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All content following this page was uploaded by Lucimar Rosa Dias on 13 December 2018.
O texto que abre este ensaio é bastante representativo dos conflitos raciais presentes
na escola, geralmente tratados como casos isolados e individualizados e não como produto
de uma sociedade na qual o racismo é estruturante das relações sejam elas, sociais, de
trabalho ou como vimos escolares. Há um número cada vez mais crescente de
pesquisadores na área de educação tentando explicar e explicitar os efeitos do racismo na
educação. Estes estudos de caráter mais antropológico já conseguiram identificar como a
criança negra se vê e se avalia (Oliveira: 1993), como os livros didáticos refletem o racismo
(Silva: 1987), como a criança e adolescente negro percebe o racismo na escola (Oliveira:
1992), como alunos negros se auto-representam (Silva: 1993), como é a relação pedagógica
de professoras negras e seus alunos (Gomes; 1994), como crianças de cinco e seis anos
representam as diferenças raciais (Godoy: 1996) como professoras tratam crianças negras e
brancas (Cavalleiro: 1998) e como é possível desenvolver metodologias de ensino que
abordem esta temática com crianças de cinco e seis anos (Dias: 1998). Evidentemente que
os trabalhos citados apenas representam parte da produção acadêmica das décadas de 80 e
90 e apesar de sua importância e diversidade muito ainda falta para dar conta da
complexidade das relações raciais brasileiras e a forma pela qual o racismo se expressa na
escola.
1
Lucimar Rosa Dias - Doutoranda pela Faculdade de Educação da USP/ Bolsista
Internacional da Fundação Ford / Lucimar_dias@uol.com.br
2
2
HASENBALG, Carlos. SILVA, Nelson do Valle. Estrutura social, mobilidade e raça. São Paulo,
Vértice/Iuperj, 1988.
3
ROSEMBERG, Fúlvia. Diagnóstico sobre a situação educacional de negros (pretos e pardos) no estado de
São Paulo. 2 vols., São Paulo, Fundação Carlos Chagas.
4
HENRIQUES, Ricardo. Raça & Gênero nos sistemas de ensino: os limites das políticas universalistas em
educação, Unesco, Brasília, 2002.
5
HASENBALG, Carlos. SILVA, Nelson do Valle. Raça e oportunidades educacionais no Brasil, Estudos
Afro-asiáticos, nº18, Rio de Janeiro, 1990.
6
HENRIQUES, Ricardo. Raça & Gênero nos sistemas de ensino: os limites das políticas universalistas em
educação, Unesco, Brasília, 2002, p.93.
3
O que seguramente pode ser afirmado a partir das conclusões citadas é que raça é
um problema a ser discutido. A realidade apresentada pelas pesquisas levou-me a procurar
compreender como o sistema legislativo educacional reflete esta tensão racial vivida por
negros e brancos no cotidiano escolar. A legislação ignora a questão de raça? Haveria nas
LDBS alguma referência à raça? Que atores se fizeram presentes nestas discussões? Na
tentativa de responder parcialmente a estas questões, tomarei como modelo a importante
coletânea de Leis Brasileiras7: Federais, Estaduais e Municipais, trabalho realizado pelo
advogado e professor Hédio Silva Junior, no qual verificou o tratamento jurídico dado à
questão da igualdade racial.
Ao examinar a Lei Orgânica de Belo Horizonte, eis que nos deparamos com nada
menos do que um capítulo intitulado ‘Das Populações Afro-brasileiras’, contendo
um conjunto de normas programáticas destinadas ao enfrentamento do racismo e da
discriminação racial em âmbito da capital mineira. (...) Não obstante a devida
reverência às peculiaridades mineiras, pareceu-nos bastante razoável a hipótese de
que tal fenômeno pudesse ser localizado em outras cidades e regiões do país.
A metodologia utilizada foi: leitura detida e cuidadosa das leis 4.024/61, 5692/71 e
a 9394/96 procurando as palavras: negro, afro-brasileiro, indígena, índio, raça, cor, etnia,
minoria, cultura negra ou indígena, igualdade, desigualdade, tolerância, discriminação,
preconceito, segregação e racismo, todas como indicativos do tratamento da questão de
raça8 , para a compreensão e afirmação do que de fato a lei contém neste aspecto. Antes de
detalhar os resultados desta incursão pelas leis, vale a pena uma visita aos tempos da
Primeira República (1890) a fim de compreendermos o significado que a questão de raça
adquire, ainda que secundariamente ao aparecer nos textos das Diretrizes e Bases da
Educação.
7
Para maiores detalhes ver SILVA JR., Hédio. Anti-Racismo – Coletâneas de Leis Brasileiras- Federais,
Estaduais e Municipais, ed. Oliveira Mendes Ltda, S. Paulo/SP,1998
8
Esta metodologia foi utilizada por Hédio Silva Jr.
4
nação devia-se às origens raciais de sua população. Por isso, esse debate se fez presente
dentre as preocupações dos políticos e intelectuais. Schwarcz, disse o seguinte sobre esse
debate:
“É ponto pacífico, hoje, entre nós, que só nos convém a imigração branca. Não
porque o Brasil seja racista. Mas porque, se quisermos fazer prosseguir o
branqueamento (...) deveremos auxiliar esta tendência, abrindo nossas portas à
imigração branca(...) Isso não quer dizer que proibamos a entrada de elementos de
cor, isoladamente, mesmo em caráter permanente; significa apenas que desejamos ser
9
SCHWARCZ, Lilia K. Mortiz. Dando nome às diferenças. São Paulo: Humanitas, 2001, p.23.
10
VEINER, Carlos B. Estudos Afro-Asiáticos/ Cadernos Candido Mendes nº18, Maio, 1990 Rio de Janeiro,
RJ- Estado e raça no Brasil. Notas Exploratórias. p.106
5
A escola pública, cujas portas, por ser escola gratuita, se franqueiam a todos
sem distinção de classes, de situações, de raças e de crenças, é, por definição
contrária e a única que está em condições de se subtrair a imposição de
qualquer pensamento sectário, político ou religioso. (grifo nosso)14
Essa fala se repete nos editoriais e artigos publicados no livro Diretrizes e Bases da
Educação (1960) organizado por Roque Spencer Maciel de Barros, no qual constam as
discordâncias dos educadores em relação ao projeto apresentado pelo Dep. Lacerda, bem
como o seu substitutivo. Maciel de Barros faz uma defesa eloqüente da escola pública:
11
NEIVA, Arthur Hehl. In. Veiner, Carlos B. Estudos Afro-Asiáticos/ Cadernos Candido Mendes nº18, Maio,
1990 Rio de Janeiro, RJ- Estado e raça no Brasil. Notas Exploratórias Ibidem, p.111.
12
Revista de divulgação da política do Conselho de Imigração e Colonização criado pelo decreto-lei nº 406
(4/5/1938)
13
O projeto original deu entrada no Congresso em 29 de outubro de 1948
14
AZEVEDO, Fernando. Manifesto dos Educadores: mais uma vez convocados. In: Diretrizes e Bases da
Educação. São Paulo, Livraria Pioneira Editora, 1960 p.58-82.
6
(...) a escola pública, ao contrário, existe exatamente para todos. Ela é uma
fonte de comunhão, um centro de aprendizagem de respeito pelas crenças
alheiras, precisamente porque é aberta para todos. Nela não há ricos ou
pobres, católicos, protestantes ou ateus, pretos, brancos ou amarelos, filhos de
imigrantes recém-chegados ou filhos de aristocráticas famílias tradicionais:
nela há apenas seres humanos, pessoas ou projetos de pessoas. (grifo nosso)15
No caso do projeto de Lei nº4.024 aprovado em 1961 está posto no Título I – Dos
Fins da Educação Art.1º, alínea g - A Educação nacional inspirada nos princípios de
liberdade e nos ideais de solidariedade humana tem por fim:
15
BARROS. Roque Spencer Maciel de. Da escola Pública e da Particular. In: Diretrizes e Bases da Educação,
São Paulo, Livraria Pioneira Editora, 1960. p. 119-123
7
jornais e pequenos grupos buscavam a inserção desta população nos diversos lugares
sociais, sobretudo na escola.
O que podemos depreender destes discursos é que, raça fez parte das preocupações
dos educadores e foi uma dimensão considerada no universo da discussão da LDB.
Contudo observamos que essa dimensão ocupou papel secundário, servindo mais como
recurso discursivo, isto é, ao defender um ensino para todos, não ignoravam esses
educadores que além da classe a dimensão raça era fator de diferenciação no processo de
escolaridade, contudo, não foi possível encontrar nos vários artigos da coletânea um sequer
que se detivesse na análise do quanto à população negra era ao final a destinatária principal
desta escola pública e gratuita.
O que compreendo, visto que apenas dez anos se passaram e neste período o país
enfrentava forte repressão e também o fato da mudança da lei ter sido fragmentada,
primeiro a lei 5.540/68 que tratou do Ensino Superior e depois a 5692/71 correspondentes
ao ensino de primeiro e segundo graus. Essas particularidades não possibilitaram o intenso
debate visto no processo de aprovação da primeira lei. Na questão que se refere à raça nada
muda na 5692/71, mantém-se o texto dos fins da educação a condenação ao preconceito
de raça.
16
Mais detalhes ver Savianni A Nova Lei da educação; LDB- trajetória, limites e perspectivas, São Paulo, Ed.
Autores Associados,1997, p. 21
8
Mas vem aí a lei 9394/96, gestada após a chamada Constituição de 1988, pós-
abertura política e intensa movimentação da sociedade civil. O movimento pró-nova LDB
começa em 1986 quando a IV Conferência Brasileira de Educação aprova a “Carta de
Goiânia” com proposições para o Congresso Nacional Constituinte. E em 1987 deflagra-se
o movimento intenso de discussão das propostas de uma nova LDB. Como disse
anteriormente, o processo de discussão da LDB cruza-se com outros movimentos e no caso
em análise a questão de raça nas LDBS, têm dois importantes marcos impulsionadores: o
Centenário da Abolição, 1988 e os 300 da Morte de Zumbi dos Palmares, 1995.
17
Zumbi, tricentenário da Morte de Zumbi dos Palmares.
18
Por uma política nacional de combate ao racismo e à desigualdade: Marcha Zumbi dos Palmares, contra o
racismo, pela cidadania e pela vida – Brasília, Cultura Gráfica e Editora Ltda, 1996.
19
Para maiores detalhes sobre leis e educação ver Hédio SILVA JR. Discriminação racial nas escolas: entre a
Lei e as práticas sociais, Unesco, 2002.
9
relação a LDB 4.024/61, nada devendo aos educadores e suas entidades, pois em suas
preocupações não constava a questão de raça.
Prova disso foi o primeiro projeto de LDB apresentado em dezembro de 1988 como
resultado de amplas discussões dos educadores progressistas realizadas na XI Reunião
Anual da ANPED em março de 1988 e na V Conferência Brasileira de Educação em agosto
de 1988. No texto apresentado no Título I que trata dos fins da educação, simplesmente,
desaparece o item que condena o preconceito de raça. A centralidade está na questão de
classe, apesar desta também não ser explicitada. Mantém-se a questão da igualdade, da
unidade nacional, mas os educadores progressistas ignoram a questão de raça como um dos
objetivos da educação democrática e para todos como contavam em seus slogans de luta.20
20
Título I Dos Fins da Educação Art.1º- EDUCAÇÃO Nacional: a) inspirada nos ideais de igualdade e de
liberdade, tem por fim a formação de seres humanos plenamente desenvolvidos, capazes, em conseqüência,
de compreender os direitos e deveres da pessoa humana, do cidadão, do Estado e dos diferentes organismos
que compõem a sociedade; b) inspirada nos ideais democráticos, visa colocar cada cidadão brasileira na
condição de poder ser governante e de controlar quem governa; c) inspirada nos ideais de solidariedade
humana, promoverá o fortalecimento da unidade nacional e a solidariedade internacional, assim como a
preservação, difusão e expansão do patrimônio cultural da humanidade; d) inspirada nos ideais de bem-estar
social, tem por objetivo o preparo dos indivíduos para o domínio dos recursos científicos e tecnológicos que
lhes permitam utilizar as possibilidades do meio em função do bem comum.
21
Mais detalhes ver Savianni A Nova Lei da educação; LDB- trajetória, limites e perspectivas, São Paulo, Ed.
Autores Associados,1997, p.57
10
É muito pouco diante de toda a produção existente sobre a tensão no Brasil no que
se refere a raça e em especial as condições da população negra, mas representa um avanço
se considerada a total omissão no projeto apresentado pelas entidades dos professores. Vale
prestar atenção na diluição ou ambigüidade do tratamento dado a questão. Quais culturas?
A quais raças e etnias está se referindo esse inciso? Obviamente que a idéia do texto é ao
mesmo tempo dar uma resposta para a sociedade organizada em torno desta questão e
manter o pacto de não explicitá-la. Como no projeto anterior, assegura-se às comunidades
indígenas No Capítulo IX - Do Ensino Fundamental Art.48 inciso I a utilização de suas
línguas e ainda processos próprios de aprendizagem.22
Bem, mas a história não termina aí, o projeto Jorge Hage terá uma trajetória tortuosa
que Saviani conta em detalhes no seu livro A Nova lei da Educação: LDB-trajetória, limites
22
(grifo nosso).
11
e perspectivas. É importante dizer que nossa análise, diferente da de Saviani, não está
detida na lei em sua totalidade e o quanto de avanço ou retrocesso ela trouxe à Educação
Brasileira, segundo Savianni, esta lei é fruto de uma “manobra regimental”., o que nos dá
uma idéia da opinião do autor sobre a lei que resultante deste movimento.
Neste artigo importa-nos saber como esta lei incorpora a questão de raça. Para isso
analisamos todos os seus artigos. Pois bem, no Título II -Dos princípios e Fins da Educação
Nacional, não volta à determinação prevista na lei 4.024/64 que condenava o preconceito
de raça. O que temos é uma menção no Art.3 inciso IV de - respeito à liberdade e apreço
a tolerância. Tolerância é uma palavra bastante abrangente, mas sabemos que tem sido
utilizada, na atualidade em discussões sobre o impacto gerado na interação entre as
diferentes culturas, povos, sobretudo em suas diferenças raciais. De acordo com o Relatório
da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento:
23
CUÉLLAR, Javier Pérez (org.) Nossa diversidade criadora: Relatório da Comissão Mundial de Cultura e
Desenvolvimento/UNESCO Campinas, SP, Papirus, Brasília: Unesco, 1997 p. 70.
12
e etnias para a formação do povo brasileiro. O texto quase que se repete, mas neste caso
fica claro de quais raças ou etnias está se falando, nova evidência de que existe uma
questão racial no Brasil e que os legisladores tiveram que considerá-la, demonstrando um
avanço no texto da lei 9394/96 em comparação ao apresentado por Jorge Hage, que atribuo
a forte participação de entidades do movimento negro junto a parlamentares
comprometidos ou sensíveis à luta pela igualdade racial.
Como podemos verificar na leitura do Art. 26. §4º da lei 9395/96. O ensino de
História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias
para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e
européia. A explicitação de que a nação brasileira é constituída de culturas e etnias
diferentes e que isto merece atenção pedagógica está colocada e de forma mais alviçareira
que no projeto Jorge Hage.
Como temos analisado, todo produto da lei que trata da questão de raça é gerado a
partir de movimentos provocados pelos atores do movimento negro, em que pese o projeto
de lei ter sido apresentado em 1999, a sua aprovação no início do governo Lula
(09.01.2003) coincide com dois fatos, o primeiro é que o então candidato havia assumido
compromissos públicos de apoio à luta da população negra e o segundo é que anunciadas as
pastas, não havia nenhuma que tratasse especificamente desta população.
não ser pressionado de imediato por este seguimento da sociedade que ao meu ver poderia
causar constrangimentos ao início da gestão Lula. Parece que a estratégia foi acertada, mas
não impediu que as pressões internas e externas impedissem a criação do prometido órgão
responsável por promoção de igualdade racial no país. Cria-se na estrutura de governo a
SEPPIR- Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial no dia 21 de
março de 2003, data em que se comemora o dia internacional contra a discriminação racial.
Parece-me que para resolver estas questões é preciso dar dois passos sempre. O
primeiro é a lei, o segundo é o estabelecimento de políticas públicas que as efetivem.
Quanto tempo decorre entre um passo e o outro será definido pela capacidade de
intervenção dos movimentos e a permeabilidade que tais intervenções tenham junto aos
governos. Fundamental é saber que do discurso de escola sem distinção chegamos a escola
que começa a distinguir para compensar processos desiguais entre a população brasileira.
Não tratamos aqui das cotas para negros nas universidades que têm ocupado significativo
espaço na mídia e em artigos acadêmicos e já existem várias leis de nível estadual que
poderíamos estudar, enfim, as possibilidades que a lei da educação abriu ao mencionar a
questão de raça merecem uma investigação que este ensaio apenas começou.
BIBLIOGRAFIA
APPLE, Michael W. Políticas de direita e branquidade: a presença ausente da raça nas
reformas educacionais, tradução Maria Isabel Edelweiss Bujes, Revista Brasileira de
Educação, S. Paulo, nº 16, 2001.
AZEVEDO, Fernando. Manifesto dos Educadores: mais uma vez convocados. In:
Diretrizes e Bases da Educação. São Paulo, Livraria Pioneira Editora, 1960.
BARROS. Roque Spencer Maciel de. Da escola Pública e da Particular. In: Diretrizes e
Bases da Educação, São Paulo, Livraria Pioneira Editora, 1960.
CUÉLLAR, Javier Pérez (org.) Nossa diversidade criadora: Relatório da Comissão Mundial
de Cultura e Desenvolvimento/UNESCO Campinas, SP,Papirus, Brasília:Unesco,1997p.70.
24
HENRIQUES. Ricardo.Raça & Gênero nos sistemas de ensino: os limites das políticas universalistas na
educação, UNESCO, Brasília, 2002, p.47.
16
SAMARA, Eni de Mesquita (org.). Racismo & racistas: trajetória do pensamento racista no
Brasil, São Paulo, SP Ed. Humanitas/FFLCH/USP, 2001.