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ASSOCIAÇÃO SUL-RIO-GRANDENSE DE

PESQUISADORES EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

NÚMERO 24
Jan/Abr 2008

Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe Quadrimestral


História da Educação Pelotas v. 12 n. 24 p. 1-270 Jan/Abr 2008
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO
ASPHE
Presidente: Maria Stephanou
Vice-Presidente: Beatriz Daudt Fischer
Secretário: Claudemir de Quadros

Conselho Editorial Nacional Conselho Editorial Internacional


Dra. Denice Cattani (USP) Dr. Alain Choppin
Dr. Dermeval Saviani (UNICAMP) (INRP, França)
Dr. Elomar Antonio Callegaro Tambara (UFPel) Dr. Antonio Castillo Gómez
Dr. Jorge Luiz da Cunha (UFSM) (Univer. de Alcalá – Espanha)
Dr. José Gonçalves Gondra (UERJ) Dr. Luís Miguel Carvalho
Dr. Luciano Mendes de Faria Filho (UFMG) (Univer. Técnica de Lisboa)
Dr. Lúcio Kreutz (UCS) Dr. Rogério Fernandes
Dr. Maria Teresa Santos Cunha (UDESC) (Univer. de Lisboa)
Dra. Maria Helena Bastos (PUCRS)
Dra. Marta Maria de Araújo (UFRGN)

Comissão Executiva Editoração eletrônica e capa


Prof. Dr. Elomar Antonio Callegaro Tambara Flávia Guidotti
Profa. Dra. Maria Helena Câmara Bastos flaviaguidotti@hotmail.com

Consultores Ad-hoc Imagem da capa


Dr. Eduardo Arriada (UFPel) Deux mères de famille
Dra. Maria Tereza Cunha (UDESC) Elizabeth Gardner
Dra. Beatriz Daudt Fischer (Unisinos) Le Salon de 1888
Dr. Jorge Luiz da Cunha (UFSM) Paris

História da Educação
Número avulso: R$ 15,00
Single Number: U$ 10,00 (postage included).
História da Educação / ASPHE (Associação Sul-Rio-Grandense
de Pesquisadores em História da Educação) FaE/UFPel. n. 24
(Jan/Abr 2008) - Pelotas: ASPHE - Quadrimestral.
ISSN 1414-3518
v. 1 n. 1 Abril, 1997

1. História da Educação - periódico I. ASPHE/FaE/UFPel

CDD: 370-5

Indexação:
CLASE (Citas Latinoamericas em Ciências Sociales y Humanidades)
Bibliografia brasileira de Educação – BBE.CIBEC/INEP/MEC
EDUBASE (FE/UNICAMP)
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ........................................................................................5

POLÍTICAS DOS LIVROS ESCOLARES NO MUNDO:


PERSPECTIVA COMPARATIVA E HISTÓRICA......................................9
Alain Choppin; Fernanda B. Busnello (Tradução);
Maria Helena Camara Bastos (Revisão)........................................................9

GESTÃO CURRICULAR CIENTÍFICA: UMA ABORDAGEM


SIMPLISTA PARA UM FENÓMENO COMPLEXO ...............................29
João M. Paraskeva.....................................................................................29

A TRAJETÓRIA PROFISSIONAL DE UMA EDUCADORA:


MARIA GUILHERMINA E A PEDAGOGIA NORTE-
AMERICANA .............................................................................................73
Carla Simone Chamon..............................................................................73

HISTÓRIA CURRICULAR DOS CURSOS DE GRADUAÇÃO


DA ÁREA DA SAÚDE..............................................................................101
Renata Aparecida Belei; Sandra Regina Gimeniz-Paschoal;
Edinalva Neves Nascimento ....................................................................101

FORMAÇÃO DE PROFESSORES PARA O ENSINO DE


PRIMEIRAS LETRAS NA ZONA RURAL. BRASIL, FINAL DO
SÉCULO XIX ............................................................................................121
Flávia Obino Corrêa Werle......................................................................121

LOCKE E MAKARENKO: CONCEPÇÕES DIFERENCIADAS


DE DISCIPLINA ANTE A "VONTADE GERAL" DE
ROUSSEAU..............................................................................................155
Gomercindo Ghiggi; Neiva Afonso Oliveira;
Avelino da Rosa Oliveira .........................................................................155

A EDUCAÇÃO NA ITÁLIA FASCISTA: AS REFORMAS


GENTILE (1922-1923) .............................................................................179
José Silvério Baia Horta ..........................................................................179
4
UM RIO PARA ESTUDANTE VER: ENGENHOSIDADES NA
PRODUÇÃO DE CADERNOS ESCOLARES ........................................225
Ana Chrystina; Venancio Mignot; Roberta Lopes da Veiga ......................225

RESENHA.................................................................................................249

HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO: DO ANTIGO "DIREITO DE


EDUCAÇÃO" AO NOVO "DIREITO À EDUCAÇÃO" ..........................251
Rita de Cássia Grecco dos Santos ............................................................251

DOCUMENTO .........................................................................................257

O KINDERGARTEN OU JARDIM DE INFÂNCIA POR MARIA


GUILHERMINA LOUREIRO DE ANDRADE (1888)............................259
Maria Helena Camara Bastos ..................................................................259

ORIENTAÇÕES AOS COLABORADORES..........................................269


APRESENTAÇÃO

A Revista História da Educação mais uma vez vem a


público para cumprir sua missão editorial que é socializar estudos e
pesquisas em História da Educação.
Neste número nossa revista tem o orgulho de abrir sua
secção de artigos com o trabalho do renomado pesquisador Alain
Choppin: "Políticas dos Livros Escolares no Mundo: perspectiva
comparativa e histórica". Com este trabalho o professor Choppin
colabora no sentido de um melhor entendimento da política em
relação aos livros escolares, uma temática cada vez mais atual na
área de história da educação.
O Professor João Paraskeva, da Universidade do Minho,
nos brinda com um trabalho sobre a história do currículo e suas
implicações no entendimento de suas formatações na sociedade
moderna. O trabalho tem como lócus os Estados Unidos, mas sem
dúvida as análises nele contidas nos remetem à compreensão do
processo histórico de constituição curricular de forma universal no
mundo ocidental.
A professora Carla Simone Chamon em seu texto "A
trajetória profissional de uma educadora: Maria Guilhermina e a
Pedagogia Norte-Americana" faz uma análise muito interessante
do trabalho desta professora que tanto contribuiu para a educação
brasileira. Salienta, sob certo modo, os aspectos ideológicos da
prática profissional de Maria Guilhermina.
O trabalho "História curricular dos cursos de graduação
da área da saúde" constitui-se em um trabalho de caráter inovador
da área de história da educação. Isto ocorre por trazer para a
mesma a preocupação com aspectos curriculares de áreas
tradicionalmente negligenciadas na área da educação, que tem, em
principio, se preocupado com maior ênfase na educação
propriamente dita. Esta interface com a área da saúde, sem a

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menor dúvida, deverá contribuir para uma melhor compreensão de


ambas.
Da mesma forma, o trabalho "Formação de professores
para o ensino de primeiras letras na zona rural. Brasil, Final do
século XIX" também apresenta uma temática relativamente
obliterada na área de história da educação. São raros os trabalhos
que analisam a questão do "ensino rural" sob o prisma histórico.
Sob este aspecto este texto vem preencher uma lacuna, e abrir
espaços para novos trabalhos.
A área "história das idéias pedagógicas" tem merecido dos
pesquisadores da história da educação, nos últimos anos, uma
atenção mais acentuada. Muitos pesquisadores têm se preocupado
com esta temática. O trabalho "Locke e Makarenko: concepções
diferenciadas de disciplina ante a "vontade geral" de Rousseau" está
dentro desta perspectiva. Com certeza deverá contribuir para a
elucidação das eventuais vinculações entre estes clássicos da
história da educação: Locke, Makarenco e Rousseau.
O professor José Silvério Baia Horta, emérito
pesquisador da área de história da educação, nos privilegia com um
trabalho de envergadura "A educação na Itália fascista: As reformas
Gentile (1922-1923). É mais um trabalho que denota a
preocupação dos historiadores da educação brasileira no sentido de
compreenderem a formação dos sistemas educacionais em outros
países. O entendimento das reformas Gentile, possibilita-nos de
forma indelével a compreensão de reformas educacionais realizadas
ou em gestação no Brasil.
A cultura material escolar tem também merecido a
atenção de nossos pesquisadores. O trabalho de Ana Chrystina
Venancio Mignot e Roberta Lopes da Veiga "Um Rio para
Estudante ver: engenhosidade na produção de cadernos escolares,
contribui para o alargamento das fontes na área de história da
educação. Com um trabalho de excepcional qualidade as autoras
dão um exemplo de como se utilizar de "fontes não tradicionais" na
execução de uma pesquisa com objetividade, relevância e de
qualidade na área de historia da educação.
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Por fim, em nossa clássica secção "Documentos" Temos


o texto da Professora Maria Gulhermina Loureiro de Andrade"
com a apresentação da Drª Maria Helena da Câmara Bastos.

A comissão executiva

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POLÍTICAS DOS LIVROS ESCOLARES NO
MUNDO: PERSPECTIVA COMPARATIVA E
HISTÓRICA1
Alain Choppin
Fernanda B. Busnello (Tradução)
Maria Helena Camara Bastos (Revisão)

Resumo
Depois de mais de dois séculos, o livro escolar é ainda um elemento
essencial da construção identitária e, em conseqüência, a edição
escolar tomou uma dimensão nacional. Todo países colocaram em
prática procedimentos específicos, mais ou menos coercitivos, para
assegurar o controle dos livros de classe, que tratam de sua concepção,
produção, difusão, financiamento e utilização. Em um primeiro
momento, o autor estabelece um inventário comparativo e uma
tipologia das principais disposições hoje em vigor, em diferentes países
do mundo, para controlar as publicações destinadas aos alunos e aos
professores; em um segundo momento, adota uma perspectiva
diacrônica examinando, como um exemplo, as importantes evoluções
que se processaram, depois do século XVIII, na legislação e na
regulamentação relativa aos manuais escolares da França. Conclui
sobre a imperiosa necessidade de levar em conta os contextos
legislativos e de regulamentações em todos os estudos consagrados aos
manuais.
Palavras-chave: Manuais escolares; política escolar; história do livro.

THE POLICE REGARDING SCHOOL BOOKS IN THE


WORLD: A COMPARATIVE AND HISTORICAL
APPROACH
Abstract
Even after two centuries, the school book is still vital in the
construction of the identity and, consequently, the school edition has

1
Texto originalmente publicado em espanhol "Las políticas de libros escolares en
el mundo: perspectiva comparativa e histórica", IN: SILLER, Javier Pérez;
GARCÍA, Verena Radkau (Coord.) Identidad en el imaginario nacional: reescritura
y enseñanza de la historia. Instituto de Ciencias Sociales y Humanidades, BUAP,
Puebla/El Colegio de San Luis, A.C./ Instituto Georg-Eckert, Braunschweig,
Alemania, 1998. pp169-180. Autorização do autor para a presente edição, com
uma introdução atualizada.

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become a national issue. Most countries have put into practice
specific procedures, some of them coercitive, to assure the control
over the school books, regarding their conception, distribution,
financing and use. At first, the author compares and typifies the main
dispositions existent nowadays around the world to control the
publications aimed at students and teachers. Secondly, he adopts a
diachronical approach and examines, as an example, the important
evolutions that took place after the XVIII century in the legislation
and regulation of the school manuals in France. Finally, he talks
about the necessity of taken into consideration the legislative and
regulation contexts in all the studies regarding manuals.
Keywords: school manuals; school polices; history of the book.

POLÍTICAS DE LOS LIBROS ESCOLARES EN EL


MUNDO: PERSPECTIVA COMPARATIVA E HISTÓRICA
Resumen
Después de más de dos siglos, el libro escolar es aún un elemento
esencial de la construcción "identitária" y, en consecuencia, la edición
escolar tomó una dimensión nacional. Todos los países colocaron en
práctica procedimientos específicos, más o menos coercitivos, para
asegurar el control de los libros de clase, que tratan de su concepción,
producción, difusión, financiamento y utilización. En un primer
momento, el autor establece um inventario comparativo y una
tipologia de las principales disposiciones hoy em vigor en diferentes
países del mundo, para controlar las publicaciones destinadas a los
alumnos y a los profesores; en un segundo momento, adopta uma
perspectiva diacronica examinando, como un ejemplo, las importantes
evoluciones que se procesaron después del siglo XVIII, en la
legislación y en la reglamentación relativa a los manuales escolares de
Francia. Conluye sobre la imperiosa necesidad de llevar en cuenta los
contextos legislativos y de reglamentaciones en todos los estudios
consagrados a los manuales.
Palabras clave: Manuales escolares, política escolar, historia del
libro.

POLITIQUE DES MANUELS SCOLAIRES DANS LE


MONDE: PERSPECTIVE COMPARATIVE ET
HISTORIQUE
Résumé
Depuis plus de deux siècles, le livre scolaire est devenu un facteur
essentiel de la construction identitaire et l'édition scolaire a pris une
dimension résolument nationale. Tous les pays ont mis en place des
procédures spécifiques, plus ou moins coercitives, pour s'assurer le
contrôle des livres de classe, qu'il s'agisse de leur conception, de leur
production, de leur diffusion, de leur financement, voire de leur

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utilisation. Dans un premier temps, l'auteur établit un inventaire
comparatif et une typologie des principales dispositions aujourd'hui en
vigueur dans les divers pays du monde pour contrôler les publications
destinées aux élèves et aux maîtres; dans un second temps, il adopte
une perspective diachronique en examinant, à titre d'exemple, les
importantes évolutions qu'ont connues, depuis la fin du XVIIIe siècle,
la législation et la réglementation relative aux manuels scolaires en
France. L'auteur conclut sur l'impérieuse nécessité de prendre en
compte les contextes législatif et réglementaire dans toute étude
consacrée au manuels."
Mots-clés: Manuels scolaires, Politique scolaire, Histoire du livre.

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A partir do início do século XIX, a edição escolar se


inscreve definitivamente em uma perspectiva nacional: o livro de
classe é considerado como um símbolo identitário, da mesma
forma que a moeda ou a bandeira. Mesmo se os empréstimos e as
influências foram numerosos, os procedimentos colocados pelos
poderes políticos para controlar ou regular as produções escolares
não são, como mostra o estudo comparativo como o estudo
histórico, jamais idênticos.
A análise dos manuais escolares não pode abstrair-se dos
contextos legislativos e normativos que o regulamentam ou que
regulamentam a sua concepção, produção, difusão, financiamento
e utilização. Esse é o objeto do texto que segue. Escrito em 1996,
o tema passou por muitas mudanças, por sua vez profundas,
produzidas em inúmeros países.
"Celui qui est maître du livre est maître de l'éducation"2.
Se esta frase foi enunciada por Jules Ferry na França em 1879, ela
também poderia ter sido pronunciada em outro lugar e em outra
época. Embora hoje em dia convenha substituir "livros" por "meios
de comunicação", a literatura escolar constitui em todos os países
um objeto de disputa real como simbólico. Se o desenvolvimento
dos Estados chamados modernos é acompanhado de uma
institucionalização dos procedimentos educativos, esse processo
também compreende uma transferência, mais ou menos rápida e
mais ou menos completa, das responsabilidades e dos
comportamentos em matéria educativa da esfera familiar, das
autoridades religiosas e do poder público. As manifestações mais
claras da intervenção desse Poder sobre o objeto e os conteúdos da
educação se encontram nos programas, que constituem seu marco
teórico, e nos manuais que representam a sua prática concreta.
Os livros de texto são instrumentos de poder: se orientam
a espíritos jovens, por sua vez manipuláveis e pouco críticos.
Podem ser reproduzidos em grande número e difundidos em todo o

2
"Aquele que é senhor do livro é senhor da educação".

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território de um país. Fixando por escrito o conteúdo educativo,


garantem, frente à palavra do professor, uma certa ortodoxia. Sua
eficácia procede também da lenta impregnação que permite sua
utilização freqüente, prolongada, repetida. Constituem assim
poderosas ferramentas de unificação – até de uniformização –
nacional, lingüística, cultural e ideológica. O poder político se vê
forçado a controlar de forma estreita e até a orientar em seu
proveito, a concepção e o uso dos livros de texto.
Os livros escolares não são, portanto, como os demais
livros. Na maioria dos países do mundo, a regulamentação que se
aplica aos livros de escola diverge da que se usa para outras
publicações. Geralmente, ela é mais restrita, incidindo sobre a
elaboração, concepção, fabricação, autorização; ou em seu uso
(modo de difusão e financiamento, procedimentos de seleção,
utilização). O manual escolar constitui, assim, um precioso
indicador das relações de força que estabelecem, em um dado
momento e em uma determinada sociedade, os diversos atores do
sistema educativo, pois o grau de liberdade que gozam seus
redatores e quem os utiliza pode variar consideravelmente.
Nestas páginas, nos propomos a examinar esta
diversidade. Realizamos, em primeiro lugar, um estudo
comparativo (estabeleceremos, a partir de alguns casos, um
inventário superficial das grandes "categorias de regulamentação"
atualmente em vigor) e, em segundo lugar, faremos um estudo
diacrônico (analisaremos, a título de exemplo, a evolução da
regulamentação francesa em matéria de livros de texto).

Um exame do espaço:
as grandes categorias de regulamentação

É relativamente fácil encontrar nas diversas


regulamentações, que se aplicam atualmente aos livros de texto no
mundo, algumas semelhanças ou analogias. Estamos conscientes
que o exercício que realizaremos – elaborar uma classificação ou
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conceber uma tipologia – é, na verdade, sedutor para o espírito,


mas pode ser superficial, às vezes até ilusório e sempre redutor.
Entretanto, há uma vantagem: ao buscar situar um elemento em
um conjunto mais vasto, se coloca também em evidência sua
especificidade e nos perguntarmos sobre as razões que lhe dão
origem.

Os programas

Com exceção dos países onde a tradição supre a redação


dos programas – no mundo anglo-saxão, por exemplo -, os
objetivos e conteúdos do ensino são, freqüentemente, definidos
com muita precisão pelos programas, começando pela lista de
perguntas – às vezes comentadas de maneira abundante – que
deverão ser tratadas em uma disciplina e a um determinado nível.
Podemos dizer, não sem malícia, que os programas representam
para os docentes – e para os pais – o que os Textos Sagrados são
para os religiosos, com uma pequena diferença: os segundos são, a
princípio, imutáveis, enquanto que os primeiros podem ter a
tendência de se transformar constantemente. Em tal contexto, os
livros de texto assumem uma função próxima a que prega o
catecismo no mundo cristão. A comparação é menos iconoclasta
do que parece, já que, historicamente, a literatura escolar nasce da
religiosa.
É o que comprava, por exemplo, a organização "por
perguntas e respostas" dos livros de texto mais antigos, ou os que se
intitulam "catecismo republicano", obras escolares publicadas na
França durante a Revolução. A administração procede ela mesma a
sua elaboração ou faz em acordo, mais ou menos efetivo, com os
atores do sistema educativo, como na França ou em Portugal.
Esses programas têm um valor oficial; têm também, com exceção
de alguns Estados federativos, como Alemanha, Canadá, Índia,
etc., um valor nacional, ainda que certos países procedam a
adaptações para levar em conta as particularidades locais (Panamá,
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Tailândia, Colômbia, etc). Em todo caso, são guias que exercem,


de acordo com cada país, uma restrição - mais ou menos forte -
sobre os usuários e sobre os que têm a seu cargo a concepção e a
redação dos livros de texto.

A concepção e elaboração dos livros de texto

Nenhum Estado no mundo pode despreocupar-se da


produção de livros de texto, as competências onde se exerce sua
intervenção e seu grau de implicação podem variar
consideravelmente.

A edição de Estado

Os países que praticam ou que têm praticado uma edição


de Estado exercem ou têm exercido, de fato, uma censura a priori
sobre a produção escolar. Foi o caso da antiga URSS e da maior
parte dos países que pertenceram ao bloco comunista: o único
manual permitido para uso dos professores era o livro de texto
oficial, o mesmo que era editado pela autoridade do Estado. Este
também é o caso do México, Algéria, China, Egito, Irã, Marrocos,
Síria, a União de Myanmar (ex Birmânia), Vietnã, etc. Em
síntese, aproximadamente um terço das nações praticam, hoje,
uma edição de Estado, em que a administração exerce não apenas o
monopólio sobre a concepção e a redação de livros de texto, como
também de sua edição, impressão e difusão, como na Polônia, na
antiga URSS – onde esta função era da Imprensa oficial
Prosvechenié, no Egito, no Katar ou na União de Myanmar, onde
também são as imprensas oficiais que se encarregam da impressão.
O sistema chinês é, desde ponto de vista, exemplar.
Fundada em dezembro de 1950, por iniciativa de Mao Zedong e
subordinada diretamente à autoridade da Comissão Nacional de
Educação, a People's Education Press (PEP) de Pequim não tem

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equivalente no mundo. Esta casa editorial oficial realiza o conjunto


de atividades de investigação relativas à concepção de programas e
de materiais educativos; faz a redação, edição, impressão e
distribuição destes materiais e também de obras de ensino que
utilizam, a cada ano, os duzentos milhões de alunos chineses e seus
professores. Desde sua criação, a PEP tem publicado vinte mil
títulos e impresso trinta milhões de exemplares. As atividades de
investigação propriamente ditas foram confiadas, desde 1983, a
um organismo denominado Curriculum and Teaching Materials
Research Institut (CTMRI), que depende do Ministério chinês de
Educação3. Os autores e editores de livros de texto da PEP
pertencem, necessariamente, a esse Instituto. Tudo está
subvencionado pelo Estado. Entretanto, os livros de texto não são
gratuitos e, como existe uma grande diferença de ingressos entre a
cidade e o campo, para este último de faz uma edição em preto e
branco, de custo muito menor que a edição em cores destinada aos
alunos da cidade.
Na Tunísia, país que se inclui no grupo onde existe
apenas um manual oficial autorizado por disciplina e por nível, são
os inspetores gerais que se encarregam não apenas de definir os
programas e de elaborar os cadernos de trabalho para os alunos,
como também coordenam a redação do manual e se ocupam de sua
edição. Na Tailândia, onde coabitam manuais de Estado e manuais
concebidos livremente, os primeiros são impressos pela gráficas do
governo e os segundos por editoras privadas.

A autorização prévia

Quando a concepção e a elaboração de obras escolares


são confiadas à iniciativa de empresas privadas, o Poder político se
reserva à prerrogativa de permitir sua introdução nas escolas

3
Fonte: Fascículo de apresentação da People's Education Press, Pekín, 1996
(em inglês).

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mediante uma autorização da administração escolar. Um terço dos


países têm adotado atualmente este sistema. É o caso da
Argentina, Bulgária, República do Camarão, Espanha, os Estados
Unidos da América (em 21 Estados, essencialmente situados no
sul do país), Grécia, Japão, Peru, Polônia, Venezuela, etc.
De todos os países do mundo, o Japão é, seguramente, o
que tem mais rigor e precisão na regulamentação da produção
escolar privada, apesar das recentes alterações que simplificaram
certos trâmites4. A lei descreve minuciosamente as regras a que
estão sujeitos os editores privados – aproximadamente 65, em
1989 –, segundo as disciplinas e os níveis da educação, para obter a
autorização do Ministério (o número de páginas, o número de
cores, a qualidade do papel, o número de ilustrações, seu preço,
etc.). As normas oficiais definem, também, os mínimos detalhes
dos procedimentos normativos e de correção, relativamente
complexos, das obras (por volta de oito por nível na primária e
treze na secundária), que são aprovadas por cada uma das quarenta
e sete secretarias de educação das prefeituras. Destas publicações
serão selecionadas pelas 497 Oficinas de Educação Municipais
para ser distribuídas gratuitamente a cada ano – que significa, para
o Estado, um gasto de 43.8 milhões de yens, em 1996 – aos treze
milhões de estudantes dos estabelecimentos escolares japoneses.
Resulta, então, que entre a primeira redação do manual e sua
introdução nas classes se deve esperar quatro anos.

A liberdade de escolher

São menos numerosos os países nos quais os livros de


texto são livremente concebidos pelos editores privados e livremente
escolhidos pelos professores. É, por exemplo, o caso de muitas

4
Fonte: Outline of the Current Textbook System in Japan, Tokyo; Japan Textbook
Research Center, 1989; School Textbooks in Japan, Tokyo, Japan Textbook
Research Center, 1991.

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nações da Europa ocidental (Alemanha, França, Itália, Holanda,


Portugal, etc) – mas isso não significa que os poderes públicos
tenham renunciado a todo controle. Na França, por exemplo, o
Ministério da Educação nacional sempre pode usar o direito que
lhe outorga o artigo 5 da lei "Falloux", de 15 de março de 1850 –
a mais antiga lei relativa à educação ainda em vigor –, para proibir
um livro de texto que não esteja conforme "a Constituição, a moral
ou as leis". Mesmo quando isto se revelou inútil, há mais de meio
século, essa incumbência, que desobriga as casas de edição privadas,
aparece como uma das mais seguras garantias contra as tendências
ideologizantes. Mais recentemente, em 1977, a responsabilidade
assumida pelo Estado no financiamento dos manuais escolares
destinados aos liceus, pouco tem limitado a liberdade que gozavam
até então as casas de edição francesas impondo-lhes, apenas, um
preço mínimo por cada obra dedicada a esse nível de ensino.
O caso do Brasil – ainda que se possam citar outros – é
algo revelador. A regulamentação é, de fato, muito liberal: a
produção de livros de texto é totalmente privada e nenhuma
autorização é necessária para introduzir a obra nas classes; a
seleção dos manuais só é incumbida aos professores. Entretanto, é
evidente que a produção destinada à educação é de péssima
qualidade: certos manuais não seguem os programas oficiais,
apresentam informações ou teorias obsoletas, contêm graves erros
ou ainda transmitem valores incompatíveis com a idéia de cidadão.
Essas obras têm sido aceitas nas classes, devido ao fato de que, na
atualidade, muitos professores brasileiros são incapazes de fazer
uma outra seleção, por suas carências de formação acadêmica. Para
solucionar essa situação existem duas opções compatíveis: proibir
as obras que se considerem inadequadas – que tem a vantagem de
dar fim ao problema rapidamente, e/ou estabelecer um sistema de
formação apropriado sobre a educação no país e de sua situação
econômica, o que, tendo em conta as grandes demandas, seria
demorado e custoso. Em 1995, o Ministério da Educação optou

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pelo meio-termo, estabelecendo uma lista de obras recomendadas


enviadas periodicamente aos professores5.

Sistemas híbridos

Por razões diversas, financeiras ou ideológicas, muitos


países têm adotado sistemas híbridos: na Tailândia ou no Equador
coexistem obras oficiais e obras concebidas livremente; no Panamá,
onde estão disponíveis manuais nacionais e importados, a
administração se contenta em publicar e depois enviar aos
professores uma lista de obras recomendadas. No Japão, ainda que
os manuais em uso não estejam sujeitos a um sistema de
autorização necessária, o Ministério da Educação, das Ciências e
da Cultura publica manuais oficiais para cada disciplina do ensino
superior e para o ensino especializado. Ocorre o mesmo na
Tailândia, mas as proporções são inversas. O essencial da produção
dos manuais é assegurado pela editora do governo.
Neste sentido, o sistema aplicado na Coréia do Sul é
muito original. Os 1.097 manuais em uso em todo o país, em
1996, se dividem em três tipos: manuais publicados sob a
responsabilidade do Ministério da Educação, os editados por
empresas privadas e autorizados pelo Ministério e, na última
categoria, aqueles que, publicados pelo setor privado, são
reconhecidos pelo Ministério como "apropriados e utilizáveis"6.
Muitos manuais da primeira categoria pertencem também à
segunda; esse fato que se opera progressivamente é apresentado
pelo regime de Seul como uma conquista democrática7.

5
Guia de Livros Didáticos, de 1ª a 4ª séries. Livros recomendados, Brasília:
Ministério da Educação e do Desporto, 1996.
6
Educaion in Korea, 1995-1996, Séoul, Ministry of Education, 1996.
7
"The improvement of the textbook authorization system which aims openess and
to change more texts into the second type is now under study and examination',
op. cit., p.50.

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Tal qual a bandeira ou a moeda, o livro de texto sempre é


visto pelos políticos responsáveis e pela opinião pública como um
símbolo nacional, como um dos principais instrumentos de
integração em uma comunidade nacional. Assim, em muitos
países, quando os poderes públicos não asseguram a direção da
edição, da impressão ou a difusão de livros de texto, fornecem
importantes subvenções para reduzir o preço de venda (Chile,
Nicarágua, Tunísia, etc.), ou para assegurar sua entrega gratuita
(Algéria, Alemanha – exceto Bavária -, Egito, França – apenas
para o ensino superior, Grécia, Japão, Marrocos, Reino Unido,
etc.). Uma das principais características, da segunda metade do
século XX, é a crescente dominação econômica dos grandes grupos
de edição ocidentais. Atualmente, grandes sociedades de capital
internacional difundem no mundo inteiro publicações de uso
escolar, como Hachette, Hatier ou Nathan para as nações que
falam francês; Mac Millan ou Longman para o mundo anglo-
saxão; Anaya ou Santillana para o hispano-americano.
Ao final deste rápido inventário, surge uma pergunta:
quais são as motivações dos dirigentes políticos? Podemos
estabelecer uma correlação entre o sistema de controle de livros e a
natureza do regime político. O problema, na verdade, não é
simples. Podemos dizer que os regimes totalitários ou, geralmente
autoritários, exercem sempre um controle muito mais rigoroso
sobre a produção destinada às escolas, e que a liberdade de redigir
os livros e de escolhê-los é virtude dos regimes democráticos. Mas
constatamos também que alguns países geralmente considerados
democráticos, ainda que este fato seja recente, submetem seus
livros à aprovação de comissões administrativas – Estados Unidos,
Espanha ou Grécia –, ou abrem mão, em muitos casos, de livros de
texto oficiais, como Japão.
Comparar não quer dizer ter razão. Convém, aqui, fazer
duas observações:
1. A utilização de procedimentos comparativos da
regulamentação, se não semelhantes, pode – levando
em conta a diversidade de situações – responder a
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objetivos ou necessidades diferentes. Se muitos


países reivindicam abertamente o exercício de um
controle político e ideológico sobre o conteúdo de
livros de texto, outros justificam sua intervenção cm
motivos científicos e pedagógicos – é o caso do
Brasil, financeiros – como a França, ou por um
cuidado em promover valores humanitários, como o
Canadá.
2. Ao contrário, situações aparentemente comparáveis
podem dar lugar a opções legislativas e
procedimentos regulamentários diversos, sem que a
análise de parâmetros políticos, econômicos,
financeiros e culturais permita dar-se conta de tais
divergências. A análise histórica pode revelar-se,
nesse caso, muito esclarecedora, por duas razões: a
primeira é que o corpus das regulamentações não é
uma construção ex nihilo, resulta de um processo, às
vezes muito complicado, de estratos sucessivos; a
segunda, é que todos os regulamentos em vigor hoje
em dia se desprendem de argumentações e de
procedimentos adotados, em diversas épocas, a
modelos estrangeiros e adaptados aos objetivos e
condições locais do momento.

Uma volta no tempo:


o exemplo da regulamentação francesa

A escolha do exemplo francês não é fortuita. Este se


impõe por pelo menos duas razões: em primeiro lugar, a França é o
único país que experimentou sucessivamente a totalidade das
opções às quais recorrem as diferentes nações do mundo; além
disso, sua influência sobre os sistemas estrangeiros é considerável:
não se pode analisar o corpus regulamentário em espanhol, grego,
italiano, da mesma maneira que os da maior parte dos países da
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América Latina ou da África francófona, sem fazer uma referência


explícita aos diversos estágios da evolução da regulamentação
francesa.
Antes da Revolução francesa, com exceção das escolas
militares reais do final do século XVIII, os problemas da educação
eram competências da Igreja católica. As escolas populares não
tinham obras específicas de ensino, o problema dos manuais só
existia para os estabelecimentos que davam uma educação reservada
às elites. A seleção e o abastecimento de livros escolares eram
realizados no espaço de cada estabelecimento e conforme os
programas definidos pelas congregações (Jesuítas, Oratórios, etc.).
Os usos instituídos na regulamentação, não se referem a um
modelo nacional; o mesmo programa se aplicava em todos os
colégios da congregação, sem importar sua implementação
geográfica.

O sistema de edição de Estado

A Revolução fez da educação da juventude um assunto de


Estado. Apesar de a separação entre Igreja e Estado não ter sido
realizada até 1905, na França se atribui ao poder político os
aspectos educativos. Os revolucionários viram nos manuais as
ferramentas mais eficazes e melhor adaptadas para levar adiante
seus objetivos: expandir as idéias novas e combater a influência da
Igreja católica, assegurar a uniformização lingüística e fundar o
sentimento de identidade nacional, combater a penúria do ensino e
o déficit de sua formação.
Posta em prática, a política de instrução popular foi
favorecida pela centralização jacobina dos aparatos do Estado.
Depois de um concurso, democraticamente aberto a todos os
cidadãos, várias obras são premiadas e designadas pelo Poder
Legislativo para serem impressas por conta do Estado, e utilizadas
pelos professores, excluindo qualquer outra (decreto Bouquier, 19
de dezembro de 1793). A França inaugura, assim, uma política de
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edição oficial. Mesmo se, desde 1796, o governo teve que


renunciar, tanto por razões jurídicas (os autores e os editores
encontram-se de fato espoliados pelo Estado, em contravenção com
a lei sobre os direitos de propriedade literária que a representação
nacional havia ela mesmo adotado em 21 de julho de 1793) como
por razões financeiras e políticas, o poder político não renuncia a
exercer o seu controle sobre os livros destinados às escolas.

O sistema de autorização prévia

Se o fracasso dessa política teve como conseqüência


encarregar definitivamente à iniciativa privada a composição e
fabricação de obras para as escolas, também houve uma
transferência do controle exercido pelo Estado do Poder Legislativo
ao Poder Executivo. Durante um século, desde 1789 até 1875, o
Poder político delegou aos grupos de "expert", designados por ele, a
tarefa de efetuar uma censura prévia à produção das casas editoriais
privadas e estabelecer uma lista de obras que os mestres pudessem
escolher. É o sistema chamado de "autorização prévia"; toda obra
não autorizada pela administração está implicitamente proibida.
Porém, a partir 1833, a generalização progressiva da instrução
primária abriu à edição escolar um considerável mercado potencial.
As implicações passam do domínio ideológico ao econômico e os
procedimentos de análise, postos em prática, contribuem por falta
de transparência a falsear o livre jogo de competência entre os
editores. As comissões de análise, cuja função original era exercer
principalmente um controle político e acessoriamente científico e
pedagógico sobre a literatura escolar, são objeto de tráfico de
influências e de corrupção; o clientelismo transforma a regra e a
administração se mostra, freqüentemente, complacente, quando
não cúmplice. O sistema se transformou, assim, em um fator de
esclerose: os editores, muito sensíveis a satisfazer os apetites das
soberanas comissões administrativas, limitam toda inovação que

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poderia comprometer a obtenção da aprovação esporadicamente


acordada.
Será então, no seio da educação privada, que a inovação
pedagógica pode se desenvolver, pois a regulamentação que se aplica
aos manuais é menos restritiva. O sistema chamado "veto", posto
em prática em 1833 para a escola primária (lei Guizot) e, em
1850, para a secundária (lei Falloux), estipula que toda obra não
proibida pela administração está implicitamente autorizada. De
fato, todos os manuais que não haviam obtido a aprovação das
comissões de avaliação ou aqueles que não a haviam solicitado
podem, à condição de não ter sido proibidos, ser introduzidos nos
estabelecimentos de educação privados, ainda que estejam vetados
para as instituições do setor público.
A partir de 1850, o crescimento da produção de livros
escolares e a incerteza da administração acerca dos mecanismos a
adotar para assegurar o controle, provocam a ampliação do tempo
de avaliação das obras. Esta situação prejudica os interesses
comerciais das empresas de edição, que não aceitam esperar anos
inteiros para obter uma aprovação, incerta e desigual. São
aprovadas, aproximadamente, uma obra de cada dez, e a lei é
abertamente transgredida.

Rumo à liberdade de seleção

Em 1865, impotente em fazer respeitar a


regulamentação que decreta, a Administração resolveu adaptar a
regulamentação à realidade e colocá-la em harmonia com os
procedimentos de seleção, e estender ao setor público o sistema de
"veto" que se aplicava ao setor privado. A partir de então, apesar de
um regresso efêmero e ineficaz ao sistema de autorização prévia
que se aplicou durante o governo conservador da chamada "Ordem
moral" (1873-75), assistimos a uma transferência progressiva,
porém implacável, de competências em matéria de seleção de
manuais que passam da Administração central ao corpo de
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professores. Investido do poder de decidir coletivamente, de


escolher os utensílios de trabalho, os professores primários
(disposição de 16 de junho de 1880), depois os do secundário
(circular de 13 de outubro de 1881 e de 10 de dezembro de 1881)
se transformam em interlocutores privilegiados do mundo da
edição.
O reconhecimento por parte do Poder político de dar
liberdade aos editores para conceber as obras escolares e de deixar
que os professores possam escolher livremente tem diversas
implicações:
- estabelece relações de compromisso entre o Poder, os
editores e o corpo docente;
- transforma os debates do terreno tradicionalmente
político às questões pedagógicas propriamente ditas;
- dá ao professor novas responsabilidades; se já não tem
que justificar a seleção frente aos superiores, deve,
portanto, expor seus argumentos para os seus colegas,
já que a decisão agora é coletiva. Responsáveis por suas
decisões, devem assumi-las frente aos interlocutores
que desde o final do século passado se mostram mais
atentos, na França e em outros países, aos problemas
da educação;
- transfere do terreno político ao terreno econômico a
responsabilidade das orientações ideológicas e
culturais: estas não são impostas pelo Poder político;
tendem a conformar-se, por razões evidentes de
estratégia comercial, às esperanças dos definidores e
dos professores. Se esta mutação pode se realizar, foi
em grande medida porque, há mais de meio século, os
Poderes públicos colocaram em marcha uma política
de formação de professores que os capacitou a exercer
seleções de racionalidade. O Poder conserva a
prerrogativa de definir os programas a que devem ser
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adaptados os manuais e na prática possui, como


último recurso, o poder de proibir uma obra que (ao
final do artigo 5 da lei Faloux de 15 de março de
1850) "contraria à moral, à Constituição e às leis".
Com exceção do período da Ocupação, durante o qual
a administração alemã e as autoridades francesas
publicaram listas de livros de texto proibidos, a
regulamentação instaurada desde o princípio da
Terceira República não teve manifestações até os dias
atuais.

O problema do financiamento dos livros de texto

Se o controle da produção escolar é essencial, o controle


do seu financiamento não é menos importante. Na França, até os
últimos vinte anos, a aquisição de livros de texto incumbia, em
princípio, à família, com exceção das pessoas de poucos recursos a
quem, desde 1833, as comunidades locais (municipalidade) se
ofereciam. Em princípios de 1880, as leis "Ferry", que
estabeleceram uma educação primária pública, obrigatória (até os
treze anos), laica e gratuita, não compreenderam o fornecimento
gratuito de livros de texto aos alunos. Muitas municipalidades
decidiram comprar os livros de texto nas livrarias locais e emprestá-
los às crianças durante o ano escolar. Mas como esta solução, hoje
generalizada, não é uma obrigação para as municipalidades existe
uma grande disparidade em sua aplicação.
Em princípios dos anos sessenta, o Estado mudou sua
atitude não intervencionista que vinha observando desde 1880. A
democratização do ensino secundário e o prolongamento da
escolaridade obrigatória até os dezesseis anos forçaram os Poderes
Públicos a proporcionar às famílias uma subvenção periódica para
adquirir as obras necessárias. Essas medidas fizeram com que, em
1977, o Estado tomasse a seu encargo o financiamento do
conjunto de manuais destinados aos liceus (16-18anos). Desde
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então, os manuais são emprestados para os alunos durante o ano


letivo. Como esses créditos são naturalmente limitados, o custo de
uma obra não deve exceder uma determinada soma anual e pode
ser renovada a cada quatro anos.
A intervenção do Estado acarretou diferentes
conseqüências:
- acelerou o processo de concentração da edição de livros
de texto nas mãos de um número cada vez mais
reduzido de empresas;
- provocou uma redução de manuais destinados aos
colégios (11-15anos), que modificaram as funções e a
estrutura;
- uma modificação profunda do mercado da edição
escolar pelo surgimento de produtos específicos
destinados às famílias: as publicações paraescolares,
cujas vendas compensam em parte a perda do setor
propriamente escolar;
Assim a intervenção do Estado, que tinha como objetivo
proporcionar a todos os alunos seus manuais, contribuiu para
dissuadir os professores e as famílias de utilizá-los.

***
A descrição histórica e sumária que acabamos de fazer
revela a complexidade de toda a regulamentação sobre o livro
escolar. A concepção, fabricação, seleção, difusão, o financiamento
e a utilização dos manuais implicam numerosos atores e tocam
terrenos muito diferentes, em que a função e o peso relativo variam
segundo o país e a época. A análise histórica mostra também que a
regulamentação que se aplica aos livros de texto se insere em um
conjunto organizacional mais vasto, em que a definição dos
programas, o rol da edição privada, a disponibilização de créditos e
o lugar determinado à formação e à inspeção do pessoal docente
têm um papel essencial.
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É necessário tomar consciência de que a regulamentação


em vigor, em qualquer país, é resultado de um processo mais ou
menos longo e mais ou menos complexo, e que certos aspectos só
têm sentido em relação a esta dimensão histórica. De qualquer forma,
o conhecimento do passado permite compreender o presente e
atuar sobre o futuro. Se tivéssemos que expressar um desejo, seria
o de ver um pouco em todo o mundo – imitando o que ocorreu na
França, Grécia ou Espanha – aos jovens historiadores consagrar
suas teses à evolução da política do livro escolar em seus países.

Alain Choppin - Maître de Conferénces em Histoire de


l'éducation. Université Paris 5/ rené Descartes; responsável de
pesquisa no Institut Nationale de Recherche Pédagogique? Service
d'histoire de l'éducation. Coordena o programa de pesquisa
Emannuelle.SHE/INRP. 29, rue d'Ulm 75230 Cedex 05
Paris/França
e-mail: achoppin@inrp.fr

Fernanda de Bastani Busnello - Aluno do Curso de


Psicopedagogia da PUCRS. Bolsista de Iniciação Científica
CNPq/PUCRS (2005-2006)

Maria Helena Camara Bastos - Professora do Programa de Pós-


Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul/PUCRS. Pesquisadora do CNPq.
e-mail: mhbastos@pucrs.br

Recebido em: 14/10/2007


Aceito em: 20/01/2008

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GESTÃO CURRICULAR CIENTÍFICA: UMA
ABORDAGEM SIMPLISTA PARA UM
FENÓMENO COMPLEXO
João M. Paraskeva

Resumo
Este texto tem como objetivo fazer uma análise da construção
histórico-social do curriculo, tendo como foco principalmente os
Estados Unidos da America. Analisa suas metamorfoses
principalmente no século passado e a conversão do mesmo em um
mecanismo de referência da eficiência social. De modo que, os
apologistas da "eficiência social" perante um instrumento social e
cultural como é o caso do currículo optam por soluções simplistas
ignorando que tinham em mãos um utensílo perigoso, castrador de
tantos presentes e futuros a milhares e milhares de gerações. É neste
sentido que entendemos que o currículo nas mãos dos "social
efficiency educators" se converteu numa arma letal construída com
base na linearidade dos argumentos que inflelizmente foram
conseguindo impor e que muitos deles se encontram ainda
encrostados nas vísceras curriculares deste fim de século XX.
Palavras-chave: Currículo; História da Educação, Estado Unidos da
América

SCIENTIFIC CURRICULAR MANAGEMENT – A SIMPLE


APPROACH ON A COMPLEX PHENOMENON
Abstract
This article aims at analyzing the historical social construction of the
curriculum, focusing, primarily, on the United States of America. It
analyzes and questions its metamorphoses, mainly the ones of the last
century, and its conversion in a reference mechanism of social
efficiency. In this way, the supporters of the social efficiency, having
in their hands a social and cultural tool such as the curriculum, chose
the less complicate solutions, ignoring they had in their hands a
dangerous tool, one capable of castrating the present and the future of
millions of generations. Finally, we understand that the curriculum,
in the hands of the social efficiency educators, was converted into a
lethal weapon, one which was constructed based on the linearity of the
arguments that, unfortunately, imposed themselves and many of
which are still found in this century curriculum.
Keywords: curriculum; History of Education; United States of
America

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GESTIÓN CURRICULAR CIENTÍFICA: UN ABORDAJE
SIMPLISTA PARA UN FENÔMENO COMPLEJO
Resumen
Este texto tiene como objetivo hacer una análise de la construcción
histórico- social del currículo, teniendo como foco principalmente los
Estados Unidos de América. Analisa y cuestiona sus metamorfosis
principalmente en el siglo pasado y la conversión del mismo en un
mecanismo de referencia de la eficiencia social. De modo que, los
apologistas de la "eficiencia social" perante un instrumento social y
cultural como es el caso del currículo, optan por soluciones simplistas
ignorando que tenian en manos un utensílio peligroso, castrador de
tantos presentes y futuros a millares y millares de generaciones. Es en
este sentido que entendemos que el currículo en las manos de los
"social efficiency educators" se convirtió en un arma letal construída
con base en la linearidad de los argumentos que infelizmente fueron
consiguiendo imponer y que muchos de ellos se encuentran aún
incrustados en las vísceras curriculares de este início de siglo.
Palabras clave: Currículo, Historia de la Educación, Estados Unidos
de América

GESTION SCIENTIFIQUE DU CURSUS – UNE


ABORDAGE SIMPLISTE POUR UM PHÉNOMÈNE
COMPLEXE
Résumé
Ce texte a le but de faire une analyse de la construction historique-
social du cursus, qui a comme foyer surtout lês Etats Unis
d'Amérique. Il analyse e il questionne ses métamorphoses surtout au
siècle dernier et as conversion en un mécanisme de référence de
l'efficacité social. De cette façon, les apologistes de "l'efficacité social",
devant un instrument social et culturel comme le cursus, choisissent
des solutions simplistes, em ignorant qu'ils avaient en mains un outil
dangereux, châtreur d'autant des présents et des futurs à milliers et
milliers de gérations. C'est dans ce sens que nous comprenons que le
cursus entre les mains des "social efficiency educators" si transformé
en une arme létal construite sur la base de la linéarité dês arguments
qu'ils ont malheureusement réussit à imposer et que beaucoup d'eux se
trouvent encore incrustés dans lês viscères des cursus de ce début de
siècle.
Mots-clés: Cursus; Histoire de l'Education; Etats Unis d'Amérique.

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O século XX amanhece nos Estados Unidos da América


pelos ritmos, compassos e tonalidades impostas pela multiplicação
das transformações no tecido social, - iniciadas já nas últimas
décadas do século XIX -, transformações estas motivadas por um
novo industrialismo, [e consequentemente novas dinâmicas de
exploração capitalista], que transportava consigo "não apenas uma
mera transformação nos arranjos econômicos dos Estados Unidos
e suas instituições econômicas [como também] precipitou uma
crise moral"1, determinando desta forma uma nova ordem
económica que exigia "profundas alterações entre trabalhadores,
entre os gestores e os trabalhadores, entre os trabalhadores e os seu
local de trabalho e entre os trabalhadores e o trabalho"2, e que
contribuiria para o forjar de uma "nova identidade nacional
'Americana'"3. De acordo com Pulliam, "a expansão e o
crescimento industrial, a agricultura e a população colocava de uma
forma cada vez mais acentuada exigências nas escolas, exigindo
ainda não só a construção de novas escolas, como também uma
nova concepção de sistema educativo"4, ou seja, "a sociedade exige
muito mais das escolas, como aliás nunca o fizera"5.
Assim, e em resposta às mudanças que se sucediam a um
ritmo avassalador, começa a consolidar-se a consciência em torno
da necessidade de um movimento de formação a nível nacional
que, diga-se em abono da verdade, começara já a despertar por

1
Kliebard, H. (1999) School to work. Vocationalism and the american curriculum,
1876-1946. New York: Teachers College, p., 3.
2
Kliebard, H. (1999) School to work. Vocationalism and the american curriculum,
1876-1946. New York: Teachers College, p., 3.
3
Kliebard, H. (1999) School to work. Vocationalism and the american curriculum,
1876-1946. New York: Teachers College, p., 2.
4
Pulliam, J. (1991) History of Education in America. New York: Macmillan
Publishing Company, p., 83.
5
Good, H. (1956) A history of american education. New York: The Macmillan
Company, p., 17.

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alturas de 1876, impulsionado pela 'Russian Tool Exhibit at


Philadelphia Centennial Exposition'6. O sucesso e as
preponderantes dinâmicas impostas por este movimento ficariam a
dever-se muito a Runkle [Presidente do 'Massachussets Institute of
Technology'] e Woodward [Reitor do 'O'Fallon Polytechnic
Institute at Washington University', em St. Louis, no Missouri].
Ambos tentaram "reformar a educação profissional dos engenheiros
procurando essencialmente introduzir na sua formação um
conhecimento mais prático das ferramentas e dos mecanismos
básicos que era característico daquele período".7
Estamos perante um movimento que inclusivamente,
surgia também como cura social para as crianças delinquentes,
crianças das classes pobres, imigrantes e raças minoritárias e ainda
como a resposta 'socialmente correcta' para a inserção social quer
da comunidade Índia, quer dos Afro Americanos que continuavam
a consolidação da sua liberdade conquistada em 18658. Na
verdade, e nesta cruzada destacaram-se Armstrong [para quem a
formação manual era uma forma de corrigir os defeitos de carácter
dos Afro Americanos], Washington [para quem o a formação

6
Cremin, L (1961) The transformation of the school. Progressivism in american
education, 1876-1957. New York: Vintage Books, p., 23. According to Cremin
"Americans have always loved a fair, and the great Philadelphia Centennial
Exposition of 1876 was one of the best of them".
7
Kliebard, H. (1995) The struggle for the american curriculum, 1893-1958. New
York: Routledge, p., 112.
8
Em relação à temática relacionada com a escravatura, e muito embora, não
caiba aqui muito espaço para a retratar, entendo que a história deveria começar a
interpretar o fim da escravatura mais como uma conquista do escravo do que
como uma dádiva do escravizador, que benemeritamente aboliu um odioso
processo da civilização humana. Com efeito, a titulação que é feita ao fim da
escravatura "Abolição da escravatura" dá a entender que foi mais uma benece
oferecida aos até então considerados sub-seres e não uma conquista substantiva de
uma raça que marcaria determinantemente o percurso civilizacional humano e
obrigaria à construção e desconstrução de novos compromissos sociais, os quais,
grande parte deles, a educação não é insensível.

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manual deveria uma credível independência económica para a


comunidade Afro Americana] e Du Bois [para quem a formação
manual havia adiado o seu verdadeiro dever: contribuir para a
igualdade social].
Novamente, pela educação, os 'norte-americanos' dariam
início a um novo ciclo no projecto social de 'americanização', de
acordo com as novas e voláteis exigências impostas por um
industrialismo que dava os primeiros passos, projecto este que
obviamente iria contar com a oposição da corrente humanista
personificada por Harris e Eliot. Se para o primeiro, a formação
manual era percebida como um perigo, dado que servia "para unir
os críticos do sistema educacional já existente"9, recusando-se
determinantemente a aceitar que a formação manual tivesse a
mesma importância que as "ditas" disciplinas da ciência e da
literatura, para o segundo, o vocacionalismo – etapa ulterior no
processo de formação manual – nem sequer surgia referido no seu
famoso 'Report of the Committee of Ten'10, um dos aspectos que
lhe expôs a muitas críticas, muito embora, Eliot viesse mais tarde a
admitir que a formação manual se constituía como "um elemento
extremamente valioso para o currículo"11.
No entanto, e ciente do enorme poder que possuía a
corrente humanista e consciente de que Harris não cederia com
facilidade às suas 'janelas da alma', Woodward entendia que era
necessário não aniquilar a educação tradicional. Assim, admite ser
sagradamente imperioso realçar que a "a nova educação incluía a

9
Harris, W. (1889) Report of teh Committee on Pedagogics. National
Education Association. Adresses and Procedings, p. 417.
10
Report of the Committee of Ten on Secondary School Studies (1894) National
Education Association. New York. American Book Company.
11
Eliot, C. (1908) Industral education as an essential factor in our national
prosperity. of National Society for the Promotion of Industrial Education. Bulletin
5. New York: The Society, pp., 9-14), p., 10.

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antiga"12, mantendo intactas as partes essenciais da educação


tradicional, avançando com um edifício educativo que englobava
dois ramos – "o ramo da ciências naturais que o currículo
humanista havia menosprezado [e] a formação manual que
completaria a educação antiga13. Além do mais, para Woodward,
não seria impossível um compromisso com Harris, uma vez que a
sua crença acérrima "numa racionalidade pedagógica orientada para
a formação manual" 14 era muito forte, sendo ainda uma via
poderosa para "para mobilar o conhecimento e a experiência,
estabelecendo as premissas essenciais para o raciocínio lógico" 15.
Esta opinião era corruboradda também por Bulter, para quem "a
formação manual consistia em formação mental com as mãos e os
olhos"16.
Não obstante as críticas perpetradas, a formação manual
viria impor-se nas escolas como uma estratégia social que, não
esquecendo de forma alguma os verdadeiros ícones do passado
tradicional, estabeleceria a ponte entre esse e o futuro que se
desenhava com contornos muito distintos. Nas palavras de
Kliebard, a formação manual assumia-se como veículo poderoso
não só "para ressuscitar e preservar os ideais do século XIX, [como
também] como forma de poder fazer frente à nova sociedade
industrializada"17.
12
Woodward, C. (1885) Manual training in general education. Education (5),
pp., 614-626, p., 614.
13
Kliebard, H. (1995) The struggle for the american curriculum, 1893-1958. New
York: Routledge, p., 113.
14
Kliebard, H. (1999) School to work. Vocationalism and the america curriculum,
1876-1946. New York: Teachers College, p., 6
Wodward, Com, (1890) Manual training in education. New York: Scribner &
15

Welford,p., 204
16
Bulter, N. (1888) The argument for manual training. New York: E. L. Kellog,
p., 379.
17
Kliebard, H. (1999) School to work. Vocationalism and the america curriculum,
1876-1946. New York: Teachers College, p., 6
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35

Todavia, estamos na presença de um movimento que se


foi construíndo em torno da ambiguidade. Com efeito, e a título de
exemplo, se uns defendiam a formação manual ancorada à
tentativa de consolidação de um determinado código moral – casos
de Armstrong – e outros assumiam o carácter fundamental da
formação manual como consubstanciadora de prioridades
econômicas – caso de Washington -, o facto é que uns e outros
contribuiriam para a ambiguidade que caracterizou o movimento,
uma vez que foram "capazes de fazer essa mensagem ambígua às
suas audiências18, permeabilidade esta que aliás viria a contribuir,
para a sua vasta aceitação. Assim, "a formação manual, como
reforma curricular, começa por atingir respeitabilidade, depois
proeminência e finalmente aceitação, nos comitês dos líderes
educacionais e no púbico em geral, uma vez que estava associada
com a salvação moral e renovação pedagógica, contudo a
mensagem económica nunca esteve ausente"19. Estavam lançadas
as sementes rumo "ao ideal de eficiência social"20.
Todavia, e tal como salienta Prosser "a educação manual
não atingiu nem podia ter atingido as necessidades da educação
industrial"21. Naturalmente, perante as sempre renovadas
exigências sociais, a formação manual, paulatinamente evoluía para
a educação vocacional, em essência, "a inovação curricular mais
dramática e, de todo, a mais profunda"22. Enquanto que a

18
Kliebard, H. (1999) School to work. Vocationalism and the america curriculum,
1876-1946. New York: Teachers College, p., 22.
19
Kliebard, H. (1999) School to work. Vocationalism and the america curriculum,
1876-1946. New York: Teachers College, pp., 24-24.
20
Kliebard, H. (1995) The struggle for the american curriculum, 1893-1958. New
York: Routledge, p., 107.
21
Prosser, C. (1912) Discussion. National Education Association, Adresses and
Proceedings, 50th Annual Meeting, pp., 928-932, p., 928.
22
Kliebard, H. (1995). The struggle for the American curriculum: 1893-1958. New
York: Routledge, p., 111.

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36

primeira, como reforma educacional, tinha o condão de, não


esquecendo o passado – "a era do artesão independente e a
dignidade do trabalho associado à 'América' pré-industrial"23 –
olhar para o futuro – "a sociedade que havia sido moldada pelo
novo industrialismo"24 –, a segunda "projectou um compromisso
claramente mais explícito com os benefícios econômicos, quer nos
indivíduos, quer na nação"25, não ignorando, contudo, o restauro
das virtudes do passado e o reforço de determinados quadros
tradicionalistas. O apelo ao vocacionalismo vai aumentando
progressivamente e, muito naturalmente, assiste-se a uma viragem
notando que a educação vocacional deixa de fazer parte de "revistas
educacionais relativamente opacas [começando a aparecer
frequentemente como tema privilegiado] na ampla arena social e
política26. Em 189527, nos escombros da depressão econômica que
eclode dois anos antes, surge a 'National Association of
Manufacturers', (NAM) que juntamente com a 'American
Federation of Labour' (AFL) e a 'National Society for the

23
Kliebard, H. (1999) School to work. Vocationalism and the america curriculum,
1876-1946. New York: Teachers College, p., 24.
24
Kliebard, H. (1999) School to work. Vocationalism and the america curriculum,
1876-1946. New York: Teachers College, p., 24.
25
Kliebard, H. (1999) School to work. Vocationalism and the america curriculum,
1876-1946. New York: Teachers College, p., 25.
26
Kliebard, H. (1995) The struggle for the american curriculum, 1893-1958. New
York: Routledge, pp., 116-117.
27
A título de observação, Herbert Kliebard, no seu livro publicado em 1995, The
struggle for the american curriculum, 1893-1958. New York: Routledge, aponta o
ano de 1896 como o do surgimento da National Association of Manufactures.
No entanto, o mesmo autor, numa obra posterior publica em 1999 School to
work. Vocationalism and the america curriculum, 1876-1946. New York: Teachers
College, assinala o surgimento da National Association of Manufactures em
1895. Optámos pela data mencionada na obra recente uma vez que a tem como
temática central o vocational education, ou seja, toda a investigação se orienta
nesse sentido, ao contrário da obra anterior (1995) em que o vocational education
surge abordado pela rama.

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37

Promotion of the Industrial Education', (NSPIE) colocariam


educação vocacional na ribalta do debate curricular. Nesta
conformidade a NAM "faz das políticas educativas uma peça
central das suas deliberações"28 que tendo no modelo alemão o
exemplo a seguir, ia ao encontro daquilo que a partir de 1870
algumas empresas – 'General Electric' e 'Allis Chalmers' – já
haviam começado a fazer: uma mudança na formação do
trabalhadores, iniciando um processo de formação vocacional
organizado e virado para as necessidades da própria empresa29.
Assim, de uma só vez, a educação pública torna-se num
instrumento indispensável para lidar com questões vitais
relacionadas com a nação e com o sucesso individual30.
À semelhança do que aconteceu com a formação manual,
a educação vocacional, enquanto projecto político que necessitava
de uma justificação pedagógica para se constituir como projecto de
identidade nacional, viria a atravessar por momentos de alguma
polêmica e conturbação. Com efeito, e para além de nem todos se
revelarem convencidos da eficácia do modelo alemão aplicado à
realidade 'norte-americana', registre-se não só o eclodir de conflitos
entre patrões, trabalhadores e sindicatos resultantes das normais
preocupações por parte dos trabalhadores [o facto do
vocacionalismo ser controlado pelo patronato, o estigma da
diminuição de salário perante um maior número de mão-de-obra
qualificada, insegurança no posto de trabalho, as constantes
requalificações], como também a querela instalada face às
divergências demonstradas entre os apologistas da educação
industrial e agrônoma, sendo importante destacar os custos sociais

28
Kliebard, H. (1995) The struggle for the american curriculum, 1893-1958. New
York: Routledge, p., 117.
Nelson, D. (1975) Managers and workers: origins of the new factory system in the
29

United States, 1880-1920. Madison: University Of Wisconsin Press.


30
Kliebard, H. (1999) School to work. Vocationalism and the america curriculum,
1876-1946. New York: Teachers College, p., 28.

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38

e econômicos que tal reforma sócio-educativa implicaria, até


porque "a educação vocacional foi sempre muito mais dispendiosa
que qualquer outro tipo ordinário de educação"31.
Em 1906 surge a 'Comission on Industrial and
Technical Education [Douglas Comission]' com o intuito de
"investigar as necessidades de educação de acordo com os diferentes
tipos de destrezas"32, constatando que o sistema educativo se
revelava inadequado às "condições sociais e industriais modernas"33.
No fundo, cristaliza-se ao nível do senso comum que o "currículo
das escolas públicas, com a sua ênfase tradicional nas disciplinas
académicas atingia apenas as necessidades de uma pequena minoria
dos jovens"34 concluindo-se assim que "a educação tradicional não
necessitava de ser suplementada [mas sim] se ser substituída, pelo
menos para a maioria das crianças nos Estados Unidos"35.
Desenhava-se assim a necessidade de um consubstanciado
apoio federal para a nova estrutura de ensino, ou seja, "a questão de
um apoio federal para a educação vocacional, a conjunção dos
interesses da formação comercial e industrial com os dos
agricultores, era quase uma necessidade política"36.
Estavam dados os primeiros passos para a implementação
de um sistema nacional de educação industrial por parte da

31
Snedden, D. (1912) Report of committee on national legislation. National
Society for the Opromotion of Industrial Education (15), 126-134, p., 126.
32
Report of the Massachussets Comission on Industrial and Technical Eduication.
(1906). Boston: Massachussets Comossion on Industrial and Tecnical
Education, pp., 1-6.
33
Op. Cit., pp., 1-6.
34
Kliebard, H. (1999) School to work. Vocationalism and the america curriculum,
1876-1946. New York: Teachers College, p., 32.
35
Kliebard, H. (1999) School to work. Vocationalism and the america curriculum,
1876-1946. New York: Teachers College, p., 35.
36
Kliebard, H. (1995) The struggle for the american curriculum, 1893-1958. New
York: Routledge, p., 124.

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39

'National Society for Promotion of Industrial Education' ao


realizar uma coligação, englobando os interesses mais substantivos
tanto da 'National Association of Manufacturers', 'American
Federation of Labour', quanto da 'American Bankers Assciation',
'United Sates Chamber of Commerce', 'National Metal Trade
Association' e ainda dos sindicatos locais37. Em 1917, e na
sequência dos compromissos atingidos entre as várias forças activas
da sociedade, surge a 'Smith-Hughes Act' que garantia apoio
federal econômico para "a educação vocacional agrícola, comercial
e industrial e economia doméstica"38. Tal como adianta Kliebard
"com dinheiro, poderosos grupos de lobbies, uma liderança
energética em cargos de grande responsabilidade e um público
simpático, a educação vocacional estava bem no caminho de se
tornar na inovação curricular de maior sucesso no século XX"39.
Na linha da frente da corrente vocacionalista, para além
de Finney, Ellwood e Peters, surgem Snedden ["provavelmente o
mais destacado da nova vaga de sociólogos da educação"40] e
Prosser, [que viria mais tarde a assumir-se também como figura
pivot no movimento educacional 'Life Adjustment']
respectivamente Comissário e Comissário Adjunto da educação em
Massachussets. Para Snedden o currículo é "pois claro,
simplesmente, uma série de planificações e especificações explícitas
bem documentadas dos propósitos educacionais dos
conceptualizadores das políticas educativas e curriculares, dirigidos

37
Fones-Wolf, E. (1983) The politics of vocationalism: coalitions and industrial
education in the progressive era. The Historian, 46, pp., 39-55.
38
Kliebard, H. (1999) School to work. Vocationalism and the america curriculum,
1876-1946. New York: Teachers College, p., 113..
39
Kliebard, H. (1995) The struggle for the american curriculum, 1893-1958. New
York: Routledge, p., 124.
40
Kliebard, H. (1995) The struggle for the american curriculum, 1893-1958. New
York: Routledge, p., 95.

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40

para um grupo específico de alunos"41, ou seja, o currículo é "uma


colecção de disciplinas de estudo adequadas às necessidades
educacionais de um grupo de alunos bem definido"42. O
movimento de educação vocacional inseria-se perfeitamente no
modo como Snedden compreendia a escola, ou seja, como uma
"agência de controle social, em que a eficiência social se impunha
como objectivo pleno da educação"43. Para tal, e uma vez que
durante "a última metade do século XIX se assistiu a uma
multiplicação dos propósitos da educação, acompanhado por um
relativo progresso em relacionar tais propósitos com aquela franja
da nossa população onde efectivamente tais propósitos deveriam ser
atingidos"44, adianta Snedden que é urgente o uso adequado do
vocábulo 'objectivo' que deveria implicar "não apenas uma direcção,
alvo, ou carácter qualitativo de uma etapa esperada, mas sim graus
de excelência ou outras medidas quantitativas"45. Assim, e tendo
sempre como escopo, o "desenvolvimento de um cidadão eficiente
cuja competência vocacional contribuiría para a sua eficiência
global"46, o Sneddismo defende a eficiência como estando
"preocupada com a eficácia dos indivíduos na sociedade e quanta

41
Snedden, D. (1925) Planning curriculum research. School and Society, Vol.,
XXII, pp., 259-265, pp., 259-260.
42
Snedden, D. (1920) A digest of educational sociology. New York: Teachers
College Columbia University, p., 237.
43
Drost, W. (1967) David Snedden and education for social efficiency. Madison:
The University of Wisconsin Press, p., 81. Parenteses meu.
44
Snedden, D. (1927) What's wrong with american knowledge of education? In
D. Snedden. What's wrong with american education. Philadelphia: J. B. Lippincott
Company, pp., 36-63, p., 62.
45
Snedden, D. (1927) What's wrong with american knowledge of education? In
D. Snedden. What's wrong with american education. Philadelphia: J. B. Lippincott
Company, pp., 36-63, p., 56.
46
Cf. Drost, W. (1967) David Snedden and education for social efficiency.
Madison: The University of Wisconsin Press, p., 111.

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41

eficiência social poderia ser produzida através da educação"47.


Enquanto inovação curricular, as raízes do Sneddismo devem ser
procuradas sobretudo no pensamento de Spencer [a
problematização do conheciemento], Ross ["um pioneiro no campo
emergente da sociologia"48], Ward [embora rejeite a visão optimista
de Ward, segundo o qual o conhecimento mitigaria as condições de
desigualdade entre os homens, Snedden aceitava, tal como Ward
que o desenvolvimento do intelecto no processo educacional como
subordinado à aquisição de conhecimento"49] Dutton [a escola
como fonte de inspiração para toda a comunidade50] e Taylor.
É com Dutton que publica em 1908 "The
Administration of Public Education in the United Sates", uma
extensa obra que seria preponderante nas duas primeiras décadas do
século XX, na qual Snedden identifica os quatro grandes objectivos
da educação: - bem estar físico, eficiência moral e social, cultura
pessoal e educação vocacional51. No entanto, se em relação a
Dutton, Snedden não se viria a revelar muito apaixonado pela sua
branda noção de eficiência [Dutton desvia-se muito das noções
perfilhadas tanto por Ross, quanto por Taylor], denunciando
assim, uma maior identificação com o pensamento de Ross - para
quem as escolas vocacionais deveriam identificar o mais possível
com as fábricas - o mesmo já não se verifica em relação aos

47
Cf. Drost, W. (1967) David Snedden and education for social efficiency.
Madison: The University of Wisconsin Press, p., 137
48
Cf. Drost, W. (1967) David Snedden and education for social efficiency.
Madison: The University of Wisconsin Press, p., 28.
49
Ward, L. (1883). Dynamic sociology, or applied social science as based upon
statical sociology and the less comple sciences. New York: D. Appleton.
50
Cf. Drost, W. (1967) David Snedden and education for social efficiency.
Madison: The University of Wisconsin Press, pp., 43-44. Segundo o autor,
Samuel Dutton foi escolhido por Snedden para seu adviser no masters program.
51
Cf. Drost, W. (1967) David Snedden and education for social efficiency.
Madison: The University of Wisconsin Press.

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42

restantes. Com efeito, e pelo que diz respeito a Spencer, Snedden,


tal como muito posteriormente viria a suceder com Michael Apple,
constrói a sua rationale apoiada naquilo que ele próprio define
como uma "expansão da questão formulada por Herbert
Spencer"52. Na verdade, entende Snedden que a questão
spenceriana 'What knowledge is most worth?' deveria ser ampliada
nos seguintes termos: "Que tipos [de conhecimento] e qual a
quantidade [de conhecimento]"53, ou seja, para Snedden, a questão
formulada por Spencer deveria ser elaborada nos seguintes termos:
"Que tipos, quantidades e níveis de conhecimento, destrezas,
apreciações, aspirações, atitudes, gostos, ideais e outras qualidades
se revelam como as mais valiosas em termos de grupos de
aprendentes com determinadas capacidades, circunstâncias e
potenciais oportunidades?"54. O seu doutoramento, que teve
Devine como orientador, permitiu-lhe leituras extremamente
cruciais para o desenvolvimento do seu próprio programa de
eficiência social. Snedden, que via a "educação, mais do que nunca,
como uma espécie de 'tratamento' e não como uma questão de
transmissão de uma dada herança cultural"55, acreditava que "o fim
vital da educação repousava em conseguir um elevado grau de
eficiência, eficiência esta que só poderia ser atingida através da
escola. Assim, Snedden, para quem a ciência [tal como para
Spencer] era tida como a religião56, entendia que "a eficiência
52
Snedden, D. (1927) What's wrong with american knowledge of education? In
D. Snedden. What's wrong with american education. Philadelphia: J. B. Lippincott
Company, pp., 363-375, p., 371.
53
Snedden, D. (1927) What's wrong with american knowledge of education? In
D. Snedden. What's wrong with american education. Philadelphia: J. B. Lippincott
Company, pp., 363-375, p., 371.
54
Snedden, D. (1925) Planning curriculum research. School and Society, Vol.,
XXII, pp., 259-265, p., 260.
55
Drost, W. (1967) David Snedden and education for social efficiency. Madison:
The University of Wisconsin Press, p., 77.
56
Bode, B. (1924) Why educational objectives? School and Society, pp., 531-539

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43

deveria ser um produto do currículo"57, e o controlo social era


imprescindível para consegui-lo, através da determinação de
objectivos apoiados numa base científica.
De acordo com Snedden, a necessidade da educação
vocacional "tinha por base as mudanças sociais e econômicas do
momento e a educação vocacional não estava em conflito com a
educação liberal, devendo antes ser vista como uma forma
suplementar desta, uma forma que pode-la-ia inclusivamente
reforçar"58. Assim, entende Snedden, a educação liberal "é aquela
que visa alargar o horizonte intelectual e emocional do indivíduo e
pode ser interpretada como a que se preocupa com o processo de
consumo, por oposição ao produtivo"59. Pelo contrário, a educação
vocacional "é mais antiga do que a liberal, pela simples razão que o
homem sempre teve ocupações envolvendo a necessidade de
maiores ou menores destrezas, através das quais os homens
ganhavam a vida"60 e está muito mais virada para a produção do
que para o consumo, apresentando por isso objectivos distintos61.
Muito naturalmente, para Snedden o vocacionalismo é
uma das premissas para a consubstanciação de uma sociedade
democrática62, uma vez que, não só demonstra ser uma proposta
sócio educativa sensível às multifacetadas vocações patenteadas por

57
Drost, W. (1967) David Snedden and education for social efficiency. Madison:
The University of Wisconsin Press, p., 43.
Snedden, D. (1910) The problem of vocational education. New York: Houghton
58

Mifflin Company, pp., 81-82.


Snedden, D. (1910) The problem of vocational education. New York: Houghton
59

Mifflin Company, pp., 4-5.


Snedden, D. (1910) The problem of vocational education. New York: Houghton
60

Mifflin Company, p., 9.


61
Snedden, D. (1920) A digest of educational sociology. New York: Teachers
College, Columbia University.
62
Snedden, D. (1921) Sociological determination of objectives in education.
Philadelphia: J. B. Lippincott Company.

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44

cada indivíduo, como também é aquela que garante a especialização


eficaz do cidadão. Nas suas próprias palavras "o melhor trabalho na
nossa era é aquele que é dominado pela tendência para a
especialização. A divisão do trabalho é a chave para uma sociedade
moderna eficiente"63. Em essência, Snedden defendia a
conveniência e a possibilidade de uma uniformidade com a
flexibilidade cada vez maior no terreno curricular. Ou seja, o
sistema de servir para um destino provável era a definição de
Snedden para a flexibilidade, o que implicaria que a mobilidade
"repousasse numa preparação mais adequada do indivíduo para o
lugar a ocupar na vida – numa palavra 'eficiência vocacional'"64.

Resistências à eficiência social

A educação vocacional de Snedden viria, no entanto, a


registrar significativa resistência por parte de algumas correntes
situadas no campo educacional em geral e curricular em particular.
Com efeito, Dewey, muito embora "never outlined an explicit plan
for vocational education, nor he did write extensively on the
subject"65 opunha-se ao facto da vocacionalização do currículo estar
a "undermine the most important function of education, the
fostering of intellectual and moral growth". Mais, adiantava Dewey
que um currículo virado apenas para a eficiência técnica faz da
educação "an instrument of perpetuating unchanged the existing
order of society instead of operating as a means of its

63
Snedden, D. (1905) Conditions of developing special teachers of drawing and
manual training in every school. West. J. Education, X, 301-305.
64
Drost, W. (1967) David Snedden and education for social efficiency. Madison:
The University of Wisconsin Press, pp., 121-122.
65
Kliebard, H. (1999) School to work. Vocationalism and the america curriculum,
1876-1946. New York: Teachers College, p., 232.

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45

transformation"66. Acrescenta Dewey que "the kind of vocational


education I am interested is not one which will «adapt» workers to
the existing industrial regime; I am not sufficiently in love with the
regime for that"67. Daí que para Bagley68, Flagg Young69 e Du
Bois70, the vocationalization of the curriculum was an instrument
for perpetuating and reinforcing race, gender, and class lines.
Bagley, apesar de crente no social efficiency, entra em
rota de colisão com Snedden, entendendo que a dicotomia
liberal/consumer education versus vocational/producer education,
como divisões simplistas e com perspectivas redutoras, propondo a
distinção entre specific education e general education71. Bagley
adverte ainda para os riscos da estratificação social veiculado pelo
sneddismo destacando que the liberal education não tinha
necessariamente que seguir os mesmos passos, fins e objectivos que
a vocational education. Adianta Bagley que "a stratified society and
a permanent proletariat" são as bases para a national efficiency
defendido pelos advogados do sneddismo. No entanto, prossegue
"whenever our people have been intelligently informed regarding
what this type of efficiency costs, they have been fairly unanimous

66
Dewey, J. (1916) Democracy and education. An introduction to the philosophy of
education. New York: MacMillan, p., 369.
67
Dewey, J. (1915). Education Vs. tarde-trainintg – Dr. Dewey's reply, The New
Republic, pp., 40-42, p., 42.
68
Bagley, W. (1914) Fundamental distinctions between libereal and vocational
education. National education Association, Adresses and Proceedings, 52nd Annual
Meeting, pp., 161-170.
69
Young, E. (1915) Industrial training. National Education Association. Adresses
and Proceedings, 53red Annual Meting, pp., 125-127.
Du Bois, W., & Dill, A. (1912) The negro american artisan. Atlanta: Atlanta
70

University Press.
71
Drost, W. (1967) David Snedden and education for social efficiency. Madison:
The University of Wisconsin Press, p., 130.

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46

in declaring that the price is too high"72. Também para Hullfish,


Snedden confundira, por completo, o verdadeiro sentido do
significado de democracia e de educação democrática ao espartilhar
a educação liberal da vocacional, não compreendendo a mente
como uma unidade73.
No fundo, Snedden, para quem a função da escola não
era um magistério de transformação da sociedade74, sofria fortes
críticas quer pela teoria educacional que pretendia ver consumada,
quer ainda pela estratificação classista que implicava o seu modelo.
Finney e Ellwood que partilharam tantos pontos de vista com
Snedden, viriam a esboçar uma posição crítica. O primeiro, afasta-
se da perspectiva assistencialista e segregadora de escola,
defendendo que esta deveria lutar pela diluição da injustiça social e
pela consolidação de uma cultura democrática75. O segundo,
entendia que a fundamentação dos objectivos educacionais
propostos por Snedden eram redutores, restringindo-se apenas aos
pratical educational problems76. Para Kilpatrick, o centralismo
eficientista de Snedden conduzia à construção de um ambiente
educacional descrito como um "leveling, stupifying, deadning drift
toward uniformity and burocracy"77. Bode, an educational

72
Bagley, W. (1914) Fundamental distinctions between libereal and vocational
education. National education Association, Adresses and Proceedings, 52nd Annual
Meeting, pp., 161-170.
73
Hullfish, G. (1924) Loking backward with David Snedden. Educational Review,
pp., 61-69.
74
Snedden, D. (1934) Education and social change. School and Society, pp.,
311-314.
75
Finney, R. (1917) Social studies in junior high school, Journal of Education,
pp., 633-634.
76
Drost, W. (1967) David Snedden and education for social efficiency. Madison:
The University of Wisconsin Press, p., 136.
77
Drost, W. (1967) David Snedden and education for social efficiency. Madison:
The University of Wisconsin Press, p., 136.

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philosopher like Dewey, found Snedden's proposal reductive and


usually undemocratic. According to Bode, the separation of
vocational from culture was a letal plan that would lead to the
development of the multiplication of an race/class/gender elite78.
Furthermore, Bode refuse to accept that the scientific approach
was the the only valid source to determine educational aims,
destacando que a democracia deveria ser percebida como "a
progressive humanization of the social order"79. Para Bode, ao
invés de um currículo circunscrito a objectivos cientificamente
determinados, tal como defendia Snedden, era útil que o currículo
não ignorasse a perspectiva histórica80. Counts, associa-se à
perspectiva proposta por Bode, denunciando a selectividade da
proposta curricular veiculada pelo sneddismo, argumentando que
the "school will become an instrument for the perpetuation of the
existing social order than a creative force in society"81. A resposta
de Snedden a toda uma panóplia de críticas não se fez esperar.
Para Snedden, a sociedade, a escola, o currículo atravessavam um
período complicado: "the times are out of join. America is sick"82.
Com o galopante avanço da industrialização o
vocacionalismo evoluiria naturalmente para uma doutrina cada vez
mais apoiada no social efficiency. Nas palavras de Judd "business
has in recent years demanded sweeping changes in education in
order to prepare more efficient workers"83. Mais, "business is eager

78
Bode, B. (1924) Why educational objectives? School and Society, pp., 531-539
79
Bode, B. (1927) Modern educational theories. New York: MacMillan, p., 14
80
Bode, B. (1927) Modern educational theories. New York: MacMillan, p., 119.
81
Counts, G. (1930) The American road to culture. A social interpretation of
education in United Sates. New York: John Day, p., 126.
82
Snedden, D. (1935) Social reconstruction: a challenge to secondary school.
Pennsylvania Schoolmen's Week, pp., 48-54, p., 48.
83
Judd, C. (1923) How modern business may aid in reconstructing the
curriculum. School and Society, pp., 281-287, p., 281

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to see a revision of the school curriculum"84. According to Kliebard


"the impetus for that change came partly from the world of
manufacture" and "given that imperative, manufacturing processes
and industrial management were beginning to suply the metaphors
critically needed to transform the way the curriculum was
conceived and understood"85. According to Davenport "the most
significant educational faxt-o-day is that men of all classes have
come to look upon education as a thing that will better their
condition; and they mean by that, first of all, something to make
their labor more effective and more profitable; and second, they
mean something that will enable them to live fuller lives"86. No
fundo, e tal como acrescenta Krug "the spirit of reform in
American society demanded an explicit social mission for the
schools, and many sought to supply its definition"87. Tal como
adverte Kliebard "of the varied and sometimes frenetic responses to
industrailism and to the consequent transformation of American
social institutions, there was one that emerged clearly dominant
both as social ideal and as an educational doctrine. It was social
efficiency"88.A escola começa a ser vista, cada vez mais, como
mecanismo de controle social estruturando-se na base de critérios
de eficiência. Muito naturalmente "efficiency became more than a
byword in the education world: it became an urgent mission"89,
84
Judd, C. (1923) How modern business may aid in reconstructing the
curriculum. School and Society, pp., 281-287, p., 287
85
Kliebard, H. (1999) School to work. Vocationalism and the america curriculum,
1876-1946. New York: Teachers College, pp., 44-45.
86
Davenport, E. (1909) Education for Efficiency. New York: D. C. Heath & Co.,
Publishers, p., 11.
87
Krug, E. (1964) The shaping of the american high school, 1880-1920. Madison:
The University of Wisconsin Press, p., 245.
88
Kliebard, H. (1995) The struggle for the american curriculum, 1893-1958. New
York: Routledge, p., 77.
89
Kliebard, H. (1995) The struggle for the american curriculum, 1893-1958. New
York: Routledge, p., 77.
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missão esta que percorre as metamorfoses dos postulados da


doutrina de Ross e Taylor.
O primeiro "provided Snedden with the doctrine of social
control" . According to Krug "the term social control, popularized
90

by sociologist Edward Ross (…) represent an idea as old as society


itself"91. Para Ross "society is always in the presence of the enemy,
and social control is, in a significant sense, a compilation of the
weapons of self protection in the arsenal of society. (…) Education
was one of the most effective of those weapons in society's
arsenal"92. Acreditava Ross, que "the system of control, like the
educational system, is charged not with revising the structure or
functions of society, but with shaping individuals"93, ou seja, a
eficiência do sistema social em que se insere o individual, é testado
pelo poder que este tem em moldá-lo. Furthermore, according to
Ross, a escola norte-america estava infestada de um intellectual
bias que impedia a assunção de um sistema eficaz de controle
social94.
O segundo, personifica o outro ingrediente da social
efficiency ideology: "efficiency itself"95. Na verdade, Taylor - para

90
Drost, W. (1967) David Snedden and education for social efficiency. Madison:
The University of Wisconsin Press, p., 28.
91
Krug, E. (1964) The shaping of the american high school, 1880-1920. Madison:
The University of Wisconsin Press, p., 249.
92
Kliebard, H. (1995) The struggle for the american curriculum, 1893-1958. New
York: Routledge, p., 80.
93
Ross, E. (1896) Social control. American Journal of Sociology, pp., 518-534,
pp., 519-520.
94
Ross, E. (1896) Social control. American Journal of Sociology, pp., 518-534,
pp., 519-520.
Kliebard, H. (1995) The struggle for the american curriculum, 1893-1958.
95 95

New York: Routledge, p., 81.

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muitos o "prophet of a new order in industrial society"96 –


acreditava no social efficiency como mecanismo que permitia a
redução do erro [humano] e o consequente aumento de produção97.
Enquanto doutrina social, o social efficiency surgia intimamente
relacionado com a noção e a crença no progresso. Com efeito, e
segundo King, "no discussion of education for social efficiency
would be complete without some attempt to view it in its relation
to these broad problems to race-wealfare and race-improvement"98,
ou seja, "social efficiency, to be genuine, must be worked out with
some reference to its ultimate relation to human welfare"99,
Emerson - que avança com doze princípios que fundamentam a
doutrina da eficiência100 – destaca que "efficiency brings about
greater results with lessened effort"101.
No fundo, "since the opening of the twentieth century,
the evolution of our social order has been proceeding with great
and ever-accelerating rapidity [and] all classes are aspiring to a full
human opportunity. Never before have civilization and

96
Kliebard, H. (1995) The struggle for the american curriculum, 1893-1958. New
York: Routledge, p., 82.
97
Taylor, F. (1911) Principles of scientific management. New York: Harper &
Brothers.
98
King, I. (1913) Education for social efficiency. New York: D. Appleton and
Company, p., 282.
99
King, I. (1913) Education for social efficiency. New York: D. Appleton and
Company, p., 282.
100
"(1) clearly defined idelas; (2) common sense; (3) competent counsel; (4)
Discipline; (5) the fair deal; (6) reliable immediate, adequate and permanent
records; (7) dispatching; (8) standards and schedules; (9) standardized conditions;
(10) standardized operations; (11) written standard-practice instructions; (12)
efficiency reward". Emerson, H. (1917) The twelve principles of efficiency. New
York: The Engineering Magazine Co., pp., 59-367.
101
Emerson, H. (1917) The twelve principles of efficiency. New York: The
Engineering Magazine Co., p., 40.

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humanization advanced so swiftly"102. Ao encontro desta


transformação surge a visão da educação como mecanismo de
controle social e como serviço social, no fundo a visão da educação
determinada pelos padrões do social efficiency103.
Desta forma, o social efficiency surge como
fundamemntado num discurso de rigor, até porque, tal como
destacava Taylor [e também Ross], o ser humano tem uma
tendência natural para a preguiça que deve se combatida
impiedosamente104. According to Taylor, se o homem não faz o
trabalho como deve ser, então faça-se com que ele o faça como
realmente o deve fazer105. Acreditava Taylor que scientific
management garantia que os verdadeiros interesses dos employees
and employers eram precisamente os mesmos106, facto este, que
diluiria o conflito instalado entre ambas as classes, uma vez que os
seus interesses eram mútuos. "The principal object of management
é assegurar a prosperidade mútua de employers and employees o
que significa "not only higher wages than are usually received by
men of his class, but, of more importance, it also means the
development of each man to his state of maximum efficiency"107.

102
Bobbitt, J. (1918) The curriculum. Boston: Houghton Mifflin, Co, p., i.
103
Krug, E. (1964) The shaping of the american high school, 1880-1920.
Madison: The University of Wisconsin Press.
104
Taylor, F. (1903) Shop management. Transictions of the American Society
of;Mechanical Engineers, 24, pp., 1337-1480.
Copley, F. (1923) Frederick W. Taylor: Father of scientific management. Vol 1.
105

New York: The American Society of Mechanical Engineers.


106
Taylor, F. (1911) Scientific Management comprising shop management. The
principles of scientific management; Testemony before the special house committee.
New York: Harper and Brothers.
107
Taylor, F. (1911) Scientific Management comprising shop management. The
principles of scientific management; Testemony before the special house committee.
New York: Harper and Brothers, p., 9.

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Taylor, que retoma alguns dos conceitos propostos por


Halsey, nos finais do século XIX – a necessidade de reestruturação
o sistema salarial tradicional por um pacote de incentivos de acordo
cm os índices de produtividade – vincula-se ao volume de críticas
que se haviam instaurado em torno da ineficiência e das
abordagens caducas que se realizam sobre o mundo industrial
proclamando uma nova doutrina que combatesse o desperdício108.
According to Emerson "this national inefficiency, this national
wastefulness, this national squandering of current and future
material" pode ser remediado através do recurso aos princípios da
eficiência109. Nas palavras de Davenport "no man (...) educated or
uneducated, has a right to be useless"110. Estamos perante uma
corrente social que começa e ter repercussões nos vários quadrantes
da sociedade. Na verdade e tal como documenta Wilentz "what
began as a blueprint for rearranging authority in the workplace
turned into a design for modern living itself"111.
Com efeito, é através da crença na luta contra o
desperdício que as doutrinas de Ross e Taylor começam a
engravidar o sistema educativo. Bennett, para quem "the prime
essential of all good management is elemination of waste"112,
entendia que o combate pelo desperdício nas escolas passava pela
"reorganization of the curriculum by the elimantion of all

108
Nelson, D. (1975) Managers and workers: origins of the new factory system in
the United States, 1880-1920. Madison: University of Wisconsin Press.
109
Emerson, H. (1917) The twelve principles of efficiency. New York: The
Engineering Magazine Co., p., 10.
Davenport, E. (1909) Education for Efficiency. New York: D. C. Heath & Co.,
110

Publishers, p., 15.


111
Wilentz,, S. (1997) Speedy Fred's revolution. New York Review of Books, 20,
pp., 32-37, p., 32.
112
Bennett, H. (1917) School efficiency, a manual of modern school management.
Boston: Ginn and Company, p., 215.

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antiquated materials and all that is not essentially practical"113.


Muito naturalmente, education for efficiency não é propriamente
um "sentiment, it is business; it is not charity, it is
statesmanship"114. Em 1918, "social efficiency as a curriculum
theory was almost at its zenith"115 e em 1920 o currículo norte-
americano estava vocacionalizado e a questão de fundo já não era
que forma tomaria o currículo mas quem o controlaria116. Nas
palavras de Kliebard "1918 was a vintage year in curriculum"117:
"not only because of the appearance of Franklin Bobbit's
The Curriculum, which was the fuirst full length book on
curriculum, but also because of Alexander Inglis' brilliant
Principles of Secoundary Education, which, although not
exclusively a curriculum book, was concerned primarily with
curriculum questions. In 1918 too, the Teachers College Record
published an article by one of the younger members of the
Teachers College faculty, William Kilpatrick. That article, "The
Project Method" was later to have a profound effect on the activity
movement in curriculum. Finally, the Commission on the
Reorganization of Secondary Education issued its Cardinal
Principles of Secondary Education with its widely quoted seven
aims, a report which set the fashion for the consideration of
curricular objectives"118.
113
Bennett, H. (1917) School efficiency, a manual of modern school management.
Boston: Ginn and Company, p., 215.
Davenport, E. (1909) Education for Efficiency. New York: D. C. Heath & Co.,
114

Publishers, p., 12.


115
Kliebard, H. (1995) The struggle for the american curriculum, 1893-1958. New
York: Routledge, p., 99.
116
Kliebard, H. (1995) The struggle for the american curriculum, 1893-1958. New
York: Routledge.
117
Kliebard, H. (1968) The curriculum field in retrospect. In P. Witt (ed).
Technology and curriculum. New York: Teachers College Press, pp., 69-84, p., 71.
118
Kliebard, H. (1968) The curriculum field in retrospect. In P. Witt (ed).
Technology and curriculum. New York: Teachers College Press, pp., 69-84, p., 71.
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Numa linha de raciocínio idêntica posiciona-se Schubert,


para quem "the year 1918 marks a time of certainty that
curriculum field was likely to be quite permanent on the education
horizon"119, graças a três grandes contributos: "William Herald
Kilpatrick published an article entitled "The Project Method" in
Teachers College Record…; "The publication of The Curriculum
by Franklin Bobbit; "NEA's Commission on the Reorganization
of Scondary Education (1918) report entitled Cardinal Principles
of Secondary Education"120. Repare-se também que, por exemplo,
para Tyler "the first time curriculum making was viewd as a
profession was in the twenty-sixth Year Book of the National
Society for the Study of Education. Both parts one and two, in
1927, were devoted to curriculum making theory and practice.
That's where it first became a recognized specialization"121. Pese
embora muitos autores registem Bobbitt como autor de uma
obra122 que dates the birth of the field of curriculum, o facto é que
em rigor a constituição do currículo como "self-conscious field of
study", não se deve exclusivamente a esta ou aquela obra, a este ou
aquele autor, mas sim a um conjunto de estudos, obras e autores
que dariam passos determinantes em relação àquilo que se viria
constituir o campo curricular no século XX.
Com a explosão de estudantes no ensino secundário, nas
duas primeiras décadas do século XX, "who had no aspirantions to
college attendence (...) led to increasing interest in finding
principles for curriculum organization based on perceived student

119
Schubert, W. (1986) Curriculum. Perspective, paradigm and possibility. New
York: MaCMillan Publishing Company, p., 75.
120
Schubert, W. (1986) Curriculum. Perspective, paradigm and possibility. New
York: MaCMillan Publishing Company, p., 75.
121
Tyler, R. (1987) Education: curriculum development and evaluation. An oral
history conducted 1985-1987, by Malca Chall. Regional Oral History Office,
Berkeley: The Brancroft Library, University of California, p., 389.
122
Bobbitt, J. (1918) The curriculum. Boston: Houghton Mifflin.

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needs rather than on the logical organization of the academic


disciplines"123. According to Cruikshank the "break came with the
1918 report Cardinal Principles of Secondary Education"124, in
fact, "a major landmark in secondary education in United
States"125. O documento, elaborado por uma comissão liderada por
um professor de matemática – "Snedden protégé, Clarence
Kingsley"126 –, is "perhaps the most widely list of educational aims
(...) based on Herbert Spencer's approach"127. According to
Pulliam, "while providing some theoretical basis for the later
development of a truly comprehensive secondary school, the
Commission is best known for issuing its seven Cardinal Pinciples
for Secondary Education"128 that became standard objectives for
teachers, school boards and administrators, namely, (1) "health, (2)
command of fundamental processes, (3) worthy home mebership,
(4) vocation, (5) civic education, (6) worthy of leisure, (7) ethical

123
Cruikshank, K. (2000) Integrated curriculum and the academic disciplines:
the NCTE correlated curriculum of 1936. In B. Franklin (ed) Curriculum and
consequence. Herbert Kliebard and the promisse of schooling. New York: Teachers
College Press, pp., 178-196, p., 178.
124
Cruikshank, K. (2000) Integrated curriculum and the academic disciplines:
the NCTE correlated curriculum of 1936. In B. Franklin (ed) Curriculum and
consequence. Herbert Kliebard and the promisse of schooling. New York: Teachers
College Press, pp., 178-196, p., 178.
125
Kliebard, H. (1995) The struggle for the american curriculum, 1893-1958. New
York: Routledge, p., 96.
126
Kliebard, H. (1995) The struggle for the american curriculum, 1893-1958. New
York: Routledge, p., 97.
127
Levine, D. and Ornstein, A. (1981) An introduction to the foundations of
education. Dallas: Houghton Mifflin Company, p., 333.
128
Pulliam, J. (1991) History of education in america. New York: MaCMillan
publishing Company, p., 93.

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character"129. Estamos perante um documento que expressa um


conjunto de goals that "are still to be found in one form or another
in statements of major goals of contemporary education". Como
destaca Kliebard, Kingesley "produced the document that proved to
be the capstone of the quarter-century of furious efforts at
curriculum reform that begun with the Committee of Ten"130. No
fundo, e como salienta Kliebard, Kingsley translated the
conception of general education proposta por Snedden [vocational
educational for the producer and liberal education for the
consumer] into "the famous seven aims [that] followed in rough
outline the conclusions of the effort of Spencer of more than a
half century before to base the curriculum on categories of vital life
activities"131. Snedden viria no entanto a criticar o Report [uma
crítica que teve o cuidado de dizer não estaria no plano pesssoal,
até porque considerava Kingsley "one of the exceptional
educational leaders"] classificando-o de "almost hopelessly
academic" produzido num ambiente de "serene scholastic
aloofness"132, acusando a comissão de se encontrar preocupada com
"the liberal education of the youth"133.

129
Commission on the Reorganization of Secondary Education, Cardinal
Principles of Secondary Education (1918), Bulletin, nº 35. Washington: U.S.
Government Printing Office, pp., 11-15.
130
Kliebard, H. (1995) The struggle for the american curriculum, 1893-1958. New
York: Routledge, p., 97.
131
Kliebard, H. (1999) The liberal arts curriculum and its enemies: the effort to
redefine general education. In M. Early & K. Rehage (eds). EarIssues in
Curriculum: a selection of chapters from past NSSE Yearbooks. Ninety-eighth
Yearbook of the national Society for the Study of Education, Part II. Chicago: The
University of Chicago Press, pp., 3-25, p., 20.
132
Snedden, D. (1919) The cardinal principles of secondary education. School
and Society, 3, pp., 520-527, p., 522
133
Snedden, D. (1919) The cardinal principles of secondary education. School
and Society, 3, pp., 520-527, p., 526

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Três anos após the Douglas Commission Report, Ayres


publica "one of the first avowedly «scientific» treatises in
education"134 – "Laggards in our schools"135. Contrariamente ao
Douglas Report, que esboçava alguma preocupação com o bem
estar de 25 mil crianças para quem a escola pouco ou nada dizia, o
estudo de Ayres, preocupava-se com a retardation and elimination
numa perspectiva de eficiência. As grandes preocupações contidas
no Douglas Comission Report, reduziam-se no tratado de Ayres a
uma lógica de "simple efficiency and cost-effectiveness"136. A
redução de waste passava segundo Ayres pela aplicação de standards
aplicados na indústria137. Como medida ortopédica, Ayres elaborou
um Index of Efficiency "by which school systems could measure
their rates of productivity as a prelude to curricular and structural
change"138.
Um ano após a publicação da obra de Taylor139, Bobbitt
publica um artigo "The elimination of waste in education",
veiculando a importância do scientific management on schooling.
O artigo que se baseia no modelo implantado por Wirt, [definido
por Bobbitt como educational engineer] in a school system in
Gary, Indiana, descreve o modo como os princípios de Taylor se

134
Kliebard, H. (1995) The struggle for the american curriculum, 1893-1958. New
York: Routledge, p., 88.
135
Ayres, L. (1909) Laggards in our schools: a study of retardation and elimination
in city school systems. New York: Charities Publication Committee.
136
Kliebard, H. (1995) The struggle for the american curriculum, 1893-1958. New
York: Routledge, p., 89.
137
Ayres, L. (1909) Laggards in our schools: a study of retardation and elimination
in city school systems. New York: Charities Publication Committee.
Kliebard, H. (1999) School to work. Vocationalism and the american curriculum,
138

1876-1946. New York: Teachers College, p., 51.


139
Taylor, F. (1911) Scientific management comprising shop management, the
principles of scientific manegement, testemony before special house committee. New
York: Harper.

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aplicam ao modelo desenhado por Wirt. A título de exemplo,


Bobbitt para além de relacionar a scientific management com o
time managament, destaca que o quarto princípio de Taylor -
"work up the raw material into the finished product for which it is
best adapted" - aplicado à educação, em geral e ao modelo de Wirt,
em particular significava educar "the individual according to his
capabilities"140 o que requeria "that the materials of the curriculum
be sufficiently various to meet the needs of every individuals in a
community; and that the course of training and study be
sufficuently flexible that the individual can be given just things he
needs"141. Wirt, antigo estudante de Dewey am Chicago, tentou
construir um modelo escolar de acordo com os princípios propostos
por Dewey, ou seja, a escola percebida como um "embrionic
comminity life, active with types of occupations that reflect the life
of the larger society and permeated throughout with the spirit of
art, history and science"142.
Destarte, a tese defendida por Bobbitt, para além de não
ignorar a sua experiência adquirida como instructor na Philipine
Normal School in Manila, do trabalho desenvolvido
posteriormente na Clark University e da experiência conseguida em
Gary, apoiava-se ainda numa analogia ao modelo desenhado por
Taylor ["If (he teorized) the school were a factory, the child raw
material, the ideal adult the finished product, the teacher na
operative, the supervisor a foreman, and the superintendent a
manager, then the curriculum could be thought of as whatever
processing the raw material (the child) needed to change him into

140
Bobbitt, J. (1920) The elimination of waste. Elementary School Teacher, (12),
pp., 259-271, p., 269.
141
Bobbitt, J. (1920) The elimination of waste. Elementary School Teacher, (12),
pp., 259-271, p., 269.
142
Dewey, J. (1900) The school and society. Chicago: University of Chicago Press,
p., 44.

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the finished product (the desired adult)"143], nas necessidades


sociais ["technological growth had created a social interdependence
which required social cooperation for human welfare"144] e ainda na
activity analysis ["instead of starting with an analysis of the
subjects, or like Spencer, with the knowledge that will best prepare
man for his life activities, Bobbitt suggested starting with an
analysis of the life activities themselves"145].
Em 1918, Bobbitt publica "The curriculum" onde
cristaliza a idéia de que "it was not enough to develop new
curricula: there was also a need to learn more about how new
curricula can best be developed"146.
Bobbitt um dos expoentes da social efficiency ideology,
via a escola como um espaço de produção de indivíduos, tal como
uma fábrica, defendendo que "education is a shaping process as
much as the manufacture of steel rails; the personality is to be
shaped and fashioned into desirable forms"147. Education "is a
shaping of more delicate matters, more immaterial things"148, ou
seja, "an enormously more complex process because of the great

143
Seguel, M. (1966) The curriculum field:Its formative years. New York: Teachers
College Press, p., 80
144
Seguel, M. (1966) The curriculum field:Its formative years. New York: Teachers
College Press, p., 83
145
Seguel, M. (1966) The curriculum field:Its formative years. New York: Teachers
College Press, p., 84.
146
McNeil, J. (1977) Curriculum. A compreensive introduction. Boston: Little,
Brown and Company, p., 287.
147
Bobbitt, J. (1913) Some general principles of management applied to the
problems of city school systems. In Twelfth Yearbook of the National Society for the
Study of Education, Part 1. Chicago: University of Chicago Press, p., 12.
148
Bobbitt, J. (1913) Some general principles of management applied to the
problems of city school systems. In Twelfth Yearbook of the National Society for the
Study of Education, Part 1. Chicago: University of Chicago Press, p., 12.

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multitude of aspects of the personality"149. Assim, "education is a


social process (...) is the process of recivilizing or civilizing anew,
each new generation (...) and society's performance of this
recivilizing function we call education"150. Para Bobbitt, "man is
not a mere intellectual reservoir to be field with knowledge. He is
na infinitely complex creature of endlessly diversified action"151, ou
seja, para o autor, a característica mais saliente do homem não é
"his memory reservoir, whether dilled or unfilled, but action,
conduct, behavior. Action is the thing of which his life is made. In
his activity he lives and realizes the ends of his existence"152. O seu
comportamento determina assim a sua vida e o homem
"primarily... is not a knower, but a doer"153.
The curriculum developer tem assim duas funções
importantes a desempenhar - por um lado determinar quais os
desejos do mercado de consumo em termos de produto acabado, e
por outro lado determinar a maneira mais eficiente de produzir o
produto acabado - funções estas intimamente relacionadas com a
noção de controlo de standards e que surge referida nos 2 primeiros
dos 11 principles of management propostos por Bobbitt - (1)
Definite qualitative and quantitative standards must be determined
for the product; (2) Where the material that is acted upon by the
labor processes passes through a number of progressive stages on its

149
Bobbitt, J. (1913) Some general principles of management applied to the
problems of city school systems. In Twelfth Yearbook of the National Society for the
Study of Education, Part 1. Chicago: University of Chicago Press, p., 12.
Bobbitt, J. (1925) Education as a social process. School and Society, Vol.,
150

XXI, nº 538, p., 453.


151
Bobbitt, J. (1924) The new technique of curriculum making. The Elementary
School Journal, Vol., 25, Nº 1, p., 45.
152
Bobbitt, J. (1924) The new technique of curriculum making. The Elementary
School Journal, Vol., 25, Nº 1, p., 45
153
Bobbitt, J. (1924) The new technique of curriculum making. The Elementary
School Journal, Vol., 25, Nº 1, pp., 46-47

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way from the raw material to the ultimate product definite


qualitative and quantitative standards must be determined for the
product at each of these stages"154. Dito e outro modo, the
curriculum developer deve actuar como agente social determinando
as necessidades da sociedade e o produto final da escolarização deve
ir ao encontro das necessidades da sociedade. Daí que prossiga
Bobbitt, "the standards must of necessity be determined by those
that use tem product, not by those who produce it"155, ou seja,
"standards are to be found in the world of affairs, not in the
schools"156.
Nos inícios da segunda década, publica "How to make a
Curriculum"157, onde desenvolve a sua objectives and activities
approach, denunciando mais de 800 objectivos e actividades
relacionadas de acordo com as necessidades dos estudantes, ["ability
to care for teeth, eyes, nose and troath; ability to keep the heart
and blood vessels in normal working conditions... to spelling and
grammar"158]. No fundo, Bobbitt compreendera e a importância da
construção of the process of curriculum making - "we need
principles of curriculum making... We had nor learned that the
studies are means not ends"159 - como primeiro passo para a

154
Bobbitt, J. (1913) Some general principles of management applied to the
problems of city school systems. In Twelfth Yearbook of the National Society for the
Study of Education, Part 1. Chicago: University of Chicago Press, p., 11.
155
Bobbitt, J. (1913) Some general principles of management applied to the
problems of city school systems. In Twelfth Yearbook of the National Society for the
Study of Education, Part 1. Chicago: University of Chicago Press, p., 35
156
Bobbitt, J. (1913) Some general principles of management applied to the
problems of city school systems. In Twelfth Yearbook of the National Society for the
Study of Education, Part 1. Chicago: University of Chicago Press, p., 35.
157
Bobbitt, J. (1922) How to make a curriculum. Boston: Houghton Mifflin.
158
Bobbitt, J. (1922) How to make a curriculum. Boston: Houghton Mifflin, pp.,
14-28.
159
Bobbitt, J. (1918) The curriculum. Boston: Houghton Mifflin, p., 283.

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implementação de uma gestão curricular eficaz. According to


Schubert, Bobbitt defendia que "The curriculum should be
formulated (…) by analyzing activities of adult life and transferring
them into behavioral objectives"160, um processo que viria a ser
conhecido por activity analysis.
No fundo, Bobbitt – "who saw that professional
agreement on a method of discovery is more important than
agreement on the details of curriculum content" – elabora um
método que ajuda a definir the curriculum making process, método
esse que passa pela analysis of human experience ["he first step in
curriculum-making … is to separate the broad range of human
experience into major fields"], pelo job analysis ["he second step is
to break down the fields into their more specific activities], pelo
deriving objectives ["the third step is to derive the objectives of
education"], por selecting objectives ["the fourth step is to select
from the list of objectives those which are to serve as the basis for
planning pupil activities"] e ainda por plannining in detail ["the
fifth step is to lay out the kinds of activities, experiences and
opportunities involved I attaining the objectives"]161.
Para Bobbitt o currículo caracteriza-se pela "that series of
things which children and youth must do and experience by way of
developing abilities to do the things well that make up the affairs of
adult life"162, pese embora não ingnore que as actividades e
experiências das crianças não acontecem todas no domínio escolar,
tal como aliás deixa transparecer na definição que propõe para
currículo:
"The curriculum may, therefore, be defined in two ways:
it is the entire range of experiences, both undirected and directed,

160
Schubert, W. (1986) Curriculum. Perspective, paradigm and possibility. New
York: MaCMillan Publishing Company, p., 75.
161
McNeil, J. (1977) Curriculum. A compreensive ntroduction. Boston: Little,
Brown and Company, p., 290.
162
Bobbitt, J. (1918) The curriculum. Boston: Houghton Mifflin, p., 42.

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concerned in unfolding the abilities of the individual; it is the


series of consciously directed training experiences that the schools
use for completing and perfecting the unfoldment. Our profession
uses the term usually in the latter sense. But as education is
coming more and more to be seen as a thing of experiences, and as
the work-and-play-experiences of the general community life are
being more and more utilized, the line of demarcation between
directed and undirected experience is rapidly disappearing.
Education must be concerned with both, even though it does not
direct both"163.
Deste modo, e de acordo com o princípio da scientific
management, the curriculum purpose repousava na determinação
do conhecimento mais substanttivo para cada subject,
desenvolvendo-se em seguida as mais variadas actividades na qual o
formando se treinaria para atingir os propósitos entretanto
definidos. Claramente para Bobbitt the curriculum is "the mosaic
of full-formed human life"164.
Também para Charters, o currículo era compreendido
como uma series of objectives that students must attain by way of a
series of learning experiences165. No entanto, "it was through the
improvment of teaching that Charters became interested in the
curriculum, not like Bobbitt, trough the improvement of the
manegement of education"166. Charters "analyzed the life activities
for their knowledge content, not for needed human abilities as did
Bobbitt"167. Muito embora, tenha enunciado um método of
curriculum making muito semelhante ao de Bobbitt, o facto é que

163
Bobbitt, J. (1918) The curriculum. Boston: Houghton Mifflin, p., 43.
164
Bobbitt, J. (1918) The curriculum. Boston: Houghton Mifflin, p., 43.
165
Charters, W. (1923) Curriculum and construction. New York: MacMillan.
166
Seguel, M. (1966) The curriculum field: Its formative years. New York:
Teachers College Press, p., 94
167
Seguel, M. (1966) The curriculum field: Its formative years. New York:
Teachers College Press, p., 94

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Charters viria a divergir de Bobbitt na ênfase que conferiu "to


ideals and systemized knowledge in determining the content of
curriculum"168. Para Charters the curriculum agrupava ideals and
activities and unlike Bobbitt, deu especial atenção ao
conhecimento no seu método de curriculum making169.
Charters denuncia a situação de crise no currículo
apelando a uma reforma de acordo com os princípios defendidos
pela doutrina do social efficiency, ou seja, havia que retirar ao
currículo o que era inútil, colocando em seu lugar o que fosse
[socialmente] útil, implicando isto uma análise [o mais detalhada
possível] sobre a vida humana e respectivos ideais que controlam
tais actividades170. More than Bobbitt, Charters "devoted himself
to the actual task of activity analysis in a variety of fields"171.
Charters defendia que a sobrevivência de determinado
conhecimento se devia ao facto desse conhecimento atingir as
necessidades humanas, implicando isto o desenvolvimento de um
método criterioso de aquisição desse mesmo conhecimento172.. Nas
palavras de Kliebard "the modus operandi that became associated
with the major curriculum leaders like Bobbitt and Charters can
easily be identified as activity analysis, but beyond the technical
process lay a social doctrine sometimes vigorously proclaimed,
sometimes half expressed. The doctrine was social efficiency"173 que
168
McNeil, J. (1977) Curriculum. A comprehensive introduction. Boston: Little,
Brown and Company, p., 291.
Charters, W. (1923) Curriculum construction. New York: MacMillan, pp., 103-
169

106.
170
Kliebard, H. (1995) The struggle for the american curriculum, 1893-1958. New
York: Routledge.
171
Kliebard, H. (1995) The struggle for the american curriculum, 1893-1958. New
York: Routledge, p., 101.
172
Charters, W. (1901) Methods of teaching: developed from a functional
standpoint. Chicago: Row, Peterson and Co.
173
Kliebard, H. (1968) The curriculum field in retrospect. In P. Witt (ed).
Technology and curriculum. New York: Teachers College Press, pp., 69-84, p., 75.
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viria a impor a necessidade da social utility of the school subjects.


Daí que, the social efficiency ideology se apoiasse na dicotomia
curricular of school subjects: "the academic and the practical"174.
Todavia, os defensores do social efficiency viriam a
enfrenta muitas críticas. Para Bode o social efficiency ideology não
representava a resposta ideal para o sistema educativo. Segundo o
autor, as proposta de Bobbitt, Charters e Snedden revelam
respectivamente um silenciar "the ideal of progressively changing
social order"175, uma aplicação directa do princípio de Taylor à
educação e ainda uma perspectiva de determinação sociológica dos
objectivos educacioais, aspectos de todo questionáveis até porque,
destaca Bode, a democracia não deve conduzir a um ensino que
[apenas] responde às condições sociais existentes. A democracia é a
progressiva humanização da ordem social176. Counts, tal como
Bode, denuncia o modo como se efectua a selecção dos objectivos
educativos, salientando que os mesmos reflectem apenas os
interesses dominantes da cultura americana. Para Counts "the
inevitable consequence is that the school will become an
instrument for the perpetuation of the existing social order rather
than a force in society"177.
Para Kliebard, Bobbitt revela ainda alguma ambiguidade
na sua teorização curricular. Com efeito, se em 1926 Bobbitt
refere que a "education in not primarily to prepare for life at some
future time. Qite the reverse; it purposes to hold high the current
living, … In a very true sense, life cannot be prepared for. It can

174
Kliebard, H. (1968) The curriculum field in retrospect. In P. Witt (ed).
Technology and curriculum. New York: Teachers College Press, pp., 69-84, p., 77.
175
Bode, B. (1927) Modern educational theories. New York: MacMillan, p., 79
176
Bode, B. (1927) Modern educational theories. New York: MacMillan.
177
Counts. G. (1930) The american road to culture. A social interpretation of
education in the United States. New York: John Day. p., 126.

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only be lived"178 em 1936 admite que "while there are general


giding principles that enable parents and teachers to forsee in
advance the long general course that is normally run, yet they
cannot forsee or foreknow the specific and concrete details of the
course that is to be actualized"179.
Além do mais, the social efficiency ideology está
completamente inflamada de padrões de segregação. According to
Levine "we must stop teaching the «average» child, the genius and
the laggard cannot learn willy-nilly. We must also formulate a
curriculum for these types of children"180, cristalizando-se assim a
noção de uma school as a selective agency, ou seja, e de acordo com
King, "there are many forces at play in society that it is not
desirable should appear in the school. This is partly due to the fact
that society is far from perfect"181. Tal segregação verificar-se-ia
não só ao nível das dinâmicas de classe, como também de género.
Com efeito, Bobbitt, viria também a defender a necessidade de um
determinado tipo de gender segregation, uma vez que boys and girls
requerem diferentes tipos de liderança, ou seja, "boys require
masculine leadership in many of their activities and the girls
femine leadership"182. Para Bobbitt e Charters, homem e mulher
tinham destinos sociais bem distintos. According to Charters – que

178
Bobbitt, J. (1926) The orientation of the curriculum maker. In The
foundations and technique of curriculum construction. Twenty-Sixth Yearbook of
the National Society for the Study of Education, Part II, Bloomington: Public
School Publishing Co, pp., 41-55, p., 43.
179
Bobbitt, J. (1934) A summary theory of the curriculum. Society for Curriculum
Study News Bulletin, 5 (12), pp., 2-4, p., 4.
180
Levine, A. (1917) Better schools thru scientific management. Educational
Foundations, Vol. XXVIII, 10, pp., 593-596, p., 594.
King, I. (1913) Education for social efficiency. New York: D. Appleton and
181

Company, p., 178.


182
Bobbitt, J. (1912) The elimination of waste in education. Elementary School
Teacher, 12, pp., 259-271, pp., 270-271.

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chegou a desenhar um currículo para homemakers183 - "we should


define curriculum on the basis of what people are going to do"184,
ou seja, "the social efficiency educators were primarily concerned
with efficient performance in a future social role", posição esta bem
distinta de Hall "who should consider interest to be a crucial
criterion in determining a curriculum".
In September 1918, "the most dramatic event in the
evolution of the movement to reform the curriculum"185 was the
appearance of an article de Kilpatrick published in Teachers
College Press: "The project method". Kilpatrick, a "sharply critical
of tradicional education"186, apresenta uma "clear alternative to the
reforms being promoted by the social efficiency interest group".
Propõe a "conception of wholehearted purposeful activity
proceeding in a social environment"187, ou seja a sua proposta tem
claramente um propósito social não se centrando apenas na
criança. Tal propósito, atravessa quatro etapas – purposing,
planning, executing, and judging – e passa pela consciencialização
de que the child had to learn, to search, compare, think why and
finaly makes his own decision, enquanto que o professor serve as a
guide, but not as a source of information or a recipiente of

183
Charters, W. (1926) Statement. In G. Whipple (ed) The foundations and
technique of curriculum construction, Part II. The foundations of curriculum
making. The Twenty-Sixth Yearbook of the National Society for the Study of
Education. Bloomington: Public School Publishing
184
Charters, W. (1926) Curriculum for women. Bulletin of the University of
Illinois, 23 (27), pp., 327-330, p., 327.
185
Kliebard, H. (1995) The struggle for the american curriculum, 1893-1958. New
York: Routledge, p., 137.
186
Cremin, L (1964) The transformation of school. Progressivism in american
education, 1876-1957. New York: Vintage, p., 217.
187
Kilpatrick, W. (1918) The project method. Teachers College Record, 19, pp.,
319-335, p., 320.

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knowledge188. Kilpatrick contrariamente à posição veiculada por


Bobbitt e Charters, entendia que a educação deveria ser
considerada "as life itself and not as mere preparation for later
living"189, acrescentando que durante anos os americanos
"increasingly desired that education be considered as life itself and
not as a mere preparation for later living"190.
Em essência, Kilpatrick's project method "become the
major alternative to scientific curriculum making for those
reformers who saw school's traditional curriculum as sadly
irrelevant to modern times"191. Tanto para Bode, quanto para
Childs Kilpatrick foi considerado respectivamente como inovador e
como portador de idéias novas, muito embora Bode não hesitasse
em referir que a Kilpatrick's definition "wholehearted purposeful
activity" se confundia de algum modo com a noção de interesse192.
Também Bagley se revelava céptico perante a proposta de
Kilpatrick uma vez que the prime function of education was "to
place the child in possession of his spiritual heritage"193.
No entanto, a crítica mais bem elaborada e poderosa vem
de Kliebard. Apoiado no raciocínio de Lovejoy, para quem os
homens que determinaram o padrão intelectual nas duas primeiras
décadas do século XX caracterizavam-se por "espirits simplistes –
minds which habitally tend to assume that simple solutions can be

188
Kilpatrick, W. (1926) Foundations of education. New York: MaCMillan, p.,
213.
189
Kilpatrick, W. (1918) The project method. Teachers College Record, 19, pp.,
319-335, p., 323.
190
Kilpatrick, W. (1918) The project method. Teachers College Record, 19, pp.,
319-335, p., 323.
191
Kliebard, H. (1995) The struggle for the american curriculum, 1893-1958. New
York: Routledge, p., 141.
192
Bode, B. (1927) Modern educational theories. New York: MaCMillan, p., 142.
193
Bagley, W. (1921) Projects and purposes in teaching and learning. Teachers
College Record, 22, pp., 288-297, p., 292.

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found for the problems they delt with"194. Tal presunção de


simplicidade leva a que questões extremamente complexas como
"What knowledge is of most worth" sejam tratadas "by easy means
as observing and couting and measuring, and if worse comes to
worse, by consensus"195. Acrescenta ainda Kliebard [ainda apoiado
no raciocínio de Lovejoy] que "if anything characterizes the
thinking of early curriculum specialists and, to some extent our
own thinking, it is the desire to enumerate and particularize, hence
our faith in the six principles of good school-community relations
or the four or five or nineteen steps in curriculum development"196.
É exemplo desta perspectiva, os livros de Bobbitt "How to make a
curriculum" com centenas de objectivos discriminados, e "The
curriculum" na qual estende toda a parafernália da doutrina social
efficiency:
"the central theory is simple. Human life, however varied,
consists in the performance of specific activities. Education that
prepares for life is one that prepares definitely and adequately for
these specific activities. However numerous and diverse they may
be for any social class, they can be discovered. This requires only
that only one go out into the world of affairs and disciver the
particulars of which these affairs consist. These will show the
abilities, atitudes, habits, appreciations, and forms of knowledge
that man need. These will be the objectives of the curriculum.
They will be numerous, definite, and particularized. The
curriculum will then be that series of experiences which children
and youth must have by way of training those objectives... that
series of things which children and youth must do and experience
194
Lovejoy, A. (1936) The great chain of being. Cambridge: Harvard University
Press, p., 7.
195
Kliebard, H. (1968) The curriculum field in retrospect. In P. Witt (ed).
Technology and curriculum. New York: Teachers College Press, pp., 69-84, p., 73.
196
Kliebard, H. (1968) The curriculum field in retrospect. In P. Witt (ed).
Technology and curriculum. New York: Teachers College Press, pp., 69-84, pp.,
73-74

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by way of developing abilities to do the things well that make up


the affairs of adult life; and to be in all respects what adults should
be"197.
Nas palavras de Kliebard "in one passage, is the
quintessence of early curriculum thinking: the simplistic approach
to a complex problem, the strong emphasis on specification and
enumeration, even the suggestion of a differentiated curriculum for
different social classes"198. Em essência, the social efficiency
ideology lutava contra aquilo que Ellwood denominou por
"education...as soft affair", ou seja, uma educação "very far from
furnishing the discipline which life requires"199. Para tal, e uma vez
que "education is a mass of confliting principles (…) strange welter
of incongruous theories and educational aims that are hardly
recognizable because of the painful lack of a common terminology,
and yet, psychology is a science everybody knows – only it is told in
the language that nobody understands"200, os apologistas do social
efficiency perante um instrumento social e cultural como é o caso
do currículo optam por soluções simplistas ignorando que tinham
em mãos uma utensílo perigoso, castrador de tantos presentes e
futuros a milhares e milhares de gerações. É neste sentido que
entendemos que o currículo nas mãos dos social efficiency
educators se converteu numa arma letal construída com base na
linearidade dos argumentos que inflelizmente foram conseguindo
impor e que muitos deles se encontram ainda encrostados nas
vísceras curriculares deste fim de século. Curiosamente seria
mesmo graças a tal simplicidade, por oposição por exemplo ao

197
Bobbitt, J. (1918) The curriculum. Boston: Houghton Mifflin, p., 42.
198
Kliebard, H. (1968) The curriculum field in retrospect. In P. Witt (ed).
Technology and curriculum. New York: Teachers College Press, pp., 69-84, p., 74
199
Ellwood, C. (1914) Our compulsory education laws, and retardation and
elimination in our public schools. Education, pp., 572-576, p., 572.
200
Levine, A. (1917) Better schools thru scientific management. Educational
Foundations, Vol. XXVIII, 10, pp., 593-596, p., 594.

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modelo conceptual de Dewey [a teoria de recapitulação] e de Hall [a


teoria da culture-epoch] que, de acordo com Kliebard, viria a
contribuir para a sua implementação no século XX. Era tudo...
simples. Havia apenas que determinar objectivos, reduzi-los a uma
série de etapas uma ideia aliás clone do taylorismo201. Esta noção
de simplicidade que se encontra bem imbuída no cardinal
Principles of Secondary Education, viria a ser "a fundamental
assumption in subsequent work in curriculum"202.
Fundamentalmente, Bobbitt and Charters, que viveram
"lifed in auspicious times – mental discipline as a theoretical basis
for the curriculum was almost dead by the early of twentieth
century"203, assumiram-se como os grandes impulsionadores of the
behavioral and scientific movements in curriculum. Um e outro
surgem, de algum modo, numa linha de continuidade face aos
trabalhos desenvolvidos por Spencer e Rice e estabelecem a ponte
entre estes e aquilo que uns anos mais tarde viria a ser conhecida
por Tyler rationale.
Nas palavras de Kliebard, "proceeding from the root
mataphor of the school as a factory and the curriculum as a
production process, school children became «raw material» and the
teacher the overseer of the production process, making sure that
the products were constructed according to the specifications laid
down and with a minimum of waste" 204. No entanto a oposição foi
sendo sempre forte (social reconstructionism).

201
Kliebard, H. (1995) The struggle for the american curriculum, 1893-1958. New
York: Routledge, p., 100.
202
Kliebard, H. (1968) The curriculum field in retrospect. In P. Witt (ed).
Technology and curriculum. New York: Teachers College Press, pp., 69-84, p., 75.
203
Kliebard, H. (1975) The rise of scientific curriculum making and its
aftermath. Curriculum Theory Network, 5 (1), pp., 27-38, p., 27.
Kliebard, H. (1999) School to work. Vocationalism and the american curriculum,
204

1876-1946. New York: Teachers College, p., 53

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João M. Paraskeva é professor da Universidade do Minho –


Portugal.

Recebido em: 11/09/2007


Aceito em: 20/01/2008

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A TRAJETÓRIA PROFISSIONAL DE UMA
EDUCADORA: MARIA GUILHERMINA E A
PEDAGOGIA NORTE-AMERICANA 1
Carla Simone Chamon

Resumo
Este artigo é um relato historiográfico da trajetória profissional de
Maria Guilhermina Loureiro de Andrade (1839-1929), professora,
escritora e tradutora que atuou no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas
Gerais na segunda metade do século XIX e início do século XX. Seu
objetivo é lançar luz sobre a trajetória e as idéias dessa educadora, cuja
atuação foi marcada por sua opção pela fé reformada e por uma
prática e reflexão no campo da educação orientada para os padrões
pedagógicos norte-americanos.
Palavras-chave: trajetória profissional, padrões pedagógicos norte-
americanos, protestantismo.

THE PROFESSIONAL LIFE OF AN EDUCATOR: MARIA


GUILHERMINA AND THE NORTH AMERICAN
PEDAGOGY
Abstract
This article is a historiographical report on the professional life of
Maria Guilhermina Loureiro de Andrade (1839-1929). She worked
as a teacher, writer and translator in Rio de Janeiro, São Paulo and
Minas Gerais during the second half of the XIX and in the early XX
century. The purpose of this article is to shed light on the life an
intelectual/teacher whose work was distinguised by her decision to
adopt a presbiterian reformed faith and because she focused her
practice and reflexions on the educational field based on North
American pedagogical standarts.
Keywords: professional life, North American pedagogical standarts,
protestantism.

1
Esse texto é parte modificada das reflexões desenvolvidas na minha tese de
doutorado intitulada Maria Guilhermina Loureiro de Andrade: a trajetória
profissional de uma educadora, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em
Educação da FaE/UFMG, em 2005, sob a orientação do professor doutor
Luciano Mendes de Faria Filho.

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LA TRAYECTORIA PROFESSIONAL DE UMA
EDUCADORA: MARIA GUILHERMINA Y LA
PEDAGOGIA NORTE-AMERICANA.
Resumen
Este artículo es um relato historiográfico de la trayectória profesional
de Maria Guilhermina Loureiro de Andrade(1839 -1929), profesora,
escritora y traductora que actuó en Rio de Janeiro, San Paulo y Minas
Gerais en la segunda mitad del siglo XIX e início del siglo XX. Su
objetivo es lanzar luz sobre la trayectória y las ideas de esa educadora,
cuya actuación fue marcada por su opción por la fé reformada y por
una práctica y reflexión en el campo de la educación orientada para los
padrones pedagógicos norte-americanos.
Palabras clave: trayectória profesional, padrones pedagógicos norte-
americanos, protestantismo.

LE PARCOURS PROFESSIONNEL D'UN EDUCATEUR:


MARIA GUILHERMINA ET LA PÉDAGOGIE NORD-
AMÉRICAINE
Résumé
Cet article est le rapport historiographique du parcours professionnel
de Maria Guilhermina Loureiro de Andrade (1839-1929), professeur,
écrivain et traductrice qui a travaillé à Rio de Janeiro, à São Paulo et
à Minas Gerais dans la deuxième moitié du XIXème siècle et au début
du XXème siècle. Son but est celui d'éclairer l'itinéraire et les idées de
cet éducateur dont le travail a été marqué par son choix de la foi
réformée et d'une pratique et d'une réflexion, dans le domaine de
l'éducation, orientées vers les modèles pédagogiques nord-américains.
Mots-clés: parcours professionnel, modèles pédagogiques nord-
américains, protestantisme.

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Maria Guilhermina Loureiro de Andrade não é um nome


ausente quando se trata de historiografia da educação brasileira.
Muitos trabalhos, que se debruçam sobre o final do século XIX e
início do XX, citam ou fazem referências ao seu nome e à sua
atuação no campo educacional. A começar por Fernando de
Azevedo (1976, p.140), em A Transmissão da Cultura:

Desde 1890 (...) entra a escola de formação de professores


primários em fase nova – uma das mais brilhantes de sua
história – sob a orientação de Antônio Caetano de
Campos, assistido em seu esforço renovador por Maria
Guilhermina Loureiro de Andrade que esteve quatro anos
estudando nos Estados Unidos e Miss Márcia Browne, ex-
diretora de uma Escola Normal em São Luís,
Massachusetts (...)

passando por Venâncio Filho (1946), Samuel Pfromn Netto


(1974), Maria Lúcia Hilsdorf Barbanti (1977), Terezinha
Collichio (1976), Tizuco Kishimoto (1986), Casemiro dos Reis
Filho (1995), Rosa Fátima de Souza (1998), Carlos Monarcha
(1999), Luciano Mendes de Faria Filho (2000), Maria do Rosário
Mortatti (2000), Heloísa Villela (2000), Moisés Kuhlmann Júnior
(2000), Maria Helena Câmara Bastos (2001), Geysa Abreu
(2003) entre outros2.
Na maior parte desses trabalhos, Maria Guilhermina é
apenas citada ou são parcas as referências a seu respeito e seu nome
aparece, em geral, para corroborar a tese da influência dos
processos norte-americanos de ensino na Reforma que se deu em
São Paulo, no princípio do período republicano. Ela é citada,
então, como uma professora que passou algum tempo estudando
nos Estados Unidos, sendo por este motivo, convidada por
Caetano de Campos a tomar parte na reforma da instrução pública

2
Esta revista, na sua edição nº 8 (set. 2000), traz como imagem de capa, a capa
do Primeiro Livro de Leitura, escrito por Maria Guilhermina A revista não atribui
autoria à imagem, nem cita a origem da mesma.

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paulista iniciada no ano de 1890, como diretora da escola modelo


feminina, anexa à Escola Normal. Em pelo menos cinco dos
autores listados anteriormente3, aparece a citação de uma carta,
transcrita nas memórias de um ex-aluno da referida escola paulista
- João Lourenço Rodrigues - na qual Caetano Campos contava a
Rangel Pestana sobre a contratação de Guilhermina:

Depois de uma luta que talvez lhe possa contar um dia,


descobri por intermédio de Dr. Lane, da Escola
Americana - a quem ficarei eternamente grato pelo muito
que tem se interessado pela êxito de nossa reforma - uma
mulher que mora aí no Rio, adoentada, desconhecida, e
que esteve quatro anos estudando nos Estados Unidos. É
uma professora, diz Lane, como não há segunda no Brasil
e como não há melhor na América do Norte. Estudou lá,
sabe todos os segredos do método, escreve compêndios,
sabe grego, latim, em suma é a avis rara que eu buscava.
Escrevi-lhe. Mostrou-se boa alma, com grande família a
sustentar e não podendo vir para cá senão com 500$000
mensais. No mais, muito entusiasmada pela reforma.
Consegui do Prudente o contrato. Confesso que estou
cativo dele. Como vê não é sem razão. A mulher do Rio
(D. Maria Guilhermina Loureiro de Andrade) vem, pois,
reger a aula de meninas da escola-modelo. Chegará antes
do fim do mês (RODRIGUES, 1930: 192).

Chama a atenção nesse relato o adjetivo – avis rara –


empregado por Caetano de Campos para designar Maria
Guilhermina, mulher desconhecida, mas que havia estudado nos
Estados Unidos, era perita no método intuitivo, escrevia
compêndios, além de possuir vasto conhecimento, incluindo
saberes que poucos dominavam naquela sociedade, como grego e
latim. Essa não era uma situação comum em fins do século XIX, o
que nos leva a perguntar, entre outras coisas, o que

3
Barbanti (1977: 181); Reis Filho (1995: 57); Monarcha (1999); Faria Filho
(2000: 101); Abreu (2003: 125).

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permitiu/possibilitou essa sua inserção singular no campo


educacional brasileiro nesse período.
Procurando, então, compreender algumas de suas
práticas e de suas idéias que foram postas em circulação em fins do
século XIX e início do XX e que fizeram dela, para seus
contemporâneos, uma avis rara, o que se pretende aqui é construir
um relato historiográfico da sua trajetória profissional. Como
veremos, a trajetória de Maria Guilhermina (1839-1929),
professora, diretora, escritora e tradutora que atuou no Rio de
Janeiro, São Paulo e Minas Gerais entre meados do século XIX e
início do XX, foi fortemente marcada pela sua interlocução e sua
prática orientada para os padrões pedagógicos norte-americanos.
Nesse sentido, o que objetivo aqui é lançar luz sobre alguns
aspectos da trajetória dessa educadora, buscando pelas condições
sócio-históricas que tornam inteligíveis essa sua escolha no interior
do campo educacional.
É preciso que se diga que a noção de trajetória não tem
aqui o sentido de caminho, estrada ou percurso a ser percorrido,
dado de antemão, restando ao sujeito apenas percorrê-lo, como se a
vida fosse apenas um desenrolar de acontecimentos num espaço
determinado. Como ressalta Bourdieu (1996, p. 183), tomar a
trajetória de uma vida como "uma corrida, um cursus, uma
passagem, uma viagem, um percurso orientado, um deslocamento
linear, unidirecional", com começo, meio e fim (no sentido de
término e de finalidade), seria aceitar a história como mera
sucessão de acontecimentos. Contrariando esse entendimento é que
a noção de trajetória que sustenta este breve relato parte do
pressuposto de que tanto o sujeito quanto o espaço social que ele
ocupa são múltiplos, variados, criados e recriados incessantemente
e só existem em relação um com o outro, não podendo, por isso,
ser tomados como elementos separados de uma mesma operação.
O espaço social, o sujeito e sua trajetória são um "vir-a-ser", sendo
antes o resultado do percurso, das escolhas, das experiências
vividas, das relações estabelecidas do que o ponto de partida; não

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estando dados e prontos a priori, eles são a própria história e não


condição para seu desenrolar.
Nesse sentido, a trajetória e o sujeito que a "percorre" são
fruto das experiências vividas no tempo sócio-histórico. Essa
experiência, entretanto, não é a explicação da história, de uma vida
ou de um grupo, devendo, por isso, ser historicizada (Scott, 1999,
p. 27). Escrever, pois, sobre Maria Guilhermina é tentar
compreender como uma vida se constitui por meio de diferentes e
inúmeras experiências – de gênero, de religião, por exemplo –,
desnaturalizando essas experiências e buscando explicá-las
historicamente, apontando para as condições nas quais elas se
produziram e para as redes de sociabilidade nas quais se
inscreveram. Como aponta Jean François Sirinelli (2003), os
indivíduos se organizam em grupos que partilham uma
sensibilidade cultural ou ideológica e afinidades difusas, sendo
necessário ao historiador restituir o indivíduo não ao seu contexto
geral e abstrato, mas à sua rede de relações concretas4. Relações
estruturadas em rede que falam de lugares mais ou menos formais
de aprendizagem e de troca, de "laços que se atam", de contatos e
articulações fundamentais. Ao mesmo tempo, a noção de rede
remete ao "microcosmo" particular de um grupo: "As 'redes'
secretam, na verdade, microclimas à sombra dos quais a atividade e
o comportamento dos intelectuais envolvidos frequentemente
apresentam traços específicos" (SIRINELLI, 2003, p. 252) 5.
Partindo dessas considerações, a trajetória profissional de
Maria Guilhermina vai ser aqui (re)construída a partir de seu

4
Essa forma de compreender e construir a trajetória de um indivíduo tem sido
profícua em estudos sobre trajetórias de vida. No caso da história da educação, ver
Mirian Warde (2003).
5
Enquadramento necessário para a compreensão de um indivíduo e seu grupo,
esse procedimento não descarta a compreensão da sociedade mais ampla na qual
esse indivíduo se insere. Se o indivíduo não pode ser pensado fora de sua rede de
relações concretas, estas, por sua vez, não dispensam a compreensão das relações
sociais mais amplas.

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pertencimento religioso e das redes de relações que ele implicou.


Rede que não determinou de modo exclusivo e mecânico a sua
trajetória, mas que funcionou como um quadro de referência e me
permitiu situar e compreender suas idéias, escolhas e ações.

A trajetória e sua chave de leitura

Maria Guilhermina Loureiro de Andrade nasceu em 5 de


abril de 1839, em Minas Gerais, na cidade de Ouro Preto. Mulher
branca, solteira, sem filhos, sem grandes recursos financeiros, foi
professora, diretora de escolas, tradutora, escritora e morou a
maior parte de sua vida no Rio de Janeiro, tendo também passado
algum tempo em Nova York, São Paulo e Belo Horizonte.
Converteu-se ao protestantismo, provavelmente, no início da
década de 1860 e morreu aos 90 anos de idade, em 3 de julho de
1929, na cidade do Rio, vítima de arteriosclerose e colapso
cardíaco6.
Era filha de João Estanislau Pereira de Andrade e Leonor
Augusta Loureiro de Andrade – ele funcionário público, ela
professora pública de primeiras letras – e tinha 16 irmãos. Desses,
dois eram homens, um deles engenheiro e professor e cinco eram
mulheres, todas professoras. Sua mãe teve esmerada educação,
tendo sido aluna de Beatriz Brandão, considerada famosa
professora em Ouro Preto (SABINO, 1899, p. 110). Além da
capital da província mineira, a família viveu também em Vassouras
e na Corte Carioca. Morando sempre em centros urbanos,
pertencendo a uma camada social intermediária, sem ligação direta
com grandes proprietários rurais, sua família compunha o quadro
do funcionalismo nas cidades onde viveram.
Não encontei dados sobre escola, currículo, professores e
livros que fizeram parte da formação incial de Maria Guilhermina.
Entretanto, foi possível detectar que sua formação se deu em um

6
Sobre os dados biográficos de Maria Guilhermina ver Carla Chamon, 2005.

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ambiente familiar mais propício e aberto à instrução feminina,


sendo bastante provável que ela e suas irmãs tenham seguido os
mesmos passos da educação da mãe, assim como lhe seguiram no
exercício da docência. Na verdade, D. Leonor e suas filhas, faziam
parte, nesse momento, de um grupo ainda pequeno de mulheres
que tiveram acesso a uma certa educação intelectual e de um grupo
ainda menor que se dedicou à docência.
Nada indica que sua formação elementar e docente
tivesse sido muito diferente das poucas mulheres que na primeira
metade do século XIX tiveram acesso à instrução primária. Mas,
no que se refere à sua formação posterior, Maria Guilhermina
percorreu uma trajetória singular. Em 1883, viajou para os
Estados Unidos, onde permaneceu até 1887 se especializando na
"ciência e na arte" de educar, estudando os métodos froebelianos.
Sua instituição de formação foi o New York Normal Kindergarten
(New York Seminary for Kindergartners with a Model Kindergarten),
também chamado por Guilhermina de Academia Kraus-Boelte.
Essa instituição foi aberta na cidade de Nova York, em 1873, e era
dirigida por dois importantes expoentes da corrente froebeliana:
Maria Kraus Boelte e seu marido John Kraus7. Essa experiência

7
Maria Kraus-Boelte (1836-1918) estudou em Hamburgo com a viúva de
Froebel, Louise Lewis Froebel, tendo se especializado na teoria e na prática do
kindergarten, além de ter estudado pedagogia e psicologia. Depois de concluir seus
estudos, trabalhou na Inglaterra onde pioneira na exibição dos trabalhos de
kindergarten, desenvolvidos por seus alunos, na Exposição Internacional de 1862,
realizada naquela cidade. Em 1872, foi para os Estados Unidos, a convite de uma
educadora norte-americana – Miss Henrietta B. Haines – para organizar e dirigir
um kindergarten na sua escola em Nova York. No ano seguinte, ela se casou com
o professor John Kraus, também um especialista em kindergarten, membro do
Comitê de Educação dos Estados Unidos e um dos responsáveis pela difusão do
kindergarten nos Estados Unidos, tendo sido discípulo e amigo de Froebel. Nesse
mesmo ano, abriram juntos, na cidade de Nova York, uma instituição destinada a
formar professoras de kindergarten, o chamado New York Seminary for
Kindergartners with a Model Kindergarten. Escreveram também o livro The
Kindergarten Guide, publicado em Nova York entre 1877 e 18917. Dedicado a
professoras, mães e enfermeiras, nele os autores expunham minuciosamente, ao
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que produziu uma inflexão na sua atuação no campo educacional,


uma vez que, a partir dela, Maria Guilhermina Loureiro de
Andrade ganhou maior visibilidade e reconhecimento no meio
educacional.
Sua atuação profissional foi longa. Dos seus 90 anos de
vida, Maria Guilhermina dedicou pelo menos 50 à tarefa de educar
meninos e meninas. Em 1864, então com 25 anos de idade, abriu
um colégio para educação de meninas, na vila de Nossa Senhora da
Conceição em Vassouras, juntamente com sua mãe. Em 1868,
fechou o colégio em Vassouras e solicitou, junto ao Conselho
Diretor de Instrução da Corte, a abertura de um colégio de
instrução primária e secundária, podendo ensinar francês, inglês,
geografia e aritmética. No ano seguinte, foi aberto o Colégio
Andrade, na cidade do Rio de Janeiro, estabelecimento que Maria
Guilhermina dirigiu, auxiliada por suas irmãs e com algumas
pequenas interrupções, até 1905 (ALMANAQUE LAEMMERT,
1869-1905).
A atuação profissional de Maria Guilhermina não se
resumiu ao Colégio Andrade. Ela também trabalhou como
professora primária no Colégio Aquino (REVISTA
PEDAGÓGICA, 1890/1891, p. 322-323; NINA, 1944, p. 40;
VENÂNCIO FILHO, 1946, p. 256), além de ter participado da
Sessão de Instrução da Exposição da Indústria Nacional, realizada
na Corte, em 1881. Nessa exposição, ela recebeu o diploma de
progresso pela sua "aritmética da infância, apresentada em
manuscrito", ao lado de sua irmã D. Francisca Loureiro de
Andrade Franco, por sua gramática da infância, também
manuscrita. Ainda nesse período, em 1883, Guilhermina escreveu
um parecer sobre a organização dos jardins de infância para o
Congresso da Instrução do Rio de Janeiro (que não se realizou), ao
lado do Dr. Menezes Vieira e do Dr. Joaquim Teixeira de Macedo.

longo de 8 volumes e mais de 700 páginas, a teoria do kindergarten elaborada por


Friederich Froebel (ROSS, 1976, p. 13-14; HARVEY, 1924, p. 75-83).

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No final da década de 1880, depois da viagem aos


Estados Unidos, a partir da qual passou a ser conhecida como
professora especializada nos métodos pedagógicos norte-
americanos, abriu um jardim da infância – ao qual ela denominou
Kindergarten Modelo – e a primeira escola para formação de
jardineiras na Corte carioca. Além disso, foi convidada a participar
de duas importantes reformas de instrução: a Reforma Caetano de
Campos, em São Paulo, em 1890, onde trabalhou na sessão
feminina da Escola-Modelo, anexa à Escola Normal, e a Reforma
João Pinheiro-Carvalho de Brito, ocorrida em Minas Gerais, em
1906, onde atuou como diretora de um grupo escolar da capital
desse Estado e colaborou na organização do jardim da infância
naquela cidade.
Mas essa maior visibilidade não se deu em razão apenas
de sua viagem e de sua atuação, sendo fruto da publicação de
artigos e livros na área. A sua produção no campo educacional não
foi pequena, contemplando tanto manuais didáticos, quanto livros,
traduções e artigos pedagógicos, especialmente sobre métodos de
ensino e sobre os jardins da infância. Essa produção se concentrou
no período posterior à sua viagem aos Estados Unidos, sendo
veículo por meio do qual Guilhermina divulgou os princípios da
chamada "Educação Nova". Dentre seus livros podemos destacar O
Kindergarten ou Jardim da Infância, publicado no Rio de Janeiro,
em 1888 e que divulgava os princípios básicos do jardim da
infância; Resumo da História do Brasil: para uso das escolas
primárias brasileiras, publicado em Boston, em 1888 e reeditado
em 1894 e 1920; Primeiro, Segundo e Terceiro livro de leitura, série
de livros de leitura para as escolas primárias, publicados em New
York, entre os anos de 1894 e 1896; além da tradução do livro
Kindergarten Culture in the Family and Kindergarten: a complete
sketch of Froebel's system of early education, adapted to american
institutions for the use of mothers and teachers, de William
Hailmann, intitulado Cultura de Kindergarten no Kindergarten ou
Jardim das Crianças: esboço completo do sistema de Froebel sobre a

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primeira educação para uso das professoras, publicado no Rio de


Janeiro, em 1887.
Trabalhando como diretora de escola particular,
parecerista, professora, tradutora e autora de livros didáticos, Maria
Guilhermina Loureiro de Andrade atuou intensamente no campo
educacional brasileiro, tendo orientado sua prática para os padrões
escolares norte-americanos. Desde o início da década de 1870,
Guilhermina se destacou por uma forte interlocução com
elementos do repertório educacional norte-americano, se
apropriando e fazendo circular aqui outra concepção de educação e
outra maneira de fazer a escola e de ensinar, adotando o método
intuitivo, a co-educação dos sexos e um curriculo feminino mais
alargado, com disciplinas que geralmente não faziam parte da
educação das mulheres no oitocentos como o grego e a geometria.
Além disso, o acento de sua pedagogia estava na idéia de que o
aluno aprende por meio da atividade e experiência individual, do
ensino útil e prático, centrando o processo de ensino-aprendizagem
na criança, valorizando a formação de homens livres e úteis à
sociedade.
Na sua trajetória, chama a atenção não só a sua intensa
atuação e profissionalização, mas também sua opção pelos padrões
norte-americanos de ensino. Essa aproximação com os saberes e
práticas norte-americanos estava associada à sua opção pela fé
reformada, no início da década de 18608, e ao seu convívio com
missionários e educadores presbiterianos, oriundos do norte dos
Estados Unidos e ligados à Junta de Missões Estrangeiras de Nova

8
Maria Guilhermina compôs vários hinos que constavam do hinário evangélico
presbiteriano "Cânticos Sagrados", do século XIX. Esse hinário foi editado pela
primeira vez em 1867 e uma segunda vez, ampliado, em 1875. Em 1896, ao
hinário presbiteriano "Cânticos Sagrados" foram incluídas algumas músicas do
hinário congregacionalista "Salmos e Hinos". Em todas as três edições
encontramos hinos de autoria de Maria Guilhermina, sendo que a primeira
edição, datada de 1867, traz nove deles. Esses dados nos permitem afirmar que a
sua conversão foi anterior ao ano de 1867, data da edição do referido livro de
hinos.

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York (Board of Foreign Mission), que se instalaram no Brasil a


partir da segunda metade do século XIX.
Essas missões norte-americanas que vieram para o Brasil
tiveram papel importante no campo educacional, uma vez que
adotaram em suas escolas e colégios aqui instalados – muitos deles
influentes, como a Escola Americana de São Paulo – alguns dos
padrões educacionais norte-americanos, tornando-se um veículo de
circulação e visibilidade desses padrões. Esse contato com os
missionários presbiterianos, do qual resultou a sua opção pela fé
reformada, marcou sua trajetória pessoal e profissional, tendo em
vista que foi com alguns dos agentes dessa nova religião que Maria
Guilhermina conheceu e experimentou a nova fé e, por meio dela,
uma outra sensibilidade e visão de mundo que marcaram a sua
prática pedagógica. Além disso, foi por intermédio desses
missionários que ela entrou em contato com os métodos
pedagógicos praticados nos Estados Unidos, nos quais ela se
especializou estudando em Nova York, na década de 1880, e que
lhe valeu a denominação, tantas vezes repetida na historiografia da
educação, de avis rara.
A trajetória percorrida por Maria Guilhermina no campo
educacional nos remete a essa rede de pertencimento que operou,
no seu caso, como filtro e veículo de acesso ao repertório
pedagógico norte-americano. Desse rede, podemos destacar Miss
Mary Dascomb e Miss Harriet Greenman, duas missionárias que
vieram dos Estados Unidos com as quais Guilhermina trabalhou e,
tomadas aqui como sujeitos que nos permitem, como sugere
Sirinelli (2003, p. 246), esclarecer "genealogias de influências",
colaboram para dar inteligibilidade ao seu percurso intelectual.
Mary Dascomb e Harriet Greenman eram professoras
experientes que vieram dos Estados Unidos a pedido do
missionário da Igreja Presbiteriana da cidade do Rio de Janeiro,
nesse período. Vieram para o Brasil incumbidas da tarefa de dirigir
a escola paroquial da referida Igreja segundo o modelo norte-
americano de ensino (RELATÓRIO de Alexandre Blackford,
1869). Logo que chegaram ao Rio de Janeiro, as duas
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missionárias, além de lecionarem na escola da Igreja, lecionaram


também no Colégio Andrade em 1870, juntamente com Maria
Guilhermina e suas irmãs (AGCRJ, Instrução Pública, códice 12-
4-12, p. 65). Em 1871, Miss Mary Dascomb foi enviada para a
cidade de São Paulo para lecionar na Escola Americana e Miss
Harriet Greenman foi enviada para a Igreja Presbiteriana de
Campinas (LESSA, 1938, p. 86, 142, 176).
A presença dessas duas missionárias no Colégio Andrade
evidencia um pertencimento e uma interlocução fundamental para
a formação profissional de Maria Guilhermina, em termos de
aprendizagem da cultura pedagógica norte-americana praticada
pelos presbiterianos. A atuação dessas professoras no Colégio
Andrade permitiu a Guilhermina a possibilidade de observar, no
próprio cotidiano de sua escola, outra prática pedagógica, da qual
ela possivelmente já deveria ter ouvido falar. Essa experiência
marcou a trajetória de Maria Guilhermina e seu colégio, visto que
mesmo depois da saída das duas missionárias, em 1871, o Colégio
Andrade continuou a adotar o método intuitivo de ensino,
novidade para a época e carro-chefe da chamada modernidade
pedagógica dos colégios norte-americanos de confissão
protestante9.
Horace Manley Lane também esteve nessa rede de
relações travadas por Maria Guilhermina entre os educadores
presbiterianos. Ele foi convidado, em 1884, para dirigir a Escola
Americana de São Paulo e controlar os demais estabelecimentos de
ensino mantidos no Brasil pela Junta de Missões de Nova York,
tendo sido batizado e nomeado missionário da Igreja Presbiteriana
pouco antes disso (ABREU, 2003, p. 53).

9
Na década de 1870, Maria Guilhermina teve também uma passagem pela
Escola Americana de São Paulo (LESSA, 1938, p. 452), escola essa que
constituiu-se como referência em termos de organização e métodos pedagógicos
para outras escolas presbiterianas que se instalavam no Brasil e que chegou a
adotar alguns livros de Guilhermina (BARBANTI, 1977, p. 181; LAGUNA,
1999, p. 272).

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Importante interlocutor dos liberais republicanos de São


Paulo, foi Lane quem indicou Maria Guilhermina para trabalhar
na Reforma da Instrução Pública paulista em 1890, ao lado de
Miss Márcia Brown, educadora muito bem conceituada entre os
presbiterianos. Aliás, Maria Guilhermina também gozava de um
conceito elevado na visão do diretor da Escola Americana que se
referiu a ela, junto a Caetano de Campos, como uma professora de
competência sem igual no Brasil: "É uma professora, diz o Lane,
como não há segunda no Brasil e como não há melhor na América
do Norte" (apud RODRIGUES, 1930, p. 192).
Foi com a chancela de Horace Lane – que a creditava
como excelente conhecedora do método intuitivo de ensino, base
da Reforma paulista – que Guilhermina foi trabalhar na seção
feminina da Escola-Modelo, anexa à Escola Normal, dirigida por
Caetano de Campos, em 1890. Essa chancela, mais uma vez,
evidencia a sua sintonia com os valores e os métodos da pedagogia
norte-americana praticada pelos presbiterianos no Brasil.
Nesse sentido, a trajetória de Maria Guilhermina – sua
prática e produção no campo da educação, seu diálogo com a
pedagogia norte-americana, sua escolha de estudar nos Estados
Unidos e se especializar na ciência e na "arte de ensinar", a
maneira como ela experimentou sua condição feminina – tem
como chave de leitura a sua inserção no cristianismo reformado, na
sua versão presbiteriana, que veio do norte dos Estados Unidos
para o Brasil em meados do século XIX. Falar em chave de leitura
é falar de elementos que permitem uma certa construção e
compreensão da trajetória de Maria Guilhermina, é falar de um
jogo de relações que serviu de suporte para as suas práticas e
representações, sem querer transformar as condições necessárias de
leitura da sua trajetória em "condições suficientes de sua existência"
(CASTORIADIS, 1982, p. 167). Ou seja, suas opções se
articularam, mas não se reduziram, ao convívio com os
missionários e educadores presbiterianos e a sua adesão à fé
reformada. Esses elementos não foram a "causa" de suas opções,
uma vez que não explicam nem determinam, de uma vez por todas,
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a sua trajetória profissional, mas eles foram condição de


possibilidade para essa trajetória, e é nesse sentido que o
presbiterianismo norte-americano é aqui tomado como chave de
leitura para a elucidação da experiência profissional de Maria
Guilhermina.
A interlocução com as educadoras missionárias Miss
Dascomb e Miss Greenmam, a passagem pela Escola Americana de
São Paulo e os comentários de Horace Lane são reveladores de
como essa rede exerceu influência na trajetória traçada por Maria
Guilhermina Loureiro de Andrade no campo educacional. Mesmo
que a participação nesse grupo tenha se dado de forma
fragmentada, ela foi fundamental não só para o seu acesso aos
modernos preceitos do repertório pedagógico norte-americano que
ela fez circular na sua prática profissional, como também para a
leitura desse repertório10.

Maria Guilhermina e a Educação Nova no Brasil

Na sua atuação profissional, Maria Guilhermina se


apropriou e fez circular no Brasil saberes e práticas do repertorio
educacional norte-americano, constituindo-se como
mediadora/tradutora entre dois universos culturais: Brasil/Estados
Unidos. Nessa operação, ela colocou em circulação não apenas um
método considerado moderno e mais eficaz para ensinar as crianças
– o método intuitivo –, motivo pelo qual ela teve seu nome
registrado por alguns contemporâneos e historiadores da educação;
ela divulgou, principalmente, uma outra concepção de educação,
denominada "Educação Nova".
Segundo Maria Guilhermina, os princípios e métodos da
"Educação Nova", por ela estudados nos Estados Unidos, estavam
plenamente desenvolvidos no kindergarten. Falar deste último era

10
Essa rede de pertencimento teve implicações também na sua condição feminina.
Sobre essa questão confira CHAMON, 2005, cap. 1.

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necessariamente falar da nova educação, uma vez que o


kindergarten era não só um lugar, mas também uma cultura, uma
série de meios e procedimentos, com fins e princípios
determinados. Por isso, nos seus textos, os dois termos muitas
vezes se confundiam e, ao anunciar a "Educação Nova", ela
anunciava também o kindergarten, lugar/cultura por meio da qual
as crianças viveriam "vida mais completa e feliz",

como plantas animadas, rodeadas de todas as


circunstâncias favoráveis a seu livre desenvolvimento e
educadas por meios adequados às suas disposições
individuais, em contato constante com a Natureza, quer
cultivando flores, quer tratando de animais, ou
aprendendo suas interessantes histórias em breves
conversações com a Jardineira, ou em seus brinquedos,
procurando imitar as primeiras atividades da natureza.
Deixar a criança brincar é educá-la. Os brinquedos bem
dirigidos levam necessariamente as crianças a uma união
mais profunda e mais elevada com o Universo
(ANDRADE. O Kindergarten ou Jardim da Infância,
1888, p. 4).

Essa "Educação Nova", conforme a tradução de Maria


Guilhermina da obra de Hailmann, tinha como alvo o
"desenvolvimento de individualidades independentes, apropriadas
para a vida na sociedade – capazes de felicidade e eficientes para
utilidade – sobre a base da moralidade e da razão" (HAILMANN,
1887, p. 12-13, tradução de Maria Guilhermina Loureiro de
Andrade). Segundo ela, foi com base nesses princípios, que
Pestalozzi e Froebel desenvolveram novas formas de ensinar,
estando a excelência e importância desses dois educadores na
formulação de métodos que atendiam aos fins propostos pela nova
educação. Pestalozzi baseava seus métodos de ensino na intuição e
nos sentidos humanos, buscando "desenvolver as forças humanas
de dentro para fora", com base num ensino gradual e progressivo.
Pestalozzi procurou formular métodos que desenvolvessem as
"faculdades receptivas" do aluno (o método intuitivo), ao passo que

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Froebel, seu seguidor, debruçou-se sobre as "faculdades expressivas"


(Ibidem, p. 18-19).
Foi então pensando em desenvolver as faculdades
expressivas das crianças e com o objetivo de estabelecer um sistema
de ensino "sobre a base da moralidade e da razão, da religião e da
humanidade" (Ibidem, p. IV) que Froebel idealizou o kindergarten.
Maria Guilhermina alertava seus leitores para o fato de que o
Kindergarten não era uma escola, como muitos afirmavam, mas
sim "um lugar de reunião infantil", onde as crianças entre 3 e 7
anos se desenvolviam física, mental e moralmente. Lá não se
tratava de instrução – de ler, escrever e contar – nem de regras,
definições ou livros, mas de "atividade e energia", "atividade dos
membros, atividade dos sentidos, atividade do espírito, do coração e
dos instintos religiosos" (ANDRADE. O Kindergarten ou Jardim da
Infância, 1888, p. 8-9).
Segundo ela, o objetivo do kindergarten, assim como da
"Educação Nova", era desenvolver as faculdades físicas, mentais e
espirituais, era "educar as mãos, desenvolver a inteligência e elevar
os sentimentos" (Ibidem), tornando a criança "verdadeiramente
digna, útil e feliz" (ANDRADE. Parecer, 1884, p. 2), era dar-lhe
a primeira educação, que se resumia

em exercer sobre ela uma certa influência de acordo com


suas disposições naturais, dar-lhe força ao corpo, exercitar-
lhe os sentidos, ocupar-lhe as faculdades mentais que
principiam a formar-se, torná-la pelo pensamento familiar
com o mundo da natureza e do homem e guiar seu tenro
coração e sua alma inocente na direção do bem,
preparando-a para a mais elevada compreensão da
Unidade Suprema em Deus (ANDRADE. O Kindergarten
ou Jardim da Infância, 1888, p. 8).

Para Maria Guilhermina, esse objetivo seria alcançado


por meio da aplicação dos métodos desenvolvidos por Froebel para

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o kindergarten, classificados por ela em brinquedos mentais11 e


brinquedos de movimento – atividades físicas e jogos, além das
canções, histórias e conversações. Aqui, além de educar o coração e
as mãos, educavam-se também os sentidos, por meio do ensino
intuitivo ou ensino de objetos. Nesse ponto, o método proposto
pela nova educação se colocava em oposição aos métodos antigos,
considerados como a expressão do ensino abstrato, sem contato
com os objetos do mundo real, realizado por meio da memorização
e da repetição. O ensino intuitivo, por sua vez, baseava-se na
observação e na imaginação, sendo que sua aplicação se fazia
preferencialmente por meio de objetos que eram colocados para os
alunos observar: era o estudo das coisas. O princípio norteador
desse processo era o de que, por meio da observação, o
conhecimento não seria apenas transmitido, mas "gerado com base
no contato com o objeto" (VALDEMARIN, 2000, p. 77).
O método intuitivo era geralmente indicado para as
classes de ensino elementar, mas nem por isso deixou de ser
reclamado também para o ensino dos pequeninos. Segundo
Hailmann (1887, p. 50), na tradução de Maria Guilhermina, o
ensino de objetos era um "nome dado a um lado mental do método
da Educação Nova" e deveria ser aplicado no kindergarten de
maneira menos extensa do que propunha Calkins para as escolas
elementares. Ele visava ao desenvolvimento mental da criança e era
fundado no princípio segundo o qual "o conhecimento do fato
empírico mais insignificante, tão bem como o da verdade mais
abstrata, podem chegar à nossa mente só por meio dos sentidos",
com o auxílio da observação, da imaginação e da memória. A partir
do princípio de que "aprendemos pela observação", os três principais
pontos das lições sobre objetos foram assim traduzidas por Maria
Guilhermina:

11
Os brinquedos mentais eram os chamados dons e ocupações, materiais dos
quais se servia a jardineira para educar a criança.

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1º Cultivar as faculdades em sua ordem natural –
percepção, concepção, juízo.
2º Proceder do conhecido para o desconhecido – do
simples para o complexo – do concreto para o abstrato –
do todo para as partes (relativamente a objetos e
fenômenos) – do particular para o geral (relativamente às
idéias).
3º Acostumar a criança à atividade (ANDRADE. Cultura
de Kindergarten: lições sobre objetos, 7 nov. 1887, p.
69).

Se nas classes elementares tinha-se em mira uma


explicação mais exaustiva dos objetos, no kindergarten o que se
buscava era despertar a atenção da criança, cultivando hábitos de
"observação exata e expressão clara". Aqui, seu objetivo não era
transmitir conhecimentos, mas familiarizar as crianças com os
procedimentos de observação, análise e comparação, ou seja, com
os procedimentos de investigação, próprios ao raciocínio científico.
Nesse sentido, os brinquedos, exercícios e atividades propostos
pelas jardineiras e professoras não eram a finalidade do kindergarten
e da escola primária, mas sim um meio para alcançar fins mais
elevados, desenvolvendo nas crianças "uma inteligência clara, uma
consciência pura e uma vontade livre", "tornando-as homens e
mulheres felizes e úteis à sociedade" (ANDRADE. O Preparo da
Mestra, 1900, [s.p.]).
A excelência, tanto do método intuitivo quanto dos
métodos próprios do kindergarten, estaria, assim, na sua afinidade
com os princípios e fins da "Educação Nova", uma vez que eles
levariam a criança a desenvolver sua individualidade, além de
estarem baseados em leis psicológicas, segundo seus propositores
(ANDRADE. Apontamentos de um jornal de viagem, 14 out.
1887). Uma das insistências dessa nova educação era a necessidade
de um ensino progressivo e proporcional à capacidade e ao
desenvolvimento natural do aluno, devendo, por isso, estar de
acordo com as "leis" que regeriam o desenvolvimento infantil.
Segundo Maria Guilhermina, o desenvolvimento harmônico da
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criança deveria obedecer aos "princípios da ciência de ensinar",


sendo que as "leis naturais do desenvolvimento infantil", a partir
das quais se podia estabelecer uma ordem de sucessão e progressão
para o ensino, não podiam ser desprezadas12.
Nesse sentido, a educação, tanto mental quanto física,
deveria, primeiro, cuidar do desenvolvimento das faculdades
expressivas da criança – imitação e invenção – para depois trabalhar
sucessivamente as percepções, concepções e juízos:

Neste ponto, são os modernos métodos inteiramente


diferentes dos antigos; pelos quais é considerado o melhor
mestre aquele que "mais puxa", como se diz, pelo aluno,
cuja inteligência quase em geral perde em força e vigor
quanto aparentemente a memória ganha em repetir as
palavras do livro ou a explicação do mestre; porque
"decorar" não é "aprender". O menino só aprende quando
assimila conhecimentos, para o que é indispensável pensar
e julgar por si (ANDRADE. Alocução, 1891/1892, p.
238).

Alertando contra os perigos de um trabalho excessivo e


em desacordo com a capacidade do aluno, Maria Guilhermina
argumentava que não cabia ao professor determinar o que o aluno
deveria fazer, mas, sim, estar preparado para guiá-lo naquilo que
ele poderia fazer: "[...] dirigindo esta elaboração mental, evitamos
sempre intervir de modo a dar-lhe um cunho estranho, que
estragaria todo aquele trabalho só próprio de quem o executa no
limite de suas forças e de sua experiência" (Ibidem). Nesse sentido,
o desenvolvimento harmônico das faculdades da criança e sua
individualidade, eram o

12
Em seus textos, Maria Guilhermina fazia constantemente uma advertência
nesse sentido: "quase ninguém se lembra de que as leis que regem o
desenvolvimento do espírito são tão fatais, como as que presidem o
desenvolvimento da matéria e que, portanto, não podem ser impunemente
violadas" (ANDRADE. Alocução, 1891/1892, p. 241).

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fim verdadeiro do kindergarten e da escola primária, e não,
como geralmente se pensava, "dar conhecimentos" já
adquiridos e acumulados por outros; pois que
conhecimentos verdadeiramente só podem ser adquiridos
por experiência individual. O professor primário pouco, ou
antes, nada tem que ensinar, deve guiar metodicamente na
observação dos fatos para a indagação da verdade e a
compreensão das leis naturais" (ANDRADE. Alocução,
1891/1892, p. 240).

Os princípios que fundamentavam essa concepção de


educação eram muito próximos daqueles professados pelos
missionários educadores norte-americanos: liberdade e
individualismo13. Como nas escolas americanas de confissão
presbiteriana, o acento dessa pedagogia que ela punha a circular no
Brasil estava na aprendizagem por meio da atividade e experiência
individual, do ensino útil e prático – do by yourself e learning by
doing –, centrado na criança e cujo objetivo era formar homens
livres, independentes e úteis à sociedade. Diretrizes que
confirmaram seu nome nas reformas de instrução paulista e
mineira, inspiradas nos modelo de educação escolar dos
missionários norte-americanos.
Além disso, seus textos nos revelam não só uma
aproximação do universo pedagógico de Froebel, mas também uma
aderência aos princípios filosóficos, profundamente religiosos, do
pedagogo alemão, para quem a educação deveria levar à unidade do
homem com Deus e com a natureza. Ou, nas palavras de
Guilhermina, seu objetivo deveria ser guiar o coração da criança "e
13
A observação de Fernando de Azevedo (apud RAMALHO, 1976, p. 145) a
propósito das escolas de confissão protestante pode ser também feita para as idéias
de Maria Guilhermina a respeito da educação. Essas idéias vinham "marcadas do
espírito protestante no que tem de essencial, e um de cujos traços característicos é
um sentimento muito vivo da liberdade, - livre exame, liberdade de consciência, de
crítica e de discussão. Se a esse traço fundamental se acrescentar o do
individualismo que lhe está intimamente ligado [...] poder-se-á compreender
melhor a força com que esses princípios penetraram suas concepções educacionais,
dando-lhes o tom, o estilo e a direção que lhe são peculiares".

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sua alma inocente na direção do bem, preparando-a para a mais


elevada compreensão da Unidade Suprema em Deus"
(ANDRADE, O Kindergarten ou Jardim da Infância, 1888, p. 8).
Foi, então, colada nos princípios de Froebel que ela
divulgou o kindergarten e a "Educação Nova" no Brasil. Sua
finalidade e seus métodos seguiam bem de perto aqueles divulgados
pelos froebelianistas norte-americanos, com quem dialogou.
Também para ela, o aspecto pedagógico do pensamento do
pedagogo alemão não se dissociava de seus princípios filosóficos e
religiosos. Esse viés, presente na sua escrita, certamente tinha
ancoragem na sua condição de protestante presbiteriana e na sua
interlocução com esse grupo. Foi com o filtro religioso da fé cristã
reformada que ela leu a "Educação Nova", dando sentido ao seu
projeto de educação, que era também um projeto de homem e de
humanidade.
Certamente que Maria Guilhermina teve muitos outros
interlocutores, em razão, inclusive, de uma itinerância privilegiada,
tanto no campo educacional como professora, diretora, escritora,
tradutora, parecerista, quanto em termos geográficos, nas diversas
cidades pelas quais passou. Ligada a outras redes de relações,
travadas no ambiente familiar, no ambiente de trabalho e em
outros espaços sociais, que ainda permanecem como "zonas opacas"
na construção da sua trajetória, foi a ligação com a rede
presbiteriana que permitiu aqui iluminar o seu percurso.

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Carla Simone Chamon é professora do CEFET/MG.


carlachamon@terra.com.br
História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 12, n. 24, p. 73-99, Jan/Abr 2008
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Recebido em: 15/10/2008


Aceito em: 20/01/2008

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HISTÓRIA CURRICULAR DOS CURSOS DE
GRADUAÇÃO DA ÁREA DA SAÚDE
Renata Aparecida Belei
Sandra Regina Gimeniz-Paschoal
Edinalva Neves Nascimento

Resumo
Nos últimos 80 anos o mundo passou por várias mudanças, tanto nas
ciências quanto no modo de pensar da sociedade, o que repercutiu no
currículo e na estrutura pedagógica dos cursos de formação superior.
O objetivo deste estudo foi realizar uma reflexão a respeito da
evolução histórica curricular e das reformas educacionais ocorridas na
graduação dos profissionais da área da saúde. Conclui-se que a adoção
de um novo conceito de currículo envolve mudança no processo de
ensino-aprendizagem e adequação do perfil profissional, a fim de
atender às reais necessidades da sociedade e do mercado de trabalho.
Palavras-chave: Mudanças, currículo e saúde

CURRICULAR HISTORY GRADUATE COURSES OF


THE HEALTH AREA
Abstract
During the past 80 years the world has passed through many changes,
in science as well as in the way society thinks, which has affected the
curriculum and the pedagogical structure of the graduate courses. The
objective of this study was to ponder the historical curricular evolution
and the educational reforms that occurred in the graduation of the
health area professionals. We concluded that the adoption of a new
concept of curriculum involves changes in the teaching-learning
process and adjustment of the professional profile, in order to satisfy
the real needs of society and the labor market.
Keywords: Changes, Curriculum, Health.

HISTORIA CURRICULAR DE LOS CURSOS DE


GRADUACIÓN DE EL ÁREA DE LA SALUD
Resumen
En los últimos 80 años el mundo pasó por varias mudanzas, tanto en
las ciencias cuanto en el modo de pensar de la sociedad, lo que
repercutió en el currículo y en la estructura pedagógica de los cursos
de formación superior. El objetivo de este estudio fue realizar una
reflexión a respecto de la evolución histórica curricular y de las
reformas educacionales ocurridas en la graduación de los profesionales

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del área del la salud. Se concluye que la adopción de un nuevo
concepto de currículo envuelve mudanza em el processo de enseñanza-
aprendizaje y adecuación del perfil profesional, con la finalidad de
atender las reales necesidades de la sociedad y del mercado de trabajo.
Palabras clave: Mudanzas, currículo y salud.

HISTOIRE DES CURSUS DES GRADES


UNIVERSITAIRES DANS LE DOMAINE DE LA SANTÉ
Résumé
Dans les quatre-vingts dernières années, le monde a subi plusieurs
changements aussi bien dans le champ scientifique que dans les modes
de pensée de la société, ce qui s'est répercuté sur les cursus et la
structure pédagogique des cours de formation supérieure. Le but de
cette étude est de réfléchir sur l'évolution historique des cursus et sur
les réformes éducationnelles dans les grades universitaires qui
appartiennent au domaine de la santé. L'on peut conclure que
l'adoption d'un nouveau modèle de cursus exige des changements dans
le processus d'enseignement-apprentissage et l'adéquation entre le
profil professionnel et les nécessités de la société et du marché de
travail.
Mots-clés: changements, cursus et santé.

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Histórico do conceito de currículo

Currículo pode ser considerado um tema atual e inovador


para muitas pessoas envolvidas com mudanças na formação de
profissionais graduados; já para outras, apresenta-se apenas como
um tema tradicional e sinônimo de grade curricular.
Em muitas instituições de ensino superior de todo o
mundo foram registradas alterações na estrutura curricular,
culminando em mudanças que envolveram os alunos, os docentes e
a história dos próprios cursos.
Marcos históricos como a Revolução Industrial (1850-
1929) e o início da Primeira Guerra Mundial (1914-1918)
proporcionaram um grande avanço na história do currículo, em
decorrência do surgimento de duas filosofias econômicas,
denominadas Taylorismo e Fordismo. Estas duas correntes
iniciaram uma importante mudança nos processos de produção e,
conseqüentemente, nos processos educativos que envolviam todos
os trabalhadores da época (MOREIRA; SILVA, 2000).
A ênfase na técnica da construção curricular e nos
procedimentos impregnou os educadores de tal forma que houve
uma infeliz associação do currículo à grade curricular, que possui
características extremamente controladoras. Esta concepção o
organizou em disciplinas, mantidas praticamente até hoje na
maioria das universidades (VALENTE, 1999).
Contextualmente, a Segunda Guerra Mundial (1931-
1945), marco histórico para o mundo, representou mudanças
radicais, causando grande impacto nos padrões intelectuais, sociais
e morais que até então sustentavam a sociedade (MOREIRA;
SILVA, 2000).
A partir da década de 1950, os debates em torno da
formação médica, em especial aqueles que questionavam o
conteúdo curricular e o processo de ensino, perdem definitivamente
seu viés informal e paroquial. Na América Latina, organismos
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internacionais, destacadamente a Organização Pan-Americana de


Saúde, as fundações Rockefeller e Kellog, entre outras, promovem
a crítica da separação entre a medicina curativa e a preventiva, a
partir de diferentes marcos teóricos (ALMEIDA, 2001).
Sendo assim, em 1960 incrementam-se as discussões
sobre o ensino e surgem as preocupações ligadas à elaboração dos
currículos. Tanto nos Estados Unidos da América quanto na
antiga União Soviética apareceram várias justificativas para se
promover mudanças no ensino, em decorrência de transformações
ocorridas nas ciências, nas técnicas e nas artes, como o aumento
expressivo dos conhecimentos, as mudanças na sua produção e
sistematização, a rapidez com que os fatos se tornavam obsoletos,
etc. (SAVIANI, 1998).
Também na década de 60, em decorrência destas
mudanças, culminaram os questionamentos de que a escola era
extremamente tradicional e opressiva, não promovendo ascensão
social nem mesmo à classe dominante. Nascia, assim, uma
corrente determinada a transformar e democratizar a escola, ou
substituí-la por outra instituição, com ideais que defendessem uma
escola eficaz e que pregasse a liberdade (MOREIRA; SILVA,
2000).
Segundo Moreira e Silva (2000), nessa época, também
no campo econômico, um cunho científico passou a dominar os
procedimentos administrativos enquanto a produção se tornava
socializada e mais complexa. Esse processo originou-se em
decorrência de uma nova concepção de sociedade que surgiu
baseada em novas práticas e valores derivados do mundo industrial.
Como resultado, o sucesso na vida profissional passou a requerer
evidências de mérito na trajetória escolar. Conseqüentemente, a
partir da segunda metade do século XX, acentuaram-se mais
fortemente as críticas ao modelo tradicional de educação e também
ao currículo.
Outros fatores como a globalização, as tecnologias da
comunicação, a política cultural e sua relação com os discursos da
reforma educacional e social colocaram os educadores em um
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terreno de transformação, voltado para a difícil tarefa de propiciar


uma formação que pudesse dar respostas às exigências de um
mundo profundamente modificado pelos avanços da tecnologia e
das ciências (GISI, 1998).
Gradativamente, o conhecimento passou a ser
considerado uma importante estratégia para a competitividade na
economia mundial e as universidades tornaram-se influenciadas
por mudanças externas, necessitando rever suas estruturas e seus
currículos (GUADILLA, 1994). Entretanto, até 1998 o
Ministério da Educação e Cultura (MEC) ainda estabelecia no
Brasil uma estrutura rígida para os currículos tradicionais,
obrigando o seguimento do conteúdo exigido no currículo mínimo.
Baseado neste tipo de currículo, o processo de ensino
brasileiro se estruturou a partir de uma relação entre professor e
aluno, sem caráter pessoal, no qual o estudante participava apenas
como espectador (KOIFMAN, 1998).
Para Braga e Pinho (1998) a educação brasileira se
estruturou seguindo um modelo de certo/errado, de adoção de
livros básicos e admissão de uma única resposta correta, quando da
utilização de questões de múltipla escolha como método avaliativo,
baseada em conhecimentos, escolha de áreas de interesse e
estruturação de um currículo previamente determinado e inflexível.
Na visão tradicional e predominante, o currículo pode ser
definido como um curso a ser seguido ou, mais especificamente,
como um conteúdo a ser apresentado (GOODSON, 1995). A
educação escolar baseia-se na transmissão de conhecimentos e no
repasse de valores socialmente aceitos, sendo necessário apenas a
organização dos conteúdos em disciplinas. Os objetivos são
determinados antes do processo instrucional e, uma vez
firmemente estabelecidos, são conduzidos ao longo do currículo
(SACRISTÃN; PÉREZ GOMEZ, 2000; GOMES, 2002).
Desde a sua origem, a noção curricular tradicional negou
a necessária competência do professor. O caminho correto seria
compreender o currículo como a concentração de competências
para garantir o questionamento reconstrutivo no professor e no
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aluno. Por falta disso, o resultado curricular foi marcado pela


mediocridade, pois, não aprendendo a aprender, aprende-se apenas
a copiar (DEMO, 1997).
A organização do currículo tradicional, adotada pela
maioria dos cursos superiores do Brasil, baseou-se em disciplinas
isoladas e estanques, justapostos arbitrariamente, fragmentando e
isolando o conhecimento. Segundo Santomé (1998),
erroneamente, acredita-se que apesar da fragmentação, em um
certo momento de sua formação, cada estudante será capaz de
reorganizar sozinho todas as informações repassadas durante seu
processo de formação, captando seu verdadeiro significado e
sentido.
Numa visão mais moderna, currículo pode ser definido
como um processo, uma práxis em que ocorrem múltiplas
transformações que lhe dão sentido, valor e significado particular
(SACRISTÁN; PÉREZ GOMEZ, 1998). Esta abordagem parte
do princípio de que currículo é uma construção histórico-social e,
portanto, é preciso um enfoque processual para entender a sua
dinâmica.
Muitos conceitos estão envolvidos na sua definição, como
a produção de identidade, o envolvimento de ideologias e cultura, o
estabelecimento de relações sociais dentro da escola, a transmissão
de valores e crenças que muitas vezes podem ser antagônicas ao
preestabelecido no currículo, etc. (PEDRA, 1997).
Tentando reverter esse modelo de ensino e também para
se adaptar ao mercado e às mudanças no país, tanto na esfera
econômica, quanto social e política, as escolas do Brasil tentaram
acompanhar as tendências modernas, abrindo espaço na grade
curricular para as aulas de arte e para as que envolviam novas
tecnologias, principalmente as que utilizavam computação. Sendo
assim, modificou-se parte do processo de ensino, mas sem abalar a
estrutura do currículo (BRAGA; PINHO, 1998).
As universidades logo perceberam que a transformação
curricular era, naquele contexto, o modo para elas se inserirem no
movimento mundial da construção de uma nova ordem social,
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respaldado no desejo de formar um modelo de educação


estruturado na recuperação do sonho, do desejo e do amor como
base para a educação vinculada ao prazer de viver (ITO;
MARQUES, 1996; BRAGA, 2000).

É recente a percepção de que o currículo de um curso é a


trajetória do que ele pretende construir [...]. Até bem
pouco tempo atrás era natural que algumas pessoas
pensassem e organizassem de forma fria e técnica o que os
professores e alunos deveriam fazer (MARQUES, 1997,
p.3).

Marques (1997, p. 3) ainda relatou:

Somente agora, com o sopro democrático percebido cada


vez mais no mundo todo, inclusive no Brasil, professores e
alunos passaram a questionar os cursos: seus propósitos,
conteúdos, metodologias e avaliações. Tais
questionamentos levaram e continuam levando à
propostas curriculares para além do formal. Já não basta o
"currículo de gaveta", que atenda às necessidades
organizacionais sem refletir a análise coletiva do processo
ensino-aprendizagem de cada curso.

A nova visão a respeito do currículo em um novo projeto


educacional tem também como característica a ênfase na prática. A
função principal do currículo deixou de ser a de determinar o
programa a ser seguido na tarefa de transmissão dos conteúdos e
passou a ser a de explicitar o projeto e sua intenção
(BORDENAVE, 1982)
Dessa forma, o currículo passou a presidir as atividades
educativas escolares, a definir suas intenções e proporcionar guias
de ação adequados e úteis para os professores, responsáveis diretos
pela sua execução, devendo levar em conta as condições reais nas
quais o projeto vai ser realizado, situando-se justamente entre as
intenções, princípios, orientações gerais e prática pedagógica
(COLL, 1999).

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Segundo Davini (1994, p. 40), "outra característica da


nova visão do currículo é a percepção do aluno como agente ativo e
dinâmico no processo de construção do conhecimento".
A proposta metodológica do currículo moderno, baseado
em teorias críticas da educação, representa, principalmente, o
abandono da concepção de aluno-receptor de informações em
benefício da concepção aluno-construtor de seu conhecimento, a
partir da reflexão e indagação sobre sua própria prática e em função
da mesma (DAVINI, 1994; SENA, 2000; SILVA, 2001).
Também são características marcantes do currículo
moderno a interdisciplinaridade e a integração, que tem como
pressupostos a identificação e definição de problemas da realidade,
elaborando unidades de ensino-aprendizagem em torno destes
assuntos (DAVINI, 1994) e estimulando a investigação e a
compreensão dos problemas. Desse modo, o aluno é incentivado a
construir seu próprio conhecimento (GOMES, 2002; BRAGA;
PINHO, 1998)
Corrobora com estes autores Silva (2001), ao relatar que
o currículo moderno faz modificações em sua determinação e
natureza, leva em conta as demandas do grupo e as transformações
ocorridas coletivamente, propiciando momentos de criação. Neste
currículo, o aluno tem a oportunidade de se tornar sujeito
participativo e autônomo, sendo estimulado a recusar tarefas e
métodos de repetição (APPLE, 2000 a).
Considerando o currículo como um processo dinâmico,
Apple (2000 a) afirma que os educadores vivenciam conflitos
acerca do que deve ser ensinado, decorrentes de questões
educacionais, ideológicas e políticas. Esse mesmo autor reforça que

a educação está intimamente ligada à política da cultura.


O currículo nunca é apenas um conjunto neutro de
conhecimentos, que de algum modo aparece nos textos e
nas salas de aula de uma nação. Ele é sempre parte de
uma tradição seletiva, resultado da seleção de alguém, da
visão de um grupo acerca do que seja conhecimento
legítimo. É produto das tensões, conflitos e concessões

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culturais, políticas e econômicas que organizam e
desorganizam um povo (APPLE, 2000b, p.59)

Atualmente, no Brasil, as instituições de ensino


apresentam diferentes currículos (MOREIRA, 2001). Conforme a
organização de conteúdos que cada um privilegie, poderá ser
reconhecido sob duas formas: interdisciplinar ou integrado
(MARQUES, 1997).
As disciplinas, características do currículo tradicional,
foram substituídas por módulos no currículo integrado. Fazenda
(1995, p.27) definiu disciplina como "um conjunto específico de
conhecimento com suas próprias características sobre o plano de
ensino, da formação dos mecanismos, dos métodos, das matérias".
Teoricamente, um currículo é integrado quando o
conhecimento está organizado em conteúdos que mantêm uma
relação aberta entre sí, existindo uma subordinação dos conteúdos
previamente isolados a uma idéia central relacionadora
(BERNSTEIN, 1995).
Interdisciplinaridade é uma característica importante no
currículo integrado, podendo se manifestar por meio da interação
entre os módulos, entre os conteúdos, que se articulam dentro de
um projeto pedagógico, buscando em conjunto respostas para a
realidade em que estão inseridos. Nesse campo pedagógico, os
conhecimentos, atitudes e habilidades se entrelaçam com o objetivo
de transformar a realidade.
O currículo integrado é um exemplo de currículo
moderno e pode ser definido como um plano pedagógico com uma
organização institucional articulando trabalho e ensino, prática e
teoria, ensino e comunidade (DAVINI, 1994). Neste currículo, o
ato pedagógico é a ação que, para se constituir de maneira mais
conseqüente, precisa da reflexão, do auto-questionamento, da
teoria (ROMANO, 1999).
Para que um currículo possa ser dinâmico, flexível e em
contínuo aperfeiçoamento em sua interação com o meio, é
necessário que ele seja avaliado de maneira contínua e sistemática.

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Devem ser criados mecanismos avaliativos em que os atores


participantes possam expressar constantemente suas opiniões a
respeito de tudo (SAKAI et al., 2001).
Atualmente, algumas das universidades que adotaram o
currículo integrado encontram-se ainda em fase de implementação
deste, reformulando e readequando programas, métodos, hábitos e
modo de pensar, ensinar e aprender. Muitas são as dificuldades e as
incertezas, mas acredita-se que os frutos deste empreendimento
possam recompensar todas as batalhas travadas pelos envolvidos.

Mudanças nos currículos da área da saúde

O processo de formação dos profissionais da área de


saúde passou, nos últimos anos, por muitas alterações. A maioria
dos cursos envolvidos nestas reformas educacionais buscou a
integração do processo de ensino-aprendizagem com o mundo do
trabalho, utilizando metodologia ativa de ensino-aprendizagem
com o objetivo de integrar a teoria com a prática e formar um
profissional com capacidade crítica-reflexiva. Para realizar todo este
processo, muitos foram os movimentos que influenciaram estas
reformulações educacionais, sendo necessário um levantamento
histórico para compreender todo o processo envolvendo a educação
superior no Brasil.
O modelo de ensino norte-americano, chamado no Brasil
de flexneriano, foi implantado neste país a partir de 1940, quando
do processo de criação de novas escolas de enfermagem, medicina e
de odontologia, e de reformulação das já existentes
(FEUERWERKER; MARSIGLIA, 1996). Este modelo de
ensino, segundo Feuerwerker (2000), se caracterizava pela prática
fundamentada no hospital-escola, currículo com fragmentação do
conhecimento em função do processo de especialização,
metodologias de ensino tradicionais e centradas no professor.
A influência do modelo de saúde flexneriano, baseado
num paradigma fundamentalmente biológico e quase mecanicista
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para a interpretação dos fenômenos vitais, gerou o culto à doença e


não à saúde, e a devoção à tecnologia, sob a presunção ilusória de
que ela seria o centro de atividade científica e de assistência à saúde
(NOVAES, 1990). Segundo Novaes (1990) os paradigmas
originados a partir do modelo flexneriano direcionaram os modelos
de organização dos serviços e dos currículos de formação das áreas
da saúde, difundindo a concepção biologicista e médico-
hospitalocêntrica de saúde junto à população.
Na década de 60 houve uma intensa capitalização do
setor saúde e uma explosão do desenvolvimento tecnológico, que
reforçaram o modelo flexneriano. Mesmo assim, começou a se
formar um movimento de contestação à formação tradicional
(TANCREDI; FEUERWERKER, 2001, p.11). Pelas
discrepâncias geradas entre o perfil do profissional formado a partir
deste modelo de ensino e as necessidades da comunidade, iniciou-se
um processo de mudança na formação dos profissionais da saúde,
demandando dessa forma, várias alterações nos currículos e nas
práticas pedagógicas dos diversos estabelecimentos de ensino
(DUSSALT; SOUZA, 2000).
Faz-se importante relatar que, na área da saúde, o
contexto mostrava-se já há algum tempo favorável às reformas,
principalmente pela tendência à reorganização da atenção à saúde,
numa tentativa de superar o modelo flexneriano, centrado no
hospital, e no consumo abusivo de tecnologia (FEUERWERKER,
2001). A participação de entidades de influência nacional, como a
Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn) também
incentivaram o início de discussões sobre a necessidade de rever o
processo de formação profissional, de forma a envolver aspectos
políticos e pedagógicos.
Para culminar nas mudanças exigidas pela sociedade,
muitos eventos foram promovidos, como a VIII Conferência
Nacional de Saúde, em 1996, a Lei Orgânica de Saúde e a XIX
Conferência Nacional de Saúde. Nestes, estabeleceram-se a
implantação de uma política de recursos humanos para o Sistema
Único de Saúde (SUS), a revisão dos currículos profissionais,
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ajustando-os às realidades sociais, étnico-culturais a ao quadro


epidemiológico da população, propondo a formação de profissionais
com visão integral, comprometimento social e formação geral
(ROMANO, 1999). Juntamente com esta Reforma Sanitária
Brasileira, a questão da formação dos recursos humanos em saúde
passou a ser discutida mais profundamente.
A partir desses eventos, ficou claro que o perfil, as
competências e habilidades dos profissionais da saúde formados não
correspondiam ao exigido pela sociedade da época.
Conseqüentemente, a maioria das universidades passou a se
questionar sobre a legitimidade de sua formação, sobre seu papel na
produção e "transmissão" de conhecimentos, permitindo dessa
forma, um contexto mais favorável às mudanças (O
MOVIMENTO DA FORMAÇÃO..., 2000).
As mudanças no setor de saúde do Brasil, iniciadas
também em todo o continente latino-americano, foram
impulsionadas por uma pressão da sociedade muito grande sobre as
universidades, no sentido de que buscassem maior relevância social,
tanto no campo da produção de conhecimentos como no campo da
formação profissional (DIAS, 1996; ALMEIDA, 1998). Como
estratégias para a concretização destas reformulações, surgiram
propostas de mudanças radicais e profundas, tanto no campo das
metodologias de ensino-aprendizagem, como no modo de trabalhar
os problemas da realidade da população (BRAGA, 2000;
FEUERWERKER, 2001).
Percebeu-se, enfim, que formar profissionais deveria
implicar na capacidade de aprender a aprender, comunicar-se,
trabalhar em equipe, ter agilidade diante das situações, etc., traços
que não combinavam com a formação tradicional
(FEUERWERKER et al., 2000).
As mudanças na formação dos profissionais da área de
saúde tornaram-se essenciais e deveriam atingir relações, estruturas
e, até mesmo, o modo de funcionamento das universidades. Por
isso, também foram incentivadas a introdução da prática
multiprofissional, com cenários mais próximos da realidade, a
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inclusão de módulos e, principalmente, a concepção de que


currículo é um processo de construção permanente
(FEUERWERKER et al., 2000).
Fortalecendo as transformações no ensino, ocorridas no
Brasil na década de 90, também estão as influências da Network of
Community-oriented Educational Institutions for Health Sciences
(NETWORK). Estas influências passaram a nortear as
reformulações curriculares, que envolveram a orientação
comunitária e a aprendizagem baseada em problemas, além de
tentar centralizar a educação no aluno, ao invés do tradicional, que
era centralizada no professor. Esta organização foi criada nos
Estados Unidos da América para fortalecer programas ou
experiências inovadoras no campo da formação de recursos
humanos em saúde (SILVA et al., 2000).
As propostas implantadas pelo Programa UNI: Uma
Nova Iniciativa na educação dos profissionais da saúde - União
com a Comunidade, também influenciaram essas mudanças
curriculares pois propunham "[...] o desenvolvimento integrado de
modelos inovadores na educação e atenção à saúde e o
desenvolvimento de lideranças [...]" (SILVA et al., 2000).
Também tiveram relevante papel nas mudanças das diretrizes
curriculares dos cursos da área da saúde as propostas da Rede
Unida (SILVA et al., 2000).
Segundo Martins e Haddad (2001), a Lei n° 9.394 de
dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional, também foi um fator de suma importância e de grande
influência para as mudanças na área de saúde por estabelecer a
flexibilização dos currículos de graduação, ultrapassando o modelo
de currículos mínimos, cuja ênfase estava nas disciplinas e cargas
horárias.
Nesse cenário de transformações, outros relevantes
movimentos foram importantes, alavancando as reformas
educacionais na área de saúde, como o debate proposto pelo
Ministério da Educação sobre as diretrizes curriculares dos cursos

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de graduação e os movimentos próprios de cada curso,


especialmente na enfermagem e medicina.
De forma geral, as diretrizes curriculares nacionais para
os cursos da área de saúde (DCNAS) estabelecem princípios para
que os profissionais possam concluir o curso de graduação dotados
de conhecimento e proficiência que os habilitem a uma prática
competente, ética e socialmente responsável (CONTRIBUIÇÃO
DA REDE UNIDA..., 2003).
Em decorrência da atuação em variados campos de
trabalho, com complexidades diferentes para cada área, as DCNAS
estabelecem que todos os profissionais devem estar dotados de
competências, que incluem o conhecimento, as habilidades e as
atitudes. As competências devem possibilitar aos profissionais a sua
interação e atuação multiprofissional, tendo como foco de atenção
os indivíduos e a comunidade, promovendo a saúde para todos.

Conclusões

A evolução histórica pela qual passou o conceito de


currículo culminou no aparecimento de uma visão mais profunda
do processo de ensino-aprendizagem.
Movimentos nacionais e internacionais, como a Reforma
Sanitária e as Conferências Nacionais de Saúde, NETWORK,
Programa UNI, e a participação de associação de classes, como a
ABEn, resultaram na elaboração e reestruturação de projetos
políticos-pedagógicos, fortalecidos pelas Diretrizes Curriculares
Nacionais dos cursos da área de saúde.
Todos estes movimentos resultaram na implantação de
princípios que atualmente norteiam o processo de ensino-
aprendizagem destes cursos, como formar para a prática
competente, ética e com responsabilidade social, de forma a
atender às necessidades da comunidade, baseando o processo do
ensinar e aprender nos problemas retirados da própria sociedade.
Para esta concretização, mudanças estruturais e reformulações
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curriculares foram concretizadas, resultando em modelos


inovadores de currículos hoje encontrados nos cursos.
Atualmente, currículo faz parte da história do ensino e,
inserido nas estruturas dos cursos de forma a amparar mudanças,
fornece subsídios para melhorar o processo de formação dos
profissionais. Neste sentido, os profissionais da educação devem
procurar adotar o melhor modelo de currículo para conduzir
adequadamente o processo de ensino-aprendizagem traçado pelo
curso. Adotar novos conceitos de currículo envolve mudanças
estruturais no modo de visualizar o processo de ensino-
aprendizagem, focando-o no aluno e na sociedade, no ensino e na
pesquisa, na teoria e na prática.

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Renata Aparecida Belei: Enfermeira do hospital universitário da


UEL; mestre e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em
Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade
Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho".
Sandra Regina Gimeniz-Paschoal: Psicóloga; mestre e doutora
em Psicologia pela Universidade de São Paulo; docente do
Departamento de Fonoaudiologia e do Curso de Pós Graduação
em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC) da
Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho".

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Edinalva Neves Nascimento: Fonoaudióloga; mestre e


doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual
Paulista "Júlio de Mesquita Filho".
Endereço para correspondência: Edinalva Neves Nascimento - Rua
Santa Helena, 1967 casa 27. Jardim Estoril- Marília-SP - CEP:
17514-410
e-mail: ediquata@flash.tv.br ou edinalva@marilia.unesp.br

Recebido em: 12/09/2007


Aceito em: 20/01/2008

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FORMAÇÃO DE PROFESSORES PARA O
ENSINO DE PRIMEIRAS LETRAS NA ZONA
RURAL. BRASIL, FINAL DO SÉCULO XIX
Flávia Obino Corrêa Werle

Resumo
Gênese da formação de professores de primeiras letras,
problematizando a predominância de um perfil para a zona urbana
frente ao requerido para zonas rurais, identificando uma dimensão
não pronunciada na política educacional de estímulo a escolas
urbanistas e esquecimento das voltadas para a ruralização das
populações. Inicia discutindo, estratégias de formação, de orientação
empirista e pragmática, que conduziram à instauração de adjuntos
que se profissionalizavam ajudando docentes com experiência em
escolas de primeiras letras urbanas tornando-se portanto capazes
para atuar nestas escolas, mesmo que assumissem posteriormente
escolas de entrâncias mais afastadas. Analisa a composição
curricular do curso de formação de professores de diferentes
províncias destacando que, apenas em alguns casos, eram incluídos
temas relacionados ao trabalho do homem do campo, os quais eram
transformados em conhecimento escolar numa restrita função
metodológica, mas com nítida prevalência de estudos propedêuticos,
no quadro geral de um currículo de matérias científicas e de cunho
acadêmico. Levanta a hipótese de que agricultura e agrimensura,
figuravam como conhecimentos anexados, subordinados, a título de
exemplos concretos, especialmente de disciplinas como Ciências
Naturais, Mineralogia, Geometria Plana, Geologia, pelo incipiente
processo de disciplinarização dos currículos e pelo empirismo que
privilegiava práticas dos mundos letrado e urbano e não as do mundo
rural. Conclui que a cultura urbana e erudita, homogeneizava e
dominava como universal o currículo de escolas primárias no
período. São utilizadas fontes documentais primárias e secundárias.
Palavras-chave: Políticas educacionais das zonas rurais; currículo
específico e formação profissional para docentes de escolas rurais.

TEACHER EDUCATION IN ELEMENTARY WRITING


IN THE RURAL AREA OF BRAZIL: LATE XIX
CENTURY
Abstract
The genesis of teacher education of first letters, rendering
problematic the predominance of a profile for the urban zone in face
of the one required for rural zones, identifying a non-pronuntiated
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dimension in educational policies of stimulation of urbanist schools
and the forgetting of those turned to the ruralization of the
populations. It starts discussing strategies of fomation, of empirist
and pragmatic orientation, which lead to the instauration of
adjuncts who were professionalized as teachers with exerience in
urban schools of first letters, who became able, therefore, to actuate
in those schools, even if they later on would assume schools of more
remote entrances. It analyzes the curricular composition of the
course for teacher education of different provinces, stressing that,
only in few cases, there were included issues related to the labor of
the field workers, which were tansformed into school knowledges in a
restrict methodological function, but with clear prevalence of
propedeutical studies, in the general frame of a curriculum of
scientific matters and of academic shape. It rises the phypothesis
that agriculture and geodesy were considered annexed, subordinated
knowledges, as concrete examples, especially of subect matters such
as Natural Sciences, Mineralogy, Geometry, by the incipient process
of disciplinarizing of the curricula and by the empirism which
privileged practices of the litterate and urban worlds, not the one of
the rural world. It concludes saying that the urban and erudite
culture, homogenized and dominated, as universal, the curriculum
of the primary schools in the period. We used primary and secondary
documental sources.
Keywords: teacher education; elementary writing teaching; history
of education

FORMACIÓN DE PROFESORES PARA LA


ENSEÑANZA DE PRIMERAS LETRAS EN LA ZONA
RURAL. BRASIL, FINAL DEL SIGLO XIX
Resumen
Génesis de la formación de maestros de primeras letras
problematizando la predominancia de un perfil para la zona urbana
al contrario de lo requerido para zonas rurales, identificando una
dimensión no-pronunciada en la política educativa de estímulo a
escuelas urbanistas y olvido de las tornadas hacia la ruralización de
las poblaciones. Inicia discutiendo estrategias de formación, de
orientación empirista y pragmática, que llevaron a la instauración de
adjuntos que se profesionalizaban, ayudando a docentes con
experiencia en escuelas de primeras letras urbanas, haciéndose, por
lo tanto, capaces de actuar en esas escuelas, aunque asumiesen
posteriormente escuelas de entrancias más alejadas. Analiza la
compossición curricular del curso de formación de maestros de
diversas provincias, destacando que, solamente en algunos casos,
eran incluidos temas relacionados al trabajo del hombre del campo,
que eran transformados en conocimiento escolar en una restricta

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función metodológica, pero con nítida prevalencia de estudios
propedéuticos, en el cuadro general de un currículum de asignaturas
científicas y de cuño académico. Llevanta la hipótesis que agricultura
y agrimensura figuraban como conocimientos anexados,
subordinados, a título de ejemplos concretos, especialmente de
asignaturas como Ciencias Naturales, Mineralogía, Geometría
Plana, Geología, por el incipiente proceso de disciplinarización de
los currícula y por el empirismo que privilegiaba prácticas de los
mundos letrado y urbano, y no las del mundo rural. Concluye que la
cultura urbana y erudita homogeneizaba y dominaba, como
universal, al currículum de escuelas primarias en el período. Son
utilizados fuentes documentales primarias y secundarias.
Palabras clave: Políticas educacionales de las zonas rurales;
Curriculo específico y formación profesional para docentes de
escuelas rurales.

FORMATION DE PROFESSEURS POUR


L'ENSEIGNEMENT DES PREMIÈRES LETTRES À LA
CAMPAGNE. BRÉSIL, FIN DU XIXème SIÈCLE
Résumé
Ce travail a pour but d’analyser la génèse de la formation de
professeurs de premières lettres, en mettant en cause la
prédominance d’un profil professionnel pour la zone urbaine en face
de celui requis pour les zones rurales, et en identifiant une
dimension non-prononcée dans la politique éducationnelle de
stimulation des écoles urbaines et d’oubli de celles situées à la
campagne. D’abord on discute des stratégies de formation,
d’orientation empirique et pragmatique qui ont conduit à la création
du métier d’adjoint, professionnel qui aidait le professeur expérient
dans des écoles urbaines de premières lettres et qui devenait donc
capable d’y travailler, bien qu’il soit engagé plus tard dans des écoles
éloignées des villes. Ensuite on analyse le cursus du cours de
formation de professeurs de provinces différentes, en observant que
l’inclusion de thèmes concernant le travail du paysan était quelque
chose de rare. Quand ce thème faisait partie du cursus il s’agissait
d’une connaissance strictement méthodologique, la prépondérance
des études propédeutiques dans le contexte d’un cursus de disciplines
scientifiques à caractère académique étant évidente. L’on formule
l’hypothèse que l’agriculture et l’arpentage figuraient comme des
connaissances attachées, subordonnées à des disciplines telles que
Les Sciences Naturelles, la Minéralogie, la Géometrie Plane, la
Géologie, par un procès nouveau de pluridisciplinarité et par
l’empirisme, qui privilégiait les pratiques du monde lettré et urbain
et méprisait celles du monde rural. Enfin l’on conclut que la culture
urbaine et érudite dominait et rendait homogène le cursus des écoles

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primaires dans cette période. L’on utilise des sources documentaires
primaires et secondaires.
Mots-clés: Les politiques d'éducation dans les zones rurales;
programme spécifique et la formation des enseignants dans les écoles
rurales.

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Este texto tem seu foco na gênese de iniciativas de


formação do professor relacionadas à zona rural do período
imperial. Discute a formação do professor no período imperial
focalizando os adjuntos, o papel formativo da prática, a
diferenciação entre cadeira, matéria e disciplina, para,
posteriormente, focalizar a composição curricular de escolas de
formação docente no período imperial. Enfatiza a orientação de
cunho pragmático e reprodutivista de iniciativas de países mais
adiantados, que instaurou a modalidade de professores adjuntos os
quais se profissionalizavam ajudando docentes com experiência em
escolas de primeiras letras urbanas tornando-se portanto capazes
para atuar nestas escolas, mesmo que assumissem posteriormente
as de entrâncias mais afastadas. Analisa formações curriculares de
diferentes províncias destacando que, apenas em alguns casos,
temas necessários ao homem do campo eram transformados em
conhecimento escolar - agrimensura e agricultura – levantando a
hipótese de que tal ocorria, pelo incipiente processo de
disciplinarização dos currículos destes cursos e pelo empirismo que
privilegiava práticas do mundo letrado e não as do mundo rural.
Conclui que tais elementos eram trabalhados nas escolas de
formação de professores de forma diferenciada pois figuravam
como exemplos aplicáveis de outros estudos, o que configura a
segunda fase da transposição didática.

Prática em escolas urbanas


e formação na Escola Normal

Discutimos em trabalho anterior (Werle, 2003), que a


prática era a base epistemológica da formação do professor, desde a
implantação da Escola Normal no Rio Grande do Sul e que a
disciplinarização do campo do conhecimento Pedagogia, iniciou
nos anos 30, fortalecendo-se com a Lei Orgânica do Ensino
Normal, em 1946. No presente texto, retomamos a formação de
professores analisando o "sistema de adjuntos" que reafirma a
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prática em escola de primeiras letras como local privilegiado de


imersão no pedagógico, necessariamente formadora1 do professor
que nela aprende seu oficio, destacando que a mesma era de cunho
universal, comprometida com o meio urbano. O sistema de
professores adjuntos antecedeu e, em alguns casos, foi
concomitante à formação específica em aula, cadeira, curso ou
Escola Normal. Demonstra-se, com base na obra de Primitivo
Moacyr2 e consulta a relatórios de presidente de província, que o
sistema de professores adjuntos fomentava uma pedagogia ajustada
às zonas urbanas, pois a prática era o eixo da formação docente e a
mesma se desenvolvia em escolas de cidades, Escolas Tipo ou
Escolas anexas (Werle, 2003), e não em escolas de distritos rurais.
Utiliza-se neste texto a idéia de pedagogia, como prática
profissional construída pessoal e dinamicamente em cada contexto,

1
A vivência escolar é, no dizer de Tardiff uma imersão "necessariamente
formadora", "pois leva os futuros professores a adquirirem crenças, representações
e certezas sobre a prática do ofício de professor, bem como sobre o que é ser
aluno"... "os professores já sabem, de muitas maneiras o que é o ensino por causa
de toda a sua história escolar anterior" (TARDIFF, 2002, p. 20).
2
As resenhas dos relatórios de presidentes de província, escritas por Primitivo
Moacyr e publicadas pela Companhia Editora Nacional, acerca da instrução
pública no período do Império são o material de base desta parte do texto. Nelas,
ora Moacyr é quem fala, assumindo a autoria do texto, ora, pela transcrição
literal, são os presidentes de província, os diretores de instrução pública e outros
atores políticos locais da época que falam. Moacyr apresenta um material de
caráter descritivo, estando as informações identificadas e separadas ano a ano,
embora, em alguns trechos se verifique o movimento de análise e comparação
entre as informações de diferentes anos de uma mesma província. O autor, na
feitura de suas obras (três volumes), resenha, transcreve trechos, utilizando
também a sinalização "letra em itálico" para destacar idéias. Os sinais textuais
usuais hoje, expressos nas normas da ABNT, não estão presentes e
consistentemente empregados nas publicações. Portanto, trabalha-se com material
que chamaríamos, de segunda ordem, se comparado com a íntegra dos originais
dos relatórios de presidente de província ou com a legislação e os regulamentos de
instrução os quais afiguram, num outro nível, o movimento político
administrativo referente à educação e aos quais chamamos de material empírico de
primeira ordem.

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muito diretamente relacionada à socialização de referência,


especialmente a experiências pré-profissionais do docente.

A pedagogia não pode ser outra coisa senão a prática de


um profissional, isto é, de uma pessoa autônoma guiada
por uma ética do trabalho e confrontada diariamente com
problemas para os quais não existem receitas prontas. Um
profissional do ensino é alguém que deve habitar e
construir seu próprio espaço pedagógico de trabalho de
acordo com limitações complexas que só ele pode assumir
e resolver de maneira cotidiana apoiado necessariamente
em uma visão de mundo, de homem e de sociedade
(TARDIFF, 2002, p.149).

Para Maurice Tardiff, a pedagogia, como conjunto de


recursos empregados pelo professor para atingir os objetivos
educativos, é uma tecnologia imaterial ou intangível e interativa
que se

concretiza através da reflexão e da ação no processo de


ensino-aprendizagem, corresponde a uma atividade
construtiva e interpretativa ao mesmo tempo: os
professores precisam interpretar os objetivos, dar-lhes
sentido em função das situações concretas de trabalho e,
ao mesmo tempo, conceber e construir as situações que
possibilitem a sua realização (TARDIFF, 2002, p.128).

O conceito de pedagogia nas dimensões de interação e


prática profissional inspira a análise das situações históricas
discutidas neste texto. Argumenta-se que a proposta de Escola
Normal Rural dos anos trinta, rearticula o valor da pedagogia
destacando-lhe a dimensão de prática profissional interativa pela
acentuação da capacidade de liderança e intervenção do professor
nas comunidades rurais, afirmando também que esta foi uma
tentativa de institucionalização de um saber docente voltado para o
ambiente rural e da profissionalização de um tipo específico de
professor – o professor primário rural. Era um momento em que a

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política educacional buscava provocar uma inflexão ou nuance


ruralizadora na carreira docente3.

Professores Adjuntos: o habitus pela prática da docência


em escolas urbanas de primeiras letras

Várias províncias, fundamentando a opção em


experiências internacionais, institucionalizaram uma figura
chamada de professor adjunto, ou de aluno-mestre, ou de monitor,
ou classe de aspirantes, ou também sub-mestres. O processo
iniciava pela identificação dos melhores alunos das escolas
primárias que estivessem concluindo seu curso de primeiras letras,
e sua manutenção como associados ou ajudantes do professor de
classe para, pela prática e pelo exemplo4, fossem se formando e,
com isto, posteriormente, assumissem, com independência, a
docência. Em geral, era um processo que se desenvolvia ao longo de
alguns anos, incluindo também a submissão a exames de
verificação de conhecimentos e uma remuneração que ia sendo,
progressivamente, aumentada conforme sua aprovação nos exames.

3
Destaco a compreensão de carreira como o percurso dos indivíduos na realidade
organizacional e social de uma dada ocupação através do qual o mesmo vai se
integrando na ocupação e se apropriando das formas de nela proceder, falar,
valorizar. Os indivíduos se adaptam às rotinas e regras, num processo de
socialização, de marcação e de incorporação de procedimentos usuais entre equipes
de trabalho na ocupação (TARDIFF, 2002, p. 70). Ao longo da carreira há uma
seqüência de fases de integração na ocupação e na subcultura que a caracteriza
(TARDIFF, 2002, p. 79) que a constitui como uma realidade social e coletiva
fazendo com que o indivíduo desenvolva um sentimento de pertença ao grupo
ocupacional.
4
Maués (2003) afirma que um aspecto característico da formação de professores
no panorama atual de reformas internacionais é a ênfase no saber prático o que se
expressa pela importância da inserção no meio profissional e no
acompanhamento, por um profissional experiente, no momento de assumir tarefas
especificas da função docente. Há muita semelhança entre esta concepção e as
que, no período imperial, propunham a formação do professor.

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Em 1850, no Ceará, por exemplo, identifica-se qual o


perfil – faixa etária, comportamento e aproveitamento excelentes e
qualidades para o magistério - e aonde seriam buscados os
candidatos a adjuntos - em escolas públicas e particulares -, dando
preferência a alunos pobres5 e a filhos de professores, sendo a
escolha final decisão do presidente da província.
Na província de Amazonas, em 1858 e seguintes, há
também registros semelhantes com base em dois argumentos: as
precárias condições humanas e materiais para instalar uma Escola
Normal e as experiências internacionais que justificavam as
vantagens da formação do professor pelo "sistema de alunos-
mestres" escolhidos entre os mais inteligentes e assíduos das classes
primarias (Moacyr, 1939, v.1, p. 32 e 34).
No ano de 1859, os registros que Primitivo Moacyr faz
da província das Amazonas configuram todo o processo de
formação, até o reconhecimento definitivo da capacidade
profissional da "classe de alunos-mestres", os quais, posteriormente,

5
O material consultado indica que a busca de candidatos para o magistério estava
ligada, em muitas províncias, a classes pobres e a "educandas". A palavra
educandas indica meninas desvalidas, órfãs criadas em asilos e é comumente
empregada nos registros de todas as províncias. Por exemplo, em 1885, na
província do Espírito Santo, foi permitido que as educandas que, estivessem
"prontas nas matérias de instrução primária do 1o. Grau, tivessem vocação para o
magistério" assistissem às lições da Escola Normal (Moacyr, 1940, v.3, p. 61).
Na província de Grão-Para, no ano de 1851, as "educandas" seriam preferidas, se
candidatas a cadeiras de ensino primário para o sexo feminino, possuindo a idade
de 21 anos e a capacidade necessária" (Moacyr, 1939, v.1, p. 83). Também no
ano de 1873, nesta mesma província lê-se: "Alem disto a Escola Normal faculta o
ensino das educandas do Colégio Amparo com louvável fim de preparar boas
professoras naquelas jovens desvalidas, educandas a custa da província"(idem, p.
143). Em São Paulo, em 1875 passa a funcionar uma seção feminina anexa ao
Seminário da Glória, com matricula inicial de 14 educandas (Campos, 1990, p.
7). Kulesza (1998) refere a escolarização de órfãs em instituições de formação de
professores como uma "modalidade de constituição das Escolas Normais" (p. 68 –
69).

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em 1872 foram designados de "classe de aspirantes ao magistério


primário" (Moacyr, 1939, v.1, p.55).

A classe de alunos-mestres será formada [dentre]... os de


escolas de 2o. grau, mais inteligentes e assíduos, maiores
de 12 anos de idade, que tiverem sido aprovados com
distinção nos exames anuais, tido bom procedimento e
mostrado propensão para o magistério. O seu número não
excederá de 6. Haverá também no colégio N.S. dos
Remédios uma classe de monitores, cujo número não
excedera a 4. Logo que os alunos completarem o
aprendizado e declararem que querem continuar como
monitores o respectivo professor apresentará ao Diretor da
Instrução para o propor com a sua informação, ao
governo. Resolvida a sua aceitação, vencerão logo a
gratificação de 60$000 anuais até completarem 15 anos
de idade e daí em diante 120$000. No fim de cada ano de
exercício até o terceiro ano serão examinados perante o
diretor do ensino e mais dois examinadores nomeados pelo
governo. Se não forem aprovados serão eliminados da
classe de adjuntos. O exame do 3o. ano versará em geral
sobre as matérias de ensino e especialmente os métodos,
sistema prático de dirigir a escola. Ao aluno aprovado dar-
se-á um título de capacidade profissional. Os alunos-
mestres depois do tirocínio de habilitação continuarão
adidos de escola pública. (...) O monitores com idade de
18 anos completos poderão entrar em concurso e obter a
nomeação efetiva (Moacyr, 1939, v.1, p. 38. Grifo nosso)

É nítida a orientação propedêutica e metodológica


impressa à formação do adjunto destacada inclusive por Moacyr no
trecho que colocamos em itálico, por outro lado, era uma
alternativa econômica pois reduzia custos com a instrução pública.
Na Província de Mato Grosso, ano de 1877, fica claro
que os adjuntos deveriam não só auxiliar os professores mas os
substituir, e por envolver jovens, era necessário cautela na
implantação deste mecanismo. O argumento é que muitos pais
cedo retiravam seus filhos da escola, antes mesmo de terem
completado sua formação e, especialmente,

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... porque não parece conveniente confiar uma escola a um
individuo que não seja sui júris e a idade de 14 anos é
insuficiente para a responsabilidade legal a que o mesmo
Regulamento sujeita os professores adjuntos. Sem uma
disposição legislativa, como a que requisito, de obrigar-se o
aluno a freqüentar a escola até o final de sua provecção,
exibida em exames anuais, e sem alteração de idade
requisitada para a nomeação do professor adjunto, a
realização da referida medida é desvantajosa e
imprudentissima. (...) Mas que a um jovem de 14 anos,
fora do gozo de direitos civis, não sujeito a contratos,
ainda mesmo inominados, precisando de quem mais o
guie e dirija, se confie, como substituto, na ausência do
professor, a direção do ensino e educação de outros jovens,
coisa é esta que me parece muito inconveniente. Além
disso, as nomeações de tais adjuntos feitas pelo governo,
equivalem a contratos inominados, contratos que pela
falta de nome, não perdem a sua essência, o consenso de
dois, para o mesmo fim, consenso que não se pode
verificar da parte de menores porque, quer o direito
natural, quer o pátrio, os considera inábeis para isso, e
irrita ou anula os atos por eles consumados. (Moacyr,
1939, v.2, p. 477 - 478)

Portanto, explicita-se no trecho anterior a precariedade


do "sistema de adjuntos" não tanto como processo formativo, mas
especialmente como estratégia de provimento de professores para a
instrução pública.
Era fundamentalmente o comportamento e o domínio de
conteúdos propedêuticos, que deveriam orientar a seleção e
permanência do professor em classes de primeiras letras. Por sua
pouca abrangência, o sistema de adjuntos sofria críticas, sendo
quase desacreditado, mesmo que fosse estratégia de formação
experimentada em paises mais adiantados, pouco dispendiosa, pois
o adjunto era minimamente remunerado e, além de atender alunos,
completasse seu processo de formação. Na província do Ceará, no
ano de 1864, registra-se sob forma de queixa de descontinuidade
política, o valor que era atribuído a este sistema de formação de
professores: "... ensaiou-se a criação de professores adjuntos de um
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modo imperfeito. É alguma coisa do sistema austríaco; mas para


que aquele sistema fosse completo, seria mister fazer dos
professores adjuntos viveiro donde fossem exclusivamente tirados
os professores efetivos" (Moacyr, 1939, v.1, p. 334). Portanto, não
eram todos os professores que passavam pelo sistema de adjuntos, o
que restringia seu possível impacto positivo e qualificador; na
província de São Pedro do Rio Grande do Sul, em 1864, por
exemplo, estavam em exercício apenas três professores adjuntos
(Moacyr, 1949, v.3, p. 464).
Como processo formativo o sistema de adjuntos encontra
bases e justificações em reflexões atuais de Maurice Tardiff que
destaca a importância das experiências pré-profissionais dos
docentes na medida em que a socialização escolar dos aspirantes ao
magistério impregna seus comportamentos e representações acerca
de como ser professor, e do ato de ensinar.

Em suma, tudo leva a crer que os saberes adquiridos


durante a trajetória pré-profissional, isto é, quando da
socialização primária, sobretudo quando da socialização
escolar, têm um peso importante na compreensão da
natureza dos saberes, do saber-fazer e do saber-ser que são
mobilizados e utilizados em seguida quando da
socialização profissional e no próprio exercício do
magistério. Desta forma pode-se dizer que uma parte
importante da competência profissional dos professores
tem raízes em sua história de vida, pois, em cada ator, a
competência se confunde enormemente com a
sedimentação temporal e progressiva, ao longo da história
de vida, de crenças, de representações, mas também de
hábitos práticos e de rotinas de ação (TARDIFF, 2002,
p. 69).

Ademais, de nosso ponto de vista, por não abranger todos


os professores, o sistema de adjuntos poderia ser designado de
"clínico" (no sentido de singular, individualizado, para indivíduos e
não para grupos) e restrito frente às necessidades das províncias de
formar quadros docentes. Por outro lado, como tais adjuntos
auxiliavam professores experientes e ensaiavam a docência em
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escolas das cidades, nada em sua formação conduzia para além do


mundo urbano, para a realidade do meio rural. Se a prática e o
exemplo configuram a formação profissional e se elas ocorriam em
escolas urbanas, a formação de professores se dava por intermédio
de práticas características de escolas de primeiras letras das cidades
e, fundamentalmente, nos próprios centros urbanos.
Tanto como o sistema de professores adjuntos, os espaços
de prática dos cursos normais - a Escola Anexa ou Aula Prática de
Pedagogia - configuravam a especificidade da formação do
professor. Esta situação de prevalência da Escola Prática na
formação do professor evidencia-se na província de Goiás, 1886:
"Quanto à Escola Normal, ela não passa de ser o antigo Liceu,
com um diretor especial... com duas escolas práticas (que nenhuma
diferença têm das outras escolas) e com uma cadeira de pedagogia
indispensável a tais instituições" (Moacyr, 1940, v.3, p. 563).
Acrescente-se ainda que os currículos das primeiras escolas normais
eram na maior parte os mesmos dos lecionados nos Liceus, com
forte conotação de estudos de educação geral.
Em 1874, na Província do Ceará, há um registro que
sintetiza temas anteriormente discutidos: as condições de
admissibilidade ao magistério, as que dispensavam o exame de
comprovação da capacidade profissional, a exigência de atestado de
experiência prática em escola pública da capital, o conteúdo dos
concursos para o magistério e aqueles que seriam priorizados para
ocupar as cadeiras de instrução pública vagas. O trecho também
situa os adjuntos como concorrentes a concurso e a ênfase na
prática em escola, inclusive a exigência ampliada de prática para
homens os quais poderiam, mais facilmente que mulheres, assumir
o magistério em escolas de 2o. grau.

Nas escolas primarias da capital que tiverem mais de 100


alunos matriculados e freqüência de 80 poderá haver um
adjunto nomeado pelo governo, proposto pelo diretor
geral. O adjunto deverá ser maior de 12 anos de idade, ter
bom comportamento, aprovação distinta nos exames
gerais das escolas públicas. Os filhos dos professores terão

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preferência e os alunos pobres. No fim de cada ano,
contado desta nomeação, serão os adjuntos submetidos a
novos e mais rigorosos exames perante o diretor geral e
dois examinadores, e os que forem reprovados poderão
repetir o ano. No fim do terceiro ano serão submetidos a
exames perante o diretor geral e dois examinadores, de
nomeação do presidente da província, e serão argüidos nas
matérias próprias das escolas de 1o. grau. Os que forem
aprovados e continuarem a praticar até a idade legal, terão
um titulo de capacidade profissional. (...) As condições de
admissão ao magistério são: maioridade, moralidade e
capacidade profissional. São dispensados desta ultima: os
indivíduos que tiverem grau acadêmico, clérigos, os
diplomados em academias estrangeiras, ou bacharéis do
Colégio Pedro II, os adjuntos aprovados no 3o. ano de
exercício. Ninguém será admitido a exame de capacidade
profissional sem exibir um atestado de ter estudado com
aproveitamento, pelo menos de dois meses, o modo prático do
ensino primário em uma das escolas do 1o. grau da capital;
sendo homem deverá praticar mais um mês na escola de
2o. grau. Ninguém poderá ser provido sem concurso
especial. O exame versará não só sobre as matérias do
ensino primário, como também sobre o sistema prático e
método do mesmo ensino.(Moacyr, 1939, v.1, p. 350-
351. Grifo nosso)

Destacamos o trecho que indica não apenas a


importância da prática para a capacidade profissional do professor
mas o local em que a mesma se realizava: "escolas de 1o. grau da
capital". A valorização da prática era tão forte que nesta mesma
província que estamos exemplificando, Ceará, a candidatura por
concursos, progressivamente, passou a requerer um período de
exercícios práticos em escolas de primeiras letras do aspirante a
professor, onde, desde 1855, ninguém seria "admitido a exame sem
ter estudado, por espaço de um mês, o modo prático do ensino em
algumas das escolas da capital" (Moacyr, 1939, v.1, p. 327). Em
certas províncias, pela falta de recursos para a implantação de uma
Escola Normal bastava uma breve formação prática – três meses de
estágio na escola primária modelo (Moacyr, 1939, v.1, p. 203).

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O mecanismo de formar professores tendo-os


inicialmente como adjuntos, recorrente, no período imperial, em
todas as províncias brasileiras, conduz e fortalece os espaços de
prática6 como os privilegiados na formação do professor. Ademais,
o trecho reafirma a preferência de seleção a filhos de professores e
alunos pobres o que exemplifica o conceito designado por Tardiff
de "efeito de socialização por antecipação" o qual é produzido na
medida em que parentes próximos ligados ao magistério
configuram uma história de familiaridade com a carreira no que
influi a tradição oral, provocando a aprendizagem do ofício antes de
iniciá-lo (TARDIFF, 2002, p. 76, 79).
Portanto, toda a formação do professor era
eminentemente pragmática na dimensão da carreira docente,
focada na ação didática e no manejo de aulas enquanto que as
demais disciplinas da Escola Normal eram, predominantemente,
propedêuticas. A carga de formação prática do professor não
incluía atividades agrícolas, práticas de campo e lavoura nem
formação junto a professores que atuassem em escolas de zona
rural, ou prática nestas escolas. As cidades eram o local privilegiado
de formação dos professores, nelas se situavam as escolas primárias
modelo onde era realizada a prática dos adjuntos e dos alunos que
estavam estudando para professor.
No ano de 1886, nos registros referentes à Província da
Paraíba, Moacyr registra como funcionava a formação pela prática,
na qual fica clara a separação entre o ensino para o magistério e o
ensino para uma profissão agrícola. Ambos eram considerados
profissionalizantes mas tinham foco diferenciado.

6
Pimenta (1995, p. 59) já argumentava que, no século XX, anos 30 e 40, a
prática no ensino normal visava a reprodução/imitação de modelos e a observação
de experiências modelares, bem sucedidas, tendo por base o pressuposto de que o
ensino primário "não apresentava modificações internas significativas nos dois
tipos de escola: a urbana e a rural". Nos anos 70, a prática restringiu-se à
instrumentalização realizada em algumas disciplinas (Pimenta, 1995, p. 60), ou
seja, acompanhamos a emergência de uma Didática voltada para o treino de
habilidades de ensinar, de cunho instrumental.

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O ensino normal porém, tem intuitos próprios, como os
tem o ensino agrícola, o mecânico, ou qualquer outro que
prepare para uma profissão. É então a prática da profissão
que determina a natureza do ensino e sua orientação
(Moacyr, 1939, v.1, p. 478).

Currículos de formação de professores

Nesta parte do texto toma-se como exemplo algumas


províncias, discutindo inicialmente a diferenciação entre "matéria",
"disciplina" e "cadeira", todas expressões utilizadas para referir
elementos curriculares no final do século XIX. A seguir descreve-se
quais eram os conteúdos relativos ao mundo rural, que figuravam
nos currículos dos cursos de formação de professores e com que
outros componentes curriculares disputavam o espaço curricular
para, posteriormente, proceder a uma análise interpretativa destes
dados.

Cadeira, matéria e disciplina: diferenciações necessárias à


discussão do currículo de formação de professores
No período Imperial "cadeira" era um termo fundamental
articulado às práticas escolares. Configura o regime de contrato dos
professores, o conjunto de temas para os quais tinham
conhecimento e aos quais lhes eram atribuídas responsabilidades de
ensino, portanto o seu trabalho como docente. Embora no material
analisado os três termos "cadeira, disciplina, matéria" tenham sido
empregados nem sempre de forma consistente, é possível identificar
a significação prática da expressão "cadeira de instrução pública".
É exemplificativo do sentido de cadeira e matéria o
seguinte trecho referente à província de São Paulo7, no ano de
1874:

7
Campos (1990, p. 7) também registra a "associação de disciplinas díspares numa
mesma cadeira, como Francês e Metodologia/Pedagogia, Lógica e História". Ver
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As matérias do curso [Normal] são: língua nacional,
língua francesa, caligrafia, doutrina cristã, aritmética e
sistema métrico, metódica e pedagogia com exercícios
práticos nas escolas públicas da capital (1a. cadeira);
elementos de cosmografia e geografia especialmente do
Brasil, noções de história sagrada e universal,
especialmente do Brasil, (2a. cadeira). (...) Para cada
cadeira um professor, nomeado pelo governo, mediante
concurso. (Moacyr, 1939, v.2, p. 368).

Pode-se interpretar que matéria tem o sentido de matéria


prima do processo educativo8 e que "cadeira" é a articulação
peculiar que as mesmas recebem na organização do currículo, o que
está diretamente associado ao provimento ou disponibilidade de
professor. Tanto é que os professores, em São Paulo, eram
"providos em cadeiras" (Moacyr, 1939, v.2, p. 360) e não em
matérias ou disciplinas. Um outro trecho do relatório de 1876,
nessa província, indica a amplitude envolvida na noção de "cadeira"
e a indefinição entre cadeira e estudos ofertados em um ano letivo
de escolarização: "A experiência já demonstrou a impossibilidade de
serem convenientemente explicadas, em uma cadeira, todas as
matérias do 1o. ano. Deve haver duas cadeiras em cada um dos
anos" (Moacyr, 1939, v.2, p. 374).
Da mesma forma o trecho que segue, referente à situação
da província de Alagoas, no ano de 1873, indica que um professor
lecionava o que hoje chamaríamos de diferentes conteúdos ou
disciplinas, mas que constituíam, na época, uma "cadeira": "A
Escola Normal continua a funcionar anexa às aulas do Liceu, a
cargo de diversos professores deste estabelecimento, à exceção do
doutor Joaquim José de Araújo que é professor exclusivo desta

também, para outras províncias e disciplinas, Cardoso (2002), Vago (2002),


Werle (2003).
8
Utilizo-me de ferramentas conceituais, especificamente o conceito de matéria,
que foram disseminadas por documentos do Conselho Federal de Educação
referentes ao núcleo comum do currículo, instituído pela Lei 5692/71.

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Escola e ensina caligrafia, desenho linear, métodos de ensino e


catecismo" (Moacyr, 1940, v. 1, p. 601). Igualmente na província
de Amazonas, no ano de 1871, há registros que evidenciam a
associação entre conteúdos com que as matérias do Liceu eram
oferecidas e tratadas dentre as quais havia a "cadeira de Pedagogia":
"Estas matérias serão dadas deste modo anexas: a de língua inglesa
à francesa; a de contabilidade e escrituração mercantil à de
matemáticas elementares; a de história universal à de geografia; a
de pedagogia à de gramática filosófica; ficando a de retórica ligada
à de filosofia" (Moacyr, 1939, v.1, p. 49). Neste exemplo fica claro
que uma "cadeira" anexava diferentes conteúdos ou matérias.
Esta concepção de "cadeira" perdurou por grande parte do
século XIX, pois se os exemplos anteriores datam da década de
1870, em outras províncias, desde o inicio da década de 30 tal
designação é empregada evidenciando o grande escopo de uma
"cadeira" e a vinculação de apenas um professor para cada "cadeira"
(Moacyr, 1939, v.1, p. 68).
Pode-se inferir que a estruturação das matérias, também
decorrente do nível de especialização e diferenciação do sistema
educativo da época, implicava no mínimo em duas dimensões, uma
quantitativa e outra qualitativa o que influenciava a configuração
das "cadeiras". Isso pode ser depreendido do seguinte trecho de
1881, referente à província de São Paulo: "Quanto às disciplinas
se deve alterar o quantitativo e qualificativo das matérias nas
cadeiras primárias estabelecendo-se o 1o. e 2o. graus. Este sistema
deve influir no acesso do professor e na disseminação do ensino."
(Moacyr, 1939, vol.2, p. 392). Este exemplo sugere as implicações
para a organização das matérias em cadeiras, decorrentes da
reorganização da instrução pública - pela instituição da hierarquia
entre o 1o. e o 2o. graus a qual configura um certo grau de
especialização da ação educativa desta instância do Estado. A partir
desse exemplo pode-se levantar a hipótese de que a criação de graus

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de ensino - movimento de especialização9 do ensino -, era proposta


como uma meta-estrutura articuladora das dimensões quantitativa
e qualitativa das matérias e das cadeiras a qual minimizava a
necessidade de detalhamento do conteúdo de cada cadeira, nos
documentos de política educacional como os relatórios de
presidente de província, possibilitando a sua designação mais
sucinta. Hoje, por exemplo, a inclusão de língua portuguesa no
currículo do ensino médio, em suas três séries, envolve a
compreensão já incorporada no senso comum de que, embora sob a
mesma designação, os conteúdos são diferentes, articulados e
progressivamente mais complexos e conforme o nível de
conhecimento e situação dos alunos. No período em estudo,
entretanto, esta compreensão não parece estar presente.
Nem sempre a proximidade do campo do conhecimento
conduzia à organização das cadeiras. Em São Paulo, por exemplo,
em 1876: "Estas matérias serão lecionadas por quatro professores
em quatro cadeiras pelas quais serão distribuídos pelo modo
seguinte: a) língua nacional e aritmética (1a. cadeira); b) francês,
metódica e pedagogia teórica e prática (2a. cadeira); c) cosmografia
e geografia (3a. cadeira); d) historia sagrada e universal e noções
gerais de lógica (4a. cadeira)" (Moacyr, 1939, v.2, p. 377). Já no
ano de 1880, a 5a. cadeira do Curso Normal incluía francês e
noções de física e química (Moacyr, 1939, v.2, p. 388)

9
Estudo de Archer (1979) explicita que os sistemas educativos estatais atendem a
quatro características: unificação, sistematização, diferenciação, especialização
(Archer, 1979, p. 174 - 182) as quais foram propostas pela autora a partir da
análise da elaboração estrutural dos sistemas educativos da França, Rússia,
Dinamarca e Inglaterra. A especialização implica na diversificação de insumos,
processos e produtos podendo resultar do poder relativo das demandas. A
especialização favorece o desenvolvimento de novos tipos de instituições ou novas
atividades, antes não abrangidas pelo sistema educacional ou o delineamento de
novos papéis ou de formas de recrutamento e treinamento, novas formas de
selecionar a clientela, variações curriculares ou o desenvolvimento de facilidades e
serviços de apoio.

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Em alguns casos, com referência ao magistério de


primeiras letras, "cadeira" e "escola" eram empregadas como
palavras sinônimas, tal como se evidencia neste trecho referente ao
ano de 1876, na Província de São Paulo: "O governo removerá os
professores de escolas suprimidas para as cadeiras atualmente vagas
e para as que se vagarem ou forem criadas" (Moacyr, 1939, v.2, p.
378). Por vezes, a Escola Anexa à Escola Normal era designada de
"cadeira anexa", reforçando o sentido de englobamento de
conteúdos de diferentes matérias que ela comportava e que está
sendo aqui discutido e, por outro lado, indicando a indiferenciação
entre a Escola Normal e seu local de prática.
Da mesma forma os concursos eram realizados para as
cadeiras e não para matérias ou disciplinas10.
Estas considerações acerca do significado de cadeira são
relevantes pois alertam para a forma que os conteúdos de ensino
relacionados ao mundo rural se apresentavam nos currículos de
formação de professores.
Nos cursos de formação de professores no final do século
XIX, alguns conteúdos relativos às lides rurais eram transpostos na
forma de conhecimento escolar e incluídos em cursos de formação
de professores em geral, articulados com outras temáticas de
ensino. Como cada província instituía descentralizadamente a
formação de professores há uma grande diversidade na organização
curricular, na configuração das cadeiras e de designação dos
mesmos.

Conteúdos referentes às lides rurais: transposição em cursos de


formação de professores
Na Província de Alagoas, o Curso Normal, em 1876 era
proposto em dois anos sendo que no segundo ano, ao lado de
geografia, noções de história pátria, doutrina cristã e história

10
Um exemplo é o que foi registrado no ano de 1879, na Província de São Paulo
(Moacyr, 1939, v.2, p. 388).

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sagrada, pedagogia, legislação, administração do ensino e noções de


filosofia, haveria Desenho linear, geometria plana e agrimensura.
Na Província de Grão Pará, no ano de 1871, a Escola
Normal teria um curso de três anos, organizado com um currículo
composto dentre outros estudos de Noções de Física, Química e
Agricultura as quais seriam ministradas ao lado de gramática da
língua nacional, instrução moral e religiosa, aritmética, pedagogia e
legislação do ensino, dentre outras. Nas várias reformulações
curriculares sofridas pela Escola Normal nesta província, não se
encontra formalmente registrado nenhum outro conteúdo explicita
e diretamente relacionado ao mundo rural.
Na Província do Maranhão, em 1874, o Curso Normal
da Sociedade 11 de Agosto, desenvolvido em dois anos,
ministraria, no primeiro ano, uma cadeira de Aritmética teórica
aplicada aos problemas usuais da vida; geometria prática aplicada à
agrimensura, nivelamento e levantamento de plantas. Ao lado desta
cadeira haveria outras de elementos de física e cosmografia,
doutrina cristã e pedagogia, gramática e língua portuguesa.
Na Província de Pernambuco mantém-se, mesmo nas
diversas reformas curriculares havidas no Curso Normal, estudos
relacionados às atividades rurais. Assim, pelo currículo de 1864 o
Curso Normal teria dois anos, sendo que, no segundo ano, seria
ministrada Geometria plana e agrimensura, ao lado de desenho
linear, métodos de ensino primário, leitura dos evangelhos,
geografia e historia. No ano de 1875 o curso foi ampliado para três
anos, sendo que, no segundo ano, seriam ministradas apenas duas
cadeiras, uma que incluía estudos de gramática filosófica, análise
lógica, história sagrada e caligrafia, constando da outra cadeira
Noções gerais de física e química; noções de agricultura teórica e
prática; agrimensura; desenho linear. Já nas reformas de 1880
passaram para o terceiro ano os estudos relacionados ao mundo
agrícola, sendo que, na segunda cadeira, seria ministrada Caligrafia
e desenho linear aplicado à agricultura e, na terceira cadeira, Noções
gerais de geologia, mineralogia e agricultura. No ano de 1887, o
currículo do Curso Normal é expandido para quatro anos e os
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estudos de agricultura restritos a uma cadeira do segundo ano:


Ciências naturais (geologia e mineralogia) com especimens a vista,
princípios de agricultura (4a. cadeira).
Na Província do Piauí apenas o currículo do ano de
1865 explicita que haveria estudos de Princípios rudimentares de
agrimensura, nivelamento.
No Espírito Santo, na reforma de 1873, que cria a
Escola Normal, é estabelecida uma cadeira na qual, dentre outros
estudos o mundo rural figurava na forma de Agrimensura
vinculada à Geometria Plana, no segundo e último ano do curso,
designada de Pedagogia, conhecimento da legislação e administração
do ensino, desenho linear, geometria plana e agrimensura, noções de
filosofia compreendendo as idéias fundamentais da moral e do direito
natural.
Em 1871, na Província de Minas Gerais, o Curso
Normal teria dois ou três anos, incluindo Leitura de prosa e verso,
Sistema métrico decimal, Religião, Gramática nacional com
exercícios de redação, Desenho linear, Aritmética, Pedagogia
principalmente a parte relativa aos métodos, Noções gerais de física e
química mais aplicáveis aos usos da vida, Conhecimentos elementares
de agricultura, Historia do Brasil, Legislação a respeito do ensino.
Ainda em Minas Gerais, a reforma de 1883 indicava que as
disciplinas de formação de professores fossem distribuídas em oito
cadeiras, quais sejam, Língua nacional e literatura, Aritmética e
escrituração mercantil, Pedagogia, historia sagrada e instrução
moral, religiosa e cívica, Geometria e desenho linear e de imitação,
Geografia geral; cosmografia, geografia e historia do Brasil, Francês,
Noções de ciências naturais química agrícola e Música.
Na Província do Paraná, em 1870 os estudos de
formação de professores incluíam Geometria aplicada à agrimensura,
o nivelamento e o desenho linear, além de Noções de ciências
físicas e naturais aplicadas ao uso da vida, História e geografia,
Aritmética com aplicação às operações práticas e sistema métrico,
dentre outros. Quando articulados constituíam a terceira cadeira
Aritmética, Geometria e Noções de ciências físicas e naturais.
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Nesta mesma província, a reforma do ano de 1882, reorganizou a


formação de professores em dois anos sendo que agricultura
constituía o quadro de estudos do segundo ano, assim articulada:
Estudo complementar da historia de mineralogia, de geologia e de
fisiologia, de higiene e de agricultura.
Na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul11, no
ano de 1881, na Escola Normal os estudos relacionados ao mundo
rural estavam incluídos em Cosmografia (elementos de Ciências
Naturais e Noções de Agricultura). No ano de 1889 a organização
do currículo da Escola Normal incluía Ciências Naturais
(Cosmografia, Física, Química, Geografia, Mineralogia, Botânica,
Zoologia e Agricultura). O Decreto 874, de 1906, que criava o
Curso Complementar indicava Elementos de Ciências Físicas e de
História Natural aplicáveis às Industrias, à Agricultura e à Higiene,
ao lado de Português (redação e composição), Francês (regras
essenciais de gramática, estudadas praticamente, tradução, versão e
exercícios de conversação), Alemão (regras essenciais de gramática,
estudadas praticamente, tradução, versão e exercícios de
conversação), Geografia Geral, Corografia do Brasil e
Cosmografia, História Universal especialmente do Brasil,
Matemática (Aritmética, Álgebra, Geometria, Trigonometria
Retilínea e Noções de Mecânica), Noções de Direito Pátrio,
Desenho Geométrico, de Ornato, de Paisagem e Topográfico,
Música por Audição e Pedagogia. Na reforma de 1927, o currículo
do Curso Complementar articulou, dentre vários componentes
curriculares Ciências Naturais com aplicação à Agricultura e
Pecuária, haveria ainda, dentre outras, disciplinas como
Escrituração mercantil, Higiene em suas relações com a escola.
Este era entretanto um curso com o objetivo de desenvolver o
ensino primário e preparar candidatos ao magistério público, sem
uma referência específica de preparo para escolas rurais. Na
reforma de 1929 o Curso Complementar teria 3 anos e o Curso
11
As informações referentes ao RGS decorrem da análise dos dados constantes
dos quadros anexos ao artigo Werle, 2003.

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Normal 2 anos, em ambos a referência a Agricultura e Pecuária é


omitida permanecendo apenas a indicação de higiene, no
Complementar como Ciências (Física, Química, História Natural,
Noções de Higiene) e no Normal como Higiene Geral, Higiene
Escolar e Puericultura.
Os diferentes dados apresentados bem exemplificam a
amplitude das cadeiras em currículos de cursos de formação de
professores no século XIX nas quais os temas referentes ao mundo
rural eram abordados. O exemplo mais marcante é o da província
do Espírito Santo que inclui numa única cadeira Pedagogia,
conhecimentos de legislação e administração do ensino, desenho linear,
geometria plana e agrimensura, noções de filosofia compreendendo as
idéias fundamentais da moral e do direito natural o que demonstra a
dificuldade de encontrar professores na época e a amplitude de
conhecimentos que aquele que se habilitava lecionar deveria ter.
Por outro lado o exame das composições curriculares também
demonstram a variedade de temas articulados. No caso do RGS,
por exemplo, em 1881 a Cosmografia englobava ciências naturais e
agricultura e, na refomra de 1889, eram as Ciências Naturais o
todo maior que articulava não apenas a Cosmografia mas Física,
Química, Geografia, Mineralogia, Botânica, Zoologia e
Agricultura. E, na reforma de 1906 a Cosmografia era um
componente vinculado à Geografia Geral e a designação não era
mais Ciências Naturais mas Ciências Físicas que figuravam
separadas de História Natural, ambas trabalhadas articuladamente
em suas aplicações várias, às Industrias, à Higiene bem como à
Agricultura.
Esta análise preliminar de algumas das propostas
curriculares de cursos de formação de professores praticadas nas
províncias, e levando em conta as considerações feitas acerca da
ampla significação de cadeiras – designação que indicava tanto um
tratamento administrativo como uma dimensão pedagógica - e, ao
mesmo tempo, a diferenciada menção de temas nos currículos - ora
indicados de forma a detalhar tópicos de ensino e ora designando-
os de forma mais abrangente –, considerando também que havia
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uma diferenciada integração entre estudos incluídos nos currículos


(Caligrafia, desenho linear aplicado à agricultura, por exemplo) e
que os documentos de base desta análise são variados em sua
produção e natureza – tanto relatórios de presidente de província
resenhados por Primitivo Moacyr como documentos primários
(para o caso do RGS) – pode-se sintetizar num quadro as áreas
temáticas às quais os temas relacionados ao mundo rural estavam
vinculados.

Quadro demonstrativo da Relação de estudos de cunho geral e conhecimentos


nitidamente relacionados ao mundo rural transformados em conhecimento
escolarizado, ou seja, em objeto de ensino e de aprendizagem escolar
ESPECIFICAÇÃO DE CONHECIMENTOS
ESTUDOS DE CUNHO GERAL
RELACIONADOS AO MUNDO RURAL
Geometria (aplicada, prática) Agrimensura
Bloco Geometria Plana Nivelamento
I Desenho Linear (aplicado) Desenho Linear aplicado à Agricultura
Caligrafia Geometria aplicada à Agrimensura
Ciências Naturais
Cosmografia
Geografia
Geologia
Mineralogia
Bloco Química Agrícola
Física
II Agricultura
Química
Fisiologia
Higiene
Botânica
Zoologia

Os temas relacionados ao mundo rural aparecem nos


cursos de formação de professores no século XIX articulados em
cadeiras de ensino e vinculados com estudos de cunho geral os
quais poderíamos apresentar em dois grandes blocos considerando a
proximidade temática de seus conteúdos. No Bloco I situam-se
estudos vinculados à compreensão, expressão e domínio do espaço
incluindo geometria, desenho e até caligrafia os quais articulavam-
se, em alguns períodos, em algumas províncias, a agrimensura,
nivelamento e agricultura. Ou seja, agrimensura e nivelamento

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figuram em algumas composições curriculares como estratégias


aplicativas para o desenho e a geometria. O exemplo mais claro é
Geometria prática aplicada à agrimensura, nivelamento e levantamento
de plantas (província do Maranhão), o que indica um trabalho de
explicitação da geometria e sua concretude em situações de vida
prática como o dimensionamento de áreas, estudo planialtimétrico
e topográfico de terrenos.
No Bloco II situamos estudos relacionados à fenômenos
da natureza tanto os designados genericamente de Ciências
Naturais como seus detalhamentos. Eram inúmeras as formas de
articular os conteúdos. Muitas vezes os estudos de Física e
Química eram designados explicitamente. Em outros casos, a
agricultura estava diretamente relacionada à Geologia e
Mineralogia. Geografia era também um tema ao qual a agricultura
e as ciências naturais e seus desdobramentos poderiam estar
vinculados, possivelmente no foco das relações do homem com o
meio que o abriga e no modo de exploração racional do ambiente
físico.
Importante assinalar que a agricultura não aparece como
componente principal mas sempre subsidiário de outros estudos
vinculados à natureza. Da mesma forma destaca-se que seriam
apenas ministradas "noções"de agricultura, sem aprofundamento
ou sem que esta fosse expressa como um tipo específico de
conhecimento com características próprias, capazes de o
individualizar e desvincular de outros temas de estudo. Do que se
pode inferir que não havia ênfase no conhecer, no saber-fazer e no
realizar atividades vinculadas à agricultura de forma a formar um
professor conhecedor do meio agrícola. Destaca-se que, em apenas
um caso, encontrou-se a designação de que o trabalho em Noções
agricultura teria dimensões teórica e prática, mas mesmo nesse, tais
estudos seriam conduzidos em articulação com a Física e a
Química que possivelmente presidiam a orientação dos mesmos.
Interpreta-se que os estudos de agricultura e agrimensura
figuravam nos currículos mais como formas aplicativas, como
subsidiárias de outros componentes de maior destaque e presença
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mais constante nos currículos sendo os temas relacionados ao


mundo rural, apenas trazidos por seu potencial exemplificativo.
A hipótese de posição subalterna de estudos relativos à
agricultura em cursos de formação de professores decorre também
da forma como eram designadas nas composições curriculares:
princípios, princípios rudimentares, conhecimentos elementares ou
noções gerais de agricultura.
Outro argumento da subsidiariedade com que estudos
relacionados à agricultura eram tratados decorre de que não
encontramos indicação de como tais temas relacionados ao mundo
agrícola deveriam ser tratados junto a alunos que estivessem em
processo inicial de escolarização. Como discutimos anteriormente
tais temas não eram objeto da prática em escola anexa à escola
normal e nem da formação de adjuntos. Ora, se a prática era um
componente forte e essencial da formação do professor no período,
muito auxiliando na pertença à carreira docente, então as questões
relacionadas ao trato, valorização, desenvolvimento de tarefas e
compromissos relacionados ao mundo rural deveriam ser
contempladas em tais espaços de prática se o objetivo fosse formar
o professor para as zonas rurais.
Argumentamos, portanto, que os temas relacionados à
agricultura e agrimensura (não encontramos referência explicita ao
trato com animais, a não ser em 1927, no RGS, na proposta de
Curso Complementar: Ciências Naturais com aplicação à
Agricultura e Pecuária) figuravam em currículos de formação de
professores não na perspectiva de que havia saberes doutos em
agricultura e em agrimensura os quais eram transformados em
saberes a ensinar e que esses, por sua vez, ali deveriam estar por
compor o perfil de profissional docente intencionado, ou seja, que
tais conteúdos precisassem estar relacionados permanentemente
com o seu ensino em escolas de primeiras letras. Levantamos a
hipótese de que agricultura e agrimensura figuravam no currículo
pois Geometria, Desenho Linear, Ciências Naturais, Mineralogia e
Geologia, ou outros conteúdos, para serem transpostos do nível de
conhecimentos científicos para conhecimentos escolarizados,
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precisavam ser contextualizados, organizados com alguma


pertinência em relação à realidade concreta e não apenas em forma
de conhecimentos abstratos. Por isso a menção a agricultura,
agrimensura e elementos do mundo rural. Tais estudos não eram
saberes de formação profissional do professor, não entravam nos
currículos como saberes técnicos ou como um saber-fazer
necessário à renovação de funções vinculadas ao mundo rural nem
como um saber a ensinar em escolas de primeiras letras, mas como
exemplos concretos e de aplicação de outras disciplinas.
Por outro lado, em nossos estudos acerca da Escola
Complementar no Rio Grande do Sul, não encontramos
documentos nas escolas e nem relatos de ex-complementaristas que
indicassem o estudo sistemático de agricultura, agrimensura nem
de pecuária, já que trabalhamos com colégios que se viveram as
reformas de 1906, 1927 e 1929. Esta ausência de referências a
agricultura, agrimensura reforça o argumento de que estes temas
eram exemplificações, estavam em função de componentes mais
importantes e valorizados na formação do professor e portanto, em
algumas instituições outros exemplos eram utilizados pois a forma
como tais conhecimentos eram trabalhados em cada escola e em
sala de aula é do campo da segunda fase da transposição didática, a
mais sensível a variações pois produzida no momento do fazer
docente e não manejável diretamente por instrumentos de política
educacional mais ampla (legislação, relatórios de governo,...).
Esclareço que a concepção de transposição didática é aqui
utilizada compreendendo que o que se ensina não é uma cópia
simplificada do saber científico, mas uma reconstrução que ocorre
no interior da escola e do sistema de ensino. De acordo com Jean-
Pierre Astolfi (1998) são duas as etapas da transposição didática, a
primeira encaminha o saber erudito/literário/cientifico a um saber
a ensinar e a segunda focaliza as rearticulações desse saber a ser
ensinado ao saber ensinar em classe. A segunda se efetua sobre a
responsabilidade do mestre enquanto a primeira situa-se no âmbito
do um conjunto heterogêneo dos conteúdos de ensino e no espaço
dos especialistas interessados em problemas pedagógicos, dos
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autores de manuais, de inspetores e de associações de especialistas


na área de educação.
A segunda fase da transposição didática é o que Tardiff
refere como "conhecimento pedagógico do conteúdo", ou o que
ocorre na ação do professor com os alunos em sala de aula, ao
elaborar estratégias e esquemas cognitivos, em função de
condicionantes tais como os programas e o tempo disponível. Para
ele o "Conhecimento pedagógico do conteúdo não pode ser
separado do conhecimento desse conteúdo" (TARDIFF, 2002,
p.120), apesar de que "o conteúdo ensinado em sala de aula nunca
é transmitido simplesmente tal e qual: ele é ´interatuado´,
transformado, ou seja, encenado para um público, adaptado,
selecionado em função da compreensão do grupo de alunos e dos
indivíduos que o compõem." (TARDIFF, 2002, p.120). É nessa
segunda fase que a pedagogia como prática profissional se
estabelece e desenvolve.
A transposição didática se relaciona à idéia de que nos
currículos o saber escolar se encontra despersonalizado,
descontextualizado das condições originais da sua produção e
linearizado para facilitar o processo de ensino. A modificação
periódica dos conteúdos responde a necessidade de renovação, que
encontra sua origem nas demandas da comunidade cientifica
(modernizar o ensino aproximando-o do saber cientifico), nas
necessidades sociais (incluir temáticas relevantes para o
enfrentamento de problemas novos do cotidiano), bem como, nas
relacionadas a legitimar o ensino ministrado nas escolas,
valorizando-o e afastando-o do saber partilhado pelas famílias.
Entretanto, a introdução do novo não se dá como um simples
acréscimo, como se ocorresse em uma tabula rasa, mas há
rearticulações com os conteúdos escolares já legitimados. Por outro
lado Astolfi (1998) afirma que a transposição didática resulta
também na criação original de elementos curriculares os quais não
têm, necessariamente, equivalentes no saber cientifico mas
instituem-se para permitirem o atendimento de funções em relação
a objetivos socialmente designados para a escola. Astolfi, com base
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em Develay, refere o conceito de reconstrução programática que


opera a partir de dois processos complementares: a didatização que
conduz à criação de novos ensináveis e a axiologização que indica
que os conteúdos de ensino traduzem finalidades educativas e
sociais.
Utilizei (WERLE, 2003) também a expressão
disciplinarização para referir a sistematização da produção do
conhecimento ocorrida no campo da educação e os processos daí
decorrentes, os quais se manifestam pelo acúmulo de
conhecimentos e pela forma de expressão dos mesmos nos
currículos de formação de professores. A disciplinarização na
medida em que especificações e de diferenciações ocorrem em três
níveis: o campo da produção do conhecimento, o da formação e o
das normas legais. Poderíamos também identificá-la com a
primeira fase da transposição didática em que saberes
sistematizados "doutos" são transformados em currículo formal
(Perrenoud, 1993). Assim, os estudos relacionados ao mundo
agrícola em cursos de formação de professores no período imperial,
não se afiguram com uma identidade e especificação que os
constitua como disciplinarizados, com unidade temática e
metodológica, e com autonomia frente a outros temas do currículo.
Argumenta-se que conteúdos relacionados ao mundo
rural, no final do período imperial foram incluídos no currículo dos
cursos de formação de professores em algumas das províncias, de
maneira desigual e instável, pois lhes sustentava
predominantemente a transposição didática em sua segunda fase de
"conhecimento pedagógico do conteúdo" ou saber ensinar em
classe. Para que estudos como Ciências Naturais, Mineralogia,
Desenho, Geometria e outros fossem ensinados – esses já
escolhidos na primeira fase da transposição didática, transformados
de saberes científicos/doutos em saberes a ensinar -, era necessário
orientar os mestres que os ministrariam (especialmente pelo fato da
organização do ensino ocorrer em cadeiras, amplos aglomerados de
saberes a ensinar assim compostos por motivos administrativos e
pedagógicos), para que tivessem pautas de procedimentos
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orientadoras de sua ação na segunda fase da transposição didática:


o saber ensinar em classe, interatuando com alunos e ensinando
em salas de aula.
Desta forma, não ocorria uma reconstrução programática
com base em valores relacionados ao mundo rural proclamados e
diretamente referidos à ação dos professores de primeiras letras o
que possivelmente não interferia no processo de constituição da
carreira de forma a encaminhar o professor de primeiras letras para
uma identidade com o mundo rural forte o suficiente para provocar
uma inflexão na carreira de "professor para escolas urbanas".

Referências

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Rio de Janeiro, São Paulo, Mato Grosso. São Paulo: Companhia
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primário rural. Teias, Rio de Janeiro, ano 1, n.1, p. 46 – 55,
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TARDIF, Maurice. Saberes docentes & formação profissional.
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WERLE, Flávia Obino Corrêa. Modernizando os cursos de
formação de professores: disciplinarização da Pedagogia e
deslocamento da prática. IN: FERREIRA, Naura Syria Carapeto
(org). Formação continuada e gestão da educação. São Paulo:
Cortez, 2003. p. 251 – 304.

Flávia Obino Corrêa Werle - doutora em Educação pela


Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1993) e
pós-doutora pela Universidade do Minho (2003) . Atualmente é
professor titular da Universidade do Vale do Rio dos Sinos.
E-mail: flavia@helios.unisinos.br

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Recebido em: 21/09/2007


Aceito em: 20/01/2008

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LOCKE E MAKARENKO: CONCEPÇÕES
DIFERENCIADAS DE DISCIPLINA ANTE A
"VONTADE GERAL" DE ROUSSEAU
Gomercindo Ghiggi
Neiva Afonso Oliveira
Avelino da Rosa Oliveira

Resumo
O texto busca aproximar Locke e Makarenko a partir da discussão que
os autores disponibilizam sobre disciplina, sob o crivo do conceito de
"vontade geral" de Rousseau. Primeiramente retomam-se os dois
autores em suas particulares concepções de educação e em suas
reflexões sobre disciplina, buscando demonstrar que em suas obras há
estreita relação entre educação, política e disciplina e que tal relação
institui, à educação, a tarefa da formação do homem novo. A seguir, a
ponderação volta-se para a reflexão acerca dos nexos existentes entre
os dois autores, em particular em torno de suas intenções políticas
quando discutem educação e disciplina. Por fim, chama-se Rousseau,
com seu conceito de "vontade geral", a fim de garantir um
fundamento para a disciplina enquanto promotora da liberdade.
Palavras-chave: fundamentos da educação; Locke e Makarenko;
disciplina e vontade geral.

LOCKE AND MAKARENKO: DIFFERENT


CONCEPTIONS OF DISCIPLINE AND ROUSSEAU'S
"GENERAL WILL"
Abstract: This text aims at bringing Locke and Makarenko together,
based on their discussions on discipline, and on a detailed analysis of
Rousseau's concept of "general will". Firstly, I review Locke's and
Makarenko's particular conceptions of education and their reflections
on discipline, and try to show that there is a close relation among
education, politics, and discipline in their work, and that such relation
gives education a task to do: the development of the new person.
Then, reasoning leads to reflection on the links that exist between
both authors, specially the ones related to their political intentions
when they discuss education and discipline. Finally, Rousseau is
brought in so that his concept of "general will" can guarantee grounds
for discipline since it promotes freedom.
Keywords: principles of education; Locke and Makarenko; discipline
and general will.

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LOCKE Y MAKARENKO: CONCEPCIONES
DIFERENCIADAS DE DISCIPLINA ANTE LA
"VOLUNTAD GENERAL" DE ROUSSEAU
Resumen
El texto busca aproximar Locke y Makarenko a partir de la discusión
que los autores disponibilizam sobre disciplina, sobre el cribo del
concepto de "voluntad general" de Rousseau. Primeramente,
retómanse los dos autores en suas particulares concepciones de
educación y en suas reflexiones sobre disciplina, buscando demostrar
que en suas obras hay estrecha relación entre educación, política y
disciplina y que tal relación atribuye a la educación, la tarea da
formación del hombre nuevo. A seguir, la ponderación vuélvese para
la reflexión acerca de los nexos existentes entre los dos autores, en
particular en torno de sus intenciones políticas cuando discuten
educación y disciplina. Por fim, se llama a Rousseau, con su concepto
de "voluntad general", con la finalidad de garantizar un fundamento
para la disciplina encuanto promotora de libertad.
Palabras clave: fundamentos de la educación; Locke y Makarenko;
disciplina y voluntad general.

LOCKE ET MAKARENKO: DES CONCEPTIONS


DIFFERENCIÉES DE DISCIPLINE DEVANT LA
"VOLONTÉ GÉNÉRALE" DE ROUSSEAU
Résumé
Ce texte cherche à approcher Locke et Makarenko à partir des
discussions soulevées par ces auteurs sur la discipline, en les passant au
crible du concept de "volonté générale" de Rousseau. D'abord l'on
reprend chez les deux auteurs leurs conceptions particulières
d'éducation et leurs réflexions sur la discipline dans le but de
démontrer que dans leurs oeuvres il y a un rapport étroit entre
éducation, politique et discipline et qu'un tel rapport donne à
l'éducation la tâche de former l'homme nouveau. Ensuite l'on réfléchit
aux liens qui existent entre les deux auteurs, surtout en ce qui
concerne leurs intentions politiques lorsqu'ils dicutent l'éducation et la
discipline. Enfin l'on reprend chez Rousseau son concept de "volonté
générale", afin de garantir un fondement à la discipline en tant
qu'instigatrice de la liberté.
Mots-clés: fondements de l’éducation; Locke et Makarenko;
discipline et volonté générale.

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1. Locke: disciplina a serviço da formação do homem


novo para o projeto de educação liberal.

A questão da disciplina, na reflexão de John Locke


(1632-1704), vincula-se à sua obra em geral e, particularmente, ao
problema do conhecimento que desenvolve no bojo de sua teoria
filosófica. Como na política, que buscou na tolerância e no sistema
parlamentar representativo as alternativas para o absolutismo
vigente, no conhecimento construiu um conjunto de idéias para
desestruturar dogmatismos teológico-metafísicos. O conhecimento,
a partir de Locke, passa a não ter caráter absoluto, quando
impossível torna-se ao homem chegar à verdade estável e busca
conhecer a partir dos fatos, não procurando, neles, descobrir
necessidades. Locke preocupa-se em refutar a existência de
princípios inatos e mostra que os homens, usando faculdades
naturais, podem chegar ao conhecimento.
Para Locke, a educação deve estar a serviço do prazer
duradouro, não daquele que satisfaz aos instintos e ao corpo, mas
que faz bem ao espírito. O prazer duradouro consiste em ter saúde
(sem a qual nenhum outro prazer é possível), gozar de reputação,
possuir amplos conhecimentos, praticar sempre o bem e ter
esperança, particularmente esperança de felicidade eterna. Podemos
gozar de todas as diversões que contribuam para as dimensões
acima apontadas e não daquelas que possam destruir um desses
prazeres.
Pelo menos para a época, aspectos importantes aparecem
na proposta educativa e pedagógica de Locke. A aversão aos
castigos é um exemplo (LOCKE, 1986, p.75 e ss). O autor
considera que a dimensão mais importante na educação não é a
instrução ou o saber acumulado, mas a formação de costumes
éticos. A criança não é má por natureza, mas tende a comportar-se
conforme a lei natural. A educação, logo, pretende fazê-la
renunciar a tal estado. O método a ser adotado é o da severidade e
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da disciplina, sem que isto indique a aplicação de castigos, medida


a ser adotada em casos extremos ou para a formação de costumes e
quando se torna inviabilizado o objetivo proposto. Outro aspecto
importante a ser destacado para a época refere-se à preocupação em
observar a natureza particular da criança. John Locke afirma que é
necessário examinar as tendências, as inclinações predominantes e
extrair o maior proveito possível delas com vistas à formação da
criança.
Pelos elementos acima destacados, é que Locke é um
pensador-pedagogo importante, tendo como opção a perspectiva
individualista-liberal que assume, mas, também, pelo conjunto de
sua reflexão que o coloca como uma das grandes figuras da história
do pensamento. Para confirmar o acima exposto, HIRSCHBERGER
(1956) ressalta a importância do autor para a filosofia em geral e,
particularmente, para a filosofia da educação, dizendo que o "...
século das luzes (XVIII) fez dele um herói. Montesquieu e Voltaire
buscaram nele idéias filosóficas e políticas e Rousseau suas idéias
pedagógicas." (p.226-7) Ademais, Locke é considerado o pai da
disciplina. O que o torna representante dessa opção pedagógica é
sua idéia de espírito humano como tábula rasa, podendo adquirir as
virtudes de fora para dentro, pela formação de hábitos. A mente,
neste sentido, é desenvolvida pelo treino e pela disciplina de suas
faculdades. Disciplina que, para o autor, não é senão um conjunto
de leis ou ordens a que o indivíduo deve submeter-se. É submissão
e obediência, com vistas à formação de hábitos. A criança pode,
livremente, ir assumindo comportamentos desejados pela classe a
que pertence. De alguma forma, aqui, a concepção de disciplina de
Locke aproxima-se daquela de Anton Semionovitch Makarenko
(1888-1939), conforme veremos adiante.
Locke, em seus escritos pedagógicos, trata, então, da
educação da criança da nobreza e da burguesia, da educação que
deve garantir espírito disciplinado e corpo em boa forma. É
necessário normatizar e regrar, desde cedo, os costumes. A mente
deve ser obediente à disciplina e aberta à razão. Assim é que a
disciplina pode ser entendida como disciplina moral e não apenas
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como processo instrutivo e punitivo. A formação do gentleman é o


motor para tal processo, educando-o para saber conduzir-se
conforme a sociedade estabelecida. O hábito do autocontrole é o
segredo para tal. É o poder livre, que depende de uma formação
moral, que deve possibilitar ao homem dizer não aos desejos
naturais.
Afora o acento individualista, a teoria disciplinar de Locke
é fundamental quando valoriza mais o processo de aprendizagem do
que o conteúdo aprendido, o que, aliás, representa mais um
elemento que a aproxima da teoria pedagógica makarenkiana. A
disciplina, em ambas teorias, constitui-se como resultado do
processo educativo. Conforme MONROE (1977), "o guia para
alcançar a verdade e para todas as atividades da vida, para Locke, era
a razão, mas o espírito só era capaz de alcançar a verdade e formulá-la
quando educado para este fim. Esta educação consiste numa
disciplina rígida" (p.237)
Mesmo que, em relação à organização do Estado, Locke
não abandone o estado natural para estruturar o civil, na dimensão
educacional suas "(...) afirmações mais categóricas eram a repressão e
disciplina das tendências naturais e que a educação (...) nada mais
era do que a formação de hábitos" (id, p.242). A educação como tal é
que é a disciplina. Se a fortaleza do corpo demonstra-se pela
capacidade de suportar sofrimentos, para o espírito evidencia-se
pela qualidade que um homem tem de negar a si mesmo a
satisfação de seus próprios desejos, dominar suas inclinações e
seguir aquilo que a razão determina. O homem obtém e melhora
esse poder pelo costume. No parágrafo 33 de Some Thoughts
concerning Education (1693), Locke expressa sua concepção de
disciplina a qual perpassará toda obra: "como a fortaleza do corpo
consiste (...) em ser capaz de resistir à fadiga, o mesmo ocorre com a
do espírito." O princípio, para Locke, "(...) de toda a virtude (...)
assenta nisto, em que o homem seja capaz de recusar a si mesmo a
satisfação de seus próprios desejos (...) e seguir somente o que sua

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própria razão lhe dita como melhor, mesmo que o apetite o incline em
outra direção" (LOCKE, 1986, p.66).1
Para Locke, a organização da sociedade passa pela
elaboração de novas perspectivas epistemológicas, políticas e de
liberdade, viabilizadas por processos formativos. Tomando como
base a obra Segundo Tratado Sobre o Governo Civil,2 para o autor, a
preservação da liberdade3 decorre de um contrato que homens
fazem e da submissão à lei que decorre da vontade da maioria.
Considera que a decisão da maioria é a mais correta e acatá-la
equivale a aceitá-la como melhor (LOCKE, 1983). É assim que
Locke constitui e legitima a autoridade disciplinadora buscando
garantir a liberdade. Aqui, chamamos Jean-Jacques Rousseau
(1712-1778), não apenas para apontar para outro conceito, que é
a vontade geral, mas, substancialmente, para compreender a raiz da
disciplina em Locke e Makarenko.
1
Locke constituiu a reflexão educativa e pedagógica, exposta em Alguns
Pensamentos Sobre Educação, a partir de cartas escritas a seu amigo Edward
Clark, aconselhando-o sobre a educação do filho, entre 1684 e 1686. Eram
longos escritos que circulavam também entre um grupo de amigos do autor.
Leitores dos escritos propunham publicação, o que Locke acabou aceitando.
Reelaborou seus apontamentos entre 1689/90 e, finalmente, em 1693 apareceu a
primeira versão da obra. As publicações ou versões seguintes foram sendo
aprimoradas. Ressalta-se, com tais informações, a idéia de que o documento tem
origem a partir de experiências com o acompanhando e o desenvolvimento de uma
criança..Encontramos a tradução desse texto de Locke editada em fascículos em
Cadernos de Educação, publicação da FaE/UFPEL.
2
Incluindo reflexões acerca da obediência política, expostas no "Primer Libro Sobre
El Gobierno" (FILMER-LOCKE, 1966), contrapondo-se a Filmer, Locke dá
fundamentação politicamente à revolução de 1688. Juntamente com a
independência americana e a revolução francesa (não principalmente filha da
miséria, mas da necessidade de acomodação de interesses hegemônicos), filhas do
racionalismo e do humanismo, a Revolução Inglesa contestou a noção de
autoridade civil e eclesial e privilégios originados de posição social que pessoas
ocupavam devido ao ocaso da nascença.
3
Locke antecipa o que Kant proclamará: "ouse confiar na própria inteligência",
levando-o ao conceito de liberdade enquanto assunção à autonomia: do saber face
à ciência, do indivíduo porque proprietário e do Estado porque laico.
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Assim, o poder político considerará o homem agente


moral e livre, razão pela qual, na filosofia política de Locke, o que
merece destaque é a conquista e a preservação da liberdade,
decorrente de contrato. Há, pelo menos, dois aspectos relevantes a
serem considerados, tendo em vista a permanente preocupação com
a liberdade: sua luta é fundamental para o momento histórico
absolutista pelo qual ainda passava a Inglaterra e a grande maioria
dos povos à época em que escreveu sua concepção política, e o fato
de Locke, defendendo a liberdade, não admitir que o homem, livre,
tenha a si próprio ou as circunstâncias como critérios exclusivos à
ação. Locke busca estabelecer parâmetros, embora ainda
vigorosamente de economia individual, para formar e disciplinar o
indivíduo, desconsiderando dimensões políticas que atentem para
interesses comuns. A educação é essencial para Locke porque o ser
humano é tábula rasa e tudo está por ser construído. As idéias têm
origem na experiência, ou seja, somente pela educação, pela
influência de fora para dentro, é possível criar hábitos na criança,
que constituem a essência do processo educativo.
No caso da política, ele origina a lei civil da natural (o
inato não existe). O que existe é o que pode ser construído pelo
homem livre. Por isso, a preocupação central do projeto de
formação é com o gentleman, que, agora conformando-se à
burguesia, deve ser formado para a liberdade, para a tolerância e
para assumir a direção da sociedade. O cidadão burguês, através da
mediação familiar, que lhe dá segurança e ordem, deve adquirir
hábitos de conduta que garantam, quando adulto, ser disciplinado e
mantenedor da sociedade instalada em 1688: livre, embora
desigualitária. Embora sua proposta pedagógica, afirma TARCOV
(1984), esteja separada da política, a educação do gentleman, no
entanto, é um suporte às opções políticas que Locke sustenta. A
educação forma homens de negócios: fisicamente adequados e
corajosos. O importante é a vontade que têm e a capacidade de
cuidar dos bens, do comércio e de serem bem informados sobre
questões públicas. Falam e escrevem bem. São homens livres,
autoconfiantes, independentes.
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A apresentação do tema da tolerância amplia o seu quadro


teórico em defesa da liberdade e do sistema social resultante e
fortifica a necessidade de um sistema pedagógico adequado.
Baseado nessa reflexão, Locke tematiza a relação entre liberdade,
educação e disciplina. Entre outros documentos a respeito da
liberdade, Carta sobre a Tolerância (1689) provocou polêmica, pois
o autor advoga a liberdade de consciência religiosa, onde o Estado
deve preocupar-se com o bem-estar dos cidadãos e não tomar
posição em opções religiosas. Decorre que é possível inferir, por um
lado, a relação deste documento com os demais escritos e, por
outro, particularmente a sua importância para a compreensão de
suas reflexões sobre educação e concepção de disciplina e liberdade.
Portanto, o autor busca, com seus escritos sobre
conhecimento, política, relação Estado-Igreja, refletindo a
problemática da liberdade, construir referenciais teórico-liberais em
contraposição a absolutismos anteriores. É o que o leva a discutir
aproximações entre liberdade e educação. Locke busca, pela
educação, a formação do cidadão capaz de, livre e respeitando a
liberdade dos outros, construir uma sociedade mais aberta. A
disciplina individual é importante porque dela depende o sucesso do
indivíduo em sociedade. A luta pela sobrevivência, dado que todos
são livres, é de cada um. O mais competente vence. A ação da
autoridade, política ou pedagógica, deve-se à organização da
educação para que se cumpra a tarefa de formar o homem para
novos comportamentos: para a liberdade e para a tolerância. A
liberdade efetiva (a formal pode ser) não será exercício universal,
para todas as classes, o que propiciaria confrontos e retorno ao
estado natural, acrescido do estado de guerra. Locke postula
tempos livres, mas, nestes, é necessária rígida disciplina para que
cada indivíduo possa dar a sua contribuição e construir novos
tempos. Esta idéia é fundamental à compreensão de seus escritos
pedagógicos e concepção de disciplina, marcando a tese básica de
sua filosofia: liberar o indivíduo, ao mesmo tempo em que, para
obter sucesso na vida, o mesmo deve ser competente e disciplinado,
física e espiritualmente.
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É assim que Locke oferece à modernidade um corpus


teórico básico à intervenção da burguesia no contexto ocidental. O
homem da política não é mais déspota, iluminado ou detentor de
autoridade de origem divina, mas humanista, conhecedor das leis
da economia e dos direitos dos cidadãos, referencial do qual decorre
a construção do modelo denominado liberal4. Fundamentar a
instituição da luta por liberdade, pela minimização do estado em
assuntos de consciência: esta foi a tarefa a que se propôs Locke,
patrocinando, assim, a conquista de espaços que o sistema liberal-
capitalista necessitava para impor-se como modelo político-
econômico. Por isso, tolerância e liberdade de ação à classe
burguesa, à ação em geral e, particularmente à direção social,
ganham centralidade em seu pensamento. À educação está
reservada a tarefa de formar o homem na direção de novo
comportamento: obediente à liberdade e à tolerância, sempre em
função de interesses de classe. Locke, ainda, oferece bases para que,
nos séculos seguintes, lutas e conquistas ligadas à liberdade se

4
O liberalismo (sistema político e econômico que difunde o mercado e os
fenômenos naturais como critérios à constituição da realidade e da liberdade),
clássica opção revolucionária adotada pela burguesia para impor-se aos modelos de
organização feudal, hoje se atualiza e coloca-se como neoliberalismo que "introduz a
exclusão social, o desemprego crônico, a hegemonia cultural anglo-saxônica, o
consumismo como sentido de vida, a violência como atração artística, a pornografia
como apelo mercadológico, a despolitização como virtude e a 'des-historização' do tempo
como forma de erradicar do coração humano as utopias (...)" (FREI BETTO, 1998,
p.1). Esse é o jeito de ser do neoliberalismo, hoje já em crise, conforme Sader e
Gentili (1998 e 1999). Assim, das premissas expostas, é necessário advertir que,
assim como a liberdade humana desorientada converte-se em licenciosidade
destrutora da própria liberdade, o mercado, formado e guiado por interesses e
desejos de pessoas entregues à própria sorte, converte-se em dominação e abusos
diversos. As regras que orientam a liberdade pessoal deveriam guiar o mercado à
justiça e à solidariedade. Mas, submetido à oferta e à procura, como fica, por
exemplo, o trabalho, senão tratado como mercadoria? Economia e mercado
devem servir aos humanos e não o contrário. Alheio a horizontes éticos e
metafísicos, tal modelo tem dificuldades de dar tratamento teórico-prático à
liberdade. A contenda coloca-se em relação às condições a partir das quais as
pessoas põem-se em ação.

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realizem. A liberdade econômica, intelectual, social, por


oportunidades iguais, é combate do qual sai um vencedor: o modelo
hegemônico patrocinado por grupos humanos em relação de poder
favorável, que têm na sua capacidade de atualização permanente a
manutenção do estado vigente. De caráter essencialmente
individualista, as bases que o liberalismo oferece ao mundo
fundamentam-se na liberdade das pessoas, no rigoroso jogo das leis
da seleção natural. É provável a correção da assertiva a respeito de
Locke: admite que as regras que orientam a liberdade pessoal
podem orientar também o mercado para a igualdade. Não foi o que
ocorreu: o que se verificou foi a luta de humanos contra humanos.
Não obstante a crítica possível, Locke oferece ao mundo
referências para pensar mudanças, provocando pedagogos, não
apenas acerca da defesa intransigente da liberdade, mas de sua
própria materialização histórica, o que permite acreditar em sua
possibilidade.

2. Pressupostos político-pedagógicos
presentes no conceito de disciplina de Makarenko

Em 1937, dois anos antes de sua morte prematura,


Makarenko escreveu oito Conferências sobre Educação Infantil. A
terceira delas intitula-se Disciplina. Iniciamos destacando os
elementos presentes nessa conferência porque o autor direciona
seus escritos para a educação familiar. Após, destacamos, de La
coletividad e la educación de la personalidad, aspectos da disciplina na
escola.
Disciplina normalmente é um termo compreendido como
uma função negativa de uma regra enquanto impede que haja
desvios da própria regra, ou seja, que a mesma não seja
transgredida, implicando, assim, em atitudes de submissão.
Makarenko, tomando concepções vigentes até então, afirma que a
disciplina é, por um lado, um conjunto de regras de conduta e, por
outro, é uma série de costumes. Há, ainda, os que a entendem
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somente como obediência. Conforme o autor, as três acepções têm


algo a ser considerado como necessário, mas insuficiente. O que
normalmente se diz de um homem disciplinado é que ele é
obediente e bem comportado, isto é, que ele corresponde quando
dele exige-se cumprimento de ordens e decisões superiores.
Por sua vez, Makarenko produz uma reflexão alternativa
ao afirmar que "do cidadão soviético, exigimos uma disciplina
muito mais ampla. Exigimos que não só compreenda por quê e
para quê cumprir uma ordem, mas que sinta a necessidade e o
desejo de cumpri-la da melhor maneira possível." Ou seja,
Makarenko afirma que para considerar alguém disciplinado é
necessário que o mesmo "esteja disposto a cumprir com o seu dever
em cada minuto de sua vida sem esperar resoluções nem ordens;
que possua iniciativa e vontade criadora." Em contexto
revolucionário e de afirmação de um projeto de formação do
homem novo, Makarenko afirma que "na sociedade soviética temos
o direito de considerar como disciplinado somente o homem que
sempre e em todas as circunstâncias sabe escolher a atitude correta,
a mais útil para a sociedade, e que possui a firmeza de manter essa
atitude até o fim" (MAKARENKO, 1981, p.37-8). Declara que
"temos direito" a isto por causa do próprio coletivo e em função da
construção da sociedade nova (socialista). Portanto, há em
Makarenko um projeto político ou de sociedade, definido (desde
1917), que orienta a diretividade que deve orientar o projeto
pedagógico. Para o autor, a obediência não é suficiente para que
alguém possa ser considerado disciplinado. Para isso, tanto
educador como educando devem ter acesso a um conjunto de
influências positivas, entre as quais, privilégios à educação política
ampla, à instrução geral, ao livro, ao jornal, ao trabalho, à atuação
social, ao jogo, às diversões e ao descanso, podendo resultar, então,
um cidadão disciplinado.
Então, a disciplina, para Makarenko, não é obtida a partir
de um conjunto de medidas reguladoras, mas através de todo o
sistema educativo, com a organização da vida, com a soma de todas

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as influências que atuam sobre a criança. Não é coisa, método ou


procedimento de educação, mas o seu resultado.
O regime é outro aspecto, apesar de facilmente
confundível com a disciplina, que se liga à tarefa educativa. Para o
autor, "se a disciplina é o resultado de todo um trabalho educativo,
o regime é só um meio, um procedimento educativo (...)."
(MAKARENKO, 1981, p.38-9). Logo, podemos falar da melhor
disciplina, mas o mesmo não podemos dizer do regime, o qual pode
variar, dependendo das condições interferentes. Assim, o regime,
mesmo que a disciplina seja a mesma, é diferente numa família de
muitos filhos e noutra com um filho apenas. Mais, estabelecido um
determinado regime o mesmo deve ser aplicado com regularidade.
Alcançado o objetivo, o regime pode ser desativado e substituído
por outro, adequado a novos objetivos. O regime deve ter qualidades
adequadas à vida, no caso familiar, própria do país e da cultura em
que se vive. Makarenko cita o caso da família soviética: é preciso
que esteja de acordo com o objetivo. Ou seja, toda a norma
implantada na família deve ser entendida não porque alguém já fez
assim anteriormente, ou porque torna a vida mais agradável, mas
exclusivamente porque é o meio mais apropriado para se atingir o
objetivo proposto. É essencial que este objetivo seja bem definido e
do conhecimento das crianças. É preciso fazê-las compreender que
isso é necessário para facilitar o trabalho doméstico da mãe, etc. A
segunda propriedade importante de um regime é a sua constância. Se
é preciso escovar os dentes hoje, também deverá sê-lo amanhã; o
mesmo pode ocorrer em relação à arrumação da cama, etc.
Em relação à disciplina escolar, conforme Makarenko, em
"La Coletividad y la Educación de la Personalidad", a idéia não está
desvinculada da noção de coletividade. Antes de retornar à
distinção em torno da concepção de disciplina pedagógica em
Makarenko, buscamos a concepção de coletividade e personalidade, a
partir da apresentação da obra acima citada, de autoria de V.
Kumarim. Para ele, a inter-relação entre coletividade e indivíduo é a
dimensão mais importante da educação. Ou seja, "fora da
coletividade não é possível formar uma personalidade com alto grau
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de consciência, sentido de responsabilidade ante a sociedade e


elevadas qualidades morais" (MAKARENKO, 1977, p.5).
A problemática acima Makarenko teve oportunidade de
teorizá-la e verificá-la nas suas experiências pedagógicas,
implantando um sistema integral de educação, a partir da idéia de
coletividade, através de vivências (pensadas) nas colônias de
trabalho Máximo Gorki (1920-1928) e Dzerzhinski (1928-1935).
Para ele, coletividade é um grupo de trabalhadores livres, unidos e
reunidos através de objetivos e ações comuns, organizados a partir
de instâncias hierarquizadas de direção, disciplina e
responsabilidade (Makarenko, id). Estas organizações,
caracterizadas pela interdependência de seus membros, é que
possibilitam a transição das velhas relações injustas entre as pessoas
para objetivos comuns. A proposta é, então, que cada um adeque os
desejos pessoais aos da coletividade. A atividade e a plena
participação de cada um é indispensável para que o coletivo tenha
êxito. Daí que a educação, ou o desenvolvimento das qualidades
tanto políticas como morais, é indispensável para que um programa
pedagógico, voltado para a formação do homem novo e para a
construção de uma sociedade igualitária, tenha bom termo.
Makarenko, buscando novas motivações para a
organização dos educandos, inicialmente tomou dimensões vitais da
vida das pessoas - as econômicas - para formar o coletivo.
Organizou grupos de 8 a 12 pessoas, com chefe e ajudante, ao que
passou a chamar de destacamentos, constituindo-se na unidade
principal e básica de toda a coletividade. Os destacamentos
mudaram radicalmente a vida da escola, dando impulso novo aos
problemas de direção e autogestão. O pedagogo soviético realizou
experiências com destacamentos homogêneos e heterogêneos. Estes
últimos, quando bem funcionaram, assemelharam-se a uma boa
família, onde "os maiores cuidam dos pequenos, os ajudam a
preparar as lições, os ensinam a se defenderem e se protegerem
diante dos que abusam. Os menores procuram comparar-se com os
maiores, tomam sua experiência e conhecimento e assimilam as
tradições de comportamento" (MAKARENKO, 1977, p.7-9).
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Procurava, o educador, dar "atenção pedagógica" especial àqueles


que demonstravam mais problemas e eram indesejados pelo grupo.
É possível afirmar que Makarenko elaborou um modelo
de coletividade escolar a partir de princípios como a necessidade da
existência de objetivos gerais, o avanço constante até encontrar
novas perspectivas, a vinculação com outras coletividades e com
toda a vida do país, a influência direta do coletivo em todos os
aspectos fundamentais da vida dos alunos (estudo, educação
político-social, do trabalho, da cultura e da lida doméstica), a
unidade entre direção e autodireção, o papel dirigente dos alunos
dos últimos graus, o aproveitamento dos jogos, recreação e
acumulação de tradições e tom estético da vida (MAKARENKO,
1977).
O grande mérito, portanto, deste pedagogo, o que explica
o êxito que teve com suas experiências, está no fato de procurar
abarcar os aspectos essenciais da vida dos educandos: estudo,
educação político-social, trabalho, cultura, lidas domésticas etc.
Há outro elemento da concepção e da intencionalidade
educativa de Makarenko que chama a atenção, no que diz respeito
à organização da escola e do coletivo: é indispensável a centralização,
nas mãos de um diretor, de todas as funções administrativas. Este,
porém, não deve ser apenas um homem que saiba ordenar e
mandar, mas o principal educador do coletivo, o pedagogo, o
organizador mais experiente e com maior autoridade
(MAKARENKO, 1977). E, na medida em que o coletivo se
desenvolve e ganha forma, as funções de controle, estímulo ou
sanções e a própria organização, passam, cada vez mais, para a
autodireção.
Para ele, duas questões são essenciais para o êxito do
processo pedagógico: exigir o máximo do educando e, ao mesmo
tempo, tratá-lo com o maior respeito possível e a idéia de que
nenhum método pode ser elaborado à base do par "professor-aluno",
"mas só à base da idéia geral da organização da escola e do coletivo",
em relação social (CAPRILES, 1989, p.154).

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Portanto, o problema da disciplina em Makarenko é


tomado não apenas como "armação externa" do coletivo ou como
um conjunto de regras do "não" ou da inibição, mas como o
impulso ou o "querer avançar", que exige algo mais do homem do
que a "inibição" ou o "não pode", o que só acontecerá quando se
colocar para cada educando determinadas exigências, cuja cobrança
não será feita em prol de si, mas da coletividade, da cidade etc.

3. Que disciplina? Para qual propósito político?

Embora tanto Locke como Makarenko defendam


processos disciplinares para colaborar, pela educação, para a
consolidação das conquistas que ajudaram a construir – Locke,
através da revolução burguesa de 1688-9 e Makarenko, através da
denominada revolução socialista na URSS, em 1917 –, diferenças
centrais surgem quando lemos suas obras. A disciplina tem, então,
sentidos diferentes num e noutro. Em Locke, o conceito de
disciplina ganha destaque como meio para alcançar fins, enquanto
que para Makarenko disciplina é o fim em função do qual o
"regime" deve ser instituído para que se garanta a sua constituição.
Então, os destaques acima, além de caracterizar
concepções de educação e disciplina e a relação entre as diversas
temáticas desenvolvidas por Locke, indicam a possibilidade de
reflexões críticas e a refutação do seu referencial teórico a esse
respeito, desde critérios não mais individuais, mas coletivos e de
classe. Um dos elementos da proposta do filósofo inglês, contrário
ao critério social que estamos propondo, desde Makarenko, para
pensar e produzir alternativas para a educação, é o fato de Locke,
numa época em que já se falava em educação para todos, defender a
educação aristocrática, doméstica e, assim, individualista, para a
classe burguesa. Por outro lado, a tradição renascentista e
humanista, ainda que na prática garantisse o acesso à educação a
poucos, teoricamente, no entanto, escrevia sua vocação
universalista. Isto é, Locke retrocede e acentua o caráter
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discriminatório, buscando privilegiar a educação nobiliário-


burguesa. Pois, se é a educação que cria as diferenças, como
afirma, é imperativo defender projeto universal de formação para
que as desigualdades desaparecessem. Coerentemente com radicais
princípios liberais, Locke defende a liberdade formal para todos,
mas, na prática, além de entender que cada um está bem onde está
(lugar social), ocupa-se com a formação qualificada e diferenciada
para os grupos dirigentes. É esta postura liberal, que é possível
superar a partir de Makarenko, ao advogar a favor de educação
qualificadamente política, em seu sentido mais original.
A opção pela classe aristocrática, na proposta educacional
de Locke, deve-se ao fato de entender essa classe como a
vanguardeira do estabelecimento da ordem desejada nas relações
diversas, o que, em hipótese alguma, justifica a sua escolha,
tomando por base o referencial para a leitura da sua obra que
aponto neste trabalho. O compromisso maior do gentleman com o
outro são as boas maneiras, o fino trato, o bom comportamento, a
elegância, enfim, os bons modos. O governo, que poderia indicar
ou organizar o processo ensino-aprendizagem a partir do mundo de
relações mais amplas, é excluído. A razão disto, conforme Tarcov,
é o fato de que Locke compreende o governo "(...) como subordinado
à liberdade, como não tendo 'nada a ver com as virtudes morais e os
vícios', como tornando os homens não necessariamente bons mas
apenas livres e seguros (...) O ensinamento político de Locke
propriamente não enfatiza a educação, mas ele, de fato, apresenta
uma teoria educacional (...)" (TARCOV, 1984, p.3). Tal teoria,
podendo prescindir do Estado, volta-se para os interesses dos já
bem aquinhoados, para as pessoas de boa família. O apelo que ele
faz é para que os pais eduquem seus filhos em casa e, de
preferência, através de um tutor, evitando o contato com as demais
classes.
O caráter de classe da proposta educativa e pedagógica de
Locke, então, aparece na sua obra. O filósofo inglês é um homem
engajado na defesa dos interesses de uma classe (burguesa).
Enguita lembra que Locke, "frente ao ideal educativo humanista,
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baseado em uma suposta natureza humana e com pretensões (...)


universalista, postula uma educação de corte funcional, utilitário e
nitidamente classista." (in LOCKE, 1986, p.9). Enguita avança e
destaca a preocupação em reduzir o papel dos castigos ou delimitar
a sua função na formação dos costumes, negando seu papel na
instrução propriamente dita. Da mesma forma, aversão à educação
baseada nas línguas clássicas e nas artes da lógica, gramática,
retórica, etc, a aversão às escolas públicas, que considera um pouco
mais que lugares de depravação, a especial atenção à educação
física, a redução de sua preocupação à educação do gentleman, em
sentido amplo, ou seja, à educação dos filhos das diversas categorias
de nobres e burgueses.
Em contrapartida, John W. Yolton e Jean S. Yolton
((1989, p.1-2)), na introdução à versão inglesa - Some Thoughts
Concerning Education - tentam garantir, em Locke, a relação entre
indivíduo e sociedade numa dimensão de equilíbrio. Afirmam que
"o individualismo de sua filosofia é equilibrado por seus escritos
sobre comunidade, humanidade e polidez. A pessoa como um ser
moral pertence a ambas as comunidades [a dimensão pessoal e a
social]; ambas as comunidades estabelecem os padrões e preservam
os valores da moralidade de Locke. A pessoa, em síntese, é, em
Locke, um indivíduo socializado e cristianizado. [...] 'Alguns
Pensamentos' dá aos pais um manual específico de como guiar seus
filhos a serem pessoas sociais e morais". Mas os autores citados não
destacam uma idéia complementar principal: a relação indivíduo e
sociedade dá-se dentro da classe burguesa, para a qual o filósofo
inglês direciona a sua reflexão e sua proposta pedagógica. Afora
esta relação, ele previne os pais para que não patrocinem contatos
de seus filhos com aqueles que podem vir a corrompê-los, ou seja,
os filhos das classes inferiores. Além disso, não há, como já dito,
compromisso do educando com os outros, a não ser na dimensão
anteriormente referida, ou seja, com o bom comportamento
perante os que integram a classe a qual pertence. Não há um
projeto político de construção de uma sociedade e de vida digna e
feliz para todos. A classe burguesa, que até a Revolução Gloriosa
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era uma classe revolucionária, não assumiu, após a revolução,


compromisso com a construção de uma sociedade igualitária. Pelo
contrário, acomodou-se à garantia dos direitos que reivindicava,
conquistados com a Revolução, com a ajuda da população em geral,
excluída no momento de usufruir de seus ganhos.
Aparece nos escritos pedagógicos de Locke, portanto,
uma postura altamente classista e discriminadora. Tomo o ensino
das línguas para exemplificar o dito. O autor defende a idéia de que
inicialmente deve-se ensinar a língua materna, depois uma língua
viva e só em último caso para os filhos de boa família (burguesia e
nobreza), o latim. Aos outros, reserva-se tão-somente escrever bem
e aprender a fazer contas, para o exercício profissional.
Locke põe a questão da disciplina, paradoxalmente,
associada ao liberalismo, o qual concebe ao desestruturar os
sistemas políticos, filosóficos, especialmente autoritários e
dogmáticos, no século XVII. Mas os fundamentos ou, até, os
conceitos por ele adotados não são suficientes para fundamentar a
educação numa perspectiva social global. Em outras palavras,
tematiza a questão da disciplina como elemento fundamental na
educação, mas numa perspectiva de formação da personalidade do
cidadão livre, independente e individualista. O que parece
necessário é pensar um fundamento social em função do qual o dia-
a-dia da escola, da sala de aula e da formação do educando possam
ser discutidos.
O que parece central destacar nos autores citados é o
imperativo da admissão do fundamento social em função do que o
dia-a-dia da escola, da sala de aula e da formação do educando
devem ser discutidos. Para os autores, desde a definição do objetivo
social e da discussão do procedimento a ser adotado para alcançar
tal finalidade, é que parece legítimo que alguém coordene tal
processo com diretividade, não sendo a disciplina proposta orientada
pelos parâmetros do bom comportamento individual, mas da
inserção do educando na construção de metas coletivas, proposta
pelos participantes do processo pedagógico.

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Makarenko critica o que se entende por disciplina e as


práticas que daí decorrem, especialmente nas escolas e na sociedade
pré-revolucionárias, onde a disciplina era um fenômeno externo,
forma de domínio, de anulação de personalidade, de livre arbítrio e
de aspirações pessoais; era um método de submissão do indivíduo
aos elementos de poder.
Tudo, portanto, deve ser bem concebido e muito
consciente, isto é, deve haver plena noção, de parte de cada um, do
que é a disciplina e porque dela necessitamos. Mas como chegar a
isto? Makarenko relata que, no seu caso, obrigou-se a expor a
teoria da moral: a discrição, o respeito à mulher, o amor à criança, o
respeito para com os mais velhos e a nós mesmos; toda a teoria do
comportamento ligada à sociedade e ao coletivo, enfim, foi
desenvolvida, da forma persuasiva e forte, pelo pedagogo socialista
(MAKARENKO, 1977). Para ele, em todas essas idéias "sobre
disciplina, sempre há que sublinhar o principal e o fundamental: a
transcendência política que tem a disciplina (...)" (MAKARENKO,
id, p.190). Makarenko constitui, assim, uma perspectiva nova para
a concepção de disciplina, cuja produtividade sustenta reflexões que
fazemos a respeito dos sistemas pedagógicos, por um lado
ditatoriais e, por outro, liberais.
Pela concepção de disciplina que os autores atuam, é
possível inferir a serviço de qual modelo político trabalham. Ou
seja, Locke pretende "domar corpos e mentes" para bem servir à
burguesia ascendente. Makarenko, por sua vez, sob a mediação do
regime, quer a disciplina como resultado do processo educativo e
serviço não apenas do "bem estar e da felicidade individual", como
em Locke, mas como formação para a vida em sociedade, coletiva,
onde as individualidades colocam-se em relação de
intersubjetividades, sempre.

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4. A disciplina sob o fundamento soberano


da "vontade geral" de Rousseau

Tomando as argumentações desenvolvidas por Jean-


Jacques Rousseau (1712-1778), encontramos a volonté générale
como categoria capaz de fundamentar uma concepção de disciplina
que promova liberdade. A vontade geral constitui, sem dúvida, o
princípio legislativo e organizador das vontades individuais, com
vistas à vontade do coletivo – como para Makarenko –, ou do
soberano. O indivíduo, como membro do soberano, terá sua
vontade individual submetida à vontade geral. Rousseau,
entretanto, providencia uma fundamentação mais sólida desta
posição. Segundo o genebrino, os homens do "soberano" são os
mesmos homens tomados individualmente. Como sujeitos
individuais obedecem tão-somente ao desejo de expandir suas
liberdades individuais. Como membros do soberano submetem essa
liberdade individual aos parâmetros da associação e ao bem
comum. Enfim, dando-se a todos, não se dão a ninguém e
permanecem tão livres quanto antes. Como membros do soberano,
os indivíduos tornam-se legisladores e é deles mesmos que advém a
autoridade à qual são submetidos. A liberdade natural sacrificada à
associação é reassumida pelo cidadão ao tornar-se membro do
soberano. O indivíduo é livre, não somente porque a lei o protege
contra arbitrariedades de vontades individuais, mas sobretudo
porque ele mesmo passa a desempenhar o papel de autor das leis.
Assim, a vontade do soberano é a sua própria vontade.
O pacto rousseauniano comporta, portanto, observância
à igualdade e à liberdade que se traduz na submissão de vontades
particulares dos homens enquanto indivíduos à vontade geral,
enquanto cidadãos. No entanto, tal submissão, bem longe de
destruir ou restringir a liberdade, encontra nela sua condição, uma
vez que "... a obediência à lei que se estatuiu a si mesma é liberdade."
(ROUSSEAU, 1983, p.37)
A partir desta interpretação, a vontade geral não é nem
um conjunto de vontades particulares, nem um compromisso entre
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elas; é a vontade do cidadão, tido como membro do soberano, o


que supõe que os cidadãos, estando unidos, possuem uma vontade
comum que, mesmo quando reprimida, quer pelo autoritarismo,
quer pelo pacto liberal, jamais emudece. Enfim, a vontade geral
que se expressa no coletivo é, em sua substantividade,
ontologicamente anterior à soma de vontades. "Há comumente
muita diferença entre a vontade de todos e a vontade geral. Esta se
prende somente ao interesse comum; a outra, ao interesse privado e
não passa de uma soma das vontades particulares. Quando se
retiram, porém, dessas mesmas vontades, os a-mais e os a-menos que
nela se destroem mutuamente, resta, como soma das diferenças, a
vontade geral." (Rousseau, 1983, p.46-7)
A autoridade não é fruto de uma suposta superioridade,
sequer a disciplina se orienta por vontades particulares postas de
acordo, mas pela vontade geral, substrato comum da consciência de
homens livres. A autoridade surge e tem sentido tão-só para
garantir o cumprimento do acordado sob a soberania da vontade
geral.

5. Referências

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socialista. Série Pensamento e Ação no Magistério. nº9. Rio de
Janeiro, Scipione, 1989.
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conceito de disciplina em John Locke: o liberalismo e os
pressupostos da educação burguesa. Porto Alegre: EDIPUCRS,
1995.
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GHIGGI, Gomercindo e OLIVEIRA, Avelino. O conceito de


disciplina em John Locke: o liberalismo e os pressupostos da
educação burguesa. POA: EDIPUCRS, 1995.
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origem das línguas; Discurso sobre a origem e os fundamentos da
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University of Chicago Press, 1984.
YOLTON, John W. e YOLTON, Jean S. Introduction. In Some
Thoughts Concerning Education. Oxford: Clarendon, 1989.

Gomercindo Ghiggi, Neiva Afonso Oliveira e Avelino da


Rosa Oliveira - Professores da FaE – UFPel. Pesquisadores do
FEPráxiS (Grupo de Pesquisa Filosofia, Educação e Práxis
Social), com financiamento da FAPERGS e do CNPq.

Recebido em: 10/08/2007


Aceito em: 20/01/2008

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A EDUCAÇÃO NA ITÁLIA FASCISTA:
AS REFORMAS GENTILE (1922-1923)
José Silvério Baia Horta

Resumo
Este artigo tem por objetivo analisar a Reforma realizada pelo filósofo
idealista Giovanni Gentile, primeiro Ministro da Educação do regime
fascista. Entre 1922 e 1923, Gentile realiza uma ampla reforma do
sistema educacional italiano, tanto sob o ponto de vista administrativo
como sob o ponto de vista didático-pedagógico. A reforma da
administração escolar traz as marcas da aparente dualidade do
pensamento idealista que, no caso, traduz-se pela afirmação da
liberdade didática do professor, acompanhada de um aumento
acentuado de centralização e de controle autoritário. A reforma do
ensino primário, realizada em 1923, teve em Lombardo-Radice o seu
principal idealizador. O decreto de Reforma do Ensino Médio foi
promulgado em maio de 1923 e o ensino superior italiano foi
reformado por Gentile em setembro de 1923. Este trabalho analisa
estas reformas. Trata-se de uma pesquisa documentária que utiliza,
como fontes primárias, além de livros e periódicos da época, a Gazetta
Ufficiale e o Bolletino Uficiale del Ministero della Pubblica Istruzione.
Palavras-chave: Itália fascista; educação; Reforma Gentile;
autoritarismo e educação.

EDUCATION IN FASCIST ITALY: THE GENTILE


REFORMS (1922-1923)
Abstract
This paper has the objective of analyzing the Reform carried out by
the idealistic philosopher Giovanni Gentile, first Minister of
Education of the Fascist Regime. Between 1922 and 1923, Gentile
brought about a broad reform of the Italian educational system, be it
under the administrative point of view or under the didactic-
pedagogical one. The reform of the school administration showed the
apparent dualism of idealistic thought which, in this case, is translated
by the statement of the teacher's didactic freedom, followed by a
significant increase in the centralization and authoritarian control.
The elementary school reform, carried out in 1923, had in
Lombardo-Radice its main idealist. The decree of the high school
reform was put into effect in May 1923 and the Italian higher
education teaching was reformed by Gentile in September 1923. This
article analyzes these reforms. As a documentary research it uses as its
primary sources, as well as books and periodicals from that time, the

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Gazetta Ufficiale and the Bolletino Uficiale del Ministero della Pubblica
Istruzione.
Keywords: Fascist Italy; education; Gentile Reform;
authoritarianism and education.

LA EDUCACIÓN EN LA ITALIA FASCISTA: LAS


REFORMAS GENTILE (1922-1923)
Resumen
Este artículo tiene por objetivo analisar la reforma realizada por el
filósofo idealista Giovanni Gentile, primer Ministro de la Educación
del régimen fascista. Entre 1922 y 1923, Gentile realiza una amplia
reforma del sistema educacional italiano, tanto sobre el punto de vista
administrativo como sobre el punto de vista didáctico-pedagógico. La
reforma de la administración escolar trae las marcas de la aparente
dualidad del pensamiento idealista que, en el caso, se traduze por la
afirmación de la libertad didáctica del profesor, acompañada de un
aumento acentuado de centralización y de control autoritário. La
reforma de la enseñanza primária, realizada en 1923, tuvo en
Lombardo-Radice su principal idealizador. El decreto de Reforma de
Enseñanza Média fue promulgado en mayo de 1923 y la enseñanza
superior italiana fue reformado por Gentile en setiembre de 1923.
Este trabajo analisa estas reformas. Se trata de una pesquisa
documentária que utiliza, como fuentes primarias, además de libros y
periódicos de la época, a Gazetta Ufficiale y Bolletino Uficiale del
Ministero della Pubblica Istruzione.
Palabras clave: Itália fascista; Educación; Reforma Gentile;
Autoritarismo y Educación.

L'ÉDUCATION DANS L'ITALIE FASCISTE: LES


RÉFORMES GENTILE (1922-1923)
Résumé
Cet article a pour but d'analyser la réforme réalisée par le philosophe
idéaliste Giovanni Gentile, premier Ministre de l'Éducation du régime
fasciste. Entre 1922 et 1923, Gentile réalise une ample réforme du
système éducational italien, aussi bien du point de vue administratif
que du point de vue didactico-pédagogique. La réforme de
l'administration scolaire apporte les marques de l'apparente dualité de
la pensée idéaliste qui, dans ce cas-ci, se traduit par l'affirmation de la
liberté didactique du professeur, accompagnée d'une croissance
accentuée de centralisation et de contrôle autoritaire. La réforme de
l'enseignement primaire, mise à jour en 1923, a eu comme son
principal créateur Lombardo-Radice. Le décret de la Réforme de
l'Enseignement Secondaire a été promulgué en mai 1923, et
l'enseignement supérieur italien a été réformé par Gentile en
septembre 1923. Le présent travail analyse ces réformes. Il s'agit

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d'une recherche documentaire qui utilise, comme des sources
primaires, la Gazetta Ufficiale et le Bolletino Uficiale del Ministero della
Pubblica Istruzione, outre des livres et des périodiques de l'époque.
Mots-clés: L'Italie fasciste, éducation, Réforme Gentile,
autoritarisme et éducation.

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1. Introdução

Ao assumir o poder, na Itália, em outubro de 1922, o


fascismo não trazia um projeto educacional bem definido. O
Programa do Partido Nacional Fascista (PNF), aprovado em
Florença, em dezembro de 1921 (apud BELLUCCI e
CILIBERTO, 1978, p. 199), definia os objetivos da escola de
forma bastante vaga, declarando:

A escola deve ter por objetivo formar pessoas capazes de


garantir o progresso econômico e histórico da nação;
elevar o nível moral e cultural da massa e promover os
melhores elementos de todas as classes para garantir a
renovação contínua das camadas dirigentes.

Ao Estado caberia um controle rígido sobre os


programas, a escolha e a ação dos professores da escola elementar,
de modo que esta preparasse "também física e moralmente os
futuros soldados da Itália". Quanto às escolas médias e
universitárias livres, a ação do Estado deveria limitar-se ao controle
sobre os programas e sobre o "espírito do ensino" e à promoção da
instrução pré-militar, destinada a facilitar a formação de oficiais.
Com relação à formação profissional, para que esta cumprisse a sua
finalidade de "elevar a capacidade produtiva da nação e criar a classe
média de técnicos entre os executores e os dirigentes da produção",
o Estado deveria "integrar e coordenar a iniciativa privada,
substituindo-a onde ela faltasse". Além disso, o Estado deveria
promover a unificação de todas as bolsas de estudo e demais
benefícios escolares, criando e controlando um Instituto para
"selecionar, ao final do ensino elementar, os alunos mais
inteligentes e dispostos e assegurar-lhes a instrução superior"
(idem, p. 199-200).
Trata-se de um programa que incorpora as posições
liberais conservadoras e os traços nacionalistas defendidos pelos

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educadores idealistas, reunidos em torno de Giovanni Gentile, bem


como algumas teses do programa escolar do Partido Popular1,
principalmente as relacionadas com a liberdade de ensino.
Mais tarde, no Congresso de Nápoles, às vésperas da
Marcha sobre Roma, o Partido Fascista adotará uma ordem do dia
na qual opor-se-á firmemente ao projeto de lei sobre o exame de
Estado, apresentado pelos populari e defendido pelos idealistas2.
Entretanto, como afirma Ostenc (1973, p. 386):

Esta declaração não era talvez senão uma conseqüência do


papel que o fascismo atribuía ao Estado, concebido como
imanente na vida pública. Mas ela só teria tido efeito se os
fascistas tivessem sido capazes de elaborar um programa
escolar que lhes fosse próprio. Isso não foi o caso e
Mussolini disso tinha consciência. É por isso que no seio
do "Fascio" da Educação nacional, parece ter encorajado a
colaboração entre fascistas e idealistas, Codignola
desempenhando o papel de intermediário.

Esta aproximação entre idealistas e fascistas pode ser


explicada apenas em parte por razões táticas. Estas existiam, tanto
da parte de Mussolini, que desejava garantir o apoio de intelectuais
bem conhecidos e abrir assim uma brecha no mundo da cultura
oficial, como da parte dos idealistas, que viam nesta aproximação a
possibilidade de colocar em prática o seu projeto pedagógico.

1
Partido político fundado por Don Sturzo, em 1919, buscando aglutinar os
católicos italianos em torno de uma proposta democrata cristã. O Partido Popular
Italiano teve vida curta, tendo se dissolvido em outubro de 1924. Sobre o Partido
Popular, ver Milza e Bernstein, 1980, p. 158-172.
2
"O Conselho Nacional do Partido Fascista, afirmando que a escola situa-se fora
e acima de todo partido e considerando como o primeiro e principal dever do
Estado a formação da consciência nacional, o que implica que esse deve revigorar
e valorizar sua escola, pede uma política escolar que responda às exigências da vida
moderna e convida o Grupo Parlamentar a combater o projeto de lei sobre o
Exame de Estado que, na forma em que está redigido, visa sufocar a antiga e
gloriosa escola do Estado em proveito da escola confessional" (Citado por Jovine,
1980, p. 259).

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Entretanto, existiam razões mais profundas. Mussolini via no


princípio do Estado ético de Gentile um caminho para o Estado
totalitário; os idealistas, que "identificavam os valores universais
com a Nação e o Estado", consideravam "a restauração da
autoridade estatal realizada pelo fascismo como um meio de
libertação humana" (BORGHI, 1974, p. 236).
Borghi mostra até que ponto a dualidade do pensamento
idealista, que, por um lado acentuava a autoridade e, por outro, a
liberdade e a espontaneidade, era apenas aparente:

É preciso lembrar que a imanência dos valores no homem


– que os idealistas afirmavam – não significava sua
imanência no indivíduo. O Espírito é, em si, um princípio
universal que exclui toda particularidade e,
conseqüentemente, a espontaneidade espiritual à qual eles
se referem, já é, em si, uma qualidade que não pertence ao
indivíduo como tal. Para eles, liberdade e espontaneidade
não se referem a seu sujeito verdadeiro e se dissolvem em
seu oposto. Assim, a dualidade de motivos constatada é
aparente e não real e a própria instância da liberdade se
reveste, no idealismo, de uma dimensão autoritária. Isto
explica como os idealistas puderam dar o nome de
liberdade ao conceito de dissolução do indivíduo no
universal (encarnada nas instituições e no Estado) e
contribuir assim para reforçar essa singular confusão
mental que levou numerosos italianos a aceitar o fascismo
como um movimento de libertação (BORGHI, 1974, p.
237).

A colaboração entre idealistas e fascistas, iniciada com a


transformação do Fascio di Educazione Nazionale em Gruppo di
Competenza per la Scuola, no seio do Partido Fascista, antes da
Marcha sobre Roma, concretizou-se com nomeação de Gentile
para o Ministério da Instrução Pública, no primeiro governo
Mussolini, em outubro de 1922. Os historiadores acentuam o
oportunismo e a habilidade política de Mussolini pela escolha de
Gentile como Ministro:

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A decisão de Mussolini de oferecer o Ministero della
Pubblica Istruzione ao filósofo siciliano revelou-se
particularmente hábil. Graças à inclusão, no novo
Governo, do independente Gentile, que constituía, talvez,
um dos pontos de referência mais prestigiosos da cultura
italiana e que havia sido a única pessoa capaz de figurar no
mesmo nível de Croce no último governo Giolitti, o
fascismo garantia o apoio dos idealistas e do partido da
escola, que o próprio Gentile havia, anteriormente,
tomado de Salvemini (RICUPERATI, 1977, p. 87).

Mas o mesmo Recuperati sublinha, também, o


oportunismo dos idealistas:

Era uma relação equívoca e, de certa forma, condenada ao


fracasso, mas que encontrava sua justificativa exatamente
nessa persistente imagem da neutralidade da escola, que
acreditava ser possível fazer uma boa reforma mesmo em
um regime duvidoso, desde que se possuísse idéias claras
(RICUPERATI, 1973, p. 1712).

Os idealistas sentiram-se confortados por esta nomeação.


Como afirma Jovine (1980, p. 254):

a pessoa do filósofo parecia uma garantia para todo o


programa de governo. Era difícil perder a fé na reforma
tão demoradamente meditada apenas porque realizada por
um governo instaurado pela violência; era mais fácil
pensar que a forte personalidade de Gentile conseguiria
levar a termo a transformação escolar que se apresentava
como urgente, guardando fidelidade às premissas do
idealismo

Desta forma, apesar de algumas dissensões ocorridas no


Fascio de Educazione Nazionale, no momento de sua transformação
em Gruppo di Competenza3, o Ministro consegue obter a

3
Entre essas dissensões podemos citar as de Piero Gobetti e Augusto Monti. Os
dois formularam, no jornal Rivolutione Liberale, severas críticas às posições
assumidas por Gentile, até o fechamento desse jornal, em 1925. Esses
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colaboração de vários de seus discípulos, com apoio dos quais


realiza, entre 1922 e 1923, ampla reforma do sistema educacional
italiano, tanto sob o ponto de vista administrativo como sob o
ponto de vista didático-pedagógico.

2. Reforma da administração escolar

A reforma da administração escolar, iniciada por Gentile


a partir do momento de sua entrada no Ministero della Pubblica
Istruzione, ao mesmo tempo em que se insere no processo mais
amplo de reforma administrativa realizada pelo fascismo, com base
na lei de plenos poderes4, traz as marcas da aparente dualidade do
pensamento idealista que, no caso, traduz-se pela afirmação da
liberdade didática do professor, acompanhada de um aumento
acentuado de centralização e de controle autoritário.

intelectuais não aceitaram colaborar com os fascistas e aprovar o Programa do


Gruppo de Competenza, que afirmava, em seus Princípios Gerais: "Nosso sistema
de educação pública deve visar, antes de tudo, revigorar o caráter moral dos jovens
e sua força física. Para esse fim supremo devem se dirigir todos os esforços do
fascismo, o que significa promover por todos os meios o espírito de iniciativa, o
sentido da responsabilidade individual, o respeito e o culto dos mais altos valores
de nossa tradição nacional e religiosa. O fascismo concebe o Estado como
expressão suprema da vontade coletiva, atribuindo-lhe, assim, uma função
essencialmente ética, cuja primeira realização deve ser a promoção da educação
nacional, para subtraí-la dos partidos e das seitas" Citado por Jovine (1980, p.
262).
4
No final de novembro de 1922, as duas Câmaras atribuem, por um ano, plenos
poderes a Mussolini, que se torna assim "o ditador legal da Itália" (MILZA E
BERSTEIN, 1980, p. 127). Concebida pelos parlamentares como um
instrumento que possibilitasse ao chefe de governo proceder a uma "normalização"
do país, a lei de plenos poderes, promulgada em 3 de dezembro de 1922, será
utilizada por Mussolini "para estabelecer os mecanismos que permitirão aos
fascistas e a ele próprio manter-se à frente do Estado" (Idem, p. 127).

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Apoiado no decreto de reforma administrativa de


dezembro de 19225, Gentile realiza uma redução drástica do
pessoal do Ministero della Pubblica Istruzione, suprimindo uma
direção geral e várias seções6. Conforme Ostenc (1980, p. 45),

com estas medidas, Gentile espera obter não somente um


alívio no orçamento do Estado, mas também 'um regime
de responsabilidade individual e de solução mais rápida dos
assuntos'. Essa nova organização traduz a inquietação do
pedagogo... de ver a Minerva impulsionar e dirigir o
movimento de renovação da escola7.

Ao mesmo tempo, Gentile institui os provveditorati


regionais8, pela fusão dos provveditorati provinciais já existentes, e
substitui os Conselhos provinciais, com funções amplas e de
composição eletiva, por Conselhos regionais restritos, com funções
meramente disciplinares, formados por conselheiros por ele
designados. Assim, Gentile reforça o caráter centralizador de seu
ministério:

O provedor, representante do Ministro na região tem,


pois, um poder que é o reflexo da autoridade ministerial.
A descentralização que se realiza é, antes de tudo,
geográfica, se assim se pode dizer. O chefe regional da
instrução pública, estando investido de uma autoridade
sem contrapeso local e sem contato direto com a opinião
livre, é ele mesmo um centro onde se reúnem e se

5
Régio Decreto 21 dicembre 1922, nº 1649. Bolletino Ufficiale Del Ministero della
Pubblica Istruzione, nº 1, 1923, p. 5.
6
Régio Decreto 31 dicembre 1922, nº 1679. Bolletino Ufficiale Del Ministero della
Pubblica Istruzione, nº 2, 1923, p. 73.
7
Minerva era o nome pelo qual era conhecido o Ministério da Instrução Pública,
que havia funcionado durante algum tempo em um prédio situado na Praça
Minerva, em Roma.
8
Os Provveditori eram os representantes do Ministério da Educação nas
Províncias.

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resolvem os assuntos de uma vasta região, que eram antes
tratados perante a instância mais próxima do provedor
departamental (GOY, 1926, p. 94).

Mas, ao trocar a divisão provincial pela divisão regional,


Gentile faz sua uma idéia de Lombardo-Radice, segundo a qual,
contrariamente à província, que não apresentava uma
individualidade geográfica e histórica própria, a região tinha um
passado, uma base histórico-cultural sólida, que era necessário fazer
reviver. Comentando estas medidas, Lombardo-Radice dirá:

A Itália abandonou as utopias do universalismo abstrato e


se esforça por substituí-la em todas as almas por uma
consciência nacional mais viva. Nacional e não
nacionalista. E a nação é uma síntese das atividades
regionais, contribuições originais e saborosas da vida
comum; é por isso que as regiões também são utilizadas
na reforma escolar. Pela primeira vez, a cultura do povo, a
poesia e a arte do povo, o dialeto ele próprio (tesouro
espiritual de cada família de nossa raça) encontram lugar
na vida escolar italiana (Citado por Goy, 1926, p. 93.
Grifo do autor).

Assim, enquanto Lombardo-Radice espera que o


provveditore cumpra a difícil função de "dar uma alma e um corpo
às aspirações profundas de cada um dos povos que compõem a
nação" (GOY, 1926, p. 94), Gentile, que detém a prerrogativa de
escolhê-lo, "seja entre inspetores de nível médio, seja entre diretores
de Instituto ou entre pessoas estranhas à administração que, pela
doutrina ou pela autoridade moral, sejam consideradas mais
idôneas para a função"9, espera, principalmente, que ele cumpra e
faça cumprir fielmente nas regiões as decisões ministeriais.

9
Régio Decreto 31 dicembre, 1922, nº 1679, Art. 4. Bolletino Ufficiale Del
Ministero della Pubblica Istruzione, nº 2, 1923, p. 73.

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Esta duplicidade constitui o argumento maior da crítica


apresentada pela Unione Magistrale10, em fevereiro de 1924.
Mesmo concedendo que o princípio da passagem da província para
a região "em si pode considerar-se como bom, seja porque permite
interpretar melhor as necessidades, as carências e as aspirações
locais, seja porque parte do propósito de descentralizar e tornar
mais leve o processo de administração", a Unione Magistrale julga
que "o provedor não recebeu do governo central o poder de resolver
ele próprio as questões que evoca e que esse órgão, que não é senão
um reflexo da autoridade superior e que não possui mais, por outro
lado, a característica 'parlamentar' da antiga instituição, cairá no
torpor característico das criações subordinadas e de função
subalterna" (Memoriale, 1924, p. 238).
Mas o caráter autoritário e centralizador da reforma
administrativa realizada por Gentile manifestar-se-á, sobretudo, na
reorganização dos corpos consultivos do Ministério, principalmente
do Consiglio Superiore della Pubblica Istruzione. Reafirmando o
princípio de centralização dos poderes, Gentile suprime o sistema
eletivo utilizado para a composição do Conselho, atribuindo ao
ministro toda a responsabilidade na escolha dos conselheiros. Ora,
como mostra Ricuperati (1973, p. 95), o Consiglio Superiore della
Pubblica Istruzione, nos anos anteriores, "havia se aberto, embora
de forma limitada, à participação das bases". Com o decreto de
julho de 1923, tal participação ficava totalmente excluída e os
conselheiros voltavam a serem nomeados pelo Rei, conforme
proposta do Ministro11. Gentile justificará esta medida em discurso
pronunciado na sessão inaugural do novo Consiglio, em novembro
de 1923. Segundo ele, a introdução do sistema eletivo na escolha
dos conselheiros tinha resultado em um rebaixamento do Conselho

10
A Unione Magistrale era uma das três grandes associações de professores
existentes na Itália, no momento da implantação do fascismo.
11
Régio Decreto 16 luglio 1923, nº 1753, Art. 7. Bolletino Ufficiale Del Ministero
della Pubblica Istruzione, nº 36, 1923, p. 2813.

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"fazendo o jogo eletivo do corpo docente, revertendo sobre suas


bases todo o sistema democrático de escolha e da responsabilidade
dos eleitos". Gentile considera que sua reforma havia restituído ao
Consiglio Superiore della Pubblica Istruzione "sua antiga dignidade",
"toda a autoridade", e mesmo "todo o campo de sua atividade",
transformando os conselheiros em "representantes autorizados da
mais alta forma e das mais elevadas exigências da cultura nacional
[...] colaboradores desejosos de uma obra vasta e profunda de
renovação espiritual [...] trabalhadores da nova escola nacional"
(GENTILE, p. 413).
Na verdade, Gentile não pretendia dividir o poder com
estes seus "colaboradores". Para os idealistas, a "colaboração"
concretiza-se na execução das decisões tomadas pela autoridade
responsável. Como afirma Henri Goy (1926, p. 73) "esta
autoridade não tem pois de partilhar o poder; a colaboração efetiva,
imediata do chefe com os representantes de seus subordinados é
inconcebível. Isso seria uma limitação da responsabilidade, do
exercício regular do poder e da 'liberdade' no Estado".
Desta forma, as funções do Consiglio Superiore della
Pubblica Istruzione, enumeradas no decreto de 16 de julho de
1923, não correspondem em nada às "elevadas atribuições"
enunciadas por Gentile. O Conselho perdia o caráter deliberativo,
que lhe havia sido atribuído pela lei de 9 de agosto de 1910, e
voltava a ser um órgão meramente consultivo, com a função de
"pronunciar-se sobre todas as questões relacionadas com a
instrução elementar, média e superior, que o Ministro submetesse
ao seu exame" e "realizar estudos e informar o Ministro sobre as
condições gerais do ensino público"12.
Mas, apesar desta função meramente consultiva, Gentile
insiste em afirmar que "o Conselho terá, para além de seu caráter
científico e técnico, um caráter político" (GENTILE, 1923, p.

12
Régio Decreto 16 juglio 1923, nº 1753, Art. 9. Bolletino Ufficiale Del Ministero
della Pubblica Istruzione, nº 36, 1923, p. 2813

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416). O Ministro estabelece em seu discurso uma distinção entre a


"baixa política" e a "verdadeira política". A primeira é aquela "dos
interesses privados, das facções, dos egoístas, dos míopes, dos
incapazes, daqueles que não vêem e não sabem ver a Nação que é
Estado e que, como tal, é o sujeito da atividade política.". Esta
política "não deve contaminar a escola, assim como não deve
contaminar a religião, a ciência, a arte". A segunda é "a política da
Nação, [...] a única política que efetivamente pode ser considerada
como tal, [...] enquanto vontade criadora da vida nacional". Esta
vontade, "que é o Estado em sua verdadeira existência, [...] que é a
alta, a verdadeira, a única política", o governo fascista "não teme
ver entrar na escola" (GENTILE, 1923, p. 416). Assim, longe de
fazer a política da "baixa demagogia", os conselheiros seguirão a
política do governo, que é a vontade mesma do Estado e da nação,
e, portanto, digna de entrar nas instituições escolares. E, apesar de
toda a evidência em contrário, Gentile continua defendendo o
"caráter liberal" da reforma do Consiglio Superiore della Pubblica
Istruzione: " Longe de poder ser acusada de antiliberal, a Reforma
recente do Conselho Superior significou o abandono do
confusionismo demagógico dos tristes anos da decadência política
italiana e a volta aos princípios claros, seguros, clássicos da
liberdade. A qual não pode ser outra coisa senão responsabilidade."
(GENTILE, 1923, p. 415).
A concepção gentiliana do liberalismo aparece claramente
em um discurso de março de 1924, no qual Gentile procura
realizar a fusão do liberalismo italiano com o fascismo:

Existe um outro liberalismo, amadurecido no pensamento


italiano e no pensamento alemão, que afirma ser um
absurdo esse antagonismo fantástico entre o Estado e o
indivíduo. [...] Para esse liberalismo, a liberdade é, sem
dúvida, o fim supremo e a regra de toda vida humana; mas
isto, somente, na medida em que a educação individual e
social se realiza, produzindo em cada indivíduo essa
vontade comum, que se manifesta como lei e,
conseqüentemente, como Estado. [...] Estado e indivíduo,

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nessa perspectiva, são um, e a arte de governar é a arte de
conciliar e fundir os dois termos, de tal forma que o
máximo de liberdade se concilie com o máximo não
apenas de ordem pública puramente exterior, mas
também, e acima de tudo, de soberania consentida pela lei
e por seus órgãos necessários. Porque, sempre, o máximo
de liberdade coincide com o máximo de força do Estado
(Citado em Goy, 1926, p. 73)13.

Será esta concepção de "liberdade" e de "responsabilidade"


que levará o Ministro a decidir por si mesmo, sem se refugiar sob
"as grandes asas do Conselho Superior". Como afirma Goy (1926,
p. 91),

o ministro quer doravante ter a plena responsabilidade dos


seus atos; ele não compreende como partilhar esta
responsabilidade com o conjunto do corpo docente pela
mediação dos representantes eleitos por este. [...] Por
razões de oportunidade, por temperamento, como por
doutrina, o ministro institui, em nome do princípio da
"liberdade", o regime da autoridade absoluta.

A Unione Magistrale reagirá contra esta supressão da


representação eletiva nos órgãos da administração escolar. Para
essa associação, a voz do professor, enquanto especialista, "não deve
vir do alto, por nomeação ministerial, mas deve partir da base, pelo
consentimento da maioria e como expressão da maioria da qual ela
recebe a autoridade e o sentimento de responsabilidade"
(Memoriale, p. 238).

13
Segundo Gentile, era Mussolini o verdadeiro representante do liberalismo na
Itália. Assim, na carta enviada a Mussolini no momento em que adere ao Partido
Nacional Fascista, Gentile afirma: "O liberalismo, tal como eu o compreendo e
tal como o compreenderam os homens da gloriosa direita que conduziram a Itália
durante o Risorgimento, o liberalismo da liberdade dentro da lei e,
conseqüentemente, no seio de um Estado forte, um Estado concebido como uma
realidade ética, não é representado na Itália de hoje pelo liberais que se opõem
mais ou menos abertamente a vós, mas por vós mesmo" (citado em Ostenc, 1980,
p. 131).

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E será no seio das escolas que se manifestará, com toda a


sua evidência, a contradição da reforma idealista. Ao mesmo tempo
em que defende a liberdade didática do professor e procura suprimir
toda interferência exterior em sua ação dentro da sala de aula,
Gentile reforça a estrutura autoritária da escola, ampliando o poder
do preside e do diretor didático.
A supressão de interferência exterior na ação didática do
professor concretiza-se na diminuição do controle que o Ministério
mantinha sobre as escolas por meio da inspeção e na ampliação do
controle por meio dos exames. Respeitava-se assim "o princípio
gentiliano da autonomia da função pedagógica e de sua totalidade
essencial concretizando-se na relação docente-discente", que "não
podia conciliar-se com o exercício da função inspetora por parte da
autoridade central" (ROBAUD, 1961, p. 90). Assim, o número de
inspetores centrais reduz-se de 37 para 3, ficando o Ministro
autorizado "a ordenar a realização de inspeções ou enquetes,
confiando-as a pessoas de reconhecida competência ou
especialmente capacitadas para tais tarefas, ou, em geral, a pessoas
de sua confiança"14. A inspeção primária sofre também uma
redução considerável e um grande número de inspetores são
transformados em diretores didáticos.
Mas, por outro lado, no ensino médio é
consideravelmente reforçado o poder do preside que, de acordo com
o decreto de reforma do ensino secundário, devia dirigir a escola
juntamente com o colégio de professores. Ele devia ser escolhido
pelo Ministro entre os professores, excluídas as mulheres15. Suas
funções foram definidas por Gentile em circular de 23 de maio de
1923, na qual o Ministro apresenta as orientações sobre o relatório
anual a ser enviado ao Ministério, com as notas de qualificação dos

14
Régio Decreto 31 dicembre 1923, nº 2976, Art. 1. Bolletino Ufficiale Del
Ministero della Pubblica Istruzione, nº 5, 1924, p. 239.
15
Régio Decreto 6 maggio 1923, nº 1054, Art. 12. Gazzetta Ufficiale, nº 129,
1923.

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professores. Depois de afirmar que os presidi têm o dever de dirigir


e controlar os professores e manter o Ministério informado sobre
os méritos pedagógicos e didáticos dos mesmos, Gentile recomenda
aos provveditori e aos presidi "de educar o corpo docente no espírito
novo que o Ministro deseja introduzir nas relações hierárquicas, a
fim de que cada um de seus membros fixe para si altas metas e
predisponha-se à tarefa de presidi como cume e coroamento de sua
própria carreira didática". E este "espírito novo", que o Ministro
deseja introduzir nas relações entre superiores e inferiores, aparece
claramente no final da circular: "Com esta circular, mais do que
uma advertência, é dada uma ordem. Os provveditori e os diretores
escolares são as sentinelas vigilantes que respeitam como coisa
sagrada, com devoção militar, absoluta e incondicionalmente, as
ordens recebidas"16. Como nota bem Ricuperati (1973, p. 1713):

Gentile mostra aqui a contradição objetiva de uma


política, que pregava a liberdade didática, mas que queria
realizá-la em uma estrutura autoritária e
desresponsabilizante. O novo professor deveria ser mais
culto, mais inventivo e livre de realizar-se em sua sala de
aula, mas de resto totalmente submisso ao preside, não
sindicalizado, pronto a servir aos desejos do regime.

Em abril de 1924, um novo decreto definiria melhor as


funções do preside, do colégio dos professores e dos conselhos de
classe dos estabelecimentos de nível médio17. O preside deveria velar
pelo bom andamento didático, educativo e administrativo de sua
escola; cumprir e fazer cumprir as disposições das leis e
regulamentos e as ordens das autoridades superiores e enviar, cada
ano, ao Ministério, um relatório sobre o andamento didático e
disciplinar da sua escola (Art. 10-12). O colégio de professores,
responsável pela orientação geral didática e disciplinar do

16
Circolare 23 maggio 1923. In Gentile, 1932, p. 109-114.
17
Régio Decreto 30 aprile 1924, n. 965. Bolletino Ufficiale Del Ministero della
Pubblica Istruzione, n. 28, 1924, p. 1530.

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estabelecimento, pela escolha dos livros de texto e pela


determinação dos programas, era dirigido pelo preside. Este, por
razões graves, poderia deixar de executar as deliberações do colégio,
comunicando esta decisão ao provveditore, para que este decidisse de
forma definitiva (Art. 27-36). O professor, responsável pela
orientação didática e educativa da sua atividade docente e pela
disciplina de seus alunos, dependia do preside e deveria seguir as
suas prescrições (Art. 39-42).
Tanto os presidi como os professores eram considerados
funcionários públicos e a eles aplicavam-se todas as disposições
relativas aos empregados civis do Estado18. Assim, exigia-se deles
que fizessem seus os "princípios morais" que deveriam orientar os
servidores públicos no regime fascista e prestassem o juramento de
fidelidade.
Os "princípios morais" são enunciados no preâmbulo do
estatuto jurídico dos funcionários civis, promulgado em dezembro
de 1923:

Antes de tudo é preciso reconhecer que a relação entre o


Estado e o funcionário não é aquela que determinaria a
produção de um trabalho a que corresponderia uma
remuneração material determinada. È uma relação de
caráter moral graças ao qual o funcionário é admitido, em
princípio, para a vida, na organização administrativa, a
fim de que ele consagre todas as forças de seu espírito e de
sua cultura, no quadro dos interesses políticos e sociais
que são o domínio próprio do Estado. Trata-se de uma
relação de fidelidade, que só pode contrair aquele que, por
sua mentalidade, por suas inclinações, viverá e agirá de
acordo com as tendências e práticas que são propriamente
aquelas da administração, no ciclo histórico em que o
funcionário deve cumprir sua função. Não é pois
admissível que o funcionário se introduza na organização
administrativa com um espírito em desacordo com suas
tendências e fazendo consigo mesmo a restrição mental de

18
Régio Decreto 6 maggio 1923, nº 1054, Art. 28. Gazzetta Ufficiale, nº 129,
1923.

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fornecer seus serviços aparentemente segundo os
princípios da administração, mas ao mesmo tempo e
secretamente com a intenção de contribuir para a
destruição da organização de que deveria ser, por razões
morais e jurídicas, o guardião leal e o sustentáculo
consciente19.

Nestes princípios encontrava sua justificativa o


juramento que o funcionário devia prestar no momento de assumir
o cargo:

Juro que serei fiel ao Rei e a seus sucessores reais; que


respeitarei lealmente o Estatuto e as outras leis do Estado;
que cumprirei todos os deveres de meu cargo com
diligência e zelo para o bem público e no interesse da
administração respeitando escrupulosamente o segredo do
serviço e adequando minha conduta, mesmo particular, à
dignidade do meu cargo. Juro que não pertenço, nem
pertencerei a nenhuma associação ou partido, cuja
atividade não se concilie com os deveres do meu cargo.
Juro cumprir todos os meus deveres tendo como único
objetivo o bem inseparável do Rei e da pátria20.

Era este o quadro do qual Gentile esperava que, da


mesma forma como os Conselheiros, os presidi e os professores
realizassem a "política do governo" que ele procura implantar na
escola, reformando o ensino em seus diferentes níveis.

3. Reforma do Ensino Primário

A reforma do ensino primário, realizada em 1923, teve


em Lombardo-Radice, na época Diretor Geral da Instrução

19
Régio Decreto 30 decembre 1923, n. 2960. Bolletino Ufficiale Del Ministero
della Pubblica Istruzione,, n. 5, 1924, p. 173.
20
Régio Decreto 30 decembre 1923, n. 2960, Art. 6. Bolletino Ufficiale Del
Ministero della Pubblica Istruzione,, n. 5, 1924, p. 173.

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Primária e Popular, o seu principal idealizador21. Considerada sob


o ponto de vista dos métodos e programas introduzidos na escola, a
reforma era liberal e progressista; sob o ponto de vista da estrutura
implantada no sistema de ensino, ela era conservadora e traduzia a
concepção gentiliana de escola elementar. Com efeito,

A escola elementar era considerada por Gentile um grau


do desenvolvimento do conceito de cultura, grau inferior,
a ser superado o mais rapidamente possível. Era a escola
do povo, correspondendo às necessidades de um saber que
não se elevará à cultura; era a escola de todos, enquanto a
escola de cultura era para poucos, visto que a cultura era
para a elite (LIMITI, 1962, p. 86).

21
Giuseppe Lombardo Radice nasceu na Sicília, em 1879. Começou a lecionar
em 1903, após seus estudos na Escola Normal Superior de Pisa, onde foi
contemporâneo de Gentile. Tendo inicialmente lecionado letras nos liceus de
Aderno, Arpino e Nápoles, tornou-se depois professor de moral e pedagogia nas
escolas normais de Foggia, Palermo, Messina e Catânia. Em 1915, torna-se
Professor Titular de Pedagogia na Universidade de Catânia. Conforme Goy
(1926, p. 52) "é grande a sua participação na campanha que conduz o idealismo
ao poder. Em 1907, ele funda a revista I Nuovi Doveri, que cede lugar, em 1912,
à Rivista di Pedagogia e di Política Scolastica. [...] Após o armistício, ele retoma o
combate de idéias, fundando, em 1919, a elegante e viva revista Educazione
Nazionale". Ainda em 1919, Lombardo-Radice funda, juntamente com
Codignola, o Fascio di Educazione Nazionale (que, apesar do nome, não tinha
nada a ver com o movimento fascista). Em janeiro de 1920, Lombardo-Radice
lança, no Fascio di Educazione Nazionale, um apelo aos educadores: ele os convida
a trabalhar pela regeneração das consciências, pedindo-lhes que abandonem as
antigas associações profissionais que, movidas por preocupações exclusivamente
econômicas, "se mostram incapazes de defender os supremos interesses coletivos"
(Citado por Jovine, 1980, p. 221). Em 1924, acreditando que "permanecer em
um posto de direção na administração do Estado fascista após o assassinato de
Matteoti significaria para ele viver na mentira" (BORGHI, 1974, p. 224),
Lombardo-Radice renunciou ao cargo e retomou a direção de Educazione
Nazionale, de onde continuou, dentro dos estreitos limites que lhe foram impostos
pelo fascismo, a defender a sua reforma dos ataques de que a mesma começou a
ser alvo, por parte dos fascistas, após a demissão de Gentile, em junho de 1924.
Sobre as idéias pedagógicas de Lombardo-Radice, ver Tomasi (1965), p. 256-
265).

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Estava assim excluído o estabelecimento de uma


estrutura escolar primária que permitisse às massas o acesso à
cultura. Com a Reforma Gentile, a escola elementar "permanecia
como primeiro degrau do saber para aqueles que prosseguiriam os
estudos e como fim em si mesma para a massa popular" (JOVINE,
1980, p. 267-268)..
De acordo com o decreto de reforma22, a instrução
elementar dividia-se em três graus: grau preparatório (ensino
maternal) com a duração de três anos, grau inferior, também com
a duração de três anos e grau superior, com a duração de dois anos.
As classes acima da quinta recebiam o nome de classi integrativi di
avviamento professionale.
Como esclarece o próprio Lombardo-Radice (1924, p.
52), o curso inferior "representa o curso mínimo, indispensável a
qualquer tipo de escola", enquanto o curso superior "surge somente
onde existe número suficiente de alunos". Na prática,

Um grande número de crianças italianas, que viviam em


pequenas comunidades rurais, em lugar de receberem
cinco a oito anos de instrução elementar, de acordo com a
letra da lei, eram simplesmente colocadas na situação de
freqüentar escolas em condições de oferecer apenas os três
primeiros anos de instrução elementar, muitas das quais
eram escolas de uma só classe, onde se concentravam e
eram instruídos por um só mestre todos os jovens dos seis
aos quatorze anos (BORGHI, 1974, p. 254).

22
Régio Decreto 1 ottobre 1923, nº 2185. Bolletino Ufficiale Del Ministero della
Pubblica Istruzione, nº 47, 1923, p. 4061-4068. Será principalmente com base
nessa reforma que Adolphe Ferrière, diretor-adjunto do Bureau International
d'Éducation e Vice-presidente da Ligue Internationale pour l'Éducation Nouvelle
incluirá Lombardo-Radice entre os três pioneiros da educação nova na Europa
(Ferrière, 1928, p. 105 ss.). Como veremos, a reforma realizada por Lombardo-
Radice será muito elogiada por Ferrière, que a considerará um exemplo e um
modelo para o mundo inteiro (Ferrière, 1927, p. 21-22).

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199

Quanto aos Corsi Integrativi di Avviamento Professionale,


eles foram regulamentados por uma Circular Ministerial de
dezembro de 1923. Considerado por Gentile como um curso "de
caráter predominantemente popular, para quem será operário ou
camponês", o Corsi Integrativi deveria estar "em estreita relação
com as necessidades da população e basear-se, desta forma, na
iniciativa das entidades locais"23. A função dos Corsi Integrativi foi
melhor definida por Balbino Giuliano, Sottosegretário dell'Istruzione
no novo Ministério Casati: "O Corso populare deve acolher os
trabalhadores de amanhã, os futuros agricultores e operários, e
fornecer-lhes a primeira preparação técnica imediata para o
trabalho manual, enquanto continua e aprimora ainda a cultura
elementar" (Citado por Jovine, 1980, p. 268).
Dentro dessa estrutura conservadora, implantada na
organização do ensino primário, Lombardo-Radice intenta
introduzir conteúdos e métodos progressistas. Procurando "adequar
o ensino aos princípios do atualismo" (JOVINE, 1980, p. 268),
Lombardo-Radice inspira-se no princípio gentiliano, segundo o
qual a educação é sempre um trabalho comum de professores e
alunos. Para ele,

A escola é o encontro de duas espontaneidades: a do


professor, que tem uma espontaneidade educativa e busca
continuamente o melhor caminho para disciplinar e
desenvolver o esforço dos alunos, para não se tornar o
contador mecânico da faculdade de repetição da disciplina,
e a do aluno, que tem necessidade de se sentir
inteiramente engajado, com toda a alma, no seu trabalho
(Citado por Goy, 1926, p. 139).

Lombardo-Radice procura concretizar estes princípios por


meio da Ordinanza Ministeriale de novembro de 1923, que

23
Circolare nº 117, 11 dicembre 1923. Bolletino Ufficiale Del Ministero della
Pubblica Istruzione, nº 59, 1923, p. 5290.

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200

estabelece o horário, o programa e as prescrições didáticas para a


escola elementar.
Como ele próprio afirma:

Mais que um detalhado programa de ensino, a Ordinanza


de 11 de novembro de 1923 quer ser um guia para o
mestre, deixando-o livre para utilizar os meios mais
oportunos para atingir os fins que o Estado aponta como
necessários. Assinala, pois, o ponto de chegada ao qual
deve tender o trabalho do professor, e não os sucessivos
passos graduais que ele deve dar (LOMBARDO-
RADICE, 1924, p. 53).

Insistindo sobre o caráter indicativo dos programas


apresentados, a Ordinanza Ministeriale afirma que os mesmos
apenas apontam ao professor "o resultado que o Estado espera do
seu trabalho", deixando-o "livre para usar os meios oportunos para
obtê-los"24.
Proibindo o recurso às "noções repetitivas", o Programa
exige que o professor "renove continuamente a própria cultura",
não através dos manuais, mas indo "às fontes vivas da cultura do
povo", isto é, às "tradições populares" e à "grande literatura". Para o
aperfeiçoamento do trabalho didático, aconselha-se aos professores
"o estudo dos grandes autores que meditaram sobre educação", mas
principalmente "uma maior participação na vida do povo".Segundo
a Ordinanza Ministeriale,

Só aquele que busca a companhia dos mais humildes e dos


pequenos, tendo antes gozado da companhia espiritual dos
melhores espíritos humanos, sente não estar rebaixando-
se, e é capaz de falar com espírito religioso, qualquer que
seja o objeto do seu ensinamento e a idade dos seus
discípulos.

24
Ordinanza Ministeriale 11 novembre 1923. Bolletino Ufficiale Del Ministero
della Pubblica Istruzione, nº 52, 1923, p. 4590-4624. As citações que se seguem
são deste documento.

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A referência ao espírito religioso não é casual. A Reforma


Gentile colocava "o ensino da doutrina cristã na forma transmitida
pela tradição católica" como "fundamento e coroamento da
instrução elementar em todos os seus graus"25. Concretizando tal
dispositivo, o Programa de 1923 reservava uma a duas horas
semanais do horário escolar para o ensino da religião.Além do
ensino religioso, o Programa elaborado por Lombardo-Radice, fiel
à concepção pedagógica que o havia inspirado, introduz no ensino
primário o desenho, o canto e os trabalhos manuais, além das
ocupações recreativas26.
Como testemunha Cremaschi (1952, p. 162), a Reforma
de Lombardo-Radice teve uma dupla repercussão em nível da
escola:

De um lado, os espíritos mais abertos entenderam que,


apesar da forma, nem sempre feliz, do texto dos
Programas, os mesmos continham um fermento fecundo
de renovação da escola. De outro lado, os menos
preparados apegaram-se ao que havia de mais antiquado
nas novas normas. Assim, em muitas escolas houve um
florescimento de iniciativa e de busca que rompeu, com
vantagem educativa indiscutível, a velha proteção de uma
rotina didática já superada; em outras escolas, ao
contrário, a formação de um novo e mais aborrecido
pierinismo, baseado no culto do rabisco, na ênfase
recitativa, na infinita repetição de alguns poucos temas de
exercitação lingüística, tão convencionais como os do
passado.

A Reforma de Lombardo-Radice se tornará


internacionalmente conhecida, principalmente, graças a Adolphe

25
Régio Decreto 1 ottobre 1923, nº 2185, Art. 3. Bolletino Ufficiale Del
Ministero della Pubblica Istruzione, nº 47, 1923, p. 4062. A respeito do ensino
religioso escolar na Itália fascista, ver HORTA (1993).
26
Uma descrição detalhada dos Programas elaborados por Lombardo-Radice pode
ser encontrada em Ostenc (1980, p. 104-111).

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Ferrière, Diretor Adjunto do Bureau International d'Education e


Presidente da Liga Internacional pela Educação Nova27. Após
visitar as escolas italianas, em 1926, ele escreverá:

As escolas que nós visitamos impressionavam, sobretudo,


e desde o início, por sua arte e por sua limpeza
excepcionais. Limpeza também entre os alunos. Aventais
brancos nas meninas, azul nos meninos, todos com o
nome bordado, bem em evidência. Disciplina, também. A
saudação romana, braço direito erguido, parte como um
foguete coletivo. A pintura de Hedler na Universidade de
Iena! Seria injusto ficar nas aparências. Atrás do culto da
uniformidade, esconde-se a cultura da personalidade. Ela
está na Lei Gentile, de 1923: ela está no desenho livre,
amorosamente praticado e exposto aos olhares de todos;
ela está na escolha, feita pelos alunos, de um objeto de
composição que servirá de tema para todas as suas
redações, durante o mês. O canto, o estudo do folclore, a
cultura regional, o emprego do dialeto, que serve para
estabelecer um paralelo instrutivo com o italiano, os jogos
de espírito recreativos, a arte, a religião, tantos "ramos"
que nossas escolas mais ou menos ignoram e que a
reforma Gentile colocou em lugar de honra. [...] Eu
prefiro dar a palavra àqueles e àquelas que agiram, que
enfrentaram as dificuldades, que estabeleceram durante
anos o contato com as almas infantis e com o meio social
que as cerca e que, por essa razão saberão, sem minha
mediação, fazer soar a nota italiana, nota grave e forte de
uma Itália construtiva, onde não predominam mais o
verbalismo e o intelectualismo estéreis, mas onde a arte, a
poesia, a emoção sadia e grande servem de pedestal para
uma vontade firme, viril e disciplinada. Essas qualidades

27
Na carta que encaminhou ao Ministro Gentile, pedindo demissão do cargo de
Diretor-Geral da Instrução Elementar, em 30 de junho de 1924, Lombardo-
Radice, referindo-se à sua reforma, escreverá: "Não só na Itália, mas também fora
dela, tem sido louvada e apresentada como exemplo. [...] Grandes pedagogos,
como Ferrière, têm manifestado seu aplauso caloroso e apresentado a vossa obra,
em revistas internacionais, como fundamental". In: Il saluto di congedo del
Direttore generale dell'istruzione elementare dal Ministro Gentile. La Nuova
Scuola Italiana, Anno I, n. 41, 15 luglio 1924, p. 555-556.

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são independentes de todo credo político ou confessional:
elas têm suas raízes no homem, independentemente do
tempo e do lugar em que o acaso o fez nascer. Uma
pedagogia que se apóia nessa base humana é boa e
invejável em qualquer lugar do mundo. Todos os países,
todas as confissões devem sentir-se felizes e orgulhosos –
se a têm – ou devem ambicionar ter – se não a têm ainda
– uma escola onde a formação da personalidade, no
sentido mais elevado do termo, seja colocada no centro
mesmo do programa. Ora, essa escola, a Itália está em
vias de possuir. Sob esse ponto de vista, ela pode servir de
exemplo e de modelo – mutatis mutantis – ao mundo
inteiro. E o criador dessa obra imensa... é nosso amigo,
Giuseppe Lombardo-Radice. (FERRIÈRE, 1927, p. 12-
13 e 21-22)

Tal como Ferrière, "a maior parte dos observadores


estrangeiros se deixaram seduzir pelo método ativo legado por
Lombardo-Radice à escola italiana e tenderam a minimizar os seus
efeitos nefastos depois que o fascismo traiu o seu espírito com fins
propagandísticos" (OSTENC, 1980, p. 291). Tal é o caso, por
exemplo, de Blandine Ollivier, jornalista francesa que, em 1933,
visitando as escolas elementares italianas, acompanhada por
Nazareno Padellaro, inspetor das escolas de Roma, descreve essa
visita nos mesmos termos entusiasmados utilizados por Ferrière,
em 1926 (Ollivier, 1934, p.91).
Quanto a Ferrière, ele só perceberá seu engano alguns
anos depois. Em 1934 a revista Primato Educativo, dirigida pelo
mesmo Nazareno Padellaro, publicará uma série de artigos contra
a escola ativa. Como resposta, Ferrière (1935, p. 81) escreverá:

Os fascistas são lógicos com eles mesmos; considerando-se


a chave - seu ponto de partida – o ponto de vista que eles
expõem é inquestionável. Uma vez que nossas palavras,
carregadas de sentido, não têm para eles nenhum sentido,
ou um sentido que eles condenam, eles ficam apenas na
crosta de nossa fruta, e esta, suculenta e cheia de sabor,
lhes escapa. Eles dizem que a nossa Escola está morta,

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porque a crosta, que é a única coisa que eles enxergam,
está morta. É muito simples.

4. Reforma do Ensino Médio

Antes da Reforma Gentile, o ensino médio italiano


estava dividido em três seções: seção clássica, formada pelo ginásio
(5 anos) e pelo liceu (3 anos), com a finalidade de "levar os jovens a
adquirir a cultura literária e científica que abrisse o caminho aos
estudos especiais que lhes permitissem obter os graus acadêmicos
nas Universidades do Estado"; seção técnica, formada pela Escola
Técnica (3 anos) e pelo Instituto Técnico (4 anos), concebida
como um ensino secundário moderno, com a finalidade de " dar
aos jovens que se destinavam a certos empregos no serviço público,
na indústria, no comércio e na direção das empresas agrícolas uma
cultura conveniente, ao mesmo tempo geral e especial", e seção
normal, formada por um curso complementar (3 anos) e pela
Escola Normal (3 anos), com a finalidade de preparar professores
para o ensino primário (Goy, 1926, p. 201) (Figura 1)..
Mesmo antes de chegar ao poder com Gentile, os
educadores idealistas insistiam sobre a necessidade de uma reforma
profunda na organização do ensino médio. A proposição de
reforma dos idealistas baseava-se em três pontos: garantia da
liberdade de ensino, para possibilitar o desenvolvimento do ensino
privado e, conseqüentemente, através da livre concorrência,
contribuir para o progresso da escola oficial; implantação do
Exame de Estado, para controlar o conhecimento dos alunos no
final dos estudos secundários, e redução do número de escolas
oficiais, que deveriam transformar-se em escolas modelos. A
liberdade de ensino e o Exame de Estado faziam, também, parte do
programa católico, defendido pelo Partido Popular. Com base no
apoio dos católicos e sustentado por Mussolini, Gentile pode
colocar em prática o programa idealista, logo após sua chegada ao

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Ministero dellla Pubblica Istruzione, apesar da resistência de


alguns líderes fascistas.
O decreto de Reforma do Ensino Médio do Ministro
Gentile foi promulgado em maio de 192328.
A divisão horizontal entre instrução clássica, instrução
técnica e instrução normal é mantida; da mesma forma, a divisão
vertical em primeiro e segundo graus em cada uma dessas
modalidades de ensino. A instrução clássica com a finalidade de
preparar para a Universidade e para os Institutos Superiores é
composta do ginásio (5 anos) e do liceu (3 anos); a instrução
técnica, com a finalidade de preparar para o exercício de algumas
profissões, é formada pelo curso inferior do Instituto Técnico (4
anos) e pelo curso superior do Instituto Técnico (4 anos); a
instrução normal, com a finalidade de preparar professores para a
escola primária, inclui o curso inferior do Instituto Magistrale (4
anos) e o curso superior do Instituto Magistrale (3 anos) (Figura
2).
Além disso, a Reforma Gentile cria o Liceu Científico e
o Liceu Feminino. O Liceu Científico, com a duração de 4 anos,
destinava-se a "desenvolver e aprofundar a instrução dos jovens que
aspiram aos estudos universitários nas faculdades de Ciência e de
Medicina e Cirurgia"29. Como afirma Ricuperati (1973, p. 1714-
1715), as reais funções do Liceu Científico seriam:

recrutar uma parte da classe dirigente, que se orientava


para as profissões técnico-científicas e receber os alunos
que anteriormente se dirigiam para o Liceu Moderno ou
para a secção físico-matemática do Instituto Técnico,
evitando, assim, um excesso de matrículas no liceu
clássico, que deveria permanecer um verdadeiro cenáculo
de elites intelectuais.

28
Régio Decreto 6 maggio 1923, n. 1054. Gazzetta Ufficiale, n. 129, 1923.
29
Regio Decreto 6 maggio 1923, n. 1054, Art. 60-64. Gazzetta Ufficiale, n.
129, 1923.

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206

Na prática, o Liceu Científico

não pode cumprir o papel social preenchido pelo antigo


instituto técnico, que conduzia às portas da Universidade
os alunos oriundos dos meios modestos. O Liceu
Científico, longe de garantir a promoção dos melhores
elementos do povo, servirá de refúgio aos mais medíocres
filhos da elite, desencorajados pelas rigorosas exigências do
Liceu Clássico (Ostenc, 1980, p. 57).

O Liceu Feminino, com a duração de 3 anos, destinava-


se a "oferecer um complemento de cultura geral às jovens que não
aspiram nem aos estudos superiores nem à obtenção de um
diploma profissional"30. Ao sair do Liceu Feminino, estas jovens
deveriam ter "uma idéia concreta do mundo no qual deverão viver e
suficiente fineza espiritual para exercer nele sua missão
moralizadora"31. Na realidade, a criação do Liceu Feminino visava
principalmente proteger as escolas normais "invadidas por um
número cada vez maior de jovens, muitas pertencentes à alta
burguesia e mesmo à aristocracia, que nelas vinham buscar
somente uma complementação de cultura" (Goy, 1926, p. 240).
A criação do Liceu Feminino foi motivo de fortes críticas
feitas a Gentile. Rodolfo Mondolfo, por exemplo, manifesta seu
receio que na prática, a abertura dos Liceus Femininos levasse a
uma redução do número de escolas normais

freqüentadas pelos filhos e filhas das classes proletárias e


médias que nelas buscam uma preparação para uma
profissão intelectual que os mantenha espiritualmente
mais próximos de sua classe de origem, ou a preparação
mais adequada para a futura missão de mãe educadora de
seus filhinhos e, ao mesmo tempo, uma espécie de

30
Regio Decreto 6 maggio 1923, n. 1054, Art. 65-69. Gazzetta Ufficiale, n.
129, 1923.
31
Régio Decreto 14 ottobre, 1923, n. 2345. Bolletino Ufficiale Del Ministero della
Pubblica Istruzione, n. 50, 1923.

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garantia para eventuais dificuldades econômicas"
(MONDOLFO, 1923, p. 284).

Mondolfo considera o Liceu Feminino

escola de puro luxo [...] que deverá atender unicamente ao


desejo das classes ricas de um aprimoramento da cultura
das senhoritas às quais o Estado fornecerá, daí em diante,
junto com a dança e o instrumento musical, também o
latim e a filosofia, de modo a tornar mais intelectual a
conversação (MONDOLFO, 1923, p. 285-286).

A Reforma suprime a Escola Técnica que era, no dizer de


Borghi (1974, p. 251), "o principal órgão educativo da democracia
italiana em formação, [...] uma verdadeira escola do povo, que
oferecia às classes inferiores a possibilidade de subir social e
culturalmente"32. Gentile justifica esta supressão afirmando que a
Escola Técnica "se destinava a servir a muitos patrões, não se
encontrando, por isso, em condições de bem servir a
nenhum"(Gentile, 1923, p. 427). Em substituição à Escola
Técnica, a Reforma Gentile cria a scuola complementare, com a
duração de três anos, destinada a "completar a instrução dada na
escola elementar"33. Segundo Gentile, a escola complementar seria
"o complemento educativo e profissional da escola
elementar"(Gentile, 1923, p. 427). Estabelecimento educativo de
caráter nitidamente urbano, a escola complementar teria a função,
segundo o Ministro, de preparar os alunos para empregos menores
e para a direção de pequenos negócios34.

Segundo Ostenc (1980, p. 55), era a Escola Técnica "que, nas pequenas
32

cidades privadas de outros estabelecimentos de ensino médio, permitia às crianças


dos meios modestos prosseguir seus estudos".
33
Regio Decreto 6 maggio 1923, n. 1054, Art. 34-38. Gazzetta Ufficiale, n.
129, 1923.
34
Circolare 11 dicembre 1923, n. 117. Bolletino Ufficiale Del Ministero della
Pubblica Istruzione, n. 59, 1923, p. 5290.

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Estabelecendo uma distinção entre a escola


complementar de nível médio e o corso integrativi, de nível
primário, escreve Balbino Giuliano:

Argumenta-se que a escola complementar é uma inútil


duplicata do corso populare, formado, como todos sabem,
pela sexta, sétima e oitava classes elementares. A diferença
é, entretanto, profunda, embora seja igual o número de
anos de estudo. O corso populare deve acolher os
trabalhadores de amanhã, os futuros agricultores e
operários, e fornecer-lhes a primeira preparação técnica
imediata para o trabalho manual, enquanto continua e
aprimora ainda a cultura elementar. A escola
complementar, ao contrário, mesmo sendo a mais
modesta escola média, é já uma escola de formação
espiritual superior. Com efeito, enquanto prepara os
alunos a empregos considerados menores, abre-lhes a
passagem para estudos superiores, que podem representar e
realmente representam ideais de primeira importância na
vida da nação; ela abre o caminho a alguns estudos
verdadeiramente técnicos, no genuíno sentido da palavra,
estudos comerciais, industriais, náuticos, de mecânica
etc., aos quais até agora faltava uma escola média especial
sobre a qual basear-se para alcançar todo o seu
desenvolvimento (Citado por Jovine, 1980, p. 270).

Com a criação da escola complementar, afirma Balbino


Guiliano, ao lado do corso integrativi de avviamento professionale,
operava-se "uma diferenciação bem mais definida entre os futuros
trabalhadores manuais e os futuros trabalhadores técnicos, de tal
forma que a massa operária não se confundisse com a pequena
burguesia de empregados menores e pequenos comerciantes"
(Citado por Jovine, 1980, p. 270).

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209

A distinção entre escola complementar e ginásio aparece


claramente quando se examinam os programas, estabelecidos em
outubro de 192335.
Enquanto o ginásio "prepara para as altas funções da vida
civil, para as profissões liberais, para a vida política; prepara de
longe, preparando o homem: o homem moral, que ocupa seu lugar
na História", a escola complementar prepara o aluno para que ele
seja capaz "de exercer a sua função de cidadão e o seu trabalho de
artesão, pequeno comerciante, lojista". Enquanto se espera que o
aluno do ginásio adquira "um profundo sentimento da liberdade e
do dever humano" e "uma consciência mais profunda de sua
própria personalidade", do aluno da escola complementar se espera
que conheça "o seu valor e o seu lugar" na sociedade da qual faz
parte e se prepare "para a vida modesta e nem por isto isenta de
pesados e difíceis deveres, que ele deverá viver como pessoa e como
cidadão". Em suma, enquanto na instrução clássica o
conhecimento deve ser buscado "em seu grau mais elevado", na
escola complementar ele deverá ser dado "na medida em que é
necessário para ser bom cidadão".
Assim, em lugar de reforçar a Escola Técnica e ampliar
as possibilidades de acesso dos seus alunos aos cursos superiores da
escola média, Gentile, substituindo aquela pela escola
complementar, de cujo programa o Latim estava excluído, fecha
qualquer possibilidade de acesso de seus alunos aos estudos
superiores e reforça assim os obstáculos à qualquer tentativa de
democratização no campo da cultura. Àqueles que criticavam o
caráter antidemocrático da transformação da escola técnica em
escola complementar, responde Balbino Giuliano:

Diz-se que esta distinção tão absoluta e radical é pouco


democrática, que ela estabelece uma separação muito forte

35
Régio Decreto 14 ottobre, 1923, n. 2345. Bolletino Ufficiale Del Ministero della
Pubblica Istruzione, n. 50, 1923, p. 4413. As citações que se seguem são desse
documento.

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e coloca os alunos muito cedo diante de uma escolha
definitiva de sua carreira e de seu destino. Para ser franco,
importa-me muito pouco que ela seja antidemocrática. O
que importa, realmente, é que ela seja boa (Citado por
Jovine, 1980, p. 270).

Na realidade, a verdadeira questão não era a boa


qualidade da escola. Como nota Goy (1926, p. 243), esta distinção
indica bem o espírito da reforma gentiliana, isto é, "o espírito da
filosofia idealista adaptado ao ideal político do fascismo:
manutenção rigorosa dos quadros sociais atuais, recrutamento
limitado da elite, separação, ao sair da infância, em duas classes
sociais, dirigentes e trabalhadores".
Na prática, como nos mostra Ricuperati (1973, p.
1716),

As escolas complementares constituíram um fracasso


completo, mesmo porque, pelo anacronismo de sua
concepção, não realizaram aquilo que Gentile delas
esperava. Foram preteridas em favor das escolas
profissionais não dependentes do Ministério da Instrução
Pública e das escolas técnicas. Não foram capazes de
persuadir as camadas inferiores da pequena burguesia e a
parte do proletariado urbano em ascensão, quanto à sua
diferença substancial dos cursos integrativos pós-
elementares.

5. Reforma do Ensino Superior

O ensino superior italiano foi reformado por Gentile em


setembro de 192336.
Até esta data as Universidades italianas eram, em suas
linhas gerais, regidas pelas determinações da Lei Casati, de 185937.
36
Régio Decreto 30 settembre 1923, n. 2102. Bolletino Ufficiale Del Ministero
della Pubblica Istruzione, n. 44,1923, p. 3782.
37
Legge, 13 novembre 1859, n. 3725.

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211

Atribuindo ao ensino superior o objetivo de "preparar a


juventude, já munida dos conhecimentos gerais necessários, para as
carreiras, tanto públicas como privadas, para as quais são exigidos
diligentes estudos especiais, e manter e desenvolver, nos diferentes
setores do Estado, a cultura científica e literária" (GOY, 1926, p.
266), a Lei Casati estabelecia uma distinção entre as Universidades
propriamente ditas e os estabelecimentos isolados de ensino
superior. A Universidade era formada pelas faculdades de Direito,
Medicina e Cirurgia, Ciências Físicas, Matemáticas e Naturais e
Letras e Filosofia e pelas escolas de Medicina Veterinária,
Farmácia, Agronomia e Escola de Aplicação para Engenheiros. Às
Universidades era concedida autonomia financeira e aos estudantes
o direito de organizar livremente os seus estudos. Estes privilégios
foram abolidos em 1862. Assim, "até a véspera da Reforma, as
Universidades oficiais são dirigidas pelo Estado e não gozam de
autonomia, nem administrativa nem financeira. [...] Até 1922, a
tese estatizante domina, absoluta, sobre a tese da autonomia"
(GOY, 1926, p. 272).
Ao mesmo tempo, eram quase unânimes as críticas à
Universidade, tanto no que se refere à qualidade dos estudos nela
realizados quanto à quantidade de alunos que a freqüentavam. O
Relatório da Comissão Ceci, publicado em 1914, dizia "A
Universidade está doente e ela sabe disso. Sua influência é mais
exterior que interior; Ela cresce em extensão, mas não desce em
profundidade. As faculdades estão se tornando simples escolas
profissionais" (Citado em Goy, 1926, p. 265).
A Comissão Ceci apresentou propostas concretas para a
correção dessas distorções: liberdade didática e administrativa para
a Universidade, reforma dos métodos de ensino e dos exames e
controle da preparação profissional dos alunos no final do curso
por meio do Exame de Estado. Gentile aproveita todas essas
propostas ao realizar a sua Reforma do Ensino Superior, em
setembro de 1923. Mas, como afirma Borghi (1974, p. 249), "elas
foram enquadradas em uma moldura autoritária que invalidava
totalmente o seu caráter liberal".
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212

O Regio Decreto de Setembro de 1923, atribuindo à


instrução superior a finalidade de "promover o progresso da ciência
e fornecer a cultura científica necessária ao exercício profissional"
(Art. 1), classifica os estabelecimentos de ensino superior em três
categorias. Na categoria A estão as Universidades e Institutos cuja
manutenção fica totalmente a cargo do Estado, na categoria B
estão os estabelecimentos que recebem apenas uma subvenção
anual do Estado e devem ser mantidas pelos organismos locais e na
categoria C estão as Universidades e Institutos livres, que não
recebem nenhuma contribuição do Estado (Art. 3).
De acordo com Gentile, essa classificação possibilitaria
uma redução gradativa das instituições da categoria B, que só
sobreviveriam se correspondessem às necessidades locais:

A redução do número de Universidades tornara-se, nos


últimos anos, um dos problemas fundamentais da reforma
do ensino superior; a superprodução intelectual ou
pseudo-intelectual italiana anunciava-se como fonte de
grande preocupação quanto ao futuro econômico, moral e
político do país. [..] As Universidades do segundo tipo
sobreviverão integralmente se cada uma das partes que as
constituem corresponder, inclusive no que se refere às
exigências financeiras, não somente aos sentimentos, mas
às potencialidades locais, que poderão ser úteis para a
Nação. Caso contrário, reduzir-se-ão às faculdades que
forem mais úteis. [...] Assim, nenhuma Universidade foi
supressa; mas deu-se um grande passo para fazer com que
a organização do ensino superior corresponda às reais
condições econômicas e científicas do país (GENTILE,
1923, p. 433-435).

Quanto às Universidades e institutos superiores livres, a


Reforma Gentile facilita e incentiva a sua criação, concedendo-lhes
direitos iguais aos estabelecimentos públicos, no que se refere à
concessão de graus acadêmicos. Mas o Estado mantém, sobre os
mesmos, estreita vigilância. Seus Estatutos estão sujeitos à
aprovação ministerial; a escolha e o pagamento dos professores e o
regime de estudos e de exames devem se conformar às regras
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213

estabelecidas para os estabelecimentos da categoria A (Arts. 97-


112). Além disso, o Estado se reserva o direito de suprimir
qualquer Universidade ou estabelecimento livre, por simples
decreto real "sempre que se comprovar que os meios financeiros de
que dispõe não são suficientes para a consecução de seus objetivos
ou que os ensinamentos nela oferecidos não são substancialmente
conformes ao respeito das instituições e dos princípios que
governam a ordem social do Estado" (Art. 112).
Ao facilitar o surgimento de Universidades privadas,
mesmo de caráter confessional, Gentile esperava suscitar "no
terreno da ciência, uma disputa entre todas as forças antigas e
novas", que comprovaria finalmente que, "a Universidade moderna,
a Universidade leiga é a única Universidade frutuosa e útil, tanto
com relação às necessidades profissionais, quanto com relação ao
progresso moral da Nação" (GENTILE, 1925, p. 26).
Atendendo às recomendações do Relatório Ceci, o Regio
Decreto de setembro de 1923 concede às Universidades e
Institutos de ensino superior "autonomia administrativa, didática e
disciplinar" (Art. 1). As matérias a serem ensinadas, sua
distribuição e os métodos de ensino devem ser determinados no
Estatuto (Art. 2) e os novos professores são escolhidos a partir de
uma lista tríplice elaborada pelas Faculdades (Art. 17).
Comentando essas disposições, afirma Gentile (1923, p. 434-
435):

Nós instauramos em nossa Universidade a mais ampla


liberdade. [..] Às Universidades do Estado, da primeira
categoria, foi concedida autonomia administrativa e
didática, segundo o desejo antigo de todos os professores
que amaram a escola e sentiram que a Universidade não
pode viver sem liberdade didática plena. Liberdade
didática, que não significa somente a faculdade concedida
a cada professor de ensinar à sua maneira, segundo o
exigem a sua doutrina e as suas convicções científicas, mas
faculdade concedida a cada instituto de organizar
livremente em conjunto o seu próprio ensinamento.
Liberdade que não pode ser exercida sem autonomia

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administrativa. Liberdade não somente de combinar de
diferentes formas, em função de fins diversificados, as
várias matérias de ensino, mas acima de tudo, de
estabelecer e definir quais devem ser essas matérias, e qual
a melhor maneira de ensiná-las e de verificar o
aproveitamento dos alunos; e liberdade de escolha dos
professores, visto que, na realidade, é o professor que faz a
matéria, e não vice-versa.

Entretanto, como já tivemos ocasião de acentuar, "a


própria instância da liberdade se reveste, no idealismo, de uma
dimensão autoritária" (BORGHI, 1974, p. 237). A concepção
idealista de liberdade acadêmica não escapa a esta regra geral. Para
Gentile, a liberdade da escola deve ser entendida à luz das relações
desta com o Estado:

O Estado, para nós, é substância ética: é a própria


consciência do indivíduo que se faz personalidade, e se
afirma, e se valoriza através de seu desenvolvimento
histórico, na sociedade. [..] Esta consciência ativa e
dinâmica do Estado é pensamento, sistema de idéias e de
interesses a satisfazer; vida moral a realizar. Por isso, o
Estado ensina, e deve ensinar. Deve manter e favorecer
escolas, que promovam esta vida moral na qual ele se
atualiza. Na escola, o Estado realiza-se a si mesmo
(GENTILE, 1923, p. 416-417).

Desta forma, a escola é essencialmente livre, mas é


somente no Estado que esta liberdade pode adquirir sua existência
objetiva: "A escola é, e deve ser, e direi mesmo que não pode não
ser livre. É livre, porque senão não é escola: pois escola significa
desenvolvimento de vida espiritual, e não existe vida espiritual a
não ser na liberdade. Mas a existência objetiva da liberdade se dá
no Estado" (GENTILE, 1923, p. 417).
Esta concepção de liberdade levará Gentile a inserir no
Regio Decreto da Reforma do Ensino Superior uma série de
medidas que reduzirão consideravelmente o alcance da autonomia

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universitária, colocada "debaixo da vigilância do Estado, exercida


através do Ministério da Instrução Pública" (Art. 1)..
Assim, enquanto na legislação anterior o Reitor da
Universidade era eleito pelos professores, na nova legislação ele
passa a ser nomeado pelo Rei (Art. 8). Quanto aos decanos das
Faculdades e aos diretores das Escolas, eles são nomeados pelo
Ministro, por indicação do Reitor (Art. 11). O Senado Acadêmico,
do qual depende a organização científica, didática e disciplinar da
Universidade, é composto do Reitor, do antigo Reitor, dos decanos
das Faculdades e dos diretores das Escolas (Art. 9); o Conselho de
Administração, ao qual compete o governo administrativo e
financeiro da Universidade, é formado pelo Reitor, por dois
representantes do Governo e por dois professores eleitos pelo
Colégio dos professores (Art. 10). Desta forma, o governo da
Universidade fica totalmente nas mãos de pessoas nomeadas pelo
Governo. Justificando essa decisão, afirma Gentile:

No momento em que concede à Universidade a sua


autonomia, o Estado não pode abandoná-la, não pode
desinteressar-se dela; deve vigiá-la, assisti-la, corrigi-la
sempre que ela se desvie dos fins prescritos pela lei e pelo
regulamento. E, como poderia não delegar a sua própria
autoridade de alta direção e de disciplina a um
representante seu, que vigiasse sobre o andamento de toda
a vida acadêmica, e fizesse sentir dentro da Universidade o
interesse supremo do Estado, ao qual a Universidade
pertence e que, no funcionamento da Universidade, vê
depositada uma das condições essenciais de sua própria
existência? (GENTILE, 1923, p. 438)

Quanto aos professores, embora a sua escolha se fizesse a


partir de uma lista tríplice elaborada pela Faculdade, ela dependia,
em última análise.de uma Comissão nomeada pelo Ministro (Art.
17). Segundo o Ministro:

esta Comissão deveria exercer uma função de controle


sobre a escolha realizada pela Faculdade, para garantir não
só o interesse da própria Faculdade, mas o interesse geral
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da educação nacional e do Estado, cuja vida espiritual e
mesmo econômica encontraria uma causa de desordem e
de perturbação no abuso que cada Faculdade fizesse de seu
direito de livre escolha de seus professores (GENTILE,
1923, p. 436).

Não satisfeito com isso, Gentile exige que os professores,


antes de assumir suas funções, prestem um juramento de fidelidade
ao Rei e ao Estado (Art. 18). Esta exigência, que suscitou vivas
reclamações. foi justificada pelo Ministro em nome de sua
concepção de liberdade:

A liberdade concreta, efetiva, aquela dos homens que são


livres e não se contentam em reclamar a liberdade e
tagarelar a respeito dela, é uma liberdade que é realizada
ou, mais exatamente, se realiza através de uma solução (ou
orientação, ou sistema). O cientista não é forçado a
ensinar e, mesmo quando assume o compromisso de
ensinar publicamente conserva a faculdade de demitir-se
sempre que a sua consciência não lhe permite manter a
cátedra. Mas ele, para merecer assumir um ensino, deve
antes ter uma solução; e, para continuar ensinando, deve
tê-la constantemente. Esta solução pode ser, em hipótese,
conforme ou contrária aos fins pelos quais o Estado
ensina, mantêm ou garante a existência de escolas, e visa
direta ou indiretamente a finalidades culturais, segundo a
sua natureza ética. Mas é obvio que, quando esta solução
fosse contrária, o seu ensino se transformaria em um
obstáculo à atividade do Estado; e um Estado que a
aceitasse como conteúdo do seu próprio ensino faltaria ao
seu primeiro dever, que é o de defender-se e assim realizar-
se a si mesmo; gerar-se-ia assim aquela anarquia que
significa a supressão de toda liberdade, inclusive aquela de
pensar. [..] O Estado que tem uma fé, uma doutrina a
defender, a colocará necessariamente como condição e
base daquele sistema de liberdade que o constitui; e,
portanto, de toda doutrina cujo desenvolvimento e difusão
ele favorece (GENTILE, 1923, p. 421).

Finalmente, estabelecendo uma separação entre estudos e


exames realizados na Universidade e exercício profissional, a
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Reforma institui o Esami di Stato, ao qual são admitidos os


portadores de diploma de ensino superior, como condição de
habilitação para o exercício das profissões correspondentes (Art. 5).
A introdução do Exame de Estado baseava-se no princípio que

a láurea e os diplomas conferidos ela Universidade tinham


um significado e um valor puramente acadêmicos e que,
portanto, aqueles que estavam em possessão de tais títulos
de estudo, conferidos por universidade pública ou privada,
deveriam passar uma prova para obter a habilitação ao
exercício da atividade profissional (AMBROSILI, 1980,
p. 98).

Apesar da reação negativa com que foi recebido pelos


estudantes e das críticas que suscitou no meio universitário, a
criação do Exame de Estado "certamente contribuiu para elevar o
nível dos estudos na Itália"(OSTENC, 1980, p. 83).

6. As reações à Reforma Gentile

As reações à Reforma de Giovanni Gentile começam no


momento mesmo de sua aplicação. Alvo das severas críticas da
oposição, Gentile deve enfrentar uma resistência crescente no seio
mesmo do fascismo. A pequena burguesia, próxima do fascismo, se
inquieta com o caráter seletivo da escola gentiliana; os
nacionalistas, que consideram a escola "a arma mais eficaz do
Estado italiano para a manutenção e garantia de unidade espiritual
da Nação" (OSTENC, 1980, p. 131), denunciam a redução
drástica das escolas públicas, sobretudo de nível elementar; outros,
enfim, consideram a "liberdade escolar" dos idealistas como
incompatível com a concepção fascista do Estado. Enfim, como
afirma Borghi (1974, p. 251), as famílias italianas rejeitam
categoricamente a escola complementar, recusando-se a nela
matricular os seus filhos.

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218

Em um primeiro momento, Gentile consegue resistir,


graças ao apoio dos católicos e à intervenção direta de Mussolini a
seu favor. Em dezembro de 1923, por ocasião da agitação causada
nas Universidades em razão da aplicação da Reforma do Ensino
Superior, Mussolini ordena aos Prefeitos reprimir toda agitação
estudantil, enviando-lhes um telegrama no qual afirma: "Considero
a Reforma Gentile como a mais fascista das reformas aprovadas
pelo meu Governo" (Apud AMBROSILI, 1980, p. 135). Poucos
dias depois, falando aos universitários fascistas, o Chefe do
Governo dirá:

De todas as reformas que votamos, a Reforma Gentile é a


única verdadeiramente revolucionária [...]. Quanto ao
essencial da Lei Gentile, eu sou de uma intransigência
absoluta. [...] Durante cinqüenta anos se falou na
necessidade de uma renovação da escola, que foi criticada
de todas as formas; em mil tons se gritou que era
necessário dar seriedade à escola, torná-la formadora do
caráter e do homem. O Governo fascista necessita da
classe dirigente. Pela experiência destes 14 meses de
governo pude descobrir que a classe dirigente fascista não
existe. Não posso improvisar funcionários para toda a
administração do Estado: eles devem vir, pouco a pouco,
das Universidades [...]. É portanto necessário que os
estudantes estudem a sério se se quer criar uma Itália
nova. Eis as razões profundas da Reforma Gentile:
daquele que eu considero o maior ato revolucionário
ousado pelo Governo fascista nestes meses de poder38.

Uma análise das circunstâncias em que estas palavras


foram pronunciadas permite determinar bem o seu verdadeiro
alcance. As disposições da reforma haviam sido mal acolhidas pelos
estudantes, que se inquietavam com o rigor que esta introduzia e
com a exigência do Exame de Estado para o exercício profissional.
Esta insatisfação foi a causa de greves e manifestações em algumas

38
O Discurso de Mussolini encontra-se transcrito na íntegra em La Nuova Scuola
Italiana, ano I, nº 13. 23 de dezembro de 1923, p. 161.

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Universidades39. Ora, como afirma Ambrosoli (1980, p.135),


"Mussolini julgava deplorável as agitações estudantis e admirava-se
que elas tivessem sobrevivido à guerra e à 'revolução fascista', pois
eram expressão de um costume que deveria ser considerado
superado para sempre". Aos estudantes fascistas, Mussolini procura
acalmar fazendo apelo ao seu espírito fascista e acenando-lhe com a
perspectiva de ocuparem futuramente funções dirigentes na
administração do Estado. Aos outros, contra os quais ele não
hesitou a empregar a força, ele prometia ser intransigente. No
citado discurso de dezembro de 1923, Mussolini afirma:

O caráter desta agitação revela-se pela imprensa francesa e


italiana que a apóia: mesmo na hipótese de que os
estudantes tivessem todas as razões possíveis, enquanto
eles estiverem nas praças e forem apoiados pela imprensa
da oposição, eles não obterão a mínima satisfação. [...]
Daqui a alguns meses, quando esta agitação transformar-
se em uma simples e infeliz recordação, poder-se-á
examinar se alguns aspectos secundários da reforma são
mais ou menos adequados às necessidades.

Como se pode ver, mesmo afirmando ser de uma


"intransigência absoluta" no que se refere à manutenção do
"essencial" da reforma Gentile, Mussolini admite que a mesma
possa sofrer modificações. Estas modificações começaram logo
após a demissão de Gentile do Ministero della Pubblica Istruzione e a
sua substituição por Pietro Fedele, após uma rápida passagem de
Casati pelo Ministério. A politica dei ritocchi, iniciada por Fedele
em 1925, visará inicialmente atender às pressões da pequena e
média burguesia, descontente com a severidade e o rigor da escola
gentiliana; mas visará, principalmente, atender, naquilo que
competia à escola, a proposta mussoliniana de "fascistizar a nação".
A fascistização da escola, que será precedida da fascistização das

39
Tratava-se, segundo Manacorda, de agitações de tipo corporativo, em defesa de
velhos direitos e privilégios (MANACORDA, 1977, p. 177).

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associações de professores e acompanhada pela fascistização da


juventude40, realizar-se-a por meio de uma série de retoques que,
sem atingir a reforma Gentile na sua substância, procurará
aproveitar ao máximo o potencial autoritário nela contido.

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Levana, anno III, nº 5, 1923, p. 413-438.
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in Senato il 5 febbraio 1925. Levana, anno IV, n. 1-2, 1925, p.
1-40.

40
Sobre o processo de fascistização da juventude, ver Horta (2004).

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TOMASI, Tina. Il problema del metodo nella storia dell' educazione.
Torino: Loescher, 1965.

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 12, n. 24, p. 179-223, Jan/Abr 2008


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223

José Silverio Baia Horta é doutor em Educação - Doctorat d


Etat pela Universite de Paris V (Rene Descartes) (1985).
Atualmente é Pesquisador Visitante - CNPq da Universidade
Federal do Amazonas, Membro de corpo editorial do Educação em
Foco (Juiz de Fora), Membro de corpo editorial da Amazônida
(PPGE/UFAM) e Membro de corpo editorial da Revista Brasileira
de História da Educação.

Recebido em: 20/11/2007


Aceito em: 20/01/2008

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 12, n. 24, p. 179-223, Jan/Abr 2008


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.
UM RIO PARA ESTUDANTE VER:
ENGENHOSIDADES NA PRODUÇÃO DE
CADERNOS ESCOLARES1
Ana Chrystina Venancio Mignot
Roberta Lopes da Veiga

Resumo
Analisar as intenções que guiaram a produção e comercialização da
Coleção Rio, editada pela Casa Cruz, para comemorar 110 anos de
existência da papelaria, em parceria com a Tilibra – a maior fabricante
de cadernos escolares do país – implica em discutir a expansão e
desenvolvimento da indústria caderneira resultante da modernização
do parque gráfico. Para tanto, assim como editais e matérias
publicadas na imprensa sobre o concurso de pintura que deu origem à
coleção, alguns impressos dirigidos aos comerciantes de artigos
escolares – revista e catálogos de diversas indústrias do ramo –, são as
principais fontes de pesquisa, visto que permitem compreender tanto
as concepções que têm dos estudantes, como as preocupações que
informam e conformam a produção de cadernos escolares, que deixam
de ser vistos como simples suportes da escrita escolar, para serem
transformados em objeto de desejo do consumidor. As escolhas das
imagens das capas dos cadernos fazem parte das estratégias para
conquistar este consumidor privilegiado: artistas de novelas, cantores
famosos, desenhos animados, personagens de filmes e jogadores de
futebol, que agradem à maioria. Com a Coleção Rio, a Casa Cruz se
sobressai ao fugir da temática predominante na produção caderneira.
Ao colocar em destaque algumas paisagens da Cidade Maravilhosa,
também revela algumas concepções e expectativas que tem do
consumidor. Nas capas assinadas por artistas plásticos cariocas, que
estampam pontos turísticos e monumentos, a papelaria veicula a
imagem que gostaria de perpetuar: uma cidade sem violência, medo,
exclusão, uma cidade para estudante ver, amar, preservar.
Palavras-chave: cadernos escolares, produção, comercialização.

1
Texto apresentado no IV Seminário Internacional As Redes de conhecimentos e as
tecnologias: práticas educativas, cotidiano e cultura. Rio de Janeiro: UERJ, junho de
2007.

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 12, n. 24, p. 225-247, Jan/Abr 2008


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226
A RIO DE JANEIRO TO BE SEEN BY STUDENTS:
INGENUITY IN PRODUCING SCHOOL NOTEBOOKS
Abstract
Any attempt to analyze the intentions which have guided the
production and commercialization of Rio Collection, edited by Casa
Cruz stationery store to celebrate its 110th anniversary, having Tilibra
(the major Brazilian producer of school notebooks) as partner, implies
discussing the expansion of this industrial activity due to the
modernization of the graphical park. Research sources have consisted
of proclamations and news on the painting competition which gave
origin to the collection, as well as other printed materials, such as
magazines and catalogues, directed to school articles' traders, so as to
grasp the conceptions of students that inform and conform school
notebooks not only as supports to writing, but also as objects of desire
by consumers. The choice of cover images is part of the strategies to
conquer privileged consumers: TV artists, famous singers, comic
strips, movie characters and soccer players tend to please most of
them. With Rio Collection, Casa Cruz becomes outstanding exactly for
avoiding common place strategies. By stressing landscapes of the
Wonderful City, it also conveys conceptions and expectations
regarding consumers. In the covers signed by artists from Rio de
Janeiro, showing tourist points and monuments, the stationery store
propagates the image it would like to perpetuate: a city with no
violence, fear, exclusion, for the students to see, love and preserve.
Keywords: school notebooks, production, trading.

UN RIO PARA ESTUDIANTE VER: INGENIOSIDADES


EN LA PRODUCCIÓN DE CUADERNOS ESCOLARES
Resumen
Analisar las intenciones que guiaron la producción y comercialización
de la Colección Rio, editada por Casa Cruz, para conmemorar 110
años de existencia de la papeleria, en sociedad con Tilibra – la mayor
empresa fabricante de cuadernos escolares del país – implica en
discutir la expansión y desenvolvimiento de la industria cuadernera
resultante de la modernización del parque gráfico. Para tanto, así
como editales y materias publicadas en la imprensa sobre el concurso
de pintura que dió origem a la colección, algunos impresos dirigidos a
los comerciantes de artículos escolares – revista y catálogos de diversas
industrias del ramo –, son las principales fuentes de pesquisa, visto
que permiten comprender tanto las concepciones que tienen de los
estudiantes, como las preocupaciones que informan y conforman la
producción de cuadernos escolares, que dejan de ser vistos como
simple soporte de la escrita escolar, para ser transformados en objeto
de deseo del consumidor.Las elecciones de las imágenes de las tapas de
los cuadernos hacen parte de las estratégias para conquistar este

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consumidor privilegiado: artistas de novelas, cantores famosos, dibujos
animados, personajes de películas y jugadores de fútbol, que agraden a
la mayoria. Con la Colección Río,la Casa Cruz se destaca al uir de la
temática predominante en la producción cuadernera. Al colocar en
destaque algunos paisajes de la Ciudad Maravillosa, también revela
algunas concepciones y expectativas que tiene del consumidor. En las
tapas firmadas por artistas plásticos cariocas, que estampan puntos
turísticos y monumentos, la papeleria veicula la imagen que le gustaría
perpetuar: una ciudad sin violencia, miedo, exclusión, una ciudad para
estudiante ver, amar, preservar.
Palabras clave: cuadernos escolares, producción, comercialización.

UN "RIO" POUR QUE LÊS ÉTUDIANTS VOIENT: DÊS


INGÉNIOSITÉS DANS LA PRODUCTION DÊS CAHIERS
SCOLAIRES
Résumé
Analyser les intentions qui ont guidé la production et la
commercialisation de la Collection Rio, editée par la Casa Cruz pour
commémorer les 110 ans d'existence de la papeterie, en association avec
la Tilibra – la plus grande fabricante de cahiers scolaires du pays –
suppose discutir l'expansion et le développement de l'industrie de cahiers
qui resulte de la modernisation du parc graphique. Pour cela, ainsi que
des affiches et dês matières publiées dans l apresse sur lê concours de
peinture qui a déterminé la collection, quelques imprimés adressés aux
marchands d'articles scolaires – des revues et des catalogues de plusieurs
industries du secteur – sont les principaux sources de recherce, puisqu'ils
permettent comprendre les conceptions qu'ils ont des étudiants aussi que
les préoccupations qui informent et conforment la production dês
cahiers scolaires quin e sont plus vus comme des simples supports de
l"écriture scolaire pour être transformes en objet de sonhait du
consommateur. Les choix des images des couvertures appartiennent aux
stratégies pour conquérir ce consommateur privilégié: des artistes de
feuilletons, des chanteurs fameux, des dessins animes, des personnages
de films et des joueurs de football qui plaisent la plupart des gens. Avec
la Collection Rio, la Casa Cruz se détache quand elle échappe de la
thématique prédominante dans la production de cahiers. En détachant
quelques paysages de la Cidade Maravilhosa (Ville Merveilleuse), elle
revele aussi quelques conceptions et expectatives vers le consommateur.
Dans les couvertures signées par des artistes plastiques "cariocas" (nés à
Rio), qui estampent des points touristiques et des monuments, la
papeterie propage l'image qu'elle aimerait perpétuer: une ville sans
violence, sans peur, sans exclusion, une ville pour que les étudiants
voient, aiment, préservent.
Mots-clés: cahiers scolaires, production, commercialisation.

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O Rio de Janeiro que tanto tem inspirado músicas,


romances, filmes e cartões-postais, chegou a um dos inúmeros
objetos que povoam o cotidiano das salas de aula: os cadernos
escolares. A Baía de Guanabara, o Pão de Açúcar, a Biblioteca
Nacional, entre outras paisagens cariocas, há muito convertidas em
pontos turísticos, ilustram uma coleção produzida pela Casa Cruz
– papelaria centenária da cidade – que, desde a segunda década do
século passado, comercializou cadernos escolares por ela fabricados:
a Coleção Cívica, a Coleção Caligrafia Brasileira, a Coleção de
Cadernos de Desenho, entre outros.
Fundada por imigrantes portugueses, a papelaria, ao
longo de seus 114 anos, conseguiu se consolidar como uma
referência para professores e estudantes que buscam ali os últimos
lançamentos em termos de suportes e utensílios da escrita. Nas
coleções mais antigas de cadernos escolares por ela produzidas e
comercializadas, figuram em suas capas personalidades que se
destacaram na construção da nacionalidade, artistas consagrados,
produtos brasileiros, como o algodão, o café, a borracha e o fumo,
que deixam entrever um tempo no qual a loja teve uma
participação de destaque no setor caderneiro.
Todas estas coleções, diferentemente do que se poderia
supor, têm uma história que envolve diferentes profissionais: desde
os proprietários que as idealizavam elegendo os temas até os
ilustradores convidados para elaborar as capas. Em estudos
anteriores pudemos examinar que tais escolhas expressavam a
compreensão de que aos cadernos escolares cabia também
transmitir o amor à pátria, cultuar o sentimento cívico-patriótico,
a valorização dos símbolos nacionais, o respeito aos que
contribuíram de algum modo para a humanidade.
Nesta perspectiva, a Coleção Cívica não se limitava a
estampar nas capas os personagens que haviam se distinguido na
história. As contracapas traziam biografias edificantes que deixam
entrever a importância que se creditava à necessidade das novas
gerações conhecerem as vidas de determinados vultos históricos,
como parte integrante da formação moral, formação essa que não
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se esgotava nos ensinamentos transmitidos na sala de aula.2 A


escolha dos nomes Bordalo, Columbano e Raphael, para os cadernos
de Desenho da papelaria, por sua vez, não foi feita de forma
aleatória. Diversamente do que se supõe, havia uma intenção, por
parte da papelaria de fazer com que os nomes destes artistas
pudessem ser transmitidos e divulgados e, conseqüentemente,
preservar a memória dos artistas que emprestavam seus nomes à
coleção. Queriam, assim, divulgar, marcar, alcançar quem fosse
comprar o produto, pois, afinal, um nome tem o poder de
diferenciar, significar, identificar o que foi nomeado e até mesmo
as vivências culturais daqueles que nomeiam. Assim, ao
selecionarem estes artistas para homenagear, os idealizadores desta
coleção de cadernos foram atores de um processo no qual um
objeto pode ser utilizado para transmitir valores e concepções.3
Diferentemente das coleções anteriores, com capas
costuradas ou coladas, a Coleção Rio tem espiral, acompanhando a
tendência dos cadernos mais procurados atualmente pelos
estudantes. A análise das intenções que guiaram a sua produção e
comercialização permite compreender o desenvolvimento da
indústria caderneira resultante da modernização do parque gráfico.

2
Ver MIGNOT, Ana Chrystina Venancio. Por trás do balcão: os cadernos da
Coleção Cívica da Casa Cruz. In. STEPHANOU, Maria e BASTOS, Maria
Helena Câmara (orgs). Coleção Histórias e Memórias da Educação no Brasil.
Petrópolis: Vozes, 2005, pp. 363-379
3
Ver VEIGA, Roberta Lopes da. As artes de nomear: intenções educativas na
produção de uma coleção de cadernos. In: Anais da 15º Semana de Iniciação
Científica. 15º Semana de Iniciação Científica, Rio de Janeiro, 2006. Cd-Rom; e
VEIGA, Roberta Lopes da. Nomes que dão nome: os artistas homenageados em
cadernos de desenho. In: Anais do III Seminário Interno Imagem e Ação. III
Seminário Interno Imagem e Ação, Laboratório de Educação e Imagem – UERJ,
Rio de Janeiro, 2006. Cd-Rom.

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Envolve, portanto, considerar que mesmo o mais comum dos


objetos, contém engenhosidades, escolhas, uma cultura. 4

O mundo do papel:
engenhosidades da indústria caderneira

O lançamento da Coleção Rio, se deu em meio a muitas


comemorações. Nas vésperas de seus 110 anos de existência, a
Casa Cruz realizou dois grandes concursos: um de pintura e outro
de crônicas. Dois anos antes, segundo Mattos em 6 de dezembro de
2001, foi realizado com o patrocínio da Casa Cruz o I PRÊMIO DE
PINTURA 'Paisagens do Rio de Janeiro' e o I CONCURSO DE
CRÔNICAS 'Rio de Janeiro: uma Crônica a cada Dia' (2003, pp.7-
8).
A papelaria havia crescido e se espalhado por toda a
cidade, mas não era sua intenção competir com a indústria
caderneira que experimentava uma expansão substantiva. A Tilibra,
Credeal, Jandaia, Caderbrás, Foroni, Imprimo, entre outras,
haviam multiplicado os investimentos na modernização de seus
parques gráficos para que pudessem desenvolver produtos de boa
qualidade na disputa pelo consumidor. Com a coleção, a papelaria
pretendia, sobretudo, assinalar a sua longa permanência no
comércio de material escolar e de escritório.
Para a impressão da coleção comemorativa dos 110 anos
da papelaria, a Casa Cruz se associou à Tilibra, empresa que tem se
destacado, nos últimos anos, em modernização de equipamentos e
apuro técnico, acompanhando a demanda do mercado gerada pela
grande expansão escolar com seu expressivo número de alunos. Ela
é a marca líder e a maior fabricante do setor de cadernos do Brasil,
com 77 anos de existência, e considera fundamental seduzir o

4
Cf. ROCHE, Daniel. História das coisas banais: nascimento do consumo séc.
XVII-XIX. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 19, reportando-se a estudo de
Dagognet (1985).

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estudante-consumidor. Para isto, emprega cerca de 1000


funcionários e exporta para os Estados Unidos e vários países da
América Latina, com distribuidores exclusivos no Chile, Costa
Rica, Equador, Paraguai, Porto Rico, República Dominicana e
Uruguai e seus produtos chegam ao Líbano e Angola, por
intermédio de representantes.5
A rigor, a indústria caderneira tem experimentado nos
últimos anos, uma expansão expressiva. A Credeal, empresa
fundada em 1971, por quatro sócios na cidade de Serafina Corrêa,
Rio Grande do Sul, é a 4ª maior produtora de cadernos escolares
no mundo. Em 2001, quando a Coleção Rio foi criada, ela já se
destacava pelos investimentos feitos no parque gráfico, que lhe
permitiram chegar ao mercado externo, tornado-se exportadora de
cadernos para os Estados Unidos, Uruguai, Argentina, México,
Honduras, Chile, Bolívia, Paraguai, Peru e o Oriente Médio.
Dentre as suas coleções de cadernos estão a Iron Maiden e a Tatoo
Style, focalizando uma famosa banda de rock e o modismo da
tatuagem, respectivamente. Um indicador do cuidado que orienta a
sua produção pode ser visto na concomitância de lançamento de
cadernos com temáticas inspiradas até mesmo em filmes
americanos ainda não exibidos. Este é o caso da Ghost Rider,
baseada numa superprodução, cuja estréia coincide com o início do
ano letivo de 2007, protagonizado pelo astro hollywoodiano -
Nicolas Cage - que interpreta um motoqueiro fantasma. Pura ação e
efeitos especiais com imagens alucinantes nos cadernos. Para meninos
em idade escolar. 6
A Jandaia, por sua vez, orgulhando-se de ser a primeira a
fabricar celulose no país, instalada em Caieira, interior do estado
de São Paulo, por imigrantes italianos, há pouco mais de 50 anos,
possui um parque industrial de cerca de 12.000 m2 de área

5
Informações disponíveis em http://www.tilibra.com.br. Acesso em 21 de março
de 2007.
6
Consultar http://credeal-site.locaweb.com.br/. Acesso em 22 de março de 2007.

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construída e com equipamentos de última geração produz cerca de


3.500 toneladas de papel por mês, que serve ao fabrico de cadernos
escolares.7 Bad Boy, Bad Girl, Models Ford, Hipy Hop, nomes das
coleções de cadernos por ela publicadas, sugerem não só uma
preocupação com o mercado exterior, mas com a cultura dos
jovens: Nós puxamos muito a questão da moda porque o caderno
escolar é um acessório do estudante, ou seja, tem que combinar com o
tênis, com o jeans.8
A indústria caderneira no Brasil tem sido um setor
promissor que muito tem investido em recursos humanos e
materiais e o resultado disto é a grande variedade de produtos que
tem fabricado. A Imprimo, uma empresa localizada no Rio de
Janeiro, que funciona desde 1965, e que a partir de 1990 com a
ampliação física de sua unidade gráfica, diversificou a sua linha de
produção, passando a fabricar cadernos e produtos escolares, o que
lhe permitiu, em uma década, absorver 150 empregados e figurar
entre as dez maiores fabricantes deste segmento, em todo o
território nacional.9 Exportando desde 2000 para os países do
Mercosul, traz em suas coleções os títulos em inglês, o que permite
supor a intenção de ampliar a comercialização do produto para
outros países: Trader, Hard Line, Side Color, Club Products.
Caderno é estar na moda, é status, é identidade. Por isto,
são fabricados atualmente com o objetivo de atingir os
consumidores de tal forma que deixem de ser vistos como um
simples suporte da escrita para representar um objeto de desejo na
vida do consumidor. A Caderbrás, que fabrica os cadernos Norma,
investe nesta direção. A Marvel Heroes é assim explicada em seu

7
Ver também http://www.jandaia.com. Acesso em 21 de março de 2007.
8
Depoimento do gerente de marketing da empresa na matéria "Uma idéia na
cabeça e uma capa na mão". In Papel & arte, 1997, Rio de Janeiro, ano IV, nº
19, abr/mai, p. 35.
9
Para maiores informações, ver http://www.imprimo.com.br. Acesso em 21 de
março de 2007.

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catálogo, dirigido aos comerciantes do ramo de papelaria: Aulas,


provas, matérias, trabalhos e um sem fim de atividades... para passar
de ano, só mesmo com a força dos Heróis Marvel: dos gibis para as
capas de cadernos Norma da garotada, eles vão fazer o maior sucesso
na sala de aula! Coleção Marvel Heroes 2006: superpoderes para as
sua vendas!.10
De certa forma, com algumas exceções, os empresários
sejam os fabricantes de cadernos ou de outros produtos, têm
investido significativamente no sentido de atingir cada vez mais
pessoas sem que elas percebam o quanto estão sendo influenciadas.
Segundo Konder,

vultuosos investimentos são feitos para, fazendo-lhes


concessões, manipular consumidores. Um bombardeio de
marketing e chuva forte de merchandising induzem os
indivíduos a se acreditarem muito diferentes um dos
outros e, no entanto, levam-nos muitas vezes a se
tornarem extremamente parecidos, até em seus sonhos,
em suas fantasias (2005, p. 167).

Este é o reflexo da sociedade e é claro que a indústria


gráfica brasileira não poderia estar fora deste movimento. Sendo
assim, ela busca atender a todos os públicos optando por estilos que
possam garantir um retorno financeiro. Em 1997, no catálogo
Utilidades & Novidades, a Tilibra, através da sua gerente de
marketing e de seu diretor de vendas, esclarece a compreensão que
tem do mercado:

O Brasil celebra a estabilidade econômica, surgem as


classes emergentes com maior poder de compra e sede de
consumo. Segundo o economista Joelmir Betting, da
noite para o dia, o Plano Real criou trinta milhões de
consumidores, é quase a população da Argentina.
Sintonizada com os padrões internacionais de qualidade, a
Tilibra se mantém como líder absoluta em seu segmento.

10
Ver Catálogo Escolar 2007. Norma, 2007, p. 60. (catálogo).

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A Coleção Utilidades e Novidades 97, com muita
criatividade, visual atraente e pioneirismo vem ao
encontro das necessidades do cotidiano, detectadas através
de pesquisas qualitativas e observações de tendências
mundiais. 11

Dois exemplos fornecem indícios de que a necessidade de


atender a um mercado segmentado, múltiplo e diversificado é uma
preocupação que informa e conforma a produção dos cadernos
escolares. Entendendo que os cadernos utilizados no início da
escolarização deveriam ter um conteúdo formativo, a Coleção Arca
de Noé, da Tilibra, trazia, em 1997, muitas cores e desenhos de
animais, nos cadernos de linguagem, aritmética, desenho, caligrafia
e cartografia, retomando, assim, uma prática muito característica
da produção de cadernos nas primeiras décadas do último século:
como aprender é muito importante, a contracapa dos cadernos e o
verso da pasta trazem o Hino Nacional impresso.12 Dez anos depois,
a mesma empresa, voltando-se, provavelmente, para atender ao
público evangélico, numa sociedade multicultural, fabrica a série
Atitude Cristã, – elaborada em consideração ao crescimento do público
jovem cristão, que anseia por produtos religiosos com visual arrojado 13
– que traz nas capas, em letras coloridas e gigantescas: Com Deus
não há perigo que eu não possa vencer; Jesus mudou meu coração,
transformou minha vida, me fez nascer de novo; Ide pelo mundo.
Pregai o evangelho, ou Só em Deus encontro paz.14
A produção da Coleção Rio pela Casa Cruz se deu num
momento em que a papelaria praticamente só fabricava o caderno
Raphael, já que não se caracteriza mais em lucro uma papelaria
produzir os cadernos que comercializa. A produção de cadernos, em

11
COUBE, Adriana Ricci e COUBE, Vinícius Viotto. Coleção Utilidades e
Novidades, In. Utilidade & Novidades, Tilibra, 1997, 1. (catálogo)
12
Cf. Volta às aulas 97, Tilibra, 1997, p. 16. (catálogo).
13
Ver Volta às aulas 2007. Tilibra, 2007, p. 15 (catálogo).
14
Idem.

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geral, nos dias atuais pertence às grandes indústrias, pois são estas
que fazem maciços investimentos no sentido de pesquisar que tipo
de produto trará maior retorno financeiro. Mesmo sendo hoje uma
grande revendedora dos produtos fabricados pela indústria gráfica
brasileira, a Casa Cruz resolveu investir em uma nova coleção de
cadernos que assinala uma certa ruptura com o que havia
produzido até então, seguindo a lógica predominante do setor: não
resgatava importantes personagens da história, como fazia
tradicionalmente, e investia no uso de espirais e capas duras,
padrões que definem o bom acabamento gráfico.
Comercializando material escolar em suas oito lojas
espalhadas por toda a cidade, seus proprietários ao imaginarem
uma coleção compartilhavam, certamente, da crença de que, além
do preço, da marca, da qualidade e do número de folhas, é a capa
que determina quase sempre a escolha dos cadernos escolares. 15

Rio de Janeiro:
a preservação de uma imagem em cadernos escolares

O período em que se buscava cultuar personagens da


história do país, em cadernos escolares, passou. Consciente disso, a
Casa Cruz decidiu produzir cadernos escolares que conciliassem
apuro técnico e a dimensão educativa que informou as coleções
anteriormente fabricadas por ela. Utilizou a oportunidade que teve
de criar uma nova coleção de cadernos para produzir um objeto que
pudesse servir à preservação da memória da cidade do Rio de
Janeiro. Ao comentar o concurso que deu origem às capas da
coleção, Roberto Mattos diz que

os concursos organizados tiveram como objetivos fazer


uma reflexão sobre a vida na cidade onde vivemos e

15
BRAVO, Zean. Uma idéia na cabeça e uma capa na mão. In Papel & Arte, ano
IV, n 19, ab/mai, 1997, p34.

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mostrá-la aos habitantes que por ventura não conheciam
partes dela e também a confecção de capas de cadernos
para a 'volta às aulas', de 2003 com as imagens das obras
vencedoras no concurso de pinturas (2003, p.8).

A inscrição para o concurso de pintura ocorreu no


período de 06 de agosto a 30 de setembro de 2001. Os artistas
interessados poderiam concorrer com apenas uma obra e, esta
poderia ser executada com diferentes técnicas: óleo, acrílica ou
mista. O importante era que todos os trabalhos retratassem
paisagens do Rio de Janeiro, pois o tema era este. O concurso foi
amplamente divulgado através de jornais, rádio e panfletos
distribuídos na matriz e filiais da loja, que faziam alusão à
celebração dos 110 anos de existência da papelaria e divulgavam o
edital do concurso.
Segundo Roberto Mattos, as obras passaram por uma
comissão julgadora composta por: Nilton Mendonça e Eduardo
Camões (artistas plásticos); João Carlos Lopes dos Santos (Marchand
e Consultor de Mercado de Arte) (op.cit, p. 8). Em entrevista,16 ele
revelou ainda que os dez primeiros colocados cederiam o direito de
imagem à Casa Cruz, para que esta as utilizasse nas capas de uma
nova coleção de cadernos, a Coleção Rio:

Os quadros apreciados, em número de cento e cinqüenta e


três, foram classificados em três grandes categorias: dez
vencedores, trinta e seis selecionados e cento e sete
participantes. (...) As obras vencedoras e selecionadas
ficaram expostas na estação do Metrô Carioca entre os
dias 17 e 21 de dezembro de 2001, recebendo elogios e
críticas (Mattos, op.cit, p. 8).

A vencedora do concurso foi a artista Sandra Maria


Nunes dos Santos com uma pintura que retratava a Biblioteca
Nacional, que além de ter seu quadro na capa de um dos cadernos

16
Entrevista com Roberto Mattos, concedida no dia 11 de abril de 2007, à Ana
Chrystina Mignot e Roberta Lopes da Veiga.

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teve também o trabalho publicado na capa do livro Rio de Janeiro


Uma crônica a cada dia, que foi o resultado do concurso de
crônicas, cujas vencedoras tiveram os seguintes títulos: "Rio,
crônica do sempre. Uma crônica a cada dia"; "Pau-nh-acuqua";
"Largo do Machado, uma viagem no tempo"; "Rio de Janeiro: uma
crônica a cada dia"; "O melhor lugar do mundo"; "Casa, poste,
muro, casa"; "Ruas do Rio"; "Meu vício desde o início"; "Retrato de
domingo"; "Dindi"; "Algum lugar no centro"; "Um Rio de poesia";
"Feliz cidade"; "Carta do último ato"; "'Lá fora' de cidade grande" e
"Os Encantos de Ipanema". 17

Capa do Caderno da Coleção Rio, classificada em primeiro lugar, no Concurso I


Premio de Pintura., assinado pela artista plástica Sandra Maria Nunes dos
Santos. Arquivo Casa Cruz.

Devido a problemas jurídicos com um dos vencedores do


concurso a Coleção Rio que deveria ser composta por dez cadernos

17
Os autores das crônicas são: Jorge Luiz de Sant'anna, Alexandre Soares,
Antônio Krisnas, Carme Guia, Eduarda Costa, Eduardo Sodré, Fernando
Gechele, Flávia Savary, Helena Cutter, Lilian Brandão, Luis Maffei, Maurício da
Costa Batista, Noelí Lopes, Pedro Sanches (Vitor Souza), Salvina Barros e
Silvana Vargas, respectivamente.

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passou a ter nove, mas os artistas vencedores foram: Sandra Maria


Nunes dos Santos, Evani Camargo do Nascimento, Alan
Brandão, Hélio Sarda Dias, George Bedran Simões, Djalma
Moraes, Antônio Nogueira, João Barcelos Neto, Alexandre
Bandeira e Ranes Rodrigues da Costa.

Cadernos da Coleção Rio, focalizando respectivamente a Enseada de Botafogo, a


Estação das Barcas e a Marina da Glória. Arquivo Casa Cruz.

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Neste momento em que o que se tem destaque nos


cadernos são os ídolos juvenis e desenhos animados de sucesso, a
Casa Cruz resolveu produzir uma coleção na qual privilegiou a
paisagem da cidade do Rio de Janeiro, visando, possivelmente,
resistir a uma padronização presente na sociedade e permitindo que
outros tipos de imagens estivessem nas capas e contracapas dos
cadernos. Assinadas, elas mostram que a preocupação em veicular o
trabalho de artistas persistia. A Coleção Cívica, produzida
provavelmente em meados da terceira década do século passado,
que estampava vultos históricos, tinha sido encomendada a um
importante ilustrador português radicado no Brasil: Manuel Mora,
que também foi responsável pela capa dos primeiros números da
Revista O Cruzeiro e que participava de muitas outras publicações
importantes da época. 18
A estratégia da Casa Cruz de produzir uma coleção em
homenagem ao Rio de Janeiro, se diferenciava das empresas
produtoras de cadernos escolares que investem em pesquisas de
mercado visando agradar o público ao qual se destina. O catálogo
de uma das coleções da empresa responsável pela impressão da
Coleção Rio, dirigido aos comerciantes do ramo de material escolar
– Volta às aulas 97 –, traz preciosas pistas sobre os cuidados que
cercam a fabricação do produto:

Conceber, idealizar, aperfeiçoar. Elaborar conceitos de


produtos requer visão ampla e sensibilidade aguçada. Em
nome de um mercado mutante e ávido por novidades, a
Tilibra vai além, transcende. Procura formas de expressão
com inovação e apuro artístico. Buscando uma sintonia
maior com seu público, a Tilibra investiu em pesquisas
qualitativas. E os resultados obtidos nortearam de maneira

18
Consultar MIGNOT, Ana Chrystina Venancio. Cadernos escolares nos traços
de Manuel Mora. In Anais do VI Congresso Iberoamericano de História da
Educação Latinoamericana e do Caribe. Quito, 2005 (cd-rom) e MIGNOT, Ana.
Tangenciando Imagens: bastidores da produção dos suportes da escrita. In: ALVES,
N.; BARRETO, R.G. e OLIVEIRA, I.B. (orgs) Pesquisa em Educação métodos,
temas e linguagens. Rio de Janeiro: DP&A, 2005, pp. 177-188.

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decisiva o preparo da nova coleção. Para o grupo de jovens
participantes dessas amostragens, as capas dos cadernos
retratam a personalidade de quem as possui, refletem
sensações, sentimentos, valores íntimos e estão vinculadas
com a expressão da individualidade do usuário (1997, p.
1).

Atender ao exigente gosto dos estudantes, tanto crianças


como jovens, tem posto, como no caso da Tilibra, a necessidade de
criar um canal direto com os consumidores. Com uma grande rede
de distribuição que assegura a circulação e os usos dos cadernos em
todo o território nacional, a empresa escuta, acolhe e divulga as
opiniões dos estudantes, em suas publicações dirigidas aos
revendedores: Adoro os cadernos Tilibra. Acho o máximo!!! São todos
bem criativos e bem coloridos. Os cadernos até nos ajudam a estudar
mais; dá gosto estudar em um caderno Tilibra. Vocês estão de
parabéns pelos materiais fornecidos para todos nós.19
Razões econômicas e disponibilidade para cumprir com
os prazos da encomenda, provavelmente devem ter influenciado na
decisão de estabelecer parceria com a Tilibra. A coleção proposta
pela Casa Cruz, diferenciava-se da maior parte das coleções
produzidas pela empresa parceira, que tem investido no universo
jovem, tentando seduzir o estudante para os seus produtos, mas
que também apresentava, juntamente com outras fábricas,
experiência em produção de cadernos escolares como veículos de
transmissão de conhecimento e valorização de nossa cultura. O
licenciamento das obras de Tarsila do Amaral, que ilustram capas
destes produtos por ela editados, fazem parte de uma preocupação
comum ao ramo, pois Portinari, Volpi, Aldemir Martins, Caribé,
por exemplo, já tiveram seus trabalhos exibidos neste suporte da
escrita.20

19
Ver Utilidade & Novidades, Tilibra, 1997, p. 22. (catálogo)
20
Ver CARRARA, Cristina. Vendendo brasilidade. In Papel & Arte, Rio de
Janeiro, ano V, n. 35, jan/fev, 2000, pp. 52-53.

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 12, n. 24, p. 225-247, Jan/Abr 2008


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Aliás, é importante lembrar que, para desenvolver as


capas, os fabricantes de cadernos trabalham com marcas próprias,
que são criadas por eles mesmos, ou com marcas licenciadas, em
que se adquire a permissão de outros para que estas possam ser
utilizadas. A Foroni, inclusive, vem conquistando também o respeito
das empresas de licenciamento, através de prêmios pelo bom
desenvolvimento de seus produtos, pela criação e desenvolvimento de
arte de suas coleções.21 No catálogo de divulgação da coleção de
2007, destacam-se algumas marcas licenciadas: Moranguinho, uma
das personagens mais queridas pelas garotas de todo o mundo, cuja
marca já arrecadou milhões de dólares em vendas nos últimos anos,
com mais de 300 licenciados no mercado editorial e cerca de 10
milhões de livros vendidos (p.5); Spider-Man cujo licenciamento é
um dos mais valorizados por ter imagens de qualidade e o apoio de
um dos maiores sucessos de bilheteria dos últimos anos (p.11);
Velozes e Furiosos, uma licença adequada aos conceitos de liberdade,
estilo, individualidade, diversidade étnica (p.19); Power Puff Girls,
baseada em meninas superpoderosas, seguras, independentes e que
confiam em si mesmas. A força da marca reside no apoio na TV:
desenhos do SBT e Cartoon. Um dos sites mais visitados pelas
adolescentes. Uma marca que está sempre atualizada e segue as
últimas tendências de moda e estilo, (p. 31) entre muitas outras.
A produção de cadernos escolares pode ser melhor
compreendida no contexto da cultura da imagem que marca os
tempos atuais, na qual ela é muito valorizada, tendo se
transformado em caminho para conquistar o consumidor. Segundo
Vanderlei Dorneles,

essa sociedade não pensa em termos de idéias e ideais, mas


de imagens, corpos, prazer e consumo. Logo, a mídia
focada no gosto e na expectativa do consumidor investe

21
Tratam-se de prêmios de concursos da Disney e da Warner Bros. A Foroni
ganhou o prêmio de Melhor Exposição para Propriedade Licenciada. Ver
FORONI, Marici. Mais um! Coleção 2007, Catálogo, 2007. p. 3

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 12, n. 24, p. 225-247, Jan/Abr 2008


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242
em peças visuais, corporais, no apelo emocional das
formas, das cores. 22

Esta realidade não é uma estratégia restrita somente à


mídia, mas permeia os mais variados setores produtivos da
sociedade e, dentre estes, a indústria gráfica, que atenta a isto
procura desenvolver cada vez mais cadernos. Isto, obviamente, só
foi alcançado pelo grande avanço tecnológico que no último século
se fez evidente. As imagens nessas capas seduzem o comprador
porque são produzidas com a intenção de serem tão perfeitas e reais
que atraiam a atenção das crianças e jovens que os procuram.
As imagens das capas de cadernos assumem, assim, a
função de representar, expressar, identificar o indivíduo que
comprou o produto, revelando muitas vezes a que grupo pertence.
Não é de se estranhar que numa sociedade extremamente
consumista, que cria ídolos e modelos a serem observados,
seguidos, imitados e cultuados do dia para noite, até mesmo atores
de novela ou personagens de filmes sejam transformados em heróis
nacionais. Heróis estes, que segundo Neves (2006), perderam as
características que os constituíam como tal. Este herói ou anti-
herói

(...) não é inumano, não está distante do cotidiano, não é


agraciado por nenhuma força externa excepcional e, à
primeira vista, não possui qualquer habilidade especial. O
herói da cultura de massa é, apenas, o protagonista da
história. Trata-se de um cara comum, como eu ou você. E
talvez seja justamente sua humanização a principal
característica deste 'anti-herói' de nossos dias.23

22
Ver DORNELES, Vanderlei. Cultura da imagem: A pós-modernidade do
pensamento. Disponível em http://www.canaldaimprensa.com.br/canalant/opiniao.
Acesso em 15 de abril de 2007.
23
Ver NEVES, Leonardo. Imagem e produção de sentidos: a relação de jovens
leitores de mangá com o herói Kenshin. In: Anais do III Seminário Interno Imagem e
História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 12, n. 24, p. 225-247, Jan/Abr 2008
Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe
243

A Casa Cruz ao produzir a Coleção Rio optou por


privilegiar imagens que não estão em evidência na indústria
caderneira nacional e que trazem mais vantagens financeiras. No
entanto, ao colocar as paisagens da cidade do Rio de Janeiro nas
capas dos cadernos para preservar a memória da cidade, a papelaria
não desconhecia uma demanda de seus clientes, como lembrou
Roberto Mattos, em entrevista: muitos deles iam às lojas e
perguntavam se não tinham cadernos com imagens da cidade. A
seu modo, com esta coleção, a papelaria, a exemplo de toda
empresa comercial, não fugiu à lógica do mercado visando atender
ao consumidor que buscava um produto diferenciado.

Últimas anotações

A análise das intenções que guiaram a produção e


comercialização da Coleção Rio envolve uma reflexão sobre a
recente produção caderneira no Brasil que aumentou e se
modernizou nos últimos anos, passando a ter uma variedade de
produtos à disposição do consumidor. Os números referentes à
exportação dessas empresas revelam o grande salto de crescimento
que esse setor teve. Segundo a Associação Brasileira da Indústria
Gráfica (ABIGRAF), somente no primeiro semestre de 2006, a
indústria gráfica brasileira tinha exportado US$ 54,13 milhões
contra US$ 20,99 milhões do mesmo período do ano passado.24
As empresas passaram a investir em diferentes linhas o
que possibilita desenvolver produtos direcionados a um
determinado grupo, mas isto não significa que todos sejam
atendidos. O que se tem são diferentes estilos, pré-selecionados

Ação. III Seminário Interno Imagem e Ação. Laboratório de Educação e Imagem


– UERJ, Rio de Janeiro, 2006. Cd-Rom.
24
Ver ABIGRAF. Indústria gráfica ressalva importância da Escolar para os
negócios do setor. Disponível em < http://www.abigraf.org.br>. Acesso em:
25/03/07.

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 12, n. 24, p. 225-247, Jan/Abr 2008


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pelas empresas, pois mesmo se utilizando de pesquisas para saber


quem ou o que os consumidores querem ver estampados nas capas
dos cadernos, elas não deixam também de fazer uma seleção no
sentido de buscar aquilo que trará mais lucro.
A análise das estratégias da Casa Cruz para criar a
Coleção Rio, ajuda a compreender as questões e as práticas culturais
presentes na sociedade de ontem e de hoje, neste objeto
constituinte da cultura material da escola. Atentos à possibilidade
de conquistar novos consumidores os empresários da indústria
caderneira têm preocupação em atingir determinados nichos de
mercado que possam favorecer a lucratividade. Por isso,
desenvolvem linhas direcionadas às crianças, jovens e adultos,
focalizando seus investimentos em personagens, paisagens, atores,
que agradem à maioria.
Neste contexto, no qual os cadernos escolares produzidos
retratam padrões e modelos que contribuem para a
homogeneização, contribuindo para resumir as diferentes
personalidades dos indivíduos em algumas crenças e valores pré-
determinados pela cultura de massa, a Coleção Rio se destaca. Se o
investimento da Casa Cruz em cadernos com paisagens não
chegava a ser uma novidade no setor caderneiro, pois muitos deles,
ao longo do tempo, tiveram suas capas ilustradas com lugares
paradisíacos, focalizando o mar, as montanhas, os céus, 25 ao
retomar a tradição de publicar capas assinadas por artistas
plásticos, a papelaria também expressa uma determinada maneira
de conceber o seu consumidor privilegiado. Crianças e jovens
mereciam ser protegidos, de uma sociedade desumana e violenta.
O Rio de Janeiro estampado nesta coleção de cadernos
escolares resgata a Cidade Maravilhosa, uma cidade sem miséria,
sem exclusão, sem medo. Em cada capa, são divulgadas apenas as
suas belezas, a imagem de exportação, aquela que gostaria de se ver

25
Recentemente, uma coleção – a Style Paisagem – exibe as Cataratas do Iguaçu,
Fernando de Noronha, o Pão de Açúcar, por exemplo.

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 12, n. 24, p. 225-247, Jan/Abr 2008


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perpetuada: um Rio antigo, com seus monumentos, suas paisagens


bucólicas, um lugar para admirar. Uma cidade para estudante ver,
amar, preservar.

Referências

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DA INDÚSTRIA GRÁFICA.


Balança comercial do setor gráfica. Disponível em:
<www.abigraf.org.br>. Acesso em: 25 de março de 2007.
ABIGRAF. Indústria gráfica ressalva importância da Escolar para
os negócios do setor. Disponível em: <
http://www.abigraf.org.br>. Acesso em: 25 de março de 2007.
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25ª. Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e

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Acesso em 21 de março de 2007.
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História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 12, n. 24, p. 225-247, Jan/Abr 2008


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VEIGA, Roberta Lopes da. As artes de nomear: intenções
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VOLTA ÀS AULAS 2007. Tilibra, 2007, (catálogo).
VOLTA ÀS AULAS 97, Tilibra, 1997, (catálogo).

Ana Chrystina Venancio Mignot é Professora do Programa de


Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Pesquisadora do CNPq.
Roberta Lopes da Veiga é Aluna da graduação do curso de
Pedagogia, Faculdade de Educação da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ). Bolsista PIBIC/CNPq e integrante da
linha de pesquisa Instituições, Práticas Educativas e História,
grupo coordenado pela Profª Ana Chrystina Mignot que desenvolve
a pesquisa Casa Cruz: uma papelaria na produção, circulação e usos
dos suportes da escrita escolar, com o auxílio do CNPq e FAPERJ.

Recebido em: 22/12/2007


Aceito em: 20/01/2008

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 12, n. 24, p. 225-247, Jan/Abr 2008


Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe
.
RESENHA
.
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO:
DO ANTIGO "DIREITO DE EDUCAÇÃO"
AO NOVO "DIREITO À EDUCAÇÃO"
Rita de Cássia Grecco dos Santos

MONTEIRO, Agostinho dos Reis. História da Educação: do


antigo "direito de educação" ao novo "direito à educação". São
Paulo: Cortez, 2006. 200 p.

Agostinho dos Reis Monteiro é Professor no


Departamento de Educação da Faculdade de Ciências da
Universidade de Lisboa e membro do respectivo Centro de
Investigação em Educação (CIE) e do Conselho Internacional do
Fórum Mundial de Educação (FME). É Doutor no domínio do
Direito Internacional da Educação pela Universidade de Paris 8 e
pela Universidade de Lisboa, tendo sido bolsista do Conselho da
Europa e feito estágios oficiais na UNESCO (Paris) e nas Nações
Unidas (Genebra), designadamente.
Além da obra acima referida que passaremos a resenhar –
que Monteiro recomendou a manutenção da ortografia vigente em
Portugal – o autor escreveu entre outros tantos trabalhos os
seguintes livros lançados por editoras como Porto, Lisboa e CIE:
"Educação, acto político" (1975), "O direito à educação" (1998),
"Educação para a cidadania – Textos internacionais fundamentais"
(2001), "Sobre o direito à educação" (2001), "A revolução dos
direitos da criança" (2001), "Deontologia das profissões da
educação" (2005) e "História da Educação – Uma perspectiva"
(2005). Há que se destacar a dedicação do autor aos estudos
relacionados à História da Educação como um direito e um ato
político, opção cunhada ao longo de sua trajetória.
História da Educação: do antigo "direito de educação" ao
novo "direito à educação" – sua mais recente obra – em
História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 12, n. 24, p. 251-255, Jan/Abr 2008
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252

consonância com suas publicações anteriores, Monteiro ao trazer


uma abordagem historiográfica problematiza uma perspectiva da
história da educação ocidental – abordagem jurídica da educação –
identificando-a como uma lenta e inacabada transição entre dois
paradigmas político-pedagógicos: - do "direito de educação", em que
o bem do Todo (a comunidade) prevalece sobre o bem das partes
(os seus membros); - do "direito à educação", em que o valor
principal é o indivíduo como sujeito ético. Nesse sentido, chama a
atenção, mais que isso, denuncia que "[...] a educação continua
dominada pela tradicional mentalidade pedagógica, conservadora e
repressiva" (p. 10) e que é um anacronismo falar de "direito à
educação" antes de meados do século XX, posto que havia apenas
um "direito de educação".
A fim de abordar a historicidade destes dois paradigmas,
define como suas coordenadas teóricas duas categorias
sociopolíticas: holismo e individualismo, apresentando como suas
principais referências clássicas a República de Platão e o Emílio de
Rousseau, respectivamente. Para tanto, neste livro organizado em
onze capítulos, Monteiro dedica os dois primeiros à compreensão
das concepções de educação e direito e dos principais contrapontos
entre os dois paradigmas mencionados. Quando enfatiza que a
educação sempre foi objeto de alguma forma de regulação social e
considerada direito natural da família, sendo que somente com o
advento do moderno Estado-Nação tornou-se um interesse público
e um direito político do Estado. Destaca que apenas no século XIX
ocorre a conquista da consagração constitucional do princípio da
escola obrigatória e que o direito à educação foi reconhecido pela
primeira vez, no plano universal, através da "Declaração Universal
dos Direitos do Homem", de 10 de dezembro de 1948. Também
apresenta um questionamento tenaz acerca de como aconteceu essa
transição de paradigmas – do holismo ao individualismo – em
sociedades eminentemente holistas, apresentando como possível
justificativa [...] Que o homem não nasce acabado, que a sua
existência evolui, eis a sua dignidade! (BLOCH, 1972, 5-15).

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 12, n. 24, p. 251-255, Jan/Abr 2008


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Do terceiro ao quinto capítulo trata especificamente do


entendimento do "direito de educação", abordando inclusive o
posicionamento bifronte de Comênio – precursor do direito
universal a uma educação nova – em relação aos dois paradigmas.
Sinaliza que Platão foi o primeiro a conceber um sistema completo
de educação obrigatória, justamente por conceber que o
aperfeiçoamento moral e político é principalmente obra da
educação e que a polis é essencialmente uma cidade educativa,
criada pois pela educação. "[...] É uma educação que não tem em
vista o aperfeiçoamento individual, mas está inteiramente ao
serviço da cidade, garante da felicidade dos seus cidadãos enquanto
estes lhe permitem encarnar a justiça" (HUMMEL, 1992, p.
352). Por extensão, podemos compreender porque em seus
Diálogos sobre a Educação há que se considerar três dimensões: o
ângulo Metodológico, a Política da Educação e a Filosofia da
Educação.
Nos capítulos seis a dez apresenta a trajetória constitutiva
do "direito à educação" desde a contribuição rousseauniana – como
fundador da pedagogia moderna, através do célebre clássico Emílio
– à construção histórica do Movimento da Educação Nova
(MEN), quando destaca alguns dos seus principais expoentes e seus
respectivos contributos, enfatizando sobremaneira o papel
desempenhado por Paulo Freire, quem considera o intérprete mais
insigne deste Movimento na segunda metade do século XX. Ao
explicar a revolução pedagógica proposta por Rousseau, de caráter
psicológico, ético e jurídico-político, sobretudo, ao questionar
"Com que direito educar?", constata que o holismo do velho direito
de educação absorveu a nova seiva do individualismo do direito à
educação reclamado por Emílio, portanto, não conseguiu
revolucionar a educação. Quanto ao MEN, além de classificar suas
tendências como da área da Psicologia (preponderante), da Política
e Libertária, descreve a gênese do Bureau International d'Education
– BIE (1925), da "Declaração Universal dos Direitos do Homem"
(1948), a articulação da "Convenção sobre os direitos da criança"
(1989), a "Carta dos direitos fundamentais da União Européia"
História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 12, n. 24, p. 251-255, Jan/Abr 2008
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(2000), além do próprio "Manifesto dos Pioneiros da Educação


Nova" no Brasil (1932), e conclui que "Por um triste paradoxo, o
insucesso da sua obra, tão ousada e tão simples ao mesmo tempo, é
que ela continue a parecer de vanguarda!" (DUBREUCQ, 1994,
p. 275).
Por fim, no último capítulo, numa declarada campanha
pelo respeito à dignidade humana e, sobretudo, aos direitos das
crianças, torna presente a discussão sobre o percurso dos castigos
corporais nos espaços de escolarização, relacionando diretamente a
punição com o método da Pedagogia do "direito de educação".
Denuncia que a prática dos castigos continua enraizada nos
costumes, na maior parte do mundo e que a infelicidade da
infância é uma das fecundas inspirações da moderna literatura
infantil.
Ao concluir a obra, o autor enfatiza que a História da
Educação pode ser interpretada como um processo de lento
reconhecimento do educando como ser humano de pleno direito,
culminando na proclamação dos "direitos da criança", entre os
quais o "direito à educação", e que Platão, Comênio, Rousseau e
Paulo Freire, entre outros clássicos – ou imortais do Panteão da
História da Educação como categoriza Monteiro – têm em comum
os princípios que distinguem os gênios da educação: - Consciência
do primado humano da educação; - Sentido dos pormenores e da
totalidade; - Visão da dialética entre educação e política e da sua
natureza positivamente utópica.
O livro configura-se como um atraente convite aos
pesquisadores da área de História da Educação, especialmente
aqueles que como Monteiro compartilham da crença que "A
elevação da educação à categoria de "direito do homem" e o
desenvolvimento do direito à educação representam um capítulo
novo na História da Educação" (p. 183), pois há muita história
ainda para fazer, até que a educação se converta efetivamente num
direito do homem.

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 12, n. 24, p. 251-255, Jan/Abr 2008


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Rita de Cássia Grecco dos Santos. Doutoranda e Mestre em


Educação – História da Educação pelo Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Federal de Pelotas –
UFPEL e Professora no Departamento de Educação e Ciências do
Comportamento da Fundação Universidade Federal do Rio
Grande – FURG. E-mail: ritagrecco@yahoo.com.br

Recebido em: 14/10/2007


Aceito em: 20/01/2008

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 12, n. 24, p. 251-255, Jan/Abr 2008


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.
DOCUMENTO
.
.
O KINDERGARTEN OU JARDIM DE INFÂNCIA
POR MARIA GUILHERMINA
LOUREIRO DE ANDRADE (1888)
Maria Helena Camara Bastos

Introdução

Maria Guilhermina Loureiro de Andrade (1839-1929),


nasceu em Minas Gerais e foi professora, escritora e tradutora,
com atuação significativa no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas
Gerais, na segunda metade do século XIX e primeiras décadas do
século XX, cuja ação foi marcada por sua fé reformada, no campo
presbiteriano (Chamon, 2005). Fundou na Corte um colégio para
meninas, onde ensinava as matérias de instrução primária como
também várias línguas, disciplinares da instrução superior. Em
viagem para os Estados Unidos da América, onde permaneceu por
quatro anos, entrou em contato com as experiências desenvolvidas
nos kindergarten ou jardins de infância, a fim de se preparar para
estabelecer essa instituição no Brasil. Colaborou com o periódico
"Jornal das Famílias" (1863-1878) .
Quando da realização do Congresso de Instrução em
1883, foi convidada a dar parecer sobre a quarta tese -
Organização dos jardins da infância -, juntamente com Joaquim
José de Menezes Vieira , Joaquim Teixeira de Macedo , Maria
Guilhermina Loureiro de Andrade defende a organização dos
jardins de infância, para crianças de 3 a 7 anos, pois considera que
esta fase é a mais importante, por ser nos primeiros anos que as
impressões são mais fortes e que se forma o caráter; pode-se dizer
que a primeira educação decide da felicidade e da utilidade do
homem na sociedade. Enfatiza, para isso, a necessidade das mães e
das professoras serem instruídas também nos cuidados e atenção à
criança. Destaca que os jardins de infância não são escolas no
sentido vulgar da palavra. Recomenda que, antes da fundação de

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 12, n. 24, p. 259-268, Jan/Abr 2008


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260

jardins de infância no Império, que seja criado um jardim-modelo


dirigido por professora competente, no qual se possam preparar
convenientemente as futuras jardineiras das crianças.
Sobre as experiências pioneiras na organização de jardins
de infância no Brasil, Teixeira de Macedo (1884) destaca os três
profissionais, que "gozando de bem merecida reputação e
conhecendo perfeitamente a índole da puerícia brasileira, com
todos os seus defeitos e qualidades, os Srs. Barão de Tautphoeus,
Dr. J. J. Menezes Vieira, especialmente, fundador de um Jardim de
crianças bem montado e dirigido, e a Exma. Sra. D. Maria
Guilhermina Loureiro de Andrade são os mais competentes para
coadjuvar o próximo Congresso na melindrosa tarefa de resolver
praticamente a questão proposta".
Entre suas publicações, consta a: Resumo da História do
Brasil para uso das escolas primárias. Boston, 1888. 231 páginas
(In-8 com 22 estampas coloridas, tendo várias reedições. Este livro
segue o modelo do professor W. Pockels, com notícias dos fatos
marcantes da nossa história como também dos principais vultos).
O documento que publicamos foi editado pela autora em
1888, com 13 páginas, em que emite suas posições sobre a
proposta de Fröebel para o Kindergarten ou Jardim de infância.

Referências

ANDRADE, Maria Guilhermina Loureiro de. O Kindergarten,


ou, o Jardim de Infância. Rio de Janeiro: Typografia e Lithografia
de Machado, 1888. 13 p.
BASTOS, Maria Helena. Pro Patria Laboremus. Joaquim José de
Menezes Vieira (1848-1897). Bragança Paulista: EDUSF, 2002.
BASTOS, M.H.C. Leituras das famílias brasileiras no século
XIX: O Jornal das Famílias (1863-1878). Revista Portuguesa de
Educação. Universidade do Minho, v.15, n.2, 2002. p. 169-214.

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 12, n. 24, p. 259-268, Jan/Abr 2008


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BASTOS, M.H.C. Luzes do Futuro. O Congresso da Instrução –


Rio de Janeiro (1883-1884). Parte I. Porto Alegre:
PUCRS/CNPq, 2005. Relatório de Pesquisa. mimeo 85p.
BLAKE, Augusto V. A. Sacramneto. Dicionário bibliográfico
brasileiro. Rio de Janeiro: [s.n.], 1883-1902.
CHAMON, Carla Simone. Maria Guilhermina Loureiro de
Andrade: a trajetória profissional de uma educadora (1869-1913).
Belo Horizonte: UFMG, 2005. Tese (Doutorado em educação).
Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Educação.
COLLICHIO, T. A. F. A contribuição de Joaquim Teixeira de
Macedo para o pensamento pedagógico brasileiro. São Paulo:
FEUSP, 1976. Dissertação (Mestrado em educação). Faculdade
de Educação. Universidade de São Paulo. São Paulo.
FROEBEL, Friederich (1826). A Educação do Homem. Passo
Fundo: EDUPF, 2001.

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 12, n. 24, p. 259-268, Jan/Abr 2008


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O KINDERGARTEN OU JARDIM DE INFÂNCIA


POR MARIA GUILHERMINA
LOUREIRO DE ANDRADE (1888)

Há 5 anos, tendo sido tendo sido convidada pelo


Governo Imperial para dar parecer sobre a fundação dos Jardins de
Infância nesta capital, declarei que nenhum proveito disso poderia
vir às nossas crianças pela falta de jardineiras competentemente
habilitadas para esta melindrosa tarefa, e também por pensar que
seria um crime ensaiar métodos que talvez não fossem bons e úteis
aos pequeninos, de quem o Divino Jesus, falando aos Apóstolos
dizia: "Se vós não fazerdes puros como um destes, não haveis não
haveis de entrar no Reino dos Céus".
Resolvi, portanto, fazer uma viagem aos Estados-Unidos,
onde a instrução primária tem tido um progresso verdadeiramente
admirável, e lá durante 4 anos não poupei esforços e sacrifícios afim
de preparar-me quanto fosse possível para vir aqui estabelecer um
Kindergarten ou Jardim de Infância, onde os nossos meninos
gozassem das mesmas vantagens que os meninos americanos, que
vivem vida mais completa e mais feliz sob as leis da Educação Nova,
isto é, como plantas animadas, rodeadas de todas as circunstâncias
favoráveis ao seu livre desenvolvimento, e educados por meios
adequados às suas disposições individuais, em contacto constante
com a natureza, quer cultivando flores, quer tratando dos animais,
ou aprendendo suas interessantes histórias em breves conversações
com a Jardineira, ou em seus brinquedos, procurando imitar as
primeiras atividades da natureza. Deixar a criança brincar é educá-la.
Os brinquedos bem dirigidos levam necessariamente as crianças a
uma comunhão mais profunda a mais elevada com o universo.
Se a criança constrói uma casa é para morar nela, como
a gente grande, para oferecê-la aos seus amiguinhos e repartir
alguma coisa com os outros! Notai que a criança inocente que
recebe livremente, também livremente dá o que tem. Pais e mestras
devem respeitar os pequenos e mesmo mais insignificantes
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presentes das crianças como um meio de despertar o instinto da


atividade e da representação da unidade com nossos semelhantes.
Os dons e as ocupações de Froebel, como se diz no
Rindgey, são os materiais de que se serve a Jardineira para educar a
criança.
Chama-se o 1º dom uma caixinha com 6 bolas, 3 de
cores primárias e 3 de secundárias. Todos sabem que a bola por sua
forma simples é o melhor brinquedo para uma criança. Ela serve
para chamar a atenção da criança para uma coisa determinada e
imprime- lhe na mente ainda tenra, por meio de jogos, as idéias de
forma, posição, movimento, direção, côr, peso, densidade e volume.
Segue a bola uma coleçãozinha de sólidos geométricos –
uma esfera, um cubo, um cilindro e um cone – feitos de madeira,
com que se inicia a criança na análise e comparação das formas.
O 3º, 4º 5º e 6º dons são cubos de madeira divididos de
diversos modos, mas gradualmente destinados a satisfazer o desejo
natura à criança de "conhecer o interior das cousas" ver o que está
dentro. – Porque essa necessidade da criança – a curiosidade – é
antes – vontade de saber – do que – gosto pela destruição – como
vulgarmente se diz.
A variedade das formas que se pode obter com estes dons
é infinitamente grande; e classificam-se formas de conhecimento,
de beleza de vida. Chamam-se "formas de conhecimento" aquelas
em que se empregam as leis de forma, grandeza e número; "formas
de beleza" as que representam coisas agradáveis à vista; "formas de
vida aquelas em que se imitam objetos da vida real, como casas,
mesas, árvores, animais, etc.
O 7º dom consiste em taboinhas quebradas e triangulares
representando superfícies, e seu fim é preparar o espírito da criança
para abstrações; pois com este material a criança pode obter só a
imagem dos objetos que antes construira com os cubos.
O 8º e 9º dons são Réguas ligadas de modo que se
movam facilmente sem se separar, e varinhas soltas para se
entreterem. Servem ambos para preencher a transição entre a

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superfície e as linhas: porque a régua representa a linha exterior da


superfície, de que também dá a idéia por sua largura.
O 10º e 11º dons consistem em palitos de madeira, e
anéis ou círculos e semicírculos de arame, que se prestam a
variadíssimos exercícios de aritmética, geometria e desenho, porque
representam as linhas retas e curvas.
Entre as "ocupações" há o papel picado, que exercita a
vista e a mão da criança e prepara-a para o bordado e o desenho.
O papel do dobrado entrelaçado e recortado é por si só
uma geometria completa, um livro de arte. Ao passo que a criança
com isto educa as mãos, sua inteligência se desenvolve com as
explicações geométricas, e a intervenção das formas de simetria
elevam seus sentimentos artísticos.
O desenho e a modelagem apresentam à observação
criadora da criança a objetos e fatos externos, e o papel, o lápis e o
barro são os materiais necessários para que ela reproduza e invente
e assim obtenha seu próprio desenvolvimento intelectual.
Além destes brinquedos mentais há os brinquedos de
movimento, quer dentro da sala, quer no jardim ao ar livre. Eles
proporcionam a todas as crianças a participação de um fim
comum, que só se alcança quando reinam a lei e a ordem. A
Jardineira que dirige o brinquedo não admite arbitrariedade, nem
rudeza, nem brigas, nem domínio dos mais fortes ou sujeição dos
mais fracos; mas dá a cada um o direito que lhe compete. Além
disso, as crianças ficam muito mais contentes quando a jardineira
se mete em seus brinquedos e com sua presença lhes dá melhor
ordem e direção.
Estes brinquedos de movimento têm nas cantigas que os
acompanham um centro ainda mais vital de união; pois que
nenhum sentido vai tão direito ao coração como o do ouvido. Nada
penetra tanto na vida espiritual da criança como o canto.
Nenhuma atividade pode, como ele, exprimir indireta e quase
involuntariamente as harmonias mais íntimas. Por isso são no
Kindergarten as canções um poderoso meio de educação.

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Como sabem o Kindergarten não é uma escola, é um


lugar de reunião infantil, onde se desenvolve fisica, mental e
moralmente toda a atividade da criança em tudo o que ela pode
fazer antes de entrar para a escola, isto é, dos 3 aos 7 anos.
O fim do Kindergarten é dar à criança a primeira
educação, que se resume em exercer sobre ela certa influência de
acordo com suas disposições naturais, dar-lhe força ao corpo;
exercitar-lhes os sentidos; ocupar-lhes as faculdades mentais que
principiam a formar-se; torná-la pelo pensamento familiar com o
mundo da natureza e do homem; e guiar seu tenro coração e sua
alma inocente na direção do bem, preparando-a para a mais elevada
compreensão da Unidade Suprema em Deus.
Não se trata no Kindergarten de ler, escrever ou contar,
nem e gramática, geografia, ou história; nem de regras, nem de
definições; nem de livros, enfim de coisa alguma que se considere
usualmente como instrução. O que há nele à farta é a atividade e
energia- atividade dos membros, atividade dos sentidos, atividade
do espírito, do coração dos instintos religiosos.
Agrupam-se geralmente as crianças no Kindergarten
conforme as idades; mas logo que chegam aos 6 ou 7 anos passam
para a classe intermediária, onde já recebem um princípio de
ensino elementar da escola, e desta para o ensino primário regular;
mas sem interrupção de métodos.
Para este fim tenho, desde que voltei dos Estados-Unidos,
associado minhas irmãs ao meu projeto de estender às aulas
primárias os magníficos métodos do Kindergarten, e com a
colaboração zelosa e inteligente que elas me prestam, espero em
pouco tempo formar e publicar os novos métodos para todos os
ramos de ensino primário, que é o verdadeiro alicerce de toda a
instrução.
A fundação dos Kindergartens foi sugerida a Fröebel
pelos seus estudos do reino vegetal da natureza e por seu
encentrado amor da humanidade, e hoje esta adorável instituição
acha-se estabelecida em quase todas as nações civilizadas da Europa

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e nos Estados-Unidos por Jardineiras amestradas no espírito e nos


métodos do grande amigo das crianças.
Apesar das perseguições do despótico governo prussiano
foi o Kindergarten particularmente estabelecido em Berlim e outras
cidades e protegido por pessoas da mais alta posição, tendo à sua
frente a Princesa Imperial, hoje Imperatriz Frederica-Victoria, que
não só quis que seus filhos fossem educados em um genuíno
Kindergarten froebeliano, mas também esforçou-se para que a
princesa Helena da Rússia os fundasse na sua pátria e tinha
orgulho em ser denominada "Dama Protetora da Escola de
Jardineiras de Londres", em Tavistock Square n. 17.
O mais afanado dos Kindergartens atuais é o de Dresda,
intitulado – Froebel Stiftung.
A baronesa de Marenheltz – Bülow, a ilustre propagadora
do sistema de Froebel, foi, a convite do governo italiano, a
Florença lecionar por dois anos a aí formou uma classe de
Jardineiras que se espalharam pela Itália. Em Nápoles, Madame
Salis-Schwab com grandes sacrifícios introduziu o Kindergarten e
hoje o Colégio Médicis conta príncipes entre seus alunos.
Na Inglaterra, há o de Manchester, dirigido por Miss
Anna Snell, discípula de Middendorf.
Em Londres, o da Sociedade de Fröebel, fundado por
Miss Doreck e Mr. Payne, de que é presidente Miss Emily
Shirreff. Em Dublin, há também um notável, dirigido por Miss
Eleonor Heerwart, outra discípula de Middendorf.
Na Suíça, a Madame de Portugal, Inspetora Geral da
Instrução Primária, estabeleceu também Kindergartens genuínos.
Nos Estados-Unidos houve desde 1859 tentativas
inadequadas de fundação de Kindergartens; mas a falta de estudos
especiais e particulares desse método fez com que eles não fizessem
honra ao sistema de Fröebel, e portanto ficaram todas essas
tentativas burladas. Foi então que Miss Peabody resolveu fazer
uma viagem à Alemanha e ver os verdadeiros Kindergartens, e de
volta à pátria convenceu a uma associação pedagógica que era
necessário mandar vir para fundar um verdadeiro Kindergarten em
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New-York a Fraulein Maria Roelte (hoje Mme Kraus-Roelte de


New-York), senhora de elevada posição e esmerada educação na
Alemanha, que desinteressadamente abraça a carreira de Jardineira.
Ela havia sido discípula de Mme. Fröebel e estudado na Inglaterra
a língua inglesa tão corretamente que podia falar com as crianças.
Chegando aos Estados-Unidos, Miss Roelte casou-se com o
professor John Kraus, discípulo de Diesterweg, e hoje dirige a mais
célebre das Academias de Jardineiras da América do Norte.
Em Boston, nota-se o Kindergarten Mme. de Kriege e
sua filha. Em S. Louis e Indianápolis os de Miss Blow e de Miss
Alice Chapin, graduadas na Academia de Mme. Kraus-Roelte. Há
alguns em Philadelphia, Montreal e Chicago, onde Miss Burritt, "a
Jardineira do Centenário da Grande Exposição", tem também o
seu. Em Washington encontram-se alguns bons Kindergartens. Só
em New-York há oitenta, doze dos quais dirigidos por discípulos de
Mme. Kraus-Roelte, entre eles o do Normal College. Mas não
posso formar um juízo exato, exceto do Kindergarten Modelo de
Mme. Braus,de quem fui discípula e a quem tributo a mais
reverente admiração pela obra que tem feito e continua a fazer.
Seu último conselho quando dela me despedi foi: "Miss Andrade, a
senhora nasceu para Jardineira, mas guarde-se na sua Escola do
Rio de Janeiro de dar carta de Jardineira a quem não estiver por
uma longe experiência, disposições afetuosas para com as crianças e
instrução séria, preparada para tomar a responsabilidade de educar
crianças, pois que há muita gente que ousadamente se precipita
sobre terreno sagrado, onde mesmo anjos receiam a pisar".
Quanto mais atentarmos para a educação da criança,
tanto mais penetraremos as profundas vistas da idéia moral de
Fröebel, que é nada menos que a do próprio Cristo que dizia:
"Destes tais é o Reino dos Céus", "O que receber em meu Nome
um menino, a mim é que recebe".

Maria Guilhermina de Andrade.

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