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René van der Veer

Jaan Valsiner

VYGOTSKY
UMA SlNTESE

TRADUÇÃO:
CECÍLIA C. BARTALO'ITI
Título original:
Understandíng Vygotsky - a Quest for Synthesís
© René van der Veer and Jaan Valsiner 1 99 1
O direito de René van der Veer e Jaan Valsiner a ser identificados como
autores desta obra foi definido em acordo com o Copyright, Designs and
Patents Act 1 988.
ISBN 0-63 1 - 1 6528-2
Basil Blackwell, Inc.
1 08 Cowley Road
Oxford OX4 lJF UK

Edição de Texto
Marcos Marcionilo

Preparação
Alípio Correia de Franca Neto

Revisão
Cecília Regina Faria Menin

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ISBN: 85-15-01275-8
3ª edição: janeiro de 1999
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 1996.
1
Lev Vygotsky

Infância e juventude

Lev Semyonovich Vygodsky1 nasceu em 5 de novembro de 1 896


em Orsha, uma cidade provinciana nas proximidades de Minsk.
Pouca coisa foi p ublicada sobre sua infância e juventude. O pouco
que sabemos foi relatado por seu amigo de infância Dobkin e por
sua filha Gita L'vovna Vygodskaj a (a qual está preparando atual­
mente , junto com T. M . Lifanova, u ma biografia do pai, que irá
atualizar todo o material biográfico até hoje publicado [cf. Vygodskaja
e Lifanova, 1 984; 1 988)) . Enquanto isso, apresentaremos neste ca­
pítulo e na introdução das diferentes seções do livro o material
biográfico atualmente disponível.
Vygotsky foi o segundo de uma família de oito filhos. Seus pais
eram membros bem instruídos de uma comunidade j u daica de Gome!;
seu pai trabalhava como chefe de departamento no Banco Unido e
como representante de uma companhia de seguros . Os Vygodsky
aparentemente tinham condições financeiras para proporcionar a
seus filhos uma excelente educação. A disponibilidade de uma boa
b iblioteca, o fato de qu e a família morava em um apartamento gran­
de e de os filhos terem tido tutores particulares indicam que os
Vygodsky eram uma família relativamente bem de vida.
Embora os Vygodsky não fossem m uito religiosos, mantinham
as tradições j u daicas . Assim, o jovem Lev Vygotsky recebeu uma
edu cação judaica tradicional, lendo a Torá em hebraico, fazendo um
discurso em seu Bar M itsva, e assim por diante. As referências
bastante freqüentes em sua obra à Bíblia podem ser compreendidas
neste contexto . Ele estava interessado na cultura e no folclore ju dai­
cos e identificava-se em certa medida com a história do povo judeu
(cf. sua análise do anti-semitismo de Belyj; Vygotsky, 19 1 6a) . e

1 . Lev Vygodsky mudou seu nome para Vygotsky porque acreditava - de­
pois de algumas pesquisas pessoais - que sua família tivesse vindo origina­
riamente de uma aldeia chamada Vygotovo. Os autores não conseguiram esta­
belecer sua localização.
18 LEV VYGOTSKY

circunstâncias externas incentivaram esse interesse e identificação.


Entre outras coisas , sob o governo czarista, os judeus não tinham
permissão para viver fora do Território de Assentamento (Pale), uma
região na Rússia onde, até 1 907, massacres eram uma ocorrência
comum. Em sua cidade, Gomel, o próprio Vygotsky deve ter presen­
ciado massacres em 1 903 - felizmente repelidos por uma defesa
judaica organizada (Pinkus, 1 988, p . 29) -e 1 906 (Gilbert. 1 979) .
Também testemu nhou o retorno humilhante dos membros j u deus
do exército russo, qu e haviam sido mandados de volta para casa
depois de ter sido espalhado um boato de que soldados j u deus não
eram confiáveis em tempo de guerra.
Apesar dos massacres, da guerra da Rússia contra a Alemanha
e a Áustria, da guerra civil e outros desastres, Vygotsky procurava
levar urna vida normal. Quando jovem . seu s passatempos favoritos
eram coleções de selos, xadrez e correspondências em esperanto
(Levitin, 1 982, p . 27). Em algum lugar da Islândia, u m homem
muito idoso ou , mais provavelmente, seus filhos surpresos talvez
mexam vez por outra em uma coleção de cartas incompreensíveis,
enviadas m uitos anos antes por um correspondente russo.
O amigo de Vygotsky, Dobkin (em Levitin, 1 982, p. 26), contou
que. quando adolescente, Vygotsky participava ativamente. j u nto
com um círculo de amigos, de discussões de assuntos altamente
abstratos, como a filosofia da história de Hegel e o papel do indivi­
duo na história. Também parece ter sido um admirador da poesia,
em particular de Pushkin e de Heine (mais tarde. de Gumilyov, de
Mandel'shtam e de Pasternak) e freqüentador das apresentações em
teatros locais. A leitura precoce de "Pensamento e Linguagem" ( 1922)
de Potebnj a pode ter acelerado seu interesse pela psicologia.
Foi David Vygodsky, um primo vários anos mais velho, quem
introduziu Vygotsky no movimento do esperanto. Os primos eram
íntimos e corresponderam-se du rante anos depois que David partiu
para Petrogrado, em 1 9 1 9 . Parte dessa correspondência foi preser ­
vada nos arquivos da família. David Vygodsky era, ele próprio. um
homem com capacidades acima da média. Tornou -se u m poeta com -
petente, exercia a profissão de lingüista e filólogo, e mantinha u ma
relação pessoal com Roman Jakobson e Viktor Shklovsky (Levitin,
1 982, p . 27). Também conhecia várias línguas estrangeiras e tor­
nou -se bastante conhecido como tradutor de poesia russa para o
espanhol e da literatura hebraica para o russo. Durante a guerra
civil espanhola, serviu como intermediário entre as autoridades
soviéticas e o movimento anti-franquista. Pouco depois da vitória de
Franco, foi preso sob acusações desconhecidas. Como é bem sabido,
naqueles dias sombrios, as indiciações podiam ser baseadas em
quase nada. No caso de David Vygodsky, a acusação de espionagem
parece ter sido a mais provável . Afinal, ele estivera envolvido na
LEV VYGOTSKY 19

guerra civil espanhola - inesperadamente perdida pelos aliados es­


querdistas - e tivera grande participação no suspeito movimento do
esperanto. (Filatelistas e estudiosos de esperanto foram presos em
grande número no final da década de 30. Pressupunha-se que esses
grupos tivessem usado seus contatos aparentemente inocentes com
cidadãos estrangeiros como uma cobertura para práticas mais sinis­
tras. Ver Medvedev, 1 974. p. 68 1 ) . A escritora Marietta Shaginjan
relatou os esforços incomuns e corajosos dos amigos li teratos de
David para liberlá-lo da prisão. Celebridades como Fedin, Lavrenev,
Shklovsky. Slonimsky, Tynjanov e Zoshchenko escreveram para as
autoridades. declarando a inocência de David Vygodsky e exigindo
sua libertação. Porém, as tentativas desses escritores de Leningrado
falharam (Shaginjan em Medvedev, 1 974, p. 806) e David Vygodsky
acabou sendo mandado para um campo de concentração (restaram
algumas cartas de lá). onde morreu em 1 942 ou 1 943.

Instrução

Vygotsky recebeu sua instrução inicial com professores particula­


res e, mais tarde. freqüentou as duas turmas mais adiantadas do
Gymnasiwn judeu particular em Gomel, graduando-se com uma me­
dalha de ouro em 19 1 3. Sua instrução posterior foi influenciada pelo
falo de ele ser judeu . Em primeiro lugar, a Rússia czarista decretou
uma cota para admissão de judeus em instituições de ensino superior.
A cota para as universidades de Petersburgo e Moscou era de três por
cento. Na prática. isso significava que os estudantes com medalha de
ouro tinham a admissão garantida. Porém, quando Vygotsky eslava
fazendo seus exames, o ministro da educação divulgou uma circular
declarando que estudantes judeus deveriam ser matriculados por sor­
teio. Esse foi um golpe violento para Vygotsky, cuja medalha de ouro
tornara-se praticamente sem valor. Por sorte, ele foi um dos poucos
felizardos e começou a estu dar na Universidade de Moscou. A escolha
das disciplinas foi novamente influenciada por sua origem judaica.
História e filologia não eram boas opções, porque geralmente levavam
apenas à posição de professor da escola secundária e, como os judeus
não tinham permissão para ser funcionários públicos, o único emprego
disponível era de professor de um Gymnasiwn j udeu particular. Havia
duas possibilidades mais atraentes: o direito e a medicina. O curso de
direito oferecia a oportunidade de vir a ser um advogado, e advogados
tinham permissão de morar fora do Território de Assentamento. A
medicina garantia um futuro modesto, embora monótono, e seguro.
Por insistência de seus pais, Vygotsky candidatou -se ao departamento
de medicina mas. depois de um mês, mudou para direito. Também
freqüentou outros cursos e graduou-se em história e filosofia na Uni­
versidade do Povo de Shanjavsky, que não era oficialmente reconheci-
20 LEV VYGOTSKY

da. No entanto, era um instituto de certa qualidade, de vez que, depois


de uma greve na Universidade Imperial. muitos cientistas renomados
haviam começado a lecionar lá (Levitin, 1 982, pp. 29-30) .
Durante seus dois últimos anos na universidade em Moscou, Vygotsky
dividiu um qu arto com sua irmã mais nova, Zinaida, que havia entrado
nos Cursos sem Créditos da Universidade Feminina em 1 9 1 5. Zinaida
Vygodskaja viria a se tornar uma lingüista de destaque e co-autora de
vários dicionários de lí nguas estrangeiras ( p . ex. , Achmanova e
Vygodskaja. 1 962) . Pode ter sido Zinaida - junto com David - quem
mantinha o irmão bem informado sobre todos os desenvolvimentos nas
áreas de lingüística e de filologia. Ela também compartilhava com
Vygotsky o interesse pelos escritos filosóficos de Spinoza.
Durante os anos na universidade, Vygotsky manteve seu interesse
anterior por literatura e arte. Q uando adolescente, começara a estudar
Hamlet de Shakespeare e havia escrito vá1ios rascunhos de uma análi­
se da peça (Vygotsky, 1 9 1 5a) . e sua dissertação de mestrado (Vygotsky.
1 9 1 6d) foi resultado desse anligo interesse (ver capítulo 2) . Um traba­
lho poste1ior, uma análise da obra de Dostoiévski intitutada "Dostoiévski
e o anti-semitismo", parece ter sido perdido (Radzikhovsky. comunica­
ção pessoal, maio de 1 990) . Os in teresses de Vygotsky ampliaram-se
nesse período, incluindo problemas psicológicos e pedagógicos. Um
curso sobre "A forma interna da palavra" ministrado pelo acadêmi­
co humboldtiano Shpet (Shpet, 1 927; cf. Mitjushin, 1 988) deve ter incen­
tivado em Vygotsky e sua irmã, que também fez o curso, uma sensi­
bilidade para os aspectos psicológicos internos da linguagem (ver tam­
bém capítulo 1 5) . Por volta dessa época, Vygotsky começou também a
ler a literatura internacional disponível sobre psicologia. Conta-se que
a leitura do notável estudo As variedades de experiência religiosa ( 1 902/
1 985) de James e de Zur Psychopathologie des Alltagslebens ( 1 904/
1 987) de Freud impressionaram-no de forma particular. Esses livros,
por sinal, formam um par bastante estranho e desigual: primeiro por ­
que a sofisticação intelectual do fascinante estudo de James está bem
além da existente na busca direcionada de Freud pelo id no com­
portamento humano cotidiano; segundo porque a crítica devastadora
de James quanto à "explicação" sexual do sentimento religioso aplica­
va-se a parte do pensamento de Freud . Na verdade, a crítica de James
(ver James. 1 902, pp. 1 0- 1 2) ao que ele chamava de "materialismo
médico" antecipava boa parte das críticas futuras da psicologia soviéti­
ca à teoria de Freud (ver capítulo 5) .
Pode ser argu mentado que o gosto de Vygotsky por esses livros
revelava um interesse pelas camadas extremas da mente e - no
caso do livro de Freud - uma predileção por estudos especulativos.
Também poderia ser dito que isso formaria uma continuação de seu
interesse por Hamlet, cuja "sobrenaturalidade" e motivos subj etivos
ocultos foram particularmente enfatizados pelo j ovem Vygotsky (ver
LEV VYGOTSKY 21

capítulo 2 ) . Sej a como for. é claro que a perspectiva de Vygotsky na


época ainda estava longe da perspectiva reactológica e obj etivista
que ele viria a adotar alguns anos mais tarde (ver capítulos 3 e 6) .

Anos de formação

Tendo concluído seus estudos universitários em 1 9 1 7, Vygotsky


retornou à sua cidade de Gomel, onde, depois da Revolução, teve
permissão para lecionar em escolas estaduais. É esse período da
vida de Vygotsky - de 1 9 1 7 até sua mu dança para Moscou , em
1 924 - qu e causa os maiores problemas para seus bi ógrafos. O que
sabemos, com base em documentos de arquivos e lembranças de
seus contemporâneos, é que Vygotsky ocupou mu itas e várias posi­
ções na vida cultural de Gome! e tornou-se um de seus líderes
culturais mais destacados. Mas sabemos muito pouco sobre o con­
teúdo de seu pensamento na época. Essa falta de conhecimento é
causada por um enorme e intrigante intervalo na lista atualmente
conhecida de obras publicadas de Vygotsky. Com vinte anos de
idade, Vygotsky já havia publicado quatro resenhas literárias em
1 9 1 6 e aproximadamente o dobro desse número de trabalhos foi
publicado em 1 924. No entanto não encontramos praticamente ne­
nhuma publicação nesse período intermediário de sete anos. A lista
mais recente de publicações de Vygotsky (em Vygotsky, l 984b; com­
pilada por T. M. Lifanova) cita apenas duas resenhas literárias e dois
manu scritos não publicados nesse período todo, ao passo qu e, a
ju lgar pela produção de Vygotsky em outros anos, esperaríamos pelo
menos uns trinta trabalhos. Embora mais quatro resenhas literárias
tenham sido descobertas recentemente (Vygotsky, l 923a-d), ainda
temos diante de nós um período vazio na história das publicações
de Vygotsky que está para ser explicado. Observando esse mesmo
fenômeno, Joravsky ( 1 989, p. 255) sugeriu que os discípulos de
Vygotsky evitaram descrever esse período de forma adequada e
republicar seus artigos por motivos políticos. Ele sugere que "Vygotsky
pode ter se ligado a não-bolcheviques em 1 9 1 7 , pois escreveu em
um periódico judaico (Novyj Put) e em outro, editado por Gorki (Leto­
pis), que criticava a nova ditadura e que logo foi fechado por ela".
Embora qualquer coisa seja possível, é claro, esta não parece, para
os autores atuais, ser a explicação mais provável para o intervalo na
h istória das publicações de Vygotsky. Primeiro, uma série de rese­
nhas literárias publicadas nesses mesmos periódicos foi documen­
tada em Vygotsky ( 1 984b) e, além disso, não está mu ito claro por
que um antigo periódico judaico não poderia ser mencionado na
década de 80. Em segundo lugar. há uma hipótese mais provável
para a explicação do intervalo: as atrocidades da guerra civil e a
ocupação pelos alemães. Na época, Gomel e seus arredores foram
22 LEV VYGOTSKY

assediados por grupos de soldados Vermelhos e Brancos, pelo exér ­


cito alemão e por bandos de malfeitores locais. É bem p ossível que
uma das lutas tenha cau sado a destruição de escritórios de jornais
locais e outros arqu ivos , como de fato já foi afirmado por alunos
soviéticos de Vygotsky. Se esta explicação for a correta. então nossa
única esperança de completar o registro de publicações de Vygotsky
é que os trabalhos sejam encontrados em arquivos particu lares ou
em arquivos públicos ainda não examinados.2
Embora a maioria dos trabalhos de Vygotsky nesse período pro­
vavelmente ainda esteja desaparecida, é possível ter uma idéia de sua
vida entre 1 9 1 7 e 1924 analisando suas atividades organizacionais na
vida cultural de Gome! (cf. Fejgina, 1 988). É sabido que Vygotsky le­
cionou em vários institutos; entre eles, estiveram a Escola Trabalhis­
ta Soviética (ru sso: Sovetskaja Trudovaja Shkola). onde trabalhou
com seu primo Davi d , e o Colégio Pedagógico (Pedagogicheskoe
Uch ilishche) de Gome!. Este último institu t o viria a desempenhar um
papel importante no desenvolvimenlo de Vygotsky como ci entista,
pois foi aí que ele montou um pequeno laboratório psicológico no
qual os alunos podiam fazer investigações práticas simples. Nesse
laboratório, realizou suas primeiras experiências sobre reações domi­
nantes e respiração, que proporcionaram o material para sua pales­
tra sobre investigação reflexológica e psicológica (Vygotsky, l 926b;
ver introdução à Parte II e o capítulo 2 ) . Enquanto trabalhava no
Colégio Pedagógico de Gome!, também começou a preparar u m de
seus primeiros livros importantes: Psicologia pedagógica (ver capítulo
3). O fato de que Vygotsky, nesse período, deu palestras sobre o
ensino da literatura e investigou o efeito de tradu ções repetidas sobre
o conteúdo de textos também testifica seu interesse pedagógico e
psicológico cada vez maior (Vygotsky, 1 922a; 1 923e). Outros institu­
tos onde Vygotsky lecionou nesse período incluem a Escola Noturna
para Trabalhadores Adultos, a Rabfak (uma faculdade onde os tra­
balhadores qu e pretendiam entrar em uma universidade faziam um
curso preparatório) e os Cursos Preparatórios p ara Pedagogos (Kursy
Podgotovki Pedagogov) . Os assuntos das aulas de Vygotsky variavam
de literatura e língua russa a lógica, psicologia e pedagogia.
Vygotsky deu palestras em vários outros institutos sobre estéti­
ca. história da arte e os assuntos mencionados acima, e co-organizou
as chamadas " segundas-feiras literárias", quando eram apresentadas
e discutidas as obras de poetas e de escritores modernos e clássicos.

2. Essa esperança foi agora concretizada: recentemente. T. M. Lifanova e G.


L. Vygodskaja encontraram cinqüenta artigos em u m arquivo em Leningrado.
Todos eles eram resen has de peças encenadas nos teatros de Gome! durante o
período de 1921-3 e publicadas nos jornais locais Nash Ponedel'nik e Pollesskaja
Prauda (Lifanova, comunicação pessoal. 24 de fevereiro de 1991).
LEV VYGOTSKY 23

Nessas noites, foram d iscutidas as obras de Shakespeare, Goethe,


Pushki n , Tchekov, Maiakovski e Esenin, além de alguns dos assun­
tos mais polêmicos da época, como a teoria da relatividade de Einstein.
As palestras brilhantes de Vygotsky atraíam grandes platéias (Kolba­
novsky, 1 934c, p. 388).
Foi também co-fu ndador da editora Eras e Dias - com o amigo
Dobkin e o primo David - e da revista literária Urze. Ambos os
empreendimentos, porém , tiveram vida curta: a editora publicou
apenas dois livros, u m deles com poemas de Ehrenburg. As empre­
sas tiveram um fim abrupto por causa de um problema que ronda
a União Soviética até os dias atuais: escassez de papel (embora
sempre tenha havido papel suficiente para publi car mil hões de có­
pias das obras obtusas dos principais ideólogos).
Vygotsky chefiou a seção de teatro do departamento de Educação
Popu lar (Narodnoe Obrazovan ie) de Gome!, em colaboração com um
de seus organizadores. !. 1. Danjushevsky, que mais tarde viria a
convidá-lo para ir a Moscou trabalhar no campo da defectologia.
Vygot sky teve participação ativa na seleção do repertório. na escolha
dos cenários e na direção. Editou a seção de teatro do j ornal local,
Poless/cqja Frauda, em que as recentemente encontradas resenhas
de liieratura ela Bielo-Rússia, trabalho de Serafimovich, Os dez dias
qLLe c/10caram o mundo de John Reed e uma peifõrmance teatral de
Maximov foram publicados. Ele nunca perdeu seu interesse pelo
teatro, encont rava-se regularmente com cenógrafos e diretores (com o
Eisen stei n) e, perto cio fim de sua vida, publicou um trabalho sobre
a psicologia do ator (cf. Vygotsky, 1 936cl).
Pode-se concl u ir. então, que Vygotsky foi um membro ativo e des­
tacado da vida cul tural de Gome! e que diversas atividades nessa área
levaram-no a conhecer ou tras figuras culturais tanto em Gome] como
em outras cidades. Sabe-se. por exemplo, que Vygotsky teve algum
contato com o poeta Mandel'shlam no início da década de 20. Em sua
biblioteca, foi encontrada uma cópia da Trislia do poeta. que foi dedi­
cada a Lev Vygotsky (ver também capítulo 1 5). Como a dedicatória foi
impressa, ela pode ser datada exatamente de 1922, o ano de publicação
da coleção. Claro que Vygolsky pode não ler conhecido Mandel'shtam
muito bem nessa época. mas em anos posteriores viria a ser um hós­
pede regular cios Mandel'shtam por certo período. Nas memórias de
Nadezhcla Mandel'shtarn ( 1 970, p. 24 1 ). temos um vislumbre repentino
da vida pessoal posterior de Vygotsky. Ela menciona que. em 1 933, eles
"encontravam-se regularmente . . . com Vygotsky, um homem de grande
intelecto, um psicólogo. autor do livro Pensamen to e linguagem Vygotsky
..

eslava preso. em alguma medida, ao racionalismo comum a todos os


.
cientistas daquele período. . . . Essa observação perspicaz é, em certo
grau , conilrmada pela análise da obra de Vygotsky (ver capítulos 3 e 9)
e pelos trechos de suas con-espondências citados mais adiante.
24 LEV VYGOTSKY

Enquanto isso, a situação de Vygotsky em Gomel deteriorava-se


gradualmente. Em primeiro lugar. a situação geral na Rússia era quase
iITemediável. Por causa da guen-a civil. da guen-a contra os aliados
ocidentais e das primeiras reformas agrá1ias (ver capítulo 1 0), a eco­
nomia do país deteriorara-se rapidamente e era dificil obter comida
suficiente. Além disso, a família Vygodsky foi acometida de tuberculose
(uma doença que, se dizia, era típica das sociedades burguesas ociden­
tais; ver capítulo 5). Para o irmão mais novo de Vygotsky. Dodik, a
doença foi fatal e, em 1 920, o próprio Vygotsky - que havia cuidado
do irmão - ficou gravemente doente pela primeira vez e foi mandado
a um sanatório. Sua saúde piorou muito e, achando que iria mon-er,
pediu ao crítico literário Yuly Aikhenwald, um de seus ex-professores
na Universidade do Povo Shanjavsky, que publicasse suas obras pos­
tumamente. Afortunadamente, Vygotsky recuperou-se dessa primeira
crise séria de tuberculose. mas a doença viria a atormentá- lo pelo resto
da vida, causando acessos de febre remitente e sua morte em 1 934.
Poder - se-ia p erguntar por que, nessas circunstâncias desespe­
radas, Vygotsky não tentou partir para Moscou . Moscou era, defini­
tivamente, um centro de importantes atividades culturais e científi­
cas, um fato que deveria ser levado em consideração p or u m rapaz
tão interessado em teatro, artes e l iteratura. Além disso, Vygotsky
deve Ler feito mu itos amigos durante seus anos de universitário na
cidade. A explicação dada por Dobkin provavelmente é a mais cor ­
reta (Levitin, 1 982, p . 37): Vygotsky não queria abandonar os pais
durante aquele período difícil. e sua relutância em partir para Mos­
cou p ode, assim, ter estado ligada à situação política instável na
área de Gomel . Vimos como Gomel estava no fogo cruzado de vários
exércitos e grupos de bandidos que rondavam pelo país. Fora isso.
claro, era dificil obter permissão para morar em Moscou e, por fim .
u m caso amoroso pode ter tido sua influência: e m 1 924, Vygofsky
casou -se com Roza Smekhova, de G omel, e partiu para Moscou.
Resumindo, pode-se concluir que o período de Gomel marca a
origem do pensamento psicológico de Vygotsky. Foi em Gomel que ele
realizou suas primeiras experiências psicológicas (ver capítulo 2) e deu
suas primeiras palestras sobre assuntos relacionados a educação e
psicologia. Foi também em Gomel que começou a absorver a l iteratura
disponível sobre psicologia, educação e pedologia. Essas leituras pos­
sibilitaram que ele desse um curso de psicologia para seus alunos e
preparasse grandes partes do manual Psicologia pedagógica ( l 926i, ver
capítulo 3) . A principal parte de sua tese, "A psicologia da arte" ( 1 925j ) .
também fo i escrita e m Gomel (ver capítulo 2), e o tópico desse livro
seguia ·a linha de seu fascínio por arte e teatro.
Pode-se concluir, então, que a mudança de interesse de Vygotsky
para problemas de psicologia, pedologia e educação foi muito gra­
dual, mas já havia se desenvolvido de forma considerável antes de
LEV VYGOTSKY 25

ele começar a trabalhar no I nstituto de Psicologia Experimental de


Kornilov, em Mosco u . Seria um tanto enganoso, portanto, conside­
rar que ele tenha sido um "professor escolar de uma cidade de
província" que, em 1 924, de repente fez seu début em psicologia (ver
Luria, 1 979, e muitos outros relatos no estilo Cinderela) .

O homem e sua causa

Como vimos, a vida de Vygotsky nem sempre foi fácil e suas


condições de vida 11em sempre propícias para o trabalho científico
criativo. Nos ú l timos anos de sua vida, a situação piorou , tornando­
se quase intolerável. Para exemplificar isso, as condições em que
Vygotsky compôs seus livros são reveladoras. Em primeiro lugar,
ele, sua mulher e duas filhas viviam em um quarto de um aparta­
mento superlotado - condições que ele partilhava com milhões de
seus compatriotas. Em segu ndo, para ganhar seu sustento, Vygotsky
assumiu uma quantidade enorme de trabalhos editoriais para_ edi­
toras e uma pesada carga de aulas que envolviam viagens constan­
tes entre Moscou , Leningrado e Kharkov. Em terceiro, Vygotsky sofria
de ataques recorrentes de tuberculose. Várias vezes, os médicos lhe
disseram que ele morreria em questão de meses, e mu itas vezes teve
que passar por tratamentos exaustivos e dolorosos. Operações eram
freqüentemente planejadas e depois adiadas. e os períodos regulares
em hospitais e sanatórios superlotados podiam ser intrinsecamente
horríveis. A análise de Vygotsky sobre a crise na psicologia (ver
capítulo 7). por exemplo, foi iniciada nas condições que se seguem.

Já estou aqui há uma semana - em quartos grandes para seis pa­


cientes gravemente doentes, [há] barulho. gritos, nenhuma mesa etc.
As camas são dispostas de maneira a ficarem próximas umas das
outras. sem nenhum espaço entre elas, como em casernas. Além dis­
so. sinto-me fisicamente em agonia, moralmente arrasado e deprimido
(Vygotsky em carta para Sakharov, datada de 15 de fevereiro de 1926).

Recuperando-se em um sanatório um més depois, ele acrescentou:

à m inha volta havia tal situação o tempo todo, que era vergonhoso e
d i fícil pegar uma caneta nas mãos e impossível pensar com sossego . . .
Sinto-me fora d a vida, mais precisamente: entre a vida e a morte;
ainda não estou desesperado. mas j á abandonei toda a esperança
(Vygotsky em carta para Luria, datada de 5 de março de 1926).

Em quarto lugar, por volta de 1 93 1 , artigos críticos sobre suas


idéias começaram a ser publicados .nas principais revistas de psicologia
e pedologia, no contexto de um ataque cuidadosamente orquestrado
contra sua teoria histórico-cultural. Vygotsky e seus colegas estavam,
é claro, bem conscientes do que aconteda, e o planejamento de pos­
síveis respostas a esses artigos críticos. as conversas com pessoas
26 LEV VYGOTSKY

influentes para avaliar o significado oculto e o perigo de ataques etc.


tomaram imensas quantidades de tempo (ver capítulo 1 6). Por fim, ele
ficou profundamente magoado com a "deserção" de vários de seus
colaboradores e alunos, que o abandonaram. assim como suas idéias,
para ligarem -se ao chamado grupo de Kharkov (ver introduções às
partes II e III). Desde o início de sua vida profissional, ele havia con­
siderado o desenvolvimento de uma nova ciência do homem como sua
causa, uma causa que levou exb·emamente a sério e à qual dedicou
toda a sua energia. Lendo suas cartas a seus colaboradores e alunos,
tem-se a impressão de que Vygotsky e seu grupo formavam um mo­
vimento quase religioso, tão profunda era a convicção de que estavam
no caminho certo para o desenvolvimento da nova ciência e tão grande
era o respeito por Vygotsky como líder do grupo. Esse sentimento de
uma causa comum pela qual valia a pena lutar apesar elas pressões,
críticas e indiferença do mundo exte1ior já havia se desenvolvido em
1 926, como flca claro em uma das cartas de Vygotsky para Luria.
"Deploro profundamente o fato de que, neste tempo dificil de crise, eu
não esteja com você no instituto . . . Como temos que pensar a sério em
nosso destino [científico] e no destino da causa que abraçamos, quando
KN [Kornilovl e os oub·os "patrões" nem querem pensar sobre isso!'"
(Vygotsky em carta a Luria, datada de 5 de março ele 1 926.)
Em uma carta posterior para cinco de seus alunos e colabora­
d ores (Bozhovich, Levina. Morozova, Slavina e Zaporozhec) , Vygotsky
falou de sua surpresa com o fato de que primeiro Luria, depois
Leontiev, haviam começado a segui-lo naquela estrada dificil rumo
a uma nova ciência:

Tive um sentimento de grande surpresa quando A . R. [ Lu ria] em sua


época foi o primeiro a seguir este caminho e quando A. N . [ Leontiev]
o acompanhou . Agora. junta-se alegria à surpresa porque, pelos sinais
detectados, a grande estrada é visível não apenas para m i m, não
apenas para nós três, mas para outras cinco pessoas. A sensação ela
imensidão e enormidade elo trabalho psicológico contemporâneo (vive­
mos em um período de cataclismos geológicos em psicologia) é m i nha
principal emoção. Mas isto torna a situação desses poucos que se­
guem a nova linha em ciência (e especialm ente na ciência do homem)
infinilamente responsável . séria ao mais alto grau, quase trágica (no
melhor e real significado da palavra, e não no significado patético) . M i l
vezes. temos q u e n o s colocar em teste. avaJ iar[ - nos] . enfrentar a prova
antes ele nos decidirmos, poi s esta é u m a e strada muito difícil que
exige a pessoa i nteira (Vygotsky e m carta para seus cinco alunos,
datada de 1 5 de abril de 1929).

Vygotsky repetia com freqüência esse tema de dedicação total à


causa comum e sentia-se irritado e magoado quando colegas, como
Zankov e Solov'ev, hesitavam em embarcar nesse novo caminho em
psicologia (Vygotsky em cartas para Leontiev, datadas de 1 1 e 23 de
agosto de 1 92 9).
LEV VYGOTSKY 27

Foi seu raro magnetismo e simpatia pessoais que p ossibilitaram


a Vygotsky fazer outras pessoas j untarem-se ao proj eto . Kolbanovsky
( 1 934c) falou de sua gentileza, atenção , sensibilidade e ternura quan­
do j ovem e da modéstia e do tato evidentes em suas relações com ou­
tras p essoas menos talentosas do que ele . Em anos p osteriores , fez
palestras fascinantes que atraíam grandes platéias e tinham um
efeito realmente hipnótico sobre a maioria das pessoas . 3 Um de seus
alunos descreveu -as da seguinte maneira:

É difícil d eterminar o que exatamente nos atraía nas conferências de


Lev Semyonovich . Além do conteúdo profundo e interessante , éramos
encantado s pela sua genuína sinceridad e , p e l o e sforço contínuo de s e
desenvolver, c o m o qual e l e cativava seus ouvintes , [e) pela bela expres­
são literãria de seu pensamento . O próprio som de sua voz suave de
barítono, flexível e rica em entonações, produzia uma espécie de prazer
estético. Ficava- se com muita vontade de sentir a influência hipnótica
de seu discurso e era difícil evitar a involuntária sensação de decepção
quando ele terminava (citado por Kolbanovsky, 1 934c, p . 388) .

Não se deve pensar, porém , que Vygotsky fosse meramente uma


pessoa calorosa, sensível e profundamente séria. Ele tinha também um
aguçado senso de humor, apreciava o lado mais ameno da vida (em
carta para Luria, datada de 26 de julho de 1 92 7 , aconselhou-o a beber
bastante o excelente vinho do sul) e, às vezes, sabia ser muito sarcás­
tico e incisivo . Além disso, não era um sonhador, mas uma pessoa per ­
feitamente consciente d o que s e passava n a União Soviética e u m ob­
servador atento das degradações e dramas pessoais que dai decorriam.
Quando se sentia traido ou tratado com injustiça pelas pessoas -
como no caso de Leontiev e Luria (ver a introdução à parte III) - ,
reagia com vigor e decisão, tratando a s pessoas envolvidas com seve­
ridade e não aceitando desculpas . Mas , de uma maneira geral, parece
ter tido um talento surpreendente para evitar brigas pessoais , discus­
sões em seu grupo etc . Embora fosse uma p essoa muito sensível4 em

3. Gal'perin (em Haenen, 1 9 8 9 , p. 1 6) afirmou que o dom de oratória de


Vygotsky beirava a patologia. Explicando: ao ver um -quadro , Vygotsky não
conseguia compreendê-lo muito b e m . Ele sabia dizer o que estava vendo, mas
o sentido , o significado e a qualidade lhe escapavam. Poré m , ao falar sobre esse
mesmo quadro para uma outra pessoa, Vygotsky podia dizer mais d o que essa
pessoa veria por si mesma, e só então o quadro começava a se tornar inteligível
para ele tamb ém. Gal'p erin concluiu que tudo para Vygotsky centrava-se no
discurs o , uma c onclusão reforçada por palavras do próprio Vygotsky ("Você se
lembra, eu sempre falo . . . sobre quimeras e idéias") em carta para Leontiev
datada de 1 1 de j ulho de 1 9 2 9 .
4 . Kolbanovsky ( 1 934c, p p . 394-5) relatou u m a conseqüência u m tanto ab ­
surda dessa sensib ilidad e . Embora tivesse um domínio excelente de várias lín­
guas estrangeiras , Vygotsky recusava-se a falá-las e usava intérpretes para
comunicar -se com visitantes estrangeiros. À pergunta de Kolbanovsky sobre o
motivo de abster-se de falar línguas estrangeiras , Vygotsky respondeu : "Mesmo
28 LEV VYGOTSKY

termos de relações interpessoais, ao mesmo tempo parece ter se


distanciado de alguma maneira, como um observador à margem de
uma situação em andamento. De alguma forma, distanciava-se do
turbilhão e observava com grande obj etividade o que estava acon­
tecendo, tentando encontrar seu significado oculto.
É tentador explicar seu fascínio por Spinoza por meio desse
traço de personalidade. Uma pessoa racional e culta "não deve se
espantar, nem rir, nem chorar, mas entender", conforme Vygotsky
parafraseou seu filósofo favorito no prefácio de "A psicologia da Arte"
(Vygotsky. 1 9251/ 1 986, p. 1 8). Deve-se sempre tentar controlar as
emoções e submetê-las ao controle do intelecto ("Mesmo a si mesmo
não se deve julgar de forma subj etiva", Vygotsky em carta para
Leontiev. datada de 3 1 de julho de 1 930). Jamais deve-se ceder a
paixões inferiores. mas subir a escada racional e ser mais refinado
e distanciado nos ju lgamentos. Esta atitude de vida também trans­
parece na teoria histórico-cultural (ver capítulo 9) e nas cartas pes­
soais de Vygotsky a seu s alunos e colegas. Em uma resposta a
Morozova, por exemplo, que lhe havia escrito a respeito de seu es­
tado deprimido de espírito. afirmou que "contra tais ânimos você
deve lutar, e é possível lidar com eles. O homem domina a natureza
fora de si mesmo. mas também dentro de si, este é - não é? - o
problema central de nossa psicologia e ética" (Vygotsky em carta
para Morozova, datada de 29 de ju lho de 1 930). Em uma segunda
carta. elaborou mais este tema. dizendo a Morozova que não deve­
mos jamais nos tornar vítimas de nossos ãnimos e paixões. "A regra
aqui - em um conílito mental e na submissão de oponentes
descontrolados e fortes - é a mesma que em todo tipo de submissão:
"
divide et impera, ou seja, divide e governa . . . Você tem que dividi-los
[os sentimentos e ânimos) . . . Superá-los - esta provavelmente é a
expressão mais correta para o domínio das emoções . . . encontrar uma
saída é simplesmente uma questão de esforço mental" (Vygotsky em
carta para Morozova, datada de 1 9 de agosto de 1 930) .
Aceitando-se a afirmação de Nadezhda Mandel'shtam de que
Vygotsky era um tipo de racionalista, deve ser acrescentado que ele
não era o tipo de racionalista que nega qualquer sentido ou signi­
ficado à vida. Vygotsky parece ter estado convencido de que a luta
criativa, chamada vida (capítulo 3), tinha algum significado interior
e qu e a aparência da vida e sua essência não coincidem . Uma carta
para seu aluno Levina exemplifica mais essa convicção básica:

um conhecimento excelente de uma língua estrangeira não é garantia contra


um sotaque incorreto. Minha fala. mesmo sendo correta em termos de conteúdo
e forma. irá doer nos ouvidos do estrangeiro que estiver me ouvindo e pode
causar risos ou outras emoções inadequadas. Por educação. meu interlocutor
tentará conter essas emoções. Isto o fará sofrer. Por que eu deveria torturá-lo?"'
LEV VYGOTSKY 29

Agora. quanto a um outro tema sobre o qual você escreve. Sobre


desarmonias interiores, a dificuldade de viver. Acabei de ler (quase por
acaso) Três anos. de Tchekov. Talvez você também devesse lê-lo. Isso
é a vida. Ela é mais profunda, mais ampla do que sua expressão
exterior. Tudo nela muda. Tudo torna-se diferente. A principal coisa -
sempre e agora, parece-me - é não identificar a vida com sua expres­
são exterior. e i sso é tudo. Depois, escutando a vida (esta é a virtude
mais importante. uma atitude relativamente passiva no começo). você
encontrará em si mesmo. fora de você, em tudo. tanto que nenhum de
nós tem condições de acomodar. Claro que não se pode viver sem dar.
espiritualmente, um sentido à vida. Sem a filosofia (a sua própria
filosofia de vida pessoal) , pode haver niilismo. cinismo. suicídio, mas
não vida. Mas todos têm sua filosofia. é claro. Aparentemente. você
tem de amadurecê-la em si mesmo. dar-lhe espaço dentro de você,
porque ela conse1-va a vida em nós. Depois. há a arte. para mim -
poemas. para ou tros - mú sica. Depois, há o trabalho. Quantas coisas
podem inci tar urna pessoa à procura da verdade! Quanta luz int erior.
calor e apoio existe na busca em si! E. então, há o mais importante
- a própria vida - , o céu. o sol. amor. pessoas. sofrimento. I sto não
são simplesmente palavras. isto existe. É real. Está entrelaçado na
viela. As crises não são fenômenos temporários, mas a estrada da vida
interior. Quando passamos de sistemas para destinos (pronunciar esta
palavra é aterrorizante e prazeroso ao mesmo tempo, saber que ama­
nhã iremos investigar o que està escondido atrás dela) , para o nasci­
mento e queda de sistemas. vemos isso com nossos próprios olhos.
Estou convencido disso. Particularmente, lodos nós, quando olhamos
para nosso passado. vemos que estamos secando. Isto é correto. Isto
é verdadeiro. Desenvolver-se é morrer. I sto é particularmente forte em
épocas críticas - com você, e novamente na minha idade. Dostoiévski
escreveu com horror sobre o ressecamento do coração. Gogol de forma
ainda mais horrorizada. É, na verdade. uma "pequena morte" dentro
de nós. E é assim que temos ele aceitar. Mas, por trás de tudo isso.
està a vida. ou seja. movimento. viagem , seu próprio destino (Nietzsche
ensinou o amor jati - o amor por nosso destino) . Mas já comecei a
filosofar. . . (Vygotsky em carta para Levina, datada de 16 de julho ele
193 1).

Compreender o significado oculto que fundamenta "o céu , o sol ,


amor, pessoas. sofrimento" , compreender a viagem em direção à
morte . Esta talvez tenha sido a meta final de Vygotsky ao longo de
sua vida intelectual . desde sua anàlise de Hamlet até seu desenvol­
vimento da teoria histórico-cultural , e adiante. Em sua teoria histó­
rico-cultu ral , ele procurou esboçar como o homem cultural tenta
dominar sua "stikhia" (grego: stoicheion) . o caos elemental da natu ­
reza. por meio da criação de instrumentos culturais. Profundo apre­
ciador dos mais finos artefatos da cultura, Vygotsky persistiu em
acreditar que a "stikhia" seria dominada pela cu ltura e que uma
nova sociedade humana seria o seu resultado.
30 LEV VYGOTSKY

O fim

Apesar de sua atitude geralmente distanciada e de sua filosofia


spinozista, Vygotsky deve ter sofrido com a crescente pressão ideo­
lógica. a desintegração de seu grupo de colaboradores e as traições
pessoais que ocorreram no final de sua vida. Seu amigo Dobkin se
lembra de ter visitado Vygotsky durante seu último ano de vida.
Aparentemente, Vygotsky estava em más condições fisicas, com um
estado de espírito deprimido, e avaliando se deveria aceitar um posto
no centro de primatas de Sukhumi. Um colaborador próximo de
Vygotsky, Zeigarnik ( 1 988, p. 1 79) , em uma entrevista publicada por
Jaroshevsky, confirmou recentemente o relato de Dobkin, afirmando
qu e Vygotsky "fez de tudo para não viver" nos últimos anos de sua
vida. Ambos os relatos são enfaticamente negados pela filha de
Vygotsky, G. L. Vygodskaja, que se lembra claramente de que seu pai
estava cheio de energia e com novos planos durante sua (aparente)
recuperação no ú ltimo mês de vida (comu nicação pessoal, 1 989) .
Aparentemente, perto do fim de sua vida, Vygotsky recebeu uma
oferta para instalar e chefiar uma seção dentro do Instituto All - Union
de Medicina Experimental em Moscou. Ele estava muito entusiasma­
do com esse plano, pois lhe oferecia a possibilidade de reunir sua
própria equipe de pesquisa e levar adiante seus novos planos de
investigação. Não há como saber qual dessas versões é a correta,
nem há necessidade disso. Pois pode muito bem ter acontecido que
Vygotsky trabalhasse com extremo empenho em certas ocasiões -
dando a impressão de que não estava preocupado com sua saúde,
mas, talvez, tentando realizar tanto quanto possível antes de sua
morte (esta. afinal. havia sido prenunciada várias vezes) - e, ocasio­
nalmente, ficasse profu ndamente deprimido mas ainda conseguisse
encontrar energia para fazer novos planos no mês final de sua vida.
Seja como for, depois de repetidas hemorragias - em 9 de maio,
25 de maio e durante a noite de 1 0- 1 1 de j unho -, no início da
manhã de 1 1 de junho de 1 934, Lev Semyonovich Vygotsky m orreu
no Sanatório Serebrannyj Bor, de tuberculose. a doença de que sofria
havia catorze anos. Foi enterrado no cemitério Novodevichy, em
Moscou. Vygotsky deixou um punhado de livros, muitos artigos e
gavetas cheias de manuscritos não publicados . Acima de tudo, dei­
xou uma família amorosa e um grupo dedicado de alunos que viriam
a fazer de tudo para proteger a herança de Vygotsky nos anos dificeis
que se seguiriam e promover suas idéias. Agora. mais de cinqüenta
anos depois de sua morte, as idéias de Vygotsky estão se tornando
muito conhecidas no mundo científico - um processo que ainda não
foi compreendido inteiramente.

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