin inaugurou as preocupações sobre os processos adaptativos comporta-
mentais e psíquicos da espécie humana e Freud mergulhou nessa formulação,
atribuindo-lhe uma importância clínica. Segundo Viana (1990), as primeiras
classificações dos estados de ansiedade, contidas nos manuais de diagnóstico em
psiquiatria, na Classificação Internacional das Doenças (CID) e no Manual de
Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais (DSM), que caracterizavam
os quadros neuróticos, tinham por base as ideias de Freud.
Destacamos, mesmo além de Freud, que as classificações, sobretudo dos quadros
das doenças mentais humanas, geralmente são inconsequentes e arbitrárias, pois,
na maioria das vezes, supõem uma humanidade homogênea, biológica e cultu-
ralmente iguais, o que não corresponde ao pensamento freudiano. Por exemplo,
o DSM norte-americano de 2013 sugere medicamentos para o luto, a TPM e
a raiva infantil, não correspondendo ao disposto no CID europeu. Trata-se de
uma guerra das classificações, que não deixa o ser humano com suas profundas

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Juracy Marques |

questões existenciais. Entorpece-o. Esse modelo está ancorado numa terapêuti-


ca colonialista, homogeneizadora, filiada ao discurso capitalista, ao mercado da
carne e do corpo.
Um contraponto a essa dimensão pode ser pensado a partir dos estudos trans-
culturais sobre a psicopatologia africana43. Em 1983, a Organização Mundial de
Saúde (OMS) supervisionou uma pesquisa dessa natureza na cultura yorubá,
em Ibadán, capital de Oyo. Observou que os conceitos ocidentais não davam
conta do fenômeno das doenças mentais entre os yorubás. Cerca de 50% deles
recorriam sempre à medicina tradicional, dos quais 90% se recuperavam rapi-
damente. Constatou que a depressão africana não era igual a dos americanos,
por exemplo, em que se observava a ausência de culpabilidade e autoacusação.
Também foram percebidos baixíssimos índices de suicídio, rápida recuperação e
inserção do doente mental na cultura yorubá, onde o processo coletivo da com-
preensão do sofrimento da tristeza é bastante diferente do nosso.
Em minhas pesquisas em terreiros de candomblé e umbanda, no Sertão do
Brasil, nas escutas de babalorixás e yalorixás, bem como de filhas e filhos de
santo, observei que mais de 80% destes, tão logo entraram para a religião e
cumpriram com suas responsabilidades frente aos orixás, inkices, caboclos,
exus, conseguiram ter de volta sua paz, estabilizando-se. Assim, como é legíti-
mo que esses estados de estabilidade psíquica sejam conseguidos com a terapia
de medicamentos, também o é que essa construção seja mediada pela cultura.
Prefiro os tambores a pílulas.
Num outro extremo, tomando a dimensão cultural dos Ilongotes, das Filipi-
nas, povo conhecido como “caçadores de cabeças”44, esse hábito de colecionar
cabeças humanas se vincula a um ritual de passagem, quando um membro do
grupo só se torna adulto a partir do momento em que caça uma cabeça. Esse
comportamento, interpretado na sua cultura, também tem o papel de aliviar o
cortador das suas densas emoções, da depressão.
Esses modelos de assassinatos culturais, como observamos nas práticas de infan-
43 Dados da conferência proferida pela Dra. Georgina Faneco Maniakas, no I Simpósio de Etnopsicologia da USP
(2016).
44 Dados da conferência proferida pelo Dr. Lazslo Antônio Ávila, no I Simpósio de Etnopsicologia da USP (2016).
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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

ticídio e nos rituais de sacrifícios humanos direcionados às divindades, como a


imolação que Abraão faria de seu filho, suspendem questões bastante complexas
sobre a noção de crueldade e empatia entre alguns desses grupos humanos. Dois
outros casos nos chama atenção. Entre os achés, caçadores-coletores que viviam
nas selvas do Paraguai até 1960, bem recentemente, quando alguém muito valo-
rizado do grupo morria, eles sacrificavam uma criança e enterravam junto com
ele. Nesse mesmo grupo, quando um idoso tornava-se um “fardo”, um membro
jovem matava-o com um golpe de machado na cabeça (HARARI, 2016).
É quase consensual que, culturalmente, os grupos humanos são diferentes.
Entretanto, os modelos colonialistas classificatórios, vivos, lutam para fazer va-
ler um padrão de igualamento a partir da dimensão neurobiológica. Paradoxal-
mente, na guerra das classificações, usam-se as diferenças e as igualdades huma-
nas, sempre a favor da dominação.
Em geral, classifica-se para dominar, sempre. É preciso pensar algo que fuja a
esse modelo classificatório, a pulsão, a fantasia em Freud, por exemplo. Essa
perspectiva implica sempre algo que tende a escapar aos códigos, não sendo, pois,
capturado, e a evadir-se dos códigos, quando capturado, como afirma Deleuze e
Guattari (1996).
Na história da psicanálise, conhecemos o iniciado projeto de Freud, nos idos de
1915, que objetivava estruturar uma síntese de toda a sua obra psicanalítica. Ele
abandonou esse projeto, embora tenha publicado cinco dos 12 artigos que havia
escrito. Não se tem notícias dos demais.
Em 1983, Ilse Grubich-Simitis descobriu uma cópia do décimo segundo artigo
em um baú que pertencia a Anna Freud (VIANA, 2010: 165), traduzido para
o português sobre o título Neuroses de Transferência: Uma Síntese, obra na qual
aborda a evolução filogenética da mente. Nela, Freud sustentou, como um dos
pilares na formação de psicanalistas, a importância dos estudos sobre a evolução.
Seus anos iniciais na Universidade de Viena foram marcados por um forte in-
teresse pelas ciências naturais, particularmente a biologia. Antes mesmo, teria
pensado em fazer Direito, a partir da influência do amigo Emil Fluss, mas, como
ele mesmo descreve, uma conferência de Carl Brühl, docente de anatomia com-

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Juracy Marques |

parada e zoologia da Universidade de Viena, sobre o ensaio de Goethe, “Sobre a


Natureza”, o seduziu para o campo das ciências naturais.
Em Um Estudo Autobiográfico (1924), escreve: Ao mesmo tempo, as teorias de
Darwin, que eram, então, de interesse atual, atraíram-me fortemente, pois ofereciam
esperanças de um extraordinário avanço em nossa compreensão do mundo; e foi ou-
vindo o belo ensaio de Goethe Sobre a Natureza, lido em voz alta em uma conferência
popular do professor Carl Brühl, pouco antes de eu deixar a escola, que decidi tor-
nar-me estudante de medicina.
O fragmento do ensaio que mais chamou a atenção de Freud tratava a natureza
como “erotizada como uma mãe45 envolvente”. Para Peter Gay (1989), que pro-
duziu uma das biografias mais interessantes sobre a vida de Freud, publicada em
1988, a escolha pela medicina deu-se porque seu interesse maior era conhecer a
natureza humana.
Temos, inicialmente, um Freud apaixonado pela filosofia, pela história das
religiões, que primeiro encontrou motivações no campo do direito, o qual deixa-
ria por uma imersão no campo das ciências naturais (biologia, zoologia e fisiolo-
gia). Depois opta, “tardiamente”, por concluir seu curso de medicina, que o leva
à psicologia experimental e, bem depois, à psicanálise. Amadurecido, no tempo
de suas produções de Totem e Tabu (1913), o Futuro de Uma Ilusão (1927), O
Mal-Estar na Civilização (1930), Moisés e o Monoteísmo (1939), mergulha em
grandes temas estruturais da humanidade. Essas obras revelaram a face de um
Freud dedicado às ciências do homem, da vida, da natureza.
Seu interesse pela zoologia se deu pelo fato de ter sido convidado pelo Prof.
Carl Clauss para trabalhar no Instituto de Zoologia da Universidade de Viena.
Clauss, que visitou Darwin em sua casa, em Down, área rural inglesa, um dos
divulgadores mais eficientes da obra de Darwin, em língua alemã, segundo Gay
(1989: 45), indicou Freud para trabalhar na Estação de Biologia Marinha, espa-
ço de zoologia experimental, que ele fundou em Trieste.
O desafio dado a Freud foi o de comprovar a existência de testículos em enguias
(provavelmente Anguilla anguilla), indicando, assim, a existência de hermafro-

45 A palavra “mãe”, em sânscrito, quer dizer “matar” (HARARI, 2016: 309).


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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

ditismo nessa espécie de peixe, como supôs o pesquisador polonês Szymon Sir-
sky. Segundo Freud (1877), a diferenciação entre machos e fêmeas, até aquele
período, ainda era um problema deixado em suspenso por séculos. Importante des-
tacar que o primeiro trabalho científico de Freud (Observações Sobre a Forma e a
Microestrutura dos Órgãos Lobados da Enguia, Comumente Descritos como Testí-
culos, publicado em 1877, nos SA Akad, Wien) tratou de uma complexa questão
ligada à sexualidade de uma espécie animal.
A partir da apresentação desse artigo, conseguiu o título de “Professor Extraordi-
narius” na Universidade de Viena. Todas as enguias dissecadas por Freud, mais
de 400, eram fêmeas. Passou dois meses em Trieste e fez as análises restantes
dos animais em Viena. Segundo Ades (2001), Freud também examinou órgãos
sexuais de algumas enguias marinhas (Conger vulgaris). Suas posições, parciais
e inconclusas, era pela asserção de Syrski. Cogitou que os indivíduos da espécie
que estudou, capturadas em rios e lagos, não estavam maduras sexualmente, e
que isso se dava quando as enguias se dispersavam para o mar, onde se reprodu-
ziam.
Em 1871, Darwin foi eleito membro da Academia de Ciências de Viena, or-
ganização que aceitou três dos quatro artigos científicos publicados por Freud,
enquanto Darwin era vivo. O pai da teoria da evolução das espécies se depararia
com a obra científica inicial de Freud, caso tivesse lido as atas da Academia (RI-
TVO, 1992: 23).
Temos, no início de sua carreira, o Freud zoólogo, que estudava as gônadas das
enguias, o fisiologista dedicado aos estudos das células nervosas de lagostins
(Ammocoetes petromyzon) e o nascente psicólogo já envolvido nos estudos das
emoções humanas. Esses passos, descreve Gay (1989: 49), estavam preparando
Freud para sua vocação, como ele escreveu a um amigo em 1878, por escolher
“maltratar animais” ao invés de “torturar humanos”.
Estranhamente, observamos um esquecimento do zoólogo Carl Clauss na bio-
grafia de Freud, que, por alguma razão não esclarecida, passou a nutrir por ele
certa antipatia, a qual o fez afastar-se de seu grande mestre no campo da biologia
da evolução.

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Juracy Marques |

Freud continua suas pesquisas evolucionistas no Instituto de Fisiologia de Brü-


cke, grande fisiologista berlinense, apaixonado por poesia e pintura, que sempre
defendeu entre seus alunos a livre forma de pensamento. Foi nesse laboratório
que conheceu Josef Breuer (1842-1925), o qual já se interessava pelas doenças
da alma, a quem Freud vai atribuir, em 1886, a criação das bases e do termo
psico-análise, a partir do seu tratamento com a jovem vienense de 21 anos, Anna
O. (Bertha Pappenheim), que durou de 1880 a 1882. Ela foi considerada a pri-
meira paciente psicanalítica, cujos sintomas histéricos (tosses, paralisias, aluci-
nações, dificuldade de ingestão de alimentos, distúrbios da visão, fala e audição,
etc.) desenvolveram-se quando cuidava do pai adoentado, vítima de um abcesso
tubercular. Em virtude do agravamento do seu quadro, foi internada no sanató-
rio Bellevue, em Kreuzlingen.
Esse caso fundador da Psicanálise fascinou Freud, embora tenha sido conduzido
por Breuer, menos entusiasmado que seu amigo. Anna O., durante sua terapia,
sob indução hipnótica, trazia recordações carregadas de afetos que levavam ao
desaparecimento dos sintomas. Ela mesma chamou o tratamento de “limpeza de
chaminé” e o considerou como uma “cura pela fala”.
Pressionado por Freud, Breuer concordou com a publicação, em 1985, de Estu-
dos sobre a Histeria, obra na qual apresentaram as bases do método que haviam
desenvolvido para o tratamento de pacientes histéricos, que, defendiam, sofriam
de memórias recalcadas de traumas, reminiscências, responsáveis pela organiza-
ção dos sintomas, os quais, trazidos à consciência, cessavam.
Anna O., que nunca aceitou a publicação e os relatos do seu caso, após o trata-
mento, tornou-se um grande nome do feminismo judeu alemão. Foi diretora
de um orfanato em Frankfurt, fez pesquisas sobre tráfico de mulheres brancas
nos Bálcãs, Oriente Médio e Rússia. Dedicou-se às causas da emancipação da
mulher. Morreu em 1936 (ROUDINESCO, 2016: 86).
Freud escreve sobre seu mestre de olhar azul penetrante em seu Estudo Au-
tobiográfico (1924): Brücke me deu um problema para resolver na histologia
do sistema nervoso. Nesse laboratório, particularmente no seu trabalho sobre
o Petromyzon Planeri, Freud descobriu que as grandes células nervosas que
ficam perto e um pouco atrás da coluna espinhal em todos os níveis e que foram
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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

estudadas pelo letão Ernst R. Reissner, professor de anatomia em Dorpat, pelo


alemão Paul Langerhans, médico e anatomista patológico descobridor das cé-
lulas produtoras de insulina no pâncreas, e por outros, também ocorriam na
forma larvar Ammocoetes, assim mais tarde iria descobrir que as características
psicológicas do ser humano adulto, tal como a sexualidade, também podiam ser
encontradas de alguma forma em crianças (RITVO, 1992: 216).
Ela, a sexualidade infantil, segundo Freud (1913: 183), apresenta duas caracterís-
ticas que são importantes do ponto de vista biológico. Mostra ser formada por certo
número de instintos componentes que parecem estar ligados a certas regiões do corpo
(zonas erógenas).
Interessante observar que quase todos os estudos pré-psicanalíticos de Freud, em al-
gum grau, tocam na questão da sexualidade animal. Em obras como Três Ensaios sobre
a Teoria da Sexualidade (1905) e Sobre as Teorias Sexuais das Crianças (1908), amplia
sua percepção a respeito da sexualidade e de comportamentos humanos, afirmando,
quanto à questão da sexualidade, ser algo que se manifestava já na infância, não se
tratando apenas de um impulso animal para a reprodução, mas de algo marcado pela
imaginação, pelas elaborações no campo das fantasias.
Uma análise de Rego (2005: 134), a respeito da prática de sexo anal entre humanos,
exemplifica bem essa outra dimensão da sexualidade humana. Diz-nos que certas de-
terminações biológicas e tendências inatas passam por uma transformação simbólica e,
segundo ele, isso pode explicar a atração de muitos homens pelo sexo anal. Acrescen-
ta: Presumivelmente existe uma predisposição inata a evitar esse orifício quando do ato
sexual, o que explicaria ser isto tão incomum nos diversos mamíferos, apesar da proximi-
dade entre os genitais e o ânus. Dados da prática psicoterápica mostram a importância da
simbolização superposta a este desejo. Um refere que a atração pelo sexo anal se deve ao
desejo de penetrar em todos os orifícios da companheira, um desejo de conhecer totalmente
o objeto amado. Para outro, significaria um sinal de dominação e humilhação (sadismo)
a que submete a mulher. Para um terceiro, pode ser ainda o meio de viabilizar a fantasia
de que está copulando com um homem (homossexualidade). Para um quarto, poderia
significar que está evitando o risco de engravidar, ou risco de castração ( fantasia da vagi-
na dentada). Outro ainda poderia se atrair por este tipo de ato sexual pelo fato de associar
inconsciente o ato genital ao incesto proibido. Ou seja, o significado simbólico atribuído ao

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ato parece ser muito mais importante do que a ação em si mesma.


Dos usos que fazemos do sexo na atualidade, diria, a reprodução, é o menor deles. E
para intensificar ainda mais esse deslocamento, estamos inventando formas de poten-
cializar o tempo em que podemos fazer sexo. O viagra, por exemplo, foi uma dessas
maravilhas da ciência, que possibilitou aos sapiens transar mais, gozar mais. Aos que
já fazem usos desse suplemento, antes de “trepar”, deveriam fazer um agradecimento
a Pfizer, por ter descoberto sua aplicação contra impotência acidentalmente, quando
pesquisava sua eficiência em problemas de pressão sanguínea.
Para Freud, o desenvolvimento da sexualidade humana se dá a partir de fases, a saber,
a fase oral, em que região da boca se torna a área erógena do corpo; a fase anal, que
desloca a atenção e o prazer para o controle dos esfíncteres; e a fase fálica, que elege, no
corpo, a região dos órgãos sexuais como espaço de concentração de prazer.
Sigmund Freud acreditava que as crianças são seres sexuais. No reino animal e
vegetal, poderíamos pensar numa hipótese relacional para espécies imaturas. Ár-
vores, flores, abelhas não fantasiam suas sexualidades, pensamos. Os processos
de pseudocópulas entre orquídeas e algumas espécies de abelhas são escritos em
códigos genéticos que determinam seus comportamentos.
Na espécie humana, os objetos sexuais são variados e, ao contrário do que supõe
a estrutura dos instintos, suas manifestações são possuídas por uma energia de
ordem sexual, denominada pulsão, que torna essas experiências sempre variáveis.
Não é de se estranhar vermos, entre os humanos, homos, héteros e pansexuais.
Em suas Conferências Introdutórias sobre a Psicanálise (1916), escreveu: Quando
jovem estudante empenhei-me sob a orientação de von Brücke em meu primeiro
trabalho científico. Eu estava preocupado com a origem das raízes posteriores na
coluna espinhal de um pequeno peixe de estrutura muito arcaica; descobri que as
fibras nervosas dessas raízes tinham origem em grandes células no posterior da mas-
sa cinzenta, o que não é mais o caso em outros vertebrados. Mas também descobri
logo depois que as células nervosas desse tipo estão presentes fora da massa cinzenta,
ao longo do que é conhecido como gânglio espinhal da raiz posterior; e a partir dis-
to inferi que as células dessas massas de gânglios migraram da coluna espinhal ao
longo das raízes dos nervos. Isto também é mostrado pela história de sua evolução.

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

Mas no pequeno peixe todo o trajeto de sua migração era demonstrado pelas células
que permaneceram atrás. Plasticamente, essa hipótese freudiana faz com que nos
lembremos da tese Owen46 sobre a “teoria vertebral do crânio”, segundo a qual os
ossos do crânio seria uma transformação das últimas vértebras da espinha dorsal.
Seus trabalhos no laboratório de Brücke, sobretudo suas pesquisas sobre o Pe-
tromyzon (1878) e Sobre a Estrutura das Fibras Nervosas e das Células Nervosas
do lagostim de Água Doce (1882), levaram o jovem cientista a antever a teoria dos
neurônios, pois concebeu, claramente, as células nervosas e as fibras como uni-
dade morfológica e fisiológica, cuja descoberta e popularidade ficaram a cargo
de H. W. G Waldeyer (1836-1921), quando, em 1891, publicou sua memorável
teoria do “Neurônio”. Essa mesma “má sorte”, se assim podemos dizer, aconteceu
com as suas pesquisas sobre a planta da coca (Erythroxylum coca) e do alcaloide
extraído de suas folhas, a cocaína.
A pesquisa científica não dava a Freud ganhos financeiros e, por isso, conforme
foi orientando pelo próprio Brücke, deixou de lado, temporariamente, a vida
como pesquisador para exercer a medicina, movido agora pelo sonho do casa-
mento. Freud deixou o Instituto de Fisiologia de Brücke em 1882. A partir de
1883, passou a ser médico interno na Clínica Psiquiátrica de Meynert, seu pro-
fessor de anatomia cerebral e psiquiatria, esta última, único ramo da medicina
que o interessava. Lá ficou por cinco meses.
Freud, antes imatizado por Meynert, passou a descrevê-lo como “alguém cheio
de manias e ilusões”, uma pessoa que “não te ouve nem te entende”. Em 1980,
haveria uma ruptura entre eles em virtude das tensas discordâncias a respeito da
hipnose e da histeria (GAY, 1989: 55). Freud não partilhava da mitologia cere-
bral de Meynert sobre a defesa de que os fenômenos psíquicos têm sempre uma
correlação orgânica.
Em A Intepretação dos Sonhos (1900), fala a respeito do outrora admirado mentor:
Ninguém menos que o grande Maynert, cujos passos eu seguiria com profunda venera-
ção e cujo comportamento para comigo, depois de um breve período de favor, transforma-
ram-se em indisfarçada hostilidade... Eu desenvolvera uma acirrada controvérsia por es-
crito com ele, sobre a questão da histeria masculina, cuja existência ele negava. Quando
46 Scientific American (Darwin: As Chaves da Vida).
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Juracy Marques |

o visitei durante sua doença fatal e lhe perguntei sobre sua situação, ele falou longamente
sobre seu estado e terminou com estas palavras: “Você sabe, eu sempre fui um dos casos
mais claros de histeria masculina”. Ele estava assim admitindo, para minha satisfação e
espanto, o que tinha contestado obstinadamente por tanto tempo.
Na maioria dos trabalhos sobre a obra de Freud, pouca atenção é dispensada aos seus
estudos de peixes (enguias e lampreias) e crustáceos (lagostim), base, inclusive, para
suas pesquisas sobre o sistema nervoso. Como afirma Ades (2001), tem-se a impres-
são que os escritos pré-psicanalíticos de Freud pertencem a uma pré-história que nada
tem a ver com a psicanálise. Também não aparecem, na obra de Sacks (1998), sobre a
neurologia de Freud, seus estudos sobre as enguias.
Talvez o próprio Freud seja responsável por esse esquecimento dos seus tempos iniciais
no campo da zoologia, pois, sequer, menciona esses trabalhos em seu Estudo Autobio-
gráfico (1924). Ades (2001) transcreve uma citação de Sacks sobre o fragmento de uma
Carta de Freud a Abraham, de setembro de 1924: É exigir muito em termos da unidade
da personalidade tentar fazer com que eu me identifique com o autor do artigo sobre
os gânglios espinhais do petromyzon. No entanto eu devo ser ele e eu penso que fiquei mais
feliz com esta descoberta do que com outras que eu tenha feito depois.
Havia, nesse tempo de aproximações de Freud com Darwin, certo silêncio sobre sua
teoria evolucionista em toda a Europa, inclusive na Alemanha. A França do período
de Charcot (1825-1893) permanecia muda. Ernst Haeckel, importante biólogo e
filósofo alemão, pai da ecologia47, foi o primeiro a falar abertamente sobre a obra de
Darwin.
Em 1866, publica um de seus trabalhos clássicos, no qual manifesta seu encan-
tamento pela tese do pai da evolução: Morfologia Geral dos Organismos: Linhas
47 Haeckel descreve a ecologia da seguinte forma: Por ecologia nós entendemos toda a ciência das relações do
organismo com o ambiente, incluindo, de maneira geral todas as condições de existência. Estas são de natureza
em parte orgânica e em parte inorgânica; ambas, como mostramos, são da maior importância para a forma dos
organismos, porque os forçam a se adaptarem. Entre as condições inorgânicas às quais todos os organismos devem
adaptar-se pertencem, em primeiro lugar, as propriedades físicas e químicas de seu habitat, o clima (luz, calor, con-
dições atmosféricas de umidade e eletricidade), os nutrientes inorgânicos, a natureza da água e do solo, etc. Como
condições orgânicas de existência consideramos todas as relações do organismo com todos os outros organismos
com os quais ele entra em contato, e dos quais a maioria contribui ou de maneira vantajosa ou danosa. Cada orga-
nismo conta entre os demais organismos seus amigos e inimigos, aqueles que favorecem sua existência e aqueles que
o prejudicam. Os organismos que servem de alimento orgânico para outros ou que vivem sobre eles como parasitas
também pertencem a esta categoria de condições orgânicas de existência (ÁVILA-PIRES, 1999).

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

Gerais da Ciência das Formas Orgânicas Baseada nos Princípios Mecânicos Atra-
vés da Teoria da Descendência tal como Reformulada por Charles Darwin. Merece
destaque também o fato de, em 1878, Wilhelm Wundt (1832-1920), funda-
dor da ciência da psicologia, na sua obra Conferências sobre a Alma Humana e
Animal, expressar suas concordâncias com Darwin (RITVO, 1992: 28). Tanto
Haeckel quanto Wundt serão grandes referências para Freud, para sua ecologia
humana.
TABELA 1: OBRAS ORIGINAIS CONSULTADAS POR FREUD
AUTORES OBRAS CONSULTADAS NÚMERO DE VEZES
CONSULTADAS
Frazer Totemismo e Exogamia 29
O Ramo Dourado 21
A Origem do Totemismo 1
A Arte Mágica e a Evolução dos Reis 13
Lang O Segredo do Totem 9
Totemismo (Enciclopédia Britânica) 1
Wundt Psicologia dos Povos 10
Spencer e Gillen As Tribos Nativas da Austrália Central 2
Wundt e Spencer Enciclopédia Britânica 2
Spencer Princípios de Sociologia 2
Tylor Cultura Primitiva 2
Morgan Sociedade Antiga 1
R. Smith A Religião dos Semitas 4
Crawley A Rosa Mística 3
Darwin A Origem das Espécies 1
Fonte: Freud e Lévi-Strauss (BARRIO, 2008: 52)

Dentre as contribuições apresentadas a Freud pelo darwinista Ernst Haeckel,


destacam-se suas elaborações em torno da ontogenia e filogenia, termos criados
por ele para referir-se à história orgânica do desenvolvimento humano. Ontoge-
nia quando tratava da história do indivíduo e filogenia para analisar a história
da espécie, da tribo, afirmando que ambas mantêm-se em estreita conexão (in
RITVO, 1992: 31).
Uma das chaves de Darwin, usada por Freud, era a ideia de que o presente das es-

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Juracy Marques |

pécies estava ancorado nas suas histórias passadas, ou seja, a ideia de que a onto-
genia reproduzia a filogenia. Em Além do Princípio do Prazer (1920), Freud faz
referência à embriologia em sua condição de recapitulação da história do desenvol-
vimento. É nessa obra que aparecerão suas inquietações sobre a pulsão de morte.
Darwin situou bem o lugar do homem na natureza. Para Freud, Darwin e seus
colaboradores puseram fim à ideia de superioridade do homem: O homem não é
um ser diferente dos animais, ou superior a eles; ele próprio é de descendência ani-
mal, estando mais estreitamente relacionado com algumas espécies e mais distantes
de outras. As aquisições que posteriormente fez não conseguiram apagar a evidên-
cia, tanto em sua estrutura física quanto em suas disposições mentais.
Darwin, em A Origem das Espécies (2009), não investiga sobre a “origem” do ho-
mem e de outras espécies, mas, rapidamente, sobre indicadores de sua evolução.
Como escreve em sua obra, trata-se do “mistério dos mistérios”. O fato de que não
posso sondar o seu próprio mistério é um mistério... mas não há nada nesse mundo
que não carregue em si o mistério (MORIN, 2012: 291; 293).
Antes dele, diversos pesquisadores tentaram situar o lugar do homem na nature-
za, como Lineu (1707-1778), Bufon (1707-1788) e Lamarck. Este último, em
sua Filosofia Zoológica (1809), já estabelecia uma certa ligação entre o homem e
os macacos48, que nossa espécie tinha uma origem análoga a de todos os mamí-
feros.
Sobre a natureza, diz que ela criou a organização, a vida e até o sentimento; que
ela multiplicou e diversificou, em limites que não conhecemos, os órgãos e as facul-
dades dos corpos organizados, os quais ela sustenta ou cuja existência propaga; que
ela criou nos animais, pelo caminho único da necessidade, que estabelece e dirige
os hábitos, a fonte de todas as ações e faculdades, das mais simples até aquelas que
constituem o instinto, a habilidade e, enfim, o raciocínio. Lamarck trouxe para o
campo natural, o homem e suas capacidades morais e intelectuais.
Sobre o desenvolvimento da fala, da linguagem, tomada como ponte que sepa-
ra o bicho do homem, ele diz que as necessidades teriam causado tudo; fizeram
nascer os esforços e os órgãos próprios às articulações sonoras se desenvolveram por
48 Esta tese ganhou força quando foram descobertos, em 1856, na Alemanha, um crânio e ossos de
membros, os quais foram nomeados como homem de neandertal.

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

seu uso habitual, ou seja, motivados pelas necessidades, objetivando ampliar seu
repertório de sinais de comunicação, exercitando a garganta, a língua e os lábios,
desenraizaram dos lugares quase inexplicáveis de sua natureza, a fala, a palavra, a
linguagem, o elemento primordial para a psicanálise, ciência que só foi possível
porque o macaco falou. Boas (2010: 104) vai dizer que a raça humana se carac-
teriza por certa combinação de tipo físico, língua e cultura.
Em algumas tradições indígenas, a linguagem, a língua, é pensada como indis-
sociável da noção de palavra (algo que incorpora o sentimento) e da condição
espiritual (alma). Em tupi-guarani, temos o vocábulo Anhangá, que significa pa-
lavra, linguagem, alma. Entre os Guarani-Nandeva, a palavra aywu49 também se
manifesta como uma síntese dessas dimensões humanas.
Edgar Morin (2012: 37), poeticamente, descreve que a língua vive como uma
grande árvore cujas raízes atingem o mais fundo da vida social e cerebral, cuja copa
resplandece no céu das ideias ou dos mitos, cujas folhas farfalham em miríades de
conversas.
Darwin, um leitor dedicado de Lamarck, foi mais cauteloso tentando evitar que
a essência de sua teoria se perdesse em meio às polêmicas em torno dessa questão,
já em ebulição nessa época. Não tratou do homem, especificamente, no livro A
Origem das Espécies, disse apenas que haveria de se fazer uma luz sobre a origem
do homem e sua história. Entretanto, em notas50 constantes em seus cadernos so-
bre o homem, escreveu: O espírito do homem não é mais perfeito que os instintos dos
animais em muitas circunstâncias... Nossa ascendência é, então, a origem de nossas
paixões culposas! O diabo, sob a forma de um babuíno, é nosso ancestral! Nesse
fragmento Darwin toca na culpa, que será, em toda teoria freudiana, a espinha
dorsal de suas elaborações sobre o homem e a civilização, ao lado da, também,
teoria darwiniana da horda primitiva e dos instintos.
Em outra anotação, na qual está imerso nos estudos sobre as emoções, diz que
o tema da expressão, mais que qualquer outro elemento estrutural, é interessante
pela sua ligação com o espírito (o que mostra bem que não há nenhum salto entre
o homem e o bicho). Ninguém pode colocar em dúvida essa ligação entre homem e
49 Comunicação de Pedro Magalhães Lopes, no I Simpósio de Etnopsicologia da USP (2016).
50 Scientific American Brasil (Darwin: As Chaves da Vida).
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Juracy Marques |

bicho. Comparem um indígena da Terra do Fogo com um orangotango e tenham a


coragem de dizer que as diferenças entre eles são enormes. São.
Quando a teoria da evolução das espécies já tinha sido aceita, pelo menos entre
os naturalistas e outros homens das ciências, após três anos árduos de trabalhos,
em 1871, Darwin publica um dos maiores tratados sobre a espécie humana: A
Origem do Homem e a Seleção Sexual, livro no qual sustenta que o homem des-
cende de uma forma qualquer preexistente, como todas as outras espécies; obra
que também vai marcar profundamente o pensamento de Freud.
Freud aprendeu com seus mestres que a biologia deve seguir as leis da física e da
química e tentou aplicar esses princípios à sua psicologia genética. No Projeto
(1895), tentou explicar o psiquismo humano em termos neurofisiológicos; em
Além do Princípio do Prazer (1920), buscou ratificar essa perspectiva escreven-
do: as deficiências de nossa descrição provavelmente desapareceriam se já estivésse-
mos em condições de substituir os termos psicológicos pelos fisiológicos ou químicos.
Roudinesco (2016: 73) vai demonstrar que essa necessidade de Freud de “neurolo-
gizar” o aparelho psíquico pressupunha igualmente a elaboração de uma “mitologia
cerebral”. Freud logo tomou consciência disso e desistiu de tal projeto para construir
uma teoria puramente psíquica do inconsciente. Com isso, passou a qualificar de
delírio, balbucio e algaravia o que ele próprio elaborara.
Conforme descreveu Erasmo Mendes, no seu artigo Freud e a Fisiologia (1996:
91), Sigmund, nos seus últimos anos de vida, defendia que o inconsciente deveria
ocupar um lugar como uma ciência natural, desenvolvendo a ideia de que, no
futuro, a psicanálise poderia exercer uma influência direta através de substâncias
químicas específicas, sobre as quantidades de energia e sua distribuição no aparelho
mental. Para esse autor, Freud, à sua maneira, admitiu a importância da neu-
rofarmacologia no tratamento dos distúrbios mentais. Como visto, essa é uma
guerra observada, hoje, entre a medicina, a psiquiatria e a psicanálise, com a qual
não sonhamos quando e onde vai parar.
Lamarck também é um nome a ser sempre lembrado nas teorias evolucionistas
de Freud. Enquanto Darwin é elogiado por tratar a evolução pela perspectiva da
seleção natural, Lamarck é ignorado por ter defendido, bem antes de Darwin, a

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

dimensão evolutiva da herança por caracteres adquiridos, ideias extremamente


marcantes na teoria psicanalítica de Freud. Ernst Kris, querido de Freud, disse à
BBC que as propensões lamarkianas de Freud eram muito lamentadas por vários
de nós, tratando da insistência de Freud sobre a ideia dos caracteres adquiridos
(in RITVO, 1992: 47).
Darwin só veio reconhecer a importância de Lamarck para a teoria da evolução
a partir da 3a edição da Origem das Espécies: deixando de lado autores desde o
período clássico até o de Buffon, com cujos textos não estou familiarizado, Lamarck
foi o primeiro cujas conclusões sobre esse tema despertaram muita atenção (RIT-
VO, 1992: 49). Em A Descendência do Homem, Darwin afirma que Lamarck é
um dos que concluíram que o homem é o co-descendente, com outras espécies, de
alguma forma antiga, inferior e extinta.
Diretamente, há poucas referências a Lamarck na obra de Freud, Über Coca, de
1884, quando tratou da cocaína (RITVO, 1992: 76), e em Conferências Intro-
dutórias sobre Psicanálise (1916). Mas, até os últimos dias de sua vida, as ideias
de Lamarck o acompanharam. Mantendo a crença na horda primeva de Darwin,
supôs que o Complexo de Édipo era uma repetição (herança) ontogenética da
experiência filogenética da humanidade.
Assim, sustentava as explicações filogenéticas pelos caminhos psíquicos, mesmo
a biologia tendo mostrado a falência das teorias lamarckianas. Freud leu uma
das obras clássicas de Lamarck, Philosophie Zoologique, mas, como aparece no
Projeto para uma Psicologia Científica (1895), quanto esboçou o ponto de vista
biológico da sua teoria, ancorou-se nas ideias de Darwin para sustentar a hipóte-
se de dois sistemas de neurônios, ϕ [fi] e ψ [psi], dos quais ϕ consiste em elementos
permeáveis e ψ em impermeáveis, tentando fornecer uma explicação para uma das
particularidades do sistema nervoso – a de reter e ainda continuar capaz de receber.
Freud havia feito referências sobre A Expressão das Emoções de Darwin em seus
Estudos sobre a Histeria (1893-1895) e em Os Chistes e sua Relação com o In-
consciente (1905), além de, no percurso de sua obra, ter feito citações e grandes
elogios à publicação A Descendência do Homem, a qual considerava ser uma das
obras-primas do pai da teoria da evolução, profundamente analisada em Totem
e Tabu (1913).

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Juracy Marques |

Entretanto, não abordou, mais especificamente, Lamarck. Somente em 06 de ja-


neiro de 1916, em carta a Ferenczi, analisando de Freud antes da guerra e grande
colaborador, ele propôs a construção de um trabalho que relacionasse a psicaná-
lise à teoria lamarckiana. Tenta, mas, aos poucos, tomado pelo cansaço da guerra,
deixa o projeto nas mãos de Ferenczi. Escreve: Ela [a ideia de Lamarck] surgiu
em Ferenczi e mim, mas nenhum de nós tem tempo ou espírito para se deter nela
no momento. A ideia é por Lamarck inteiramente em nosso campo e mostrar que a
“necessidade” que, segundo ele, cria e transforma órgãos, é apenas o poder das ideias
inconscientes sobre o corpo da pessoa – do que vemos resquícios na histeria – em
suma, a “onipotência de pensamento”. Isso na verdade forneceria uma explicação
psicanalítica para a adaptação (In RTIVO, 1992: 81).
A partir dessa elaboração, pensamos que o ego torna-se, assim, o órgão psíquico
da adaptação que media os conflitos entre o mundo interior (id) e o ambiente
externo (superego). Em O Ego e o Id (1923: 38), observamos como as formu-
lações evolucionistas, particularmente as darwinianas, influenciaram Freud na
construção de sua teoria psicológica: As experiências do ego... quando foram reti-
das com frequência suficiente e com suficiente força em muitos indivíduos, em suces-
sivas gerações, transforma-se, por assim dizer, em experiências do id, cujas impres-
sões são preservadas por hereditariedade. Assim, no id, que é capaz de ser herdado,
estão abrigados resíduos da existência de inumeráveis egos; e quando o ego forma
seu superego a partir do id, talvez esteja apenas revivendo formas de antigos egos e os
trazendo à ressurreição. Nessa obra, Freud destaca que, de modo geral, o ego efetua
as repressões a serviço e a mando do seu superego.
O hambiente onde o frágil ser humano tem que se adaptar oferece, desde
cedo, quer no campo psíquico, ou mesmo no mundo externo, adversidades
da ordem do insuportável. O real é, antes, insuportável ao ser humano, e
não às outras inocentes espécies de animais e plantas. As azaleias não estão
sofrendo com as cobranças bancárias nem com os telejornais hematófagos
diários.
É preciso desenvolver traços de resiliência para viver no mundo e o ser recorre ao
ego para poder se adaptar às insuportáveis e destrutivas contingências da vida.

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

Resistir é a única possibilidade de existir51. Freud, em Um Esboço de Psicanálise,


escreveu: Podemos figurar um estado inicial como um em que a energia total dis-
ponível de Eros, que daqui para frente denominaremos “libido”, está presente no
ego-id ainda indiferenciado e serve para neutralizar as tendências destrutivas que
estão simultaneamente presentes. Eros, para Freud, é a força da vida, que torna
suportável a existência da espécie humana.
Hebert Marcuse, em seu livro Eros e Civilização, sustentando a tese de que a
teoria de Freud é “sociológica” em sua substância e que o “biologismo” que se
evidencia como substrato desta é teoria social numa dimensão profunda, alerta-
-nos que não é o conflito entre instinto e razão que fornece o mais forte argumento
contra a ideia de uma civilização livre, mas, antes, o conflito que o instinto gera em
si próprio. Mesmo que as formas destrutivas de sua perversidade e licença polimórfi-
cas sejam devidas a mais-repressão e tornem-se suscetíveis de ordem libidinal assim
que a mais-repressão for removida, o instinto, propriamente dito, está situado para
além do Bem e do Mal, e nenhuma civilização poderá prescindir dessas distinção
(1999: 196). Essa talvez seja a grande lição de Freud: que a força selvagem está
dentro de nós e é indomável.
Freud, durante parte significativa de sua vida, deparou-se com os dilemas em
torno da influência do meio sobre os indivíduos. Em seus estudos iniciais sobre
a histeria, ainda sob a influência de Charcot, que acreditava na histeria como um
transtorno do sistema nervoso, deu ênfase à hereditariedade. Em seguida, dá um
passo no sentido de sustentar a tese da etiologia das neuroses a partir de abusos
na infância. Percebendo que essas lembranças poderiam ser imaginárias, estru-
turou a ideia do Complexo de Édipo, em que visibiliza a filogênese, ou seja, a his-
tória da humanidade, atualizada na ontogênese, na vida psíquica do indivíduo.
Em seus Três Ensaios Sobre a Sexualidade (1905: 173), afirma que os autores que
se preocupam em explicar as características e reações do adulto têm dedicado muito
mais atenção ao período primevo, que está situado na vida dos ancestrais do indi-
víduo – isto é, têm atribuído muito mais influência à hereditariedade – do que ao
outro período primevo, que está situado dentro da vida do próprio indivíduo – isto

51 Fala do Dr. Evandro Pizza, no Congresso Internacional de Direito de Povos e Comunidades Tradicio-
nais (Salvador, 2017).

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Juracy Marques |

é, a infância. Certamente se teria suposto que a influência desse último período seria
mais fácil de compreender e poderia pretender ser considerada antes da heredita-
riedade.
Segundo Ritvo (1992: 60), a tentativa de Freud de deslocar a importância da
experiência do ontogenético para o filogenético é um dos usos mais famosos (ou difa-
mados) que ele fez da concepção neolamarckiana da herança de caracteres adquiri-
dos. Seu deslocamento da importância fundamental da experiência do ontogenético
para o filogenético, juntamente com a restrição da observação psicanalítica a uma
única espécie, pode explicar a acentuada diferença nos destinos das formulações on-
togenéticas e filogenéticas de Freud.
Em Reflexões para Tempos de Guerra e Morte (1915), analisando o que chamou
de exigências da vida, a pressão do meio sobre o desenvolvimento humano (ham-
biente), seja pelo processo de seleção natural (Darwin) ou por hábito, usos e
desusos (Lamarck), escreveu Freud: em última instância pode-se supor que toda
compulsão interna que se faz sentir no desenvolvimento dos seres humanos era origi-
nalmente – isto é, na história da humanidade – apenas externa. Então, supomos,
agora, a fera selvagem que está dentro vem de fora do ser. Aqui, a tese “o destino
é a anatomia” é questionável.
Apesar dessas formulações sobre a importância ou não do meio sobre os organis-
mos, torna-se necessário destacar que Freud, como Goethe, Lamarck e o próprio
Darwin, reconhecendo a importância de ambos, defendeu a natureza interacio-
nal entre hereditariedade e meio. Hoje, nos estudos sobre a espécie em ecologia
humana, sempre se pensa nas interações do ser com seu hambiente, como algo
que pressupõe uma interdependência. Então, a fera selvagem vive dentro do hu-
mano, é seu íntimo, e vem de fora dele. Não está claro se sua origem é interior ou
exterior ao organismo do ser.
Tantas outras ciências dedicaram-se ao estudo do ser humano. Enquanto estu-
daram as espumas das águas, Freud e sua criação, a psicanálise, aventuraram-se
pelas profundezas do oceano obscuro que é o psiquismo humano. Após ter pu-
blicado a obra inaugural da psicanálise, A Interpretação dos Sonhos (1900), dedi-
cou-se a analisar os lapsos da fala e escrita, conhecidos como atos-falhos, e, poste-
riormente, os chistes. Desvelou a dinâmica da sexualidade infantil e escandalizou
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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

a humanidade com sua obra Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade (1905).
Freud revelou ao mundo duas faces do comportamento humano: o poder e o
sexo. Se tivéssemos que nomear o que estávamos chamando de fera selvagem
do humano, esses seriam seus dois nomes. Soldados seria o gozo. Para Freud, o
objetivo da sexualidade humana não era a procriação, e sim um exercício de um
prazer que se basta a si mesmo e escapa à ordem da natureza (ROUDINESCO,
2016: 129).
Sigmund dedicou-se a grandes questões humanas. Em Psicologia dos Grupos
(1921), O Futuro de Uma Ilusão (1927), Totem e Tabu (1913), Moisés e Mono-
teísmo (1939), O Mal-Estar na Civilização (1930), buscou entender como os
seres humanos necessitam e se submetem à autoridade, que, descreve, é um dos
códigos para o entendimento das civilizações, as quais, recorrentemente, elegem
tiranos e ditadores como seus líderes, a exemplo de Hitler, Mussolini, Franco,
Lenin, Stalin, Mao, Kadhafi, Sadan, Kim, entre outros herdeiros dos desejos dos
nossos medos infantis.
Suas obras anunciaram que, nos séculos XX e XXI, teríamos a ascensão da
tirania e do fundamentalismo, os quais se elaboram nas searas da política e
da religião. Alerta que mesmo as vitórias sobre as formas tiranas do passa-
do não devem ser celebradas como terminalidades, pois, sustenta, são par-
tes constitutivas do ser humano, a exemplo do que profetizou Marx (2006):
“tudo o que era sólido desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profana-
do, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar friamente sua posição so-
cial e suas relações mútuas”. A poderosa teoria marxista, como escreveu o
sociobiólogo Edward Wilson, é uma ideia certa para uma espécie errada.

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Juracy Marques |

TABELA 4: CONSIDERAÇÕES SOBRE FREUD E MARX


MARX FREUD
De origem judaica e ateu De origem judaica e ateu
Produto da cultura germânica, mais preci- Austríaco-judeu com amplas relações coma fi-
samente da filosofia alemã losofia alemã
Trouxe contribuições inestimáveis à histó- Sem ter estudado psicologia ocupou um capítu-
ria da economia sem ter estudado ciências lo da história dessa ciência
econômicas
Seu objetivo era libertar o operariado da ex- Seu objetivo era libertar a libido da repressão
ploração capitalista pelos tabus da civilização
Atacou a avidez econômica Atacou o moralismo civilizatório
Segundo suas teorias, as conquistas socia- Segundo suas teorias as “curas” analíticas ate-
listas melhorariam a situação do operariado nuariam o sofrimento de inúmeros neuróticos
no mundo
Defende que o desenvolvimento de formas Acredita que a estrutura de classe das socieda-
de sociedade é um produto histórico natural des remonta as lutas de entre as horas humanas
FONTE: FUEERSTENENTHHAL A. H. Marx e Freud. Viver Psicologia. São Paulo, agosto de 2002.

Todos somos assassinos em nossos corações, relembrou Freud a respeito do comporta-


mento sádico da humanidade. Não foi estranha a Freud apenas a perversão alemã
frente aos judeus, mas o nível de excitação que a crueldade alemã despertava em
“silenciosos” desejos de seus conterrâneos austríacos e das omissões observadas em
toda a Europa, frente ao horror do holocausto. O Pacto de Munique, onde, em
1938, Hitler e Mussolini celebraram a anexação da Checoslováquia à Alemanha,
era a expressão máxima da indiferença das outras potências do mundo.
Freud acreditava que mesmo os mais civilizados escondiam desejos de violência.
A sociedade humana é, para o pai da psicanálise, um lugar caótico, governada,
também, por instintos agressivos, os quais nomeou como pulsão de morte (Ta-
natos), ou seja, pelos impulsos dos organismos de buscar sua própria destruição,
tentando livrar-se de uma tensão. Só para ilustrar, na Áustria, 99,73% dos eleito-
res aprovaram a unificação com a Alemanha proposta por Hitler (EDMUND-
SON, 2009: 96).
Em duas de suas obras, Freud (1932) descreve aspectos dessa sombra monstruo-
sa da espécie humana: Em Por que a Guerra?, que escreveu junto com Einstein,
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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

declarou, ao contrário do seu amigo judeu, sua descrença na construção da paz,


haja vista sua percepção do fascínio que o horror das guerras despertava nos hu-
manos, na sua busca pelo domínio e pela autoridade e nos processos de manipu-
lação das massas que desejam ser dominadas. Em Luto e Melancolia (1914), uma
de suas obras mais pessimistas, analisa que o suicídio, fenômeno comum entre os
humanos, e mais raro entre plantas e bichos, ocorre por um desequilíbrio no psi-
quismo, no qual opera a força do superego sobre o ego que se encontra esgotado
pelas pressões civilizatórias e se deixa destruir, como nos casos de apoptose, ou
seja, tipos de mortes celulares programadas. Alguém se pergunta por que as fo-
lhas caem das árvores no outono? Então! É igualmente indiferente à humanida-
de a existência, em estado de sofrimento, de quantidade significativa de pessoas,
em todo o mundo, vítimas das dores da alma. Em todos os lugares, os sistemas
públicos de saúde organizam-se para os “cortes no corpo”.
O suicídio, deveras, é uma sombra que tem acompanhado o processo civiliza-
tória da humanidade. Sabemos, as taxas de suicídios em nações desenvolvidas
são muito mais elevadas que em nações pobres e tradicionais. Por exemplo, em
países como Peru, Guatemala, Filipinas e Albânia, uma pessoa a cada 100 mil co-
mete suicídio a cada ano. Em países ricos e pacíficos, como Suíça, França, Japão
e Nova Zelândia, 20 em cada 100 mil pessoas tiram a própria vida anualmente.
Em 1985, quando a Coreia do Sul era pobre e vivia sob uma severa ditadura, a
taxa de suicídio anual era de nove a cada 100 mil, hoje, sendo uma das maiores
potências econômicas do mundo, a taxa mais que triplicou: foi para 30 em cada
100 mil (HARARI, 2016: 42).
A agenda humana para este novo século é tornar a espécie humana amortal ou,
pelo menos, tendo uma expectativa de vida na casa dos 200 anos até a segunda
metade do século XXI. Entretanto, como mostram as consequências humanas
desse estranho processo civilizatório, será muito mais fácil vencer a morte do que
a infelicidade humanas.
As neurociências caminham no rastro das biotecnologias, na crença de subsidiar
o corpo do sapiens com drogas potentes capazes de tirar-lhe desses ameaçadores
estados de tristeza. Viveremos a era dos psiquismos entorpecidos, das subjetivi-
dades contemporâneas.

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Juracy Marques |

Não só a psicanálise, mas todas as ciências da alma devem estar presentes nesse
momento-chave do destino psíquico da nossa espécie. Seria um delírio o so-
nho de Freud de que a psicanálise se tornaria uma revolucionária terapia das
massas? Veja o que nos diz Harari (2016b: 257): Nenhuma medida de autor-
reflexão ou de psicoterapia vai ajudar porque os psicoterapeutas também estão a
serviço do sistema capitalista.
Nas searas das tristezas humanas, temos o luto e a melancolia. Para Freud, no
luto, o sujeito, gradativamente, vai se desapegando do objeto perdido, enquan-
to que a melancolia se organiza como uma espécie de luto patológico, no qual
se reelabora uma espécie de culpa pela perda do objeto associada a um sofrido
processo de autopunição. A neurose e, particularmente a obsessão, são doen-
ças do pensamento. Na melancolia, esse retorno, no pensamento, à fantasia da
perda do objeto, faz o sujeito amargurar um feroz processo de culpabilização
e autopunição.
Acometidos por um ego fragilizado, como dos subjugados, os escravos entre-
gam o pescoço e os braços às argolas de ferro que os escravizadores trazem em
suas mãos e, perante o direito de sua última palavra, pedem aos carrascos que
lhe ponham a mordaça sobre a boca ou a máscara de ferro sobre toda a face,
machucando-lhes os lábios e os dentes. Conhecendo a dor e a humilhação, se
não se libertam pela morte, vivem escravizados por toda a vida à procura de um
homem-deus. Eis a alma do servo atuando nas suas estratégias adaptativas frente
aos processos civilizatórios. Servos vivem em pastos como cervos domesticados.
Marcuse, em Eros e Civilização (1999: 14; 18), vai nos dizer que não faz sentido
falar de liberdade entre homens livres, pois, as pessoas livres não necessitam de
libertação e as oprimidas não são suficientemente fortes para libertar-se, e que pen-
sar uma sociedade de homens livres com boa consciência para fazer da vida um
fim em si mesmo, para viver com alegria uma vida sem medo, coloca em cheque a
noção do desenvolvimento civilizacional irrefreável que experimentamos, com o
superdesenvolvimento das nações ricas e os níveis de miserabilidade amargados
pelos bolsões de pobres em todo o mundo.
Afirma, um é a condição do outro e não há sentido nem possibilidade dos
ricos se compadecerem da condição dos pobres, pois é isso que os tornam ri-
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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

cos, a pobreza dos pobres. Destaca que somente entre as civilizações pobres,
tomando esse sentido pleno da vida, reside um grande benefício humanitário:
por sua pobreza e fraqueza, poderão ser forçados a renunciar ao uso agressivo e
supérfluo da ciência e da tecnologia, para manterem a engrenagem produtiva “à
la mesure de l´homme”, sob o seu controle, para satisfação e desenvolvimento das
necessidades vitais.
Freud, após o nascimento de sua última filha, Anna, tornou-se celibatário e foi,
por muito tempo, abstêmio, ou seja, dominou algumas de suas compulsões,
apesar de ter feito uso da cocaína para tratar sua neurastenia e do compulsivo
e insuperável vício do charuto que, conforme revelou a seu amigo Wilhelm
Fliess (1858-1928), tratava-se de um substituto para o mais comum e repressi-
vo vício: a masturbação (EDMUNDOSON, 2009: 106). Em 1897, Freud de-
clarou que os vícios, as compulsões, são substitutos da prática da masturbação
que, sustentava, era uma necessidade primitiva da espécie humana, herança da
nossa animalidade (ROUDINESCO, 2016: 46). Esse sexo solitário, perigoso
suplemento, autoerotismo, gozo idiota, prazer anônimo foi considerado, por um
tempo, uma das piores perversões humanas, fonte de prazer, angústia e sofri-
mento.
Acusado durante toda a vida de ser um pervertido sexual, um tarado, para um
homem que viveu 83 anos, teve uma vida sexual extremamente curta, apenas
nove anos. Óbvio, durante seu estado de abstinência, teve vários sonhos eróti-
cos e sempre os analisou. A respeito disso, escreveu: Quando eu tiver superado
completamente a minha libido (no sentido vulgar), escreverei uma “vida amorosa
dos homens”. O renascer erótico de que falamos durante a viagem extinguiu-se
lamentavelmente sob a pressão do trabalho. Conformei-me com o fato de ser velho
e sequer penso constantemente no envelhecer (in ROUDINESCO, 2016: 65).
Freud investiu grande parte de sua energia sexual na estruturação da psicaná-
lise. Desde cedo, era patente que o Menino da Morávia queria ser famoso. Em
vida, teve pouco reconhecimento, tendo ganhado apenas o prêmio Goethe de
literatura, o mais importante da língua alemã, por sua psicologia ter contribuí-
do às ciências médicas, bem como à literatura e às artes.
Entretanto, após seu exílio em Londres, em junho de 1938, veio o que consi-

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Juracy Marques |

derou ser o seu mais glorioso prêmio: tornou-se membro honorífico da Royal
Society, assinando seu nome abaixo do de Isaac Newton e do seu admirado
Charles Darwin.
Esse seu novo passo como um homem de ciência colocava a psicanálise no cenário
das racionalidades de sua época. Quando tinha sete anos, por ocasião de ter urina-
do no quarto, seu pai disse: “esse garoto nunca será nada na vida”. Freud preferiu
acreditar no que dissera uma cigana à sua mãe, Amalia Freud (1835-1930), que o
chamava de “meu Siggy de ouro”: que ele realizaria grandes conquistas.
A biologia clássica, desde o esforço de Lineu, passando pelo darwinismo, buscou
um modelo de organização que nos permitisse entender melhor o lugar da espé-
cie humana no mundo. A ecologia criada por Haeckel e, mais especificamente,
a ecologia humana estruturada nas primeiras décadas do século XX, nos EUA,
passou a pensar suas formas de interação com o hambiente.
Analisar o humano como carne e osso conseguiram, em certa medida. Para Freud,
o humano é uma “negação” de tudo isso. Ele é alma. Seu corpo, na sua vida, organi-
za-se em processos estranhamente antagônicos ao caráter limitante das classifica-
ções, sobretudo as crenças na razão e na consciência. A psicanálise, ao contrário da
ecologia, ao buscar um mundo inclassificável como fenômeno de investigação, o
inconsciente, escavou novas e revolucionárias formas de nomear o humano, termo
que se apresenta inadequado para situar a inumanidade da humanidade.
Freud era médico, neurologista, conhecia o corpo, o cérebro, a biologia da nossa
espécie e, não satisfeito, criou as bases da ciência que estudaria a mente, a alma,
a psique e o inconsciente humanos. Trouxe ao desejo da compreensão humana
a fissura mais abismal, a fenda narcísica das estruturas do nascimento da nossa
espécie: o inconsciente.
Ele foi o inconsciente número um. Abriu-se como uma flor quando desabrocha
ou quando se corta um animalzinho em laboratório para se ver a escuridão do
corpo, dos órgãos. Escavou-se e criou um modelo de investigação singular sobre
o humano, a partir do qual descreve as teias de sua alma. Dos esboços sobre his-
teria até o Moisés, sua última obra, o trabalho de Freud se constituiu como uma
“autoanálise”. Ele levou a sério o conselho de Sócrates: Conhece-te a ti mesmo.

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

Não somos lobos, cavalos, nem ratos, nem galinhas, mas homens dos lobos
(Pankejeff ), homem dos cavalos (Hans), homem dos ratos (Lanzer), menino
das galinhas (Árpád52) existem. Não somos flores nem borboletas, mas mulheres
das flores e das borboletas acontecem. O corpo biológico que definia a espécie,
nas mãos de Freud, foi escavado pelos caminhos mais inusitados para se entrar
no ser: pelos seus sonhos; por seus traumas. Para Freud, os sonhos não podem ser
reduzidos à expressão de uma atividade cerebral (ROUDINESCO, 2016: 114).
Estava esculpido, para todo o sempre, o nosso corpo simbólico e a psicanálise
enraizaram-se em todos os domínios do pensamento humano.
A cultura, a sociedade, categorias estudadas por ciências como a antropologia,
a sociologia, ganharam das mãos de Freud outras tessituras e significações. Ele
chegou mesmo a prever que a biologia seria a ciência do novo século, se tomasse
como base uma noção mais radical do que é a vida, tecendo críticas duras à zoo-
logia e à botânica, indicando suas análises superficiais e limitadas.
Na Questão da Análise Leiga (1926: 236), ao argumentar que a psicanálise não
é um campo de conhecimento da medicina, defendeu que profissionais não
médicos podem trabalhar com a análise. Pontua que, para atuar com a psicaná-
lise, também são necessários saberes do campo da medicina, destacando, para
formação analítica em psicologia profunda, ser preciso estudar introdução à
biologia, o máximo possível de ciência da vida sexual e a familiarização com a
sintomatologia da psiquiatria... a história da civilização, a mitologia, a psicolo-
gia da religião e a ciência da literatura. Em Análise Terminável e Interminável
(1937), afirma que, para o campo psíquico, o campo biológico realmente desem-
penha o papel de fundo subjacente.
Freud foi um leitor assíduo de Darwin. Sua análise da ansiedade como resposta
adaptativa ao meio casa-se com a perspectiva sustenta por Darwin, na sua obra
A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais, na qual defende, como tese,
que a ansiedade como uma função biológica caracteriza-se como uma resposta
aos estados de perigo apresentados pelo ambiente.
Tanto em Freud quanto em Darwin, a ansiedade é uma resposta do animal aos
seus processos adaptativos. Segundo Viana (2010: 169), para a psiquiatria evo-
52 Caso analisado pelo psicanalista Ferenczi (FREUD, Totem e Tabu, 1913: 135).
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Juracy Marques |

lutiva, as raízes da ansiedade e do medo estariam nas reações de defesa dos animais
em face de estímulos que representam perigo ou ameaças à sobrevivência, ao bem-
-estar ou à integralidade física das diferentes espécies. E, nesse sentido, quadros de
ansiedade seriam, acima de tudo, patologias dos sistemas de defesa.
Freud, desde suas inquietações presentes na obra Projeto para uma Psicologia
Científica (1895), publicada após sua morte, já se depara com a questão das ten-
sões sexuais acumuladas (insuficientes no caso das virgens ou em declínio no
caso da senilidade), a origem das neuroses e da ansiedade.
Adiante, Freud falará da ansiedade realística, ou seja, da percepção de um perigo
externo, e da ansiedade neurótica ou patológica, que é quando um neurótico,
nas suas experiências subjetivas, comporta-se como se antigas experiências de
perigo, parte delas ancoradas na memória da espécie, ainda existissem, fossem
reais, e os ameaçassem como dantes. Assim, temos uma face não adaptativa da
ansiedade neurótica, diria mesmo, desadaptativa, haja vista fazer pactuação com
instintos destrutivos, com a pulsão de morte. Talvez, aqui resida uma das razões
para o suicídio.
Freud (1926) alerta-nos que boa parte das pessoas, mesmo as mais amadureci-
das, comporta-se como se ainda fossem crianças e se fixam em estados de ansie-
dade que não mais existem no seu meio. Em sua mais importante obra que trata
do medo, Inibição, Sintoma e Ansiedade, Freud (1926) vai afirmar que o ego, a
sede real da ansiedade, vai reagir tanto a estímulos exógenos como a estímulos
endógenos. A repressão, para ele, é produzida pela ansiedade e não ao contrário,
como antes se acreditava.

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

4. Halma
O corpo é a sombra da minha alma.
Clarice Lispector

Darwin e Freud estiveram motivados pela questão sobre o que há entre o animal
e o humano, ou seja, quando o animal da espécie, hoje classificada como Homo
sapiens no Systema de Lineu, tornou-se humano, saiu da animalidade para a hu-
manidade. Sobre a condição animal humana, como anteriormente, apresentei a
análise feita por Agamben.
Freud escreve: Estamos diminuindo o abismo excessivamente largo que períodos
anteriores da arrogância humana cavaram entre a humanidade e os animais. Se
devemos encontrar alguma explicação para os assim chamados instintos dos ani-
mais (...), esta só pode ser que eles trazem as experiências de sua espécie com eles para
dentro de sua nova existência (...). A posição do animal humano não seria, no fun-
do, diferente. Sua própria herança arcaica corresponde aos instintos dos animais,
embora seja diferente em seu alcance e em seus conteúdos (in SIMANKE, 2009).
Para Agamben (2013: 53), o que separa estes dois estágios, filo e ontogenético,
da nossa espécie, é o aberto, ou seja, algo sempre menos e mais que ele próprio.
O que separa é o aberto, mas o que une a animalidade à humanidade? Agamben
(2013: 60) vai afirmar que a passagem do animal ao homem, malgrado a ênfase
posta na anatomia comparada e nos repertórios paleontológicos, era, na realidade,
produzida por meio da subtração de um elemento que não vinha, em vez disso,
como marca do humano: a linguagem. Sustenta o autor argelino (2013: 61) que a
linguagem é um estágio do desenvolvimento da alma humana.
Godoy (2008: 228) fala da luz das frestas entre o animal e o humano: Nas bre-
chas, se inventa uma imensidão selvagem que é, a cada vez, sempre outra coisa; pas-
sa-se, por conseguinte, de uma imensidão selvagem que filia, ideal puritano, a uma
condição selvagem que associa, dissolvendo as estriagens da primeira, em proveito
de um espaço intensivo.
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Juracy Marques |

A ecologia dos bichos e das plantas trabalha com uma linguagem desses reinos
sem a percepção de descaminhos, como ocorre na comunicação entre as abelhas.
A ecologia humana, como tem pensado a linguagem dessa espécie? A psicanálise
traz a nota de que, no campo da comunicação humana, a linguagem também se
apresenta como uma impossibilidade. Lacan (2008), psicanalista freudiano, sus-
tenta que o inconsciente foi nomeado como os efeitos da fala sobre o sujeito, na
dimensão em que ele se determina no desenvolvimento dos efeitos da fala, pois,
o inconsciente é estruturado como linguagem.
Na escala evolutiva humana, antes do animal de linguagem, temos a existência
de um bicho que fez uso de outras roupagens comunicacionais ao organizar sua
animalidade no seu percurso do inorgânico ao orgânico, sempre mantendo o so-
nho de retornar à sua condição anorgânica. Como disse Lamarck, a necessidade
do corpo do bicho, de sua garganta, língua e boca, desenvolveu nele a capacidade
de falar e ampliou seu repertório comunicativo. No guarda-roupa do bicho, uma
peça de seu vestuário cobriu seu corpo com a pele da língua.
A respeito de onde veio o primeiro animal sem alma, há registro sobre as
primeiras formas de vida, bactérias53 unicelulares, num tempo de 3,5 bilhões de
anos (MARGULIS, 2001). Esses seres sobreviveram às extremas mudanças da
Terra, como as glaciações, e evoluíram para organismos pluricelulares, datados
de 1,8 bilhões de anos (NEVES, 2008: 30). Esses organismos são responsáveis
por todas as outras formas de vida existentes no planeta, inclusive os humanos
(DARWIN, 2009).
Morin (2012: 29) afirma que a Terra se autoproduziu e auto-organizou na sua
dependência do sol, e tornou-se biofísica complexa a partir do momento em que se
desenvolveu a biosfera. Da Terra, efetivamente, originou-se a vida, e do desenvolvi-
mento multiforme da vida policelular organizou-se a animalidade; por fim, o mais
recente desenvolvimento de um ramo do mundo animal tornou-se humano. Eis o
belo fenômeno da autopoiesis.
Vimos, então, a magia do nascimento do primeiro ser celular na história da Ter-
53 Peço permissão para tomar a bactéria, nosso ancestral de vida, como metáfora; ela contém um princípio
que lhe permite dividir-se em duas bactérias, cada uma se tornando, ao mesmo tempo, mãe, irmã e filha da
outra. Além disso, por diferentes que sejam, as bactérias comunicam-se entre elas, oferecendo o que têm de
mais precioso, filamentos de DNA, no seio do imenso Nós (MORIN, 2012: 78).

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

ra, que, diversificando-se, originou os reinos animais e vegetais que conhecemos.


Nós, humanos, somos o acontecimento mais enigmático dessa alquimia do nos-
so maior órgão, a Terra, com a qual mantemos uma relação quase fetal. Ela, diria,
é um coração fora de nós.
Por volta de 55 milhões de anos, os primeiros primatas, ordem zoológica a qual
pertencemos, já estavam dispersos nas florestas tropicais do mundo, entretanto,
grupos mais específicos de hominídeos só se desenvolveram por volta de sete
milhões de anos, quando espécies de não humanos deixaram de ser quadrúpedes
e passaram a ser bípedes (NEVES, 2008: 31).
As datações mais antigas sobre o aparecimento do gênero Homo é estabelecida
em 2,4 milhões de anos, a partir de fósseis encontrados na Etiópia, África. Tra-
ta-se de registros associados ao Homo hábilis, dada sua capacidade para fabricar
instrumentos. Há cerca de 1,8 milhões de anos, temos datações para o Homo
Erectus, quando é observada uma mudança morfológica na estrutura desses
hominídeos (NETO, 2015), particularmente o crescimento e organização do
cérebro (MORIN, 2012: 38), além de ter sido a espécie responsável pela con-
quista do fogo, uma das mais importantes descobertas humanas. Nas pegadas da
paleoantropologia, chegamos a um tempo entre 350 e 39 mil anos, na Euroásia,
onde encontramos vestígios dos neandertais (TANKARA, 2015), nossos pa-
rentes mais próximos, extintos há, aproximadamente, 30 mil anos pelos sapiens.
Os Homo sapiens, nossa condição humana atual, só teve origem por volta de 200
mil anos (LOPES, 2015; MORIN, 2012). Essas transformações nas espécies,
sabemos, acontecem principalmente por seleção natural e sexual, causadas pelas
pressões hambientais, que forçam as populações a se adaptarem a cada nova exi-
gência dos nossos hecossistemas. O que chamamos natureza humana, em si, é
decorrente da evolução genética e cultural (WILSON, 2013).
Todas as espécies humanas que estiveram na Terra foram extintas, sobrando ape-
nas os Homo sapiens, hoje, na casa dos mais de sete bilhões povoando todo o
planeta. O fóssil mais antigo de um sapiens foi encontrado na Etiópia, África,
datado em 200 mil anos (ALLAN, 2015).
Diferentes teorias destacam os aspectos para o sucesso do Homo sapiens: a evolu-

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Juracy Marques |

ção de um cérebro maior54, a fabricação e o domínio de tecnologias diversas, tan-


to para caça quanto para lutas tribais, entre tantas outras capacidades. Marean
(2015) destaca a propensão geneticamente codificada para cooperar com indivíduos
não aparentados.
Anne Marie Pessis (2003: 57), integrante da Missão Arqueológica Franco-bra-
sileira na Serra da Capivara, Piauí, destaca o papel dos processos de acumulação
de conteúdos culturais e a migração para outros continentes como habilidades
responsáveis por sua sobrevivência. Escreve: Como em todas as espécies, as ca-
racterísticas de Homo sapiens são produto da evolução dos traços típicos da espécie
de origem e, como tal, englobam também a capacidade resultante da evolução da
ordem dos primatas. Capacidade que lhe permitirá observar, de maneira diferente,
as outras espécies, apresentar-se socialmente, segundo encenações simbólicas, e repre-
sentar graficamente essas representações imaginárias... os primatas, humanos e não
humanos, contam com as capacidades específicas para agir nesses encontros: uma
acuidade visual que lhes permite perceber relevos, distâncias, cores, e a faculdade
de opor o polegar aos outros dedos, tornando os gestos precisos para manipular, com
eficácia, diferentes objetos. Mas é o desenvolvimento do córtex cerebral que os torna
capazes de criar uma verdadeira protocultura, que integra e transmite aos outros as
inovações de sucesso adotados para resolver problemas e garantir melhor sua sobre-
vivência.
Esses aprendizados associados à espécie são passados às novas gerações por meio
das heranças genéticas e aprendizagens culturais, essas últimas, mediadas pelos
processos de imitação e transmissão, competências presentes nos sapiens, que
usam, para isso, diferentes recursos comunicacionais, como a “fala”, a escrita e as
imagens, a exemplo das pinturas e gravuras pré-histórias55, segundo Pessis (2003:
67), meios de comunicação menos fugazes que as palavras, mas que dependem delas
para achar seu sentido e sua significação.
Observamos que os problemas que a existência apresentou aos primeiros re-
presentantes do gênero Homo são radicalmente diferentes dos que, a nós, são
54 O cérebro dos neandertais eram ainda maiores. Há indícios de que o tamanho médio do cérebro de
um sapiens, efetivamente, diminuiu desde a era dos caçadores-coletores (HARARI, 2016: 16; 58).
55 As pinturas rupestres são uma porta de entrada para o conhecimento da vida na pré-história (PESSIS,
2003: 75).

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

facultados experimentarmos. Resolver esses problemas, usando o recurso da


criatividade individual, foi, talvez, um dos mecanismos mais eficientes do nosso
processo evolutivo. A espécie humana, particularmente os sapiens, caminhando
e povoado o mundo, foi, gradativamente, adequando-se social e psiquicamente,
fazendo uso dos ganhos nas suas estruturas biológicas e cognitivas.
Moran (1994) nos diz que mesmo a adaptação genética é uma resposta às cir-
cunstâncias ambientais. Sobre a adaptação humana, diz ser fruto da exposição a
fatores físicos e químicos existentes no ambiente, da interação com outras espécies e
da interação com outros indivíduos da mesma espécie. Alerta-nos que raramente se
exploram as formas complexas através das quais os seres humanos adaptam-se ao
ambiente por meio de mecanismo não-biológicos. Destacaremos, desse complexo
cenário da adaptabilidade humana, os mecanismos psíquicos, na crença de que
a evolução cultural tende a cobrir a evolução genética (WILSON, 2013). Pois,
escreve Marean (2015): a cultura é capaz de substituir até os mais arraigados ins-
tintos biológicos.
Mithen (2002), em Pré-História da Mente, mostra-nos a natureza abstrata da
mente e sua intangibilidade, retornando a um tempo de 56 milhões de anos,
quando, segundo ela, testemunhamos uma especialização mental cada vez maior,
com a adição das inteligências naturalística e técnica, e mais tarde a linguística, a
inteligência social do ancestral comum do homem e dos grandes símios vivos. Des-
creve que o processo de encefalização, ou seja, da expansão cerebral - caracterís-
tica mais emblemática dos processos evolutivos humanos -, começou com esses
primatas de 56 milhões de anos atrás.
Geertz56 destaca que o grande cérebro do Homo sapiens só foi possível após o
desenvolvimento de uma cultura complexa, reafirmando que a hominização
biológica foi necessária para a elaboração da cultura, mas a emergência da cultura
foi necessária para a continuação da hominização até o neanderthal e o sapiens.
Sabemos, exemplares antigos do início do período quaternário (o esqueleto ja-
vanês do Pithecantropus erectus, os esqueletos de Pequim, a mandíbula de Hei-
delberg, etc.), que constituem a base do processo evolutivo da espécie humana,
acumulam diferenças substantivas em relação ao neanderthal (encontrado no
56 Edgar Morin, 2012.
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Juracy Marques |

Vale do Neander, na Alemanha), considerado um tipo humano que guarda se-


melhanças com a estrutura do sapiens, nossa condição atual. É nessa ponte de
ossos que buscamos a passagem do animal ao humano. Por falar em esqueletos,
depois da biologia, a arqueologia foi a segunda grande paixão de Freud.
Para Boas (2010: 59), devemos pensar não a passagem de um animal selvagem
para um tipo especificamente humano, mas de uma condição humana selvagem
para a domesticada. O ser humano não é uma forma selvagem, mas deve ser com-
parado aos animais domesticados. É um ser autodomesticado.
Gradativamente, desde os australopithecus, passando pelo hábilis, erectus, nean-
derthal, até chegar aos sapiens, particularmente no Cro-Magnon, subespécie des-
se último grupo que surgiu há, aproximadamente, 40 mil anos, a mente humana
foi desenvolvendo a capacidade de simbolizar, cujas datações paleoantropoló-
gicas retroagem, no percurso do seu estágio de desenvolvimento evidente, a um
tempo de aproximadamente 45 mil anos, descrito como era da revolução criativa.
Walter Neves (2008: 54) nos diz que, em outros termos, a simbolização, ou a pro-
priedade de atribuir sentido e valor abstrato às coisas, traço marcante da nossa espé-
cie hoje, esteve completamente ausente durante boa parte da existência evolutiva do
homem moderno. A modernidade, até bastante recentemente, circunscreveu-se ao
anatômico, à aparência física... Em síntese, foi só a partir do Paleolítico Superior57
que nos tornamos seres conscientes, capazes de representar o mundo exterior e a nós
mesmos. Em Freud, essa tese não ganha total ratificação. Para o pai da psicanálise,
nossa espécie continua sendo “selvagem”, governada pelo inconsciente.
Esse tempo coincide com uma melhor domesticação do fogo58, que vai mudar
drasticamente a relação da espécie humana com os alimentos, outro aspecto
fundamental da sua evolução. Restos de lareiras ou fornos foram encontrados em
estratos paleolíticos que, de acordo com cálculos moderados, remontam a 50 mil
anos (BOAS, 2010: 61). A arte, depois do fogo, é um lugar do encontro de algo
deixado na passagem do animal ao humano. Ela, como escreve Deleuze e Gua-

57 Era da glaciação, também conhecido como Idade da Pedra Lascada. Vai de dois milhões a 10 mil anos a. C., quando
se inicia o Período Neolítico.
58 Antes a humanidade já fazia uso do fogo causado pelos raios e outros fenômenos naturais. Seu con-
trole se deu por volta de 250 mil anos e foi determinante nos processos de expansão da espécie humana.

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

ttari (2000), começa talvez com o animal, ao menos com o animal que recorta um
território e faz uma casa.
Fico imaginando o que seria, numa perspectiva freudiana, sustentar a tese de que
a espécie humana só se torna consciente, aproximadamente, num tempo de 45 mil
anos atrás. Que animal era esse, já na condição de sapiens, sem a consciência de-
senvolvida? Harari (2016: 11) afirma que há cerca de 70 mil anos, os organismos
pertencentes à espécie Homo sapiens começaram a formar estruturas ainda mais
elaboradas chamadas culturas, uma importante transformação no curso da história
humana, conhecida como Revolução Cognitiva.
Antes de 70 mil anos, a linhagem dos sapiens era de bichos humanos. A mani-
festação da sua alma começa nos caçadores-coletores (70 mil anos), diviniza-se
entre os criadores-agricultores (12 mil anos), recebe forte questionamento filo-
sófico (500 anos atrás) e, hoje, vê-se materializada em placas de silícios, em redes
digitais.
Por muito tempo, sabemos, a paleoantropologia e mesmo a arqueologia inter-
pretaram o comportamento humano a partir de suas coleções de ossos e artefatos
pré-históricos. Nunca se atreveram a entrar na alma, como fez Freud. Avançaram
quando passaram a associar o desenvolvimento desses complexos processos cog-
nitivos humanos ao desenvolvimento do neocórtex cerebral e a outras evidentes
mudanças anatômicas no corpo da espécie, substancialmente nos sapiens, apeli-
dados de revolução criativa ou, como dito, cognitiva. A pergunta “o que signifi-
cam essas pinturas rupestres?” assanha o enxame de arqueólogos e atiça também
a indiferença da antropologia, duas falsas irmãs.
Harari (2016: 30) vai afirmar que o surgimento de novas formas de pensar e se co-
municar, entre 70 mil anos atrás e 30 mil anos atrás, constitui a Revolução Cogni-
tiva. Mas qual o acontecimento, a razão para essa mudança tão dramática na ani-
malidade humana? Continua Harari: A teoria mais aceita afirma que mutações
genéticas acidentais mudaram as conexões internas dos cérebros dos sapiens, possi-
bilitando que pensassem de uma maneira totalmente nova. Poderíamos chamá-las
de mutações da árvore do conhecimento. Por que ocorreram no DNA do sapiens e
não no DNA dos neandertais? Até onde pudemos verificar, foi uma questão de puro
acaso. Mas é mais importante entender as conquistas das mutações das árvores do

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Juracy Marques |

conhecimento do que suas causas. O que havia de tão especial na nova linguagem
dos sapiens que nos permitiu conquistar o mundo?
Para Franz Boas (2010: 07), não existe uma diferença fundamental nos modos de
pensar do ser humano primitivo e do civilizado. Uma estreita relação entre raça e
personalidade nunca foi estabelecida. A noção de primitivo, quando se analisa a
diferença entre povos e culturas, remete à ideia de inferioridade, atraso, violên-
cia, não racionalidade e estado selvagem, entretanto, sabemos, as híbridas civili-
zações não podem ser pensadas a partir dessa dicotomia.
Harari (2016: 50), usando como primazia um discurso geneticista, muito diferen-
te de Freud, ilustra como a memória primitiva habita a mente do homem moder-
no, relembrando os hábitos alimentares dos nossos ancestrais caçadores-coletores,
nos tempos em que a comida era muito escassa e em que só se tinha acesso a um
tipo de doce, ou seja, as frutas maduras. Escreve: Se uma mulher da Idade da Pedra
se deparasse com uma árvore repleta de figos, a coisa mais razoável a fazer era ingerir o
máximo que pudesse imediatamente, antes que um bando de babuínos comesse tudo.
Hoje, podemos morar em apartamentos com geladeiras abarrotadas, mas nosso DNA
ainda pensa que estamos na savana. É isso o que nos motiva a comer um pote inteiro
de sorvete quando encontramos um no freezer e fazê-lo descer com Coca-Cola grande.
Quando se trata de civilização humana, disso que chamamos selvagens ou mo-
dernos, é importante lembrarmos de que, ainda hoje, em diferentes partes do
mundo, temos a existência de muitos grupos humanos de caçadores-coletores,
como eram hordas humanas primitivas, a exemplo dos povos indígenas isolados
da América, bem como grupos que vivem no Ártico ou no Kalahari.
O que diriam os povos antigos, primitivos, diante da angustiante condição hu-
mana atual, do seu mal-estar, marcada por quadros de estreses, depressão, suicí-
dios e de intensa infelicidade, ou dos graves quadros de histeria, perversões e psi-
copatias, se comparassem à dinâmica de suas vidas? Há algo mais primitivo do
que a guerra? Há! A ameaça da guerra. Esses brinquedinhos nucleares, químicos,
tecnológicos, com os quais gozam as nações mais poderosas do mundo. O que
pensar dos campos de concentração e dos genocídios em massa televisionados a
todos? Eles, certamente, nos classificariam como selvagens.

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

Freud esteve atento ao percurso desse animal que desenvolveu a cultura e a civi-
lização, mas ainda é capaz de aniquilar seu próprio semelhante imerso nos jogos
da destrutividade e do poder, sendo, ao tornar-se humano, profundamente de-
sumano.
Os povos primitivos são ligados a uma estrutura de pensamento mágico-ritualís-
tico. Ao contrário do que se ventila sobre o Ocidente, essa forma de experimen-
tação humana de sua humanidade ainda está bastante viva e presente. Assim:
as diferenças entre ser humano civilizado e ser humano primitivo são, em muitos
casos, mais aparentes do que reais e que as condições sociais, devido às suas carac-
terísticas peculiares, transmitem facilmente a impressão de que a mentalidade do
ser humano primitivo atua de forma completamente diferente da nossa, enquanto,
na realidade, os traços fundamentais da mente são os mesmos (BOAS, 2010: 99).
Os homens civilizados fizeram máquinas que decodificaram o corpo, o espaço.
Os primitivos fizeram da pedra uma lâmina, um machado. O espírito dos gran-
des navios que cortam os oceanos são as canoas feitas com os troncos robustos
das árvores no passado.
Freud, em toda a sua escrita, nunca perdeu de vista que o selvagem sempre habi-
tou o civilizado. Boas (2010: 102; 135) reconhece que graças, em grande parte,
a Freud, compreendemos a importância destes incidentes esquecidos que continuam
sendo uma força viva durante toda vida, tanto mais potente quanto mais completa-
mente esquecidos... as forças dinâmicas que moldam a vida social são hoje as mesmas
que aquelas que moldaram a vida há milhares de anos. Esse célebre antropólogo,
lido e citado por Freud, esteve presente em suas conferências sobre psicanálise
nos Estados Unidos, em 1909.
Nos estudos sobre as raças, observamos que alguns campos de conhecimento
defendem que as funções mentais e culturais dos indivíduos são determinadas
pela hereditariedade, a exemplo da psicologia fisiológica e de alguns ramos da
biologia, estabelecendo um desprezo pela influência do meio. Boas (2010: 27),
citando Fischer, vai dizer que em grande medida a forma de vida mental tal qual
a encontramos em vários grupos sociais é determinada pelo meio ambiente. Os acon-
tecimentos históricos e as condições da natureza ajudam ou travam o desenvolvi-
mento das características inatas. Contudo, podemos afirmar com certeza que há

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Juracy Marques |

diferenças racialmente hereditárias. Certos traços mentais do mongol, do negro, do


melanésio e de outras raças são diferentes dos nossos e diferem entre si.
Entretanto, sustenta Boas (2010: 28), podemos pensar, numa perspectiva et-
nológica, sobre a suposição de uma igualdade fundamental da mente humana,
independentemente da raça, na qual, asseguradas as diferenças, observam-se pa-
drões e semelhanças gerais.
A revolução criativa descrita por Walter Neves, seus enigmas e mistérios, dos
quais se ocupou profundamente Freud, escondem-se no conjunto de modifica-
ções anatômicas do corpo do animal humano, particularmente as neurológicas,
mas é também ricamente influenciada pelas transformações subjetivas acumula-
das ao longo do processo evolutivo da humanidade, dentre as quais, suas expe-
riências com a morte ou com o fim do incesto. Um salto quântico vai acontecer
na história da espécie, quando o animal humano descobre que sua vida inclui
também a morte e em virtude de sua cupabilização por copular com o pai, a mãe
ou o irmão.
Morin (2012: 253) vai afirmar que a morte total da vida já começou, sobretudo
pela possibilidade de uma guerra nuclear e da assombrosa devastação ecológica.
Escreve: Nosso universo morrerá de uma muito longa agonia em trilhões de trilhões
de trilhões de trilhões etc., de anos; as estrelas apagar-se-ão para dar lugar a um
universo de buracos negros, que será sucedido por uma era negra de fótons, nêutrons,
elétrons errantes num universo gelado, com alguns átomos gigantes, grandes como a
nossa galáxia, de resíduos. Conforme anunciou o poeta (T.S. Eliot) “o universo ter-
minará num suspiro”. Eis o nirvana cósmico! Como é possível que hoje tenhamos
mísseis intercontinentais com ogivas nucleares se há 30 mil anos tínhamos apenas
lanças com pontas de sílex? Questiona Harari (2016: 47). Estranho que, nessa
odisseia canibalista do universo, uma pessoa, um grãozinho de areia nesse espaço
infinito, mate-se ou mate, por estar apaixonado por um entre os sete bilhões de
sapiens da Terra.
Para Boas (2010: 171), a passagem da cultura primitiva para a civilizada parece
consistir na eliminação gradual do que se poderia chamar de associações emocio-
nais e socialmente determinadas de impressões sensoriais e de atividades, que são
paulatinamente substituídas por associações intelectuais. O rastro do pensamento
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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

de Freud nos permite inferir que esse processo se aparenta por reprimir o que
consensualmente chamamos de lado não racional da espécie humana.
Já dotada de uma capacidade singular para simbolizar, como testemunham
os ricos registros gráficos da pré-história em todo o mundo, o Homo sapiens
aprendeu a manipular plantas e animais, criando, assim, a agricultura e a
pecuária, e, aos poucos, deixou sua natureza de caminhante para se sedenta-
rizar, rompendo com o modo de vida nômade-caçador-coletor, num tempo
aproximado entre 10 e dois mil anos, cuja consequência mais significativa
foi a criação das condições para a origem das cidades, por volta de quatro
mil anos a.C.
Aos poucos, os grupos humanos espalhados pelo mundo deixavam de viver ex-
clusivamente de colher alimentos silvestres e caçar, dedicando-se mais à domes-
ticação de plantas e a algumas espécies de animais. Esses novos hábitos mudaram
drasticamente a história da humanidade, caracterizando um período conhecido
como Revolução Agrícola. Foi um tempo em que as plantas e os animais domina-
ram a selvageria humana.
É como se o humano que somos e que nos tornamos, com o desenvolvimento
da linguagem, fosse produto de uma ruptura com o animal que fomos. Já com a
carcaça do sapiens, quando algo despertou no falecido animal o sentido da mor-
te, despertando outros sentidos de angústia e sofrimento em nós, ele passou a
expressar, nas pinturas e gravuras rupestres, os sentimentos que se manifestavam
dentro do corpo do bicho. Já era a larva da alma roendo no interior do ser e que
precisava manifestar a palavra do animal.
Repetindo, Agamben (2013: 25), citando Kojève, escreve que não haverá,
portanto, desaparição definitiva do homem propriamente dito enquanto houver
animais da espécie Homo sapiens capazes de servir de suporte “natural” àquilo que
há de humano nos homens. A linguagem passou a habitar o corpo do animal.
Algo novo do homem entorpeceu a sua própria humanidade, algo que entrou
dentro dele como sendo o que ele permite ser. A principal característica des-
sa forma singular de linguagem, escreve Harari (2016: 32), é a capacidade de
transmitir informações sobre coisas que não existe. Entra em cena a imaginação
humana, permanentemente, uma “imagem em ação”.

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Juracy Marques |

É na décima edição da sua famosa obra, Systema Naturae, que o taxionomista


Lineu, finalmente, chega à classificação do Homo Sapiens, colocando, próximo
ao nome genérico Homo, um elemento que materializa a qualidade daquele que
é racional, que sabe. Esse, certamente, não seria o adjetivo da taxionomia freu-
diana para a nossa espécie.
Agamben (2013: 49) destaca que vale a pena refletir sobre essa anomalia taxio-
nômica, que expressa como diferença específica não um dado, mas um imperativo...
o Systema não deixa dúvidas quanto ao sentido que Lineu atribuía ao seu mote:
o homem não possui nenhuma identidade específica que não aquela de poder reco-
nhecer-se. Mas definir o humano não por meio de uma caraterística notável, mas
por meio do conhecimento de si, significa, que é homem aquele que se reconhece
como tal, que o homem é o animal que deve reconhecer-se humano para sê-lo, como
descrito por Lacan.
Boas (2010: 30) vai dizer tratar-se de uma classificação ingênua dos tipos humanos
que não representa um agrupamento de acordo com princípios biológicos, mas ba-
seia-se em atitudes subjetivas. Sapiens, antes de ser um tipo específico de gente, é
uma abstração, uma complexa forma de classificação do que, no humano, ainda é
inclassificável.
Nossa espécie é a única que sabe que não sabe e tudo que sabe é que ela é o Ou-
tro. Portanto, o sujeito não está sozinho porque o Outro e o Nós moram nele. Mas
o Eu está só (MORIN, 2012: 81). Essa operação não é do domínio da razão.
A razão, segundo Escobar (1991), não é, senão aquilo que não sai de si mesmo,
aquilo que em si mesmo é um fechamento, uma disciplina, um impedimento. Ao
contrário, o sapiens é, antes, um aberto.
Pensar o humano não é uma tarefa fácil. Para termos um exemplo, Darwin, em
sua obra A Origem das Espécies, fora pouquíssimas notas, deixou-o de lado nas
suas análises sobre a teoria da evolução, somente retomando esse problema no
livro A Origem do Homem e a Seleção Sexual, publicado em 1871, no qual de-
fende que o homem, como todas as outras espécies, descende de alguma outra
forma preexistente, ou seja, antes do humano, ele era um “bichinho” ou uma
“bichinha”.

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

Simbolizar, saber, perceber-se, sentir são qualidades que descrevem uma etapa
dos sapiens, aos quais atribuímos uma subjetividade singular, que os desloca de
uma condição animalesca, presente desde os símios primitivos até os nossos pa-
rentes mais próximos, os neandertais.
Pessis (2003: 53) nos diz que, apesar de a autoria das pinturas e gravuras pré-his-
tóricas mais antigas (32.000 e 31.000 anos, na gruta de Chauvet, França) ser as-
sociada ao Homo sapiens, não se deve, a priori, excluir a possibilidade de que, com
base nas recentes descobertas feitas sobre o Homo neanderthalensis, outras espécies
tenham podido também ser autoras de registros gráficos.
Estudos como os de Wong (2015) mostram que a gênese dessas capacidades hu-
manas podem ser percebidas, também, entre os Homo erectus há cerca de 500
mil anos e, sobretudo, entre os neandertais, que viveram na Euroásia entre 350
e 39 mil anos. Exemplifica que, num tempo entre 90 e 40 mil anos, esses nossos
primos extintos desenvolveram a tradição de extrair garras das águias, não para
fazerem usos da carne, mas dos ossos, pois eles exploravam as águias por razões
simbólicas, provavelmente para se adornarem com as impressionantes garras, em
vez de motivos alimentares.
Esses estudos mostram que os sapiens não são os únicos do gênero Homo que são,
de fato, sapiens. Assim, não podemos, com exclusividade, indicar o aparecimen-
to de uma subjetividade imaginativa e simbolizadora, bem como o domínio de
complexas habilidades sociotecnológicas que permitiram um modo particular
de se adaptar e interagir com o hambiente, ao que restou do nosso animal: o
Homo sapiens. Ele, talvez, seja o receptáculo dessas capacidades, vindo pulando,
como um macaco, de galho em galho, até os mistérios de nosso coração. A ta-
xionomia de Freud classifica-nos a partir de um lugar inverso, onde o humano
torna-se o vazio onde o animal se hospeda.
Erich Fromm (1900-1980), em sua obra Psicoanálisis de la Sociedad Contem-
poránea (1979), vai afirmar que é quando o animal transcende a natureza que
nasce o homem. Insisto, para Freud, essa natureza não transposta é o homem.
O animal habita o homem, ainda. O humano do homem é algo anterior ao pró-
prio homem. Aqui, deparamo-nos com um elo ainda não totalmente descrito no
campo das diversas ciências humanas: o nascimento do homem e da cultura. É

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nessa fenda que temos uma contribuição magistral de Freud (1913), o qual parte
do mito da horda primitiva de Darwin e o desseca até construir sua análise sobre
o tabu do incesto, ou seja, para ele, um momento inaugural da subjetividade
humana.
Para Freud, se antes o símio macho ou mesmo o filho “viado” “comia” a mãe ou
a irmã, embora ainda hoje encontremos essa prática latente, ou desde sempre,
simbolicamente, a estrutura sexual subjetiva da humanidade atualiza sempre esse
fenômeno, o qual Freud batizou com o nome de Complexo de Édipo, em referên-
cia à tragédia grega de Sófocles.
Freud e Lévi-Strauss dedicaram-se a essa questão de forte relação com a sexuali-
dade humana para tentar explicar a passagem da natureza à cultura. Como po-
demos inferir, a proibição do incesto tem bases naturais, mas é, sobretudo, uma
regra social construída pelos grupos humanos.
Freud (1913) ancora-se ao mito da horda primitiva darwiniana e, numa escala,
permite-nos observar um clã onde um macho dominador e violento controla as
fêmeas e ameaça os outros machos e filhos, expulsando-os; em seguida, após o
planejamento e assassinato do pai primevo por um clã homossexual de filhos; e,
num último estágio, o estabelecimento marcado pela culpa decorrente do assas-
sinato do pai, base do totem, o fim do incesto é que permitirá o surgimento da
exogamia, sendo esse acontecimento base para pensarmos as raízes da civilização
humana, segundo Freud. Apesar dessas formulações no campo da antropologia
e da psicanálise, o surgimento dessa intrigante necessidade ainda é um enigma às
ciências humanas.
Um dos objetivos de Freud em Totem e Tabu59 é relacionar a psicologia dos po-
vos primitivos, base dos estudos junguianos, descrita pela antropologia social,
com a psicologia dos neuróticos, revelada pela psicanálise (1913: 21). Mergulha,
para isso, na análise dos sistemas totêmicos, substitutos em muitos povos das
instituições sociais e religiosas e, como descreve Freud, em quase todos os lugares
em que encontramos totens, encontramos também uma lei contra as relações sexuais
59 Para Roudinesco (2016: 197), essa obra é um livro político de inspiração kantiana e um manifesto
contra a psicologia dos povos, cara a Jung. Não a vejo assim, mas uma obra que vai na direção da com-
preensão da dinâmica psíquica dos povos analisados por Freud, a partir das investigações de diversos
pesquisadores, entre os quais Jung.

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

entre pessoas do mesmo totem e, consequentemente, contra o seu casamento. Trata-


-se então da exogamia, uma instituição relacionada com o totemismo.
O Totem, palavra introduzida em 1791 (sob a forma de “totam”) por um inglês, J.
Long, que a tirou dos índios norte-americanos (FREUD, 1913: 23), segundo o cria-
dor da “psicanálise antropológica”, Sigmund Freud, via de regra é um animal (comível
e inofensivo, ou perigoso e temido) e mais raramente um vegetal ou um fenômeno natural
(como a chuva ou a água), que mantém relação peculiar com todo o clã.
Essa estrutura de pensamento, responsável pela instituição da exogamia totêmica, ou
seja, pela proibição das relações sexuais entre membros de um mesmo clã, está na base
das proibições das práticas de incesto nos grupos tribais e, quiçá, sustente-a até os dias
contemporâneos. Como descreveu Freud (1913: 24), a penalidade comum para as re-
lações sexuais para a pessoa de um clã proibido é a morte. Se viemos de Adão e Eva ou da
bacteriazinha de 3,5 bilhões de anos, a humanidade inteira é filha do incesto.
Em Totem e Tabu, Freud estabeleceu uma sequência de variadas práticas grupais nas
quais se evita o contato entre parentes consanguíneos ou sociais, quer sejam com pais,
mães, irmãos, irmãs, primos, sogras, etc., cuja medida atua como um modus de evitar
algo proibido, sobretudo, o desejo sexual entre esses membros. Entre tantos exemplos,
descreve uma prática de evitação entre os batas da Sumatra, onde um pai nunca pode
ficar sozinho com a filha em casa, nem a mãe com o filho (1913: 30).
O que está em jogo nesse sistema cultural é o horror ao incesto, amplamente descrito
pela psicologia social, mas que, como afirma Freud (1913: 35), se trata fundamen-
talmente de uma caraterística infantil, e que revela uma anotável concordância com a
vida mental dos pacientes neuróticos. A psicanálise nos ensinou que a primeira escolha
de objetos para amar feita por um menino é incestuosa e que esses são objetos proibidos: a
mãe e a irmã.
As teorias de Freud mostram como o incesto ainda é um fenômeno vivo da alma
humana, como observamos nos estágios em que a criança desenvolve sentimentos
amorosos por seus pais, descrito por Freud como Complexo de Édipo. Esse é um dos
aspectos da teoria freudiana, densamente criticada por Bronislaw Malinowski (1884-
1942), que, em seus estudos sobre indígenas trobriandeses, demostrou que nessas cul-
turas o desejo e as identificações não tinham por que seguir modelos europeus.

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Em Trobriand, as culturas dominantes são matrilineares e a rivalidade sexual existe en-


tre o filho e a irmã da mãe. O objeto de disputa não é a mãe, mas, sim, a irmã. Sua críti-
ca central a Freud reside na tentativa de transpor uma experiência individual para uma
dimensão universal (in BARRIO, 2008: 75). Freud, como Montaigne, acreditava que
cada indivíduo carregava a forma inteira da condição humana. Mas, como poetizou
Octávio Paz, cada indivíduo é único e cada indivíduo é inúmeros indivíduos que ele não
conhece. Testemunhamos, assim, perante o fenômeno da complexidade humana, que
a espécie carrega em si subespécies de si, personalidades, em psicanálise.
A tese central de Freud - a respeito desses sistemas culturais totêmicos, em decorrência
da instituição da exogamia e, em alguns casos, da proibição do incesto, haja vista que
alguns sistemas totêmicos proíbem parcialmente a prática de relações sexuais entre
membros da família e do clã, como no caso de um grupo australiano em que o pai está
livre para cometer incesto com as filhas, enquanto os filhos são proibidos de ter rela-
ções com a mãe (FREUD, 1913: 25) - é que essa rejeição é, antes de tudo, um produto
da aversão que os seres humanos sentem pelos seus primitivos desejos incestuosos, hoje do-
minados pela repressão. Por conseguinte, não é de pouca importância que possamos mos-
trar que esses mesmos desejos incestuosos, que estão destinados mais tarde a se tornarem
inconscientes, sejam ainda encarados pelos povos selvagens como perigos imediatos, contra
os quais as mais severas medidas de defesa devem ser aplicadas (FREUD, 1913: 35).
Além da dimensão do totem, Freud faz uma arqueologia do Tabu e suas influências
sobre a psique humana. Diz-nos (1913: 37) que “tabu” é um termo polinésio e que
suas proibições não têm fundamento e são de origem desconhecida, sendo por um
lado algo ligado ao “sagrado”, “consagrado”, e, por outro, “misterioso”, “perigoso”, “im-
puro”. Freud cita Wundt ao descrever o tabu como o código de leis não escritos mais
antigo do homem. Diz-nos (1913: 39) que a fonte do tabu é atribuída a um poder má-
gico peculiar inerente a pessoas e espíritos e pode ser por eles transmitidos por intermédio
de objetos inanimados, ou seja, a base do tabu é uma ação proibida, para cuja realização
existe forte inclinação do inconsciente (1913: 49).
Aqui, Freud destaca que o que se apresenta como proibido só o é porque é desejado,
e que essa relação, sobretudo a manifestação de culpa por desejar o que é proibido e,
por vezes fazer, realizá-lo, está na base das neuroses obsessivas. Diz-nos que o ato obses-
sivo é ostensivamente uma proteção contra o ato proibido, mas, na realidade, a nosso ver,

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

trata-se de uma repetição dele (1913: 65). Entre os humanos neuróticos, os obsessivos
constituem um contingente substancial da humanidade, ao lado dos tipos histéricos,
perversos e psicóticos. Descrevi a neurose obsessiva como uma religião particular distor-
cida e a religião como uma espécie de neurose obsessiva universal (1996: 68).
A religião é uma força viva da espécie humana e não deve ser negligenciada pela psi-
canálise nem por qualquer outra ciência que estuda os fenômenos humanos. Quatro,
dos sete bilhões de habitantes do planeta, têm algum vinculação religiosa. Hoje há
1,5 bilhão de mulçumanos em todo o mundo, e mais pessoas estão estudando o Corão e
se submetendo à vontade de Alá (HARARI, 2016b: 182). Classificá-la como histeria,
psicose, obsessão, alienação, não dá conta de capturar esse complexo fenômeno rela-
cional da humanidade. Diversos psicanalistas repetem o erro de citar Freud e Lacan a
respeito das suas aversões às religiões. Não estudam uma das manifestações da cultura
humana, como fizeram esses dois papas da psicanálise ao longo de suas vidas.
Profetiza Harari (2016b: 185): No século XXI vamos criar mais ficções poderosas e mais
religiões totalitárias do que em qualquer era anterior. Com a ajuda da biotecnologia e de
algoritmos computacionais, essas religiões não só controlarão nossa existência minuto a
minuto, como serão capazes de configurar nossos corpos, cérebros e mentes, e de criar mun-
dos inteiramente virtuais. Ser capaz de distinguir ficção de realidade e religião de ciência
ficará, portanto, mais difícil, porém mais vital do que jamais foi antes.
Freud dedica-se a analisar as manifestações dos tabus em diferentes culturas ao redor
do mundo, destacando, neles, seu caráter ambivalente, por exemplo, na maioria dos
tabus relativos a governantes, estes são reconhecidos como aqueles que têm grande
autoridade sobre as forças da natureza. Entretanto, no caso dos selvagens timmes da
Serra Leoa, conta-nos que estes, ao eleger seu rei, reservam-se ao direito de espancá-lo
na véspera da coroação e valem-se desse privilégio constitucional com tão boa disposição
que, às vezes, o infeliz monarca não sobrevive muito à sua elevação ao trono (1913: 64).
Outro exemplo que nos apresenta Freud (1913: 68) e que nos mostra a força dos tabus
sobre as sociedades humanas são os observados entre os agutainos, que habitam Pa-
lawan, uma das ilhas das Filipinas: a viúva não pode deixar a cabana durante sete ou oito
dias após a morte do marido e mesmo então só pode sair numa hora em que não é provável
encontrar alguém, pois quem quer que a olhe morrerá de morte súbita. Para impedir esta
catástrofe fatal, a viúva bate com um tarugo de madeira nas árvores à medida que avan-

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Juracy Marques |

ça, advertindo assim as pessoas de sua perigosa proximidade, e as próprias árvores em que
ela bate em breve morrerão.
Observamos, a partir do trabalho de Freud, que no sistema totêmico, os tabus estão
na gênese da formação do pensamento, da mente, da alma, dos homens primitivos. A
antropologia social descreveu com boa propriedade estes traços das culturas humanas,
mas foi Freud, com seu método psicanalítico, que permitiu uma leitura mais profunda
dessas congruências das inteligências cruzantes no salto do animal para o humano.
A humanidade da animalidade e a racionalidade da irracionalidade estão associadas
a esses dois tópicos da cultura humana. A eles se soma o fato de que a primeira ima-
gem que o homem formou do mundo – o animismo – foi psicológica (1913: 101). Freud
(1913: 104) destaca que o animismo tem de ser pensado como um sistema de pensa-
mento, sendo a primeira teoria completa do universo que se revelou aos homens atra-
vés de sonhos, de fobias, de pensamentos obsessivos e, também, de delírios. A ecologia
anímica foi o primeiro sistema de interpretação da relação homem-mundo. Esse talvez
seja o melhor semblante para pensarmos os hecossistemas humanos.
Como estes sistemas de pensamento (totem, tabu, animismo) organizam as subjetivi-
dades e comportamentos humanos desde os tempos primitivos? Quando Freud traz o
exemplo dos aruantes sobre a origem humana, que acreditam não haver relação entre
o ato sexual e a concepção, pois entendem que, no momento em que a mulher sente
que vai ser mãe, um espírito, que estivera aguardando a reencarnação no mais próximo
centro totêmico em que os espíritos dos mortos se reúnem, ingressa no corpo dela (1913:
124), demonstra a força que essas ideias têm sobre os sujeitos, constituindo-os. Parte
significativa da humanidade pensa o mito com o pensamento mítico. Nosso mito da
razão não pode ignorar a razão do mito.
A estrutura mítica da horda primitiva, na qual há a atuação do pai dominador, que foi
canibalizado pelos filhos, irmãos expulsos da horda, que integravam um clã homos-
sexual de machos excluídos, ou seja, o fim da ordem patriarcal se deu numa “refeição
totêmica”, que alimentou, com a carne do pai, irmãos selvagens canibais, e que é, se-
gundo Freud (1913: 145), o mais antigo festival da humanidade, seria assim uma re-
petição, e uma comemoração desse ato memorável e criminoso, que foi o começo de tantas
coisas: da organização social, das restrições morais e da religião.

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

As sociedades humanas, agora, terão dois grandes pilares ancorados a esse crime primor-
dial, diga-se de passagem, mítico darwinista, a saber: as religiões baseadas no sentimen-
to de culpa e no remorso a ele ligado; e a moral, fundamentada nas exigências dessa so-
ciedade e parte na penitência exigida pelo sentimento de culpa (FREUD, 1913: 149).
Freud (1913: 161) descreve que o simples impulso hostil contra o pai, a mera existên-
cia de uma fantasia – plena de desejo de matá-lo e de devorá-lo, teriam sido suficientes
para produzir a reação moral que criou o totemismo e o tabu. Aqui, essa tese freudiana
encontra-se com a hipótese sustentada no campo da biologia evolutiva, a respeito do
momento em que o Homo sapiens experimenta uma revolução criativa e passa a sim-
bolizar a morte e outros momentos de sua vida, criando um sistema de comunicação
que o leva a dar um salto da sua condição de animal para o humano. Entretanto, os
tempos desses acontecimentos, são dramaticamente diferentes. O inconsciente não
obedece à lógica do espaço-tempo.
Se tivéssemos que falar de algo que atormentou a vida desse animalzinho frágil da
natureza, sem soma de dúvidas, seria a experiência da morte. Se pudessem e supor-
tassem, fariam como os elefantes, esconder-se-iam para morrer. Mas não. Ao to-
marem consciência desse acontecimento nas suas existências, elaboraram os mais
variados rituais culturais para fugir dela, inibi-la, dissimulá-la, afastá-la, negá-la e,
até mesmo, destruí-la.
Morin (2012: 46) descreve que as sepulturas neandertalenses e da pré-história do sa-
piens parecem negar a morte, pois o morto é acompanhado de suas armas de comida,
sendo que, em certas tumbas, é colocado em posição fetal como se devesse renascer. Contu-
do, os ritos arcaicos da morte testemunham perturbações psíquicas em função do horror
à decomposição do cadáver, daí as diversas maneiras de esquivar-se dessa decomposição
(cremação, endocanibalismo) ou de inibi-la (embalsamar), dissimulá-la (sepultamento),
afastá-la (corpo levado para longe, fuga dos vivos). Grande parte das práticas funerárias
visa a proteger os vivos do contagio da morte, e o período de luto, correspondente ao tempo
de duração da decomposição do cadáver, tende, originalmente, a isolar a família do morto
do resto da sociedade.
É chique declarar o desejo de ser “cremado” e não “queimado”. Algo fica vivo se o corpo
é cremado. Os corpos queimados somem, viram fumaças, desaparecem para sempre.
Os restos mortais de Freud e Marta Bernays encontram-se no crematório de Goders

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Juracy Marques |

Green, em Londres, num belo vaso grego, peça de sua estima, quebrado, recentemen-
te, numa tentativa de furto. Freud ainda está vivo!
Mas o maior sonho humano é a imortalidade, ou seja, não passar mais pelo trauma
da morte. Apesar de Morin (2012: 47) apoiar-se na ideia de que a imortalidade não
supõe o desconhecimento da realidade biológica da morte, mas o seu reconhecimento, não
a cegueira diante da morte, mas a sua lucidez, certamente, referindo-se à imortalidade
para uma espécie mortal que ainda somos, como descreve Harari (2016), na sua obra
Homo Deus, será uma questão de poucos anos até que a humanidade já tenha alguns
exemplares de humanos com seus novos dilemas existenciais. Os pacientes do século
XXI breve estarão dizendo no divã: “Doutor, estou em crise porque não sei se quero
viver para sempre”.
Na psicanálise, desde Freud, há dois lugares determinantes para pensarmos o
nascimento da cultura humana: o tabu do incesto e o Complexo de Édipo, ambos,
têm enraizamentos na crença mítica de Freud sobre a narrativa da horda primeva des-
crita por Darwin, na Origem das Espécies. Após embebedar-se da teoria psicanalítica,
observamos, no meio do caminho da teoria de Lévi-Strauss, uma crítica a Freud por
partir do mito para pensar a experiência humana, e não o inverso. Entretanto, nas suas
últimas publicações, ele vai retornar ao pensamento freudiano, passando a concordar
com ele.
Em seu livro O Pensamento Selvagem (1989), Lévi-Strauss vai afirmar que os povos
chamados primitivos souberam elaborar métodos razoáveis para inserir, no seu duplo as-
pecto de contingência lógica e de turbulência afetiva, a irracionalidade na racionalidade.
Crê, podemos pensar, a partir dessa formulação, que o deslocamento do animal para
o humano segue a bifurcação da irracionalidade para a racionalidade, o que pressupõe
pensar na existência de homens racionais e irracionais. Quando, pois, o ser irracional
descobre a razão? Em que o inconsciente formulado por Freud é essa razão ou, antes,
a cara da irracionalidade humana?
O tabu, o édipo, entre outras topologias míticas freudianas, são estruturas onde Freud
descreve esse lugar semente (ser-mente), onde brota o humano, sua personalidade, sua
psique, sua alma. Assim, localizamos, no corpo orgânico da espécie, seu espírito míti-
co-ancestral, diria mesmo filogenético, referendado pelas teses freudianas. Em Freud,
o animal-humano e o humano-animal estão sempre soldados.
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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

Há um certo consenso de que a linguagem é a ponte que liga o animal ao homem


(BOAS, 2010: 116). O desenvolvimento dessa capacidade humana se desnovelou a
partir da sua disposição para simbolizar. Barrio (2008: 111) descreve que o abismo que
separa o símio do homem só pode ser cruzado mediante uma ponte constituída pelo sím-
bolo, elemento pelo qual uma geração pode transmitir o aprendido a gerações seguintes.
Sobre o que é o simbólico, o símbolo, diz-nos Freud, em suas Conferências Introdutó-
rias à Psicanálise (1916): A esta relação constante entre o elemento do sonho e sua tradu-
ção damo-lhe o nome de relação simbólica, posto que o elemento mesmo vem a constituir
um símbolo da ideia onírica inconsciente que a ele corresponde.
A concepção de homem na obra de Freud, particularmente em Totem e Tabu (1913) e
O Mal-Estar na Civilização (1930), está enraizada ao seu conceito de cultura. Escreve
o pai da psicanálise: o termo “cultura” designa a soma de produções e instituições que dis-
tanciam nossa vida de nossos antecessores animais e servem a dois fins: proteger o homem
contra a Natureza e regular as relações dos homens entre si. Como vimos anteriormente,
o desligamento do animal para o homem cultural é a interdição do incesto numa ela-
boração sobre o assassinato mítico do pai que “comia” as mães e filhas e expulsava os
filhos, estes, matando o pai, criam a possibilidade da exogamia e, nesse estágio, esses
símios, ao negarem o incesto, tornam-se humanos e fundam a cultura. Assim, iden-
tificamos que a fenda que “separa” o animal do humano, a cultura da natureza, é a
interdição do incesto, para Freud.
Em Lévi-Strauss, não temos como localizar de forma mais unificada sua visão de
homem. Considerava-o a coisa entre as coisas (in BARRIO, 2008: 161). Em O
Pensamento Selvagem, o antropólogo belga, ao analisar o indivíduo como espé-
cie, rompe, definitivamente, com a lógica biológica da classificação humana, de
uma taxionomia do Homo sapiens em seus processos adaptativos. Faz essa ruptura
bebendo da análise da cultura e suas dimensões simbólicas. Enunciou que o obje-
tivo das ciências humanas não era revelar o homem, mas dissolvê-lo (in MORIN,
2012: 16).
Desde Darwin, que analisou as espécies a partir de seus mecanismos evoluti-
vos de adaptação ao meio, e mesmo retornando a Lineu, que estruturou a base
da taxionomia moderna (Século XVIII), colocando os humanos na ordem dos
mamíferos, na família dos primatas, pertencente ao gênero Homo, da espécie

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Juracy Marques |

do Homo sapiens, não víamos sinais de como a cultura poderia ser um sinaliza-
dor da classificação das espécies.
Como descreve Harari (2016: 13), os humanos originaram-se na África Oriental, por
volta de 2,5 milhões de anos, a partir de um gênero anterior de primatas, os Austra-
lopithecus (macacos do Sul). Desses agrupamentos, por volta de dois milhões de anos,
deslocaram-se para a África do Norte, Europa e Ásia. Ocupando lugares diferentes do
globo, com características ambientais especificas, deram origem a espécies diferentes.
Harari (2016: 15), de forma sintética, continua apresentando a diversidade de espé-
cies humanas já identificadas e que continuaram povoando a Terra durante milha-
res de anos. Aqueles que estavam na Europa e na Ásia Ocidental originaram o Homo
neanderthalensis (homem do Vale do Nander), popularmente conhecidos como
“neandertais”. Nas áreas ocidentais da Ásia, estavam os Homo erectus (homem ereto),
que sobreviveram por mais de 1,5 milhão de anos, espécie de maior duração até agora.
Na região da Ilha de Java, na Indonésia, estavam o Homo soloensis (homem do vale do
Solo). Nas Flores, outra ilha da Indonésia, foram encontrados os Homo floresiensis,
cuja altura máxima atingia um metro, não passando de 25 quilos. Na Sibéria, caverna
de Denisova, pesquisadores encontraram uma espécie denominada Homo denisova.
Na África Oriental, berço da humanidade, continuaram surgindo novas espécies hu-
manas como o Homo rudolfensis (homem do lago Rudolf ), o Homo ergaster (homem
trabalhador) e, finalmente, o Homo sapiens (homem sábio).
Como podemos observar, naquilo que também é comum a todas as espécies de plan-
tas e animais, salvo raríssimas exceções, o planeta sempre foi habitado por uma varie-
dade significativa de espécies humanas, no intervalo dos dois milhões de anos aos 10
mil anos atrás. O mundo de 100 mil anos atrás foi habitado por pelos menos seis espécies
humanas diferentes.
Escreve Lévi-Strauss (1889: 239): Considerados do ângulo biológico, homens oriundos
de uma mesma raça (supondo-se que este termo tenha um sentido exato) são compará-
veis às flores individuais que brotam, desenvolvem-se e fenecem na mesma árvore: são
outros tantos espécimes de uma variedade ou de uma subvariedade; da mesma forma,
todos os membros da espécie Homo sapiens são logicamente comparáveis aos membros
de uma espécie animal e vegetal qualquer. Entretanto, a vida social opera uma estranha
transformação nesses sistemas, pois incita cada indivíduo biológico a desenvolver
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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

uma personalidade, noção que não evoca mais o espécime dentro da variedade mas
antes um tipo de variedade ou de espécie que provavelmente não existe na
natureza (embora o meio tropical tenda, às vezes, a esboçá-lo) e que se poderia chamar
“mono-individual”. Quando uma personalidade morre, o que desaparece consiste numa
síntese de ideias e de comportamentos tão exclusiva e insubstituível quanto a operada por
uma espécie floral a partir de corpos químicos simples usados por todas as espécies.
Barrio (2008: 163), ao analisar a concepção de homem na obra de Freud e Lévis-S-
trauss, vai afirmar que, para este último, não há homem, mas sim homens. Depois de
estar imerso nesses dois teóricos que tomaram a espécie humana como base para todos
os seus estudos, questiona-se sobre a impossibilidade de uma concepção filosófica de
homem, como defendeu Foucault e Deleuze. Freud, ao contrário, perseguiu ardua-
mente essa possibilidade. Essa busca é uma das muletas da ecologia humana que, hoje,
não pode prescindir das elaborações freudianas.
O animal-humano existe na natureza, mas o humano-animal existe apenas como ou-
tra natureza. É um aparecimento, uma mutação, um mistério recente da espécie de
quando o bicho é inundado pela linguagem.
Considerado por Lévi-Strauss como fundador das ciências do homem, Rousseau
(1989), em seu Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens, afirma que
toda a Terra está coberta de nações das quais só conhecemos os nomes! E nos atrevemos a
julgar gênero humano! A compreensão da diáspora humana, da dispersão dos sapiens
pelo mundo, que, hoje, tem mais de sete bilhões de descendentes espalhados, há mui-
tos anos tem sido pauta de reflexões e pesquisas em diversos campos do conhecimen-
to.
Freud, como observamos em toda sua obra, também fora tocado pelo desejo de deci-
frar os mistérios do nosso passado comum, numa perspectiva radicalmente diferente
da que motivou Darwin, por exemplo. Paleontólogos, biólogos e arqueólogos, grada-
tivamente, vão montando o quebra-cabeça dessa odisseia humana, desafiando, a duras
penas, os potentes saberes ingênuos das religiões.
Para fortalecer o entendimento das pegadas ecológicas da espécie humana, bilhões de
dólares estão sendo investidos em trabalhos de mapeamentos genéticos em diversas
partes do globo, a exemplo do Projeto Genográfico da National Geographic, idea-

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Juracy Marques |

lizado pelo geneticista de populações Spencer Wells, antipatizado por antropólogos


culturais em diversas partes do mundo, e pelo Conselho de Biocolonialismo de Povos
Indígenas (IPCB), que, entre suas posições contrárias, defende o fato de que a história
genética de uma pessoa revelada pelo projeto pode contrariar crenças tradicionais profun-
das sobre suas origens e sua relação com a Terra60.
O autor do projeto diz-se perplexo com os ataques, pois acredita que ele ajudará a
revelar a origem da espécie humana. Michael “Coração Mole”, líder da tribo Seaconke
Wampanoag, em Massachusetts, voluntário do projeto, diz que são 100% a favor des-
sa pesquisa: não vejo como isso possa fazer outra coisa além de melhorar o nosso conheci-
mento da história e das nossas origens. Durante tanto tempo as coisas foram escondidas da
gente que agora queremos que a verdade apareça, leve aonde levar61.
Através desse projeto, mediante o pagamento de uma taxa para aquisição de um
kik, qualquer pessoa pode enviar uma amostra de DNA bucal, com atestado mé-
dico assegurando que não é material biológico infeccioso, e ficar sabendo, a partir
do website do projeto, banco de dados do mapeamento genético mundial, quais
são seus ancestrais.
Rousseau já evidenciava quão maravilhosa e desconhecida era a biodiversidade huma-
na, na qual os tabus permanecem vivos, organizando suas culturas, suas subjetivida-
des. Por exemplo, ainda hoje, no Vale de Katmandu, no Nepal, crianças são veneradas
como deusas vivas. Acredita-se que as meninas deusas podem prever o futuro e curar
enfermidades, realizar desejos e conceber bênçãos de proteção e prosperidade. São uma
ligação imediata entre este mundo e o divino, capaz de gerar em seus devotos um senti-
mento de bondade amorosa por todos (TREE, 2015).
O processo de seleção dessas deusas acontece num ritual secreto milenar, que existe
desde o século 10, no sul da Ásia, onde meninas e meninos participavam de rituais
budistas e hindus, em funções divinatórias. A deusa viva deixa esse lugar santo quando
menstrua pela primeira vez. Na cultura, acredita-se que serpentes saem da vagina da
ex-menina-deusa e devoram o homem que tiver relações sexuais com ela. Para a psica-
nálise, é intrigante pensar um tabu em que serpentes, símbolo fálico, saem da vagina
de uma mulher que foi, um dia, uma deusa.
60 National Geographic, novembro de 2005.
61 Idem.
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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

Acusam Freud de sua imersão excessiva na dimensão da sexualidade humana. A Eco-


logia de Freud seria, assim, a ecologia da dimensão sexual que toca essa espécie, des-
de os fins reprodutivos aos mundos infinitos da fantasia e do gozo. Sim e não. Freud
esteve atento à importância dessa dimensão para a nossa espécie e a como o mundo
inconsciente está inundado por conteúdos dessa natureza. Vejam a força da ideia de
virgindade e santidade nas meninas deusas. Para reforçar esse exemplo, as dançarinas62
de templos sagrados hindus, que dançam sem saia e, à medida que dançam, trazem a
presentificação das divindades, incorporando-as e irradiando suas energias nos pre-
sentes. No momento de sua retirada, todos se atiram no chão para tentar tocar suas
“umidades”, inclusive a “vaginal”, a mais sagrada.
O que guia a obra de Freud, sua ecologia sobre a espécie humana, é sua formulação
sobre o inconsciente. Aqui, temos uma substancial diferenciação entre o psicanalista
judeu e o antropólogo belga. Lévi-Strauss escreve: Na verdade, as pulsões e as emoções
não explicam nada, são sempre resultados: seja da potência do corpo, seja da onipotência
da mente. Consequências em ambos os casos, jamais são causas. Estas não podem buscar-
-se mais que no organismo, como só a biologia sabe fazê-lo, ou o intelecto, única via aberta
tanto à psicologia quanto à etnologia (In BARRIO, 2008: 170). Lévi-Strauss estrutu-
rou uma teoria do inconsciente essencialmente formal, significativamente diferente
de Freud, pois, sustenta que a base das estruturas inconscientes está na estrutura cere-
bral (BARRIO, 2008: 171).
Podemos pensar a humanidade sobre várias perspectivas. A fenda radical instituída
por Freud, ao pensar o humano, foi, incontestavelmente, sua noção de inconsciente,
que designa a existência de uma segunda mente humana. Outras perspectivas são as-
sociadas a essa análise freudiana, como, por exemplo, a noção do inconsciente estrutu-
ral de Lévi-Strauss, o inconsciente coletivo de Jung, o inconsciente maquínico de De-
leuze e Guattari e o inconsciente étnico de Devereux. Ao contrário do inconsciente
coletivo de Jung, que é “estático”, o de Devereux é dinâmico. Este, representante do
“recalque” comum a todos os membros de uma cultura, vai se transformando à medi-
da que o “imaginário” social-histórico vai transformando a dita cultura (BAIRRÃO,
2015). Essa perspectiva dá suporte à tese de Herbert Marcuse, em Eros e Civilização.

62 Dados da conferência proferida pelo Dr. Lazslo Antônio Ávila, no I Simpósio de Etnopsicologia da USP (2016).
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Juracy Marques |

TABELA 01: INCONSCIENTE EM FREUD E LÉVI-STRAUSS


FREUD LÉVI-STRAUSS
Pulsional Formal
Afetivo-Representativo Gramatical
Cheio Vazio
Individual Universal
Psicológico Sociológico
Fonte: Barrio (2008)

Tanto em Freud quanto em Lévi-Strauss vemos que a ambição de seus estudos é a com-
preensão do homem. Formularam métodos diferentes e investiram a vida nesse sonho.
Freud, além da psicanálise, mergulhou em sua autoanálise para lembrar-se de si. Lévi-
-Strauss tornou-se antropólogo de si mesmo, para esquecer-se (deixou de ser professor
de filosofia na França). Em ambos, só há um caminho para pensar o humano: a própria
alma. Foram, sob medida, cobaias de si mesmo.
Enric Laurent, na sua obra A Psicanálise e a Escolha das Mulheres (2012), diz-nos que
a espécie humana não é adaptada a grande coisa a não ser se autodestruir com notável
vigor e, por um lado, se existe alguma adaptação, ela passará por algo que é o desejo de
saber se, sim ou não, uma espécie pode suportar a outra, pois Lacan complicou um pouco o
lance darwiniano ao explicar que, os homens e as mulheres, não são da mesma espécie. A
psicanálise desde Freud e outros campos de saberes negaram que a biologia definia o
que seria o humano.
Claude Lévi-Strauss desenvolveu uma das mais influentes percepções sobre o huma-
no. Sabe-se, a psicanálise, o pensamento de Freud, foi uma das maiores influências do
primeiro antropólogo estruturalista. As obras de Freud, particularmente Totem e Tabu
(1913), que inaugura o que denominamos de antropologia psicanalítica, tratam de te-
mas como parentesco, incesto, simbologia, totemismo, inconsciente, cultura, mitolo-
gia, religião, morte, linguagem, natureza, entre outros assuntos, que são perspectivas
etnológicas fundamentais da antropologia lévi-straussiana e também de outras antro-
pologias modernas (simbólica e cognitiva). Diz Barrio (2008: 26): deve ser reservado na
história da antropologia um lugar de destaque para o fundador da psicanálise.
À revelia do que pensam os etnólogos-padrão e os cognitivistas antifreudianos, em

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

toda obra de Lévi-Strauss (1908-2009), observamos a grande influência do pai da psi-


canálise na sua concepção estrutural de homem. Barrio (2008: 38) alerta quão empo-
brecedor tem sido reduzir o pensamento de Lévi-Strauss a uma perspectiva de conhe-
cimento, como fora feito no campo da linguagem, entretanto, destaca que a psicanálise
seja a mais fundamental das que até agora temos considerado a respeito do estruturalismo
etnológico, reforçando essa ideia a partir do que escreveu Badcock, que considera o es-
truturalismo lévi-straussiano como uma versão reduzida do freudismo: As Estruturas
Elementares do Parentesco, O Totemismo, O Pensamento Selvagem possuem todas uma
semelhança estreita e notável com Totem e Tabu de Freud, e as enormes Mitológicas dir-
-se-ia que são, no fim das contas, A Interpretação dos Sonhos refundida em um molde es-
truturalista.
A elaboração do pensamento de Freud bebe em muitas fontes. Era um leitor e escritor
compulsivo. Trabalhava mais de 16 horas por dia, das quais dedicava mais de três horas
à escrita. Conhecia a filosofia, a arqueologia, a antropologia, a biologia, a mitologia, a
religião, a literatura, a escultura, a química, a psicologia, entre outros campos do saber.
Falava fluentemente inglês, francês, italiano e espanhol. Conhecia também o grego, o
latim e o hebraico. Era um polímata e influenciou grandes pensadoras nas suas próprias
áreas de conhecimento. Segundo o antropólogo Clifford Geertz (1978), com relação
às estruturas das religiões, a antropologia quase nada fez depois das figuras transcen-
dentais Durkheim (1858-1917), Weber (1864-1920), Malinovski e Freud.
Como já bem considerado, Freud é fortemente influenciado pelo evolucionismo de
Darwin e pela perspectiva do pensamento da antropologia empírica dos idos do século
XIX. Também é conhecido o gosto de Freud pela arqueologia e pela pré-história. No
prefácio de Totem e Tabu (1913), Freud clarifica que seu estímulo para escrever essa
obra veio dos trabalhos de Wilhelm Wundt e Carl Jung: Apresso-me em confessar que foi
dessas duas fontes que recebi o primeiro estímulo para os meus próprios ensaios (1913: 17).
Nela, como acentua Barrio (2008: 51), Freud transporta para o terreno psicológico o que
já estava dito no campo social e biológico; mergulha profundamente nas teses elabora-
das por Boas (1858-1942), Frazer (1854-1941), Lang (1844-1912), Wundt, Spencer
(1820-1903), Tylor (1832-1917), entre outros, porém, como nos revela a leitura de
Totem e Tabu, é o pensamento do britânico Frazer que marca, substancialmente, as aná-
lises de Freud na sua obra mais antropológica, julgada por ele como sua obra mais bem
escrita, à qual vai recorrer diversas vezes.
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Juracy Marques |

TABELA 02: OBRAS DE FREUD QUE TRATAM DE ANTROPOLO-


GIA, MITOLOGIA E RELIGIÃO
DATA OBRAS
1907b. Atos Obsessivos e Práticas Religiosas
1908d. Ética Sexual Civilizada e as Modernas Doenças Nervosas
1910e. O Sentido Antitético de Palavras Primevas
1910f. Carta ao Dr. Friedrich S. Krauss
1911d. A Significação de uma Sequência de Vogais
1911f. Grande é Diana dos Efesos
1912a. Postcript ao Caso Schreber
1912-13. Totem e Tabu
1913d A Ocorrência dos Sonhos de Material Proveniente de Contos de Fadas
1913f. O Tema dos Três Escrínios
1913j. As Pretensões da Psicanálise no Tocante ao Interesse Científico, Parte II, Seções E, F e G
1913k. Prefácio do Livro Scatologic Rites os All Nattions, de Bourke
1915b. Pensamentos para os Tempos de Guerra e de Morte
1916b. Um Paralelo Mitológico a uma Obsessão Visual
1918a. O Tabu da Virgindade
1919g. Prefácio do livro Ritual:Psycho-Analytic Studies, de Reik
1919h. O Misterioso
1921c. Group Psychology and the Analysis of the Ego (Psicologia de Grupo e a Análise do Ego)
1923d. Uma Neurose Demonológica do Século XVII, Seção III
1927c. The Future of an Illusion (O Futuro de Uma Ilusão)
1930a. Civilization and its Discontents (O Mal-Estar na Civilização)
1932a. A Aquisição e o Controle do Fogo
1933a. New Introductory Lectures on Psycho-Analysis (Novas Lições Introdutórias de Psicanálise), confe-
rência XXXV
1933b. Why War? (Por que a Guerra?)
1938a. Uma Nota Sobre o Anti-Semitismo
1939a. Moses and Monotheism (Moisés e o Monoteísmo)
1940c. (1922) A Cabeça da Medusa
Fonte: Totem e Tabu (FREUD, 1913).

Merece destaque o lugar de Jung (1875-1961) na vida de Freud. O mais querido


discípulo do pai da psicanálise era filho de pastor, estudou medicina e trabalhou

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

na conceituada clínica psiquiátrica de Burghölzli. Começou a se corresponder


com seu mentor em 1906, estabelecendo uma intensa relação de admiração, de
amizade e de amor.
Aos poucos, foi derivando para uma perspectiva mais mística e religiosa, o que
não agradava em nada ao judeu ateu Freud63. Trata-se de dois grandes gênios.
Peter Gay (1989) aponta os ciúmes de Jung, que, em 1912, na ocasião em que
Freud foi visitar Ludwing Binswanger, o qual estava em fase terminal, mas pedira
reserva sobre sua situação, dirigiu-se a Freud de forma típica das paixões nega-
das. Depois disso, manifestara suas discordâncias com teses centrais de Freud,
e, passado mais de um ano de disputas e desavenças, renunciou à presidência
da Associação Psicanalítica Internacional (IPA). Freud rompera com Jung como
fizera com outros grandes amigos, como Fliess e Alfred Adler (1870-1937), este
último, o primeiro dissidente do círculo de Freud.
O etnólogo belga, Claude Lévi-Strauss, professor de filosofia em Paris, que se
tornou antropólogo no Brasil, define a antropologia como uma conversação do
homem com o homem (in BARRIO, 2008: 37) e afirma que a história organiza
seus dados em relação com as expressões inconscientes da vida social, e a etnologia
em relação com as condições inconscientes.
A antropologia freudiana estabeleceu a inauguração do estudo das relações da cul-
tura com a personalidade e vice-versa. Foi a primeira vez que, de forma coerente, se
uniram os esforços da psicologia e da antropologia, e isto devido à demonstração feita
pela psicanálise de que a idiossincrasia individual vem modelada, em grande parte,
desde a infância, pelo tipo de família, parentesco e instituições que imperam em cada
cultura (BARRIO, 2008: 21).
Barrio (2008: 22) destaca que tanto a etnologia como a psicanálise tratam de
perspectivas analíticas muito semelhantes, usando metodologias distintas: a
psicanálise, a partir do individual, estuda a personalidade e sua influência sobre

63 Nas suas imersões no campo da filosofia, ainda quando um jovem estudante universitário, Freud
assistiu a mais de cinco conferências e seminários de Franz Brentano (1838-1917), ex-padre e filósofo,
grande conhecedor da psicologia empírica e da obra de Aristóteles. Era teísta e um admirador da teoria da
evolução de Darwin. Essa posição subjetiva agradou Freud, que o procurou para entrevistas particulares.
O influente filósofo levou Freud a questionar suas convicções ateístas: ¨não sou mais um materialista, e
também ainda não sou um teísta¨, confessou Freud a Silberstein (GAY, 1989: 44).

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Juracy Marques |

a cultura; e os etnólogos, estudam as variáveis culturais e sua influência na perso-


nalidade. A psicanálise inaugurou um modo singular sobre a leitura do com-
portamento humano e da cultura. Neste trabalho, a ecologia humana é extraída
da criação de Freud: a psicanálise. Ela, aqui, é o sumo das folhas, das flores e de
todos o bichos espremidos da obra de Sigmund Freud, produzindo um tipo de
sangue raro, um novo tipo de saber sobre o humano, melado pelo inconsciente.
Freud desnudou os complexos abismos dos hecossistemas da natureza humana.
Enrique Leff, no seu livro Saber Ambiental (2001), evidencia quão valorosa a
psicanálise é para a análise da crise civilizacional por que passa a humanidade,
portanto, da crise experimentada pelos próprios humanos hoje, com reflexos so-
bre os outros seres da natureza. Destaca que tanto a psicanálise quanto o saber
ambiental, que partem de uma perspectiva da incompletude do sujeito64 e da não
possibilidade da apreensão total da realidade, do real, questionam as bases éticas
da racionalidade científica e econômica, que fundam e mantêm o projeto de mo-
dernidade desembocado na crise ecológica que vivemos. Diz: saber ambiental
e psicanálise se encontram em sua resistência a qualquer saber totalitário, a todo
imperialismo científico (mesmo aquele proveniente da ecologia como ciência das
ciências, como saber da complexidade e das interdependências). Ambos os saberes se
encontram nessa pulsão para vida que incita a busca do conhecimento (2001: 195).
Freud, sua criação, a psicanálise, estrutura-se na fenda entre natureza e cultura,
na ruptura que demarca essa topologia, lugar da disciplina, da fragmentação. Em
Freud, o lugar da fenda é, também, o da cicatriz da fusão, onde a natureza é pensada
como natural, mas também como elemento social, cultural, humano. Em Psicolo-
gia de Grupo (1921), vai afirmar que a psicologia social é também psicologia indi-
vidual e vice-versa. Inaugura, assim, uma categoria que será amplamente explorada
pela psicanálise lacaniana: o Outro, o social sou eu, ou seja, tudo desse externo a
mim, como realidade em si, não existe, é meu.
Segundo Simanke (2009), a relação com esse Outro passa para um primeiro pla-
no nas análises freudianas, uma vez que o desejo pela “coisa” natural não é huma-
nizante – não ultrapassa o registro da necessidade biológica -, só resta ao animal
pré-humano, imerso no mundo que é todo ainda natureza, desejar outro desejo, isto

64 Para Morin (2012:75), as qualidades do sujeito transcendem às mudanças do ser individual.


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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

é, o desejo do Outro, no duplo sentido de desejar o que o Outro deseja e de desejar


ser desejado pelo Outro. A subjetividade humana só tomaria forma no âmbito desta
“pluralidade de desejos desejados” (para usar as palavras de Kojève) e, portanto,
somente num meio social, onde a referência à alteridade cumpriria um papel efeti-
vamente constitutivo.
A espécie humana, o homo sapiens, para Jorge Agamben (2013), está no fim, a
humanidade para ele é que, como espécie, está no início. Freud, durante seus
40 anos de investigação sobre a alma humana, como um arqueólogo da mente,
escavou as estruturas do psiquismo humano, e, diria, conseguiu encontrar o elo
entre essa espécie extinta e a iniciada humanidade: o inconsciente.
Sobretudo lendo Freud, tornou-se imperativo, para mim, a inquietude sobre
qual pergunta ainda é significante quando tratamos da civilização humana. Sem
soma de dúvidas, tendo escolhido a ecologia humana, sou movido pela inquie-
tude de descobrirmos quem somos e no que nos tornamos.
Do barro! Viemos do barro, sim! Bactérias de 3,5 bilhões de anos, presentes na
lama da Terra, deram origem a todas as formas de vida, inclusive, aos rascunhos
que desenharam a nossa espécie, os Homo Sapiens. Deus quis que fosse assim e
quis mais, que esse bichinho tivesse alma.
Das savanas africanas, espalhamo-nos pelo mundo, organizamos incontáveis
tribos e culturas e, num tempo conhecido como revolução científica, que se de-
sencadeou há, aproximadamente, 500 anos, conectamo-nos novamente ao que
chamamos globalização ou aldeia global. Hoje, tomo café africano, bebo vinhos
europeus, uso tecnologias asiáticas e entrego minha vida aos novos deuses do
Vale do Silício norte-americano: Google e Facebook. Eles sabem mais de nós
que nossos terapeutas.
Um fenômeno recente, conhecido como desglobalização, começou a redesenhar a
nossa fisionomia planetária. Potentes economias se fecham, querem voltar aos seus
quartinhos escuros; nações constroem muros físicos e jurídicos; acordos políticos e
econômicos são quebrados, como a saída da Inglaterra da União Europeia.
Se antes a angústia humana era saber qual era o seu desejo, se você era gay ou hé-
tero, se fora mais traumatizado pelo pai ou pela mãe, se é um problema a forma

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Juracy Marques |

frequente com que você se masturba, hoje, a maioria das pessoas sofrem se suas
postagens nas redes sociais não foram curtidas. Sentem-se diluídas quando se
compartilha. Não faz mais sentido ver as estrelas, escrever diários, observar os
sonhos, tentar integrar-se num processo de autoconhecimento, apreciar um rio,
uma árvore, um pássaro, uma bela paisagem. Tudo só faz sentido se for compar-
tilhado, visto. Vivemos o reinado da pulsão escópica.
De organismos complexos, de carne e osso, aos poucos, fomos virando uma ou-
tra coisa. Para ser mais claro e preciso: ciborgues65. Não somos mais macacos,
mas robôs biológicos tecnologicamente equipados. A ciência, desde Darwin,
leu os segredos dos nossos códigos genéticos e, com isso, tem demonstrado que
somos algoritmos bioquímicos. A cibernética e engenharia genética, novos orá-
culos, são quem dão as cartas quando o assunto é responder à pergunta: “Quem
é o ser humano?” Bioengenheiros vão pegar o velho corpo do sapiens e reescrever
intencionalmente seu código genético (HARARI, 2016b: 52).
Hoje, a ciência domina a capacidade de alterar o código genético de qualquer
forma de vida e, isso, passou a conferir um poder aos humanos sobre o mundo
natural como nunca visto. Nem quando Deus disse: “Crescei, multiplicai-vos
e dominais todas as criaturas da Terra”. A edição genômica tem sido usada no
processo de melhoramento de espécies, controle e cura de algumas doenças hu-
manas, como o câncer, proteção de espécies ameaçadas de extinção, fabricação
de órgãos humanos e de outros animais.
Seria possível imaginar humanos desenvolvendo asas para voar como muitas
espécies de pássaros e insetos, antes, usadas por elas como “painéis solares”
para se aquecerem? A biotecnologia nos permitirá, por exemplo, fabricar hí-
bridos humanos, animais quiméricos, com asas a partir do gene de condor
ou de uma grande águia. Essa técnica, já experimentada em diversos países,
possibilita que sejam injetados células-tronco humanas (criadas em culturas
de células e não a partir de embriões humanos) em animais e produzir seres
quiméricos, como o grigo e o centauro. Apenas por questões bioéticas, não
estamos vendo porcos gestando embriões humanos, apenas órgãos humanos

65 São seres que combinam partes orgânicas e inorgânicas, como um humano com mãos biônicas
(HARARI, 2016: 415).

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

para transplantes. A evolução não é mais um trabalho pesado e lento da natu-


reza, ela está, agora, sob o controle das mãos humanas e, como afirmou Morin
(2012: 213), as sociedades desenvolvem técnicas que desenvolvem as sociedades.
Hoje, os humanos sentem-se deuses.
Não foi em vão que Harari publicou, neste momento da história da humanida-
de, o livro Homo Deus, no qual descreve, de forma inteligente e elegante, que vi-
vemos o apogeu de uma nova espécie. Se num tempo recente de mais de 200 mil
anos estivemos na condição de Homo sapiens, gradativamente migrando para os
cyborgues, hoje, observamos o advento do Homo como uma divindade, com a
mesma capacidade divina de se criar e de se destruir. Aquele que seria o organoi-
de mais complexo nessa reengenharia da espécie humana, o cérebro, já está sendo
fabricado em laboratório66.
Ambicionando a imortalidade e a felicidade química, essas ciências têm estabele-
cido novas configurações para a era contemporânea. Revelaram que os sapiens não
mais existem e que os ciborgues estão caminhando para se tornar Homo deus: seres
humanos amortais capazes de se recriarem, de se manterem vivos com a ajuda de
vacinas, nanorobôs, fabricando e trocando órgãos desgastados, fazendo download
das nossas memórias, ou seja, salvando arquivos do nosso cérebro num computa-
dor, como bem descreveu Harari em seus livros Sapiens e Homo Deus.
Em conformidade com reflexões em seus dois brilhantes livros, essa super-huma-
nidade será instruída por professores digitais, em escolas virtuais, e, sempre que
precisarmos de informações e formações específicas, é só acoplar um novo chip no
cérebro. Vislumbra-se, além de professores, não serão mais necessários médicos,
bancários, soldados e uma infinidade de outras profissões.
As guerras, por exemplo, não passarão de alguns segundos. Acionando alguns
botões, as nações se exterminarão. Se não acessarem as suas potentes armas nu-
cleares, poderão usar seus exércitos de drones e suas estratégias cibernéticas. Ha-
ckers serão objetos de disputas da diplomacia internacional. De fato, para quê
esses contingentes humanos nas forças amadas? A humanidade, nos próximos
anos, sofrerá mais ainda de um excedente humano de inúteis e imprestáveis a
essa sociedade governada pela inteligência artificial.
66 Scientific American Brasil: Cérebro Feito em Laboratório. Fevereiro de 2017.
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Juracy Marques |

Ficção científica? Não! Essas são apenas algumas das poucas reflexões que
podemos tirar da leitura de suas duas obras. Freud falaria desses universos
como tecnologias do inconsciente, a exemplo da sua perseguida tese da pul-
são de morte, na qual se arquitetou o desejo de autodestruição da espécie
humana.
Os trabalhos de Harari são futuristas, profundos, proféticos. Anunciam,
novamente, a morte de Deus e das religiões. Estranho, pois quatro dos sete bi-
lhões de habitantes do planeta são teístas. De fato, a amortalidade do corpo é
um projeto em construção, como ambiciona o Google, o deus mais potente da
era contemporânea.
Mas bom que não esqueçamos que dentro dessa caixa de dados, de algoritmos
bioquímicos que somos, existe algo que não está como um pedaço material nas
mãos dessas tecnorreligiões: a subjetividade humana, embora falem que o eu,
nossas emoções e sentimentos, são apenas mais um algoritmo aperfeiçoado pela
seleção natural. O nosso desejo é programável e manipulável, acredita. Freud
escreveu outra coisa.
Se alcançarmos este ambicionado sonho, que é não morrer nunca mais, o que seria
a morte para a humanidade? Como seria pensar Deus, a eternidade, as religiões, os
papas, pastores, rabinos, imãs, psicanalistas, quando estivermos vivendo para sem-
pre? Vivendo para sempre, como ficariam os relacionamentos, a previdência, as ár-
vores, as estrelas, os pássaros? Até as estrelas morrem e, certamente, não reclamam
dessa fatalidade de seus destinos. As flores experimentam seus estados de anteses e
senescências e não vivem grandes dramas por isso. Alguns monges budistas, outra
espécie, também. Só nós, humanos, fomos dramaticamente afetados pela tempo-
ralidade da vida e lutamos, com todas as nossas forças, contra essa lei das nossas
existências biológicas e psíquicas.
O novo império dataísta não vê relação entre consciência e inteligência. Como
parte da sua engenharia computacional, também está em cena a fabricação de
almas e espíritos eletrônicos a serem controlados pela internet de todas as coisas.
Fiquei a pensar onde está o inconsciente na era da ecologia das máquinas huma-
nas. São as próprias máquinas? Interroga Harari (2016: 140): O que acontecerá
se um dia o sistema binário se livrar da opressão humana?
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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

Harari brinca com os rastros da condição humana e nos leva a pensar que a estra-
nheza que experimentamos sobre o significado de nossas vidas, antes hipervalo-
rizadas pelo humanismo, hoje, pode ser mais um joguete da inteligência artificial
e que, além de nos doparmos com drogas químicas, muletas do nosso enfraque-
cido desejo, devemos aprender a jogar os dados. Uma boa estratégia é aprender
a selecioná-los.
Fecha o livro Homo Deus com a intrigante pergunta: será se somos apenas algo-
ritmos e a vida apenas processamento de dados? Se, como os babilônicos, corrês-
semos para escutar as estrelas, ou mesmo como cristãos e judeus, escutássemos
os conselhos bíblicos escritos desde a antiga Jerusalém, ou buscássemos o yfá,
se não nos contentássemos poderíamos nos desapegar de tudo, inclusive da in-
ternet, e atingir o nirvana, como fez Buda, que deixou para trás seu reino no
Himalaia e passou a ensinar ao mundo que quem não deseja não sofre. Sobre essa
lei budista, escreve Harari (2016: 234): O sofrimento surge do desejo; a única for-
ma de se livrar totalmente do sofrimento é se livrar totalmente do desejo; e a única
forma de se livrar do desejo é ensinar a mente a experimentar a realidade67 como ela
é. Essa lei, conhecida como dharma ou dhamma, é vista pelos budistas como uma
lei universal da natureza. Que “o sofrimento surge do desejo”.
Por que o desejo humano é insustentável? Porque ele sustenta o estado de so-
frimento que mantém a humanidade. Quando ele se tornar sustentável, o que
ocorrerá aos humanos? O futuro é indecifrável, mas sei, tomarão uma xícara de
café com uma dignidade divina. Isso, sim, torná-los-ia deuses.
Continuemos nos caminhos do que nos ensinou Buda. Vivemos a era em que a
ciência e a técnica propõem, como muletas, comprimidos que entorpeçam nos-
sos cérebros com serotonina, oxitocina e dopamina. Todo mundo sabe que o Pro-
zac não cura a dor e a tristeza, nem remove da alma as raízes da depressão. São
sensações momentâneas causadas pela vitamina química das drogas no corpo.
Buda vai nos ensinar que a falta de sentido na vida, a dor, a tristeza, são causadas
pela busca inútil, por sensações efêmeras, que nos leva a intermináveis processos
de insatisfação, são causadas por esses imperativos de gozo. Goze mais, mais.
Goze sem fim. Para Buda, só é possível nos livrarmos desse imperativo se en-
67 É muito mais fácil viver com fantasia, porque ela dá sentido ao sofrimento (HARARI, 2016b: 305).
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Juracy Marques |

tendermos como são transitórios todos esses sentimentos e pararmos de perse-


gui-los. Isso, acreditam, adquire-se com a meditação. Salvaguardadas as devidas
diferenças, Freud é o “Buda da Psicanálise”.
A alucinada humanidade, todas as manhãs, acorda deprimida e enche as redes
sociais de uma falsa imagem. Tornamo-nos servos dessas novas tecnorreligiões
contemporâneas e estamos convencidos de que podemos comprar nossas almas
nas farmácias ou em caixinhas de comprimidos recheados de dopamina, seroto-
nina, oxitocina e outras guloseimas cada vez mais presentes nas nossas refeições
diárias.
A bacteriazinha, nesses quatro bilhões de anos, ambicionou sair da monotonia
unicelular em que vivia e se tornou complexos sistemas existenciais que cha-
mamos de humanos. Nessa alquimia fantástica, algo se transformou no nosso
inconsciente, ou foi o inconsciente que fez a bactéria, o barro, sonhar em ser hu-
mano? Hoje, aquele ser centrado, forte, potente, viril, que venceu as trincheiras
da seleção natural, implora que alguém veja a foto que ele postou comendo um
prato de comida, malhando na academia ou em uma de suas idas às raras paisa-
gens naturais que não viu, só fotografou. Todos viramos estrelas e, como estas,
mortificamo-nos pela necessidade de sermos reconhecidos pelo Outro. Este,
permanece perverso, exercendo seu controle e desprezo, deixando de curtir ou
compartilhar as postagens nas redes sociais, sobretudo quando é nessa ocasião
que o Outro, e não ele, é feliz.
Claro que, para um ser brocha e sem significado como esse, não sobrará nenhum
pedaço do seu desejo. Há muito, ele é apenas um ser que existe como uma sopi-
nha de dados virtuais, na qual estrelas, poesias, abraços e alma são verdurinhas
que não se usa mais nessa lama primordial da era virtual.
Edgar Morin, pensador francês, na sua obra a Humanidade da Humanidade
(2012), vai escrever que o mistério da nossa condição humana está no encontro
dos nossos dois infinitos (a cosmologia e a microfísica). Vemo-nos nascidos a
partir das misteriosas metamorfoses da poeira cósmica do início da origem do
universo, ao mesmo tempo em que somos os sistemas quânticos governados por
invisíveis partículas, átomos e moléculas que estruturam nosso corpo bioquími-
co e se findam no abismo desse mesmo mistério.
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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

Somos esse enigma do início de tudo, ou seja, quando antes do infinito havia o
nada, e permanecemos esse mesmo mistério que, depois do infinito, será ainda
nada. Tudo que existe, inclusive nós, está neste intervalo entre o nada e o nada.
Essa contradição entre o tudo e o nada se torna a fonte mais profunda da angústia
humana, assegura Morin (2012: 47).
Sabemos, nenhuma época acumulou mais conhecimento sobre o que somos
como esses dois últimos séculos, entretanto, parece-nos, cada dia mais, sabemos
menos o que é o ser humano. Ainda estamos na noite escura das origens (MO-
RIN, 2012). À revelia dessa sensação do nosso vazio, devemos manter viva a
urgente necessidade de pensarmos a humanidade da nossa humanidade.

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Juracy Marques |

5. Hecologia
Os humanos não são indivíduos são divíduos
Harari

Sigismundo Schlomo Freud nasceu no dia 06 de maio de 1856, em Freiberg,


na Morávia, pertencente ao Império Austríaco, hoje, Pribor (Checoslováquia).
Os Freud instalaram-se nessa cidade após solicitarem as suas inclusões na lista
de “judeus tolerados”, em 1844 (ROUDINESCO, 2016: 20). Ele nunca fez re-
ferência a seu nome judeu, Schlomo (homenagem a um rei polonês do século
XVI, que não perseguiu os judeus), e adotou o nome de Sigmund Freud.
Em sua Autobiografia, faz uma referência carinhosa a um amigo com igual nome,
Sigmund Exner, assistente e substituto do professor Brücke. Freud (1924: 15)
afirmou: meus pais eram judeus e eu próprio continuei judeu, inquietando-nos
sobre a possibilidade de deixar de ser o que se é. Aos 13 anos, participou da ce-
rimônia do bar mitzvah, tornando-se membro maduro da comunidade judaica
(ROUDINESCO, 2016: 28). Será conhecido como um “judeu sem Deus”.
O pequeno “Sigi”, o menino da Morávia, de natureza marcante, é prova dessa
afirmação, como o próprio Freud (1924: 15) comenta, a respeito da perseguição
da sua gente durante os séculos XIV e XV: tenho razões para crer que a família de
meu pai residiu por muito tempo no Reno (em Colônia), que ela fugiu para o leste,
e que, no curso do século XIX, migrou de volta da Lituânia, passando pela Galícia,
até a Áustria alemã.
Em Freiberg, os Freud moravam na Schlossergasse 117, no andar de cima de uma
casa simples de dois andares, pertencente a um ferreiro chamado Zajik (GAY,
1989: 25). Freud era de Ogum68, nascera em cima de uma ferraria. Aos quatro
anos de idade, mudou-se para Viena, e lá teve toda sua educação.
Sempre se queixou da nova cidade: Agora penso que nunca superei a saudade dos
belos bosques da minha casa, para onde (como prova uma lembrança que resta da-
68 Orixá do metal.
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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

queles dias), mal sabendo andar, eu costumava fugir do meu pai (GAY, 1989: 26).
Essa saudade, Freud declararia por toda a sua vida. Dos lugares, tinha uma pai-
xão singular por Roma, terra dos papas, do poder católico. Roma era para Freud
um antídoto à Viena, um remédio, uma droga (ROUDINESCO, 2016: 126).
Freud vem de uma família de judeus pobres. Seu pai, Jacob Freud, natural de
Buczacz, que tinha 41 anos quando ele nasceu, era um caixeiro-viajante ven-
dedor de tecidos. Casou-se, ainda na adolescência, com Sally Kanner, filha de
uma família de negociantes. Aos 19 anos, já era pai de dois filhos. Depois da
morte de Sally, casou-se com Rebekka69, também de família negociante. So-
mente em 29 de julho de 1855 é que se casa com Amalia Nathansohn, mãe de
Freud, filha de Jacob Nathansohn, comerciante de Odessa radicado em Viena.
Única mulher entre um grupo de cinco filhos, nasceu em 1835. Essa grande
matriarca deu a Jacob oito filhos em dez anos, três meninos e cinco meninas:
Sigmund, Julius, Anna, Regina, Maria, Esther, Pauline e Alexander (DOUDI-
NESCO, 2016: 22).
Apesar de algumas negligências, sobretudo após tornar-se um liberal, fazia
questão de vivenciar o Purim e o Pess’ah, celebrações religiosas dos judeus. A
primeira, relativa à libertação dos judeus do império Persa e, a segunda, à co-
memoração da saída do Egito (ROUDINESCO, 2016: 21). Freud teve uma
infância muito complicada, amplamente marcada por experiências de nature-
za sexual.
Sua babá (Resi Wittek), que cuidou dele até os dois anos e meio de idade,
atuou, sugeriu Freud um tanto indiretamente, como sua mestra em questões se-
xuais (GAY, 1989: 24). Ela foi minha professora de sexualidade. Ela me dava
banho com uma água avermelhada na qual ela mesma se lavara antes (FREUD
in ROUDINESCO, 2016: 25). Uma afirmação de Freud nos Três Ensaios
sobre a Sexualidade (1905), de que algumas babás fazem as crianças dormi-
rem acariciando seus órgãos sexuais, levantou a suspeita de que ele teria sido
abusado por sua babá. Além das coisas do sexo, Resi introduziu, em Freud, o
catolicismo.

69 Há rumores, sem muito fundamento, de que Rebekka teria cometido suicídio jogando-se de um trem
(ROUDINESCO, 2016: 21).

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Juracy Marques |

Também nutriu, por um certo tempo, a fantasia de que seu meio-irmão Phili-
pp era o verdadeiro esposo de sua mãe e seu pai era seu avô. Há especulações a
respeito do fato de o irmão mais velho de Freud ser amante de sua mãe (ROU-
DINESCO, 2016: 24).
Depois da morte de seu pai, em 23 de outubro de 1896, sentimentos confu-
sos e dolorosos o assaltaram. Pensava, teria seu pai abusado de alguns de seus
irmãos. Tocado pela escuta de Emma Ecstein, particularmente sua cena de se-
dução na loja de doces, chegou a imaginar ter também acontecido isso a ele.
O caso de Emma Ecstain, feminista judia, uma de suas primeiras pacientes, foi
para Freud desafiador, emblemático. Com um quadro grave de neurose, rela-
tava ter sido assediada numa doceria. Fez Freud mergulhar fundo na teoria da
sedução infantil e sua correlação com a origem das neuroses. De alguma forma,
ela também devolvia a Freud a memória de suas experiências sexuais durante
a infância. Partilhou esse caso com seu admirado amigo, Dr. Wilhelm Fliess,
otorrino com o qual, supunha-se, Freud estabelecia uma relação homoafetiva
inconsciente, numa proporção parecida com a que nutria por Josef Breuer e Carl
Jung, seu “príncipe coroado”, como era chamado por ele.
Fliess, obcecado por narizes, chegou a fazer um procedimento em Emma, e esqueceu
gazes na sua cavidade nasal, que apodreceu. Esse fato rendeu à enigmática paciente
de Freud graves problemas de saúde, tendo que se submeter a novos procedimentos
cirúrgicos. Ela sempre sangrava e usava o sangramento para clamar atenção.
Nem ela70 e nem Freud conseguiram culpabilizar Fliess pelo acontecido. Roudi-
nesco (2016: 70) descreve que é difícil saber o que Fliess sentiu realmente nessa
relação de amizade vulcânica que, mais uma vez, arrebatou Freud. Emma, que se
tornou a primeira psicanalista freudiana, morreu em 1924, e Freud ficou à deri-
va, com suas questões sobre sua própria sexualidade e sua neurose marcada por
problemas cardíacos, dores no ombro esquerdo, crises de enxaqueca, desmaios,
medo de trem, de viajar e uma compulsividade incessante por charutos, substi-
tutos de seu comportamento masturbatório.

70 Carlo Bonomi levanta a hipótese de que Emma vivenciou sua operação como a repetição da excisão que
sofrera na infância e que Freud evoca sua correspondência com Fliess... Essa excisão terapêutica foi desti-
nada a impedi-la de se masturbar (ROUDINESCO, 2016: 73-74).

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

Freud escreveu a Fliess, entre 1887 e 1904, quase 300 cartas. Dessas correspon-
dências, só restaram as cartas de Freud. Tinha boa transferência com ele, a ponto
de alçá-lo à condição de seu analista. Freud o amava. Entretanto, depois de 15
anos de amizade, a corda que ligava emocionalmente esses dois amigos começa-
ra a se quebrar. Em 1900, quando passavam uma temporada no lago de Achen,
acusaram-se mutuamente.
Para piorar, Freud havia tratado da teoria da bissexualidade, disposição típica de
toda forma de sexualidade humana (ROUDINESCO, 2016: 96), uma das ân-
coras das teses psicanalíticas, com o jurista austríaco Hermann Swoboda, seu
analisando, que as repassou a seu amigo Otto Weininger, célebre escritor judeu
vienense. Parte dessas ideias foram parar no livro de Wininger, intitulado Sexo
e Caráter. Ao conhecer o livro, em 1904, Fliess acusou Freud de ter roubado
suas ideias, embora a noção de bissexualidade já esteja presente na mitologia, no
darwinismo, na embriologia. O famoso escritor cometeu suicídio. Alugou um
quarto na casa que era de Beethoven e deu um tiro no coração. Outra coisa que
morreu foi a amizade de Freud com Fliess.
Sigmund usou a passagem do Gênesis, que relata a luta noturna entre Jacó e o
Anjo, para convencer-se dessa ruptura. Dessa disputa, Fliess ficou para a posteri-
dade como um “maníaco dos números”, enquanto Freud como o celebrado cria-
dor da psicanálise. Em poucos anos, conquistou o mundo ocidental e fundou
um movimento internacional. Como bem descreveu Roudinesco (2016: 123;
135), da mesma forma que o socialismo, o feminismo e os pensamentos da vanguar-
da literária e filosófica, a psicanálise virou então símbolo de uma assombrosa revo-
lução do espírito... Aos quarenta e quatro anos de idade, adquiria real notoriedade
na esfera do vasto movimento de renovação da psicologia e da psiquiatria dinâmica
que eclodia na Europa desde o fim do século XIX.
Com esses avanços, Freud passou a reunir, de maneira informal, um círculo de
pessoas que se interessavam pelas questões do psiquismo humano. Em 1902,
fundou a Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras, primeiro grupo formal da
história da psicanálise que dissolveu em 1907 para estruturar a Wiener Psychoa-
nalytische Vereinigung (WPW), primeira instituição psicanalítica da história
do freudismo. Objetivando concretizar a internacionalização da psicanálise, des-

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Juracy Marques |

locando-a da centralidade judaica no movimento, em 1910, juntamente com Fe-


renczi, seu discípulo mais próximo, fundou a Internationale Psychoanalytische
Vereinigung (IPV), e entregou sua direção a Jung71 (ROUDINESCO, 2016:
142; 144). Em 1936, essa sigla alemã foi substituída pela inglesa: International
Psychoanalytical Associoation (IPA).
Era a confirmação de uma relação entre dois gênios que, no futuro, mostrou-se
insustentável, rompendo-se em 1913, quando Freud o acusa de ceder ao ocultis-
mo. O discípulo mais querido de Freud experimentara essa separação com um
grave quadro de melancolia, chegando a ter alucinações. Havia perdido um mes-
tre, uma de suas grandes referências, mas superou esse trágico momento de sua
vida e fundou o consolidado movimento de psicologia analítica.
Jung era médium, e isso não o assustou nem tampouco o fez retroceder à expe-
rimentação desses fenômenos, em nome de uma racionalidade científica hege-
mônica, no mundo das ciências, desde a modernidade. A psicanálise foi criada
por um judeu sem Deus, mas um judeu. Quem conhece a parte mística, oculta
do judaísmo, a Cabala, sabe o valor dessas experiências na alma desse povo que,
como o próprio Freud ratificara, repete-se na ontogênese, ou seja, algo em Freud
estava marcado por essa experiência.
Ao contrário do que apontam muitos estudos sobre o ateísmo freudiano, Freud
nunca se distanciou dos estudos das religiões e de outras tradições e manifesta-
ções sagradas das civilizações. Conforme descreve Roudinesco (2016: 266), na
sua biografia sobre Freud, a perspectiva das coisas ocultas em psicanálise chega a
Viena com a visita de Jung a Berggasse, reforçada por Ferenczi em seus estudos
sobre videntes e profetizas dos subúrbios de Budapeste, tentando provar a real
possibilidade de transmissão de pensamentos. De 1920 a 1933, esses debates
retornaram aos círculos analíticos, e o próprio Freud, ao lado de sua filha Anna
e de Ferenczi, retoma as pesquisas sobre telepatia. Ocupando a função de mé-
dium, também “fez mesas girarem”.
Jones tinha a clareza de que se a psicanálise ainda continuasse a tratar desses
fenômenos, experimentaria a poderosa rejeição do mundo anglo-saxão e não se
deslocaria do enraizamento austro-húngaro, povoado por ciganos e místicos.
71 Ao longo de sua parceria, trocaram 359 cartas (ROUDINESCO, 2016: 151).
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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

Isso também era desejo de Freud, que foi convencido por seu pragmático dis-
cípulo. Mesmo assim, escrevera a respeito do medo de uma dura crítica pela
proximidade entre psicanálise e telepatia: É realmente difícil não melindrar as
suscetibilidades inglesas. Nenhuma perspectiva de pacificar a opinião pública na
Inglaterra se abre para mim, mas eu gostaria pelo menos de lhe explicar minha apa-
rente inconsequência no que se refere à telepatia... Quando disserem na sua frente
que caí em pecado, responda calmamente que minha conversão à telepatia é assunto
meu pessoal, assim como o fato de eu ser judeu, fumar com paixão e tantas outras
coisas, e que o tema da telepatia é, por essência, alheio à psicanálise (in ROUDI-
NESCO, 2016: 268).
Jung, o grande bruxo da psicanálise, era filho de mãe espírita (Emilie Previswerk)
e de um pastor protestante ( Johann Paul Achilles Jung). Foi batizado com o
mesmo nome do seu avô paterno, um conceituado cirurgião e professor. Sobre
o encantamento que sentia por Freud, Jung escreveu: Na verdade – o que devo
lhe admitir com reticência -, admiro-o ilimitadamente como homem e pesquisador,
e, conscientemente, não sinto inveja do senhor. Não é portanto daí que vem meu
complexo de autoconservação, mas do fato de minha veneração pelo senhor ter o ca-
ráter de um entusiasmo apaixonado, religioso, que, embora não me cause nenhum
outro dissabor, é todavia repugnante e ridículo para mim devido à sua irrefutável
consonância erótica. Esse sentimento abominável provém de que, ainda menino,
sucumbi à agressão homossexual de um homem72 que eu antes venerava (in ROU-
DINESCO, 2016).
Para Roudinesco (2016: 152), enquanto Freud era herdeiro de uma concepção
racionalista da ciência e de um universalismo que não tolerava nenhuma forma
de relativismo, Jung vinha de uma tradição completamente diferente, na qual mis-
turavam esoterismo, antimaterialismo, espiritismo, ocultismo, propensão à espiri-
tualidade, atração pelo inconsciente subliminar e os fenômenos da personalidade
múltipla, adesão, em suma, à psicologia dos povos.
A psicanálise é a “coisa” de Freud. Em 1914, em artigo sobre a história do movi-
mento psicanalítico, escreve: a psicanálise é efetivamente minha criação; durante
dez anos fui o único a se ocupar dela e toda a insatisfação que esta novidade provo-

72 O autor da agressão era um padre católico, amigo de seu pai (ROUDINESCO, 2016: 153).
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Juracy Marques |

cou em nossos contemporâneos foi despejada na minha cabeça sob forma de críticas
(in ROUDINESCO, 2016: 144). Freud era uma “flor” de pessoa, belo, mas mo-
bilizava todos os seus espinhos para proteger seu corpo: a psicanálise.
De um lado, a psicanálise tornara-se um rizoma; de outro, nasciam grandes
preocupações. A adesão de nomes como o de Otto Gross, psiquiatra que se inte-
ressou pela prática da psicanálise e que defendia um mundo livre das repressões,
sobretudo sexuais, e adicto por adesão às drogas, diagnosticado por Jung como
um demente precoce, louco varrido, expunha a criação freudiana a julgamentos,
agora, com razão.
Max Weber, a partir da observação das extravagâncias de Otto, dissera a respeito
da psicanálise que ela não propunha nenhuma nova exigência ética à humanida-
de e induzia ao risco de promover uma substituição do cientificismo pelo “dire-
tor de almas” (in ROUDINESCO, 2016: 162). Freud não o considerava como
parte do movimento. Abandonando-se, o abandonado Gross, submetido à fome
e ao frio, morreu nas caçadas de Berlim.
Como, acertadamente, escrevera Roudinesco (2016: 160), manifestadamente,
Freud não sabia o que fazer com aqueles discípulos loucos, transgressivos, inventivos
e talentosos. Nesse momento, em que essas rupturas sugeriam uma fragilidade
para o movimento psicanalítico, entrará em cena Ernest Jones, que, vendo o po-
der daquele movimento, tornar-se-á um dos fiéis escudeiros de Freud e, a partir
de então, levará a psicanálise como um rei disposto a conquistar novos espaços
para seu reinado. Ficará do lado de Freud até os últimos momentos da sua vida.
Nascido em Gales, especializou-se em psiquiatria. Numa aproximação estranha,
conhece Freud, em 1908, e, desde então, troca com seu mestre mais de 600 car-
tas, tornando-se o seu biógrafo “oficial”, sobre o qual produziu uma monumental
obra em três volumes. Jones era, histórica, política e geograficamente, o homem do
futuro da psicanálise (ROUDINESCO, 2016: 164). Em virtude de sua mili-
tância na psicanálise em Londres, depois de acusado e preso, vai para o Canadá
e lá se torna o grande arquiteto da psicanálise nas Américas, criando, em 1911,
a American Psychoanalytic Association, já morando nos Estados Unidos, haja
vista também ter sido perseguido no Canadá.

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

Freud, inventor da psicanálise, tinha na sua constituição a memória de um pai


humilhado, recorrendo à cena contada pelo Pai, de ter sido obrigado por um
não judeu cristão a deixar a calçada e de ter derrubado seu chapéu. “O que o
Senhor fez?”, Freud perguntou. “Desci para a rua e apanhei meu gorro”. Depois
do fato, seu pai apenas foi embora. Freud ficou revoltado com a postura do pai.
Em virtude disso, prometera que jamais aceitaria a humilhação. Desde cedo, já
na Universidade de Viena, deparou-se com o antissemitismo73. Sobre esse sen-
timento, escreveu: Nunca entendi por que eu deveria me envergonhar da minha
ascendência ou, como estavam começando a dizer, de minha raça (GAY, 1989: 42).
Em toda a sua vida, Freud se negou a qualquer convite à subjugação.
Conta-nos Gay (1989: 42) que, em 1883, numa viagem de trem, Freud deparou-
-se com um grupo de antissemitas revoltado com o fato de ele ter aberto a janela
para entrar um pouco de ar fresco. Por causa disso, fora insultado de “judeu mi-
serável”. Mantendo-se com uma aparência imperturbável, Freud convidou seus
adversários a se levantarem, gritou com eles e se impôs aos covardes. Foram vá-
rios os episódios em que Freud reagiu a esse tipo de provocação. Tempos depois,
em resposta a isso e à revelia de todas as dores decorrentes, ele simplesmente
se tornou Sigmund Freud: o pai da psicanálise! Ele mudou para sempre nossa
forma de ver a humanidade. Negando-o ou afirmando-o, o mundo hoje pen-
sa freudianamente! De certa forma, o século XX era mais freudiano que Freud
(ROUDINESCO, 2016: 347).
Depois de várias imersões em diferentes campos das ciências sociais e naturais,
gradativamente, foi aproximando-se da medicina, da qual destacara sua predile-
ção pela psiquiatria, embora, inicialmente, tenha se dedicado mais à neurologia.
O futuro criador da psicologia profunda, nas suas primeiras experiências no
campo da medicina, encontrou tranquilidade e satisfação no laboratório de fi-
siologia coordenado pelo professor Brücke, onde trabalhou de 1876 a 1882. Em
1873, havia ingressado na universidade para estudar medicina, terminando o
curso em 1881, com 25 anos de idade.
73 Segundo Roudinesco (2016: 17), no século XIX, parte significativa dos judeus de diversos lugares do
mundo tentou escapar da perseguição ancestral que sofria, em virtude da sua religião (antijudaísmo),
integrando-se à sociedade burguesa industrial e intelectual. Um número significativo deles abandonou
a circuncisão e se converteu. Gradativamente, esse ódio da religião deslocou-se para a “raça”, surgindo,
assim, o antissemitismo.

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Juracy Marques |

Ainda trabalhando no laboratório de Brücke, estabeleceu uma importante par-


ceria com o Dr. Josef Breuer, destacado médico de família de Viena e um dos
precursores dos estudos sobre histeria. Ele ajudara Freud financeiramente, bem
como a se inserir na burguesia vienense, estimulou-o a interessar-se pela hipno-
se, pela neurologia, embora Jones, amigo e biógrafo de Freud, o descreva como
terapeuta pusilânime, incapaz de compreender as questões ligadas à sexualidade
(ROUDINESCO, 2016: 56). O processo de construção da psicanálise, no fu-
turo, custaria essa amizade a Freud.
Nesse período, Freud estava interessado em descrever melhor as causas psíquicas
da histeria em virtude da prevalência, no seu tempo, das explicações biológicas.
Tocado por essas motivações, em 1886, abriu seu próprio consultório74 para tra-
tar pacientes com vários tipos de neuropatologias.
A respeito do “método catártico” usado por Freud no tratamento da histeria,
Clack (2015: 17) nos diz: de modo notável, a partir dessas reflexões como uma
forma de explicar a histeria, Freud dá um salto para aplicá-las, em termos mais
gerais, a um entendimento do que constitui ser um ser humano... Em vez de limi-
tar a importância do inconsciente à explicação da doença mental, Freud passa a
aplicá-lo em termos mais amplos a todos os seres humanos.
Sempre foi um menino bastante focado em seus sonhos e queria se tornar uma
pessoa famosa. Peter Gay (1989: 37), na sua biografia, descreve-o como ambicio-
so, aparentemente seguro se si, brilhante na escola e voraz em suas leituras, o ado-
lescente Freud tinha todas as razões para crer que à sua frente havia uma carreira
ilustre, a mais ilustre que a sóbria realidade lhe permitisse seguir. Marcuse (1999:
213) o descreve como frio, austero, destrutivo e pessimista.
Diante desses conturbados contextos, aos 40 anos, resolveu fazer sua autoanáli-
se. Esse ato revelaria ao mundo uma outra face do humano. Freud resolveu ficar
nu e servir de espelho a outros semelhantes da sua espécie. Todas as noites, após
atender seus pacientes, fazia a análise de seus sonhos. Deitava-se no divã e co-
meçava a contá-los para si mesmo e analisá-los. Nesse período, seus sintomas
pioraram, pois passou a vasculhar o que chamou de monte de estrume, seus senti-
74 Freud teve, ao todo, 160 pacientes. Recebia, diariamente, oito pacientes em sessões de 50 minutos.
Com a prática da psicanálise, tornara-se rico (ROUDINESCO, 2016: 296).

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

mentos vergonhosos e indignos. Seu processo de autoanálise durou quatro anos,


tempo suficiente para chocar a psicanálise, ciência do sonhos.
Declarou a fragilidade e impossibilidade de sua autoanálise escrevendo numa
carta a Sándor Ferenczi: minha autoanálise permanece interrompida. Compreen-
di por quê. Não posso analisar a mim mesmo senão com conhecimentos objetiva-
mente adquiridos (como um estranho). A autoanálise propriamente dita é impos-
sível, senão não haveria doença. Como ainda estou às voltas com alguns enigmas
nos meus casos, isso deve forçosamente interromper minha autoanálise também (In
ROUDINESCO, 2016: 78). Como o “buda da psicanálise”, sugere que as me-
ditações psíquicas sejam partilhadas com um analista.
Com suas iniciadas descobertas sobre a mente, Freud apresenta ao mundo um
novo modelo para pensar a espécie humana. Usava para representá-la a figura
do iceberg, referindo-se à razão como a ponta que se manifesta acima da lâmina
do espelho d´água, e o inconsciente a parte irracional, “animal”, desconhecida,
como o grande bloco submerso nas profundezas dos oceanos da psique huma-
na. Para Freud, entrar no mundo da histeria permite a investigação de diferentes
estratégias que os seres humanos adotam para estruturar seu mundo (CALCK,
2015: 62). O nosso hambiente, para Freud, forma-se como substrato destes
dois locais da alma humana, o que vemos e o que está escondido, recalcado.
Nos seus aprofundamentos sobre as neuroses, passou a formular que elas esta-
vam relacionadas a perturbações das funções sexuais. Sob esse prisma, Breuer
não reconhecia a etiologia sexual das neuroses. Outro aspecto amplamente polê-
mico nas descobertas de Freud diz respeito às suas afirmações de que essas ques-
tões sexuais se dão na infância, antes, bissexual e perversa polimorfa.
Na sua Autobiografia (1924: 39), relata que, no início de suas formulações sobre
a sexualidade infantil, chegou a acreditar que a etiologia das neuroses estava re-
lacionada às práticas de sedução por parte dos adultos sobre as crianças. Como
neurótico, chegou a levantar a hipótese de ter sido abusado por seu pai, o qual
considerava um pervertido. Para o bem da psicanálise, em tempo, observou que
parte desses relatos se dava no campo da fantasia e, apesar dos seus efeitos sobre
as estruturas subjetivas de seus pacientes, nunca aconteceu de fato.

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Juracy Marques |

No seu caso em particular, a partir da sua autoanálise, iniciada após a morte de


seu pai, em 1896, descobriu que seu quadro neurótico tinha forte relação com
cenas de fantasias com sua mãe e, de forma marcante, a partir das experiências às
quais foi submetido por sua babá, uma senhora muito inteligente e ladra, a quem
Freud atribui um certo nível de agradecimento, pois, seu destino tem relações
com as práticas da mulher, sobre a qual, depois de presa, não teve mais notícias.
Sua rigorosa posição subjetiva no período da autoanálise rendera-lhe a produção
do livro A Intepretação dos Sonhos (1900), obra inaugural da psicanálise, propria-
mente freudiana.
Em 1882, abandonando sua carreira teórica no campo da fisiologia, particular-
mente em virtude de suas dificuldades financeiras, ingressou como assistente
clínico no principal hospital de Viena. Em 1884, começou seus estudos sobre a
ação fisiológica da cocaína. Soube de seus efeitos terapêuticos em soldados aus-
tríacos, prescrita por um médico alemão, e resolvera testar em si próprio. Di-
z-nos Roudinesco (2016: 52): a exaltação amorosa que deu provas em diversas
ocasiões tinha como origem um consumo de drogas pesado.
Freud era uma cobaia dele mesmo. Não sabia dos seus traços viciantes. Indicou a
cocaína, inclusive, para sua noiva Martha Bernays. Receitando-a para Ernst Von
Fleisch-Marxow, amigo, objetivando tirá-lo de um vício de morfina, tornou-o
viciado em cocaína. Chegou a concluir um artigo técnico intitulado “Sobre a
Coca”, que publicou em um jornal médico de Viena. Pouco tempo depois, ao
profetizar que a humanidade descobriria novos usos para ela, sugeriu ao seu ami-
go oftalmologista Konisgstein que estudasse as propriedades anestésicas dessa
droga em doenças dos olhos.
Depois de suas férias, percebeu que foi outro amigo, Carl Koller, que estava em
Nova Iorque, que fez os experimentos em olhos de animais e descobriu a anes-
tesia local pela cocaína, um feito para o campo da medicina que o tornou mun-
dialmente conhecido. Freud usou cocaína até 1895, como estimulante contra
seus estados depressivos intermitentes (GAY, 1989: 56), mas não ficou viciado,
deixando o uso sem grandes problemas, ao contrário de sua adicção por charu-
tos, que o acompanhou até sua morte.
Fumava mais de 20 por dia, mesmo depois do diagnóstico do seu câncer na boca.
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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

Roudinesco (2016: 53), a respeito do capítulo da cocaína na vida de Freud, pon-


dera sobre as narrativas de comentadores que o apontavam como responsável
por matar seu amigo Fleischl prematuramente, por ter contribuído para o ter-
ceiro flagelo da humanidade (após o álcool e a morfina) e por ter construído sua
obra sob o efeito da cocaína. Este percurso deve ser entendido como uma etapa
importante no itinerário do jovem Freud, ou seja, essa passagem pela droga, que
durou vários anos, foi uma maneira de ele fazer o luto da abordagem fisiológica em
prol do estudo dos fenômenos psíquicos.
No século XIX, as doenças mentais eram desconhecidas e atribuídas a danos
nos nervos ou a determinadas lesões cerebrais. Usavam-se, nos seus tratamentos,
eletrochoques, hidroterapia, imãs, sem falar nas trágicas práticas de lobotomia.
Já bastante interessado pelas questões das doenças mentais, e sabendo do tra-
balho desenvolvido pelo Prof. Jean-Martin Charcot, na época, diretor do asilo
Salpêtrière, em Paris, tornou-se seu aluno no período de 1885-1886, quando,
vendo a demanda do grande nome dos estudos sobre histeria, ofereceu-se para
traduzir suas obras para o alemão, aprofundando-se nos estudos de hipnose, que
passou a usar a partir de 1887, como seu método clínico: Empreguei-a para fazer
perguntas ao paciente sobre a origem de seus sintomas, que em seu estado de vigília
ele podia descrever só muito imperfeitamente, ou de modo algum.
Esse médico de olhar meio estrábico, modesto, elegante e autoritário adorava
animais e vivia cercado de cães e de uma macaquinha. Tinha interesse pelo circo
e lutava, incansavelmente, contra a caça e a vivissecção. Famoso em toda a França
e em diversas partes do mundo, descrevera a esclerose lateral amiotrófica e se
tornou a grande referência nos estudos da histeria, doença que desafiava o dis-
curso médico da época, também conhecida como neurose, tipificada como uma
doença feminina de origem uterina.
As convulsões que caracterizam os corpos femininos acometidos dessa doença
eram lidas como possessões demoníacas. Seus experimentos com as loucas da
Salpêtrière demonstraram que suas paralisias não tinham causas orgânicas nem
demoníacas, mas que eram decorrentes de traumas. Quadros dessa natureza le-
varam muitas mulheres tratadas como feiticeiras à fogueira durante a inquisição.
O célebre cientista francês mantinha-se quase que num estado de alienação

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diante dos problemas políticos por que passava a Europa. Freud, que ficou du-
rante quatro meses e meio em Paris, passeando pelo Louvre, pela Notre Dame,
pela Place de la République, indo aos bulevares para apreciar sua atriz preferida,
Sarah Bernhardt, imerso nos ensinamentos de Charcot, disse a respeito de sua
impressão dos franceses: é o povo das epidemias psíquicas (ROUDINESCO,
2016: 57).
Freud tornou-se muito próximo a Charcot, de quem aprendeu a radical perspec-
tiva da existência de uma segunda mente e de que as doenças podem ser cau-
sadas por ideias. Já estava convencido de que as palavras podiam fazer um bem
indizível e causar feridas terríveis na alma. No fundo, para Freud (1926: 184),
todo neurótico tem um segredo que o oprime. Esse segredo é feito de palavras,
ao qual se chega através de uma anatomia da alma. O homem é um segredo.
Como provaria a regra freudiana75 (amor excessivo, desilusão e ruptura), apli-
cáveis aos machos que amou, sobre “Charcot”, escreveu a Martha Bernayes: era
um homem estimulante, instrutivo e brilhante. Ainda sobre sua admiração ao
grande psiquiatra francês: um dos maiores médicos, um gênio e um homem sério,
abala profundamente minhas ideias e intenções. Depois de algumas conferências,
saio como se fosse de Notre Dame, com uma nova percepção da perfeição. O encan-
tamento de Freud por Jean-Martin Charcot era tanto que, em 1889, deu ao seu
primeiro filho o nome de Jean Martin (GAY, 1989: 64). Freud tinha o hábito de
dar a seus filhos nomes de bons amigos e pessoas as quais admirava. Sua primeira
filha, Mathilde, foi uma homenagem à sua boa amiga Mathilde Breuer (GAY, 1989:
66).
A partir desse novo lugar investigado por Charcot e que Freud traduziria como
inconsciente, herdamos a ruptura profunda e radical de como nomeamos a es-
pécie humana. Aqui, mora um divisor da história do pensamento sobre a huma-
nidade. Freud, depois de seu percurso por diferentes ciências, revelou ao mundo
a ideia do “macaco nu”, habitado por uma força psíquica fora do campo da sua
racionalidade aparente.

75 Um amigo íntimo e um inimigo odiado sempre foram requisitos necessários de minha vida emocional.
Eu sempre soube me prover constantemente de ambos, escreveu Freud, em A Intepretação dos Sonhos (GAY,
1989: 67).

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

Depois de um tempo, abandonou a hipnose, pois quando seu paciente desperta-


va de seu estado de sonambulismo, parecia perder a recordação do que acessara
quando hipnotizado. Seu parceiro Bernheim alertava-o de que as lembranças se
faziam presentes e que bastava que o fizesse falar. Freud segue suas orientações,
abandona o hipnotismo e vai dando formato a um novo modelo de escuta de seu
paciente, pedindo-lhe, sempre, que ficasse deitado num sofá (divã).
Deixou de chamar seu método de pesquisa de catarse, nomeando-o de psica-
nálise, a partir da qual considerava tudo que era de ordem mental como sendo
inconsciente. Cria a associação livre, na qual, ao invés de sugerir que seu paciente
falasse a partir de um assunto específico, pedia-lhe que dissesse o que viesse à
mente. Essa técnica permitia que chegasse à consciência o material reprimido
retido por resistências. Esclarece que a associação livre não é realmente livre. O
paciente permanece sob a influência da situação analítica.
Em 1900, época que marca a passagem para o século XX, Freud publicou sua
mais importante obra: A Intepretação dos Sonhos (1900). Desde criança sempre
deu atenção aos conteúdos dos sonhos, usados na antiguidade para prever o fu-
turo, analisados por diferentes povos do mundo como um sistema de comunica-
ção de universos simbólicos, psíquicos, drasticamente desprezados pelas ciências
modernas. Freud era feito da mesma matéria que são feitos nossos sonhos, e,
mais que isso, fora como o José do Egito, um decifrador dessa matéria-prima que
atijola nossas almas.
Os conteúdos latentes dos sonhos se tornaram, para o menino da Morávia, um
mistério a ser desvendado. Define que um sonho é a realização disfarçada de um
desejo reprimido. Engels afirma que, antes do fogo, o bicho humano não dormia,
portanto, não sonhava. Depois do fogo, nossa espécie começou a sonhar, supõe.
Passado algum tempo de isolamento e desprezo, alguns alunos encontraram-se
com Freud em Viena. Em 1902, com alguns seguidores, reuniam-se às quartas-
-feiras na sala de espera de Freud para tratar de assuntos da jovem ciência do
inconsciente. Em 1906, psiquiatras de Zurique, entre os quais Carl Gustav Jung,
que se tornaria seu discípulo mais querido, passaram a se interessar pelas teses
sustentadas pelo criador da revolucionária ciência do inconsciente humano.
Freud, tomado pelo encantamento por Jung, passou a chamá-lo de querido filho.

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Após divergências, romperam e nunca mais se falaram. Freud, tremendo desleal-


dades e traições, exigia de seus discípulos compromisso, chegando a fazer um
anel para marcar essa jura de fidelidade à psicanálise. Aos poucos, a psicanálise ia
se fortalecendo em diversas partes do mundo. Em 1910, a partir de uma propo-
sição de Ferenczi, foi criada a Associação Psicanalítica Internacional (IPA). Jung
foi o primeiro presidente.
No processo de enraizamento da psicanálise, em 1909, o psicólogo Granville
Stanley Hall convidou Freud e Jung para conferirem palestras nos Estados Uni-
dos, na Clark Universtity, de Worcester, por ocasião dos 20 anos de sua funda-
ção. Essas conferências tiveram grande repercussão na imprensa e entre os círcu-
los de intelectuais norte-americanos.
Apesar de suas destiladas críticas a essa nação, esse momento teve um impacto
bastante positivo na vida de Freud, que escreveu: Na época eu tinha apenas 53
anos, sentia-me jovial e saudável, a breve estadia no novo mundo fez muito bem à
minha autoestima. Na Europa, eu me sentia um desterrado, nos Estados Unidos
me vi acolhido pelos melhores como um igual. Quando subi à cátedra em Worcester
para proferir as minhas “cinco lições de psicanálise”, foi como a realização de um
sonho improvável. A psicanálise então não era mais uma ilusão, transformara-se
em uma preciosa parcela da realidade (in ROUDINESCO, 2016: 184). Esse en-
tusiasmo, sabia, seria curto, pois, como provaria a história, os norte-americanos
buscavam na psicanálise algo que ela não era: uma terapia da felicidade. Lacan
conta que ouviu de Jung que, na ocasião, Freud teria sussurrado ao ouvido do seu
discípulo: Eles não sabem que lhes estamos trazendo a peste76.
Freud desprezava os EUA, apesar de ter sido bem tratado lá e do sucesso da psi-
canálise nas Américas. Para ele, tratava-se de um país altamente materialista, sem
poder para gozar das forças mais elevadas da vida. Escreveu a Ernest Jones: Os
americanos são verdadeiramente ruins demais... A competição é muito mais pun-
gente entre eles: não ser bem sucedido equivale à morte civil para qualquer pessoa,
e eles não dispõem de recursos privados que não venham de sua profissão... sucesso
significa dinheiro (in EDMUNDSON, 2009: 34).
Freud sempre fora assediado pelo capital norte-americano. A psicanálise está
76 Roudinesco questiona a veracidade dessa informação (2016: 180).
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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

apresentada ao deus moderno: o dinheiro. Ele governa os corações, a alma e o


corpo das pessoas. Deixou de ser, talvez, a sombra que viu entre os norte-ameri-
canos. Dos fantasmas da civilização humana, esse é o mais potente. Somando-se
a cifra de 60 trilhões de dólares em todo o mundo, sendo que a soma total de
moedas e cédulas é de menos de 6 trilhões de dólares, ou seja, mais de 90% desse
valor são apenas dados em servidores de computador (HARARI, 2016: 186).
Nos EUA, a psicanálise virou um produto altamente rentável, do qual tirou pro-
veito seu sobrinho, Edward Bernays, sistemata de um modelo de gerenciamento
da opinião das massas, como está bem representado no documentário O Século
do Ego. Samuel Goldwyn, produtor, propôs pagar 100 mil dólares para Freud ir a
Hollywood colaborar em roteiros de cinema, tendo recebido sua negativa. À reve-
lia de sua desconfiança dos americanos, quando os nazistas invadiram Viena, em
1938, os Estados Unidos fizeram o possível para protegê-lo e tiveram um papel
decisivo na sua extradição para Londres.
Freud apresentou ao mundo uma nova forma de ler a espécie humana. Escavou a
dimensão soterrada da fera que somos, com instintos inconscientes que nos go-
vernam, parte deles de natureza sexual e altamente destrutiva. Sobre os indivíduos
ou a espécie, destaca o poder avassalador da força aterrorizante que emerge nos
agrupamentos das massas. Essa realidade aumentou seu pessimismo, decorrente,
sobretudo, das trágicas cenas do mundo dominado pela insanidade nazista e, mes-
mo antes, o horror da 1a guerra mundial (1914-1918).
O pessimismo freudiano se parece muito com o espírito da ecologia que se espe-
cializou em narrar o inevitável fim da vida e o declínio da capacidade de susten-
tação do planeta. Em regra, o senso de um ecologista é o pessimismo. Assim, se a
força da ecologia está exatamente quando ela conclama a conservação das florestas,
dos ecossistemas, da biodiversidade sem a qual a vida orgânica estaria fadada à
extinção, resta saber: que tipo de força é essa? (GODOY, 2008: 67).
Freud escreve a Lou Andreas-Salomé, a respeito da guerra e de seu pessimismo:
Não duvido que a humanidade venha a se recuperar dessa guerra, mais sei com cer-
teza que eu e meus contemporâneos não veremos mais o mundo risonhamente. Ele é
muito feio. O mais triste nisso tudo é que ele é exatamente tal como deveríamos ter
representado os homens e seus comportamentos segundo as experiências instigadas

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pela psicanálise. Foi por conta dessa posição a respeito dos homens que nunca pude
me colocar em uníssono com meu bem-aventurado otimismo. Conclui, no recôndito
de minh’alma, que, uma vez que vemos a cultura mais elevada de nosso tempo tão
horrivelmente aviltada pela hipocrisia, é porque organicamente não éramos feitos
para essa cultura (in ROUDINESCO, 2016: 205).
Ao tempo em que coloca em cheque o destino orgânico da nossa espécie, mos-
trando o abismo que separa esse animal do seu semblante civilizatório, gradati-
vamente, Freud vai mostrando, pela psicanálise, o aspecto sombrio da humani-
dade, ou seja, o brotamento do desejo de morte como uma das caraterísticas mais
vivas dos humanos, transformando a psicanálise num método de investigação
das profundezas da alma humana.
Se a destruição do planeta triunfa, deduzimos, também, sobre a fraqueza da
ciência da ecologia e da atuação dos ecólogos, ou não? De um lado, ficam bió-
logos da conservação reivindicando os direitos naturais da natureza; do outro,
ecólogos humanos que, numa perspectiva etnoconservacionista, defendem os
direitos dos grupos humanos de viverem com sua natureza na natureza.
Reinando, em suas parcerias com o discurso capitalista, estão os biólogos molecula-
res que, desde a descoberta do DNA, nos idos do ano de 1950, passaram a pensar a
biologia na mesma dinâmica cientificista da física e da química, deixando de lado, em
alguma medida, a força política da ecologia convertida em ciência material da vida.
Godoy (2008: 93) alerta que as ecologias se multiplicam na mesma proporção dos
biomas que descrevem, e cada uma delas exprime a diferença irredutível daquilo que
descreve, e que os ecologistas são sempre uma questão de adaptação. Para que serve
a ecologia, hoje, diante das urgências da vida? Em muitos casos, os ecólogos são,
de fato, desnecessários e imprestáveis. Como tudo, a ecologia não é neutra, e tem
servido como instrumento de classificação tão colonialista como as correntes dos
negros. Precisamos pensar que força é essa! A ecologia é a porta-voz da pulsão de
morte quando deveria ser a força ativa da pulsão de vida! Se ela se apresentar ali,
onde a morte se manifesta, no ponto do nirvana, aí será tarde demais!
O princípio de Nirvana tornou-se um conceito caro à psicanálise. Trata-se de
um correlativo ao fenômeno da apoptose nas células, ou seja, quando células que

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

não são mais úteis aos organismos cometem suicídio, morrem para o bem-estar
destes. Freud, numa entrevista em 1926 (in REGO, 2005: 07), afirmou que a
morte é companheira do amor.
Em 1924, em sua obra O Problema Econômico do Masoquismo, escreve que um
fragmento da pulsão de morte permanece dentro do organismo e, com o auxílio
da excitação sexual acima descrita, lá fica libidinalmente presa. É nessa porção
que temos de identificar o masoquismo original, erógeno.
Esse conceito ganhará corpo na obra de Freud, mas sempre enraizado à ideia
de uma força destrutiva, que deseja retornar ao seu estado natural, governan-
do, também, os sistemas de vida do homem. Paradoxalmente, Freud, que tinha
uma coleção de budas em seu consultório, invertera a perspectiva do nirvana
para os budistas, segundo os quais, nesse estado, o ser experimenta uma alegria
suprema, ilumina-se, como ocorreu a Buda.
Os acontecimentos do mundo marcaram a subjetividade de Freud. Sua leitura
da civilização muda, significativamente, após o episódio da Primeira Gran-
de Guerra. Deixa de ser aquele cientista encantado da Belle Époque, embora
conserve, paradoxalmente, uma ingenuidade para encarar o real que lhe era
apresentado, seu destino.
Ele viveu os tempos difíceis do pós-guerra. Sua querida Sophie, filha mais
nova, morreu de pneumonia, causada por uma forte gripe em 1920. A essa
perda seguiu a morte de seu neto, aos quatro anos e meio de idade, filho de
Sophie, Heinele. Freud admite estar passando por um momento de intensa
tristeza. Em seguida a esses acontecimentos, publicou sua obra mais sombria:
Além do Princípio do Prazer (1920). Esses episódios confirmariam suas hipó-
teses sobre o potencial destrutivo da espécie humana.
Em 1923, descobriu um tumor maligno na boca, um epitelioma. Fez 33 cirur-
gias no intervalo de 16 anos e passou a usar uma prótese que ele chamava de
“monstro”, “mordaça”. Apesar do câncer, estruturando uma ciência com foco
a combater as compulsões, o terapeuta mais famoso do mundo não conseguia
parar de fumar. Não conseguiu analisar seu vício, ou nos deixou um recado:
não devemos nos desesperar diante do incurável dos nossos sintomas.

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Juracy Marques |

Em 1933, finalmente, Hitler chega ao poder. Seus temores se confirmaram.


No dia 10 de maio, jovens nazistas invadem as principais bibliotecas da Ale-
manha e seus livros são queimados. Sobre esse fato, comentou ao amigo Ernst
Jones (1979): Na idade média teriam me queimado, agora se contentam em
queimar meus livros.
O que começou como o nome específico de um método terapêutico em subs-
tituição à catarse, segundo Freud (1996: 72), tornou-se a denominação de uma
ciência – a ciência dos processos mentais inconscientes. Freud, ao contrário dos seus
revisionadores contemporâneos, estava estruturando uma ciência altamente
anárquica e revolucionária, razão pela qual incomodou tanto. Hoje, onde estão
os verdadeiros freudianos? Depois de Freud, as escolas psicanalíticas se acomo-
daram e, hoje, dizem muito pouco sobre o sentido do mundo e da existência
humana.
Por imergir das fendas do inconsciente, revelou ao mundo o mistério da com-
plexa vida interior dos humanos, com seus abismos e infinitudes, criando a pos-
sibilidade de observarmos as pegadas da nossa espécie, também, a partir dos
impulsos do seu coração psíquico. Mas, como alerta Slavoj Zizek (2014: 44), a
experiência que temos de nossa vida por dentro, a história sobre nós que contamos
a nós mesmos para explicar o que fazemos é mentira; a verdade está, antes de tudo,
do lado de fora, naquilo que fazemos. Por exemplo, como escutar a verdade de um
carrasco? Devemos escutar sua voz de dentro, que vai mostrar que as mãos sujas
com o sangue das vítimas, higienizadas, afagam a filha no rosto, tocam o seio da
esposa e a amam, levam o pão e o café à boca?! Sim! A escuta analítica dirige-se
ao âmago da mentira da verdade, bem como à verdade da mentira.
A ecologia, no seu lastro de intepretações sobre a espécie humana e suas mani-
festações na existência, seus comportamentos e sentimentos, não foi mais além
da margem, da pele, do corpo humano e de suas interações com o destino, com
as exigências da vida, com o hambiente, com a natureza. Freud nos convida a ir
além dessa mentira de ser.
O paradigma freudiano sobre a espécie humana muda, dramaticamente, os
horizontes de leituras possíveis de sua inteira situacionalidade nos modelos da
vida. Zizek (2014: 44) vai nos dizer que o que é verdadeiramente insuportável
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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

nos carrascos nazistas não são as coisas pavorosas que fizeram, mas como continuam
“humanos, demasiadamente humanos” enquanto faziam tais coisas. Uma leitura
psicanalítica da vida coloca em xeque o lugar das aparências, dos semblantes, das
invisibilidades e das negações que experimentam a nossa espécie.
Em se tratado do saber biológico, sem soma de dúvidas, a obra que mais influen-
ciou Freud foi A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais, na qual Darwin
desenvolveu estudos das emoções humanas e dos outros animais, estruturando
três princípios gerais das emoções: o do hábito associado útil, o da antítese e o das
ações devidas à constituição do sistema nervoso.
No primeiro princípio, do hábito associado útil, Darwin afirma que, por força
do hábito, estruturados a partir de modificações nas células nervosas, determi-
nados comportamentos, mesmo desnecessários, serão repetidos pelos animais,
pois, no passado da espécie, esses comportamentos foram úteis no seu processo
de adaptação.
No princípio da antítese, os animais, incluindo-se os humanos, são capazes de
operar comportamentos contrários, como, por exemplo, demonstrar amor ou
ódio, alegria e tristeza.
Sobre o terceiro princípio, aquele referente às atividades do sistema nervoso,
Darwin descreve: Quando o sensório é intensamente estimulado, gera-se força ner-
vosa em excesso. Esta é transmitida em certas direções, dependendo da conexão entre
as células nervosas e particularmente do hábito; ou o fornecimento de força nervosa
pode ser, aparentemente, interrompido. Os efeitos assim produzidos são por nós re-
conhecidos como expressivos. Esse primeiro princípio pode ser chamado, para efeito
de síntese, de ação direta do sistema nervoso. Darwin ilustra esse princípio com
as reações dos animais diante de estímulos ambientais que produzem o medo,
como tremores nos músculos, um comportamento involuntário provocado pelo
sistema nervoso.
Na obra A Origem das Emoções no Homem e nos Animais, Darwin analisa, com
profundidade, a ansiedade e o medo, afirmando: O Homem, ao longo de inúme-
ras gerações, lutou para escapar de seus inimigos ou dos perigos, fugindo ou lutando
violentamente; e esses esforços imensos faziam o coração bater mais rápido, a res-

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Juracy Marques |

piração acelerar-se, o peito arquear e as narinas se dilatarem. Como esses esforços,


muitas vezes, foram prolongados ao máximo, o resultado teria sido uma prostração
completa, palidez, transpiração, tremor nos músculos ou seu completo relaxamento.
E, agora, toda vez que a emoção do medo é fortemente sentida, mesmo que não leve
a nenhum esforço, os mesmos efeitos tendem a reaparecer pela força da hereditarie-
dade e da associação.
O que esse homem deixou como marca em nossa humanidade? A questão sobre
a origem das neuroses tornou-se uma obsessão para Freud. Em Inibição, Sintoma
e Ansiedade, Freud (1926) vai relacioná-la aos fatores filogenéticos, sobretudo a
estranheza como a sexualidade se organiza na nossa espécie, fatores psicológicos
relativos à complexidade do nosso aparelho mental e a fatores biológicos. Sobre
este último, escreve: O fator biológico é o estado de vulnerabilidade e de dependência
prolongado por um longo tempo, no caso da criança humana. A existência intraute-
rina do homem aparece, diante da maioria dos animais, relativamente abreviada;
a criança humana é trazida ao mundo mais inacabada que a maioria dos outros
animais. A influência do mundo exterior real é forçada, a diferenciação entre o ego
e o id é precocemente favorecida, os perigos do mundo exterior são realçados em sua
significatividade, e o valor do objeto, único capaz de proteger contra perigos e substituir
a vida intrauterina perdida, aumenta enormemente. Este fator biológico instaura,
portanto, as primeiras situações de perigo e cria a necessidade de ser amado, que não
mais abandonará o ser humano. Todo o drama humano existencial, sustenta Freud,
é porque queremos ser amados. Só isso.
Aqui, localizamos uma tese que gera grandes debates na atualidade: se comporta-
mentos humanos são apreendidos ou herdados. Darwin é partidário da ideia da
herança genética, segundo a qual os organismos, nas suas dinâmicas adaptativas,
memorizam determinados comportamentos e os transmitem a seus ascendentes.
Freud, em alguma medida, partilha dessa tese, mas, como prova o percurso de
sua obra, as “aprendizagens”, as experiências do hambiente, suas representações,
são fatores que devem ser considerados quando tratamos do psiquismo humano,
do inconsciente.
Freud era um admirador do pai da teoria da evolução, a quem chamava “O
grande Darwin”. Lucille Ritvo (1990), na sua obra A Influência de Darwin so-

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

bre Freud, destaca que, pelo menos, é possível encontrar, na obra de Freud, 20
passagens em que o pai da psicanálise faz referência ao pai do evolucionismo.
Nos Estudos Sobre a Histeria, Freud fala a respeito de uma das obras de Darwin:
Todas essas sensações e inervações pertencem ao campo da “Expressão das Emoções”,
que, como Darwin nos ensinou, consiste em ações que originalmente possuíam um
significado e serviam a uma finalidade.

TABELA 3: REFERÊNCIAS DE FREUD A DARWIN


DATA TEXTO DE FREUD NATUREZA DA REFERÊNCIA A
DARWIN
1875 Carta da Inglaterra a Eduard Silberstein, in Gay ¨Tyndall, Huxley, Lyell, Darwin...¨ o tornarão
1988, p. 31 afeiçoado à Inglaterra
1950 ¨Extratos dos documentos dirigidos a Fliess: SE Malthusianismo
1:84
(1892-99)
1895 Estudos Sobre Histeria SE 2:91 e 191 Duas referências à Expressão das Emoções no
Homem e nos Animais, incluindo uma longa
citação
1950 (1895) ¨Projeto para uma Psicologia Científica¨, SE ¨Uma linha de raciocínio darwiniana¨
1:303
1905 Chistes e sua Relação com o Inconsciente, SE ¨A explicação fisiológica do riso... antes e a
8:146n partir de Darwin
1907 ¨Carta ao ANTIQUÁRIO HINTERBERG¨, A Descendência do Homem
Cartas de Sigmund Freud, p. 268
1912 acrésci- Psicopatologia da Vida Cotidiana, SE 6:148 e ¨O Grande Darwin¨, ¨A regra de ouro de
mo a 1901 148 n3 Darwin¨ e uma citação da Autobiografia de
Charles Darwin
1913 Totem e Tabu, SE 124 e 125 Citações de A Variação de Animais e Plantas
(1912-13) em Domesticação e de A Descendência do
Homem
1914 Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, SE Seleção Natural
6:156
1915 ¨Reflexões para os Tempos de Guerra e Morte¨, Conceito de Darwin de horda primal em A
SE 14:292 Descendência do Homem

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Juracy Marques |

1916 (1915) Conferências Introdutórias sobre Psicanálise, ¨O Grande Darwin estabeleceu uma regra
SE 15:76 de ouro¨
1917 (1916- Conferências Introdutórias sobre Psicanálise, SE ¨Darwin, Wallace e seus predecessores¨ dão o
17_ 16:285 e 399 golpe biológico; Darwin, sobre fobia de cobra,
a partir da 2a ed. de Expressão das Emoções
(1899)
1917 ¨Uma dificuldade no caminho da Psicanálise”, Golpe biológico de ¨Charles Darwin¨ e Seus
SE 17:140-41 Colaboradores e precursores
1920 Além do Princípio de Prazer, SE 18:56 ¨Sobre linhas de pensamento darwiniano¨
1921 Psicologia de Grupo e a Análise do Ego, SE Conceito da horda primal de Darwin em A
18:122 Descendência do Homem
1925 (1924) ¨Resistências à Psicanálise¨, SE 19:221 Golpe biológico de Darwin no narcisismo do
homem
1925 (1924) ¨Um Estudo Autobiográfico¨, SE 20:8 e 67 ¨As teorias de Darwin... então de interesse
atual, atraíram-me fortemente¨; ¨a conjectura
de Darwin de que os homens originalmente
viviam em hordas¨
1927 acrésci- ¨Pós-Escrito à Questão da Análise Leiga¨, SE ¨Formação para analistas... o estudo da
mo a 1926 20:252 evolução¨
1933 (1932) Novas Conferências Introdutórias, SE 22:173; ¨Eu já vivia quando Darwin publicou seu
22:1, 66-67 livro sobre a origem das espécies¨. A teoria da
evolução de Darwin
1939 Moisés e o Monoteísmo, SE 23:66, 81 e 130-31 ¨História de uma nova teoria científica,
como a teoria da evolução de Darwin¨; ¨uma
afirmação de Darwin (1872, 2, 362 F.)... de
que nos tempos primevos o homem primitivo
vivia em pequenas hordas¨
FONTE: A Influência de Darwin sobre Freud (RITVO, 1992)

Viana (1990: 183) destaca que, na Conferência XXXV de Freud, ao tratar do


afeto, ele faz uso de um dos princípios de Darwin, o do hábito associado útil, ou
seja: A ideia de que a força do hábito leva à repetição, mesmo em situações em que
aparentemente essa repetição não encontra nenhuma utilidade. Em outras pala-
vras, tem-se aqui uma espécie de compulsão à repetição (e é por isso que, para Freud,
o sintoma neurótico tem que ser descoberto). Em Freud, o sintoma se repete. Isso
é a realização mortífera do sintoma. Como sintetizou Freud, trata-se do eterno
retorno do mesmo (in ROUDINESCO, 2016).

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

Uma questão central que persegue Freud, durante todas as suas pesquisas, é a sua
indagação a respeito do desamparo original dos seres humanos, no qual teriam
origem seus quadros de ansiedade, medo, dor, para ele, fonte das neuroses.
Há um consenso nas narrativas científicas sobre o comportamento humano, de
que o medo e a ansiedade são mecanismos biológicos para a proteção e sobre-
vivência da espécie. Trata-se de um comportamento apreendido e é, na grande
maioria das culturas, um elemento presente. Entretanto, entre os Maori77 (pri-
meiros colonizadores da Nova Zelândia, por volta de 800 anos78), não se registra
a presença do medo, um dos sentimentos mais primitivos da espécie humana.
Para eles, quando, em determinada situação, algum deles é acometido desse sen-
timento, é porque foi enfeitiçado pelo inimigo. Diante disso, levam o enfeitiça-
do à mulher do líder, que, numa ritualidade específica, abre as pernas e ele passa
a mão na vagina, tocando na “grande mãe”, recebendo sua benção. Assim, está
pronto para enfrentar as cenas que, supostamente, encantaram-no com o medo.
Também o medo pode ser uma figura que emerge dos estranhos mundos do re-
calque. O medo é a pele do gozo e, nesses casos, goza-se por temer, por se subju-
gar. Tememos aquilo que nos excita na condição de humilhado.
Freud sustenta que o ego79 é a sede real da ansiedade (1926: 97); uma espécie de
fachada do id, como uma fronteira, como uma camada externa e cortical deste
(1926: 191). A pele humana conecta o mundo externo ao seu meio interior.
Descreve, como exemplo dessa relação homem-mundo, que a ansiedade é um
dos traumas do nascimento, para o qual o ser humano devota infinitas fantasias.
Recorre a uma lembrança sobre a fala de uma parteira, ainda quando ele era mé-
dico interno de um hospital em Viena, quando ela disse haver uma relação entre
o nascimento e o estar assustado.
Freud, ao analisar o nascimento como uma separação da mãe, afirma que ele não
é experimentado subjetivamente pela criança como uma separação da mãe (1926:

77 Dados da conferência proferida pelo Dr. Lazslo Antônio Ávila, no I Simpósio de Etnopsicologia da USP (2016).
78 Harari (2016: 77).
79 Freud afirma que o ego é idêntico ao id, sendo apenas uma parte especialmente diferenciada do mesmo
(1926: 100). O ego “um anel de uma estranha linhagem de proles, mais do que uma mistura, um cristal com-
pósito, o resultado do maior número de correntes e de sangues que se poderia conhecer” (MORIN, 2012: 87).

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Juracy Marques |

130). Sabemos, a mãe alimenta o bebê com seu corpo na fase intrauterina e, após o
nascimento, torna-se o primeiro objeto de amor da criança.
Recorre à obra de Otto Rank, The Trauma of Birth, que sustenta haver relação en-
tre as primeiras fobias infantis causadas pelo evento do nascimento, para dar conta
dessas questões. Escreve: A ansiedade é uma reação que, com toda probabilidade,
é comum a todo organismo, certamente todo organismo de ordem superior, ao passo
que o nascimento é experimentado apenas pelos mamíferos, sendo de se duvidar se até
mesmo em todos eles o nascimento tem o significado de trauma (1926: 133).
Freud discorda de Rank, discípulo que ele mesmo levara para a psicanálise, in-
cumbindo-o de secretariar a Sociedade das Quartas-Feiras e orientando-o a ter-
minar o doutorado em filosofia. É notório como as teses sustentadas por Rank
tocam Freud, a ponto de recorrer a ele em boa parte da obra Inibição, Sintoma e
Ansiedade (1926).
Sobre a ansiedade, uma das fisionomias do comportamento humano, nomeou-a
como um afeto como reminiscência de um fato. Para Freud (1926: 147), a ansie-
dade é uma reação ao perigo. Mas quando se trata do ser humano, de onde vem o
perigo? De dentro dele ou de fora? Um lobo feroz vivo num ambiente externo,
com o qual temos contato, comeria qualquer um de nós, mas aquele alimentado
no nosso interior, nas nossas fantasias, seria apenas capaz de morder e comer a car-
ne de nossa alma, porém, dentro de nós, ele pode ser muito mais selvagem e feroz.
Vindo ao mundo, o indivíduo é dragado pela cultura. Ressalte-se que Freud,
apesar de estudar essa força do mundo externo sobre a subjetividade huma-
na, não negava a sua importância biológica, o papel da hereditariedade que
influenciava alguns comportamentos, mas não o considerava essencialmente
determinante. Pensava o aparelho mental dividido em três estruturas: o ego
(fachada do id), o id (parte pulsional, instintiva) e o superego (padrões éticos
e morais da humanidade).
Freud analisou uma outra constituição do hambiente, do mundo humano. Viu,
na sua perspicácia como antropólogo da alma, que a pele conectava o mundo
interior e o mundo exterior humanos. Pensando a adaptação nesses mundos, ci-
tando Alfred Adler, que acreditava que as pessoas, ao fracassarem na tarefa a elas

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

atribuída, pelo perigo, eram aquelas muito impedidas por alguma inferioridade
orgânica, próximo do que sustentava, no seu início, a teoria da adaptação e a
evolução de Darwin, afirmou serem impropriadas tais explicações, pois põe[m]
de lado toda a riqueza do material descoberto pela psicanálise (1926: 147).
Freud (1926: 61) denunciou a superficialidade com algumas ciências, a exemplo
das naturais e a própria psicologia, para a qual todos os atos mentais humanos
eram conscientes, mobilizaram saberes rasos ao tratar de complexos fenômenos
da vida: A zoologia e a botânica não partem de definições corretas e suficientes de
um animal e de uma planta; até hoje a biologia foi incapaz de dar qualquer signi-
ficado certo ao conceito de vida. A própria física, realmente, jamais teria feito qual-
quer progresso se tivesse tido de esperar até que os seus conceitos de matéria, força,
gravitação, e assim por diante, houvesse alcançado o grau conveniente de clareza e
precisão.
Freud, a partir da prática clínica, percebeu novas formas de relações entre hu-
manos e animais. Suas análises sobre esses ecossistemas do inconsciente estão
bastante claras em três casos clínicos: o homem dos lobos (1910), o homem dos
ratos (1909) e o homem dos cavalos (1905).
Em Inibição, Sintoma e Ansiedade (1926), apresenta-nos uma análise comparada
do caso de Little Hans, uma criança que desenvolveu uma fobia por cavalos, e o
do Homem dos Lobos (Sergei Pankejeff ), um paciente russo de vinte e poucos
anos, que temia ser devorado por um lobo.
Em ambos os casos, Freud localiza a fobia por um animal que, segundo comenta,
é substitutivo do pai. Escreve: a ideia de ser devorado pelo pai é típica do material
infantil consagrado pelo tempo (1926: 107). No desenvolvimento de sua análise,
identificando a ambivalência (amor e temor-ódio) dirigida à figura paterna, diz
que essas fobias escondem o temor da castração, o medo de ser mordido (cavalo)
ou devorado (lobo) pelo pai. Descreve como tese: a ansiedade sentida em fobias
a animais é o medo de castração do ego (1926: 111).
Há um hambiente que é estranho ao meio. A relação humana com os espaços e as
coisas é motivada por razões que fogem à racionalidade material e se enraíza em
seus sentidos simbólicos. Trata-se de uma ecologia do inexprimível, que constrói

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Juracy Marques |

sentido e lugares anárquicos, inclassificáveis, mas onde também o homem se lo-


caliza. São, antes, possibilidades.
Urie Bronfenbrenner, no seu livro A Ecologia do Desenvolvimento Humano: Ex-
perimentos Naturais e Planejados (2002), sustenta que as capacidades humanas e
suas realizações dependem em grau significativo do contexto social e institucional
mais amplo da atividade individual. Aborda aspectos da resistência, da versati-
lidade e do potencial da espécie Homo sapiens, conforme evidenciados por sua
capacidade de se adaptar, tolerar e, especialmente, criar as ecologias em que vive
e se desenvolve.
Observada em diferentes contextos, a natureza humana, que anteriormente se
considerava como nome singular, tornou-se plural e pluralística, pois os diferen-
tes ambientes estavam produzindo diferenças perceptíveis, não apenas entre as
sociedades, mas também dentro delas, em talento, temperamento, relações hu-
manas e, especialmente, nas maneiras pelas quais a cultura, ou subcultura, educa
sua próxima geração.
O processo e produto de tornar humanos os seres humanos variava, claramente, de
acordo com o lugar e a época. De uma perspectiva histórica, assim como cultural
cruzada, essa diversidade sugeria a possibilidade de ecologias ainda não experimen-
tadas, contendo um potencial para as naturezas humanas jamais visto, talvez com
uma mistura mais sábia de poder e compaixão do que até agora foi manifesto.
Freud escavou desses mundos o muro soterrado que invisibilizava os hecossis-
temas simbólicos da natureza humana. Ele pôde nos permitir ver que os tijolos
com os quais cada um se adapta, ergue seus mundos, construímos com o barro
de nossas almas, e mesmo as estrelas, as árvores, os rios, as flores, o universo são
feitos dessa matéria dos nossos profundos mundos subjetivos.
No caso do Homem dos Ratos (Ernst Lanzer), que Freud conhecera aos 29 anos
de idade, na infância maltratado pelo pai, há uma cena por ele relatada: quando
tinha cinco anos de idade, entrou embaixo da saia de sua governanta e tocou nos
seus órgãos sexuais, motivo de alguns momentos de excitação que sentia. Também
experimentou atos sexuais com seu irmão adotivo.
Adulto, já major no exército austríaco, adquiriu o hábito de contemplar seu pênis
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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

ereto com a ajuda de um espelho entre as pernas. Sentia desejos suicidas associados
à vontade de autodegolar-se. Teve sua primeira relação aos 26 anos, cujos desdo-
bramentos o levaram a procurar um tratamento psíquico. Regularmente, mastur-
bava-se ou praticava rituais religiosos. Em 1907, já oficial da reserva, foi participar
de exercícios militares na Galícia, onde conheceu Nemeczek, capitão cruel, adepto
de punições corporais (ROUDINESCO, 2016: 224).
Freud (1909) também trabalhou a hipótese de ele estar acometido de uma in-
capacidade para admitir seus desejos inconscientes de matar o pai. Tomado por
sentimentos ambivalentes para com a figura paterna, o Homem dos Ratos ela-
bora uma série de rituais para lidar com esses temores. Seu pseudônimo decorre
de uma técnica chinesa de tortura, relatada pelo capitão cruel que conhecera
na Galícia, que ele acreditava atingir seus entes queridos se não agisse de forma
ritualizada. Na prática dessa tortura, um balde com um rato é amarrado nas ná-
degas da vítima e, para escapar, excitado com a presença de uma haste em brasa e
procurando fugir da queimadura, o rato acaba roendo o ânus da vítima. Ambos
morrem. A negação dos seus sentimentos de ódio oculto para com o pai o leva a
idealizar um mundo que é insuportável para viver (CLACK, 2015: 76).
Para Roudinesco (2016: 224), o caso do Homem dos Ratos revelara-se a Freud
como de um paciente ideal acometido por sintomas de uma neurose obsessiva,
uma patologia oriunda de um conflito psíquico caracterizado pela fixação da li-
bido na fase anal. Freud não precisaria construir uma ficção para dar conta de sua
sintomatologia. Lanzer sentira ódio pelo pai, ritos conjuratórios, ruminações,
dúvidas, inibições, experimentou atos sexuais com irmãos, cenas de sexo com a
babá, era filho de um casamento consanguíneo, fora humilhado pelo pai, enfim.
Seu tratamento com Freud, de quatro meses, fora bastante exitoso e o curara
de suas obsessões. Ele se casou com sua amada Gisela e se tornou advogado, em
1913. Alistando-se ao exército imperial, em 1914, foi depois capturado pelos
russos e executado. Sobre isso, escreveu Freud: foi morto durante a Primeira
Guerra, como tantos jovens de valor nos quais podíamos depositar tantas esperan-
ças. Nesses casos, também sustenta a sua tese do “complexo de Édipo”, ou seja,
sua hipótese filogenética para a gênese de alguns comportamentos que estão en-
carnados na ontogênese do ser.

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Juracy Marques |

No caso do Pequeno Hans, diz-nos em Totem e Tabu (1913: 134): publiquei


recentemente, uma “Análise de uma Fobia num Menino de Cinco Anos”, cujo ma-
terial me foi fornecido pelo pai do pequeno paciente. O menino tinha uma fobia de
cavalos e, em consequência disso, recusava-se a sair na rua. Expressava o temor de
que o cavalo entrasse no quarto e o mordesse e viu-se que isso seria o castigo por um
desejo de que o cavalo caísse (isto é, morresse). Depois de ter sido removido o medo
do menino pelo pai através de uma confiança renovada, tornou-se evidente que ele
estava lutando contra desejos que tinham como tema a ideia de o pai estar ausente
(partindo para uma viagem, morrendo). Encarava o pai (como deixou bem claro)
como competidor nos favores da mãe, para quem eram dirigidos os obscuros prenún-
cios de seus desejos sexuais nascentes. Desse modo, estava situado na atitude típica de
uma criança do sexo masculino para com os pais a que demos o nome de “Complexo
de Édipo” e que em geral consideramos como complexo nuclear das neuroses. O fato
novo que aprendemos com a análise do “pequeno Hans”- fato com uma importante
relação com o totemismo – foi que, em tais circunstâncias, as crianças deslocam
alguns de seus sentimentos do pai para um animal.
Freud (1913: 135), citando um caso apresentado por Firenczi (Pequeno Árpád),
falando da força do pensamento totêmico numa criança, destaca como o temor
da castração e o Complexo de Édipo são efeitos subjetivos substitutivos da relação
inconsciente com a figura paterna.
Trata-se do pequeno Árpáp, o qual, quando tinha cerca de dois anos e meio
de idade, nas férias de verão, ao ir urinar num galinheiro, uma galinha bicou
ou deu uma bicada na direção do seu pênis. Quando retornou ao mesmo
lugar, um ano depois, “transformou-se numa galinha”, trocando o falar hu-
mano por cacarejos e cocoricós. Desenvolveu excessivo interesse por tudo
que se passava no galinheiro. No período da análise, tinha cinco anos, in-
teressava-se por galinhas e outros tipos de aves domésticas. Esses eram seus
únicos brinquedos e só gostava de músicas que tratassem de aves de quintal.
Segundo a narrativa freudiana, a galinha tornou-se, para ele, um animal totêmi-
co, ao qual demonstrava afetos ambivalentes: adorava brincar de matar galinha,
dançava ao redor dos corpos dos animais por horas a fio, extremamente excita-
do, logo em seguida, beijava ou limpava os animais mortos. Também gostava de

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

acariciar as aves de brinquedo que ele maltratava. As falas de Árpád demonstram


os efeitos dessas experiências em sua estrutura subjetiva: “Meu pai é um galo”;
“Agora sou pequeno, sou um frango. Quando ficar maior, serei uma galinha e
quando for maior ainda, serei um galo”. Descreveu, certa vez, que gostaria de
comer “fricassê de mãe”, quando tentara dizer fricassê de frango.
Conta-nos Freud (1913: 136) que era muito generoso em ameaçar outras pes-
soas com a castração, tal como ele próprio fora por ela ameaçado, por causa das
atividades masturbatórias... quanto às fontes de interesse de Árpád nos aconte-
cimentos do galinheiro: “a contínua atividade sexual entre galos e galinhas, a
postura de ovos e o nascimento da nova ninhada”, gratificavam a sua curiosidade
sexual, cujo objeto real era a vida familiar humana. Mostrou ter formado sua
própria escolha de objetos sexuais segundo o modelo da vida do galinheiro, porque
certo dia disse à esposa do vizinho: “vou me casar com você, com sua irmã, minhas
três primas e com a cozinheira; não, com a cozinheira, não, em vez dela, casarei
com minha mãe”. Freud conclui que tanto a perversão galinácea do pequeno
Árpád quando na fobia de cavalos do pequeno Hans, é um produto das condições
em jogo no complexo de Édipo (1913: 137).
A ecologia humana, ciência que estuda as relações da nossa espécie com as di-
ferentes paisagens da natureza, incluindo-se animais e plantas, não significou,
ainda, o sentido trazido por Freud desses modelos de relações, nos quais são
construídas as estruturas das principais psiconeuroses humanas.
Entre o animal, a planta e o homem, uma teia invisível, fina e sutil reina e, em
muitos casos, se sobrepõe ao sentido do que manifestamente nos evidenciam as
tramas nos hecossistemas, no hambiente, na natureza-destino, nos enigmas da
alma humana.
A vida, essa corrida desenfreada e sem sentido80, tece-se com a natureza, usando
uma agulha e linha que costuram o nosso corpo simbólico, quando ele ainda
existe pastando na natureza. Enquanto a ecologia ancora-se na realidade, a psi-
canálise trabalha com as manifestações de uma outra tessitura do real, susten-
tando que a realidade não é o único plano das nossas existências. Freud, na sua
80 Essa frase de Harari (2016: 233) lembra-me um fragmento de um simples, mas poderoso pedaço de
uma poesia de Fernando Pessoa: Para que era aquilo tudo que não era pra nada?

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ecologia, descreveu os hecossistemas que subsistem pelas operações simbólicas


da alma humana.
Na Questão da Análise Leiga (1926: 214), ao refletir sobre a perspectiva do gan-
ho com os quadros de doenças, atuação típica dos neuróticos, descreve essa atitu-
de, tomando como referência o comportamento dos felinos: Eles se queixam da
doença mas a exploram com todas as suas forças; e se alguém tentar afastá-la deles,
defendem-na como a proverbial leoa com seus filhotes. Trata-se, como aprendemos
com Freud, de um jeito, uma escolha subjetiva, para se posicionar no mundo e,
sabemos, isso não é uma encenação única das nossas teias conscientes. São, so-
bretudo, manifestações inconscientes.
A psicanálise é a ciência do inconsciente mental, diz Freud (1926: 222). Assim,
que tipo de humano interessa a essa ciência? - O humano. Entretanto, foca-se
nas pessoas que demandam um cuidado com seu mundo subjetivo. Freud indica
a natureza desse ser: uma pessoa doente é um organismo complicado (1926: 223).
Continua: O ganho proveniente da doença é uma dessas resistências. O sentimento
de culpa inconsciente representa a resistência do supereu; é o fator mais poderoso, e
o mais temido por nós (FREUD, 1926: 216).
Em Lembranças Encobridoras (1899), relata que, numa recordação que teve, via-
-se num prado com dois grandes colegas de brincadeira, Pauline e John. Relata
que ambos colhem um buquê de flores. Dessa cena, que aflorou na sua mente,
descreve que o buquê da menina era maior e eles, com inveja, arrancaram o bu-
quê das mãos da garotinha, que se queixa a uma camponesa e é gratificada com
um pedaço de pão. Para ter direito, pelo menos, a um pedacinho, jogam as flores
fora. Nesse texto, Freud trata do deflorar. Esses relatos fizeram nascer a suspeita
de que Freud abusara de sua sobrinha com a complacência do primo.
Em seu trabalho Sobre a Transitoriedade da Vida (1915), tratando da beleza
campestre, descreve a transitoriedade como marca da beleza e se refere à flor que
floresce uma única noite. Como vida, para a morte, nós somos uma flor que flo-
resce uma única vez. Depois que a primeira eflorescência da sexualidade feneceu,
surgem atitudes do ego como a vergonha, a repulsa e a moralidade, afirma Freud
(1926: 204).
A existência humana é um espetáculo que acontece sempre no tablado da na-
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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

tureza, do destino, da vida, desde sempre, para sempre. O que a psicanálise traz
de marco nessa cultura do mundo, para o entendimento dessa encenação, é per-
ceber ele, o mundo, por camadas distintas, entre as quais a que se manifesta nas
nossas tessituras simbólicas, inconscientes, como são os sonhos, os chistes e os
atos falhos, como provam os nossos sintomas.
Os seres humanos são dotados de inconsciente, como espécie, marcada pela
dinâmica da vida mental durante o sono, como supunha Aristóteles, ou seja,
“nunca dorme”. Como parte da inteireza do bicho, o animal humano, em essên-
cia, vive acordado. Quando a gente dorme, a vida mental não para. Somos uma
espécie sempre “acordada”, pensando com a psicanálise.
Ainda nas pegadas de Freud, podemos afirmar sobre a espécie humana que são,
na sua dimensão inata, seres bissexuais. Não existe macho e fêmea em si, mas
quem tem pênis e quem é castrado. Pai e mãe, menino e menina, homem e mu-
lher, por exemplo, não são pessoas, mas funções. Assim, é perfeitamente possí-
vel identificar funções masculinas em pessoas do sexo feminino e vice-versa. No
fundo, os humanos são como os anjos, não têm sexo.
Os humanos são seres instintivos (pulsionais). Entre as forças que impul-
sionam seu aparelho mental, está o id, uma energia que vem dos instintos
e sempre deseja satisfação. No início dos seus trabalhos, Freud descreveu
a existência dos instintos do ego (instintos da autopreservação, a fome) e
os instintos libidinais (o amor). Escreve: Combinei os instintos para a au-
topreservação e para a preservação da espécie sob o conceito de Eros e contrastei
com ele um instinto de morte ou destruição que atua em silêncio. O instinto,
em geral, é considerado como uma espécie de elasticidade das coisas vivas, um
impulso no sentido da restauração que outrora existiu, mas que foi conduzida
a um fim por alguma perturbação externa. Entretanto, como descreve Mar-
cuse (1999: 33), o Eros incontrolado é tão funesto quanto a sua réplica fatal, o
instinto de morte.
A escolha de se estudar a espécie humana, em qualquer ramo das ciências, im-
plica situá-la nesse campo das classificações operadas por Freud, mesmo aqueles
que situam os exemplares da nossa espécie como seres racionais, como máquinas,
como algoritmos.

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No caso dos campos de conhecimento que pensam seus modelos de adaptação


aos hambientes, quer a biologia, a geografia, a antropologia, a ecologia humana,
a psicologia, a arqueologia, a geografia, a sociologia e a própria psicanálise, a
partir da teoria dos instintos (pulsão) de Freud, podemos também pensar suas
estratégias desadaptativas experimentadas por vários indivíduos da nossa espé-
cie, como o suicídio e outros sintomas contemporâneos encharcados pela pulsão
de morte.
Pensar a adaptação humana pressupõe estratégias de vida e de morte. As teorias
freudianas que bebem em Darwin diferem-se dele por situar a dimensão estra-
nha do inconsciente nas operações subjetivas da espécie. No fundo, interpreta-a
como uma operação do ego e do superego frente ao organismo vivo inconsciente
(id).
Uma das grandes questões sobre a permanência única e exclusiva da nossa espécie,
nós, os Homo sapiens, pelas analogias de Freud (1926: 197), é a melhor operação
da lógica do ego, um “órgão” de adaptação. Para ser mais freudiano: com o afeto
de ansiedade desenvolvido, percebeu melhor os riscos do mundo externo, con-
siderando que um pequeno organismo vivo é uma coisa verdadeiramente infeliz e
impotente, comparado com o mundo externo intensamente poderoso, repleto
como está de influências destrutivas (FREUD, 1926: 196).
Totem e Tabu (1913) é a obra de Freud na qual ele toca em questões cruciais do
comportamento da espécie humana, construída a partir da influência exercida
por Jung no seu pensamento, quando relacionava o produto mental dos neu-
róticos e dos povos primitivos, como afirma na sua Autobiografia (1924: 68).
Diz (1924: 76): Meu interesse, após fazer um détour de uma vida inteira pelas
ciências naturais, pela medicina e pela psicoterapia, voltou-se para os problemas
culturais que há muito me haviam fascinado, quando eu era um jovem quase sem
idade suficiente para pensar.
Objetivando compreender as origens da religião e da moralidade humanas,
Freud, depois de ter escrito Totem e Tabu, em 1913, elabora dois grandes en-
saios posteriores, O Futuro de Uma Ilusão (1927) e O Mal-Estar na Civilização
(1930), em que sustenta a tese: Os fatos da história, as interações entre natureza
humana, o desenvolvimento cultural e os precipitados das experiências primitivas
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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

(cujo exemplo mais proeminente é a religião) não passam de um reflexo dos


conflitos dinâmicos entre o ego, o id e o superego que a psicanálise
estuda no indivíduo – são os mesmíssimos processos repetidos numa fase mais
ampla.
Em O Futuro de Uma Ilusão (1927), Freud descreve a natureza nominando-a
como destino, analisando as forças que agem sobre nós de forma majestosa,
cruel e inexorável, mostrando quão frágil é a espécie a qual pertencemos, afir-
mando: quanto às grandes exigências do Destino, contra as quais não há recurso,
eles aprenderão a suportá-la com resignação (1927: 50).
Yuval Harari (2016: 12) abre a sua primorosa obra Sapiens tratando os humanos,
na sua condição antiga, como animais insignificantes: a coisa mais importante
a saber acerca dos humanos pré-históricos é que eles eram animais insignificantes,
cujo impacto sobre o ambiente não era maior que o de gorilas, vaga-lumes ou águas-
-vivas. De fato, a espécie que hoje ameaça o equilíbrio planetário, quiçá cósmico,
não tem as capacidades dos pássaros de voar e captar informações magnéticas e
visuais, nem a dos morcegos, de se deslocarem usando um sofisticado sistema de
ondas ultrassônicas. É, de fato, uma espécie insignificante que soube usar a téc-
nica para sobrepujar todas as outras e tornar-se o senhor dos mundos.
Essa ancoragem que toma a cultura como base para pensarmos a natureza hu-
mana quando, no fundo, defende que a natureza humana é a base da cultura,
dando assento na ontogênese (indivíduo) sobre a filogênese (espécie), tem seu
ápice em Moisés e o Monoteísmo (1939). Freud despediu-se do mundo deixan-
do acabada aquela que considero sua obra mais polêmica, na qual sustentou
que Moisés não era judeu, mas egípcio, segundo ele, o povo responsável pela
divulgação do monoteísmo. Sustentada numa curiosa análise arqueológica e
antropológica, afirmou que foi Amenófis IV que mudou seu nome para Akhe-
naton, e não Moisés, quem estruturou o culto monoteísta de Áton e o impôs
aos politeístas egípcios.
Com a morte do jovem líder, ao qual Moisés era ligado, houve uma rejeição ao
monoteísmo e Moisés conseguiu espaço entre os judeus que estavam no Egito,
liderando-os na fuga pelo deserto, onde lhe apresentou as leis e a circuncisão.
Os judeus, disse Freud, repudiaram Moisés e Áton, mataram-no e voltaram às

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suas práticas religiosas politeístas. Com o remorso, passaram a venerar a ima-


gem de Áton, na forma do monoteísmo e Moisés tornou-se o grande homem
do judaísmo.
A alma marcada pela crueldade de duas grandes guerras, gradualmente, tor-
nou-se mais pessimista. Em 1938, a Alemanha se anexou à Áustria. Hitler
entrou em Viena. Freud não quis partir. Nesse período, os nazistas levaram
Anna Freud, que passou um dia na Gestapo. Levara consigo uma dose letal de
veneno, caso fosse abusada, preferiria a morte à humilhação, pensou. Esse fato
assustou bastante o velho judeu. Amigos da família atuaram rapidamente para
que, em junho de 1938, os Freud deixassem Viena e fossem para a Inglaterra.
Em 15 de julho desse mesmo ano, Freud e Anna viajavam para Paris, depois
Londres, seu último lugar.
Apesar de pensar, em toda sua obra, sobre as sombras humanas, como fora
também o nazismo, talvez como uma defesa, alimentou-se de uma certa inge-
nuidade quando da chegada da dominação nazista à Áustria e, por consequên-
cia, seus respingos em seus familiares, bem como no movimento psicanalítico.
Como estratégia, submeteu a psicanálise a um estado de dormência, de men-
timento, de neutralidade. Essa estratégia, assegura Roudinesco (2016: 401),
teve como mentor Ernst Jones, o destruidor do freudismo original.
Com um tom de desabafo, escreve Roudinesco (2016: 400): Freud cometeu um
erro... Mesmo depois de haver criticado o cientificismo e o positivismo, de pretender
desafiar a racionalidade científica interessando-se pelo ocultismo, de ter inventado
uma concepção original “arcaica” da humanidade, eis que ele se recusava a ver que
sua doutrina era portadora de uma política, de uma filosofia, de uma ideologia, de
uma antropologia e de um movimento de emancipação. Nada era mais avesso ao
espírito da psicanálise do que travesti-la numa pretensa ciência positiva e mantê-la
afastada de todo o engajamento político.
Há, nas análises sobre a história da psicanálise, uma crítica brutal e volumosa, de
que Jung servira ao regime coordenado pelas forças nazistas na Alemanha. Entre
tantas colaborações, assumiu instituições onde, entre outros interesses, pretendia
proteger ao mesmo tempo os terapeutas não médicos e os colegas judeus, que haviam
perdido o direito de exercer a profissão na Alemanha (RODUINESCO, 2016: 417).
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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

Sobre esse assunto, a colaboração da psicanálise ao regime nazista, há uma omis-


são abissal. Ernest Jones e Peter Gay, dois grandes biógrafos de Freud, omitem
esse episódio (ROUDINESCO, 2016: 405). Essa cordialidade orquestrada por
Jones, sob o signo de uma neutralidade política da psicanálise, não foi, talvez, a
maior colaboração que a psicanálise poderia dar a esse regime? Ao longo te toda
a duração da guerra, cerca de vinte freudianos prosseguiram assim suas atividades
terapêuticas e suas querelas de escola, defendendo uma “psicanálise correta”, sob a
batuta do Instituto Göring e a bota nazista. Em nome de um pretenso salvamen-
to, esses homens se desonraram, colaborando para uma destruição que se daria de
qualquer forma e que teria sido preferível que se desse sem eles... recusaram-se a
tratar pacientes judeus, os quais aliás eram excluídos de todo tipo de tratamento e
despachados para os campos (ROUDINESCO, 2016: 424).
Numa ação cordial, objetivando proteger o movimento psicanalítico na Itália,
Freud fizera a seguinte dedicatória para Mussolini: Para Benito Mussolini, com
as humildes saudações de um velho que reconhece no homem de poder um paladino
da cultura (in ROUDINESCO, 2016: 408). Essa nota freudiana é perturbado-
ra. Sabemos que Freud tinha horror a ditadores e a escreveu no livro Por que a
Guerra?
Nem todos os membros da família puderam viajar com Freud. Suas irmãs não
conseguiram autorização para partir. Adolfine morreu de inanição em There-
sienstadt. Maria e Pauline morreram em campos de concentração, em Auschwitz
(CLACK, 2015: 30). Freud, já no exílio, não soube desses acontecimentos.
Anna, única das irmãs que dera continuidade aos estudos, professora primária,
casou-se com Ely Bernays, irmão de sua esposa Martha, e, antes, migraram para
os Estados Unidos, onde prosperaram.
Após ter publicado, talvez, a obra que tocara de forma mais profunda na história
de sua descendência, escreveu em uma carta para Hanns Sachs81: Uma despedida
bastante digna. Após completar 83 anos e com o agravamento do seu câncer de
boca, aquele que buscara desvendar uma síntese da história da alma humana,
individual e coletiva, pedia para ter a história da sua alma cessada. Em carta82 à

81 Edmundson (2009: 195).


82 Edmundson (2009: 205).
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princesa Marie Bonaparte, escreveu: minha vida é uma pequena ilha de dor flu-
tuando em um oceano de indiferença.
Diante do grave quadro de debilidade, após consultar Anna, recorreu a seu mé-
dico Max Schur, para que cumprisse o que havia pactuado com ele, que aplicaria
doses letais de morfina quando tudo parecesse insuportável, inclusive, ao seu
inconsciente. Em 23 de setembro de 1939, dia Yom Kippur, o feriado judaico da
expiação dos pecados do bezerro de ouro, depois de ter lido seu último livro, A
Pele de Onagro, de Balzac, morreu o pai da psicanálise, que lutou, durante toda
sua vida, para que nós, humanos, pudéssemos nos conhecer um pouco mais e
tivéssemos uma existência, possivelmente, mais livre.
Para Freud, todo o comportamento humano é definido na sua infância. A crian-
ça de Freud sempre quer o que não pode e tem aquilo que não quer (EDMUND-
SON, 2009: 143). Então, a natureza do desejo humano é sempre sua falta, um
vazio que não pode ser preenchido porque demanda um objeto perdido. Assim,
toda a tentativa de satisfação vai na direção do encontro de um objeto substituti-
vo que causa algum grau de satisfação e, simultaneamente, insatisfação, porque,
em verdade, não é o objeto em si da falta.
A ecologia, ou seja, o modo como nos relacionamos com o mundo, numa
perspectiva psicanalítica, dá-se por meio de nossas ilusões, operadas pelos me-
canismos das nossas fantasias, que geram uma superdemanda de satisfação na
ordem do infinito, tornadas possíveis pela mágica operação da sublimação, que,
estranhamente, deixa como resíduos, tensões, frustações, novas e obscuras de-
mandas de satisfação. A esse processo chamamos gozo: insatisfação, satisfação,
insatisfação.
Por que o desejo humano é insustentável, ou seja, insatisfeito? Na Ecologia de
Freud, percebemos quão difícil é o processo de sublimação das pulsões, ou seja,
a transformação de energias de natureza sexual e erótica e mesmo dos instintos
agressivos em atividades aceitáveis para as civilizações, a exemplo das artes, das
religiões, do trabalho e das ciências. A maioria das pessoas quer a satisfação ime-
diata de suas necessidades, e isso, sim, está na ordem do impossível, quando, de
todo, não o fantasia.

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| A ECOLOGIA DE FREUD: Os Ecossistemas da Natureza Humana

Não parece algo da ordem da esperança, mas Freud, na sua desesperança, sempre
esperançava a esperança. Escreveu, em O Mal-Estar na Civilização (1930): Os
homens alcançaram tamanho grau de controle das forças da natureza que, com
sua ajuda, não lhes é difícil exterminarem-se mutuamente até o último homem.
Eles sabem disso, daí boa parte de sua inquietude atual, de sua infelicidade, de
sua angústia. Convém agora esperar que a outra das “duas potências celestes”, o
eterno Eros, faça um esforço para prevalecer no combate com seu não menos imortal
adversário.
Como seria esse retorno de Eros? Parece-me, um de seus netos entendera o seu
poder. Anton Walter, filho de Martin, quando foi promovido à patente de capi-
tão, dedicou-se à caça de criminosos nazistas e, com suas investigações, contribuiu
para entregar à justiça Bruno Tesch, cuja empresa fabricava o Zyklon B83 para o
campo de Auschwitz. Declarado culpado pela corte militar de Hamburgo, Tesch foi
condenado à morte e enforcado em 1946 (ROUDINESCO, 2016: 477).
Freud, esse espírito que segue rumo à imortalidade e eter-nidade, dissera: A vida
muda. A psicanálise também muda. Consegui desencavar monumentos soterrados
nos substratos da mente. Mas ali onde eu descobri alguns templos, outros poderão
descobri continentes (in REGO, 2005: 47).
O enigmático sorriso de Freud nos lembra de que há sempre o bom e o mau
sorriso. Escrevo pelo bom sorriso. O riso sobre-humano diante de tudo que se tem
por sério84. O sorriso da criança. Mas de que sorriso infantil falamos em Freud?
Pensamos a alegria das crianças do mundo, da África, da Síria, do Brasil, mas
também das crianças da alma, da nossa infância. Algo que nos lembre sempre:
“Leve a vida mais leve”. Mergulhar no mistério da natureza humana para apren-
der a viver no nosso leve insustentável. Freud, sobrenome herdado de sua bisavó
Pappi Hofmann-Freud, em alemão (freude), quer dizer alegria.

83 Pesticida à base de ácido cianídrico, cloro e nitrogênio, que causa morte rápida.
84 NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. Madri: Alianza Editorial, 1983.
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“Este livro foi impresso na Gráfica XXX em 2017, no formato 17 x 21 cm, em
papel pólen soft 80g no miolo e cartão Triplex 250g na capa, em primeira
edição, com tiragem de 1000 exemplares. Fonte usada: Garamond corpo 11”

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