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EXORTAÇÃO DOS BISPOS DA CONFERÊNCIA EPISCOPAL


SENEGAL . MAURITÂNIA . CABO VERDE . GUINÉ-BISSAU
http://www.conferencepiscopale.org/

QUARESMA 2022

«Vós sois todos irmãos e irmãs»!

INTRODUÇÃO
Neste tempo santo da Quaresma, tempo de conversão, nós, Bispos da Conferência Episcopal do Senegal,
Mauritânia, Cabo Verde e Guiné-Bissau, com esta Exortação, vos recordamos as palavras de Nosso
Senhor Jesus Cristo: «Vós sois todos irmãos» (Mt 23,8).
A fraternidade é um elemento constitutivo da vida humana. De facto, o homem não é uma ilha; ele é uma
rede de relações; precisa de outrem que dê sentido à sua existência. «Deus não criou o homem como um
ser solitário, lembra-nos o Concílio Vaticano II [...] O homem, pela sua própria natureza, é um ser social, e
sem relações com os outros não pode viver nem desenvolver as suas qualidades1. De facto, «ninguém
amadurece ou atinge a sua plenitude isoladamente»2. Assim, «a vida social não é, portanto, algo
acrescentado ao homem; é através do intercâmbio com outros, através de serviços recíprocos, através do
diálogo com os seus irmãos que o homem cresce de acordo com todas as suas capacidades e pode
responder à sua vocação3 ». Isto significa que o ‘eu’ chama por um ‘tu’. Também encontramos no homem
uma profunda aspiração à comunhão, unidade e fraternidade.
Esta profunda sede de fraternidade exprime-se de várias maneiras. É visível, por exemplo, nas nossas
diferentes comunidades e associações que marcam a nossa pertença à mesma ‘família’. Os uniformes que
usamos em diferentes ocasiões reflectem os nossos sonhos de unidade e fraternidade. Em todo o lado,
formam-se ligações e nascem fraternidades: fraternidade de sangue, fraternidade sacerdotal ou religiosa,
amizades, grupos etários, colegas de trabalho, pessoas da mesma paróquia ou localidade, etc.
No entanto, este desejo de fraternidade esbarra por vezes contra as nossas diferenças e as nossas
divergências. A fraternidade, mais do que para ser proclamada, é para ser vivida. As nossas famílias, as
nossas comunidades religiosas e sacerdotais, as nossas paróquias, os nossos movimentos e associações, os
nossos locais de trabalho e os nossos vários campos de apostolado são áreas privilegiadas onde somos
chamados a viver, dia após dia, como irmãos. Como não saudar os vossos esforços e sacrifícios diários

11 Concíclio Vaticano II, Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium at Spes, (GS) no 12, § 4.
2Papa Francisco, Fratelli tutti, no 95.
3 Ibid., no 25, § 1.
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para construir países onde é bom viver, e uma Igreja mais bela, porque é mais fraterna? De facto, a crise
sanitária e humanitária ligada à pandemia da covid-19 tem sido ocasião para uma grande manifestação de
fraternidade e solidariedade. Somos convidados a reacender, cada dia mais, o sentimento de sermos «todos
irmãos»!
1. O que se deve entender por «irmão»4 ?
No mundo da Bíblia, a palavra «irmão» é frequentemente utilizada. Aplica-se tanto aos membros da
mesma família (cf. Gn 13, 8; Lev 10, 4) como aos membros da mesma tribo (2 Sm 19, 13) ou do mesmo
povo (cf. Dt 25, 3; Jz 1, 3). O irmão designa então o concidadão, em oposição ao estrangeiro.
O parentesco carnal constitui a base natural da fraternidade humana. Esta pode também ser baseada na
ordem espiritual.
Queremos destacar três tipos de fraternidade: fraternidade em Adão, fraternidade em Abraão e
fraternidade em Cristo.
1.1. A fraternidade Adâmica
A fraternidade adâmica baseia-se no facto de todos os homens serem da mesma origem (cf. Gn 1-2).
Partilhamos a mesma humanidade; somos todos irmãos. Esta fraternidade original torna-nos irmãos
universais. Não conhece fronteiras porque transcende as barreiras raciais e sociais, de clã e étnicas,
culturais e religiosas. De facto, a criação do homem à imagem e semelhança de Deus permanece «o
fundamento último da igualdade radical e da fraternidade entre os homens, independentemente da sua
raça, nação, sexo, origem, cultura e classe5».
Esta fraternidade permanece um sonho que pode ser desvanecer, se o homem sucumbe ao pecado que
espreita à porta do seu coração (cf. Gn 4,7). Foi o que aconteceu com Caim, que cedeu aos ciúmes e
matou o seu irmão Abel, negando em seguida a sua responsabilidade (cf. Gn 4,9). Uma tal fraternidade
precisa, portanto, de ser reforçada por uma segunda: a fraternidade Abraâmica.
1.2. A fraternidade Abraâmica
A fraternidade em Abraão une os 'filhos' de Abraão, na fé em um só Deus. Torna os seguidores das três
grandes religiões monoteístas (judaísmo, cristianismo e islamismo) irmãos e irmãs em Abraão, o pai dos
crentes. Esta fraternidade é a da Aliança com Deus, que diz: «Não odiarás o teu irmão [...], amarás o teu
próximo» (Lv 19,17ss).
Os álbuns de família que a Bíblia apresenta para a nossa meditação incluem, no entanto, páginas sombrias
e tristes. Encontramos histórias de ciúmes e fratricídio (Caim e Abel), de rivalidade e usurpação de título
(Esaú e Jacob), de ódio e negação (José e os seus irmãos). Estas histórias não são fábulas, mas descrevem
uma realidade que mostra como «o coração do homem está doente e complicado» (Jer 17:9; Ecl 9:3).
Os caminhos da fraternidade parecem por vezes difíceis e permeados de armadilhas. No entanto, podemos
regozijar-nos pelo facto de termos antepassados ilustres que nos deram exemplos a imitar: Abraão, Esaú e
José.

- Abraão mostra-nos um caminho de apaziguamento e resolução de conflitos através do diálogo.


De facto, quando surgiram disputas entre os seus pastores e os de Lot por uma questão de terra, Abraão

4 Pelo termo «irmão», entendemos obviamente «irmão e irmã». É por referência aos textos bíblicos que adoptámos a terminologia «irmão».
5 Conselho Pontifício Justiça e Paz, Compêndio da Doutrina Social da Igreja, Cerf, 2005, no 144.
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jogou a carta do apaziguamento e disse a Lot: «Acima de tudo, que não haja nenhuma disputa entre nós,
entre os teus pastores e os meus, pois somos irmãos! [...] Separa-te de mim. Se fores para a esquerda, eu
irei para a direita, e se fores para a direita, eu irei para a esquerda» (Gn 13,8).
- Esaú abre o caminho para a superação e reconciliação. Quando é traído pelo seu irmão Jacob, que
roubou o seu direito de progenitura, Esaú aceitou aquele infortúnio sem lamentaçoes, e se reconciliou com
ele (cf. Gn 33,4). Contenta-se com o que tem, renuncia a qualquer compensação, e aceita, como sinal de
reconciliação e renovada comunhão, um presente do seu irmão (cf. Gn 33, 11ss).
- José, um dos doze filhos de Jacob, aplana o caminho do perdão. Vendido como escravo pelos seus
irmãos ciumentos, José perdoa-os e salva-os da fome e da miséria (cf. Gn 5, 1-8). Na alegria de os ter
reencontrado, ele interpreta o que eles fizeram como um sinal do plano salvífico de Deus, que mudou em
bem o mal que os seus irmãos lhe quiseram fazer. Ele disse-lhes: «Eu sou José, vosso irmão, a quem
vendestes para ser levado para o Egipto. Mas agora não vos entristeçais nem vos preocupeis por me terdes
vendido, pois Deus enviou-me à frente de vós para vos conservar a vida [...] Não fostes vós que me
enviastes aqui, mas Deus». (Gn 45, 4-5.8). José assim prefigura Cristo, «a pedra rejeitada pelos construtores
e que se tornou a pedra angular» (Mt 21, 42), o irmão entregue à morte pelos seus irmãos e que os
reconcilia entre si e com o Pai através da sua cruz (cf. 2 Cor 5, 18-19; Col 1, 20-22).
A história do povo de Israel revela assim que a fraternidade não é um rio longo e tranquilo. Ser irmãos é
uma coisa, viver como irmãos é outra. A verdadeira fraternidade requer um longo período de
aprendizagem. No seu tempo, os profetas já tinham denunciado vigorosamente a dureza de coração que
impede uma vida harmoniosa entre irmãos. Isaías observou amargamente que «ninguém poupa o seu
irmão» (Is 9,18). Jeremias, o profeta perseguido pelos seus próprios irmãos (Jer 11,18; 12,6), denuncia
rivalidades e competições pouco saudáveis e lamenta que «nenhum irmão seja de confiança, pois cada
irmão quer suplantar o outro» (Jer 9, 3).
Na esteira dos profetas, os sábios tornaram-se zelosos defensores de uma fraternidade vivida na justiça, na
misericórdia, na benevolência, na caridade e na solidariedade. Ben Sirá, o sábio, afirma que não se pode
trocar o irmão por ouro (cf. Sir 7, 18). No livro dos Provérbios, o autor sagrado afirma que «um irmão aju-
dado pelo irmão é como uma cidade fortificada» (Pr 18, 19 LXX).
Ele também descobre que nada é mais doloroso do que o abandono do pobre pelos seus irmãos (cf. Pr 19,
7) e que a adversidade nunca deve triunfar sobre a fraternidade, pois um verdadeiro irmão ama em todos
os momentos e em todas as circunstâncias (cf. Pr 17, 17). O salmista exalta as delícias de uma vida fraterna
harmoniosa: «Oh, que bom e agradável que os irmãos vivam unidos!» (Sl 133, 1).
Foi para realizar plenamente tal fraternidade que Cristo, o Novo Adão, assumiu a nossa natureza humana.

1.3. Fraternidade em Cristo


A fraternidade em Cristo une todos os homens em Cristo, «o primogénito de muitos irmãos» (Rm 8, 29).
D'Ele obtêm a sua filiação divina, Ele que não se envergonha de os chamar seus irmãos (cf. Heb 2, 10-17).
Foi Ele que, através da Sua morte e ressurreição, derrubou o muro do ódio e reconciliou judeus e gentios
(cf. Ef 2, 11-18).
Embora seja o baptismo que nos constitua filhos de Deus, esta fraternidade não é exclusiva, mas inclusiva.
Está aberta a todos; transcende as barreiras da língua, raça, sexo e condição social, já que todos são um em
Jesus Cristo (cf. Act 14, 1s; Gl 3, 28-29; Flm 1). Deve manifestar-se na harmonia da comunidade de
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discípulos e na solidariedade entre eles (cf. Act 4, 32). Aqueles que aderiram a tal fraternidade, devem
evitar disputas e dissensões (cf. Gl 5, 15), apoiar-se e perdoar-se mutuamente (cf. Rom 15, 1; Lc 6, 37; Ef
4, 32), ajudar os necessitados (cf. 2 Cor 8, 9; 1 Jo 3, 17), e mostrar bondade e delicadeza uns para com os
outros (cf. 1 Cor 8,12).
Como discípulos do Salvador, os cristãos são irmãos universais, irmãos de todos. É preciso lembrar que a
palavra ‘católica’ - que significa ‘universal’ - em vez de nos afastar dos outros crentes, deve servir para nos
aproximarmos deles. Daí os incessantes e retumbantes apelos do nosso amado Papa Francisco para «uma
Igreja em saída6 ». A Igreja é a casa de todos, uma casa aberta com uma mesa para todos. (cf. Mt 5, 47). Na
opinião do Papa Francisco, quando a Igreja se fecha, ela fica doente. A Igreja deve sair de si mesma. «Sair
de si própria para se unir aos outros faz bem7. «Vamos sair, vamos sair para oferecer a vida de Jesus Cristo
à todos8 ».
A fraternidade universal não é um objectivo utópico; é um sonho divino; e este sonho encontra a sua
realização em Jesus Cristo, o novo Adão, que reconciliou o homem com Deus e os homens entre si. Mas
como a nossa vida terrena é marcada pelo pecado, esta fraternidade será total e definitivamente realizada
na plenitude dos tempos, quando Deus for tudo em todos (cf. 1 Cor 15, 28). Enquanto esperamos esse dia
glorioso, fica-nos a pergunta: quem é o meu irmão, a minha irmã, nesta terra?
II. Quem é, então, o meu irmão ou irmã?
Ao escriba que lhe pergunta: «Quem é o meu próximo?», Jesus responde com a parábola do Bom
Samaritano, que vos convidamos a reler e a meditar (cf. Lc 10, 25-37).
Comentando este texto, o Papa Francisco faz esta pergunta « sem rodeios, direta e determinante: a qual
deles te assemelhas?»9 A pergunta é pessoal, e requer uma resposta pessoal. De facto, um olhar sobre o
nosso mundo em geral e sobre os nossos países em particular revela que existem aqueles que causam
sofrimento, aqueles que sofrem, aqueles que se preocupam e aqueles que permanecem indiferentes. O
Papa observa com amargura que «somos analfabetos no acompanhar, cuidar e sustentar os mais frágeis e
vulneráveis das nossas sociedades [...]. Habituamo-nos a olhar para o outro lado, passar à margem, ignorar
as situações até elas nos caírem diretamente em cima 10».
Note-se que nesta passagem, aqueles que deveriam ter vindo em auxílio do homem ferido, nomeadamente
o sacerdote e o levita, ignoram-no. E é um samaritano, um estranho, que se aproxima dele e o cura. Além
disso, Jesus faz uma mudança. A questão já não recai sobre «Quem é o meu próximo?», mas sobre « De
quem sou eu próximo? »11
Ao substituir a palavra «próximo» por «irmão», podemos dar esta resposta: cada pessoa é meu irmão,
especialmente aquele que sofre. E eu sou o irmão de cada pessoa, especialmente de quem sofre.
O irmão é o outro «que encontras no teu caminho, aquele que cresce ao teu lado, trabalha, se alegra ou
chora ao teu lado [...], é aquele a quem deves unir-te para te tornares... o 'irmão universal' [...], é o teu
próximo, aquele que deves amar com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças
[...], é aquele em relação ao qual serás julgado [...], é aquele que te faz crescer, é um presente de amor de

6 Cf. Papa Francisco, Exortação Apostólica Evangelii gaudium, Roma, 24 de Novembro de 2013.
7 Ibid., no 87
8 Ibid., no49
9 Papa Francisco, Fratelli tutti, no 64
10Ibid.
11 Cf. Fratelli tutti, no 69-80
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Cristo. [...], Ele é aquele por quem Deus se expressa, por quem Deus convida, por quem Deus enriquece,
por quem Deus mede o nosso amor».12
O irmão é um presente, um presente de Deus para ser acolhido, amado e ajudado em todas as
circunstâncias. Na Constituição Pastoral Gaudium et Spes, os Padres conciliares lembram-nos que «Deus [...]
quis que todos os homens formassem uma só família e se tratassem uns aos outros como irmãos13».
Eles acrescentam estas palavras de incrível atualidade: «Especialmente no nosso tempo, temos o dever
imperativo de nos tornarmos o vizinho de cada homem e, se ele vier até nós, de o servir activamente: Quer
seja o velho abandonado por todos, ou o trabalhador estrangeiro desprezado sem razão, ou o exilado, ou a
criança nascida de uma união ilegítima que carrega injustamente o fardo de uma culpa que não cometeu,
ou o homem faminto que desafia a nossa consciência recordando-nos as palavras do Senhor: ‘Sempre que
o fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes’ (Mt 25, 40)14».

III. Ofensas à fraternidade


Certos comportamentos e atitudes infringem a fraternidade, ferem-na, enfraquecem-na, podendo mesmo
eliminá-la.
3.1. A Discriminação
Nós temos um só Pai e somos todos irmãos. Por conseguinte, todos têm direito ao nosso amor fraternal.
Discriminação e exclusão - quer esteja relacionada com idade, sexo, etnia, religião, origem ou saúde - e
todas as formas de racismo são pecados contra a fraternidade.
Num mundo onde se fala cada vez mais da dignidade humana e da paridade homem-mulher, recordamos
que a discriminação e a exploração dos seres humanos, bem como a violência contra eles, constituem uma
negação da fraternidade.
No mesmo sentido, insistimos em particular na protecção das crianças e das pessoas vulneráveis contra
todas as formas de abuso e de violência. A fraternidade exige respeito e protecção dos mais fracos e dos
mais frágeis.
3.2. A Dissensão
A divisão é o trabalho de Satanás, o Divisor, aquele que divide. Certamente, a unidade não significa
conformidade ou uniformidade, mas as nossas diferenças e divergências não devem gerar divisões e
dissensões entre nós. Será preciso lembrar-vos que a nossa discórdia, ao afastar-nos uns dos outros,
também nos afasta de Deus? «Deus não recebe o sacrifício do homem que vive em dissensão. Ele ordena
que se afaste do altar para se reconciliar primeiro com o irmão, para que possa aceitar as orações
oferecidas em paz. O maior sacrifício que se pode oferecer a Deus é a nossa paz, é a concórdia fraterna, é
o povo reunido por aquela unidade que existe entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo 15.
3.3. O Egoísmo
O egoísmo é o amor excessivo do ‘eu’, a busca exclusiva de interesses pessoais. O egoísta vê apenas o seu
‘eu’, pensa apenas no seu ‘eu’, vive apenas para o seu ‘eu’. Atinge o outro como inexistente ou, no

12 Michel Quoist, Réussir, Paris, 1994, p. 111-112.


13 Constitution Pastorale Gaudium et spes, no 24, § 1.
14 Ibid., 27, § 2
15 S. Cipriano, De Domenica oratione, no 23.
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máximo, vê nele apenas alguém a ser explorado. Está fechado à partilha e, por uma questão de lucro, pode
roubar os bens de outros. Este é o caso dos ladrões na parábola do Bom Samaritano. O egoísmo é uma
grave violação à fraternidade.
3.4. O Ciúme
A pessoa ciumenta não se regozija com a felicidade do seu irmão. Ela só quer a felicidade para si própria.
Nem se regozija por vê-lo prosperar. Em vez disso, ela cobiça os seus bens. O sucesso da outra pessoa
causa frustração, tristeza e até raiva na pessoa ciumenta. A história de Caim e Abel é uma ilustração
perfeita disto (cf. Gn 4,1-16). O contra-exemplo a Caim seria João Baptista que se regozijava com a fama
de Jesus: «É preciso que Ele cresça e eu diminua» (Jo 3, 30). O ciúme é um veneno terrível contra a
fraternidade.
3.5. O Ódio
O ódio é um sentimento que leva a detestar alguém ou a ser hostil para com ele, a ponto de lhe desejar
mal. É ilustrado pela história de José e dos seus irmãos (cf. Gn 37). Depressa, o ciúme dos seus irmãos
transformou-se em ódio e o seu ódio em violência. José, que inicialmente devia ser morto (cf. Gn 37, 18-
20), acaba por ser vendido como escravo (cf. Gn 37, 26-27). O ódio é a própria negação da caridade e da
fraternidade.
3.6. A Ganância
A ganância é o desejo imoderado e mesmo excessivo de poder e riqueza, etc. A história de Esaú e Jacob é
uma ilustração disto mesmo (cf. Gn 25, 19-34; 27, 1-28,9; 32, 4-22; 33, 1-17): dois gémeos que já se
chocam no útero (cf. Gn 25, 22-23) tentando o mais novo relegar o seu irmão para o segundo plano. Esta
história recorda-nos as nossas lutas de poder e rivalidades não saudáveis. Somos Jacob sempre que
queremos expulsar o outro do seu lugar, desejando-o ou usurpando-o para nós. É a lógica do «sai de lá,
que esse lugar é para mim». A ganância mina a fraternidade.
3.7. A Indiferença
A indiferença torna a pessoa insensível à angústia do seu próximo. A parábola evangélica do rico e do
Lázaro (Lc 16, 19-31) é um bom exemplo disso. No nosso mundo e nos nossos países não faltam Lázaros
- cujo nome significa «Deus é a minha ajuda» - que têm o direito de contar com a nossa ajuda e com o
nosso socorro. « Diante de tanta dor, à vista de tantas feridas, a única via de saída é ser como o bom
samaritano. Qualquer outra opção deixa-nos ou com os salteadores ou com os que passam ao largo, sem
se compadecer com o sofrimento do ferido na estrada 16.
Face a tanto sofrimento, pobreza e miséria, o silêncio é culpável e a indiferença insuportável. «Viver
indiferentes à dor não é uma opção possível; não podemos deixar ninguém caído «nas margens da vida».17
De facto, aquele que semeia a indiferença colhe o caos. Que bem se expressou Raoul Follereau ao dizer:
«Como é misérável um coração não sensível à miséria».
3.8. O Comunitarismo
O comunitarismo, ao implicar o fechamento sobre si, gera inimizade e hostilidade entre comunidades,
exclusão e xenofobia. A nossa pertença a uma família ou entidade social não deve isolar-nos ou fechar-nos

16 Papa Francisco, Fratelli tutti, no 67


17 Papa Francisco, Fratelli tutti, no 68
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aos outros. O inferno não são os outros, mas sim o isolamento, o comunitarismo, o fechamento ao outro.
Tudo isto é obstáculo à fraternidade.
Por estar consciente de todas estas ameaças, é que o nosso amado Papa Francisco convida-nos, na sua
Encíclica Fratelli tutti, a um novo sonho de fraternidade e amizade social. A fraternidade, para dar pleno
fruto, deve repousar sobre uma série de pilares.

IV. Os pilares da fraternidade


4.1. A Liberdade
A fraternidade vive-se em liberdade. Não pode haver fraternidade sem liberdade. Não há liberdade sem
fraternidade. O exercício da minha liberdade deve ter em conta a dos outros. A fraternidade orienta a
liberdade para o bem. «Só a fraternidade permite o acesso a uma liberdade e igualdade que respeite a
pessoa humana 18. Com São João Paulo II, queremos reafirmar que «o melhor uso da liberdade é a
caridade (fraternidade), que se realiza na doação e no serviço 19». De facto, um mau uso da liberdade mina
a fraternidade e pode destrui-la definitivamente. Como ensina o Catecismo da Igreja Católica, «o uso da
liberdade não implica o direito de dizer e fazer tudo 20». O homem livre é aquele que age como um irmão
em relação aos outros. Tratar os outros como irmãos dá-lhe paz de espírito.
4.2. A Verdade
A fraternidade é vivida na verdade. Fraternitas in veritate. Não é surpreendente que «o homem tende
naturalmente para a verdade 21». É por isso que Santo Agostinho exclama: «Quid enim fortius desiderat
anima quam veritatem? 22». - O que deseja a alma mais ardentemente, do que a verdade? A verdade é o
cimento da fraternidade humana. Sem ela, a vida em comunidade não é possível. A fim de criar
fraternidade, cada pessoa deve ser fiel a si própria e à outra. «a convivência entre os seres humanos em
uma comunidade é efetivamente ordenada, fecunda e condizente com a sua dignidade de pessoas quando
se funda na verdade 23». Ser fiel ao irmão supõe ser capaz lhe dizer o mal que fez, não para o humilhar,
mas para o ajudar a tomar consciência de si, a corrigir-se a fim de escrever uma nova página na sua vida
cheia de promessas. Daí a importância da correcção fraterna (cf. Mt 18, 15s), que não é facultativa mas
obrigatória entre irmãos. O amor à verdade é o caminho do homem para o seu irmão, o caminho real da
fraternidade humana.
4.3. A Justiça
A fraternidade é vivida na justiça, que é o seu fundamento. A justiça é aquela virtude que regula as relações
entre os homens dentro da sociedade, dando a cada pessoa o que lhe é devido. Melhor ainda, «consiste na
vontade constante e firme de dar a Deus e ao próximo o que lhes é devido 24 ». A justiça reforça os laços
de fraternidade na medida em que não é unilateral mas bilateral. É na medida em que estamos abertos ao
outro, que podemos esperar que ele esteja aberto a nós. A justiça, para dar pleno fruto, deve ser caridosa,

18 Pontifícia comissão bíblica, Que é o Homem? Um itinerário d’ antropologia bíblica, Cerf, Paris, 2020, p. 272.
19 João Paulo II, Carta Encíclica Redemptor hominis, Rome, 4 março 1979, no 21
20 Catecismo da Igreja católica, no 1740
21 Catecismo da Igreja católica, no 2467
22 Santo Agostinho, comentário ao Evangelho de S. João, 26, 5
23 Compêndio da Doutrina Social da Igreja, no 198
24 CEC, no 1807; S. Tomás de Aquino, Suma teológica, IIa IIae, q.58, a.1: Ed. Leon 9, 9-10: “iustitia est perpetua et constans volutas ius suum

unicuique tribuendi» - A justiça é a firme e constante vontade de dar a cada um o que lhe é devido.
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fraterna. Melhor ainda, a fraternidade-caridade é a sua coroa. Com razão disse São João Paulo II que «a
justiça deve ser completada pela caridade»25.
4.4. A Caridade
A fraternidade rima com a caridade. Sem caridade, a fraternidade é uma mentira. Só a caridade torna a
fraternidade autêntica e verdadeira. Não podemos chamar-nos irmãos se não nos amarmos uns aos outros.
Se a fraternidade implica um dever de caridade e unidade, isso não significa uniformidade. Todos irmãos,
mas todos diferentes! Não tenhamos medo das nossas diferenças e das nossas divergências. Aceitar a
diferença é rejeitar a indiferença. Além disso, as nossas diferenças, longe de nos empobrecerem,
enriquecem-nos. Recordemos as palavras de Deus a Santa Catarina de Sena: «Eu poderia ter criado seres
humanos para que cada um tivesse tudo, mas preferi dar dons diferentes a pessoas diferentes, para que
todos tenham necessidade uns dos outros26». . Deus quer que possamos contar uns com os outros e não
viver na indiferença e ser estranhos um ao outro. « os outros não são concorrentes de quem temos de nos
defender, disse São João Paulo II, mas irmãos e irmãs de quem devemos ser solidários; hão-de ser amados
por si mesmos; enriquecem-nos pela sua própria presença27».
Neste tempo abençoado da Quaresma, amados Fiéis seguidores de Cristo, não percamos de vista que «a
esmola aos pobres é um dos principais testemunhos de caridade fraterna28». Como Jesus, o Bom Pastor,
como o Bom Samaritano, Simão de Cirene e Verónica da Sagrada Face, olhemos com ternura e piedade
para os nossos irmãos e irmãs em dificuldade. Não com uma pena inoperante, mas uma compaixão que
nos obriga a colocar o avental de servo para ajudar, acalmar e aliviar a sua miséria. Um irmão não pode ser
feliz sozinho ou contra os seus irmãos. Um irmão não é verdadeiramente feliz senão quando todos os seus
irmãos à sua volta o são.
4.5. A Solidariedade
A fraternidade anda de mãos dadas com a solidariedade. O verdadeiro irmão é, por natureza, solidário com
os seus irmãos, partilhando as suas alegrias e tristezas.
A solidariedade, ou caridade social, é «uma exigência directa da fraternidade humana e cristã29». É «a
atuação mais autêntica do princípio da fraternidade, que é inseparável do da liberdade e da igualdade 30». A
paz social depende em grande medida da solidariedade de todos com todos: «solidariedade dos pobres
entre si, dos ricos com os pobres, dos trabalhadores entre si, dos empresários e empregados na empresa;
solidariedade entre as nações e entre os povos 31». A falta de solidariedade alarga o fosso entre ricos e
pobres, aumenta a desigualdade e conduz à tensão e ao conflito.
A solidariedade favorece a convivialidade. São João Paulo II considera a solidariedade como «caminho para a
paz : «Opus solidaritatis pax: a paz é o fruto da solidariedade 32». A fraternidade faz a humanidade e a humanidade
vive da fraternidade e morre por falta de fraternidade.

25 João Paulo II, Mensagem para a Jornada mundial da Paz, 2004, no 10; Cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, no 206.
26 Santa Catarina de Sena, Diálogos 7.
27 João Paulo II, Carta Encíclica Evangelium vitae, Roma, 25 mars 1995, no 98
28 Catecismo da Igreja católica, no 2447
29 Ibid., no 1939 ;; cf. João Paulo II, carta encíclica Sollicitudo Rei socialis, Rome, 30 dezembro 1987, no 38-40; João Paulo II, Carta Encíclica

Centesimus annus, Roma, 1 de Maio 1991, no 10.


30 Compêndio da Doutrina Social da Igreja, no 390
31 Catecismo da Igreja Católica, no 1941
32 João Paulo II, Carta encíclica Solicitudo Rei Socialis no 39
9

A verdadeira fraternidade é uma tomada de consciência da unidade da raça humana e da «dependência mútua
de todos numa solidariedade necessária33».

Queremos sublinhar que o apelo à solidariedade não é um incitamento à preguiça. De facto, «Nenhum cris-
tão, pelo fato de pertencer a uma comunidade solidária e fraterna, deve sentir-se no direito de não trabalhar e de viver à custa
dos outros (cf. 2Ts 3, 6-12); Pelo contrário, todos, são exortados pelo Apóstolo Paulo a tomar como « um ponto de honra »
o trabalhar com as próprias mãos de modo a não ser «pesados a ninguém» (1 Tm 4, 11-12) 34».

V. Apelos
AOS FIÉIS LEIGOS
Caros irmãos e irmãs em Cristo, amigos crentes, como sabemos, as relações entre irmãos nem sempre são
fáceis. Elas se apresentam às vezes como dentes de serra, com altos e baixos, momentos de concórdia e
discórdia, cumplicidade e rivalidade, momentos de mal-entendidos mas também de reconciliação. Por
conseguinte, nós vos fazemos estes apelos:
A Igreja é uma assembleia de irmãos, e o segredo de uma vida comunitária harmoniosa é a comunhão, a
unidade e a fraternidade. Caros fiéis leigos, na vossa vida quotidiana, tenham presentes estas palavras de
Jesus aos seus discípulos: «Se vos amardes uns aos outros, todos saberão que sois meus discípulos» (Jo 13,
35). Não vos considereis mais importantes do que os outros; não os desprezeis; não penseis que podeis
passar sem o seu serviço; deixai de falar mal uns dos outros (Tg 4, 11). Tende os mesmos sentimentos (cf.
Fil 2, 3-5; 1 Cor 12, 21).
AOS PAIS E EDUCADORS
A família é o lugar onde a fraternidade emerge e é vivida. Ela « deve viver de modo que os seus membros
aprendam a preocupar-se e a encarregar-se dos jovens e dos velhos, das pessoas doentes ou incapacitadas e
dos pobres35». Caros pais e educadores, tomai a peito o dever de inculcar nos vossos filhos e filhas,
naqueles que estão ao vosso cuidado os valores da fraternidade e solidariedade, respeito, verdade, justiça e
paz.
AOS JOVENS
A juventude é o tempo de aprendizagem da fraternidade. Caros jovens, exortamos-vos a colocar-vos ao
serviço das vossas comunidades, dos vossos países, e a construir pequenas pontes de fraternidade entre
vós, quaisquer que sejam as vossas diferenças. Além disso, não vos deixeis alienar pela tecnologia digital.
Utilizai-a como um meio para construir e consolidar a fraternidade.
AOS HOMENS E MULHERES DA POLÍTICA
A política é uma excelente forma de servir o ideal da fraternidade, através da promoção e salvaguarda do
bem comum (cf. Fratelli tutti n°180). Aos nossos queridos irmãos e irmãs da política, pedimos que
cultivem a amizade social e a justiça no seio da sociedade, para além das vossas filiações e ambições
políticas. Não vos comporteis como inimigos, mas como adversários que respeitam os outros. Renunciai a
todo o incitamento à violência. Educai os vossos militantes para a paz e entendimento fraterno.
AOS HOMENS E MULHERES DE BOA VONTADE

33 Ibid. no 4 § 4.
34 Compendio da Doutrina Social da Igreja, no 264
35 Catecismo da Igreja Católica, no 2208
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A todos vós, homens e mulheres de boa vontade, o inestimável desejo de uma comunidade mundial
mais fraterna é também vosso. Juntos, sejamos incansáveis construtores de fraternidade em vista da
edificação de um presente e um futuro de paz para os nossos países.
AOS CONSAGRADOS
A vida consagrada é o sinal do amor de Deus no coração do mundo. Caros religiosos e religiosas, sede
testemunhas deste amor, antes de mais pela vida fraterna no seio das vossas comunidades, e pelo vosso
serviço, especialmente aos mais pobres.
AOS BISPOS E SACERDOTES
Os pastores são os guias e modelos do rebanho (1 Pe 5, 2-3). Caros bispos e sacerdotes, preguemos pelo
exemplo, por palavras e obras. Imitemos o Bom Pastor, que veio para servir e não para ser servido (cf. Mc
10, 45).
Que todos possamos viver em harmonia e dizer com o Salmista: «Como é bom e agradável viverem os
irmãos em harmonia!» (Sl 133,1).

Aprovada na Praia a 13 de Novembro de 2021


pelos Bispos presentes na Sessão da Conferência Episcopal.
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MENSAGEM DO PAPA FRANCISCO


PARA A QUARESMA DE 2022
«Não nos cansemos de fazer o bem;
porque, a seu tempo colheremos, se não tivermos esmorecido.
Portanto, enquanto temos tempo, pratiquemos o bem para com todos» (Gal 6, 9-10a).

Queridos irmãos e irmãs!


A Quaresma é um tempo favorável de renovação pessoal e comunitária que nos conduz à Páscoa de Jesus
Cristo morto e ressuscitado. Aproveitemos o caminho quaresmal de 2022 para refletir sobre a exortação
de São Paulo aos Gálatas: «Não nos cansemos de fazer o bem; porque, a seu tempo colheremos, se não
tivermos esmorecido. Portanto, enquanto temos tempo (kairós), pratiquemos o bem para com todos»
(Gal 6, 9-10a).
1. Sementeira e colheita
Neste trecho, o Apóstolo evoca a sementeira e a colheita, uma imagem que Jesus muito prezava
(cf. Mt 13). São Paulo fala-nos dum kairós: um tempo propício para semear o bem tendo em vista uma
colheita. Qual poderá ser para nós este tempo favorável? Certamente é a Quaresma, mas é-o também a
nossa inteira existência terrena, de que a Quaresma constitui de certa forma uma imagem [1]. Muitas vezes,
na nossa vida, prevalecem a ganância e a soberba, o anseio de possuir, acumular e consumir, como se vê
no homem insensato da parábola evangélica, que considerava assegurada e feliz a sua vida pela grande co-
lheita acumulada nos seus celeiros (cf. Lc 12, 16-21). A Quaresma convida-nos à conversão, a mudar men-
talidade, de tal modo que a vida encontre a sua verdade e beleza menos no possuir do que no doar, menos
no acumular do que no semear o bem e partilhá-lo.
O primeiro agricultor é o próprio Deus, que generosamente «continua a espalhar sementes de bem na hu-
manidade» (Enc. Fratelli tutti, 54). Durante a Quaresma, somos chamados a responder ao dom de Deus,
acolhendo a sua Palavra «viva e eficaz» (Heb 4, 12). A escuta assídua da Palavra de Deus faz maturar uma
pronta docilidade à sua ação (cf. Tg 1, 19.21), que torna fecunda a nossa vida. E se isto já é motivo para
nos alegrarmos, maior motivo ainda nos vem da chamada para sermos «cooperadores de Deus» (1 Cor 3,
9), aproveitando o tempo presente (cf. Ef 5, 16) para semearmos, também nós, praticando o bem. Esta
chamada para semear o bem deve ser vista, não como um peso, mas como uma graça pela qual o Criador
nos quer ativamente unidos à sua fecunda magnanimidade.
E a colheita? Porventura não se faz toda a sementeira a pensar na colheita? Certamente; o laço estreito
entre a sementeira e a colheita é reafirmado pelo próprio São Paulo, quando escreve: «Quem pouco se-
meia, também pouco há de colher; mas quem semeia com generosidade, com generosidade também colhe-
rá» (2 Cor 9, 6). Mas de que colheita se trata? Um primeiro fruto do bem semeado, temo-lo em nós mes-
mos e nas nossas relações diárias, incluindo os gestos mais insignificantes de bondade. Em Deus, nenhum
ato de amor, por mais pequeno que seja, e nenhuma das nossas «generosas fadigas» se perde (cf.
Exort. Evangelii gaudium, 279). Tal como a árvore se reconhece pelos frutos (cf. Mt 7, 16.20), assim também
a vida repleta de obras boas é luminosa (cf. Mt 5, 14-16) e difunde pelo mundo o perfume de Cristo (cf. 2
Cor 2, 15). Servir a Deus, livres do pecado, faz maturar frutos de santificação para a salvação de todos
(cf. Rm 6, 22).
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Na realidade, só nos é concedido ver uma pequena parte do fruto daquilo que semeamos, pois, segundo o
dito evangélico, «um é o que semeia e outro o que ceifa» (Jo 4, 37). É precisamente semeando para o bem
do próximo que participamos na magnanimidade de Deus: constitui «grande nobreza ser capaz de desen-
cadear processos cujos frutos serão colhidos por outros, com a esperança colocada na força secreta do
bem que se semeia» (Enc. Fratelli tutti, 196). Semear o bem para os outros liberta-nos das lógicas mesqui-
nhas do lucro pessoal e confere à nossa atividade a respiração ampla da gratuidade, inserindo-nos no hori-
zonte maravilhoso dos desígnios benfazejos de Deus.
A Palavra de Deus alarga e eleva ainda mais a nossa perspetiva, anunciando-nos que a colheita mais autên-
tica é a escatológica, a do último dia, do dia sem ocaso. O fruto perfeito da nossa vida e das nossas ações é
o «fruto em ordem à vida eterna» (Jo 4, 36), que será o nosso «tesouro no céu» (Lc 18, 22; cf. 12, 33). O
próprio Jesus, para exprimir o mistério da sua morte e ressurreição, usa a imagem da semente que morre
na terra e frutifica (cf. Jo 12, 24); e São Paulo retoma-a para falar da ressurreição do nosso corpo: «semeado
corrutível, o corpo é ressuscitado incorrutível; semeado na desonra, é ressuscitado na glória; semeado na
fraqueza, é ressuscitado cheio de força; semeado corpo terreno, é ressuscitado corpo espiritual» (1 Cor 15,
42-44). Esta esperança é a grande luz que Cristo ressuscitado traz ao mundo: «Se nós temos esperança em
Cristo apenas para esta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens. Mas não! Cristo ressuscitou
dos mortos, como primícias dos que morreram» (1 Cor 15, 19-20), para que quantos estiverem intimamen-
te unidos a Ele no amor, «por uma morte idêntica à Sua» (Rm 6, 5), também estejam unidos à sua ressur-
reição para a vida eterna (cf. Jo 5, 29): «então os justos resplandecerão como o sol, no reino do seu Pai»
(Mt 13, 43).
2. «Não nos cansemos de fazer o bem»
A ressurreição de Cristo anima as esperanças terrenas com a «grande esperança» da vida eterna e introduz,
já no tempo presente, o germe da salvação (cf. Bento XVI, Spe salvi, 3; 7). Perante a amarga desilusão por
tantos sonhos desfeitos, a inquietação com os desafios a enfrentar, o desconsolo pela pobreza de meios à
disposição, a tentação é fechar-se num egoísmo individualista e, à vista dos sofrimentos alheios, refugiar-se
na indiferença. Com efeito, mesmo os recursos melhores conhecem limitações: «Até os adolescentes se
cansam, se fatigam, e os jovens tropeçam e vacilam» (Is 40, 30). Deus, porém, «dá forças ao cansado e en-
che de vigor o fraco. (…) Aqueles que confiam no Senhor, renovam as suas forças. Têm asas como a
águia, correm sem se cansar, marcham sem desfalecer» (Is 40, 29.31). A Quaresma chama-nos a repor a
nossa fé e esperança no Senhor (cf. 1 Ped 1, 21), pois só com o olhar fixo em Jesus Cristo ressuscitado
(cf. Heb 12, 2) é que podemos acolher a exortação do Apóstolo: «Não nos cansemos de fazer o bem»
(Gal 6, 9).
Não nos cansemos de rezar. Jesus ensinou que é necessário «orar sempre, sem desfalecer» ( Lc 18, 1). Precisa-
mos de rezar, porque necessitamos de Deus. A ilusão de nos bastar a nós mesmos é perigosa. Se a pande-
mia nos fez sentir de perto a nossa fragilidade pessoal e social, permita-nos esta Quaresma experimentar o
conforto da fé em Deus, sem a qual não poderemos subsistir (cf. Is 7, 9). No meio das tempestades da
história, encontramo-nos todos no mesmo barco, pelo que ninguém se salva sozinho [2]; mas sobretudo
ninguém se salva sem Deus, porque só o mistério pascal de Jesus Cristo nos dá a vitória sobre as vagas
tenebrosas da morte. A fé não nos preserva das tribulações da vida, mas permite atravessá-las unidos a
Deus em Cristo, com a grande esperança que não desilude e cujo penhor é o amor que Deus derramou
nos nossos corações por meio do Espírito Santo (cf. Rm 5, 1-5).
Não nos cansemos de extirpar o mal da nossa vida. Possa o jejum corporal, a que nos chama a Quaresma, fortale-
cer o nosso espírito para o combate contra o pecado. Não nos cansemos de pedir perdão no sacramento da Penitên-
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cia e Reconciliação, sabendo que Deus nunca Se cansa de perdoar [3]. Não nos cansemos de combater a concupiscên-
cia, fragilidade esta que inclina para o egoísmo e todo o mal, encontrando no decurso dos séculos vias dife-
rentes para fazer precipitar o homem no pecado (cf. Enc. Fratelli tutti, 166). Uma destas vias é a dependên-
cia dos meios de comunicação digitais, que empobrece as relações humanas. A Quaresma é tempo propí-
cio para contrastar estas ciladas, cultivando ao contrário uma comunicação humana mais integral (cf. ibid.,
43), feita de «encontros reais» ( ibid., 50), face a face.
Não nos cansemos de fazer o bem, através duma operosa caridade para com o próximo. Durante esta Quaresma, exerci-
temo-nos na prática da esmola, dando com alegria (cf. 2 Cor 9, 7). Deus, «que dá a semente ao semeador e
o pão em alimento» (2 Cor 9, 10), provê a cada um de nós os recursos necessários para nos nutrirmos e
ainda para sermos generosos na prática do bem para com os outros. Se é verdade que toda a nossa vida é
tempo para semear o bem, aproveitemos de modo particular esta Quaresma para cuidar de quem está pró-
ximo de nós, para nos aproximarmos dos irmãos e irmãs que se encontram feridos na margem da estrada
da vida (cf. Lc 10, 25-37). A Quaresma é tempo propício para procurar, e não evitar, quem passa necessi-
dade; para chamar, e não ignorar, quem deseja atenção e uma boa palavra; para visitar, e não abandonar,
quem sofre a solidão. Acolhamos o apelo a praticar o bem para com todos, reservando tempo para amar os
mais pequenos e indefesos, os abandonados e desprezados, os discriminados e marginalizados (cf.
Enc. Fratelli tutti, 193).
3. «A seu tempo colheremos, se não tivermos esmorecido»
Cada ano, a Quaresma vem recordar-nos que «o bem, como aliás o amor, a justiça e a solidariedade não se
alcançam duma vez para sempre; hão de ser conquistados cada dia» (ibid., 11). Por conseguinte peçamos a
Deus a constância paciente do agricultor (cf. Tg 5, 7), para não desistir na prática do bem, um passo de
cada vez. Quem cai, estenda a mão ao Pai que nos levanta sempre. Quem se extraviou, enganado pelas
seduções do maligno, não demore a voltar para Deus, que «é generoso em perdoar» (Is 55, 7). Neste tempo
de conversão, buscando apoio na graça divina e na comunhão da Igreja, não nos cansemos de semear o
bem. O jejum prepara o terreno, a oração rega, a caridade fecunda-o. Na fé, temos a certeza de que «a seu
tempo colheremos, se não tivermos esmorecido», e obteremos, com o dom da perseverança, os bens pro-
metidos (cf. Heb 10, 36) para salvação nossa e do próximo (cf. 1 Tm 4, 16). Praticando o amor fraterno
para com todos, estamos unidos a Cristo, que deu a sua vida por nós (cf. 2 Cor 5, 14-15), e saboreamos
desde já a alegria do Reino dos Céus, quando Deus for «tudo em todos» (1 Cor 15, 28).
A Virgem Maria, em cujo ventre germinou o Salvador e que guardava todas as coisas «ponderando-as no
seu coração» (Lc 2, 19), obtenha-nos o dom da paciência e acompanhe-nos com a sua presença materna,
para que este tempo de conversão dê frutos de salvação eterna.
Roma, em São João de Latrão, na Memória litúrgica do bispo São Martinho, 11 de novembro de 2021.
Francisco

[1] Cf. Santo Agostinho, Sermones 243, 9,8; 270, 3; Enarratio in Psalmis 110, 1.
[2] Cf. Francisco, Momento extraordinário de oração em tempo de pandemia (27 de março de 2020).
[3] Cf. Idem, Angelus de 17 de março de 2013.

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