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PÓS-GRADUAÇÃO EM PRÁTICA PENAL

AVANÇADA
Direito Penal Médico

Prof.ª Flavia Siqueira


INTERVENÇÕES MÉDICAS E O DIREITO PENAL

Caso 1. A paciente P, de 18 anos, possui anemia falciforme e, durante uma crise


álgica, dirige-se ao hospital. Lá, P recebe a notícia de que somente por meio de
uma transfusão de sangue será possível salvar a sua vida. P, no entanto, é
testemunha de Jeová e, em razão de sua convicção religiosa, recusa-se
veementemente a receber a transfusão. Não obstante, o médico A, visando ao
salvamento da vida de P, submete-a ao procedimento contra a sua vontade,
salvando-lhe a vida.
Variação 1. A respeita a vontade de P e não realiza a transfusão de sangue. P
falece.

(Inspirado no caso: STF HC 268459/SP)


INTERVENÇÕES MÉDICAS E O DIREITO PENAL
Caso 2. A paciente P foi submetida, durante o parto, a uma episiotomia, que consiste em
um “corte feito na abertura da vagina para ampliar o canal de parto”, sem
consentimento. O médico M argumentou que esse seria um procedimento indicado e
necessário para a “prevenção de complicações materno-fetais”. No entanto, a paciente
havia negado categoricamente a possibilidade de realização do procedimento. P disse
preferir correr os riscos da não realização do procedimento a se submeter a ele. A
despeito da recusa, o médico M realizou a episiotomia e, posteriormente, a episiorrafia
(sutura do corte).

(Inspirado no caso: TJSP Apelação Cível no 1014301-14.2016.8.26.0053)


• O que legitima as intervenções e tratamentos médicos
nos corpos dos pacientes?
TIPOS PENAIS RELEVANTES
Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:
Pena - detenção, de três meses a um ano.

Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe
haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o
que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.
TIPOS PENAIS RELEVANTES
Casos específicos: cirurgias de esterilização (art. 15 da 9.263/96) e das cirurgias de transplante (art.
14 da lei 9.434/97).

Art. 15. Realizar esterilização cirúrgica em desacordo com o estabelecido no art. 10 desta Lei.
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, se a prática não constitui crime mais grave.

Art. 14. Remover tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoa ou cadáver, em desacordo com as
disposições desta Lei:
Pena - reclusão, de dois a seis anos, e multa, de 100 a 360 dias-multa.
Art. 16. Realizar transplante ou enxerto utilizando tecidos, órgãos ou partes do corpo humano de que
se tem ciência terem sido obtidos em desacordo com os dispositivos desta Lei:
Pena - reclusão, de um a seis anos, e multa, de 150 a 300 dias-multa.
Art. 18. Realizar transplante ou enxerto em desacordo com o disposto no art. 10 desta Lei e seu
parágrafo único:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos.
Dois • Promoção da
saúde e do bem-
paradigmas na estar
Ética
ética médica hipocrática
• Assimetria
• Paciente - objeto
de intervenção
• Paternalista

• Vontade do
paciente
Ética da
autonomia • Paciente -
sujeito de
intervenção
Fundamento jurídico-constitucional
SOLUÇÃO DOGMÁTICA?
- Exercício regular de direito (art. 23, III, CP)

- Consentimento

- Indicação e execução conforme a lex artis

- Ausência de dolo
POSSUI O PACIENTE O DIREITO DE ESCOLHER E
RECUSAR TRATAMENTOS?
- Código Penal
Art. 146, § 3º - Não se compreendem na disposição deste artigo:
I - a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu
representante legal, se justificada por iminente perigo de vida;

- Código de Ética Médica


art. 22: é vedado ao médico “deixar de obter consentimento do paciente ou de seu
representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em
caso de risco iminente de morte”.
art. 31 proíbe o médico de “desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante
legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas,
salvo em caso de iminente risco de morte” .
- Resolução CFM 2.232/19
Art. 10. Na ausência de outro médico, em casos de urgência e emergência e
quando a recusa terapêutica trouxer danos previsíveis à saúde do paciente, a relação com
ele não pode ser interrompida por objeção de consciência, devendo o médico adotar o
tratamento indicado, independentemente da recusa terapêutica do paciente.

Art. 11. Em situações de urgência e emergência que caracterizarem iminente perigo


de morte, o médico deve adotar todas as medidas necessárias e reconhecidas para
preservar a vida do paciente, independentemente da recusa terapêutica.
Caso 1. O paciente havia sido acometido por traumatismo crânio encefálico em virtude de um
acidente de trânsito e, mesmo após ter realizado intenso tratamento, permaneceu com sequelas
neurológicas e déficit motor, “caracterizado, entre outros, por incapacidade total no membro
superior (mão em garra) e inferior, e tremor no membro superior direito”. Na tentativa de
corrigir essas sequelas, o paciente recorreu a um tratamento medicamentoso, que não produziu
os efeitos esperados. Diante do insucesso de seus esforços, resolveu procurar o médico M para
avaliar a possibilidade de realizar uma cirurgia. Na ocasião, o médico indicou – e executou, após
uma única consulta – os procedimentos de talamotomia e subtalamotomia, os quais, segundo ele,
seriam realizados por meio de uma cirurgia simples, com anestesia local e sem risco algum, não
havendo necessidade de maiores exames ou testes. Após a cirurgia, o quadro físico e neurológico
do paciente piorou significativamente. O paciente não havia sido informado sobre o risco de
ocorrência desse resultado (STJ REsp 1.540.580/DF)
Caso 2. Os pais, testemunhas de Jeová, se opuseram à realização de transfusão de sangue
em seu bebê, que nasceu em condição prematura extrema (com apenas 28 semanas e 6
dias e 1,265 quilogramas) e estava internado na UTI neonatal em um hospital.
Respeitando a recusa dos pais, o médico responsável pelo tratamento do bebê deixou de
realizar a transfusão de sangue, o que resultou na sua morte.
Variação 1. Ignorando a vontade dos pais, o médico responsável realizou a transfusão e
salvou a vida do bebê

(Inspirado no caso: Processo nº 5112276.40.2019.8.09.0051, Goiás, 2019).


CONSENTIMENTO
A) Função dogmática
- Causa supralegal de exclusão da antijuridicidade (dout. maj.)
- Causa de atipicidade da conduta (v.g. Roxin, Siqueira)

B) Pressupostos de validade

1) Disponibilidade?

2) Anterioridade e revogabilidade
3) Capacidade para consentir
- Capacidade penal? (Pierangeli). Civil? (CFM, Recomendação nº 1/2016 )
- Competência para usufruir dos próprios bens jurídicos e exercer o direito à
autodeterminação

- Incapazes: Consentimento por representação – limites e possibilidade de recorrer ao


estado de necessidade

- A opinião do menor deve ser “levada em consideração como um fator cada vez mais determinante,
em função da sua idade e do seu grau de maturidade” (Convenção de Direitos Humanos e
Biomedicina do Conselho da Europa, art. 6º, n. 2, assim como Recomendação CFM n. 1/2016)

- Intervenções executadas em incapazes devem visar ao seu benefício direto (ECA; art. 6º, 1, da
Convenção de Direitos Humanos e Biomedicina e no art. 7º, b, da Declaração Universal sobre
Bioética e Direitos Humanos)
4) Ausência de vícios de vontade (v.g. ameaça, violência, fraude ou erro)

- Dever de esclarecimento para a autodeterminação – deve o medico revelar


previamente ao paciente as informações referentes, principalmente, ao diagnóstico, à
execução e aos riscos do tratamento, bem como eventuais alternativas a ele.

- Art. 34 do CEM: é vedado ao médico “deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o


prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa
lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal”.
- Recomendação no 1/2016 do CFM
CONSENTIMENTO PRESUMIDO x ESTADO DE
NECESSIDADE
• Cons. Pres. = Juízo de probabilidade sobre a verdadeira vontade do titular do bem jurídico no
momento da atuação, quando não é possível obter o seu consentimento.

• Estado de necessidade?

Art. 24 - Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que
não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo
sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.

Art. 146, § 3º - Não se compreendem na disposição deste artigo:


I - a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante
legal, se justificada por iminente perigo de vida;
EUTANÁSIA E SUICÍDIO MEDICAMENTE ASSISTIDO

Caso 1. “Um médico ligou um paciente, que tinha dano cerebral irreversível e estava em estado de
inconsciência também irreversível, a um aparelho de respiração artificial. Dias depois, ao tomar
conhecimento de que nenhum tratamento teria chance de sucesso e de que a interrupção estava
de acordo com a vontade do paciente manifestada anteriormente, retornou e desligou o
respirador, levando-o à morte” (Alemanha, BGHSt 40, 257)
EUTANÁSIA E SUICÍDIO MEDICAMENTE ASSISTIDO

Caso 2. Em setembro de 2012, o médico psiquiatra e neurologista Dr. S havia emitido dois
pareceres referentes à senhora W, de 85 anos, e à senhora M, de 81, atestando a capacidade de
compreensão e julgamento de ambas e concluindo que, sob o ponto de vista psiquiátrico, não
havia objeções para o reconhecimento do genuíno desejo de auxílio para que pudessem suicidar-
se. Uma semana antes do suicídio, as senhoras assinaram um documento, em que deixavam clara
a vontade de colocar fim às suas vidas em paz e recusavam expressamente qualquer tipo de
intervenção para salvamento, caso fossem encontradas desacordadas antes da morte. No dia
designado para o suicídio, as senhoras se encontraram com o acusado, que lhes explicou as
especificidades do medicamento a ser ingerido. As senhoras frisaram que estavam certas da
vontade de tirarem suas vidas e, em seguida, beberam o líquido mortal. Após atestar a morte de
ambas, o médico aguardou um pouco e chamou os bombeiros (Alemanha, BGH 5 StR 132/18)
EUTANÁSIA ATIVA
• eu (bom) e thanatos (morte) = “morte boa”
• Sentido estrito e sentido amplo

SUICÍDIO MEDICAMENTE ASSISTIDO

Art. 121. Matar alguém:


Pena - reclusão, de seis a vinte anos.
§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral (…) o juiz
pode reduzir a pena de um sexto a um terço.

Art. 122. Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou a praticar automutilação ou prestar-lhe


auxílio material para que o faça:
Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos.
EUTANÁSIA PASSIVA
• Médico deixa de realizar procedimentos ordinários (úteis) que visem ao prolongamento da
vida.

ORTOTANÁSIA
• orthos (correto, adequado) e thanatos (morte).
• O médico deixa de realizar medidas extraordinárias e prolongadoras de uma vida que já se
aproxima do fim, permitindo, portanto, ‘que a morte siga seu curso natural’
• Importância dos cuidados paliativos (Princípio fundamental XXII do CEM)

CFM Res. 1805/06. “Art. 1º é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e


tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e
incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.
Art. 135 - Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança
abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente
perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.

Arts. 121 c/c art. 13, § 2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia
agir para evitar o resultado.
EUTANÁSIA INDIRETA

DISTANÁSIA E OBSTINAÇÃO TERAPÊUTICA


DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE

RESOLUÇÃO CFM nº 1.995/2012


• Art. 1º Definir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e
expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não,
receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua
vontade.

• § 3º As diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não


médico, inclusive sobre os desejos dos familiares.
A RESPONSABILIDADE PENAL DO MÉDICO POR
OMISSÃO

Caso 1. “V, com um ano de idade, dera entrada em estado grave no hospital, precisando de
atendimento urgente. O clínico ali presente não era pediatra e encaminhou V e sua mãe ao setor
de pediatria. A médica pediatra de plantão (adiante M), não estava presente. Um recepcionista do
hospital instruiu a mãe a aguardar uma ambulância para remoção, mas em razão da demora, a
criança foi removida para outro hospital por uma viatura da radiopatrulha, ali chegando com
quadro agravado, que conduziu ao óbito” (ESTELLITA, Heloisa. Contornos da responsabilidade
omissiva imprópria dos médicos plantonistas. In.: SIQUEIRA, Flávia; ESTELLITA, Heloisa
(org.). Direito Penal da Medicina. São Paulo: Marcial Pons, 2020) (STF, RHC 78.707, Segunda
Turma, DJ 10/10/2003).
FUNDAMENTOS DA PUNIBILIDADE DO MÉDICO POR OMISSÃO IMPRÓPRIA

• Posição de garantidor (art. 13 § 2º, CP)


• Resultado
• Omissão
• Possibilidade físico-individual de agir
• Não prática da ação físico-individualmente possível
• Nexo causal (ou quase-causal) (art. 13 caput CP)
• Imputação objetiva (= não diminuição de um risco juridicamente desaprovado e realização
desse risco no resultado)
Qual o fundamento da posição de garante do medico?

Art. 13,§ 2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar
o resultado. O dever de agir incumbe a quem:
a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;
b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado;
c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.

• Garantidor de proteção
Qual o fundamento da posição de garante do medico?

• Profissão médica ou lei (?) (Bitencourt, Sporleder de Souza; cf. TJMG RESE
1.0114.05.055657-9/001)
• Contrato (Regis Prado)
Jurisprudência: há também decisões sem fundamento (cf. TJMG. RESE 1.0153.07.070027-0/001)

• Assunção fática da função de proteção: domínio sobre o desamparo da vítima, que


decorre do ato de confiança do próprio paciente ou de um garante originário

• E os médicos plantonistas?
FUNDAMENTOS DA PUNIBILIDADE DO MÉDICO POR OMISSÃO DE SOCORRO

Art. 135 - Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança
abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente
perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
ERRO MÉDICO E CRIMES CULPOSOS NO EXERCÍCIO DA
MEDICINA
Caso 2. O médico M realizou uma cirurgia de lipoaspiração na paciente e, durante o procedimento,
perfurou, com a cânula utilizada no procedimento, dois órgãos vitais e uma artéria. Em decorrência
disso, a vítima teve uma hemorragia e morreu (TJSP Apelação Criminal 0005593-63.2014.8.26.0052).
ERRO MÉDICO E CRIMES CULPOSOS NO EXERCÍCIO DA
MEDICINA
Caso 3. C é médico cirurgião e A médico anestesista, sendo que ambos trabalham em um mesmo
Hospital. Antes de C e A realizarem uma cirurgia em conjunto, A se omitiu ao não checar as
mangueiras da mesa de anestesiologia e, por estarem cruzadas, acabou por ministrar no paciente P
doses de protóxido ao invés de oxigênio, o que ocasionou a morte de P (CESANO, José Daniel. Los
delitos de homicidio y lesiones imprudentes por mala praxis médica. Córdoba: Lerner, 2012, p. 123).

Variação 1. A anestesia foi realizada corretamente por A que, ao invés de permanecer na sala de
cirurgia controlando os sinais vitais de P, foi para outra sala de cirurgia e permaneceu atendendo outro
paciente durante toda a cirurgia de P. Houve uma complicação por falta de oxigenação cerebral no
meio do procedimento cirúrgico de P, a qual deveria ter sido constatada pelo anestesista, e diante disso
P entrou em coma e assim permaneceu por mais de 2 anos até vir a falecer de atrofia cerebral (SILVA
SÁNCHEZ, Jesús María. Aspectos de la responsabilidade penal por imprudência de médico
anestesista. Derecho y Salud, n. 2, jul-dez,1994, p. 43).
A violação de um dever objetivo de cuidado ou criação de risco não permitido

• “Via de regra, o dever objetivo de cuidado está fixado em normas administrativas ou disciplinares.
No caso dos médicos, a culpa decorrerá sobretudo se a sua atividade não corresponder ao que
estatui a respectiva lex artis” (SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de. Direito Penal Médico. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 27).
Divisão de trabalho e princípio da confiança

“O indivíduo, ao atuar, não precisa preocupar-se a todo o tempo com a possível conduta incorreta de
terceiros que possa ensejar a ocorrência de um resultado lesivo, podendo confiar que os demais
participantes da atividade irão agir de acordo com as determinações normativas”. SIQUEIRA, Flávia.
O princípio da confiança no Direito Penal. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016, p. 216.

Limites à confiança
Caso 1. A paciente P, de 18 anos, possui anemia falciforme e, durante uma crise
álgica, dirige-se ao hospital. Lá, P recebe a notícia de que somente por meio de
uma transfusão de sangue será possível salvar a sua vida. P, no entanto, é
testemunha de Jeová e, em razão de sua convicção religiosa, recusa-se
veementemente a receber a transfusão. Não obstante, o médico A, visando ao
salvamento da vida de P, submete-a ao procedimento contra a sua vontade,
salvando-lhe a vida.
Variação 1. A respeita a vontade de P e não realiza a transfusão de sangue. P
falece.

(Inspirado no caso: STF HC 268459/SP)


Caso 2. Os pais, testemunhas de Jeová, se opuseram à realização de transfusão de sangue
em seu bebê, que nasceu em condição prematura extrema (com apenas 28 semanas e 6
dias e 1,265 quilogramas) e estava internado na UTI neonatal em um hospital.
Respeitando a recusa dos pais, o médico responsável pelo tratamento do bebê deixou de
realizar a transfusão de sangue, o que resultou na sua morte.
Variação 1. Ignorando a vontade dos pais, o médico responsável realizou a transfusão e
salvou a vida do bebê

(Inspirado no caso: Processo nº 5112276.40.2019.8.09.0051, Goiás, 2019).


Caso 3. A paciente P foi submetida, durante o parto, a uma episiotomia, que consiste em
um “corte feito na abertura da vagina para ampliar o canal de parto”, sem
consentimento. O médico M argumentou que esse seria um procedimento indicado e
necessário para a “prevenção de complicações materno-fetais”. No entanto, a paciente
havia negado categoricamente a possibilidade de realização do procedimento. P disse
preferir correr os riscos da não realização do procedimento a se submeter a ele. A
despeito da recusa, o médico M realizou a episiotomia e, posteriormente, a episiorrafia
(sutura do corte).

(Inspirado no caso: TJSP Apelação Cível no 1014301-14.2016.8.26.0053)


Caso 4. O paciente havia sido acometido por traumatismo crânio encefálico em virtude de um
acidente de trânsito e, mesmo após ter realizado intenso tratamento, permaneceu com sequelas
neurológicas e déficit motor, “caracterizado, entre outros, por incapacidade total no membro
superior (mão em garra) e inferior, e tremor no membro superior direito”. Na tentativa de
corrigir essas sequelas, o paciente recorreu a um tratamento medicamentoso, que não produziu
os efeitos esperados. Diante do insucesso de seus esforços, resolveu procurar o médico M para
avaliar a possibilidade de realizar uma cirurgia. Na ocasião, o médico indicou – e executou, após
uma única consulta – os procedimentos de talamotomia e subtalamotomia, os quais, segundo ele,
seriam realizados por meio de uma cirurgia simples, com anestesia local e sem risco algum, não
havendo necessidade de maiores exames ou testes. Após a cirurgia, o quadro físico e neurológico
do paciente piorou significativamente. O paciente não havia sido informado sobre o risco de
ocorrência desse resultado (STJ REsp 1.540.580/DF)
Caso 5. “Um médico ligou um paciente, que tinha dano cerebral irreversível e estava em
estado de inconsciência também irreversível, a um aparelho de respiração artificial.
Dias depois, ao tomar conhecimento de que nenhum tratamento teria chance de sucesso
e de que a interrupção estava de acordo com a vontade do paciente manifestada
anteriormente, retornou e desligou o respirador, levando-o à morte” (Alemanha,
BGHSt 40, 257)
Caso 6. Em setembro de 2012, o médico psiquiatra e neurologista Dr. S havia emitido
dois pareceres referentes à senhora W, de 85 anos, e à senhora M, de 81, atestando a
capacidade de compreensão e julgamento de ambas e concluindo que, sob o ponto de
vista psiquiátrico, não havia objeções para o reconhecimento do genuíno desejo de
auxílio para que pudessem suicidar-se. Uma semana antes do suicídio, as senhoras
assinaram um documento, em que deixavam clara a vontade de colocar fim às suas vidas
em paz e recusavam expressamente qualquer tipo de intervenção para salvamento, caso
fossem encontradas desacordadas antes da morte. No dia designado para o suicídio, as
senhoras se encontraram com o acusado, que lhes explicou as especificidades do
medicamento a ser ingerido. As senhoras frisaram que estavam certas da vontade de
tirarem suas vidas e, em seguida, beberam o líquido mortal. Após atestar a morte de
ambas, o médico aguardou um pouco e chamou os bombeiros (Alemanha, BGH 5 StR
132/18)
Caso 7. “V, com um ano de idade, dera entrada em estado grave no hospital, precisando
de atendimento urgente. O clínico ali presente não era pediatra e encaminhou V e sua
mãe ao setor de pediatria. A médica pediatra de plantão (adiante M), não estava
presente. Um recepcionista do hospital instruiu a mãe a aguardar uma ambulância para
remoção, mas em razão da demora, a criança foi removida para outro hospital por uma
viatura da radiopatrulha, ali chegando com quadro agravado, que conduziu ao óbito”
(ESTELLITA, Heloisa. Contornos da responsabilidade omissiva imprópria dos médicos
plantonistas. In.: SIQUEIRA, Flávia; ESTELLITA, Heloisa (org.). Direito Penal da
Medicina. São Paulo: Marcial Pons, 2020) (STF, RHC 78.707, Segunda Turma, DJ
10/10/2003).
Caso 8. O médico M realizou uma cirurgia de lipoaspiração na paciente e, durante o
procedimento, perfurou, com a cânula utilizada no procedimento, dois órgãos vitais e
uma artéria. Em decorrência disso, a vítima teve uma hemorragia e morreu (TJSP
Apelação Criminal 0005593-63.2014.8.26.0052).
Caso 9. C é médico cirurgião e A médico anestesista, sendo que ambos trabalham em um
mesmo Hospital. Antes de C e A realizarem uma cirurgia em conjunto, A se omitiu ao
não checar as mangueiras da mesa de anestesiologia e, por estarem cruzadas, acabou por
ministrar no paciente P doses de protóxido ao invés de oxigênio, o que ocasionou a
morte de P (CESANO, José Daniel. Los delitos de homicidio y lesiones imprudentes por
mala praxis médica. Córdoba: Lerner, 2012, p. 123).

Variação 1. A anestesia foi realizada corretamente por A que, ao invés de permanecer na


sala de cirurgia controlando os sinais vitais de P, foi para outra sala de cirurgia e
permaneceu atendendo outro paciente durante toda a cirurgia de P. Houve uma
complicação por falta de oxigenação cerebral no meio do procedimento cirúrgico de P, a
qual deveria ter sido constatada pelo anestesista, e diante disso P entrou em coma e
assim permaneceu por mais de 2 anos até vir a falecer de atrofia cerebral (SILVA
SÁNCHEZ, Jesús María. Aspectos de la responsabilidade penal por imprudência de
médico anestesista. Derecho y Salud, n. 2, jul-dez,1994, p. 43).

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