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social" (Kleinman, Das and Lock, 1997), assim como mudanças organizacionais e
institucionais (Hardy e Maguire, 2010).
Se for enfatizada a centralidade do evento, pode-se argumentar que tais situações
transformam, modificam e alteram as condições existentes de forma a gerar novas
possibilidades e produzir e legitimar transformações de sta- tions e hierarquias
(Visacovsky, 2011). Por outro lado, se o evento crítico se inscrever a longo prazo, a crise
pode ser tratada como a continuação de um sistema de relações e propriedades sociais
pré-existentes, agora sob diferentes condições (Latté, 2012).
As formas de nomear estas situações críticas são sempre diversas e em competição:
diferentes situações críticas podem ser nomeadas como "tragédias", "catástrofes",
"desastres" (Revet, 2007; Clavandier, 2004) ou "massacres", por exemplo (Cesaroni,
2013). Nestes processos, a construção jornalística e mediática desempenha um papel
central (Amaral e Motta, 2018).
Estas circunstâncias perturbadoras deixam marcas que são postas em jogo pelos
doentes que exigem o reconhecimento como vítimas "afectadas", "lesionadas",
"sobreviventes", "potenciais", "directas" ou "indirectas" (Eufracio e Paredes, 2019; Lemieux
e Barthe, 1998; Schillagi, 2017). Quando o corpo é exposto e mostrado como o local da dor,
referimo-nos então a um reivindicador da "biologização da cidadania" (Petryna, 2004).
Complementarmente a esse processo, podem ser encontradas situações em que as vítimas
denunciam que o dano não está (apenas) localizado no corpo físico, mas (também) na
psique. Desde a segunda metade do século XX, a noção de trauma mudou de sinal de
infâmia para sinal de reconhecimento: as vítimas traumatizadas são pessoas normais
que reagem de forma normal a um evento extraordinário (Fassin, 2014), e isso se
tornou um processo generalizado tanto nos países centrais (Fassin e Rechtman, 2009)
quanto na América Latina (Arosi, 2017; James, 2010; Sarti, 2011, Zenobi, 2017a). É
assim reconhecido um processo de importação de categorias clínicas como "trauma" ou
"stress pós-traumático" para o campo da luta política.
Várias pesquisas sobre o envolvimento político das vítimas evidenciaram a
centralidade da linguagem emocional e a dimensão encarnada do sofrimento como um
factor de mobilização colectiva e de politização (Coelho et al, 2013; Fonseca e Maricato,
2013; Jennings, 1999; Pita, 2010; Siqueira e Victora, 2017, 2018; Walgrave e Verhulst,
2006; Zenobi, 2014), uma questão que pode ser entendida em termos de tensão com
os aspectos pragmáticos da ação política (Traïni, 2009). A ação coletiva mobilizada
através de categorias emocionais como dor, sofrimento, trauma, orgulho, paixão ou
indignação é muitas vezes tratada como uma dimensão central para compreender
essas "comunidades de sentimentos" (Jimeno, 2007).
Alguns estudos têm enfatizado que a intersecção entre dano, sofrimento e
mobilização política não é nem necessária nem evidente. Além disso, os aspectos
emocionais e afetivos podem ser uma espada de dois gumes, pois o ideal de
mobilização e denúncia pública pode dar lugar a avaliações morais que falam de
dinâmicas emocionais negativas. Assim, em alguns casos fala-se daqueles que não se
mobilizam publicamente porque estão passando por um "período de confinamento"
(Lacerda, 2015), porque são acusados por outros de serem "de sangue frio" (Pita, 2010)
6- Mobilização das vítimas e exigências de justiça
Gestão de vítimas
vítimas, mas pode ser apropriada pelo aparelho jurídico para se legitimar (Das, 1995).
Ao longo desses processos, destaca-se o papel de diferentes profissionais que
atuam como especialistas capazes de traduzir certos fenômenos técnicos tanto para os
leigos quanto para os próprios operadores judiciários que precisam compreendê-los
(Schuck, 1986). Em certos contextos, este conhecimento que oficializa como "auxiliar"
da justiça é particularmente importante, como, por exemplo, no caso das técnicas
forenses (Ferrándiz e Robben, 2015; Dziu- ban, 2017), que são vitais para identificar
cadáveres em situações de morte em massa (Anstett, Dreyfus e Gari- bian, 2017;
Sarrabayrouse, 2011).
Ao longo das últimas décadas, o campo da saúde mental tem ganho também um
lugar de destaque nestes processos de produção social das vítimas. A configuração
compassiva contemporânea traduz-se na produção de políticas estatais (e não estatais)
centradas no cuidado psicológico e, ao mesmo tempo, as pessoas mobilizam estas
categorias psi para explicar a sua situação (Centemeri, 2015; Fassin, 2006; Latté, 2005;
Latté e Recht-man, 2006; Langumier, 2015). Psicólogos, psicanalistas, psiquiatras,
psicólogos sociais, etc. expressam orientações profissionais na luta pela definição
legítima do diagnóstico e da solução do dano. Com o surgimento de novas categorias, o
sofrimento passado pode ser reactualizado e nomeado uma vez que estes novos
rótulos tenham sido criados. Neste sentido, a emergência e difusão global da categoria
de "stress pós-traumático" representa um marco histórico. Diferentes explicações sobre
sua genealogia enquadrada em condições políticas, acadêmicas e institucionais e seus
usos clínicos e sociais falam de sua eficácia (Young, 1995; Hinton e Hinton, 2014). Outro
caso de destaque é o da criação do chamado "bullying" (Bazzo, 2017).
A ação de especialistas e profissionais ligados às vítimas contribui para delimitar
escalas, gradações e diferentes intensidades de danos, avaliando-os, controlando-os e
dimensionando-os através de formas de medição (Houdart et al., 2015; Silva, T. C. da,
2004; Zenobi, 2017b). A aplicação de testes, testes e técnicas que permitem estimar em
percentagens os danos sofridos contribui para a distinção entre "mais" e "menos"
pessoas afectadas. As escalas utilizadas no caso de vítimas de situações de trabalho ou de
trânsito representam um ponto muito alto destes procedimentos técnicos (Peñaranda-
Cólera e Oliver Mora, 2017).
Se falamos das formas de medição e contabilidade, devemos destacar a grande
relevância que as estatísticas adquiriram na forma de indicadores, rankings, bases,
projeções e índices, que constituem um aspecto central da reprodução e expansão dos
dispositivos (Merry, 2016; Varela e González, 2015). Um bom exemplo disso são as
pesquisas de vitimização realizadas em centenas de países ao redor do mundo, que
contribuem para posicionar o crime urbano como um dos principais flagelos da vida
urbana (Hough e Moxon, 1985; Kessler, 2009; Robert et al., 2008). Por sua vez, quando
se trata de contar as vítimas de situações críticas (Altez e Revet, 2005), podem surgir
controvérsias entre os números produzidos por diferentes ordens, como quando o
sistema de justiça criminal ou a polícia detém números que contrastam com os detidos
pelos movimentos de luta e protesto impulsionados por familiares do falecido (Lacerda,
2015).
Mobilização das vítimas e exigências de justiça - 9
Embora até este ponto tenhamos enfatizado a produção social das vítimas no
âmbito de certos mecanismos que gerem o dano e o sofrimento, é importante limitar
esta capacidade quando vozes locais disputam com os modos de reconhecimento
técnico, biomédico, psicológico e oficial. Assim, mesmo quando algumas pessoas são
reconhecidas pelo Estado como vítimas, podem objectar a serem classificadas como tal,
como no caso das trabalhadoras do sexo que não aceitam ser tratadas como "vítimas
de tráfico" ou "prostitutas" (Morcillo e Varela, 2017). O fenômeno oposto também
pode ocorrer: algumas pessoas que não foram oficialmente consagradas reivindicam
esse status para si mesmas, disputando e contestando a classificação oficial (Silva,
2015). Às vezes, os dispositivos de memória e comemoração são um palco em que
essas batalhas são travadas (Dudai, 2012; Levine e Zaretsky, 2015; Margry e Sánchez
Carretero, 2011; Vecchioli, 2013).
As relações com os especialistas podem tornar-se particularmente relevantes
quando as vítimas exigem formas de reparação e/ou avançam causas políticas para as
quais são mobilizadas. A importância dos cientistas, médicos, engenheiros, psicólogos,
psicólogos, advogados, técnicos torna-se particularmente importante quando eles
podem demonstrar as ligações entre eventos passados e os danos contínuos que estão
sendo denunciados hoje. Quando a "causa política" está intimamente ligada à
construção de uma "política de causas" (Barthe, 2010), há uma convergência entre a
ação das vítimas mobilizadas e a dos profissionais cujo conhecimento pode ser um
grande recurso quando se trata de alimentar suas demandas, como por exemplo no
caso da medicina (Barbot e Fillion, 2007; Callon e Rabeha- risoa, 2008; Todeschini,
1999). Isto porque, como parte da auto-responsabilização da vítima, a construção de
uma etiologia é central: qual é o dano que deve ser atribuído a alguém responsável, e
quem melhor do que especialistas para definir esta questão (Barthe, 2010).
Finalmente, é de notar que estes processos que envolvem relações entre o
conhecimento profissional e as causas políticas envolvem um retrocesso e um
retrocesso. Por um lado, os profissionais são reconhecidos em virtude dos seus
conhecimentos técnicos, o que os qualifica como actores relevantes nos campos
contenciosos em que certos tipos de conhecimento são valorizados. Mas ao mesmo
tempo, de forma complementar, pode-se reconhecer um processo inverso, que nem
sempre é levado em conta, quando a participação política se torna um critério de
prestígio e reconhecimento no campo profissional (Vecchioli, 2011). Em outras
palavras, assim como os especialistas fazem vítimas, as vítimas fazem especialistas.
Nota:
1 Neste capítulo decidimos não nos concentrar na literatura disponível sobre violência política,
terrorismo de Estado e justiça transitória associada ao campo de trabalho dos direitos humanos. Este
é um campo de estudos altamente desenvolvido com inúmeras publicações em que se podem
encontrar as orientações genéricas que organizam esta produção. No entanto, optamos por nos
concentrar em processos e casos que a priori não correspondem diretamente a este universo.