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O autor, ao final do texto, propõe uma divisão de Grande sertão em dez “Cantos”.
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A série de levantamentos que faremos tange o “pormenor” lembrado por Alfredo Bosi.
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A travessia do herói errante reserva, dentre o conhecimento de terras estranhas, a entrada em um mundo
inóspito.
aedo, como o cantador, é portador de uma tradição – artística e factual 5.
Uma das passagens que mais afirmam um traço épico 6 da obra é o
julgamento de Zé Bebelo. Além de as regras de conduta (ordem de
caminhada e de fala, esta culminando no chefe) do grupo lembrarem os
pactos de guerra presentes na Ilíada, a fala de Riobaldo insere no litígio
questões como “honra”7 (ibid., p. 239) e “glória” (ibid., p. 240),
argumentando ainda o jagunço que sobre a guerra que “[...] encheu este
sertão.” (ibid., p. 239) falarão e farão cantigas. O gênero épico propõe-se a
narrar grandes feitos. Além de valores elevados pelos quais Riobaldo, em
passagens como essa, mostra apresso, o próprio romance conta eventos e
apresenta questões sentidas como importantes pelo narrador8.
A literatura clássica é fomentada pelo mito, por seus elementos
sobrenaturais e arquetípicos. Grande sertão: veredas também utiliza tais
elementos. Histórias populares referidas por Riobaldo portam motivos
comuns a mitos9. Ana Duzuza, a quem dizem ser adivinha, insere-se em
uma família de personagens místicas que possuem uma relação peculiar
(distante do natural dos homens) com o destino, como Cassandra. Tirésias,
de família semelhante, encontra correspondência no cego Borromeu, que,
ao apontar “[...] a esmo [...]” (ibid., p. 393) para o Norte, direciona a
travessia de Riobaldo. A influência da morte de Joca Ramiro remete-nos
também a outra constante da literatura clássica: a permanência do morto; a
morte de Agamêmnon, por exemplo, repercute no destino dos vivos – pela
vingança de Orestes. Se Diadorim exerce, em parte, o papel deste, o de
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Mesmo que o fato narrado, se histórico, seja modificado pelo prisma da poesia.
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Curiosamente, é também a passagem mais próxima ao gênero dramático, pela recorrência de falas e pela
própria sugestão de um “palco” (a Fazenda Sempre-Verde) adequado à “cena”. Riobaldo descreve a
atitude de Zé Bebelo: “Assim contracenando, todo o tempo [...]” (ROSA, 1986, p. 229, grifo nosso).
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A “vergonha”, lembrada por Riobaldo, por se condenar Zé Bebelo, que pedira julgamento, lembra a
necessidade de compaixão pelos suplicantes (inclusive na guerra), própria ao mundo clássico.
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Para traçar um paralelo específico de Grande sertão com a Odisseia, podemos lembrar os tipos de
narradores que neles aparecem. Na obra homérica, Odisseu, narrador secundário, relata suas peripécias
marítimas; é um narrador viajante (veja-se BENJAMIN, 1994, p. 199). Riobaldo também relata suas
travessias, mesmo que, tornado sedentário, esteja “[...] de range rede.” (idem., p. 3).
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Na p. 61, há um caso de incesto que nos remete ao mito edipiano e uma narrativa sobre parricídio e
fratricídio, crimes recorrentes em mitos.
cumpridor de alguma “lei”, tal papel é próprio a outras mulheres míticas,
como Electra, Antígona e Clitemnestra, tenazes em seus deveres.
Após apontar estes pormenores seriados, façamos um retorno
“circular” (utilizando-nos da terminologia de Bosi) à totalidade 10 de
Grande sertão: veredas (e às concepções críticas anteriormente apontadas).
Guimarães Rosa não apresenta uma perspectiva da antiguidade clássica. A
tradição épica e a mítica renovaram-se, adquiriram valores diversos dos que
teriam para Homero. Ilíada e Odisseia apresentam questões caras aos
homens de todos os tempos; os moldes narrativos clássicos, contudo, não
são os únicos aos quais Rosa teve acesso, e a forma de questionar o mundo
(mesmo que as questões continuem as mesmas) modificou-se. Sua
formação literária e pessoal implica um conhecimento diverso do dos aedos
épicos; sua perspectiva é a de um intelectual brasileiro da primeira metade
do século XX. Sua técnica11 renova, neste século, aspectos que percorrem
toda a literatura ocidental. Grande sertão é um romance que utiliza mito e
valores épicos, mas apresentando-os por uma linguagem singularizada e
questionando-os de maneira peculiar. O mundo mítico, no qual o divino
mistura-se quase indistintamente ao humano, já não existe em Grande
sertão: veredas se não como um modelo, um pressentimento do narrador,
que se inquieta constantemente com o além-homem – inquietação, aliás,
imprópria ao herói épico.
É necessário lembrar, portanto, as particularidades de Grande sertão:
veredas, não se imiscuindo, indiscriminada e irresponsavelmente, em
análise, aspectos de uma cultura em outra. Esse romance trás ao leitor a
relação de um homem com o mundo, com suas belezas, o aprendizado e o
sentir destas, o amor, o ódio, o orgulho. Na travessia do homem, toda a
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Bosi nos lembra a necessidade de reparar tanto pormenores como a totalidade da obra (veja-se BOSI,
1988, p. 279).
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Sobre a técnica própria de Guimarães Rosa, Suassuna afirma: “[...] seu estilo é um motivo de
enriquecimento filosófico da narrativa, é estilo entranhado no sangue do homem e do poeta, e não
construção formalística, habilmente e friamente realizada.” (SUASSUNA, 2008, p. 143).
confusão violenta do mundo lhe espanta; em uma tentativa de compreendê-
lo ou de dividir essa confusão com outro homem, ele narra. Sua memória é
entrecortada de impressões. Procura organizá-las sem se preocupar com
uma ordem, mas com o que consegue expressar. Grande sertão: veredas é
uma luta pela expressão do universo humano. É por essa luta que o homem
sente necessidade de ser grande como um herói épico; por essa luta precisa
de histórias que lhe mostrem sua natureza; por essa luta por compreensão
faz os pactos mais destrutivos e, aparentemente, contrários à sua natureza.
Referências
BOSI, Alfredo. “A interpretação da obra literária”. In: Céu, inferno: ensaios de crítica
literária e ideológica. São Paulo: Ática, 1988.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.