Você está na página 1de 15

Igualitária: Revista do Curso de História da Estácio BH ISSN 23170174

Belo Horizonte, n.09, fevereiro/julho, 2017

Trabalho compulsório na América Espanhola: práticas e conceitos

Roger Alves Vieira1


rogerudi@hotmail.com

Resumo
Este trabalho objetiva analisar as formas de utilização de trabalho compulsório na
América Espanhola, buscando compreender como elas se diferenciaram a partir do
espaço em que estavam inseridas, das atividades econômicas que realizavam e das
obrigações esperadas dos nativos sujeitos a elas. Para isso, realizou-se uma análise
qualitativa da bibliografia pertinente, por meio da qual foi estabelecido um quadro
panorâmico a respeito da sociedade colonial espanhola. Posto isso, temos a
utilização do método histórico-sociológico para compreensão das práticas, dos
processos e das instituições que caracterizaram as formas de utilização do trabalho
compulsório na América Espanhola. O resultado da pesquisa nos permite
diferenciar e localizar práticas de trabalho compulsório, que são social e
politicamente distintas da escravidão.
Palavras-chave: sociedade colonial; trabalho compulsório; América Espanhola

Abstract
This work aims to analyze the compulsory labor in Spanish America, trying to
understand how they differed from the space in which they were inserted, the
economic activities they performed and the expected obligations of the natives
subject to them. In order to reach the proposed objectives, a qualitative analysis of
the pertinent bibliography was carried out, by means of which a panoramic Picture
was established regarding the Spanish colonial society. Givent his, we have the use
of the historical-sociological method to understand the practices, processes and
institutions that characterized the compulsory labor in Spanish America. The result
of there search allows us to differentiate and locate practices of compulsory labor,
which are socially and politically distinct from slavery.
Key-Words: Colonial society, Compulsory work, Spanish America

1
Mestre em História Social. Professor do Centro Universitário Estácio de Belo Horizonte. Diretor
Executivo da Associação dos Amigos do Museu Histórico Abílio Barreto.
RECEBIDO EM 16 DE JUNHO DE 2017 APROVADO EM 03 DE JULHO DE 2017
A historiografia comumente nos apresenta a descoberta da América dentro de
uma conjuntura de expansão comercial da Europa, iniciada no século XI e com auge em
meados do século XV. Naquele momento, a expansão do Império Turco-Otomano
resultara na tomada de Constantinopla, capital do Império Bizantino, impactando nas
rotas comerciais que abasteciam a Europa com produtos orientais. A crescente demanda
europeia por produtos manufaturados e de alta qualidade criou a necessidade de se
buscar rotas alternativas, resultando na chegada às terras centrais da América, em 1492.
O episódio conhecido por “descoberta” foi seguido da colonização, em razão dos
abundantes metais preciosos existentes nos territórios em que se localizavam as
civilizações asteca, maia e inca. Esse fato é fundamental para compreendermos a
rapidez da colonização espanhola, se comparada à colonização portuguesa e inglesa no
mesmo continente. A conquista do Império Asteca e do Império Inca, logo no início do
século XVI, situou a colonização espanhola em duas áreas principais, aproveitando-se
da grande densidade populacional2 que existia nestas regiões e da estrutura social dos
povos conquistados, habituados ao pagamento de tributos para o Estado, seja por meio
de produtos, seja por meio de trabalho. É inegável que existência de sociedades
organizadas – onde a numerosa força de trabalho realizava diversas tarefas e pagava
tributos ao poder político – contribuiu para a decisão da Coroa Espanhola de ocupar o
território descoberto, o que provavelmente não ocorreria se as novas terras tivessem que
ser exploradas do zero, apenas com a força de trabalho dos conquistadores e escravos
trazidos de outras regiões.
Na meseta mexicana, onde os espanhóis conquistaram o primeiro grande
império, a sociedade ali existente possuía uma hierarquia social com classes bem
diferenciadas, sendo que os nobres astecas pertenciam a várias categorias (sacerdotes,
"chefes dos homens" e guerreiros de destaque) e o povo era basicamente constituído por
cultivadores e artesãos, que produziam o necessário a sua sobrevivência e comércio,
além de pagarem os tributos para manutenção do Império (LEHMANN, 1990). Havia
também escravos (criminosos ou prisioneiros de guerra) e servidores, os quais
ocupavam o último degrau da escala social. Esses servidores podiam ser descendentes
de populações submetidas, os quais eram arrancados de seus núcleos familiares para
prestarem serviços nas Cidades-estados, dentre as quais podemos citar Azcapotzalco,

2
Estima-se que a no território atribuído à Espanha, pelo Tratado de Tordesilhas tinha cerca de 50 milhões
de pessoas. A Coroa Espanhola, na Península Ibérica, tinha aproximadamente 7 milhões de súditos
(ELLIOT, 1997).
Cholula, Colhuacán e a famosa Tenochtitlán, invadida por Hernan Cortés em 1519 e
sobre a qual foi construída a Cidade do México, que se tornou a capital do Vice Reinado
de Nova Espanha.
No altiplano andino, localizava-se o Império Inca, cuja hierarquia social
compunha-se de três classes (sacerdotes, nobres e o povo) e era comandada pelo Inca,
chefe supremo e divino. Esse poder central exercia estrito controle sobre as autoridades
locais, que por sua vez distribuíam os trabalhos aos diversos elementos da população,
encarregada direta damanutenção e crescimento do império, pois sem ela o Império Inca
– tampouco o futuro Vice-Reinado de Nova Castela (ou do Peru) – dificilmente
conseguiria subsistir.
Dentro da conjuntura de colonização e expansão comercial, o projeto espanhol
para a América estabeleceu um ordenamento jurídico3 em que toda propriedade no novo
território passou às mãos da Coroa Hispana, beneficiária do Tratado de Tordesilhas4.
Após as guerras iniciais pela conquista, em que milhares de nativos foram mortos (além
dos mortos por doenças trazidas pelos conquistadores), a densidade demográfica da
região diminuiu consideravelmente, algo negativo se considerarmos a perda de força de
trabalho, dentro da lógica colonial. Mas com a redução das populações nativas durante
o século XVI, o novo território passou por um processo de reorganização dos espaços.
Muitos dos que sobreviveram foram confinados em reducciones (ou missões) –
comunidades organizadas e administradas por religiosos, cujo objetivo principal era
proteger os indígenas5e salvaguardar seus direitos contra um regime de trabalho forçado

3
As cincoCartas de Relación escritas por Hernan Cortés e enviadas ao Imperador Carlos V, entre os anos
de 1519 e 1526, são um exemplo de produção literária do início do período colonial e possuem um caráter
político administrativo, com súplicas, solicitações, sugestões e pedidos ao monarca. A partir delas
podemos compreender o início da estruturação colonial na América Central, que passava a integrar o
Império Espanhol. Os nativos passavam a ser considerados novos cristãos e desta forma, súditos reais
(CORTÉS, 1993)
4
Sobre o Tratado de Tordesilhas, Bartolomé Bennasar (1992) nos mostra que a divisão do mundo feita
entre Portugal e Espanha no século XV só foi possível sem a intervenção de outras nações poderosas, em
razão da Inglaterra, França e a Península Itálica estarem ocupadas com outros conflitos territoriais e
políticos. Assim, Portugal e Espanha eram as únicas potências do Atlântico envolvidas com a expansão
marítima naquele período.
5
MatienzoCastillo (2008) nos mostra a delicada relação entre Coroa, Igreja e colonos. Proprietária das
terras, a Coroa havia outorgado direito de exploração econômica aos colonos (encomenderos), em razão
da importância dos mesmos no processo de conquista e colonização. Durante o período colonial, a
população indígena esteve sujeita a um ordenamento jurídico que lhe dispensava um tratamento especial,
considerando-se que, por serem inocentes, os nativos deveriam ser protegidos dos espanhóis, além de
cristianizados e incorporados ao mundo ocidental. Assim, considerava-se que a população indígena
deveria habitar territórios separados dos espanhóis. Os colonos, por sua vez, eram responsáveis pela
garantia de proteção e doutrinação dos índios, principal força de trabalho do espaço colonial. Os
representantes da Igreja, por sua vez, intermediavam essa relação, pois os novos cristãos deviam ser
integrados ao Império Católico Espanhol, inclusive com a sua força de trabalho.
imposto pelos colonos. Autoridades reais outorgaram a propriedade destas terras a
diversos colonos com posição distinta na sociedade, especialmente os conquistadores,
por meio de mercedes reales(BARBOSA RAMÍREZ, 1977). É importante registrar que
a Coroa também outorgava mercedes a líderes indígenas, para garantir a existência de
terras comunais que possibilitassem a sobrevivência da população conquistada e agora
integrada ao Império Espanhol. Estas terras eram limitadas ao uso coletivo e eram
fundamentais para a manutenção das comunidades indígenas – geralmente situadas em
lugares distantes– e incluía terras para a agricultura, pastagem e abastecimento de água.
Por motivos de segurança, a Coroa Espanhola teve interesse na criação dessas áreas de
povoamento indígena, onde era mantida a organização política dos nativos, com
famílias repartidas em clãs patrilineares (calpulli, no caso dos astecas ou ayllu, no caso
dos incas) que gozavam de certa autonomia. Nessas áreas, foram preservados muitos
padrões culturais, mesmo havendo, em períodos regulares, a convocação para trabalho
compulsório nas áreas dos conquistadores.
Podemos imaginar que um território tão longínquo e administrado por uma
nova elite local, de origem espanhola, não se viabilizaria apenas com as outorgas da
Coroa. O patrimônio dos proprietários espanhóis, com o tempo, foi aumentando através
da compra de propriedades indígenas, por meios convenientes ou mesmo fraudulentos.
Havia também a compra e venda de terras entre os colonos. Alguns espanhóis, que
haviam recebido terras por favores reais, as vendiam para terceiros,como forma de
sobrevivência, sem ter interesse algum em se dedicar ao processo de colonização, que
como exposto, implicava não apenas em exploração econômica por meio da força de
trabalho indígena, mas também na integraçãodos indígenas ao universo espanhol e
cristão6. Havia também casos de espanhóis que pediam mercedes à Coroa e vendiam
suas terras na primeira oportunidade. Assim, pelos mais variados meios e motivos, a
acumulação deterraspor alguns colonos tornou-se uma característica da sociedade
colonial nascente e assim chegamos a formação dos latifúndios, conhecidos como
haciendas, com origem legal nas mercedes reales. As haciendas se proliferaram ao

6
Podemos compreender a obrigação dos colonos com a evangelização e proteção dos povos nativos, a
partir da lógica de ocupação territorial criada no mundo medieval. A Igreja era árbitra dos conflitos entre
príncipes e podia conceder a soberania de terras tomadas de pagãos, idólatras e infiéis, à Coroa que
garantisse a evangelização dos povos que nelas viviam (BANASSAR, 1992). Neste sentido, a outorga da
propriedade de terras feita no mundo colonial não se resumia a possibilidade de realizar atividades
econômicas que fossem lucrativas, mas tinha como principal justificativa a doutrinação cristã.
Obviamente, a doutrinação cristã estava inserida em um contexto de formação social em que o indivíduo
deveria produzir para sua sobrevivência e para manutenção da sociedade em que ele estava sendo
integrado.
norte da Nova Espanha, onde não haviam sido estabelecidos centros urbanos e onde não
havia atividades de mineração. Passaram a ser, também, a referência de organização
espacial da colônia, concentrando uma população expressiva, o que, a partir do século
XVII, permitiu a recuperação demográfica do território, afetada drasticamente durante o
século XVI por maus tratos e por grandes epidemias (MANDUJANO-SÁNCHEZ,
2003). O crescimento populacional nestes espaços significou o fortalecimento de uma
nova estrutura social e econômica na região da Nova Espanha, fazendo com que a
importância dos colonosaumentasse no território colonial, mas não tendo o mesmo
prestígio na metrópole.
Isso pode ser compreendido pela estrutura aristocrática existente na Europa,
baseada em privilégios de nascença. A aristocracia terratenienteda sociedade colonial
foi formada a partir da expansão dos domínios espanhóis no exterior, por meio da
outorga de títulos de nobreza por variados motivos, com base no conceito de do ut des
(“dou para que tu dês”) (LA FUENTE, 2012). Na América, o empreendimento de
conquista geralmente foi realizado por pessoas com modestas posses que organizavam
grupos de indivíduos interessados em pilhagem, mas regidos por um quadro contratual
bem delimitado pela Espanha, mostrando que a tutela do Estado regeria todos os
desdobramentos do processo de conquista e colonização. Títulos e terras eram dados a
pessoas interessadas na ocupação do território descoberto, para que este espaço se
transformasse pela ação humana e garantisse riqueza e poder à Coroa. Quanto mais
favores eram dados pelo soberano, mais recompensas eram esperadas por ele, gerando
expectativas de ascensão social no território colonial, o que dificilmente seria possível
na metrópole. A posse de terras significava poder e a produção nessas terras garantia o
abastecimento de um mercado europeu em expansão, mas essa situação não se
encaminharia apenas pelo desejo dos conquistadores.
No que tange a exploração dos territórios distantes do centro da Nova Espanha,
a busca por metais preciosos impulsionou o planejamento da conquista desde meados
do século XVI, quando a pilhagem de ouro e prata dos impérios conquistados criou uma
obsessão pela descoberta de suas fontes. Foram encontrados os cobiçados depósitos de
minérios na região de Guanajuato, PachucaeZacatecas (todas no México) e deu-se início
a atividade mineradora que tornou famosa a Nova Espanha em todo o mundo europeu,
fomentando a criação de um novo espaço econômico e definindo sua organização nos
séculos seguintes. Na segunda metade do século XVI, a produção de prata ocupou
protagonismo na economia colonial, com a descoberta das minas de Potosí, garantindo
o enriquecimento da metrópole e das elites locais durante o século XVII. Como
apontado inicialmente, a propriedade do território colonial era da Coroa Espanhola e até
mesmo as riquezas do subsolo, pela tradição legal, pertenciam ao soberano. A
exploração dos depósitos minerais – atividade mais produtiva das colônias espanholas–
requeria uma permissão especial, intitulada de Real de Minas, e se outorgava em troca
do pagamento de um imposto chamado Quinto Real, que representava a quinta parte
total do metal extraído (ARNAUD, 1980).
A partir de uma análise qualitativa da bibliografia pertinente (SCHWARTZ,
2002; ELLIOTT, 1997), é possível entender os processos de construção do sistema
colonial e as bases econômicas implementadas pelos espanhóis para consolidar a
conquista das novas terras. É considerando esses espaços econômicos e políticos que
temos a avaliação das três práticas mais comuns de trabalho compulsório na América
Espanhola: a encomienda, a mita e o yanaconazgo. É sabido que havia outras formas de
serviço pessoal a que os índios estavam obrigados, como por exemplo o peonaje7 e
orepartimento oucuatequil, mas optou-se por este recorte, em razão destas práticas
serem nominadas na Assembleia Constituinte do ano de 1813, convocada com o
propósito de romper a relação colonial com a metrópole. Entendendo a organização e
estratificação social desse período, vemos que não houve homogeneidade na
utilizaçãodas práticas de trabalho compulsório na América Espanhola, mas observou-se
que elas se diferenciaram da escravidão negra, em razão do ordenamento jurídico que
permitia sua utilização e da posição social de seus trabalhadores.

As práticas de trabalho compulsório: encomienda, mita e yanaconazgo

Como apresentado, compreendemos que, no final do século XVI, a Espanha


iniciou o processo de colonização das terras descobertas na América e nos séculos
seguintes empreendeu várias frentes de trabalho para conseguir atingir seus objetivos de
expansão comercial. A partir desse momento, a utilização da mão-de-obra das
populações nativas passou a ser a principal base de sustentação do sistema colonial,
aproveitando-se das características sociais, políticas e econômicas dos povos que foram
dominados. Em 1503, Isabel, a Católica, autorizou o repartimiento dos índios dos

7
O peonajesugiu
territórios conquistados, dando origem a encomienda. Por meio desta instituição,
núcleos de populações indígenas eram confiados aos conquistadores, a quem cabia a
responsabilidade de cristianização, proteção e incorporação aos valores do mundo
europeu (ZAVALA, 1971). Em contrapartida, o conquistador tinha o direito de utilizar a
mão-de-obra dos índios da maneira que lhe aprouvesse, mas sem abusos, visando a
manutenção do núcleo social que estava sendo criado – e que envolvia um espaço físico
e um grupo de pessoas.
Assim, temos aencomienda como primeiro vínculo entre espanhóis e povos
indígenas, mas antes mesmo de Isabel oficializar esta instituição, os conquistadores já
haviam esboçado umrepartimiento dos índios, por volta de 1497, nas ilhas do Caribe.
Nesse período, anterior à oficialização da rainha, os espanhóis que haviam se
embrenhado no processo de conquista supunham que seriam assalariados de uma
companhia monopolista, o que não ocorreu. Revoltados com os rumos de organização
da conquista, repartiram entre si os índios num arranjo muito improvisado e passaram a
dominá-los ou viver a custa deles, num processo de exploração intensiva, considerado
por muitos um tipo de escravidão. Para controlar essa situação, Cristovão Colombo,
governador de Hispaniola8, resolveu distribuir dotações aos revoltosos, legitimando
informalmente aquela divisão improvisada, que visava apenas a utilização da mão de
obra para sobrevivência e algum ganho econômico, enquanto não se delimitava com
clareza os direitos e obrigações na nova terra (SCHWARTZ,2002). Não havia,
inicialmente, menção a concessão de terras ou pagamento de tributos, o que viria a ser
regulado apenas por decretos reais nos anos seguintes, deixando claro que, com a
encomienda, os índios eram súditos da Coroa e deveriam estar sujeitos a bons tratos,
nos indicando as bases para uma legislação protetora dos indígenas, desenvolvida em
décadas posteriores, com o engajamento do frei Bartolomeu de Las Casas.A respeito
dessa relação de trabalho, Schwartz (2002), nos esclarece que:

Os índios da encomienda não eram escravos. Um escravo é formado e


vendido individualmente por determinado preço; no contexto latino-
americano ele sempre foi removido de suas origens geográficas e étnicas e
vivia em associação estreita e permanente com europeus. Nada disso se
aplica aos índios da encomienda, que permaneciam nas mesmas terras que
antes e mantinham a organização de seu grupo, mesmo quando iam em levas
para trabalhar com o encomendero. (p. 98)

8
Ilha da região do Caribe, território atual da República Dominicana e do Haiti, foi o primeiro território
ocupado pelos espanhóis.
É importante registrar que a improvisação do processo de conquista, nas
décadas iniciais, havia gerado insatisfação de vários conquistadores que começaram a
lutar entre si e até mesmos se rebelaram contra o rei. Em 1540, no Peru, houve uma
rebelião contra o vice-rei, por conta da elaboração das Leis Novas9, que poderia resultar
na perda das encomiendas, fundamental para controle da força de trabalho (POZO,
2009). Inclusive Francisco Pizarro, o famoso conquistador do império Inca no Peru, foi
acusado por seus companheiros mais próximos de não dividir corretamente a pilhagem
das guerras e dos ataques de conquista. Em 1541, ele foi assassinado por revoltosos, o
que nos mostra a tensão existente no território conquistado, ainda que sob controle
jurídico – e longínquo – da Coroa Espanhola, mediado pela Igreja Católica.
Por mais lucrativo que o processo de conquista possa parecer naquele
momento, houve muitas dificuldades para se garantir a colonização do território, que
dependia inclusive de garantias dadas por um poder peninsular distante, além da
aceitação e concordância por parte dos grupos que estavam estabelecidos na América
Central. O ambiente era de guerra, de conflitos, de roubos, pilhagem, desobediência a
qualquer ordem que pudesse significar cerceamento das vantagens esperadas pelos
conquistadores. Os indivíduos que atravessaram o Atlântico em busca de ascensão
social e riqueza haviam vivenciado a Reconquista Espanhola com a conquista de
Granada e sabiam que a tomada e controle de um território não era algo que se realizava
apenas com acordos entre nobres e papeis assinados. Nesse ambiente hostil, em que a
vida humana era banalizada e só tinha valor enquanto força de trabalho obediente, as
relações estabelecidas entre todos eram constantemente ressignificadas, inclusive as de
trabalho.
Na colônia, o encomendero ocupava uma posição social comparável ao senhor
feudal da Europa medieval, sendo ele responsável pela garantia de segurança dos
espaços e dos indígenas a ele outorgados. Nos anos iniciais da conquista, quando ainda
não havia produção significativa que conferisse lucros aos encomenderos, essa
obrigação era custeada por conta própria ou por meio de alianças com outros grupos e
até mesmo peninsulares. Neste sentido, era vital que os indígenas fossem rapidamente
pacificados e que a implementação de uma lógica de controle se efetivasse sem muitas

9
As Leis Novas foram promulgadas em 1542, pelo rei espanhol Carlos I, com o intuito de reduzir a
exploração dos índios da América Espanhola, que eram considerados súditos reais. Pelas Leis, ficava
proibida qualquer forma de escravidão de índios e passava para a Coroa o controle das relações de
trabalho e de proteção. Criava-se, também, o Real e Supremo Conselho das Índias, com funções
executivas, legislativas e judiciárias para administração das colônias, o que, em termos práticos, limitaria
muito a atuação dos encomenderos, única
dificuldades. Isso dependia, em muitos casos, das relações estabelecidas entre o
encomendero e os chefes das comunidades locais. Mas mesmo na classe dos
encomenderos havia posições distintas de acordo com finalidade de utilização da força
de trabalho indígena, que poderia ser destinada às áreas de mineração ou de produção
agrícola.
Durante o século XVI, temos a encomienda em etapas distintas: uma até 1542 e
outra após essa data, quando da promulgação das Leis Novas, que dentre outras
mudanças, limitava a concessão e revogava o caráter hereditário da encomienda, o que
limitava os projetos de ascensão social no território ultramarino. Entendendo já o que
era a instituição encomienda, podemos perceber a reação violenta de muitos colonos
com essa nova legislação, o que acabou por deflagrar guerras civis. Como citado
anteriormente, houve uma rebelião contra o vice-rei do Peru, por conta da elaboração
das Leis Novas, rebelião esta que durou anos. Sua consequência mais direta foi a
supressão, em 1545, do capítulo XX, que revogava a hereditariedade da encomienda
(MENDEZ, 2009), o que acalmou os conflitos, apesar de não os resolver
completamente. Durante todo o período colonial, a tensão existente entre os
encomenderos – que passavam a se constituir como uma classe social distinta na
América – e os peninsulares – que a todo momento intervinham na administração
colonial, seja para conter a exploração desmedida da força de trabalho local, seja para
aumentar a tributação sobre produtos que estavam crescendo no mercado europeu – foi
uma constante e essa disputa por poder entre criollos e chapetones10resultaria, em fins
do século XVIII, nos movimentos separatistas.
Contemporânea à encomienda estava amita, que na região da Nova Espanha
recebeu o nome de cuatequil. Herdada do império Inca, consistia em um sistema de
trabalho em que as autoridades locais atribuíam à diversos grupos da população tarefas
específicas, seja criação de animais, cultivo do solo, caça de animais, construção e
manutenção de obras públicas, estradas, etc. Todo esse trabalho tinha por objetivo
contribuir para a manutenção do Estado e das famílias submetidas a ele, sendo uma
obrigação comunitária. Adaptada pelos espanhóis, a mitapassou a utilizar o excedente11

10
Criollos e Chapetones são a elite colonial, diferenciados basicamente pelo berço. Enquanto os criollos,
elite econômica local, eram nascidos na colônia, os Chapetones (elite política), eram nascidos na
metrópole.
11
Estabelecia-se o número de mitayos em 7% para o Vice Reinado de Nova Castela (ou Peru) e em 4%
para o Vice-Reinado da Nova Espanha, calculados sobre o número de índios presentes nos pueblos.
Ressaltava-se, nas recomendações a respeito da mita, que mais importante que a obtenção de metais
preciosos era a conservação da vida dos índios, súditos da Coroa. (RIVERA, 1990)
de mão de obra das comunidades indígenas para realização de trabalhos nas áreas
controladas pelos colonos (FURTADO, 2007). Nessa adaptação, parte da população
masculina devia se apresentar para trabalho nas regiões mineradoras, cabendo aos
chefes das comunidades locais a definição de quem seria enviado para o trabalho.
De acordo com as disposições espanholas, o trabalho deveria ser realizado de
forma rotativa e variada, com o tributário desempenhando tarefas na agricultura, manejo
de animais, construção e nas minas, o que era semelhante à realidade do Império Inca. A
novidade do sistema espanhol era a definição que, pela utilização do trabalho, o colono
deveria realizar o pagamento de um salário ao trabalhador, cujo valor era fixado pelas
autoridades. No sistema inca, mesmo os tributos para o Império eram pagos com a
prestação de serviços públicos. No caso da colônia, o pagamento de tributos - haja vista
que esses indígenas agora eram súditos reais - deveria ser feito em espécie, o que era
uma novidade inclusive para os índios. Sendo inédito, podia ser facilmente fraudado ou
ignorado, tendo em vista que a experiência de intercâmbios comerciais dos incas eram
as trocas, realizadas nos inúmeros mercados locais do território, com moeda era
inexistente (LEHMANN, 1990). Provenientes de comunidades pobres, só podiam
oferecer como tributo o que dispunham, que era a sua força de trabalho, explorada a
exaustão em muitas regiões dos Andes.
Podemos imaginar que os colonos tentaram por diversas vezes utilizar o
trabalho dos mitayos de forma ilimitada, numa situação de quase escravidão. Todavia, é
fundamental também distinguirmos a mita da escravidão, pois o trabalho compulsório
era menos abusivo que a apropriação total da pessoa, que é a característica principal de
um escravo. Somado a isso, temos que a mita, como trabalho compulsório na colônia, se
assemelhava à tradição incaica, mesmo perdendo o sentido fundamental de bem para a
comunidade. Por sua vez, o controle de distribuição e de utilização dos índios, para o
sistema de mita, era uma responsabilidade dos juízes ordinários, que estavam sujeitos a
severas penas – como perda do cargo e pagamento de elevada multa – caso permitissem
a utilização dos mitayos em número ou tempo de trabalho elevado.
O controle da mita, por parte da Coroa, estabelecia também que não era
permitido maus-tratos aos índios ou a utilização deles em tarefas para as quais não
foram designados; estabelecia também que roupas e alimentos fossem vendidos para
eles a preços moderados, sem exploração ou má-fé. Para tornar a mitamenos injusta
possível e mais próximo do controle estatal, a Coroa estabelecia: aqueles que
utilizassem a força de trabalho por meios ilícitos poderiam ser multados e, se
reincidentes, perderiam o direito de exploração da mina ou da terra (RIVERA, 1990).
Todos esses controles nos levam a compreender que a colonização pela Espanha não se
deu de maneira tranquila e que o desafio de organizar a força de trabalho local sob os
interesses econômicos e políticos da Coroa foi enorme.
Assim como a mita, o yanaconazgo foi herdado do Império Inca e adaptado
pelos espanhóis a partir do século XVI. Na sociedade incaica pré-hispânica, os yanas
eram uma classe hereditária de serventes, originários de grupos rebeldes tanquiguas,
convertidos em servos por TúpacYupanqui (1441-1493), o décimo soberano incaico.
Desde então, na sociedade incaica, o status de yana era dado por uma decisão pessoal
do Inca ou obtida por herança: filhos de yanas continuavam sendo yanas. Os que
recebiam tal castigo pela vontade do Inca eram desligados de seus clãs patrilineares
(ayllu), não podiam se relacionar mais com seu grupo étnico original e passavam a
depender totalmente do Estado, a quem serviam em tempo integral. Nessa vida de
servidão, os yanas podiam trabalhar diretamente para o Inca, em atividades pessoais;
para o Estado, em atividades burocráticas; ou para os membros das famílias nobres,
cuidando das esposas e filhos, lavrando a terra, cuidando dos rebanhos, dentre outras
atividades. A definição de quais trabalhos seriam feitos e quem usufruiria do trabalho
dos yana era atribuição exclusiva do Inca e a partir dessas atribuições, temos classes
distintas de yanas. Sobre esse grupo, Lehmann (1990, p.93) diz:

Junto às classes dirigente existia uma casta mal definida, a dos


yanaconas. Eram provavelmente escravos mais ou menos libertos,
escolhidos entre os prisioneiros de guerra, os criminosos, a gente do
povo e as crianças de outros yanaconas. Mantinham relações muito
íntimas com seus amos, a quem eram encarregados de proteger:
administravam as terras dependentes do Templo do Sol e se ocupavam
também dos armazéns que os incas constituíam nas diferentes partes
do Império.

A ideia de que “eram provavelmente escravos mais ou menos libertos” precisa


ser refletida. Escravos são despossuídos de liberdade, mesmo que o seu trabalho lhes
conceda certa autonomia ou distinção social. No caso da escravidão negra, os escravos
eram comprados e vendidos como sendo bens de seus proprietários, o que não acontecia
com os yanas. Eles não eram comprados e vendidos, mas estavam submissos ao Inca,
que os disponibilizava para quem conviesse, visando as mais diferenciadas atividades.
Provavelmente pelo fato do Império Inca não conceber a ideia de propriedade privada,
os yanasnão sejam assim rotulados. Mas eles não possuíam liberdade para oferecer sua
força de trabalho, tampouco para se relacionarem com seus grupos étnicos, o que nos
leva a ponderar sobre a utilização do conceito “escravos”, sendo, talvez, mais
apropriado utilizarmos o conceito de “servos”.
Podemos considerar que os espanhóis, a partir do século XVI, não tiveram
interesse em abolir essa prática de servidão, tomando como empregados pessoais e
domésticos diversos índios dos territórios que conquistavam, não submetidos à mita ou
à encomienda. Diferente da mita, com seu sistema de trabalho temporário e rotativo, o
yanaconazgo trazia servos permanentes e que estavam separados de seus grupos étnicos,
o que não nos permite classificar seus trabalhadores como pertencentes à encomienda. E
ao contrário da sociedade incaica, os yanaconas12 coloniais não serviam
necessariamente a senhores com posição elevada na sociedade; podiam servir a muitos
espanhóis que não eram encomenderos, sendo comum a presença de yanaconas nos
ambientes urbanos da sociedade colonial.
De certa forma, a presença das reducciones (ou missões) contribuiu para a
permanência do yanaconazgo nos séculos de colonização. Mediante um contrato
provisório, os encarregados dos territórios de proteção "alugavam" seus índios, na
qualidade de yanaconas temporários, recebendo em troca quantias consideráveis ou, na
pior das hipóteses, eram isentos da tributação correspondente a esses indivíduos
(OHMSTEDE, 2014). Nesse esquema, os arrecadadores possuem papel fundamental,
pois por meio de acordos com as autoridades étnicas usufruíam também da força de
trabalho destes índios, que ficavam “invisíveis” aos olhos da Coroa.
Concluindo, percebemos que tanto o yanaconazgo, quanto a mita ou a
encomienda permitiram a exploração da força de trabalho nativa com vistas ao êxito do
projeto colonial. As diferenças que podemos assinalar em cada um destes sistemas de
trabalho compulsório nos permitem esboçar uma estrutura complexa em todos os
territórios econômicos – urbano, das minas ou agrícola – sendo que, em todos, a
utilização da mão de obra local foi fundamental para o êxito da colonização. Ao longo
de três séculos, forjou-se uma nova sociedade hierarquizada, cujos fundamentados
estavam apoiados na população dos impérios conquistados, alterando-se as classes
dominantes e os valores desta sociedade. De qualquer forma, os indígenas e seus

12
O termo yanacona tem diversas interpretações na historiografia peruana e boliviana desde o século XX.
Considera-se que mais que trabalhadores domésticos ou escravos, os yanaconas atuavam nas minas, nas
cidades e nas fazendas, dando origem a classes trabalhadoras distintas nos séculos seguintes. Os
yanaconas urbanos deram origem aos artesãos; os mineiros aos trabalhadores assalariados de Potosí e os
rurais aos arrendatários dos grandes latifúndios (BOY, 2006).
descentes são a maior parte da população da região da Nova Espanha e Nova Castela,
sendo a principal força de trabalho, ajustada por meios de diversos “contratos” de
trabalho.
O trabalho, elemento primordial para a existência dos Impérios, continuou a ser
realizado pelos indivíduos dessa sociedade, tendo rótulos diversos, mas com
características de um trabalho livre. Os trabalhadores não eram vendidos, como
propriedade de seus senhores, e nisso consiste uma diferença primordial da escravidão.
Apesar de inseridos em relações de trabalho que não os permitiam tomar decisões, esses
trabalhadores recebiam algum tipo de pagamento por seus trabalhos – mesmo que a
justificativa para esse pagamento fosse o pagamento de tributos a Coroa. O fato desse
pagamento ser irrisório e incompatível com as necessidades de sobrevivência também
não nos possibilita classifica-lo como “tipo uma escravidão”. Essa constatação é
fundamental para que não tenhamos a ilusão de que apenas com as independências foi
possível sairmos de um trabalho pesado, exploratório e “quase escravo”, para um
trabalho livre, onde o trabalhador possui autonomia e liberdade para vender sua força de
trabalho de acordo com seus interesses.
Referências

ARNAUD, Pascal. La evolución económica de México, de laColonia a 1850. El


Trimestre Económico, n 187, p. 651-677, jul./set., 1980.
BARBOSA RAMÍREZ, A. René. La estructura económica de la Nueva España (1519-
1810). 8ª ed. CiudaddelMéxico: Siglo XXI, 1977.
BENNASAR, Bartolomé. Tordesillas: el primer reparto del mundo.Política Exterior, n
25, p.151-159, dez./mar., 1992.
BOY, Francisco Cuena. Yanaconazgo y derecho romano: ¿una conjunción
extravagante? Revista de Estudios Histórico–Jurídicos, n. 28, p. 401-424, 2006
CORTÉS, Hernán. Cartas de Relación. 7ª ed. Ciudaddel México: Porrúa, 1993.
ELLIOTT, J. H. A conquista espanhola e a colonização da América. In: BETHELL,
Leslie (Org.). A América Latina Colonial. São Paulo: EDUSP, 1997.
FURTADO, Celso. A economia latino-americana. São Paulo: Companhia das
Letras,2007.
LA FUENTE, Maríadel Mar Felices. La nuevanobleza titulada de España y América
enelsiglo XVIII (1701 -1746). Entre el mérito y lavenalidad. Almería: Editorial
Universidad de Almería, 2012.
LEHMANN, Henri. As civilizações pré-colombianas. Rio de Janeiro: Editora Bertrand
Brasil S/A, 1990.
MANDUJANO-SÁNCHEZ, Angelica et al. Historia de las epidemias enel México
antiguo: algunos aspectos biológicos y sociales. Casa delTiempo,n 41, p. 9-21, abr.,
2003.
MATIENZO CASTILLO, W. Javier. La encomienda y lasreducciones jesuíticas de
América meridional. Temas Americanistas, n. 21, p. 66-84, jan./dez., 2008.
MENDEZ, Miguel Menéndez. El trato al indio y lasLeyesNuevas: una aproximación a
un debate delsiglo XVI. Tiempo y sociedade, n. 1, p. 23-47, jan./dez., 2009.
OHMSTEDE, Antonio Escobar. Instituciones y trabajo indígena enla América española.
Revista Mundos do Trabalho, n 12, p. 27-53jul./dez., 2014.
POZO, José del. História da América Latina e do Caribe: dos processos de
independência aos dias atuais. Petrópolis: Vozes, 2009
RIVERA, Julián Ruiz. La mita enlossiglos XVI y XVII. Temas americanistas, n. 7, p.
1-20, 1990.
SCHWARTZ, Stuart. Das ilhas ao continente. In: SCHWARTZ, Stuart B. e
LOCKHART, James. A América Latina na época colonial. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2002.
ZAVALA, Silvio. Lasinstituciones jurídicas enla conquista de América. Ciudaddel
México: Porrúa, 1971.

Você também pode gostar