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Pretendemos aqui realizar um trabalho comparativo entre Grande

sertão: veredas (1986), de Guimarães Rosa, e a cultura clássica (sem nos


focarmos pontualmente em uma obra desta). Para isso, serão úteis as
reflexões de alguns pensadores, críticos e intérpretes culturais e literários,
abaixo discutidos. Após apresentação de conceitos destes, compararemos
os dois objetos de estudos – Grande sertão e a cultura clássica –
direcionando nossa escrita a uma compreensão dessa obra.
Em “A interpretação da obra literária” (1988), Alfredo Bosi discute
concepções que tangem esse campo (a interpretação), implicado pela
literatura: evento (acontecimentos e coisas), forma, intérprete
(mediador/tradutor), compreensão e explicação. Aliando os conceitos
discutidos, seu texto direciona-se a uma proposição de postura
metodológica por parte do intérprete, que, ao “recolher” o sentido que o
texto “quis dizer” (seu fim, telos), deve estar atento ao tom e à perspectiva
deste, refazendo (confirmando ou negando), em um movimento circular, a
série de proposições que realizou em sua leitura. Compreender um texto,
portanto, é ação complexa, que não se limita à descrição, à simples busca e
enumeração de causas (uma explicação coerciva).
Duas das considerações de Bosi são particularmente interessantes
para este trabalho: 1) o pormenor deve ser, por essa postura proposta,
analisado atenciosamente, sem ser, contudo, “hipertrofiado”1; 2) o escritor
faz parte de um processo social, o que lhe molda a perspectiva.
Em “Conceitos fundamentais” (1997), Sandra Nitrini nos oferece um
vasto panorama teórico que envolve desenvolvimento e particularidades de
alguns conceitos caros à literatura comparada, como “influência” e
“intertextualidade”, e de outros que, igualmente importantes, interferem
nos debates acerca daqueles – ideias sobre autor, receptor, poeta forte. Uma
definição que nos será cara surge ao expor a autora quatro modos pelos
1
O segmento não deve ignorar a totalidade da obra, estando a leitura em torno dele de acordo com o tom
e a perspectiva da obra.
quais Anna Balakian acredita poder ser original um autor. A “técnica” de
um escritor, um desses modos, pode tornar extraordinário um aspecto
ordinário em outros textos.
Ariano Suassuna é-nos aqui importante por apresentar, em
“Encantação de Guimarães Rosa” (2008), constantes comparações de
Grande sertão com obras de uma tradição literária que remontam à épica 2 e
aos dramas gregos, seus mitos e sua força narrativa e popular. Faz parte,
para ele, dessa grande tradição, coligada principalmente pelo apelo humano
e o fundamento épico de sua escrita, obras como Ilíada, Dom Quixote, A
demanda do Santo Graal. Os mitos populares de que, como o teatro grego,
se valem também emparelham, para Suassuna, essas produções.
Especificamente quanto à cultura clássica e à obra de Rosa, ele nos mostra
as aproximações de Riobaldo a Odisseu: “O sertão, ali, é o mundo, e
Riobaldo, herói errante, como Ulisses, é o homem que o atravessa, que faz
sua travessia, palavra-chave [...]” (SUASSUNA, 2008, p. 132).
Partindo, então, dessa perspectiva, e articulando as noções
apresentadas3, podemos, enfim, entabular os paralelos que intentamos. Dois
aspectos nos orientarão: 1) a épica e 2) elementos míticos.
Temas e acontecimentos comuns à épica retornam em Grande
sertão: veredas. Enquanto, na Ilíada, o “catálogo das naus” nomeia heróis
e as cidades destes, no romance de Rosa, várias são as enumerações dos
jagunços, preparando-se estes à batalha ou à perseguição dos “judas”.
Odisseu desceu ao Hades; Riobaldo vai ao Liso do Suçuarão, “[...] escampo
dos infernos.” (ROSA, 1986, p. 25) 4. As cantigas, constantemente
lembradas ou referenciadas por Riobaldo, revelam uma importância, seja
de lembrança ou perpetuação de um feito, comum ao mundo clássico: o

2
O autor, ao final do texto, propõe uma divisão de Grande sertão em dez “Cantos”.
3
A série de levantamentos que faremos tange o “pormenor” lembrado por Alfredo Bosi.
4
A travessia do herói errante reserva, dentre o conhecimento de terras estranhas, a entrada em um mundo
inóspito.
aedo, como o cantador, é portador de uma tradição – artística e factual 5.
Uma das passagens que mais afirmam um traço épico 6 da obra é o
julgamento de Zé Bebelo. Além de as regras de conduta (ordem de
caminhada e de fala, esta culminando no chefe) do grupo lembrarem os
pactos de guerra presentes na Ilíada, a fala de Riobaldo insere no litígio
questões como “honra”7 (ibid., p. 239) e “glória” (ibid., p. 240),
argumentando ainda o jagunço que sobre a guerra que “[...] encheu este
sertão.” (ibid., p. 239) falarão e farão cantigas. O gênero épico propõe-se a
narrar grandes feitos. Além de valores elevados pelos quais Riobaldo, em
passagens como essa, mostra apresso, o próprio romance conta eventos e
apresenta questões sentidas como importantes pelo narrador8.
A literatura clássica é fomentada pelo mito, por seus elementos
sobrenaturais e arquetípicos. Grande sertão: veredas também utiliza tais
elementos. Histórias populares referidas por Riobaldo portam motivos
comuns a mitos9. Ana Duzuza, a quem dizem ser adivinha, insere-se em
uma família de personagens místicas que possuem uma relação peculiar
(distante do natural dos homens) com o destino, como Cassandra. Tirésias,
de família semelhante, encontra correspondência no cego Borromeu, que,
ao apontar “[...] a esmo [...]” (ibid., p. 393) para o Norte, direciona a
travessia de Riobaldo. A influência da morte de Joca Ramiro remete-nos
também a outra constante da literatura clássica: a permanência do morto; a
morte de Agamêmnon, por exemplo, repercute no destino dos vivos – pela
vingança de Orestes. Se Diadorim exerce, em parte, o papel deste, o de
5
Mesmo que o fato narrado, se histórico, seja modificado pelo prisma da poesia.
6
Curiosamente, é também a passagem mais próxima ao gênero dramático, pela recorrência de falas e pela
própria sugestão de um “palco” (a Fazenda Sempre-Verde) adequado à “cena”. Riobaldo descreve a
atitude de Zé Bebelo: “Assim contracenando, todo o tempo [...]” (ROSA, 1986, p. 229, grifo nosso).
7
A “vergonha”, lembrada por Riobaldo, por se condenar Zé Bebelo, que pedira julgamento, lembra a
necessidade de compaixão pelos suplicantes (inclusive na guerra), própria ao mundo clássico.
8
Para traçar um paralelo específico de Grande sertão com a Odisseia, podemos lembrar os tipos de
narradores que neles aparecem. Na obra homérica, Odisseu, narrador secundário, relata suas peripécias
marítimas; é um narrador viajante (veja-se BENJAMIN, 1994, p. 199). Riobaldo também relata suas
travessias, mesmo que, tornado sedentário, esteja “[...] de range rede.” (idem., p. 3).
9
Na p. 61, há um caso de incesto que nos remete ao mito edipiano e uma narrativa sobre parricídio e
fratricídio, crimes recorrentes em mitos.
cumpridor de alguma “lei”, tal papel é próprio a outras mulheres míticas,
como Electra, Antígona e Clitemnestra, tenazes em seus deveres.
Após apontar estes pormenores seriados, façamos um retorno
“circular” (utilizando-nos da terminologia de Bosi) à totalidade 10 de
Grande sertão: veredas (e às concepções críticas anteriormente apontadas).
Guimarães Rosa não apresenta uma perspectiva da antiguidade clássica. A
tradição épica e a mítica renovaram-se, adquiriram valores diversos dos que
teriam para Homero. Ilíada e Odisseia apresentam questões caras aos
homens de todos os tempos; os moldes narrativos clássicos, contudo, não
são os únicos aos quais Rosa teve acesso, e a forma de questionar o mundo
(mesmo que as questões continuem as mesmas) modificou-se. Sua
formação literária e pessoal implica um conhecimento diverso do dos aedos
épicos; sua perspectiva é a de um intelectual brasileiro da primeira metade
do século XX. Sua técnica11 renova, neste século, aspectos que percorrem
toda a literatura ocidental. Grande sertão é um romance que utiliza mito e
valores épicos, mas apresentando-os por uma linguagem singularizada e
questionando-os de maneira peculiar. O mundo mítico, no qual o divino
mistura-se quase indistintamente ao humano, já não existe em Grande
sertão: veredas se não como um modelo, um pressentimento do narrador,
que se inquieta constantemente com o além-homem – inquietação, aliás,
imprópria ao herói épico.
É necessário lembrar, portanto, as particularidades de Grande sertão:
veredas, não se imiscuindo, indiscriminada e irresponsavelmente, em
análise, aspectos de uma cultura em outra. Esse romance trás ao leitor a
relação de um homem com o mundo, com suas belezas, o aprendizado e o
sentir destas, o amor, o ódio, o orgulho. Na travessia do homem, toda a

10
Bosi nos lembra a necessidade de reparar tanto pormenores como a totalidade da obra (veja-se BOSI,
1988, p. 279).
11
Sobre a técnica própria de Guimarães Rosa, Suassuna afirma: “[...] seu estilo é um motivo de
enriquecimento filosófico da narrativa, é estilo entranhado no sangue do homem e do poeta, e não
construção formalística, habilmente e friamente realizada.” (SUASSUNA, 2008, p. 143).
confusão violenta do mundo lhe espanta; em uma tentativa de compreendê-
lo ou de dividir essa confusão com outro homem, ele narra. Sua memória é
entrecortada de impressões. Procura organizá-las sem se preocupar com
uma ordem, mas com o que consegue expressar. Grande sertão: veredas é
uma luta pela expressão do universo humano. É por essa luta que o homem
sente necessidade de ser grande como um herói épico; por essa luta precisa
de histórias que lhe mostrem sua natureza; por essa luta por compreensão
faz os pactos mais destrutivos e, aparentemente, contrários à sua natureza.

Referências

BENJAMIN, Walter. “O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov.” In:


______. Magia e técnica, arte e política ensaios sobre literatura e história da cultura /
Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas
v. 1)

BOSI, Alfredo. “A interpretação da obra literária”. In: Céu, inferno: ensaios de crítica
literária e ideológica. São Paulo: Ática, 1988.

CARVALHAL, Tania Franco. “Intertextualidade: a migração de um conceito”. In:


______. O próprio e o alheio. Ensaios de literatura comparada. São Leopoldo - RS:
Ed. UNISINOS, 2003. p. 69-87.

______. Literatura comparada. São Paulo: Editora Ática, 1986.

NITRINI, Sandra. “Conceitos fundamentais”. In: ______. Literatura comparada.


História, teoria e crítica. São Paulo: EDUSP, 1997.

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

SUASSUNA, Ariano. “Encantação de Guimarães Rosa”. In: JÚNIOR, Carlos Newton


(org.). Almanaque Armorial. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.

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