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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA

FACULDADE DE DIREITO

TEORIA DAS QUALIFICAÇÕES

1. Noção. Razões determinantes da especificidade desta questão em DIP


2. Interpretação do conceito-quadro. Delimitação e caracterização do objecto da
qualificação
3. Exegese do artigo 15.º
4. O problema do conflito de qualificações

1. Noção Geral

A qualificação é um processo técnico-jurídico pelo qual se classifica ordenadamente os factos


da vida relativamente às instituições criadas pela Lei ou pelo Costume, com o objectivo de
enquadrar as primeiras nas segundas, encontrando-se assim a solução mais adequada e
apropriada para os diversos conflitos que ocorrem nas relações humanas.

Mas os próprios institutos jurídicos também exigem uma qualificação clara.

Em geral temos um facto e dispomos da norma jurídica. Para enquadrar o facto na norma,
há que se ter claramente entendido o primeiro e bem delineado o segundo, ambos exigem
qualificação. Quer dizer que a qualificação é uma operação presente em qualquer ramo do
direito, o direito enquanto conjunto de regras gerais obriga o jurista, a perante determinado
facto da vida, submetê-lo a categorias gerais, isto é, qualificar estes factos.

Ex.: Qualifica-se um facto como culposo, para concluir-se pela obrigação de indemnizar; ou
ainda, qualifica-se uma coisa como móvel ou imóvel, para a submeter ao respectivo regime.
No direito criminal, por ex., é preciso conceituar bem a noção de Roubo e furto para que não
se confundam, o que implica uma qualificação clara de cada uma destas figuras penais
(senão corre-se o risco de perante um facto de roubo qualificá-lo como furto e vice-versa).

Se esta acção é importante no direito em geral, no DIP torna-se ainda mais importante,
porquanto a operação de qualificar procura ligar facto ou acto jurídico com algum sistema
jurídico, e para esta operação é preciso qualificar a hipótese. Dependendo da sua
qualificação, saber-se-á se a mesma constitui uma situação inerente ao estatuto pessoal do
agente do direito, se se trata de uma situação de natureza contratual intrínseca, se versa
sobre uma questão de forma, se é uma questão sucessória, etc.

Uma vez efectuada a qualificação em uma ou outra das categorias, recorrer-se-á à regra de
conexão correspondente e aplicar-se-á o direito de um ou outro sistema.

Portanto, a qualificação no âmbito do DIP consiste na subsunção de um quid concreto a um


conceito utilizado por uma norma. Qualificar um quid é determiná-lo como subsumível a um
conceito, por aplicação desse mesmo conceito. Enfim, é subsumir normas materiais ao
conceito-quadro.

Logo, o problema da qualificação coloca-se na interpretação do conceito-quadro, mas antes


de interpretar este conceito importa apresentar a origem do problema.
Identificação do problema

Este problema foi detectado e analisado por Etienne Bartin em França em 1897, e por Franz
Kahn, na Alemanha, em 1891. Em que consistiu o problema?

Bartin apresenta 3 exemplos: O caso Bartholo, ou sucessão do maltês; o testamento


ológrafo do holandês, e o casamento do grego ortodoxo:
a) Caso Bartholo: 2 cônjuges anglo-malteses haviam emigrado para a Argélia, onde o
marido adquiriu bens imóveis. À morte deste, sem filhos e intestado, a viúva aparece
pela lei anglo-maltesa a reclamar “a quarta do cônjuge pobre”. Na Argélia vigorava o
direito Francês, e neste sistema a viúva nada herdaria. Ambas as leis regiam a
capacidade pela Lei Nacional, porém em França os bens imóveis situados em França
era (e é) regido pela lei francesa. A questão foi colocada no Tribunal de Argel.

Bartin especulou que a viúva teria direito a quarta do cônjuge pobre se o regime
aplicável fosse o matrimonial, pois que os bens de cônjuges regem-se pela lei do
primeiro domicílio conjugal, mas se a pretensão fosse de natureza sucessória, não se
aplicaria a lei maltesa, pois que na Argélia a sucessão de bens imóveis é regulada
pela Lex rei sitae, nesse caso, a lei argelina, que nada atribui à viúva. Assim, saber se
o direito da viúva decorria do regime matrimonial ou sucessório era um a questão de
qualificação, e assim, divergindo as duas leis sobre o regime aplicável estar-se-ia
presente um problema de qualificação.

b) Caso do Testamento ológrafo do holandês: O art.º 992.º do CC Holandês proíbe


o testamento ológrafo aos holandeses, especificando que a proibição abrange os
testamentos celebrados no estrangeiro. Noutros países da Europa, como França e
Bélgica é válido. A dúvida coloca-se no caso de um holandês que que assina um
testamento ológrafo em França: poderá um Tribunal Francês reconhecer a validade
deste testamento?

Segundo Bartin, tudo depende da qualificação que se atribua ao dispositivo do


código holandês. Se os Tribunais franceses atribuírem a regra o estatuto pessoal,
reconhecendo tratar-se de uma questão de capacidade, o testamento será nulo, pois
esse dispositivo aplica-se a capacidade do holandês e acompanha-o; porém, se
fosse considerada uma norma aplicável a forma dos actos jurídicos, eis que o
testamento será válido, pois em matéria de forma tudo depende da lei do local da
realização do acto jurídico, e a lei francesa admite o testamento ológrafo.

c) O caso do casamento do grego ortodoxo: o art.º 1367.º do CC grego (até a lei


grega promulgada em 1982) não admitia o casamento civil de gregos. Um grego
ortodoxo contrai núpcias civis com uma francesa em França, sem considerar a lei de
seu país que exige uma celebração religiosa. Este casamento será válido ou não?

Novamente, dependerá da qualificação que se der ao dispositivo do CC grego. Se o


juíz considerar a exigência da celebração religiosa como condição de fundo, e
como na França se submete a validade das núpcias à lei nacional, a lei graga seria
aplicável e o casamento sem validade; mas se a norma grega for considerada como
uma questão de forma, a solução dependerá da lex celebrationis, e a lei francesa
será a competente, sendo considerado válido o casamento.

Acontece que o direito grego considerava a regra como condição de fundo do


casamento, enquanto que o direito francês classificava-o como simples condição de
forma – formando assim o conflito de qualificações.

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Em face destas situações, facilmente se compreendem as razões que levaram a doutrina a
singularizar o problema da qualificação em DIP e a fazer dele um problema extremamente
complexo e embrulhado uma questão crucial: por uma lado, a natureza do conceito-quadro,
e por outro, na determinação do quid que se há-de subsumir a esse conceito (a
determinação do objecto desse conceito), isto é, qualificar. Agora atentemos ao conceito-
quadro.
2. Interpretação do conceito-quadro e determinação da lei aplicável

a) o conceito-quadro tem a função de definir ou delimitar o âmbito de competência da


lei apontada pela correspondente conexão, por modo a prevenir ou dirimir concursos
ou conflitos de leis. É necessário saber, então qual a sua natureza, conteúdo e
alcance;
b) O conceito-quadro tem necessariamente que delimitar matérias ou questões
jurídicas;
c) O conceito-quadro é um conceito técnico-jurídico (não preenchido, desprovido de
conteúdo material), que se coloca no âmbito das questões jurídicas, estas que são
comuns aos diferentes direitos;
d) Portanto, devemos procurar algo de comum aos diferentes sistemas jurídicos num
plano anterior ao das soluções de direito.

Na interpretação do conceito-quadro e determinação do seu conteúdo foram apontadas três


principais teorias sobre a escolha da lei qualificadora: a) a qualificação pela lex fori; b)
qualificação pela lex causae; c) qualificação por referência a conceitos autónomos e
universais.

a) Qualificação pela lex fori – o aplicador da lei, deparando-se com uma questão
jurídica que extravasa sua própria jurisdição, por estar ligada também a outro
sistema jurídico, e, verificando que a qualificação da matéria não é idêntica no seu
direito (LF) e no direito estrangeiro aplicável, há-de atentar para a qualificação de
seu próprio direito.

Argumentos a favor desta teoria: 1. o juíz conhece a sua lei, são as normas
conflituais internas que irão orientá-lo na escolha da lei aplicável. Se preliminarmente a
esta escolha da lei aplicável se torna necessário classificar a questão jurídica, nada mais
lógico do que ater-se ao seu próprio sistema. Não seria cientificamente lógico que, a
segunda etapa de um processo segue uma determinada lei, a etapa anterior, que lhe é
preliminar e prejudicial, seja solucionada por outro sistema jurídico. 2. Como admitir a
qualificação pela lei estrangeira se ainda não sabemos se ela será realmente a lei
escolhida, tudo dependendo da qualificação que se der ao caso, isto é, se a questão for
qualificada de uma forma, aplicável realmente será a lei estrangeira, mas se qualificada
de outra forma, aplicável será a lei do foro.

Ex.: Casamento civil do grego em França: trata-se de saber se a questão é de


capacidade ou de forma.

1. A lei grega não admitia, qualificando a questão como pertinente a capacidade, mas
em França não havia nenhum problema quanto a espécie de casamento, sendo
qualificada como matéria de forma de acto jurídico.

2. Em ambas as legislações a capacidade da pessoa é regida pela lei da sua


nacionalidade, e as formas dos actos jurídicos são regidas pela lei do lugar de sua
celebração. Resta saber que qualificação deveria ser seguida, a grega que regulava a
questão como de capacidade (o que levaria a aplicar o direito grego e considerar o

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casamento nulo), ou a qualificação francesa, que considera a questão como de forma
(o que levaria a aplicar a lei francesa e decidir pela validade do acto).

3. O juíz tem que executar três etapas: qualificar a questão; escolher o sistema jurídico
aplicável segundo as regras de DIP, e aplicar a norma jurídica pertinente deste
sistema – o direito grago será o aplicável se se tratar de questão de capacidade, e o
francês se for questão de forma (qualificar pela lex fori é o mais racional).

4. UMA LEITURA A LUZ DO NOSSO CC – podia ser aplicada a regra do artigo 50.º
(princípio lex loci regit actum), o casamento seria considerado uma questão de
forma, logo existente e válido; ou pelo artido 49.º, e considerada uma questão de
fundo, relativa a validade intrínseca do casamento, e ser aplicado o direito grego, e o
acto considerado NULO.

b) Qualificação pela lex causae – esta teoria entende que se deve solicitar ao direito
estrangeiro eventualmente aplicável a qualificação da relação jurídica que constitui
objecto do litígio, isto é, cabe a lei designada pela norma de conflitos a delimitação
do conceito-quadro.

Ex.: Casamento civil do grego em França: trata-se de saber se a questão é de


capacidade ou de forma.

O raciocínio desenvolvido por esta escola seria o seguinte: considerando que de


acordo com as regras do DIP francês, a capacidade é regida pela lei da nacionalidade
da pessoa, cabe a esta lei (nacional) dizer o que se encerra dentro da capacidade, e
como a lei grega inclui a questão do casamento (civil/religioso) na capacidade,
aplicar-se-á o direito grego, anulando-se o matrimónio.

A crítica a esta teoria é que o DIP francês só determina a aplicação da lei da


nacionalidade para a questão da capacidade e não para questões que ela considera
como de forma, e como o casamento (civil/religioso) é qualificado na França como
questão de forma, o direito grego jamais deveria ser tomado em conta.

Ex.: Na hipótese do testamento ológrafo do holandês realizado na França, esta


segunda teoria diz que uma vez que a França aplica à capacidade a lei da
nacionalidade, é a esta lei que se devia indagar se a questão de testar pela via
ológrafa se insere na capacidade, e como o direito holandês assim considera, dever-
se-á julgar o testamento de acordo com a norma holandesa que veda forma de
testar.

UMA LEITURA A LUZ DO NOSSO CC - Entre nós a resposta directa a esta questão
temo-la hoje no n.º 2 do artigo 65.º do CC, pelo que o caso não apresenta qualquer
dificuldade para o julgador angolano).

c) Qualificação por referência a conceitos autónomos e universais – esta teoria


entende que o juiz não deve ficar preso à qualificação de determinadas leis, seja do
foro, seja da causa, mas utilizando-se do método comparativo, ir em busca de
conceitos autónomos, diferentes dos conceitos internos e dotados de carácter
universal. Na medida em juízes de diversos países adoptem este método, eliminar-se-
iam os conflitos de qualificações no plano internacional. Por esta técnica seria
possível a aplicação de determinados institutos, vigentes em certas legislações e
desconhecidos em outras.

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d) Segundo esta teoria, deve-se construir e interpretar a norma de conflitos em função
de todos os sistemas jurídicos cuja aplicação ela é susceptível de desencadear (por
ex.: o artigo 23.º do CC alemão que versa sobre a tutela no plano internacional, não
deve entender-se apenas a tutela tal como concebida pelo direito alemão, mas o que
se entende por tutela em geral no mundo civilizado…). A teoria foi criticada e tida
como utópica, pois o problema da qualificação só se verifica havendo diversidade de
qualificações em dois sistemas jurídicos, sendo irreal esperar que o juiz encontre um
denominador comum entre as mesmas.

O conceito quadro deve ser interpretado tendo em conta os interesses e fins que pretende
acautelar, não descurando os fins que o DIP procura atingir e reclamando por isso mesmo
uma postura autónoma na sua interpretação de acordo com a lex formalis fori (isto é com o
DIP do foro).

Esta é a Teoria Teleológica desenvolvida pelo professor Ferrer Correia, e vai interessar-
nos. As normas de conflitos possuem fins específicos e por isso os conceitos nelas previstos
revelam aptidão para abranger institutos jurídicos, nacionais ou estrangeiros.

A interpretação segundo a “lex formalis fori ”, tendo em vista a específica função do DIP é
uma consequência lógica do princípio da relatividade dos conceitos jurídicos, pois estes
podem variar o sentido dentro do próprio ordenamento jurídico entre diferentes ramos,
quanto mais entre diferentes sistemas.

Fixado o conceito-quadro parte-se para a concretização do objecto da qualificação,


delimitado o conceito-quadro, estaremos em condições de saber quais as normas materiais
que lhe poderão ser subsumíveis (o quid a integrar). Pelo que o nosso exercício de qualificar
requer dois momentos: um 1.º o da interpretação do conceito-quadro da norma de conflitos;
e um 2.º relacionado com a interpretação do artigo 15.º do CC, a qualificação propriamente
dita (questão diferente da designada qualificação primária e secundária conforme veremos
ao longo das aulas).

Antes da analisarmos o Artigo 15.º importa conhecer o “objecto da qualificação”.

1. O objecto da qualificação é formado por normas materiais aplicáveis à situação


dentro do ordenamento indicado pelo elemento de conexão;
2. Procede-se a integração dos factos na(s) norma(s) materiais do ordenamento
designado como potencialmente aplicável (que pode ser o do foro – função bilateral
da NC);
3. A operação requer que se analise o regime jurídico que disciplinará a questão sub
judice, isto é, integrar uma dada situação fáctica numa previsão de uma norma
material (procedendo a operação como se estivéssemos dentro desse ordenamento),
o que se traduz na – determinação do direito a aplicar em concreto;
4. Tratando-se de direito estrangeiro esse deve ser interpretado à luz dos princípios de
hermenêutica jurídica vigentes no ordenamento onde se encontram inseridos aqueles
preceitos, conforme dispõe o n.º 1 do artigo 23.º do CC, que analisamos a seguir
com o artigo 15.º.

3. A Qualificação no Direito Internacional Privado Angolano

Exegese do Artigo 15.º do CC

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O artigo 15.º do Código Civil Angolano determina que "A competência atribuída a uma lei
abrange somente as normas que, pelo seu conteúdo e pela função que têm nessa lei,
integram o regime do instituto visado na regra de conflitos".

Esta regra reproduz exactamente a doutrina da qualificação adoptada pelo artigo 15.º do
Código Civil Português, que implica que uma regra de conflitos se não refere a todas as
normas materiais de um dado sistema, mas tão-só às que correspondem, pelo seu conteúdo
e pela sua função, à categoria jurídica referida na norma de conflitos que designa essa lei.

Assim sendo, se a norma de conflitos do artigo 46.º do Código Civil Angolano determina que
a lei X regerá as questões relativas aos direitos reais, isto significa que só as normas
materiais de X relativas aos direitos reais serão aplicáveis para este efeito, mas não as que
tratam de obrigações, capacidade, sucessões por morte.

1. É necessário que haja equivalência entre o quid e o conceito quadro;


2. É inadmissível que o conceito-quadro se delimite a sucessões e o quid, formado por
conceitos materiais que vão subsumir-se ao mesmo digam respeito a relações
obrigacionais;
3. Só faz sentido a integração ou subsunção do quid ao conceito-quadro se aqueles
possuírem as características deste;
4. A lex causae fornece o objecto/material a qualificar, a lex fori é o critério da
qualificação.
5. Conclusão – o artigo 15.º autonomizou-se das teorias clássicas existentes.

E o Artigo 23.º?
(Interpretação e averiguação do direito estrangeiro)

Já se disse que a interpretação do direito estrangeiro deve ser realizada de acordo com os
critérios interpretativos em vigor nesse mesmo ordenamento. Daqui decorre que se
considera que a lei estrangeira é verdadeiro direito e não um simples facto, em resultado do
que ela pode - e deve - ser averiguada e aplicada ex officio pelos tribunais angolanos.

Além disso, uma lei estrangeira deve ser interpretada lege causae, de acordo com os seus
próprios cânones interpretativos e não segundo os critérios da lex fori. A lei subsidiariamente
aplicável não é, automaticamente, a lex fori, mas sim, por exemplo, a lei designada pelo n.º
3 do artigo 45.º. O n.º 3 do artigo 348.º, do Código Civil angolano determina que "o tribunal
recorrerá às regras do direito comum angolano" tão-somente "Na impossibilidade de
determinar o conteúdo do direito aplicável", entenda-se, quer se trate da lei primariamente
aplicável, quer da lei que for subsidiariamente aplicável.

4.Os Conflitos de Qualificações

O objecto da qualificação como apreendemos são as normas materiais que têm que ser
caracterizadas/classificadas pelo seu conteúdo e função que têm na ordem jurídica em que
se inserem.

Em DIP a qualificação devendo ser feita em ordens jurídicas distintas, pode acontecer
que a questão poderá ser qualificada em uma jurisdição como relativa à capacidade da
pessoa, e em outra como atinente à validade do contrato; a mesma norma jurídica pode ser
classificada em um sistema como visando uma questão de validade intrínseca e em outro
sistema como se referindo a matéria de forma, o domicílio pode ser conceituado aqui de
uma forma e acolá de outra. Neste caso que qualificação deve seguir o juiz: a do sistema do

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foro, ou a designada pela regra de conexão?

Os conflitos de qualificações podem ser Positivos ou Negativos.

4.1. Conflitos positivos de qualificação (há concurso de normas jurídicas


designadas a regular a questão) – face há um determinado sistema de normas de
conflitos, duas ou mais normas de conflitos aparecem como que a reclamar,
simultaneamente, a sua aplicação a uma certa situação da vida.

Por Ex.: imaginemos que no caso do casamento do grego (exigência de matrimónio religioso
como requisito substancial de validade) o ordenamento Francês previa um único modo de
celebração do casamento, o civil (pública), do qual fazia depender a validade formal do
casamento.

A questão está a ser discutida em Angola o direito grego é o aplicável à validade


substancial deste casamento, porque:

1. O direito chamado pela norma de conflitos do art. 49.º CC;

As normas de direito grego, caracterizadas perante a ordem jurídica em que se inserem


respeitam à validade substancial do casamento, logo, podem ser subsumidas na norma de
conflitos do artigo 49.º do CC que se refere, precisamente, à questão da validade substancial
do casamento.

2. O direito francês é o direito do país de celebração do casamento, é chamado pela


norma de conflitos do artigo 50º do CC – caracterizadas na ordem jurídica em que se
inserem, referem-se à validade formal do casamento.

Está-se, portanto, perante um autêntico conflito positivo em matéria de qualificação uma


vez que a regulamentação, resultante de ambas as ordens jurídicas em presença e dos dois
grupos de normas materiais em presença é contraditória: ambos os grupos de normas
materiais – por um lado, as normas de direito grego, por outro, as normas de direito francês
– reclamam a sua aplicação ao caso e são chamados por duas normas de conflitos do foro,
estas mesmas normas materiais regulam a questão contraditoriamente:

Dado que o artigo 15.º do Código Civil é omisso neste problema a doutrina apresenta
solução para este conflito positivo, no DIP:

A operação assenta a sua razão de ser numa questão de oposição de prevalência, isto é,
hierarquização entre as qualificações conflituantes, assim:

1. Qualificação “substância” prevalece sobre a qualificação “forma” (mas nem sempre é


possível determinar a lei da substância, e outras vezes as formalidades exigidas por essa lei
são impraticáveis no lugar da celebração – daí a consagração da “lex loci regit actum” como
princípio subsidiário;

2. Qualificação “estatuto real” prevalece sobre o “estatuto sucessório” ;

3. Qualificação “estatuto matrimonial” vs “estatuto matrimonial” (conflitos aparentes);

5. Instituto da adaptação;

6. Solução “ad hoc”.

4.2. Conflitos negativos (quando existe uma lacuna, quando faltam normas para

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regular uma questão) – neste caso as normas materiais dos ordenamentos
designados não qualificam a situação de acordo com o enquadramento que lhe é
dado pelo respectivo conceito-quadro da norma de conflitos que a designou.

Ex.: lembram-se do instituto da “bona vacantia” (caso Re Maldonado) – por hipótese: A,


cidadão inglês, solteiro, faleceu intestado e sem descendentes, com último domicílio em
Angola deixando bens imóveis no nosso País. Coloca-se a questão da sucessão de A.
As normas de conflitos aplicáveis: Artigos 62º conjugada com o 31º/1, e 20º, todos do
CC é, por hipótese, a lei inglesa. No direito inglês aplica-se o Instituto da Bona Vacantia, que
é de direito público, relativamente as heranças vagas, deixadas na Inglaterra, e aproxima-se
de um direito real. Será esse direito aplicável pelas conexões em causa? – R: pelo que
aprendemos sobre a interpretação do conceito-quadro Não. Esta norma, correctamente
interpretada na ordem jurídica em que se insere, abrangeria apenas, bens situados na
Inglaterra, não podendo ser subsumível ao Artigo 62.º do CC que se restringe à questão
sucessória.

Pode, então o nosso Estado, reivindicar esse direito como sucessor de A, tendo em conta
as normas dos artigos 2252º segs. do CC? – Estas normas, devidamente caracterizadas, são
normas de carácter sucessório, portanto, se poderiam subsumir à norma do artigo 62º do
CC. R: não porquanto esta norma de conflitos não designa como aplicável a lei angolana,
mas a lei inglesa.

Quid juris? – subsumir a norma a outra norma de conflitos? Eventualmente, o direito


angolano poderia ser designado por outra norma de conflitos por ex., a do artigo 46º do CC
que respeita a direito reais e designa como aplicável a lei do lugar da situação dos bens,
logo, o direito angolano. Simplesmente, as normas dos arts. 2252º segs. do CC apresentam
natureza sucessória, donde não se poder subsumi-las na norma do art. 46º do CC.

Surge assim, um vazio de normas, falta de normas ou, dito de outro modo, um conflito
negativo de qualificação.

Não tem nenhuma norma quanto àquela questão então não é matéria sucessória, é de
direitos reais, logo falha em termos de função e conteúdo. Há uma falha de
qualificação.

Resolvemos com aplicação dos institutos da adaptação ou de norma “Ad hoc” –


Nos conflitos negativos de qualificação pode-se proceder a uma ajustamento técnico do
elemento de conexão. Ou seja, por via da adaptação tem contornos muito fluidos, é difícil
esta técnica e surge a necessidade de corrigir ou ajustar os resultados de aplicação
automática das normas de conflito. Por via deste instituto admite-se a possibilidade de a
norma de conflitos que aponta ou remete para um determinado caminho dele se afastar
para resolver um caso. A última solução é a construção por via de normas “ad hoc”, é o
próprio aplicador do direito que irá criar uma norma que irá regular a questão.

EXERCÍCIOS
CASO 1

Catarina e Diogo, Namibianos, são filhos de Aureliano e Bivânia, angolanos. Aureliano vende
a Catarina um imóvel na Namíbia de que era proprietário. Diogo discorda e quer impugnar a
venda nos termos do art. 877.º do CC. Mas o negócio, segundo Catarina, é plenamente
válido em face da lei namibiana, porque, apesar de aí existir norma semelhante àquela, já
decorreu o prazo nela previsto para a arguição da anulabilidade. Quid iuris?

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Caso 2

Aurora, angolana, e Bruno, alemão, são casados em regime de comunhão de adquiridos e


residem habitualmente em Colónia (Alemanha). Encontrando-se em Luanda, Aurora vende
nesta cidade a Cláudia, aqui residente, um prédio de sua propriedade situado em Angola.
Junto de tribunais angolanos, Bruno pretende obter a anulação da venda com fundamento
no n.º 3 do artigo 53.º da Lei n.º 1/88, de 20 de Fevereiro (Código da Família angolano).

– A substância do contrato e as obrigações dele decorrentes estão, por hipótese, no caso


concreto, sujeitas à lei angolana.

– O Código Civil alemão, não contém qualquer preceito semelhante ao do artigo 53.º/3 do
CF angolano.

Caso 3

Andrew, nacional do Reino Unido, e Bivânia, angolano, são casados em regime de comunhão
de adquiridos e residem habitualmente em Angola. De passagem por Londres, Andrew vende
a Catarina, residente habitualmente nessa cidade, um prédio de sua propriedade situado em
Luanda.

– Junto de tribunais portugueses, Bivânia pretende obter a anulação do negócio com


fundamento no n.º 3 do artigo 53.º da Lei n.º 1/88, de 20 de Fevereiro (Código da Família
angolano).

– A substância do contrato e as obrigações dele decorrentes estão, por hipótese, no caso,


sujeitas ao direito inglês.

Caso 4

Amélia e Belarmino, de nacionalidade grega, celebraram na Alemanha o seu casamento, na


forma civil da lei local. À face do direito grego anterior à actual Constituição, a intervenção
da autoridade religiosa no casamento de dois gregos pertencentes à Igreja Ortodoxa era
requisito da validade intrínseca do acto. Por isso, a lei grega considerava nulo o casamento
civil celebrado por dois gregos no estrangeiro.

– Segundo o direito alemão, a exigência da celebração civil do casamento respeita à forma e


não à substância do acto. A forma civil é imposta a todos os casamentos celebrados na
Alemanha, qualquer que seja a lei reguladora da validade intrínseca do acto.

– Discutindo-se em tribunais portugueses a validade deste casamento, teríamos que o


preceito do direito grego (artigo 1367º Código Civil grego).

Caso 5

Por Resolução n.º 16/06, de 24 de Março do Parlamento Namibiano foi autorizada a adopção
do menor Cristóvão, angolano, por António e Belmira, casados e de nacionalidade
Namibiana, São, nos termos do direito Namibiano. Algum tempo depois Domingos, angolano,
pretende reconhecer a paternidade de Cristóvão.

António e Belmira vêm impugnar o reconhecimento invocando o artigo 206.º da Lei n.º 1/88,
de 20 de Fevereiro (Código da Família Angolano), ao que Domingos contrapõe que o direito
Namibiano não conhece nenhum preceito análogo àquela disposição da nossa lei.
Quid iuris ?
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Caso 6

Louis, francês, morreu em Angola tendo deixado em testamento todos os seus bens aos
médicos angolanos que o assistiram. Aberta a sucessão, os familiares franceses que vivem
em França invocam a invalidade do testamento com base no artigo 2194.º do CC Angolano.
O direito francês não se opõe à validade de tal testamento.
Quid iuris ?

Caso 7

Francisca, italiana, casou-se com Gerson, angolano, em 2013, passando ambos a residir em
Angola. Em Outubro de 2014 foi aberta a sucessão de Helena, italiana, residente, também,
em Angola que, em testamento, havia nomeado Francisca como sua herdeira. Todavia, ainda
nesse mês, Francisca declarou, segundo a forma prescrita, o repúdio da sucessão.
Mais tarde, Gerson veio pedir a anulação do repúdio, invocando o n.º 2 do artigo 58.º e os
n.ºs 1 e 2 do artigo 60.º da Lei n.º 1/88, de 20 de Fevereiro (Código da Família angolano),
ao que os herdeiros legítimos de Helena contrapuseram que, no ordenamento jurídico
italiano – e, designadamente, nos artigos 59.º e ss. do Código Civil Italiano (que tratam da
capacidade em geral) – não existia qualquer disposição idêntica à do n.º 2 do artigo 58.º CF,
citado supra, concluindo não ser exigível o consentimento do cônjuge do sucessível. De
facto, as indicadas normas italianas conferem plena capacidade a Francisca para repudiar
sem consentimento de ninguém.
Suponha que o direito italiano adoptava soluções conflituais idênticas às nossas.
a) Segundo o nosso ordenamento, quid iuris?
b) Se devesse seguir a concepção de Roberto Ago relativa à qualificação, como resolveria a
questão?

Caso 8

António e Belmira Namibianos e residentes em Angola, celebraram em Luanda, em Janeiro


de 2013, um contrato de mútuo. Alguns meses depois casaram. Em 2014 divorciaram-se e o
mutuante (A) intenta agora em Angola uma acção de condenação para pagamento da
dívida. (B) alega a prescrição da dívida invocando que, segundo o direito Namibiano o prazo
de prescrição geral é de 6 anos e não existir na Namíbia qualquer causa de suspensão
semelhante à do artigo 318.º/a) do CC Angolano.
(A), pelo contrário, alega que a dívida ainda não prescreveu, uma vez que nos termos do
artigo 309.º do CC Angolano (que entende dever aplicar-se), o prazo de prescrição é de 20
anos.
a) Quid iuris, tendo em conta o disposto nos artigos 40.º, 41.º, 42.º e 52.º do CC?
b) Imagine agora que, no momento da celebração do contrato, A e B escolheram como
aplicável a legislação Namibiana, a sua resposta seria idêntica?
c) E se adoptasse a posição relativa à qualificação, quer de Ago quer de Robertson, como
resolveria esta hipótese?

Caso 9

Aldemiro, cidadão angolano e português, e residente na África do Sul, morreu em Luanda,


solteiro. Boneca, portuguesa, alegando a circunstância de viver há mais de três anos com
Aldemiro, inicialmente em Portugal e depois na África do Sul, como se casados fossem,

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invoca nos tribunais angolanos o disposto nos artigos 113.º e 114.º/b) da Lei n.º 1/88, de
20 de Fevereiro (Código da Família angolano).

Quid iuris sabendo que o direito sul africano não reconhece quaisquer direitos à união de
facto.

Caso 10

Aristóteles, cidadão angolano morre, sem deixar herdeiros, e deixa bens imóveis sitos em
Angola e África do Sul. A lei sul africana permite a apropriação pela coroa dos bens sitos no
seu território nos termos de um direito real de ocupação (ocupação ius imperium). Por seu
turno, o Estado Angolano pretende, segundo o disposto no artigo 2152.º CC ser chamado a
herdar a totalidade da herança. Supondo que a lei sul africana adopta conexões idênticas às
do DIP angolano:

a) Quid iuris? Cfr. os artigos 46.º e 62.º do CC.


b) E se todos os bens estivessem situados em Angola, mas o de cuius fosse sul africano, a
sua solução seria idêntica?
c) E se a lei sul africana considerasse competente a lei do domicilio do de cuius ao tempo do
seu falecimento (que era Angola) de acordo com a teoria da referência material?

Bibliografia básica

CORREIA, A. Ferrer, Lições de Direito Internacional Privado, Coimbra, Almedina, 2004, pp. 199-244
DOLINGER, Jacob, Direito Internacional Privado, Rio de Janeiro, Renovar, 2005, pp. 327-341
MACHADO, J. Baptista, Lições de Direito Internacional Privado, Coimbra, Almedina, 2002, pp. 102-144
MIMOSA, Maria João e SOUSA, Sandra C., Nótulas de Direito Internacional Privado – casos práticos,
QJ, Lisboa, 2009, pp. 112-123

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