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Universidade de Brasília

Instituto de Ciências Sociais


Departamento de Sociologia

Monografia de Graduação

Viagens na metrópole:
Jogos e estratégias nos ônibus de Brasília

Monografia apresentada ao Departamento de


Sociologia da Universidade de Brasília como
um dos pré-requisitos para obtenção do grau
de Bacharel em Ciências Sociais, com
habilitação em Sociologia.

________________________________________________
Banca examinadora:
_______________________
Dr. Edson Silva de Farias (Orientador)
_______________________
Drª. Analia Laura Soria Batista
________________________________________________

Marcos Henrique da Silva Amaral

Brasília, dezembro de 2009


Resumo

Brasília é uma metrópole marcada aprioristicamente pelo seu Plano Piloto inicial,
pensado para abrigar a classe política e o funcionalismo público federal e, posteriormente,
pelo seu contínuo processo de dispersão — expressado na formação de cidades satélites —
que representa em si mesmo a formação da ambivalência centro/periferia. Embora tais
processos de dispersão sejam contínuos, o projeto original de Brasília — o cruzamento dos
Eixos Monumental e Rodoviários, que formam duas Asas — continua se mostrando o centro
do cotidiano e o principal marco cognitivo dos habitantes da metrópole: é onde se concentra
grande parte da disponibilidade de empregos e ensino; bens e serviços. Diante dessa
configuração, “deslocar-se na metrópole” é parte fundamental da vida cotidiana dos
brasilienses. Mais ainda, os ônibus aparecem neste contexto como principal elo entre os
diversos espaços urbanos em Brasília. É sobre os rituais diários de uso do transporte público
na cidade que esta monografia se debruça. Partindo da trama metropolitana especialmente
peculiar da capital brasileira e dos padrões de deslocamento neste contexto, o objetivo é tentar
precisar de que forma tal trama se relaciona com os modos de uso dos ônibus e — de forma
inversa — mostrar os rituais de uso desse tipo de transporte público como elucidativos da
trama brasiliense, principalmente no que tange à separação entre centro e periferia. O ônibus,
neste contexto, pode ser tomado como um não-lugar, noção trazida por Marc Augé e que,
aqui, buscamos problematizar com as noções de circulação quente e de circulação fria,
pontuadas a partir de etnografias feitas em três linhas de ônibus em Brasília. Trata-se aqui,
portanto, de uma análise do cruzamento de trajetórias biográficas nos ônibus de Brasília, no
sentido de elucidar as formas peculiares de sociabilidade dessa trama — enfocando as formas
de interação que se configuram e de desconfiguram anônima e continuamente —, sem
negligenciar o seu aspecto elucidativo no que tange à trama metropolitana de Brasília,
principalmente na ambivalência formada pelo par centro/periferia.
Abstract

Brasília is a metropolis marked, at first sight, by its original plan — the Plano
Piloto area —, thought for sheltering the political class and the government servants and,
posteriorly, by its continuous dispersion process — expressed at the satellite towns formation
— that represents, by itself, the formation of the center/periphery ambivalence. Although
these dispersion processes are continuous, the original project of Brasília — the intersection
between the Eixo Monumental and the Eixo Rodoviário, that forms the two (North and South)
Wings — carries on being the center of the quotidian and the principal cognitive mark for the
metropolis habitants: it’s the space where is concentrated the most part of the jobs and
schools; goods and services. Through this configuration, “travel in the metropolis” is a
fundamental part of the “brasilienses” quotidian life. Even more, the buses are, in this context,
the principal link between the urban spaces of Brasília. It’s over the everyday rituals of using
the public transportation in this city, that this monograph talks about. Using the especially
peculiar metropolitan plot of the Brazilian capital and the dislocation patterns at this context,
my main effort is a trial to accurate the form that this plot is associated to the ways of using
the bus and — in a inverse mode — show the rituals of using this kind of public
transportation as elucidative characters of the Brasília plot, principally if we want to think
about the separation between center and periphery. Buses are, thus, nonplaces, a category
brought by Marc Augé that we tried to put in doubt with the notions of hot circulation and
cold circulation, created from ethnographies I’ve made at three bus lines in Brasília.
Therefore, it’s an analysis of the biographic trajectories crossing in the Brasília buses, with
the objective of elucidate the peculiar forms of sociability in this plot, without neglecting its
elucidative aspect about the center/periphery pair.
Sumário

Agradecimentos ...................................................................................................................... 04
Lista de tabelas, mapas e fotos ................................................................................................ 05

Prólogo .................................................................................................................................... 06
Introdução ............................................................................................................................... 07

Capítulo I – A trama metropolitana do Distrito Federal ......................................................... 16


Um mapa ......................................................................................................... 16
Centro e periferia ............................................................................................. 22
Uma metrópole ................................................................................................ 28
Deslocar-se na metrópole ................................................................................ 30
Uma forma de circulação “fria” e uma forma de circulação “quente” ............ 36

Capítulo II – Interações ........................................................................................................... 46


Silêncio comunicativo ..................................................................................... 50
Saindo da rotina ............................................................................................... 52
Músicos, vendedores e pedintes ...................................................................... 54

Considerações finais ............................................................................................................... 60


Epílogo .................................................................................................................................... 64
Referências bibliográficas ...................................................................................................... 65
Agradecimentos

Aos meus pais e à minha irmã, pelo amor e pelo constante apoio.
A todos os “companheiros de viagem” que, de alguma forma, colaboraram com a
pesquisa, por meio de conversas informais durante o percurso.
Aos cobradores e motoristas, pelas vezes em que pude usar os ônibus
gratuitamente, e pelas informações e disponibilidade em ajudar.
Às “tias” Helena, Cláudia, Nelci, Zélia e Denise, por serem o começo de tudo.
Ao professor Edson, meu orientador, por me mostrar que há sempre muito a
aprender e a fazer, pela atenção, pela paciência, pelas conversas, pela confiança. Fica aqui
minha admiração.
À professora Sayonara Leal, pela disponibilidade em conversar e em sugerir
novas leituras e novos caminhos.
Às “meninas”, Denise, Isabella, Millena, Carolzinha, Raquel e Pancha, por terem
sempre caminhado comigo; pelas conversas e pela amizade que cresceu ao longo dessa
caminhada. Muito carinho e companheirismo.
Ao Fred, à Carol, à Thamires, ao Fellipe e ao Saulo, que tão importante foram no
final desse percurso, pela força, amizade e por cada sorriso.
Ao Luciano, ao qual considero um irmão, pelos momentos de conversa
(discussão), reflexão e divagações musicais, que sempre me ensinaram muito.
Companheirismo e força.
À Vanessa, por todo apoio, pela paciência e pelo amor. Muita alegria
compartilhada.
Aos muitos que fizeram parte dessa jornada e que, de alguma forma, tiveram
fundamental importância nela: Debora, Luisa, Juliana, Fernanda e Maisa Torres; Kaline,
Jader, Jadson e Natália; Lucas, Eduardo, Beto, Diane, Ranna, Letícia, Rafito, Ju Freitas,
Felipe, Robertinho, Gaby, Paloma e Bruno; Ju, Gunter, Isis, Deyvid, Tiuipa, Rick e Carlinha;
Mel, Érika, Daiane…
Cada uma dessas pessoas são parte de mim. A cada uma dessas, devo dizer que eu
sou essencialmente o que vocês fizeram de mim. A cada uma, meu carinho.

4
Lista de tabelas, mapas e fotos

Tabela 01: População urbana do Distrito Federal segundo Regiões Administrativas ............ 19

Tabela 02: Distâncias Rodoviárias entre algumas Regiões Administrativas .......................... 20

Tabela 03: Locais de Trabalho e de Ensino da população que trabalha ou estuda (DF) ........ 24

Tabela 04: Distribuição dos Domicílios, por Classes de Renda Domiciliar (DF) .................. 26

Tabela 05: Repartição das viagens diárias entre modos motorizados por RAs ...................... 33

Mapa 01: Distrito Federal, Plano Piloto .................................................................................. 21

Foto 01: Ideogramas e textos típicos para delimitar assentos preferenciais nos ônibus de
Brasília. Foto tirada na linha 355 ............................................................................................ 45

Foto 02: Disposição inicial dos passageiros no ônibus, atentando para a preferência em sentar-
se sozinho e próximo à janela ................................................................................................. 45

Foto 03: O comediante Marquinho Candango em uma de suas performances. Até a roupa
colorida é importante para o sucesso da apresentação, uma vez que o diferencia dos
passageiros de ônibus. A foto foi tirada na linha 300, às 18h ................................................. 59

Foto 04: O comediante Marquinho Candango, na hora de “passar o chapéu” ....................... 59

5
Prólogo

O ônibus vazio parte do terminal rodoviário: o motorista, o cobrador e eu. Na


primeira parada, entram um jovem, de mochila — aparentando ser estudante —, e uma
mulher grávida. O jovem retira seu cartão-passe de dentro da mochila e aciona a catraca
eletrônica, escolhendo um lugar próximo à janela para sentar-se, colocando um fone de
ouvido em seguida. A mulher grávida ocupa um dos assentos à frente do ônibus, pintado de
vermelho, indicando ser reservado às grávidas, aos idosos e aos deficientes.
(…)
Após algumas paradas, o ônibus está lotado. O cobrador faz palavras-cruzadas,
enquanto os sete passageiros que vão de pé buscam equilibrar-se com o frear do ônibus. Uma
jovem acaba de entrar no ônibus com um caderno e alguns livros nas mãos. Após passar pela
catraca e ouvir um “bom dia” do cobrador, ela toma sua posição — de pé — e uma senhora
que vai sentada, ao vê-la com os braços ocupando-se dos materiais escolares, se oferece para
segurar o caderno e os livros com um simples gesto de mão. Alguns passageiros lêem, outros
dormem, enquanto alguns outros — num momento solitário — observam as imagens
efêmeras pela janela.

6
Introdução

O cocheiro pára, sobem-se os poucos graus de uma escadinha cômoda e se procura


um lugar no carro, onde os assentos, para 14 a 16 pessoas, correm
longitudinalmente, à esquerda e à direita. Mal se puseram os pés no veículo, este já
começa a rodar; o condutor tornou a puxar o cordel e, com um golpe sonoro no
mostrador transparente, indica, através do avanço do ponteiro, que uma pessoa
subiu; é o controle da arrecadação. No trajeto, tira-se com calma a carteira e se
paga. Quando se está sentado longe do condutor, então o dinheiro passa de mão em
mão entre os passageiros; a dama bem vestida o toma do operário de macacão azul
e o passa adiante; tudo se passa fácil como por hábito, e sem alarde. Para a
descida, o condutor torna a puxar o cordel e faz o carro parar. Se o veículo sobe
alguma ladeira, o que não é raro em Paris, movendo-se portanto mais lentamente,
os senhores costumam subir e descer mesmo sem que o carro pare (Eduard
Devrient, Briefe aus Paris, 1840, apud Benjamin, 1989: 196).

“Grandes avenidas submersas por rios de carros barulhentos, estações de subúrbio


que formigam de rostos apressados, corredores de metrô que se tornam salas de espera”
(Castells, 1983: 275). Assim Manuel Castells descreve o trânsito de uma cidade moderna: as
ruas abarrotadas de carro, a poluição sonora, rostos anônimos que se encontram diariamente
nas estações de transportes públicos1; situação que pode facilmente ser transposta a Brasília.
A narrativa elucida diversos aspectos peculiares do trânsito e do uso de transportes públicos,
tais como as inter-relações que se configuram e se desconfiguram anônima e continuamente
entre os indivíduos, mostrando que se trata de um fenômeno mergulhado no presente e que
existe apenas em função do presente; não cria identidades particulares, mas cria diversas
estratégias para que os atores envolvidos na trama compartilhem identidades e se
comuniquem de forma expressa, por vezes corporalmente, sem, no entanto, tomarem
consciência de que se comunicam. É nesta teia de relações específica — em que reina o
anonimato e, muitas vezes, a solidão — que se encontra justificativa para um estudo
exploratório sobre os rituais diários de uso do transporte do transporte público, considerando
que tais características são traços marcantes nas reciprocidades urbanas. Seguindo esta
direção, o presente estudo apresenta uma análise do cotidiano de uso dos transportes públicos
no Distrito Federal — em especial os ônibus, devido à intrínseca relação entre Brasília e os
1
A definição de transporte público que usamos é equivalente à idéia de “transporte en común” usada por
Castels e se refere ao transporte que “(…) está à disposição do público mediante pagamento. Sua principal
característica legal é que está submetido a algum tipo de controle por parte do governo (além do código de
trânsito), referente, por exemplo, ao tipo de veículo que pode ser usado e à tarifa que pode ser cobrada dos
usuários. O caso mais comum é aquele em que muitas pessoas, independentemente de se conhecerem ou não,
podem usá-lo, quando ele se chama ‘coletivo’, como nos ônibus, trens e metrôs; em outros casos, ele é exclusivo
das pessoas que chamam por seus serviços, caso do táxi e do ônibus fretado por empresas para transporte de seus
funcionários” (Vasconcellos, 2005, p. 42).
7
modelos rodoviários de circulação —, dentro de uma perspectiva essencialmente
interacionista, levando em conta caracteres fundamentais como a comunicação entre os atores
envolvidos e a comunicação entre os atores e o próprio espaço do ônibus, que parece
comunicar, o tempo todo, mensagens expressas no sentido de vincular os atores envolvidos na
trama. Propomo-nos, portanto, tomar o trânsito como tema de estudo, enfocando-nos nos
transportes públicos — os ônibus — associando-os à trama metropolitana que se desenvolve
no Distrito Federal.
Segundo Rodrigues, “o trânsito pode ser definido como os modos de circulação e
os padrões de deslocamento nas vias públicas” (Rodrigues, 2007: 10). Ele ainda diz que “o
trânsito é o movimento de veículos e de pedestres, pelas vias públicas, considerado em seu
conjunto” (Rodrigues, 2007: 26). Neste segundo trecho, já há a inserção do pedestre enquanto
parte constituinte da circulação nas vias públicas, de forma que os veículos não são os únicos
atores envolvidos nesta trama. Do ponto de vista sociológico e antropológico, a trama do
trânsito pode configurar um “não-lugar”, conforme contribuições de Augé (1994) e Certeau
(1994). Os não-lugares são tanto as instalações necessárias à circulação acelerada de pessoas
— tais como rodovias, cruzamentos e avenidas — quantos os próprios meios de circulação —
que são as formas pelas quais as pessoas circulam: ônibus, trens — ou grandes centros
comerciais (cf. Augé, 1994: 36). Segundo Augé, os não-lugares não podem se definir como
identitários, históricos ou relacionais, em oposição à noção de lugar antropológico. De tal
forma, a situação em que rostos anônimos se cruzam apressadamente no trânsito, narrada por
Castells, elucida este aspecto do trânsito, além de mostrar a ausência de circunscrição do não-
lugar.
O próprio espaço delimitado pelo ônibus acaba por também se enquadrar na
definição de “não-lugar” trazida por Augé (1994: 73), ou seja, não é nem identitário, nem
relacional ou histórico. Essa característica fica clara em alguns momentos, principalmente
naqueles em que os participantes assumem papéis solitários e anônimos, típicos dos não-
lugares. Destacamos um trecho em que Augé (1994: 87) ressalta as duas realidades assumidas
pelo não-lugar: (i) os não-lugares são “espaços constituídos em relação a certos fins” e (ii)
designam a “relação que os indivíduos mantém com estes espaços”. Ou seja, primeiramente o
ônibus enquanto não-lugar funciona como um espaço de circulação/passagem que liga dois
lugares antropológicos específicos, conforme um dado padrão de circulação, seja quais forem:
casa/escola; casa/trabalho; entre outros.

8
No Distrito Federal, podemos destacar três padrões de circulação fundamentais
para compreender a configuração urbana de Brasília e o uso dos ônibus. O primeiro e mais
marcante se refere ao trajeto periferia-centro-periferia, sem roteiros alternativos. O centro,
Brasília — comumente tratada de Plano Piloto —, concentra poder político, poder econômico
e postos de emprego. De outro lado, a periferia, constituída das “cidades-satélites” — ou
regiões administrativas —, fica distante dos empregos, dos bens e serviços públicos de uso e
consumo. É válido ressaltar, como aponta Paviani (1989), que as cidades-satélites não podem
ser consideradas como componentes de planejamento urbano, mas sim de um processo de
dispersão urbana que, além de representar, em si mesma, uma problemática de trânsito, gera
uma contrastante separação entre periferia e centro. Assim, na maioria dos casos, as cidades-
satélites estão associadas ao lugar antropológico “casa”, enquanto que o Plano Piloto está
associado a lugares antropológicos como “trabalho” ou “universidade”. Existe, portanto, para
este padrão de circulação, uma contrastante diferenciação no que concerne à produção de
riquezas, ou seja, à divisão de classes.
Os outros fundamentais padrões de circulação no cotidiano de uso dos ônibus no
Distrito Federal são os chamados “circulares”, que ligam pontos dentro de uma mesma
Região Administrativa, ou seja, são os ônibus que circulam apenas no Plano Piloto ou apenas
em uma cidade-satélite, sem desafiar suas fronteiras. É tópico constituinte do nosso problema
de pesquisa os aspectos elucidados pelos diferentes trajetos realizados pelos ônibus. Enquanto
o trajeto periferia-centro-periferia mostra uma nítida separação baseada no par auto-
suficiência/dependência funcional dos espaços em questão; os trajetos circulares podem
mostrar uma diferenciação no que tange à sociabilidade, conforme a Região Administrativa
em que acontecem.
Desse modo, os ônibus no Distrito Federal aparecem, primeiramente, como elo de
conexão entre o Plano Piloto e as cidades-satélites. Os ônibus assumem fundamental
importância no cotidiano dos moradores do Distrito Federal e até mesmo do “entorno” —
como é chamada a região composta pelas cidades que circunscrevem o Distrito Federal —,
uma vez que configura o principal tipo de transporte público, já que o metrô foi apenas
recentemente incorporado ao cotidiano da população, devido a motivos históricos2. As

2
Se outrora, no início do século XX no Brasil, os bondes, enquanto representantes do transporte em
comum, representavam um importante papel como principal meio de circulação urbano; com a rápida e
extensiva urbanização e a concorrência dos transportes rodoviários individuais, o bonde perdeu espaço. Ou seja,
paulatinamente os transportes individuais passaram a ganhar espaço, e o transporte na circunferência das áreas
urbanas brasileiras passou a ser fundamentalmente rodoviário. Destarte, nunca houve grande ênfase em políticas
de transporte público ferroviário no caso brasileiro após a “queda” dos bondes. Henry afirma que, na década de
1970, no Brasil, “os investimentos públicos favoreciam abertamente o modo rodoviário” (Henry, 2002: 30). No
9
pessoas usam o ônibus para ir ao trabalho, às compras, à escola, à faculdade, à universidade, à
casa de um amigo, a eventos e shows. Analogicamente, o ônibus em Brasília assume a
importância que o metrô tem em outras cidades do Brasil e do mundo, tais como São Paulo,
Rio de Janeiro, Londres e Paris. Torna-se não meramente um meio de circulação, mas um
“não-lugar” onde todos e ninguém se encontram.
Deve-se observar, também — além desta “macro-óptica” que olha o ônibus como
espaço constituído em relação a fins e itinerários específicos —, como os participantes dessa
trama, que estão ali apenas de passagem, se relacionam com o espaço do ônibus, uma vez que
o espaço do ônibus é regido por um código bem definido e conhecido pelos participantes da
trama.
Segundo Augé (1994: 87), “a mediação que estabelece o vínculo dos indivíduos
com o seu círculo no espaço do não-lugar passa por palavras, até mesmo por textos”. Tais
palavras e textos — sejam verbais ou não — fazem parte desse código comportamental que
relaciona o passageiro do ônibus ao próprio ônibus. Assim, ainda que mantenham anônimos,
os passageiros acabam por estabelecer um vínculo silencioso por meio desse código, que os
tornam similares. Tais similitudes são esboçadas neste código; um modo de usar, formado por
princípios implícitos e regras explícitas, que moldam as práticas dos indivíduos, que passam a
estabelecer “estratégias” — conforme terminologia de Bourdieu —, ou seja, fazem, como
mostra Certeau, “‘combinações’ sutis (…), ‘navegam’ entre as regras, ‘jogam com todas as
possibilidades oferecidas pelas tradições, usam esta de preferência àquela, compensam uma
pela outra. (…) As ‘estratégias’ não ‘aplicam’ princípios ou regras, mas escolhem entre elas o
repertório de suas operações” (Certeau, 1994: 212).
O código que vincula os indivíduos com o seu círculo no espaço do ônibus passa
por uma comunicação expressa, que recorre tanto a ideogramas mais ou menos explícitos e
codificados quanto à língua natural. Tais interpelações, que emanam do ônibus, visam
simultânea e indiferentemente cada passageiro do ônibus, qualquer um deles: segundo Augé,
“elas fabricam o ‘homem médio’, definido como usuário do sistema” (Augé, 1994: 92) de
transporte público, no caso que pretendemos explorar.
Assim, os assentos vermelhos situados à frente do ônibus são explicitamente
reservados para os idosos, as grávidas e os deficientes. Esse código fica explícito pela
comunicação não-verbal expressa na cor dos assentos — que é diferenciada em relação ao

caso de Brasília, tem-se um agravante ainda maior, já que a cidade nasceu junto com a civilização do automóvel,
elucidando uma relação intrínseca com o trânsito de transportes individuais e de outros modelos de transportes
rodoviários, como o ônibus (Rodrigues, 2007: 39).
10
restante —, e nos desenhos expostos ao lado de tais assentos. Assim, seja de maneira
prescritiva, proibitiva ou informativa, o próprio espaço do ônibus cria diversos recursos para
(re)lembrar aos passageiros a todo momento o código a que devem se referir ao praticar suas
ações. Segundo Augé (1994: 93-94), “sozinho, mas semelhante aos outros, o usuário do não-
lugar está com este em relação contratual. A existência desse contrato lhe é lembrada na
oportunidade (o modo de uso do não-lugar é um dos elementos do contrato)”.
A comunicação que se dá entre os participantes desta trama também é uma
comunicação expressa, uma vez que, majoritariamente, os usuários do ônibus e mesmo o
motorista e o cobrador se abandonam em momentos de completa solidão, seja observando
paisagens pela janela — que também informam mensagens expressas —, ouvindo música em
fones de ouvido ou lendo ou, como no caso do cobrador, fazendo palavras cruzadas. O
cobrador é loquaz ao desejar um “bom dia” a cada passageiro que passa pela catraca, não
estabelecendo qualquer tipo de relação mais profunda.
Há também princípios implícitos que compõem o código: os passageiros sentados
se oferecem livremente para portar os objetos trazidos pelos passageiros que vão em pé.
Trata-se de parte do “modo de usar” do ônibus que é lembrado aos passageiros toda vez que
um novo passageiro entra no ônibus; o que Certeau chama de “saber não sabido” (Certeau,
1994: 143).

Há, nas práticas (cotidianas), um estatuto análogo àquele que se atribui às fábulas ou
aos mitos, como os dizeres de conhecimentos que não se conhecem a si mesmos.
Tanto num caso como outro, trata-se de um saber sobre os quais os sujeitos não
refletem. Dele dão testemunho sem poderem apropriar-se dele. São afinal os
locatários e não os proprietários do seu próprio saber-fazer (Certeau, 1994: 143).

É válido ressaltar que, na maior parte das vezes — neste caso —, a comunicação é
também rápida e gestual. Trata-se de uma “codificação instrumental do corpo” (Foucault,
1977: 139), na qual se cria uma articulação “corpo-objeto”, que se correlacionam por gestos
simples. Desse modo, o próprio corpo passa a ser um recurso de comunicação na trama do
ônibus, principalmente nos momentos em que os princípios implícitos do modo de uso do
espaço são colocados em evidência. “O corpo (…) mostra as condições de funcionamento
próprias a um organismo” (Foucault, 1977: 141), o ônibus, neste caso. As práticas
corporais/gestuais — além das loquazes falas entre os passageiros do ônibus — se tornam
fundamentais na formação de similitudes e formam um “saber anônimo e referencial, uma
condição de possibilidade das práticas cotidianas” (Certeau, 1994: 143). Anônimo pois é

11
apropriado por todos os passageiros, mas não é, no entanto, produzido por estes passageiros; e
referencial por guiar as estratégias dos passageiros conforme o “jogo” (Certeau, 1994: 121).
Le Breton diz que as interações

(…) implicam em códigos, em sistemas de espera e de reciprocidade aos quais os


atores se sujeitam. Não importam quais sejam as circunstâncias da vida social, uma
etiqueta corporal é usada e o ator a adota espontaneamente em função das normas
implícitas que o guiam. Conforme os interlocutores, seu status e o contexto da troca,
ele sabe de antemão que tipo de expressão pode adotar e, algumas vezes de modo
desajeitado, o que está autorizado a falar da própria experiência corporal. Cada ator
empenha-se em controlar a imagem que dá ao outro, esforça-se para evitar as gafes
que poderiam colocá-lo em dificuldades ou induzi-lo a confusão (Le Breton, 2006:
47)

Na trama do ônibus, os atores esforçam-se para, mutuamente e com um certo


desconforto, tornar-se transparentes uns para os outros. Buscam não se tocar e, menos ainda,
trocar olhares. Faz parte do “jogo”. Um simples toque de um ator em outro provoca, quase
sempre, inevitáveis desculpas. No entanto, como mostrado, existem momentos em que, no
contexto da interação, convém exibir o corpo, e se usar da gestualidade — as ações do corpo
quando os atores começam a interação (Le Breton, 2006) —, como no caso dos passageiros
em pé, que sabem “exibir-se” para aqueles que vão sentados, que logo decifram o código e
oferecem-se para carregar qualquer objeto que os primeiros vêm a trazer consigo. Assim, a
comunicação corporal pressupõe que, inconscientemente, o ator saiba acioná-la e também
decifrá-la. E conforme as efêmeras interações avançam, o sentido de cada nuance gestual é
construído.
Todos esses traços que compõem o “modo de uso” de uso do ônibus estão
impregnados de um simbolismo específico para cada grupo social, de modo que se mostram
variáveis, conforme os três padrões de circulação que aqui mostramos. Assim, os “modos de
uso” de um ônibus que liga Taguatinga (cidade-satélite) ao Plano Piloto e de um ônibus que
liga as Asas Sul e Norte — ou seja, circula apenas dentro do Planto Piloto — não são
exatamente iguais. O que sabemos é que os códigos panópticos/classificadores/gestuais que
vinculam os usuários do ônibus ao ônibus estão diretamente associados à trama metropolitana
do Distrito Federal e não podem ser dissociados de tal trama.
Convém, portanto, não apenas nos perguntarmos quais são os códigos (modos de
uso) que vinculam os usuários ao espaço do ônibus, mas também de que forma a trama
metropolitana incide no cotidiano de uso dos ônibus no Distrito Federal e de que maneira
esses modos de uso se associam a um dado padrão de circulação. Ainda é válido

12
problematizar a seguinte questão: em que medida o espaço do ônibus no Distrito Federal se
enquadra na noção de “não-lugar” (Augé, 1994), conferindo identidade ou não aos
participantes da trama? Para essa última questão, é indispensável olhar crítico sobre a obra
de Augé, uma vez que o autor foi fundamentalmente influenciado, em sua obra, pela pesquisa
etnográfica que ele próprio realizou no metrô de Paris e, considerando as variações regionais3,
os ônibus no Distrito Federal podem “eventualmente” conferir identidades aos seus usuários.
Para tanto, propomo-nos adotar o referencial teórico proposto por Augé (1994),
considerando a centralidade da categoria de “não-lugar” para a análise do espaço do ônibus
enquanto produtor de significantes e significados4 compartilhados por seus usuários, e
desenvolvidos por meio das efêmeras interações entre tais usuários. A etnografia foi escolhida
como meio de inferência, sendo compreendida como uma metodologia qualitativa, na qual o
foco é centrado no significado e nas estruturas do cotidiano, cujas manifestações são
“estratégias” associadas a escolhas determinadas que o ator executa no intuito de organizar a
vida. Trata-se de uma atividade eminentemente “interpretativa”, uma “descrição densa”,
voltada para a busca de “estruturas de significação” (Clifford, 1998: 9). Em suas escolhas, o
indivíduo é condicionado por suas características, pelo interagir com os outros indivíduos e
com o espaço do ônibus, no qual se insere, tornando o produto etnográfico uma descrição
densa dos dados, cabendo ao pesquisador a interpretação do significado das ações dos
indivíduos. Ao empregar a etnografia, é possível delinear quais são os “modos de uso” dos
ônibus no Distrito Federal e associar tais modos de uso a outras variáveis, como os “padrões
de circulação”. Nesse sentido, o tratamento analítico dado ao trabalho é fundamentalmente
interacionista, considerando o caráter circunstancial das interações que ocorrem no cotidiano
de uso dos ônibus.
Para a coleta dos dados, as técnicas recorridas foram: a observação participante, a
fotografia e entrevistas informais, usando materiais como o “diário de campo” como

3
Neste sentido é interessante observar o trabalho de Ribeiro (1998), “O que faz o Brasil, Brazil. Jogos
identitários em San Francisco”, que mostra como os imigrantes brasileiros nos Estados Unidos, se inserem na
trama metropolitana de San Francisco, criando espaços e situações geradores de identidades, que os diferenciam
dos “nativos” e de outros imigrantes. Basicamente, o autor trabalha com a problemática “por que os brasileiros
são quentes e os americanos são frios?” Essa lógica, transposta ao nosso caso, nos faz crer que o metrô de Paris
— que serve de ponto de partida para os estudo de Augé sobre os não-lugares — pode não ser identitário, em
função da trama cultura em que está inserido e que, no caso brasileiro, o metrô ou os ônibus podem
eventualmente ser identitários, o que não invalida a teoria de Augé, mas pede que sejamos cuidadosos ao usá-la e
aplicá-la ao caso brasileiro.
4
O significante é um elemento concreto, perceptível pelos sentidos (um som, uma palavra, um desenho)
e que existe no plano material da comunicação. O significado é um elemento inteligível — o conceito —, uma
imagem mental, que é produzido pela relação entre o significante e um grupo de indivíduos. A conjugação de
significante e significado forma um signo, que encontra exemplos, no caso do ônibus, nos adesivos informativos
ou proibitivos, nas cores, nas disposições de assentos.
13
estratégia suplementar. Segundo Clifford, “a observação participante serve como uma fórmula
para o contínuo vaivém entre o ‘interior’ e o ‘exterior’ dos acontecimentos: de um lado,
captando o sentido de ocorrências e gestos específicos; de outro, dá um passo atrás, para situar
esses significados em contextos mais amplos” (Clifford, 1998: 33). Para Gil, “a observação
participante, ou observação ativa, consiste na participação real do observador na vida da
comunidade, do grupo ou de uma situação determinada. Neste caso, o observador assume,
pelo menos até certo ponto, o papel de um membro do grupo” (Gil, 1994: 107-108).
Tomar-se-á cautela com este ponto específico, inserindo a pesquisa na trama, uma
vez que se trata de uma pesquisa feita por um participante da trama do trânsito que não
propriamente assume o papel de usuário do transporte público. Neste sentido, é conveniente
um esforço metodológico que Bourdieu (1990: 114) chama de “objetivação do sujeito
objetivante”. Trata-se da inserção do sociólogo na trama que ele propõe explorar, admitindo
que a sua posição na trama pode ter influência direta na coleta dos dados e na análise e
interpretação de tais dados5. Definindo-se a posição do sociólogo na trama do trânsito —
como ex-usuário de ônibus e atual usuário de transportes individuais, por exemplo —, cria-se
um movimento de objetivação do próprio sujeito que pesquisa.
As observações serão feitas sistematicamente em três “linhas” de ônibus que
deverão representar os três padrões de circulação mais significativos no Distrito Federal: (i) a
primeira, “o 300”, que representa o padrão periferia-centro-periferia, ligando Taguatinga ao
Plano Piloto, chegando à Rodoviária de Brasília e, por este motivo, é um ônibus usado tanto
por trabalhadores, quanto por outros usuários como universitários e pessoas indo às compras;
(ii) a segunda, o “355”, é um ônibus circular que liga o sul ao norte de Taguatinga; (iii) a
terceira, o “105.4” — o “Grande Circular”—, liga o norte ao sul do Plano Piloto. Todas as

5
Assim, admite-se que este trabalho tenha sido confeccionado por um pesquisador que ocupa uma
posição específica no espaço social — definida pelo acúmulo de capital cultural e capital econômico —, que
representa em si mesma uma trajetória, imbuída de memórias. Com isso, estou admitindo que (i) parte de minhas
memórias biográficas — especificamente aquelas que se referem ao período que compreende os anos de 2002 a
2005, quando era usuário diário de ônibus — acabaram se tornando objeto dessa pesquisa e influenciando-a; (ii)
atualmente sou usuário eventual dos ônibus de Brasília, sendo o automóvel particular meu principal meio de
deslocamento; (iii) ao tomar os ônibus como objeto empírico de pesquisa, não estou admitindo — em momento
algum — que estou assumindo a posição de passageiro de ônibus: sou, antes de tudo, um pesquisador. Segundo
Bourdieu, “projetar no objeto uma relação de objetivação não objetivada produz (…) efeitos diferentes (…): ou
porque se oferece como princípio objetivo da prática aquilo que é conquistado e construído pelo trabalho de
objetivação, projetando na realidade o que não existe senão no papel, por e para a ciência; ou porque se
interpretam ações que, como os ritos e os mitos, pretendem agir sobre o mundo natural e o mundo social, como
se tratasse de operações que pretendem interpretá-las” (Bourdieu, 2009: 59). Assim, objetivar a objetivação é um
exercício epistemológico de contínua observação ao suporte teórico da pesquisa, atentando-se para não se criar
uma cisão entre teoria e prática, oferecendo a segunda como princípio da primeira ou, ainda, buscar algum tipo
de “intenção estratégica” nas práticas cotidianas, como se a razão prática fosse informada pela razão teórica.
14
observações foram feitas no “horário de rush”, quando os ônibus transportam mais usuários,
ou seja, nos horários das 8h, das 12h e das 18h.
As fotografias foram a forma encontrada de ilustrar as observações feitas, e serão
usadas também na análise, de forma conjugada às narrativas colhidas. As entrevistas
informais servirão como técnica de apoio, para explorar mais amplamente a realidade
investigada.
Com isso, o trabalho irá analisar as dinâmicas e as interações entre os diversos
atores envolvidos na trama do ônibus dentro da perspectiva do Distrito Federal, levando em
conta as suas especificidades. Os objetivos específicos são: analisar os elementos da trama
observada que a caracterizem como sendo um não-lugar; identificar quais são os códigos de
comunicação a que se referem os atores envolvidos; caracterizar os comportamentos
observados conectando-os ao contexto.
Este trabalho está estruturado em 3 capítulos e as considerações finais. O primeiro
é a introdução. O segundo explica basicamente o contexto que propomos a estudar, levando
em consideração aspectos históricos e urbanísticos do Distrito Federal e sua atual
configuração, centrando-nos na divisão entre Plano Piloto e cidades-satélites, investigando os
principais padrões de circulação que derivam desta configuração. O terceiro capítulo traz
dados produzidos a partir da etnografia nos ônibus, seguidos das respectivas análise e
interpretação, buscando dar conta dos problemas de pesquisa, levando em consideração
principalmente questões relacionadas às interações. A última parte refere-se às considerações
finais, cujo conteúdo descreve as conclusões do estudo e apresenta sinteticamente os
resultados obtidos.
Assim, o presente estudo se propõe a fazer uma pesquisa exploratória sobre o
cotidiano de uso do transporte público no Distrito Federal, levando em consideração a trama
metropolitana e sua principal especificidade, que é a contrastante separação entre cidades-
satélites e Plano Piloto.

15
Capítulo I
A trama metropolitana do Distrito Federal

1 - Nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois
eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz.
2 - Procurou-se depois a adaptação à topografia local, ao escoamento natural das
águas, à melhor orientação, arqueando-se um dos eixos a fim de contê-lo no
triângulo eqüilátero que define a área urbanizada.
3 - E houve o propósito de aplicar os princípios francos da técnica rodoviária —
inclusive a eliminação dos cruzamentos — à técnica urbanística, conferindo-se ao
eixo arqueado, correspondente às vias naturais de acesso, a função circulatória
tronco, com pistas centrais de velocidade e pistas laterais para o tráfego local, e
dispondo-se ao longo desse eixo o grosso dos setores residenciais.
4 - Como decorrência dessa concentração residencial, os centros cívico e
administrativo, o setor cultural, o centro de diversões, o centro esportivo, o setor
administrativo municipal, os quartéis, as zonas destinadas à armazenagem, ao
abastecimento e às pequenas indústrias locais, e, por fim, a estação ferroviária,
foram-se naturalmente ordenando e dispondo ao longo do eixo transversal que
passou assim a ser o eixo monumental do sistema. Lateralmente à intersecção dos
dois eixos, mas participando funcionalmente e em termos de composição
urbanística do eixo monumental, localizaram-se o setor bancário e comercial, o
setor dos escritórios de empresas e profissões liberais, e ainda os amplos setores do
varejo comercial.
[…]
6 - O tráfego destinado aos demais setores prossegue, ordenado em mão única, na
área térrea inferior coberta pela plataforma e entalada nos dois topos mas aberta
nas faces maiores, área utilizada em grande parte para o estacionamento de
veículos e onde se localizou a estação rodoviária interurbana, acessível aos
passageiros pelo nível superior da plataforma. Apenas as pistas de velocidade
mergulham, já então subterrâneas, na parte central desse piso inferior que se
espraia até nivelar-se com a esplanada do setor dos ministérios.
(Lúcio Costa, Plano Piloto de Brasília, março de 1957)

v Um mapa
Em Brasília, as ruas e avenidas são numeradas. É comum que se localizem as ruas
por sua relação com os números. É assim em toda a “zona central” de Brasília, nome
comumente dado à área equivalente ao “Plano Piloto”6 da cidade. A cidade é uma rede de
quadras e “entrequadras” formadas a partir do cruzamento de dois eixos principais: o eixo
monumental — que corta a cidade de leste a oeste — e o eixo rodoviário — que corta a
cidade de norte a sul. A partir daí, forma-se um plano cartesiano de ruas e avenidas paralelas
aos dois eixos principais. Do lado oeste, ficam as quadras 100, 300, 500, 700, 900, que são

6
A expressão “plano piloto” foi cunhada por Le Corbusier para definir os projetos das cidades que
imaginava no papel. Em Brasília, a expressão foi usada como alcunha para o concurso que escolheu o projeto
urbanístico de Lúcio Costa como pilar para a cidade. Ele inicia seu projeto explicando que ele “nasceu do gesto
primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o
próprio sinal da cruz” (COSTA, 2009).
16
numeradas conforme a sua distância em relação ao Eixo Rodoviário. As quadras de número
100 ficam mais próximas do Eixo, enquanto as 900 ficam mais distantes. A lógica se repete
do lado leste, com quadras numeradas a partir de 200 — próximas ao Eixo Rodoviário —,
passando por 400, 600, 800, afastando-se do Eixo. As partes norte e sul de Brasília são
chamadas de Asa Norte e Asa Sul; referência ao seu Plano Piloto, pensado conforme a
formatação de um avião. Em cada “Asa”, as numerações das ruas variam não apenas de
acordo com a proximidade em relação ao Eixo Rodoviário, mas também em conformidade à
distância da quadra em relação ao Eixo Monumental. Assim, aparecem, por exemplo, as
numerações 101, 102, 103, 104, 105, 106, com a numeração crescendo continuamente,
conforme se afasta do Eixo Monumental. Assim, cada lugar em Brasília é nada além de um
ponto de cruzamento num plano cartesiano, formando endereços como “204 norte” ou “715
sul”. As principais avenidas recebem nomes de acordo com sua localização nesse plano
cartesiano. Do lado leste — paralelas ao Eixo Rodoviário — existem as avenidas L2, L3, L4,
numeradas conforme a sua distância em relação a este Eixo. Do lado oeste, a lógica se repete
com a W2, W3, W4 e W5 7. Todas estas, sendo paralelas ao Eixo Rodoviário, cortam Brasília
de norte a sul. Existem também as N2, N3, S2, S3, avenidas paralelas ao Eixo Monumental.
Orientar-se em Brasília se torna então uma contagem de ruas e avenidas, paralelas
e perpendiculares, formadoras de um eixo cartesiano, num continuum numérico que se
percorre ao sabor das quatro direções. São nas avenidas arteriais — as “W” e as “L” —, além
dos dois grandes eixos que formam o “marco zero” de Brasília, que se desenvolve a maioria
das atividades de circulação, ou seja, são nessas avenidas onde o trânsito de pessoas, carros e
ônibus são mais marcantes. Mesmo o metrô, em sua natureza subterrânea, se desenvolve
conforme a lógica cartesiana da cidade, transitando logo abaixo do Eixo Rodoviário. São
nessas avenidas que se desenvolve o trânsito do principal transporte público da cidade: os
ônibus. Assim, as avenidas arteriais de Brasília são marcadas por um grande fluxo de ônibus,
pedestres e carros; e são marcadas também, especialmente nas avenidas sob a “alcunha W”,
por uma intensa atividade de comércio.
Esse grande plano cartesiano que forma Brasília também é marcado pela divisão
em setores: Setor de Clubes Esportivos Sul (SCES), Setor Hoteleiro Norte (SHN), Setor
Bancário Sul (SBS), Setor de Autarquias Norte (SAN), Setor Hospitalar Sul (SHS), Setor
Comercial Norte (SCN). No extremo leste do Plano Piloto — a “cabine do avião” — se
encontra a Esplanada dos Ministérios, seguida da Praça dos Três Poderes, formada por três
7
Se no lado leste, a letra L diz respeito ao ponto cardeal respectivo; no lado oeste, o W assume o mesmo
valor, fazendo referência ao “west", o respectivo ponto cardeal em inglês.
17
edifícios monumentais que representam os três poderes da República: o Palácio de Planalto
(Executivo); o Supremo Tribunal Federal (Judiciário) e o Congresso Nacional (Legislativo).
No centro do Plano Piloto, ou seja, no cruzamento entre o Eixo Monumental e o Eixo
Rodoviário, encontra-se o Terminal Rodoviário de Brasília, de onde partem e aonde chega a
maior parte da frota de ônibus de Brasília: “o lugar onde todos se encontram”.
As ruas e avenidas — e também os endereços — de Brasília são orientados por
siglas e números, podendo ser traduzidos por quaisquer indivíduos, desde que familiarizados
com este esquema taxonômico. De fato, a não ser que indicado por extenso, o número já é
imediatamente qualquer língua ou todas. É assim com a numeração das ruas e avenidas em
Brasília8. O espaço de Brasília é diretamente inteligível tanto para os habitantes da cidade
quanto para os “estrangeiros”, as ruas e avenidas se fazem acessíveis. Com os números
nomeando cada parte deste Plano e as direções nitidamente marcadas, Brasília se torna quase
o “mapa” de si mesma, confundindo-se com sua própria representação cartográfica.
Para além deste Plano Piloto de Brasília, estende-se uma constelação de cidades-
satélites. A previsão inicial de 500 mil habitantes foi excedida em grande número, de modo
que a paisagem urbana de Brasília estende-se até as cidades subjacentes, as “satélites”. Assim
a metrópole Brasília não é hoje apenas seu Plano Piloto original, mas sim o conjunto que se
formou com o Plano Piloto e essa constelação das administrativamente denominadas
“cidades-satélites” (Paviani, 1996), formando uma cidade “poli-nucleada”, constituída por
várias regiões administrativas (RAs)9, de modo que as regiões periféricas estão articuladas às
centrais, e não podem ser entendidas como cidades autônomas. Consideradas as populações
de todas as regiões administrativas, essa metrópole é habitada por mais de dois milhões de
pessoas, que se dividem entre condomínios luxuosos e moradias populares espalhados pelos
5.789, 16 km², que constituem legalmente a área do Distrito Federal. De alguma forma, as
trajetórias desses dois milhões de habitantes acabam por se cruzar, nos deslocamentos
cotidianos que tem como destino, primordialmente, o Plano Piloto, centro de empregos,
serviços e de todo tipo de comércio; sendo assim, centro do cotidiano de todas as outras
regiões administrativas.

8
Benjamin (1989) chama atenção para o progresso da normatização — a partir da numeração dos
imóveis — como caractere típico da metrópole. Ele associa a numeração oficial dos endereços a uma certa
“frieza” que, como veremos também é característica da “cidade grande” (cf. Benjamin, 1989: 44).
9
Hoje, são 30 Regiões Administrativas, numeradas de I a XXX respectivamente: Brasília, Gama,
Taguatinga, Brazlândia, Sobradinho, Planaltina, Paranoá, Núcleo Bandeirante, Ceilândia, Guará, Cruzeiro,
Samambaia, Santa Maria, São Sebastião, Recanto das Emas, Lago Sul, Riacho Fundo, Lago Norte,
Candangolândia, Águas Claras, Riacho Fundo II, Sudoeste/Octogonal, Varjão, Park Way, SCIA (Setor
Complementar de Indústria e Abastecimento), Sobradinho II, Jardim Botânico, Itapoã, SIA (Setor de Indústria e
Abastecimento) e Vicente Pires.
18
Tabela 1 – População urbana do Distrito Federal segundo Regiões Administrativas

Fonte: SEPLAN/CODEPLAN – Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílio – PDAD – 2004.

Cada cidade-satélite tem uma lógica de organização própria. Taguatinga, por


exemplo, segue o modelo cartesiano, de ruas e avenidas, paralelas e perpendiculares, que são
nomeadas (numeradas) conforme as posições assumidas no plano. Assim os endereços
formados nada são além de siglas e números, como no Plano Piloto. De uma forma geral, as
outras cidades-satélites também são marcadas pela numeração de suas ruas avenidas,
dificilmente adotando as nomenclaturas usuais de outras cidades brasileiras, com nomes
próprios que freqüentemente se remetem a homenagens a celebridades nacionais ou locais.

19
Essas cidades-satélites são separadas do Plano Piloto por grandes vazios, por onde
passam algumas grandes avenidas principais, de trânsito rápido, que permitem o trânsito entre
as regiões administrativas. Embora haja uma diminuição dos vazios, com novos aglomerados
urbanos10, ainda existem imensas paisagens desnudas que servem para relembrar a separação
entre o Plano Piloto de Brasília e as cidades-satélites. As grandes avenidas que servem de
“elo” entre ambos os espaços chegam a ter mais de vinte quilômetros em alguns casos, e são
marcadas por um enorme fluxo de carros e ônibus, principalmente nos “horários de rush”. Às
8h, às 12h e às 18h, são notórios os congestionamentos: um percurso cansativo entre centro e
periferia.

Tabela 2 - Distâncias Rodoviárias (em quilômetros) entre algumas Regiões


Administrativas - Distrito Federal – 200211

Fonte: Mapa Rodoviário 2002/DER-DF

10
Fala-se aqui em habitações, mas também em empreendimentos industriais e comerciais, como o caso da
“Cidade do Automóvel”, que fica localizada na Estrutural — via de trânsito rápido que liga Taguatinga e
Ceilândia ao Plano Piloto —, na Região Administrativa SCIA (Setor Complementar de Indústria e
abastecimento. A “Cidade do Automóvel” comporta mais de 140 estabelecimentos comerciais geralmente
dedicados a revenda de veículos.
11
BSB = Brasília; GM = Gama; TAG = Taguatinga; BZ = Brazlândia; SB = Sobradinho; PL = Planaltina;
PR = Paranoá; NB = Núcleo Bandeirante; CEI = Ceilândia; GR = Guará; CRU = Cruzeiro; SAM = Samambaia;
SM = Santa Maria; SS = São Sebastião; RE = Recanto das Emas; LS = Lago Sul; RF = Riacho Fundo; LN =
Lago Norte; CD = Candangolândia; AC = Águas Claras.
20
Mapa 1: - Distrito Federal (CODEPLAN – 2004)12, Plano Piloto

12
Não constam no mapa as RAs XXIX e XX, respectivamente SIA e Vicente Pires, devido ao seu ano de
produção, uma vez que estes espaços passaram a ter o status de RAs somente após o ano de 2004.
21
v Centro e periferia
A configuração centro-periferia em Brasília pode ser tida como um caso singular
no processo de urbanização brasileiro, devido ao planejamento feito à época de sua
construção e às distorções que sofreu, durante os governos que se seguiram. Ou seja, apesar
de ser uma cidade planejada, sofreu e continua sofrendo diversos processos de dispersão
urbana, geradores de novas regiões administrativas. Como aponta Paviani (1989), as cidades-
satélites não podem ser consideradas como componentes de planejamento urbano, mas sim de
um processo de dispersão urbana. Como narram Stumpf e Santos:

(…) a capital planejada para 600.000 habitantes não previu locação para bairros de
trabalhadores, pensada que foi apenas para funcionários públicos. Mas há um
precedente para isso. Durante o último governo Vargas, foi elaborado um plano de
ocupação para o Centro-Oeste que se baseava na colonização de dois eixos: um entre
Goiânia e Anápolis e outro no antigo norte de Goiás, hoje Tocantins, que se
desenvolveria ao longo de seis cidades planejadas, entre Ceres e Porto Nacional.
Com a construção de Brasília, esse projeto foi deixado em segundo plano. (…) O
resultado foi a transformação da cidade em um único pólo de atração da região,
levando à formação de favelas, que forçou os governos a criarem grandes
assentamentos populares e também os primeiros distritos industriais, para
absorverem parte dessa mão-de-obra (Stumpf e Santos, 1996: 50).

Os autores continuam a narrativa salientando, em especial, que a falta de


planejamento regional levou à criação de grandes cidades-dormitórios para a grande massa
despossuída, antes formadora das favelas (Idem: 51). Esse formato de dispersão urbana
acabou por gerar uma contrastante separação entre periferia e centro.
A configuração centro-periferia assume uma lógica típica no Distrito Federal.
Segundo Nunes,

Tradicionalmente no Brasil, as populações vão ocupando áreas que, num primeiro


momento, não são disputadas pelo capital imobiliário: em geral morros, mangues,
áreas degradadas etc. Mesmo assim, são terras contíguas à ocupação que se faz via
mercado, não havendo grandes vazios entre elas; mesmo quando há vazios, a
expansão natural vai interligando as áreas que se beneficiam de uma infra-estrutura
preexistente. Poderia se falar assim que as economias de aglomeração terminam por
beneficiar ao conjunto dos moradores (Nunes, 1999: 14).

Em Brasília, essa lógica de aglomeração se processa de maneira diferente: cada


invasão é um novo aglomerado que passa a existir tendendo a tornar-se cidade-satélite.
Segundo Nunes (1999), tratam-se de espaços sem qualquer infra-estrutura, onde a ocupação
pelas pessoas significa “começar tudo”. O autor comenta ainda que instaura-se o “eterno mito
da origem que se revive permanentemente, onde a ausência de história do lugar e, portanto, a
ausência de identidade, permite acolher qualquer um iguais condições”. Este talvez seja o
22
motivo da formação concreta de grandes aglomerados de populações imigrantes — advindos
fundamentalmente do Nordeste, de Minas Gerais e de Goiás —, que posteriormente tem sua
ocupação institucionalizada, formando novas cidades-satélites, separadas do Plano Piloto por
grandes vazios, delineando uma certa lógica de periferização.
Essa lógica da periferização, presente nas diversas remoções governamentais de
favelas, assentamentos e acampamentos, atua também em sentido contrário, elitizando a parte
central do projeto urbano — formada pelo Plano Piloto. Elitizar um espaço significa torná-lo
de uso exclusivo da população mais rica, no sentido em que os serviços e as habitações são,
por motivos de nível econômico, destinados justamente à parcela mais abastarda dos
consumidores. A implicação dessa “elitização”, que é reflexo da lógica de periferização, é o
alto “custo de vida” — que inclui os preços de produtos como alimentação e de serviços como
saúde e educação. Com isso, ao passo que surgem novos espaço periféricos a partir do “mito
da origem”, o espaço central do projeto urbano se torna mais caro, com comércios dedicados a
atender quase exclusivamente pessoas ricas, e habitações exclusivas para essa parcela de
pessoas.
Paviani se atenta para essa relação entre a região central de Brasília e suas
periferias, e afirma que “a urbanização de Brasília contém uma contradição entre o
planejamento urbano e a construção injusta do espaço” (Paviani, 1991: 123). Aqui não se
pode tomar o centro apenas em sua semântica geográfica, pois o centro oferece outros
significados que vão além de sua localização em si: trata-se de um espaço que, além de
geograficamente privilegiado, é historicamente favorecido, onde se concentram a maioria dos
serviços da cidade e “externalidades positivas” — tais como mobilidade, aspectos
paisagísticos, oferta de bens culturais — que acabam se tornando responsáveis por um
processo de valorização do espaço, num nível imaterial, e também de especulação
imobiliária13. Assim, o centro, o Plano Piloto, concentra poder político, poder econômico e
postos de emprego. De outro lado, a periferia, constituída das cidades-satélites, fica distante
dos empregos, dos bens e serviços público e de uso e consumo. Assim, a distribuição dos
locais de trabalho e ensino reproduz as desigualdades espaciais apresentadas.

13
Especular “significa tentar descobrir um preço futuro de algum ativo ou bem” (Sayad, 1977: 642). No
caso de imóveis urbanos afigura-se “como sendo a compra e venda de imóveis (neste caso a terra urbana),
estimando-se preços de mercados futuros” (Fragomeni, 1985: 9). Ou, ainda, de forma mais específica, como “a
capitalização do excedente fiscal que resulta dos investimentos públicos e da política fiscal do Estado” (Vetter,
1979: 36).
23
Tabela 3 - Locais de Trabalho e de Ensino da população que trabalha ou estuda por Região
Administrativa - Distrito Federal – 2000
Trabalho Trabalho Cursos Não-
Região Administrativa Escola Regular
Principal Secundário regulares14
369.175,56 18.036,82 157.301,21 29.818,50
Brasília15
51,98% 53,32% 24,75% 44,54%
334.811,36 15.157,47 476.382,28 36.811,53
Cidades Satélites 47,14% 44,81% 74,95% 54,98%
6.225 631 1.882 319
Fora do Distrito Federal 0,88% 1,86% 0,30% 0,48%
710.212 33.825 635.565 66.949
Total
100,00% 100,00% 100,00% 100,00%
Fonte: CODEPLAN - Pesquisa O-D Domiciliar – 2000

Considerando a população empregada no Distrito Federal, o Plano Piloto


concentra mais da metade dos postos de trabalho principal. Nos postos de trabalho secundário,
a situação é semelhante. Tais dados não levam em consideração, no entanto, a posição
diferenciada das cidades-satélites em relação a esses postos de emprego. Algumas regiões
periféricas, como a formada por Taguatinga e Ceilândia, concentram mais postos de emprego
do que algumas outras regiões periféricas, como o Riacho Fundo II, o Recanto das Emas e
Brazlândia. Configura-se, além da lógica de periferização que separa o Plano Piloto e as
cidades-satélite, um processo de periferização na própria periferia de Brasília16. Ainda assim,
pode-se falar de uma alta concentração dos postos de trabalho, uma vez que a área
compreendida por Plano Piloto, Cruzeiro, além dos Lagos Sul e Norte — onde se localiza
mais da metade dos postos de emprego em Brasília — serve de domicílio para apenas 21% da
população total do Distrito Federal17.
Apesar da “Tabela 3” indicar que os locais de estudo estão mais disseminados do
que os postos de trabalho, deve-se ressaltar (i) que a classificação “escola regular” engloba os
níveis fundamental, médio e superior de ensino; o que acaba prejudicando a identificação
precisa de como se dá a distribuição de ensino e (ii) que, como no caso dos postos de trabalho,

14
Compreendendo cursos de línguas, computação, técnicos e outros.
15
Compreende Plano Piloto, Cruzeiro, Lagos Norte e Sul.
16
O relatório da CODEPLAN (2003) caracteriza esse processo de periferização como “filtering off” que
diz respeito ao movimento emigratório das regiões centrais e próximas ao centro para regiões mais distantes, ou
mesmo para o “entorno” (área que já ultrapassa os próprios limites do Distrito Federal), geralmente associado ao
custo de vida no centro e na periferia. Assim, a incidência de postos de emprego é variável diretamente
proporcional à proximidade em relação ao centro, de forma que as regiões mais distantes — a periferia — são
fundamentalmente habitacionais, sendo funcionalmente dependentes da dinâmica de mercado do centro.
17
Segundo dados de 2004 da CODEPLAN, o Plano Piloto tem 198.906 habitantes (9,5%); o Lago Sul tem
102.271 (4,9%); o Lago Norte tem 26.093 (1,2%) e o Cruzeiro conta com 112.989 (5,4%). Segundo dados do
mesmo relatório da CODEPLAN, o Distrito Federal tem população total de aproximadamente 2.096.534.
24
existe uma distribuição desigual da educação levando em contas as regiões periféricas.
Quanto ao primeiro ponto, é válido ressaltar, por exemplo, que o Plano Piloto concentra a
grande maioria das vagas no ensino superior público, no Campus Darcy Ribeiro da
Universidade de Brasília (UnB). Quanto ao segundo ponto, existem algumas cidades-satélites
mais dependentes do ensino regular oferecido no Plano Piloto do que outras, voltando à
questão do tratamento analítico diferenciado que deve ser dado às regiões periféricas.
O que se nota é que as idéias que permeiam os conceitos de centro e periferia em
Brasília vão para além da ocupação espacial que se configura: são, na verdade, variáveis
diretas da produção e distribuição de riquezas. A separação que se dá entre ambos os espaços
figura, antes de tudo, uma divisão conforme a produção de riquezas. O Plano Piloto assume
seu caráter de centro pois concentra a maioria dos serviços — hospitais, hotéis, shoppings,
instituições públicas, museus, bibliotecas —, dos postos de trabalhos — ressaltando o
funcionalismo público como caractere essencial desse mercado de trabalho —, das opções de
lazer e cultura. A lógica inversa se processa nas cidades-satélites, com diversas defasagens na
oferta de bens e serviços. Desse modo, a trama metropolitana de Brasília se caracteriza pela
dependência funcional que a periferia tem em relação ao centro.
Usando-se a noção de lugar antropológico trazida por Augé (1994) — referindo-
nos à construção concreta e simbólica do espaço, ao qual se referem os indivíduos enquanto
sendo identitários, relacionais e históricos —, o Plano Piloto está quase sempre associado a
dados lugares antropológicos, tais como “trabalho”, “universidade” e, eventualmente,
“hospital”, “escola”. Às cidades-satélites, reservam-se basicamente as associações ao lugar
antropológico “casa”. Ou seja, no que diz respeito à trama metropolitana específica de
Brasília, podemos dizer que essa separação centro-periferia, relacionada fundamentalmente ao
par auto-suficiência/dependência funcional — e elucidada na compartimentalização dos
lugares antropológicos —, é um de seus traços fundamentais a ser observado.
Adotando-se esse par centro-periferia como modelo típico-ideal18, teríamos traços
distintivos nítidos entre ambas as instâncias. O centro, como já delimitado, diz respeito a um
espaço urbano histórica e geograficamente privilegiado, com altos valores de terra, associados
a dadas externalidades positivas como o aspecto paisagístico, mobilidade, oferta de serviços.
De maneira geral, o centro é marcado pela sua auto-suficiência, de modo que o seu cotidiano
encerra-se em si mesmo: oferece trabalho, educação, saúde, opções de lazer e outros tipos de

18
Usando a idéia weberiana de que o tipo ideal é “um complexo de elementos associados na realidade
histórica que nós aglutinamos em um todo conceitual, do ponto de vista de seu significado cultural” (Weber,
2005: 45).
25
serviços aos seus habitantes. Do outro lado, a periferia é a negação do centro, uma vez que é
um espaço marcado essencialmente pela sua dependência funcional em relação a outro
espaço, o centro — que acaba por se realizar, dessa forma, a partir da existência da periferia
que gera a ambivalência entre os dois. O espaço da periferia geralmente é marcado pela
carência de postos de emprego, de bons níveis de educação e por outros tipos de
externalidades negativas, que acabam por ser fatores determinantes para a desvalorização da
terra. Ainda seguindo o paradigma weberiano sobre a tipologia sociológica (cf. Weber, 1994:
141), temos a possibilidade de afirmar — no caso particular de um espaço urbano — o que há
nele de “centro” e o que há nele de “periférico”, ou seja, em que ele se aproxima de um destes
tipos, além de podermos trabalhar com conceitos relativamente inequívocos. Assim, não se
cogita a possibilidade de que todo o espaço urbano possa ser “encaixado” nesse esquema
conceitual proposto, de modo que ele deve servir como ferramenta analítica importante para
compreendermos a trama metropolitana de Brasília.
Os dados referentes a classes de renda da população de Brasília, por exemplo,
servem para afirmar o caráter de “centro” do Plano Piloto, mas também para mostrar a
possibilidade de coexistirem as duas categorias típico-ideais — centro e periferia — num
mesmo espaço urbano. Alguns espaços, como o Lago Sul, o Lago Norte e o Sudoeste,
apresentam uma dependência funcional em relação ao Plano Piloto — principalmente no que
tange ao trabalho e à educação —, mas apresentam algumas externalidades positivas típicas
do centro, tais como os aspectos paisagísticos — o Lago Paranoá, por exemplo. Mas, talvez, a
maior externalidade positiva associada a estes espaços ambivalentes está associada à própria
existência do centro: o que parece valorizar esses espaços dependentes do Plano Piloto é a sua
proximidade em relação a ele. Assim, gera-se uma dificuldade de caracterizar essas áreas, que
acabam se tornando espaços — ainda que dependentes funcionais do centro — extremamente
valorizados, tendo uma população com altos níveis de renda.

Tabela 4 - Distribuição dos Domicílios, por Classes de Renda Domiciliar Mensal, em


Salários Mínimos, Segundo a Região Administrativa - Distrito Federal - 2004
Valores Relativos (%)
Até 01 -| 02 -| 05 -| 10 -| Mais de
Total 01 02 05 10 20 20
TOTAL 100 20,3 15,5 23,7 17,2 13,6 9,7
Brasília 100 22 2,5 7,4 14,9 24,6 28,6
Gama 100 21,2 14,3 26,8 22,1 13,2 2,5
Taguatinga 100 17,8 7,6 19,5 24,7 21,3 9,2

26
Brazlândia 100 23,7 33,5 22,8 14,9 4,2 0,8
Sobradinho 100 42,9 5,9 13,4 15,4 15,7 6,7
Planaltina 100 34,3 26 25,2 10 4,1 0,3
Paranoá 100 17,8 20,7 32,8 16,7 9,2 2,9
Núcle
o Bandeirante 100 25,7 8,2 22,9 19,2 17,1 6,9
Ceilândia 100 15,9 18,2 35,6 20,2 8,6 1,6
Guará 100 9,5 5,9 17 24,3 26,6 16,6
Cruzeiro 100 15 5,7 15 22,1 27 15
Samambaia 100 15,3 25,4 35,8 17,6 5,1 0,8
Santa Maria 100 18,8 25 35,8 15,6 4,2 0,6
São Sebastião 100 15,7 24,1 35,4 15,1 9,8 -
Recanto das Emas 100 17,8 29,4 33,1 14,6 5,1 -
Lago Sul 100 16 3,8 7,3 5,1 8 59,7
Riacho Fundo 100 14,6 21,7 25,9 22 12,9 2,9
Lago Norte 100 35,1 1,8 2,1 4,3 5,4 51,2
Candangolândia 100 17,4 12 24,4 21,1 18,4 6,7
Riacho Fundo II 100 16 30,1 37,9 13,7 2 0,3
Sudoeste/Octogonal 100 17,6 1,7 3,8 10,6 24,5 41,8
Varjão 100 15,9 36,2 39,5 6,7 0,7 1
Park Way 100 39,7 7,2 13,4 7,2 10,1 22,4
SCIA (Estrutural) 100 25,8 48,1 22,9 2,5 0,3 0,3
Sobradinho II 100 24,3 16,5 23,2 17,6 14,4 4,1
Itapoã 100 38,7 41,1 18,5 1,4 0,2 -
FONTES: SEPLAN/CODEPLAN - Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílio - PDAD - 2004

Enquanto, considerando-se a população total, apenas 23,3% dos domicílios


brasilienses possui renda acima de 10 salários mínimos; considerando o Plano Piloto, esse
número é de 53,2%. Em outras regiões administrativas — que se caracterizam por misturar
características de “periferia” e de “centro” —, como o Lago Sul, esse número pode chegar a
67,7%. Os altos índices se repetem no Lago Norte e no Sudoeste. Tratam-se de números bem
acima da média de Brasília. Para citar alguns exemplos de espaços urbanos que mais se
aproximam do tipo puro de periferia, 10,2% dos domicílios da Ceilândia possui renda acima
de 10 salários mínimos; número que chega a 12,1% no Paranoá; números abaixo da média do
Distrito Federal. Temos ainda os casos que se encontram acima da média de Brasília, mas
ainda assim tem números abaixo dos encontrados na região formada pelo Plano Piloto e pelas
regiões administrativas mais próximas. Em Taguatinga, por exemplo, esse número é de 30,5%
e no Park Way, ele chega a 32,5%.
Essa lógica se repete do outro lado da tabela, considerando que 35,8% do total dos
domicílios de Brasília recebem até 2 salários mínimos. O Plano Piloto fica abaixo dessa
27
média (24,5%), bem como o Lago Sul (19,8%). Enquanto isso, tem-se nas áreas periféricas,
casos como o da Estrutural, de extrema pobreza, onde esse número é de 73,9%; como o
Itapoã, onde 79,8% dos domicílios têm renda de até 2 salários mínimos. Existem ainda os
casos que não concentram esse ápice de pobreza, mas, ainda assim, estão acima da média de
Brasília, como São Sebastião (39,8%), Riacho Fundo (36,3%) e Recanto das Emas (43,8%).
As idéias de centro e periferia que aqui lançamos não dizem respeito propriamente
a essa distribuição de classes de renda no espaço, mas estão elucidadas em último caso por
ela. O que se coloca em questão com a “Tabela 4” é justamente o fato de a lógica da
periferização atuar em consonância ao processo de valorização do centro. Assim, a lógica que
torna os espaços periféricos dependentes do centro também atua no sentido de tornar o centro
cada vez mais auto-suficiente, gerando o par desvalorização-valorização do espaço. De
maneira geral, isso implica dizer que o cotidiano de Brasília acaba por ter como centro o seu
Plano Piloto, de forma que as idéias de auto-suficiência e dependência funcional —
associadas a centro e periferia, respectivamente — se tornam determinantes do cotidiano da
metrópole, em especial no que tange aos deslocamentos e percursos que fazem parte dessa
trama.

v Uma metrópole
“Multidão sem nome! caos! vozes, olhos, passos.
Os que nunca vimos, o que não conhecemos.
Todos os vivos! — cidades que zumbem às orelhas
Mais que bosque da América ou colméia de abelha.”
(Victor Hugo, 1880, apud Benjamin, 1989: 57)

Uma metrópole pode ser inicialmente definida a partir de parâmetros espaciais e


econômicos, referindo-se ao espaço urbano composto por uma região central ligada a outras
regiões. Esta ligação pode ser física — consumada pela cornubação dos espaços centrais e
periféricos — ou, como no caso de Brasília, econômica, a partir do fluxo de pessoas e
serviços. Nesse sentido, a configuração centro-periferia formada em Brasília é, em si mesma,
uma configuração metropolitana, uma vez que todos os espaços estão ligados ao centro que é
não apenas um espaço concentrador de empregos e serviços, mas também um marco
cognitivo no cotidiano da cidade. Todavia, a definição de metrópole a que nos referimos parte
de muito além desses parâmetros econômicos e espaciais, perpassando essencialmente
questões que tangenciam a típica sociabilidade praticada neste espaço urbano, como tratado

28
por Georg Simmel no ensaio “A metrópole e a vida mental” e por Walter Benjamin, em sua
análise da obra de Charles Baudelaire.
A idéia central de Simmel gira em torno do marco normativo da metrópole,
fundamentado na “economia do dinheiro”, que tende à uniformização de seus moradores.
Partindo dessa idéia, ele lança o problema: “como a personalidade se acomoda nos
ajustamentos às forças externas” (Simmel, 1967: 12)? Assim o autor se dedica a analisar
como funciona a lógica de interação do indivíduo com a metrópole, delimitando a maneira
pela qual essa interação incide sobre as formas de sociabilidade nesse ambiente urbano.
A primeira característica da metrópole que podemos citar é a intensificação dos
estímulos nervosos externos, de forma que é criado um descompasso entre a apreensão
consciente da exterioridade pelos indivíduos e a freqüência dos estímulos emitidos. Mais do
que isso, Simmel chama atenção para a preponderância dos estímulos visuais sobre os
estímulos auditivos. A cidade torna-se, quase sempre, mera paisagem para as pessoas que
flanam — os flâneurs (cf. Benjamin, 1989: 186). Em oposição a um espaço vivido, gerador de
memórias, a metrópole é marcada pela atitude prosaica das pessoas em relação aos espaços
por onde flanam. Essa atitude prosaica — convergente a uma certa indiferença — pode ser
chamada de blasé, como definida por Simmel. A atitude blasé — segundo o autor, um dos
traços mais característicos da metrópole — pode ser tomada como uma certa falta de
reatividade, como defesa aos estímulos exteriores que tendem a uniformizar os indivíduos.
Assim, essa atitude blasé é uma forma defesa das personalidades individuais — preservação
da subjetividade — em detrimento à uniformização sugerida pelo marco normativo da
metrópole, a economia monetária. A atitude de reserva — que está associada também à
indiferença e à antipatia — também é uma atitude de auto-preservação, pois como bem
observa Benjamin, “o flâneur é acima de tudo alguém que não se sente seguro em sua própria
sociedade”.
Assim, a sociabilidade da metrópole é marcada — antes de tudo — pela frieza
ilustrada nessas atitudes blasé e de reserva. Quanto a essa frieza, é suficiente, à priori,
esclarecer sua íntima relação com a impessoalidade das relações. Destarte, a frieza que
perpassa a sociabilidade na metrópole nos remete ao anonimato, que implica em
relacionamentos de caráter prosaico — como bem analisa Augé (1994), ao caracterizar os
não-lugares. Benjamin (1989) sintetiza a sociabilidade da metrópole ao mostrar que o homem
da metrópole é o homem na multidão. Com isso, ele coloca em questão o par
solidão/multidão, nunca tratando-o como uma ambivalência, mas sim como instâncias que se

29
interpenetram: trata-se da solidão dentro da multidão, como o autor explica: “por um lado o
homem se sente olhado por tudo e por todos, simplesmente o suspeito; por outro o totalmente
insondável, o escondido” (Benjamin, 1989: 190).
Outro parâmetro para definir essa “frieza” marcante da metrópole é a
normatividade cuja íntima relação com a racionalidade no remete à economia monetária que
tende a quantificar qualidades e subjetividades, usando o dinheiro como nivelador (cf.
Simmel, 1967: 13). Em Brasília, essa normatividade é levada ao ápice, considerando o seu
próprio patrimônio como marco normativo para as práticas cotidianas. Como visto, tal
normatividade está expressa na forma de organização do mapa da cidade e na composição dos
endereços. Não é difícil também observar como os deslocamentos diários realizados na
metrópole também estão inseridos dentro dessa lógica de normatização, e como eles são
índices dos parâmetros de sociabilidade considerados característicos da metrópole.

v Deslocar-se na metrópole
Em Brasília, algumas ruas são altamente ocupadas: são ônibus, pedestres, táxis e a
maciça presença de carros particulares. Esse trânsito acontece principalmente nas grandes
avenidas do Plano Piloto — nos “eixos”, na W3, e na L2, principalmente — e nas vias de
acesso ao Plano Piloto — que se estendem às vezes por grandes vazios entre centro e
periferia. Os automóveis acabam por reinar neste cenário, a despeito da falta de
estacionamentos e dos longos congestionamentos. Trata-se de um uso privado do espaço
público, de forma expressiva19. O trânsito de Brasília privilegia o modelo de circulação
rodoviária em detrimento ao modelo metroviário; e privilegia o automóvel privado em
detrimento à ocupação coletiva das ruas. Essa aprioridade conferida ao automóvel pode ser
elucidada na própria forma de organização do espaço em Brasília, principalmente no que
tange ao uso de ruas e avenidas.
Levando em conta a oposição entre transportes em comum20 e transportes
individuais, Brasília está intimamente ligada à individualização dos meios de circulação, uma
vez que foi chamada de meta-síntese e simbolizava, à época de sua construção, um novo
19
O espaço é público é um espaço partilhado, como ruas, avenidas, calçadas etc. Segundo Caiafa (2007),
o carro representa a lógica do nimby (not in my backyard, em meu quintal não), que é a lógica da exclusão do
outro e da confirmação do privatismo familiar. Nesse sentido é que o carro representa o uso privado de espaços
públicos. Nessa direção, o ônibus representa um uso público do espaço público, por ser — em si mesmo — um
espaço partilhado.
20
No espanhol — bem como no francês — não é usual a terminologia “transporte público coletivo”, que
acaba sendo o uso mais comum no Brasil e, portanto, neste trabalho. A idéia de “transporte em comum”,
conforme traduzido por Arlene Caetano na obra de Castells (1983), talvez seja mais fiel, no entanto, ao nosso
objeto de estudo que é o transporte à disposição do público, mas não necessariamente tutelado pelo Estado.
30
Brasil penetrado pela civilização do automóvel (Mendonça, 1995). O trânsito de Brasília está
ligado à idéia de modernidade e de cidade modernista.
A idéia de modernidade é um conceito que existe em função do tempo em que é
empregado. Remontando a sua origem, chegamos à palavra latina modernus — usada por
Santo Agostinho —, expressando a rejeição do paganismo e a inauguração da nova era cristã.
Posteriormente, o conceito passa a ser associado à idéia de temporalidade, embora Weber
tenha dado outros significados à “modernidade”, que se filiaria à “racionalidade dos meios” e
à separação entre as esferas pública e privada. O iluminismo traz a idéia de modernidade em
contraposição à antigüidade, de modo que ambos os tempos são separados pelo medieval. Isso
acrescenta fluidez a esta idéia de modernidade, aliando-a ao “aqui” e “agora”, de forma que o
moderno passa a ser vinculado à urgência do tempo presente. Portanto, sinteticamente —
ainda voltando à origem latina dessa idéia —, a modernidade representa um movimento
dialético de rejeição e inauguração, no que se refere ao tempo: rejeição do passado e
inauguração do presente, que inicialmente é parte do futuro. Assim, o passado se torna mais
do que uma marca temporal, passando a ser um ponto de referência necessário para a
inauguração do presente, proposta pela idéia de modernidade, que promove, assim, a
novidade. Pode-se dizer que a modernidade traz consigo a “tradição do novo” (cf. Kumar,
1996). Ainda mais que isso, a idéia de modernidade filia-se ao dinamismo — a aceleração
intencionada do tempo —, expresso na constante mudança das entidades passado e presente,
que gera um impulso constante em direção ao futuro que é, em si mesmo, a novidade.
Brasília torna-se inicialmente signo dessa idéia de modernidade, por trazer
novidades em seu projeto urbanístico, com propostas nunca antes postas em prática. O
automóvel — também signo da modernidade — fundiu-se à “capital do futuro”, de maneira
que ambos podem ser observados como partes de uma mesma idéia. Dessa forma, as políticas
de trânsito implementadas em Brasília — seguindo o modelo de espaço urbano que o Brasil
vinha adotando naquele período (Henry, 2002) — sempre deram ênfase ao uso dos transportes
individuais, a começar pelo próprio projeto urbanístico de Brasília, baseado num trânsito sem
interrupções.
As “tesourinhas”21, paisagens marcantes de Brasília, substituíram os cruzamentos
com semáforos. O eixo rodoviário é constituído de uma via para o trânsito local e para a
circulação de ônibus — o “eixinho”, com velocidade máxima permitida de 60 km/h — e de
21
As tesourinhas são interconexões entre as pistas de rolamento do Eixo Rodoviário, com forma de uma
tesoura, que dá acesso às superquadras — que formam o setor habitacional de Brasília. Da necessidade de
melhor escoamento do tráfego, sem cruzamentos, surgem as tesourinhas, que são presença marcante ao longo
dos 15 quilômetros do Eixo Rodoviário.
31
uma via de trânsito rápido — o “eixão”, com velocidade máxima de 80 km/h —, de modo que
a cidade passa a ser figuração do processo de produção da idéia de modernidade pelo qual
passava a configuração em que surgiu. A idéia de modernidade que sempre esteve atrelada à
Brasília foi transposta ao trânsito, gerando um freqüente aumento na quantidade de
transportes individuais22.
Para além desse projeto urbanístico, deve-se levar em conta as cidades-satélites
formadas por processos de dispersão urbana que representam, em si mesmos, uma
problemática de trânsito. Essa configuração centro-periferia é determinante na trama dos
deslocamentos na metrópole. Ambos — centro e periferia — são ligados por grandes vias de
trânsito rápido, que servem como “elo” principalmente para aqueles que moram na periferia,
mas trabalham ou estudam no centro. Tratam-se de vias como a Estrada Parque Taguatinga,
que liga Taguatinga, Guará e Águas Claras ao Plano Piloto; e como a Estrutural, que liga
Ceilândia e Taguatinga ao Plano Piloto. Em comum, elas têm o fato de serem grandes retas,
caracterizadas pelo trânsito rápido — devido à quase ausência de interrupções —, mas que
têm o trânsito lento ou parado nos chamados “horários de rush”23. Nelas circulam ônibus, mas
principalmente carros particulares.
Essa trama formada pelo Plano Piloto e pelas “satélites” acaba por ser
determinante nos percursos e nas formas de realizá-los na metrópole. Tomando os percursos
como atos de enunciação, como propõe Certeau (1994), ou seja, como séries de caminhos
pelos quais se pode circular no mapa — que diz respeito à descrição estática da cidade —, em
Brasília temos uma especificidade principalmente no que tange à relação entre centro e
periferia: o percurso se realiza segundo o padrão centro-periferia-centro, sem roteiros
alternativos ao longo do percurso. Assim, a dependência existente dos diversos espaços
urbanos de Brasília em relação ao centro acaba por determinar o percurso mais marcante a ser
observado na cidade. Devido à concentração do dinamismo econômico no centro, há um
grande afluxo de pessoas para essa região central, sobrecarregando as longas vias de acesso e
os modos de transportes em comum.
Um indicador para este fato é o fluxo entre os espaços de Brasília identificado
pela Pesquisa Origem-Destino realizada pela CODEPLAN em 2002. Dentre as 148.849
viagens realizadas entre as Regiões Administrativas (RAs), 56,5% são atraídas pelo Plano

22
Em 2006 eram 640.334 automóveis; 65.770 motos; 53.841 camionetas; 21.448 caminhonetes segundo
dados do DETRAN-DF. Em maio de 2008, o CorreioWeb noticiou que a frota do Distrito Federal alcançara o
número de 1 milhão de automóveis. Estima-se que, hoje, esse número ultrapasse 1,2 milhões.
23
Mais de 60% das viagens estão concentradas nos horários de pico (manhã, tarde e noite).
32
Piloto24 — o centro, em nosso esquema analítico. O Gama vem em segundo lugar, atraindo
17,54% das viagens, e Taguatinga em terceiro, atraindo 7,52% das viagens. Dentro desse
indicador são marcantes as formas de “enunciação” do percurso, ou seja, os meios pelos quais
as pessoas se deslocam: o transporte público acaba por estar associado às cidades-satélites,
enquanto os transportes individuais são traços característicos da população do Plano Piloto,
como mostra a “Tabela 5”. Neste sentido, propor que nos ônibus todos se encontram parece
ser um recurso lingüístico, uma vez que essa forma de “deslocar-se” é típica — embora não
exclusiva — da população periférica.

Tabela 5 – Repartição das viagens diárias da população entre modos motorizados por
Regiões Administrativas – DF – 2000 (Viagens em um dia útil do mês de novembro) –
Valores porcentuais

Modo
Região
Administrativa Transporte Transporte Automóvel/
Ônibus25 Lotação Outros26 Total
Escolar Fretado Táxi

Plano Piloto 15,88 3,87 0,79 78,45 0,12 0,89 100


Lago Sul 2,67 4,30 0,00 92,65 0,23 0,15 100
Lago Norte 8,39 3,77 0,88 85,87 0,12 0,97 100
Cruzeiro 13,24 5,82 0,76 77,86 1,26 1,04 100
Guará 26,55 4,12 1,05 62,47 3,75 2,06 100
Núcleo
Bandeirante
19,51 4,46 0,29 70,37 5,19 0,19 100
Candangolândia 24,34 3,67 0,88 57,55 12,31 1,26 100
Taguatinga 34,54 4,20 1,49 54,11 4,27 1,38 100
Samambaia 55,99 4,69 3,07 24,95 7,81 3,49 100
Ceilândia 59,33 3,44 2,29 26,57 5,34 3,03 100
Recanto das Emas 67,52 2,66 4,93 21,27 1,19 2,43 100
Gama 42,79 3,51 1,80 44,11 3,24 4,55 100
Santa Maria 65,46 3,96 3,46 18,51 4,87 3,73 100
Riacho Fundo 43,91 7,51 3,62 30,39 11,53 3,05 100

24
Dentro do Plano Piloto, as viagens se distribuem predominantemente entre a Esplanada dos Ministérios
(10,72%), o Setor Comercial Sul (10,34%) e o Setor de Diversões Norte (7,69%) (CODEPLAN, 2002), locais
onde se concentram grande parte dos postos trabalho.
25
Inclui ônibus convencional e transporte vizinhança.
26
Inclui modo bicicleta, ciclomotores e outros.
33
São Sebastião 46,02 8,57 1,76 37,48 2,08 4,08 100
Paranoá 71,46 4,57 1,27 20,46 1,70 0,55 100
Planaltina 52,36 4,24 4,22 21,50 7,30 10,37 100
Sobradinho 37,71 7,85 1,55 42,24 6,27 4,39 100
Brazlândia 49,19 4,83 5,45 28,27 3,64 8,62 100
Distrito Federal36,59 4,41 1,80 50,85 3,78 2,56 100
Fonte: CODEPLAN – Pesquisa Origem-Destino Domiciliar – 2000

Conforme mostra a tabela, as formas de “deslocar-se na metrópole” estão


associadas a uma condição específica de desenvolvimento urbano relacionada à proximidade
com o centro. Segundo Vasconcellos (1996), nos ambientes urbanos, as pessoas estabelecem
estratégias de consumo que dependem de várias condições, incluindo selecionar as formas de
transporte, que aparecem como expressões e satisfações de acordo com uma condição urbana
específica. Aqui o ônibus aparece como “elo” fundamental entre o Plano Piloto e as cidades-
satélites, realizando a possibilidade de concretizar-se a separação casa/trabalho por grandes
vazios — sejam eles espaciais ou simbólicos.
Embora não seja elencado pela Tabela 5 — principalmente devido à data em que
os dados foram produzidos —, os transportes em comum em Brasília são divididos
fundamentalmente em dois grupos: os rodoviários (ônibus) e os metroviários (metrô). O
sistema de ônibus em Brasília — mantendo-se nos limites de uma tendência histórica dos
sistemas de transportes oferecidos no Brasil — é tutelado pela iniciativa privada e
regulamentado pelo Estado, tipo de gestão de trânsito com pilares na idéia de que o setor
privado tem grande capacidade de investimento, “face ao crescimento exponencial dos
mercados que conduziam a urbanização (dispersão) maciça e a formação de Regiões
Metropolitanas” (Henry, 2002: 40). Embora Brasília, como vimos, esteja presenciando uma
grande expansão de seu sistema metroviário, os ônibus ainda são a principal forma coletiva de
deslocamento na cidade, justamente devido à tendência inicial de prioridade ao modelo
rodoviário de circulação.
Assim, em Brasília as pessoas se deslocam basicamente por meio de ônibus e
carros, havendo uma ligação forte do uso do primeiro com as cidades-satélites. Do ponto de
vista dos percursos, as pessoas se deslocam orientando-se segundo dois padrões cartográficos
fundamentais: (i) o primeiro diz respeito às viagens que se fazem entre as regiões
administrativas — valendo ressaltar que o Plano Piloto absorve mais de metade dessas

34
viagens — e (ii) o segundo diz respeito às viagens que se realizam dentro dos limites de uma
região administrativa, não desafiando suas fronteiras. Os ônibus também funcionam segundo
essa lógica: os “metropolitanos” fazem os percursos entre regiões administrativas e os
“circulares” limitam-se a uma região administrativa, não desafiando seus limites. No entanto,
considerando a configuração centro-periferia, podemos destacar três padrões de viagens
marcantes dos ônibus de Brasília. O primeiro e mais marcante refere-se ao trajeto periferia-
centro-periferia, sem roteiros alternativos. Trata-se de um percurso realizado por linhas
“metropolitanas”, ao valor de R$ 3,00 por usuário, que permite a conexão entre os serviços
oferecidos pelo Plano Piloto e as moradias das cidades-satélites. O segundo percurso marcante
realizado pelos ônibus de Brasília refere-se à enunciação de um trajeto realizado dentro dos
limites do Plano Piloto, sendo, portanto, um “circular”. O terceiro padrão das viagens
realizadas pelos ônibus diz respeito ao “circular” que mantém-se nos limites de uma cidade-
satélite. Para fins de pesquisa, foram selecionadas três linhas de ônibus que representam
respectivamente esses três padrões de circulação, no sentido de investigar os modos e o
cotidiano do uso dos ônibus em Brasília: (i) “o 300”, que representa o padrão periferia-centro-
periferia, ligando Taguatinga ao Plano Piloto, chegando à Rodoviária de Brasília; (ii) a
segunda, o “105.4” — ou “Grande Circular”—, liga o norte ao sul do Plano Piloto; (iii) a
terceira, o “355”, é um ônibus circular que liga o sul ao norte de Taguatinga27.
Assim, neste nível de análise, os ônibus podem ser tomados como “não-
28
lugares” , segundo a definição de Augé (1994), uma vez que se prestam à circulação
acelerada das pessoas, e acabam se constituindo em relação a certos lugares antropológicos.
Ou seja, um não-lugar acaba por ser um espaço de ligação entre dois lugares antropológicos, e
nesse sentido os ônibus, tomados como elo entre dois espaços urbanos dados, acaba sendo um
não-lugar constituído em relação a estes espaços. No entanto, essa noção deve ser
problematizada, uma vez que segundo o próprio Augé, o não-lugar é marcado pela relação
que as pessoas estabelecem com o próprio espaço do não-lugar, que acaba se caracterizando
pelo fato de não ser relacional, nem identitário e, portanto, não-histórico. A discussão sai do

27
Foram feitas observações participantes nas linhas selecionadas, nos “horários de rush” — nos horários
próximos às 8h, às 12h e às 18h, entre maio e setembro de 2009. Durante as observações, tive também conversas
com alguns cobradores e motoristas, além de alguns solícitos usuários, que me informaram um pouco mais sobre
o cotidiano dos ônibus investigados.
28
“… a noção de não-lugar pode ajudar-nos a caracterizar a situação que eu sugeri chamar de
supermodernidade. A supermodernidade surge quando a história se torna atualidade, o espaço torna-se imagem e
o indivíduo, olhar. (…) a supermodernidade dependeria de três imagens do excesso: (…) o excesso de tempo,
(…) o excesso de espaço, (…) o excesso do individualismo” (Augé, 1990: 141-142).
35
nível amplo da metrópole e se instala dentro dos ônibus, enquanto espaços onde se cruzam
trajetórias, no sentido de objetivação desses cruzamentos.

v Uma forma de circulação “fria” e uma forma de circulação “quente”29


Os espaços dos ônibus podem ser tratados inicialmente como um não-lugar.
Segundo Augé, o não-lugar é pontualmente “um espaço que não pode se definir nem como
identitário, nem como relacional, nem como histórico” (1994: 73). Desse modo, além da
característica fundamental de ser um espaço destinado à circulação expressa de pessoas, o
ônibus — assumido enquanto não-lugar — é um espaço que geralmente não é repertoriado,
classificado e “promovido” a um lugar de memórias, além de ser caracterizado pela ausência
de uma circunscrição específica. Usando-se essa noção de não-lugar como referencial teórico,
é fundamental fazer análise de como se cruzam trajetórias nesses espaços e de que maneiras
elas estão vinculadas.
Os ônibus criam uma espécie de tensão solitária povoada pela presença de outrem.
Augé (2002: 43-44) chama atenção, em sua etnografia no metrô de Paris, para o caráter
individual e simultaneamente contratual das viagens30. Existem mediações, associadas a esse
caráter contratual dos percursos de ônibus, que vinculam essas “solidões”31. São palavras e
textos; gestos e movimentos que servem para ordenar a tensão da viagem, conferindo um
caráter codificado e ordenado na trama do ônibus. Esse código acaba por constituir, na
circunstância da circulação, as práticas de cada e de todas as pessoas, que não devem
transgredi-lo sob pena de constrangimento. Doravante, a viagem prossegue de forma que as
pessoas se vinculam às outras por meio desse “modo de uso”. O modo de uso do ônibus diz
respeito, portanto, a um conjunto de práticas comunicativas (significantes) — palavras, textos,
gestos e outras formas de corporeidade — eivadas de um conjunto de significados construído
no contexto das interações mútuas. Essas práticas — os significantes associados aos
significados — não estão associadas somente aos usuários do ônibus, mas também ao próprio

29
Sobre essa terminologia, é válido a leitura de Ribeiro (1998). Ele afirma que o “quente” é característica
de “domesticação do individualismo”, quebrando distâncias e marcações de zonas de interação que são
percebidas como rígidas e limitadas. O “quente” também significa a tentativa de projeção de uma cosmovisão
sobre outras, de forma mútua. O “frio”, enquanto antônimo, é — segundo o autor — associado ao
desencorajamento do contato (cf. Ribeiro, 1998: 8-9).
30
“Travel in the metro, if defined in general as individual, is simultaneously and consistently contractual”
(Augé, 2002: 43). Anteriormente o autor ainda afirma: “nothing is so individual, so irremediably subjective, as a
single trip in the subway, and yet nothing is so social as one such trip, not only because it unfolds in an
overcoded space-time, but also and specially because the subjectivity being expressed during the passage and
that defines it on each occasion (each person has a point of departure, changes of line, and a destination) is an
integral part, as are all the others, of its definition as a total social fact” (Augé, 2002: 35-36).
31
Inspirado no termo “solitudes” (Cf. Augé, 2002).
36
espaço do ônibus de maneira prescritiva — como os ideogramas que sugerem os assentos
preferenciais dos idosos, e as “saídas de emergência” —, proibitiva (“proibido fumar”) ou
informativa, como os adesivos que informam os preços das passagens e a lotação máxima.
Em comum, essas formas de uso têm o fato de serem comunicados de maneira
expressa, independente de recorrerem ou não à língua natural. Assim, esse modo de uso do
ônibus, faz com que os indivíduos interajam com textos, sem outros enunciantes que não os
próprios símbolos. Essas interpelações visam todas as trajetórias que se cruzam no ônibus, de
forma a fabricar “homens médios”, que acabam por compartilhar uma única identidade: a de
usuário de ônibus, independente das biografias individuais. Assim, o não-lugar de Augé é um
espaço de anonimato, em que seus usuários — abnegando a identidade típica dos lugares
antropológicos —, por meio de conveniências da linguagem, dos sinais da paisagem, das
“regras do bem-viver”, compartilham a identidade conferida pelo espaço. Augé (1994) afirma
que o espaço do não-lugar não gera nem identidade singular nem relação, mas sim solidão e
similitude, não havendo espaço para a história e para a formação de memórias. Em uma obra
mais epistemológica, O sentido dos outros, Augé afirma que uma contradição típica da
“supermodernidade” é expressa nos não-lugares: “num sentido, abrem cada indivíduo para a
presença dos outros (…). Mas num outro sentido eles reduzem o indivíduo a ele mesmo,
convertendo-o mais em testemunha do que em ator da vida contemporânea” (Augé, 1999).
Em Brasília, os ônibus “circulares” — atentando para este significante que acaba
por assumir um significado de extrema importância para esta análise —, tantos os que
circulam no Plano Piloto quanto os que circulam nas cidades-satélites, são mais elucidativos
da prática do não-lugar. Assim o nome “circular” tem lugar crucial uma vez que são nestes
ônibus em que o seu caráter de “instrumento para circulação expressa” nos salta aos olhos. Os
ônibus circulares — tanto os que têm percurso encerrado no Plano Piloto, quanto os que têm
percurso encerrado em alguma cidade-satélite — são marcados pela urgência do presente:
param em quase todas as “paradas”, para embarcar e desembarcar passageiros, de forma que o
“encontro” entre esses passageiros é um continuum efêmero. São diversas trajetórias que se
cruzam continuamente, mas não se fazem propriamente palpáveis umas às outras. Nas
palavras de Elias:

Cada pessoa nesse turbilhão faz parte de um determinado lugar. Tem uma mesa à
qual come, uma cama em que dorme. (…) Cada um dos passantes, em algum lugar,
em algum momento, tem uma função, uma propriedade ou trabalho específico,
algum tipo de tarefa para os outros, ou uma função perdida, bens perdidos e um
emprego perdido. Há balconistas de lojas e bancários, faxineiros e damas da
sociedade sem profissão própria; há homens que vivem de renda, policiais,garis,
37
especuladores imobiliários falidos, batedores de carteira e moças sem outra função
senão o prazer dos homens; há atacadistas e mecânicos, diretores de grandes
indústrias químicas e desempregados. Como resultado de sua função, cada uma
dessas pessoas tem ou teve uma renda, alta ou baixa, de que vive ou viveu; e (…)
essa função e essa renda, mais evidentes ou mais ocultas, passam com ela (Elias,
1994: 21).

Elenca-se aqui um cruzamento de trajetórias biográficas nas viagens, mas no


contexto do ônibus circular, essas trajetórias não passam de “mundos possíveis”. O “mundo
possível” é demarcado pela fisiognomonia32 — típica da grande cidade, como bem observa
Benajmin —, ou seja, as trajetórias que se cruzam no contexto do ônibus circular não passam
de rostos que se encontram, dos quais pode-se tentar deduzir algumas coisas, mas nunca
conhecê-los de fato. Deleuze (1974) mostra que essa experiência com outrem representa o
vislumbre da possibilidade de outros mundos, de forma que organizamos “um fundo”, “uma
profundidade”, “um mundo de possibilidades” em torno das outras trajetórias que
percebemos. Aqui, outrem é um “operador de diferenciação” (Caiafa, 2007) que oferece
mundos possíveis. Tais “mundos” são apenas potencialidades, possibilidades que não se
realizam dada a efemeridade da circunstância. Esse cruzamento de trajetórias biográficas é um
processo reticular — de valências que se influenciam mutuamente —, de forma que é a
presença de outrem que gera o vínculo entre os transeuntes, que abandonam identidades
assumidas em suas casas, suas escolas, seus locais de trabalho, para assumir uma identidade
temporária, como veremos no capítulo seguinte.
Os ônibus “circulares” de Brasília são marcados fundamentalmente pela presença
de jovens indo ou voltando da escola. É também comum que ele seja usado para ir ao
trabalho33. No “Grande Circular”, no Plano Piloto, tive alguns breves encontros com alguns
funcionários de uma empresa que terceiriza serviços de limpeza. Segundo eles, o Grande
Circular era apenas uma parte da viagem, uma vez que eles vinham de outras Regiões
Administrativas. Embora tenha esse “público cativo”, os circulares mantêm sua característica
de não-lugar, considerando a efemeridade da qual trata o termo, uma vez que — devido à
freqüência dessas linhas e à quantidade de outras linhas que podem enunciar o mesmo
percurso — raramente os usuários se encontram com freqüência diária. Assim, os “circulares”
são a expressão máxima da falta de circunscrição do não-lugar. O anonimato é uma regra que
deve ser respeitada; não há espaço para pessoalidade.
32
Um fisiognomonista puro, segundo Benjamin, assegura que “qualquer um (…) seria capaz de adivinhar
profissão, caráter, origem e modo de vida dos transeuntes” (Benjamin, 1989: 37). No entanto, trata-se de uma
leitura feita através da fisionomia, e por isso é uma potencialidade e não propriamente uma realidade.
33
Cerca de 52% das viagens são por motivo de trabalho segundo dados da Pesquisa de Transporte
(CODEPLAN, 2000).
38
Teríamos problemas, no entanto, se fôssemos aplicar “cegamente” o modelo
teórico de Augé para uma análise dos ônibus metropolitanos, que ligam diferentes regiões
administrativas. De começo, podemos ressaltar a extensão dessas viagens, que ultrapassam
facilmente trinta quilômetros. O “Mapa 1” e a “Tabela 2” são elucidativos das grandes
viagens feitas pelos ônibus metropolitanos. A linha 300, por exemplo, que liga Taguatinga ao
Plano Piloto percorre, na totalidade de seu itinerário, cerca de 40 quilômetros, enquanto o
355, que viaja apenas dentro de Taguatinga, percorre cerca de 10 quilômetros em uma
viagem. Deve ser ressaltada ainda uma grande diferença entre ambos, que é o tipo de percurso
realizado. Nos ônibus metropolitanos, a origem dos passageiros é uma região administrativa, e
o destino é outra, de forma que cada passageiro participa de praticamente todo itinerário do
ônibus. Nos circulares, os passageiros dificilmente realizam todo o itinerário do ônibus,
limitando-se, cada um, a um trecho específico que, não raro, é bem curto.
Colocadas essas duas características marcantes — (i) a grande extensão das
viagens e (ii) o trajeto longo percorrido por cada passageiro34 —, cabe uma análise dos
ônibus metropolitanos à luz das implicações sociológicas que tais características representam,
problematizando, assim, a categoria de não-lugar. Para tanto, irei narrar um pequeno fato que
ocorreu na primeira vez em que viajei na linha 300 em função desta pesquisa.

◊◊◊◊◊◊◊◊◊◊
.
Após termos deixados o terminal rodoviário de Taguatinga — o motorista, o
cobrador e eu —, o ônibus pára logo na primeira parada. Sobe um passageiro pela porta da
frente. Ele não passa pela catraca eletrônica. Pára ao lado do cobrador, Maurício, e começa a
gesticular. Ambos começam uma longa e animada “conversa gestual”, pois o passageiro que
acabara de entrar era mudo. Pude perceber que eles já se conheciam há algum tempo, pois a
conversa parecia enveredar-se em assuntos familiares. O cobrador esforçava-se para manter
um vínculo com ele, o tempo todo. A conversa se mantém durante toda a viagem, ainda que
Maurício, o cobrador, dividisse a atenção com algumas outras passageiras que também
usavam o ônibus regularmente. O passageiro mudo, então, ao ver se aproximar a parada em
que deveria descer, gesticula para o motorista solicitando que ele pare, e despede-se do
cobrador presenteando-o com uma paçoca de amendoim. O cobrador me explica, então, que o

34
“As viagens de ligação entre as cidades e o Plano Piloto caracterizam-se por uma distância média de 38
km e pela baixa renovação de passageiros ao longo do percurso, no transporte coletivo” (CODEPLAN, 2006).
39
passageiro em questão se chama Wamberto e usa aquele ônibus há três anos; cursa o ensino
médio e faz tratamento com um fonoaudiólogo no Plano Piloto.

◊◊◊◊◊◊◊◊◊◊

Essa passagem parece ser suficiente para começarmos a problematizar se a noção


de não-lugar se aplica inteiramente ao caso dos ônibus metropolitanos. De fato, são espaços
marcados por códigos panópticos, que vinculam os usuários. Assim como acontece nos
circulares, os passageiros que vão sentados oferecem-se para portar os objetos trazidos pelos
passageiros que vão em pé; há um pedido verbal de “licença” toda vez que um novo
passageiro se senta ao lado de outro passageiro; os pedidos de “desculpa” são recorrentes a
cada esbarrão não-intencional. Enfim, os espaços também comunicam informações aos
passageiros o tempo todo, através de desenhos, cartazes, adesivos, que de alguma forma
modelam o “passageiro de ônibus” padrão. Assim, a dinâmica comunicativa que marca o não-
lugar está presente nos ônibus metropolitanos, criando a identidade partilhada dos passageiros
(cf. Augé, 1994: 93). No entanto, elencando-se as trajetórias que ali se cruzam, pode-se
perceber que, de maneira genérica, os usuários dos ônibus metropolitanos têm como destino
final o trabalho ou a escola no Plano Piloto, e como destino inicial a casa, numa cidade-
satélite — lembrando que o percurso também é feito no sentido inverso. É um itinerário bem
definido casa-trabalho-casa ou casa-escola-casa, que é repetido diariamente, no mesmo
horário. As personagens na trama dos ônibus metropolitanos costumam ser as mesmas e,
portanto, passam a se conhecer. Segundo o cobrador da linha 300, Maurício, nesses horários
— às 6h50, às 13h e às 17h30 —, os usuários são praticamente os “mesmos”, “muda pouco”.
Assim, as trajetórias que se cruzam nos ônibus metropolitanos perdem o status de
“mundos possíveis” para se tornarem “mundos realizados”. O “mundo realizado” sai do
campo da fisiognomonia: conhece-se uma trajetória biográfica a partir de uma “investigação”
mais profunda, ou seja, a partir de relações mais pessoais. Sair do status do mundo possível
para entrar no mundo realizado, significa dar realidade à trajetória que antes era parte do
imaginário.
As grandes vias de trânsito rápido, marcadas por grandes vazios e paisagens
desnudas, que ligam o Plano Piloto às outras regiões administrativas, dificilmente são locais
de parada do ônibus metropolitano. Doravante ele segue ininterruptamente por grandes
trechos. Não é raro, nestes momentos, que a impessoalidade da função fática da linguagem —

40
“esforço para assegurar a comunicação” (Certeau, 1994: 178) —, os “bom dias”, “licenças” e
“desculpas”, seja deixada de lado, para dar lugar a uma conversa mais pessoal, que coloca no
jogo do ônibus novas identidades que não a de “usuário do não-lugar”.
Destarte, ao mesmo tempo em que o espaço do ônibus — por meio de suas
interpelações, signos e outras formas de linguagem — cria uma identidade partilhada entre os
passageiros; as identidades de uns e outros concebem o espaço do ônibus como lugar
antropológico. Pode-se dizer, com isso, que o ônibus metropolitano assume simultaneamente
caráter de não-lugar e de lugar antropológico. Ao passo que é marcado pela comunicação
expressa e pelo anonimato, é também marcado por ser identitário, relacional e, assim,
histórico. No contexto desse espaço móvel, o caractere identitário abre possibilidade para que
várias identidades façam parte daquele jogo de sociabilidade do cotidiano, e não apenas a
identidade partilhada de “passageiro de ônibus”. Assim, ao serem identitários, os ônibus
metropolitanos compõem um jogo em que os passageiros tem nome, profissão e parte da vida
pessoal conhecidos pelos outros “jogadores”. O próprio Augé atenta-se brevemente a esta
questão, ao afirmar que “em todos os ‘não-lugares’ os ‘lugares’ podem se recompor” (Augé,
1999: 145).

◊◊◊◊◊◊◊◊◊◊

É segunda-feira. O ônibus de alcunha “300” deixa o terminal rodoviário de


Taguatinga às 13h35. A viagem inicia-se pacatamente, como se fosse uma repetição da semana
anterior. O passageiro Wamberto entra no ônibus na primeira parada. Algumas paradas
depois, sobem duas mulheres: trajes formais, como se fossem para o trabalho, trazendo
consigo alguns embrulhos. Os embrulhos estampavam a marca “Delícias Araxá”. Pelo
formato, pude deduzir que se tratava de salgados de festa, ou coisa semelhante. Elas se sentam
conversando animadamente. Algumas parada à frente, sobe no ônibus outra mulher. Esta não
traz embrulhos. Senta-se ao lado das outras duas, e retira da bolsa um pacote de balões. Elas
então começam a encher os balões. Inicialmente pedem ajuda apenas para o cobrador
Maurício. Logo, me aproximo, curioso com aquele fato. As três logo me oferecem alguns
balões para que eu possa ajudá-las. Vou então enchendo os balões — que não são muitos — e,
entre um e outro, pergunto para que eram aqueles balões, aquelas “guloseimas”. Elas,
simpaticamente me respondem:

35
Neste horário o ônibus não costuma atingir lotação máxima, indo todos os passageiros sentados.
41
— É aniversário da Dona Ana — demonstrando uma familiaridade, como se todos
ali a conhecessem, inclusive eu.
Ao ver que eu não sabia de quem se tratava, uma delas continua a me explicar.
— Ah! A Dona Ana é uma senhora que trabalha num prédio lá perto da
Rodoviária. É faxineira. Como ela sempre pega este ônibus, resolvemos fazer uma festinha
surpresa para ela.
Enquanto a conversa se alongava, com as três me falando mais sobre a
aniversariante e como haviam se conhecido durante as viagens daquele ônibus, alguns outros
passageiros (não todos) iam enchendo mais balões, e organizando dois bancos do ônibus que
iriam servir de “mesa” para as “guloseimas”. Enquanto o ônibus percorria a Avenida
Comercial Norte, em Taguatinga, sobe uma moça que traz consigo um bolo, desses
confeitados em padaria. Após algumas paradas mais, quando o ônibus chega ao Centro de
Taguatinga, de onde ele finalmente parte rumo ao grande vazio da Estrada Parque que o
levará ao Plano Piloto, entra a Dona Ana, que é tomada de surpresa ao ver balões sendo
jogados, e uma quantidade considerável de passageiros que gritam, e cantam “Parabéns pra
você”. A “festa” se mantém animada durante a Estrada Parque, onde não desembarca
passageiro algum. É verdade que metade dos passageiros não participava da festa, talvez por
não conhecerem a aniversariante. No cenário, parte do ônibus se abandonava à solidão da
viagem, lendo apostilas para concursos públicos, dormindo e ouvindo fones de ouvido;
enquanto outra parte conversava, animadamente, comendo e bebendo, celebrando — alguns
de pé — o aniversário da Dona Ana.

◊◊◊◊◊◊◊◊◊◊

Para pontuar as categorias “circulação quente” e “circulação fria”, irei recorrer à


uma analogia semântica oferecida pelos dicionários Aurélio (2004) e Houaiss (2009). A
“frieza” pode ser traduzida como falta de envolvimento, de expressividade; como uma
característica de algo ou alguém que não passa emoções. Sinteticamente, o “frio” está
associado, neste caso, à impassibilidade do passageiro, à sua característica de espectador, que
capta imagens e personagens, mas não interagem com eles se não por um código silencioso,
ou seja, há pouco envolvimento em relação à trama. As trajetórias que se cruzam são apenas
mundos possíveis. Na trama da “circulação fria”, as viagens costumam ser mais silenciosas,
as conversas limitam-se à função fática e apenas eventualmente — em circunstâncias fora do

42
“roteiro da viagem” — passam deste nível de impessoalidade. Assim, a circulação fria —
dadas as circunstâncias da trama metropolitana — não abre brechas para diversas identidades,
que aqui ficam no campo da possibilidade. No Houaiss (2009) temos a definição de que a
“frieza” é uma “atitude de reserva em relação às pessoas, acontecimentos, etc., ausência de
envolvimento diante do que se passa em torno; distanciamento”. Nesse sentido, a circulação
fria é propriamente a circulação do não-lugar.
O “quente” em questão se opõe exatamente à “frieza” do não-lugar. O “quente”
está associado a “intensidade de emoções, ações ou pensamentos; (…) simpatia, afeto,
cordialidade, afabilidade; ânimo” (Houaiss, 2009). A “circulação quente” é, por assim dizer,
menos silenciosa. Parece abrir espaço, devido às circunstâncias temporais, para longas
conversas e para uma gama mais ampla de ações e pensamentos36, ou seja, de estratégias.
Segundo Certeau:

A ‘estratégia’ equivale a ‘um lance numa partida de cartas’. Ela depende da


‘qualidade do jogo’, ou seja, ao mesmo tempo da mão (ter um jogo bom) e da
maneira de jogar (ser um jogador habilidoso). O ‘lance’ põe em causa de um lado os
postulados que condicionam um espaço de jogo, de outro, as regras que dão à mão
um certo valor e ao jogador possibilidades, enfim uma habilidade para manobrar em
conjunturas diferentes onde o capital inicial se acha empenhado (Certeau, 1994:
121).

O uso do termo “estratégia” justifica-se pelo fato de que as práticas dão uma
resposta adequada às conjunturas. Mas Bourdieu ressalta que, à despeito da terminologia, não
há “intenção estratégica”. Certeau fala que “não há previsão mas apenas um ‘mundo
presumido’ como a repetição do passado. Em suma, ‘como os indivíduos não sabem,
propriamente falando, o que fazem, o que fazem tem mais sentido do que sabem’” (Certeau,
1994: 124). Segundo Bourdieu, ao falarmos das práticas cotidianas, temos que relacioná-las
não apenas às condições objetivas — que definem as condições sociais de produção do
habitus — mas também à conjuntura, um “jogo cotidiano” que representa um estado
particular da estrutura objetiva (cf. Bourdieu, 2002: 168).

36
Cabe, portanto, o recurso conceitual de “jogos” e “estratégias” usado por Bourdieu e Certeau (1994). O
ônibus é, em sua natureza, um não-lugar. O jogo que ali se estabelece tem regras, tem certos postulados que
estabelecem um espaço de jogo. O espaço do não-lugar e as valências mútuas que os passageiros estabelecem
definem um “modo de uso” — dando possibilidades de ações —, e as circunstâncias, que no nosso caso estão
diretamente associadas à trama metropolitana que estabelece as formas de enunciação do espaço, oferecem
espaço ao passageiro para que ele bole “estratégias” — de forma não-reflexiva, ou seja, de maneira meramente
prática (cf. Certeau, 1994: 121; 212). As estratégias são, portanto, um saber não sabido. “Há, nas práticas, um
estatuto análogo àquele que se atribui às fábulas ou aos mitos, como os dizeres de conhecimentos que não se
conhecem a si mesmos. Tanto num caso como outro, trata-se de um saber sobre os quais os sujeitos não refletem.
Dele dão testemunho sem poderem apropriar-se dele. São afinal os locatários e não os proprietários do seu
próprio saber-fazer” (Certeau, 1994: 143).
43
Nesse sentido, o “jogo” da circulação quente oferece outro contexto no que tange
à aproximação e conversação, abrindo espaço para novas estratégias, caso da festa de
aniversário da Dona Ana. As trajetórias trazem mundos possíveis que, no contexto do “calor”
do ônibus metropolitano, acabam sendo realizados. Caiafa (2007: 93) afirma que a conversa e
a linguagem conferem uma realidade possível: “a conversa me traz aquele estranho mundo,
realiza aquele possível como um mundo que o outro me traz (…); a linguagem me mostra o
espanto que eu não conhecia (…) concretizando, conferindo alguma realidade ao que outrem
expressa e me traz”.
Vale lembrar que as circunstâncias desses dois jogos cotidianos estão diretamente
associadas e são geradas pela trama metropolitana de Brasília, que forma — ela mesma — as
condições objetivas de tais jogos. A circulação fria — a circulação do não-lugar — é típica
dos ônibus circulares, enquanto a circulação quente é típica dos ônibus metropolitanos que
ligam as regiões administrativas. O percurso que acontece nos grandes vazios que ligam as
cidades-satélites ao Plano Piloto, cria uma circunstância típica, “calorosa”, “cordial”, abrindo
a possibilidade para conversas mais pessoais, festas, cantores e vendedores.

44
Foto 1 - Ideogramas e textos típicos para delimitar assentos preferenciais nos ônibus de
Brasília (Marcos Henrique da S. Amaral – Abril de 2009)

Foto 2 – Disposição inicial dos passageiros no ônibus, atentando para a preferência em


sentar-se sozinho e próximo à janela (Marcos Henrique da S. Amaral – Agosto de 2009)

45
Capítulo II
Interações

Tempo e espaço são necessários para se locomover de uma atividade para outra;
isto é o que uma viagem expressa, que a intensidade é função da agenda daqueles
que a fazem, porque, ao mudar de atividades em certas horas eles também estão
mudando de lugar. Agora, essas mudanças de atividade não simplesmente
mudanças técnicas; elas podem envolver genuínas mudanças de papel, por exemplo,
quando elas correspondem a uma transição daquilo que nós chamamos de vida
profissional para o que nós chamamos de vida privada (Augé, 2002: 56)37.

De forma genérica, poderíamos definir uma interação como ações inter-


relacionadas de dois ou mais indivíduos, sendo assim uma influência recíproca ativa. No
entanto, essa definição genérica não nos ajuda a compreender a lógica das interações
cotidianas que aqui nos interessa: aquelas que acontecem no ônibus. Em princípio, pode-se
acrescentar o caractere da comunicação que é, em si mesma, a reciprocidade mútua
pressuposta pela interação. Segundo Strauss (1999), todo grupo — que se organiza a partir de
uma teia de interações — desenvolve uma terminologia partilhada, a partir da qual as pessoas
se comunicam. Isso nos leva a uma importante consideração: a direção da ação depende da
forma com a qual os objetos são classificados. Nesse sentido, a cognição — a partir de suas
formas mais elementares, que são essas categorias de classificação pertinentes a uma
terminologia específica — é pré-condição para a existência de ação.
Com isso, Strauss mostra o papel fundamental da comunicação na análise das
interações cotidianas, mostrando que o processo de classificação e reclassificação das coisas
— nomeação e renomeação — equivale à avaliação e à reavaliação da relação que as pessoas
têm com essas coisas e, doravante, os comportamentos mudam de acordo com essa linha de
reavaliação. Esse processo de nomeação insere outra componente relevante na interação, que
é a expectativa gerada em relação ao objeto classificado de uma dada maneira. Essa
expectativa nem sempre é eficaz, levando a novos processos de reclassificação e, assim, de
reavaliação, alterando o curso da ação. Destarte, Strauss dá conta do caráter circunstancial da
interação, na medida em que as ações inter-relacionadas são constantemente avaliadas e

37
Tradução livre para: “Time and space are needed to move from one activity to another; that is what
trips express, whose intensity is a function of the schedule of those who make them, because, in changing activity
at certain hours they are also changing places. Now, these changes of activity are not simple technical changes;
they can involve genuine changes of role, for example, when they correspond to a transition from what we call a
professional life to one we call private” (Augé, 2002: 56).
46
reavaliadas, de forma que o indivíduo pode guiar e mudar o curso da seqüência de ações, no
sentido do imediato imediatizado.
Ao admitirmos uma seqüência de ações como resultado de freqüentes avaliações,
admitimos que uma interação se coloca sob pilares da avaliação do outro — a partir da
nomeação — e também da auto-avaliação. Assim, no contexto das interações cotidianas, uma
pessoa “não apenas precisa identificar o outro naquele momento, mas também identificar o
seu self naquele instante” (Strauss, 1999: 64).

A auto-avaliação conduz a decisões: evitar atos, fazer correções, fazer melhor,


arrepender-se, proceder bem. A auto-avaliação cerca-se assim “de um halo de ‘pode’
e ‘não pode’, ‘quer’ e ‘não quer’, ‘deve e não deve’”. O Eu como sujeito, ao rever
seus Mes como objetos, move-se continuamente para um futuro que em parte não foi
programado; assim emergem necessariamente novos Eus e novos Mes, isto é, atos
avaliadores e atos avaliados (Strauss, 1999: 51)

Assim, embora haja uma terminologia — nomeações —, anterior à circunstância


da interação em si, que gera um grau de expectativas e também de previsibilidade no curso
das ações; existe um caráter circunstancial admitido no decorrer da interação que admite
novos cursos a partir de reavaliações. As idéias de Strauss (1999) e de Certeau (1994)
parecem coincidir, ao ponto em que admitem, no cotidiano, “estratégias” — ações — que são
tomadas de acordo com dada circunstância de um jogo — de uma interação. No entanto, o
primeiro insere na discussão a questão da reflexividade e da comunicação não apenas como
elementos presentes no curso da interação, mas como elementos fundamentais nessa
discussão.
Strauss afirma que “a vida em grupo está organizada em torno da comunicação”
(Strauss, 1999: 149). Todavia comunicação não é admitida apenas como transmissão de idéias
entre pessoas, mas acima de tudo como sentidos compartilhados. Isso significa que, além de
tais sentidos serem empregados de forma análoga para que as pessoas se entendam, os termos
são derivados de uma ação comunitária e, por outro lado, permitem tal ação. Segundo Strauss,
numa lógica de grupo, os membros são autorizados ou desautorizados a agir de dada forma
porque partilham uma “terminologia comum”, formada fundamentalmente por pontos de
consenso, dos quais emergem classificações. Assim, qualquer grupo humano está longe de
definir-se meramente por seu caractere material, sendo fato essencialmente simbólico,
comunicativo.
As interações cotidianas que acontecem nos ônibus de Brasília não fogem da
proposta teórica de Strauss (1999), uma vez que a análise sociológica — ou antropológica —
do “grupo” formado pelos passageiros de ônibus passa necessariamente pela comunicação.
47
Sumariamente, os passageiros de ônibus tomados individualmente só podem ser tratados
como grupo porque partilham uma terminologia — que foge das palavras e navega na
corporeidade em boa parte das vezes. São grupos que se formam a partir do caráter
circunstancial da interação, mas — apesar disso — assumem papel de “referência” para o
passageiro. Assim, “dar preferência a mulheres grávidas, pessoas com algum tipo de
deficiência, idosos ou pessoas com criança de colo, no que se refere ao assento” é um ponto
de consenso deste grupo; faz parte da terminologia comum do grupo, que por vezes é formada
também por outros corpos de símbolos derivados da afiliação dos passageiros a outros grupos.
É claro ser comum a existência de “zonas de discordância conceitual e de incomunicação”
(Strauss, 1999: 153), podendo um passageiro eventualmente negar-se a ceder seu lugar a uma
mulher grávida; como também é possível que um passageiro do sexo masculino queira ceder
seu lugar a uma mulher, inserindo-a naquele grupo ao qual deve-se dar preferência. Assim,
embora seja nítida uma terminologia comum, cada passageiro joga com ela formando novas
estratégias, dada a circunstância. Da mesma forma, a “cortesia” dos passageiros sentados em
relação aos que vem em pé — ao oferecerem-se para carregar os objetos que estes segundos
trazem — também faz parte da terminologia partilhada entre os passageiros.

Se a ação de grupo é vista dessa maneira como ação comunicativa, então, num certo
sentido, a formação de grupo pode estar relacionada com os limites da comunicação.
Parafraseando G.H. Mead, aqueles que partilham conceitos partilham, com isso, o
potencial de formar um grupo com base nesses conceitos. O sociólogo Louis Wirth
costumava afirmar que enquanto determinados homens tinham algo em comum
podiam formar um grupo. (…) Podemos dar um passo à frente e dizer, com Mead,
que às vezes, para que ocorra uma ação de grupo, nem mesmo é necessário que os
homens reconheçam que tem coisas em comum (Strauss, 1999: 158)

Assim, ao usarem uma terminologia comum — expressa numa certa uniformidade


do nível da ação —, as pessoas que usufruem dos serviços do ônibus se vinculam, assumindo
um mesmo status de passageiro do ônibus. Ficam elucidadas as interações típicas do não-
lugar, em que existe essa terminologia — geralmente lembrada de forma expressas — e existe
uma identidade temporária que é partilhada por todos. Dentro do ônibus, ocorre uma mudança
temporária de identidade, retomando a obra de Strauss, que afirma ser tal instância a principal
no entendimento da lógica das interações cotidianas. A discussão de Strauss passa pela idéia
de tempo, mostrando que todas as sociedades ordenam o fluxo do tempo, dividindo-o em
unidades convencionais, introduzindo na vida das pessoas periodicidades, repetições, rotinas.
Durante tais períodos — ou fases, como podemos também chamar —, as pessoas
agem de forma a obedecer as autorizações e desautorizações, permissões e proibições,
conforme a instância temporal. “É bastante claro que isso afeta o curso das interações”
48
(Strauss, 1999: 128). O autor continua sugerindo: “convertamos essa enunciação de ação
institucional numa enunciação de identidade, e vocês diriam que as pessoas recebem sanção
por serem diferentes durante períodos diferentes” (Strauss, 1999: 128).
Assim, um status temporário pode ser tomado tanto como modo de agir, quanto
modo de ser. O status de passageiro de ônibus tem, ele próprio, uma estrutura interna
programada, que significa que as pessoas estão sempre ingressando nesse status e o deixando.
Isso significa que ao assumir a identidade de passageira de ônibus, uma pessoa ingressa nesse
status — definido por questões espaço temporais — que já tem uma estrutura interna
programada, guiada por uma terminologia. Existem certas obrigações neste caso: a pessoa
deve pagar uma passagem — ou apresentar algum tipo de “cartão-passe”, que a identifique
como estudante, por exemplo —, e só assim poderá ingressar nesse status. Posteriormente,
esta poderá estar na obrigação de obedecer certas normas de bem-viver — incluindo o uso da
função fática da linguagem, dizendo “licença”, “desculpa”, “perdão” —, evitar olhares para
outros passageiros e, enfim, deverá tomar diversas atitudes que fazem parte da programação
desse status. Da mesma forma, o passageiro de ônibus recebe algumas isenções, como o
direito ao “anonimato”: ali ele é apenas um passageiro de ônibus.
Um fato interessante a ser notado nessa “identidade periódica” foi levantado por
Augé (2002), quando ele diz ser, as viagens nos transportes públicos, mais do que meras
mudanças de lugar ou de atividades. A viagem de ônibus representa, antes de tudo, uma
mudança de papéis ou, mais ainda, uma mudança de identidades. Ele cita como exemplo uma
transição do que nós chamamos de vida profissional para a vida privada (cf. Augé, 2002: 56).
Assim, a identidade partilhada de “passageiro de ônibus” é uma identidade de transição.
Considerando todos os “passageiros em transição”, chegamos à esta identidade partilhada que
Augé trata como “correspondências” (cf. Augé, 2002: 53), no sentido de similitude38.

38
Do ponto de vista epistemológico, o pesquisador não é propriamente um “passageiro de ônibus”, uma
vez que ele não assume essa identidade periódica. Segundo Strauss, “o próprio observador [pesquisador] é
humano e, portanto, também está percorrendo suas fases. A interação se dá entre pessoas que estão ‘em fases’ —
diferenciais. Na pesquisa sociológica, reconhecemos isto de forma grosseira quando falamos do contato entre
pessoas que se acham em estágios diferentes de aprendizagem, ou de pessoas que estão sofrendo tensões
ocupacionais diferentes, com conseqüências para o lidar de um com outro. Seria útil um reconhecimento mais
explícito das fases em interação — não apenas das fases de interação” (Strauss, 1999: 133-134). Assim, nesta
pesquisa etnográfica, a minha identidade está essencialmente associada à figura de pesquisador (aluno graduando
em Sociologia, pesquisando tendo como fim a redação desta monografia) que interage com pessoas em outra
fase; “passageiras de ônibus”. Significa dizer que, ao contrário da lógica do não-lugar, eu não estou abandonando
outras identidades para ingressar nesse status periódico de usuário de ônibus; pelo contrário, me policio para
manter-me atento às minhas atividades de pesquisador. Significa também que não partilho propriamente da
mesma terminologia daquele grupo e, mais ainda, que minhas ações podem eventualmente confrontar àquelas
sugeridas pelo modo de uso do ônibus. Reconhecer essa interação “pesquisador-passageiro” é importante no
sentido do esforço metodológico proposto por Bourdieu de “objetivação do sujeito da objetivação” (cf. Bourdieu,
1990: 114).
49
v Silêncio comunicativo
As interações que acontecem dentro do ônibus constituem uma modalidade muito
particular de reciprocidade, pois tem como força-motriz o silêncio. De maneira geral, as
viagens dos ônibus circulares em Brasília são bastante silenciosas: salvo os ruídos gerados
pelo motor e pelo freio do ônibus, pouco se ouve. Nos ônibus metropolitanos, esse silêncio —
embora menos comum — também acontece. Todavia, há que se considerar que essa
modalidade de silêncio não é antônima à presença da comunicação necessária para que se
considere que o ônibus é um espaço de interações. O silêncio que observei nos ônibus pode
ser considerado um “silêncio denso” ou “silêncio ativo” (cf. Caiafa, 2006) ou, como irei
chamar, silêncio comunicativo. Assim, como já posto na sessão anterior, a comunicação não
passa necessariamente pela verbalidade, palavras expressas oralmente.
A característica apriorística de não-lugar do ônibus já o coloca como espaço de
anonimato, um espaço em que o anonimato é regra. Georg Simmel (1967) acreditava que o
excesso de estímulos dentro do transporte público — as imagens de dentro e de fora do
ônibus, o movimento, os odores, os ruídos, tudo isso — acabava por gerar o seu contrário,
criando usuários passivos ou blasés39, que, como vimos, são característicos — de forma geral
— dos “usuários” da metrópole. Segundo este autor, essa é uma característica bem particular
dos transportes públicos que, segundo ele, trazem essa novidade de confrontar diversas
pessoas que se acham em situação de olhar-se, por vezes durante mais de uma hora, sem se
falar. Logo de começo é possível notar essa atitude blasé como parte fundante do modo de
uso do ônibus.
A cena se repete rotineiramente: há uma ordem para ocupação do ônibus. Os
primeiros passageiros vão ocupando as janelas, sentando-se individualmente num assento
com lugar para duas pessoas — salvo as exceções, quando o passageiro já entra acompanhado
de um conhecido. Somente após preenchidos os lugares mais próximos às janelas, os outros
lugares — do corredor — passam a ser preenchidos. Há sempre um pedido de licença para
quem já vem sentado na janela, e um pedido de desculpas caso, no movimento para sentar-se,
uma pessoa encoste bruscamente na outra. Nessa trama de “não olhar” e “não tocar”, até
mesmo algumas indumentárias tem papel importante, caso dos óculos escuros. Nos ônibus, os
óculos escuros — mesmo durante a noite — acabam servindo para disfarçar os loquazes
olhares que um ou outro passageiro dá em direção a outro. É interessante também observar o
esforço que fazem os passageiros que estão sentados próximo à janela de sempre mirarem o
39
Traduzido do francês, o termo se refere ao ser “entediado”, que olha os outros com certa repugnância ou
indiferença.
50
exterior do ônibus. Do mesmo modo que os óculos escuros assumem importância na trama —
servindo bem ao “não olhar” —, outras indumentárias são indispensáveis, no sentido se
“comunicar sem falar”, caso dos uniformes dos policiais, dos bombeiros e dos carteiros, que
podem usar os ônibus gratuitamente. Assim, o carteiro — ao fazer sinal no ponto de ônibus —
é dispensado de passar pela roleta do ônibus, uma vez que, pelas roupas facilmente
identificáveis, o motorista do ônibus autoriza sua entrada pela porta traseira, que é
tradicionalmente, em Brasília, a porta de saída. O mesmo se repete para os policiais e
bombeiros: não é necessário fazer qualquer sinal gestual além da normalidade, pois os
próprios uniformes comunicam imediatamente uma dada situação, a partir da qual se orientam
as práticas dos envolvidos na trama.
O caractere “não olhar”, parte do “modo de uso” do ônibus, me parece
nitidamente claro quando da entrada de um passageiro com deficiência física — cadeirante.
Mesmo com as recentes adaptações dos ônibus para a entrada dos “cadeirantes”, a situação de
entrada de um deles gera constrangimento, devido à demora do sistema de elevação da cadeira
de rodas. Assim, nota-se um esforço para não olhar, uma vez que, por não ser uma situação
propriamente rotineira, os usuários não têm estratégias no seu repertório pré-lógico para agir,
e é isso que gera o constrangimento, e uma ênfase maior na prática de “não olhar-se”.
Embora toda essa corporeidade aproxime-se da noção foucaultiana de
“codificação instrumental do corpo”, que trata do uso do próprio corpo enquanto instrumento
que tem — em si mesmo — um modo de uso (cf. Foucault, 1977: 139), ela está longe de
inserir elementos punitivos severos. O silêncio e a atitude blasé dos passageiros são mais uma
forma de “polidez”, como chama a atenção Gabriel Tarde: “A conversação é a mãe da
polidez. Isso acontece mesmo quando a polidez consiste em não conversar” (Tarde, 1992:
141). O termo, polidez, é interessante porque sugere um cultivo do silêncio. Não seria menos
correto dizer que esse cultivo do silêncio faz parte da terminologia desse grupo, pois é assim
— por meio desse denso silêncio — que as pessoas se comunicam nesse ritual diário de uso
dos ônibus.
É em silêncio, por exemplo, que as pessoas que viajam sentadas demonstram
solidariedade para as que vão de pé, seja oferecendo ajuda para segurar algum objeto, seja
cedendo o lugar, dependendo do passageiro que vai em pé. É bem verdade que, em muitas
ocasiões, os passageiros trocam palavras expressas, mas sempre dão preferência ao silêncio.
As conversas expressas que eventualmente quebram o silêncio dificilmente ultrapassam a
barreira da impessoalidade. Esse cultivo do silêncio é tão palpável que, qualquer menção em

51
“quebrá-lo”, representa um constrangimento para quem faz tal ameaça. Um bom exemplo
disso é uma chamada no telefone celular. Pude presenciar, em uma viagem, o momento em
que um celular toca durante a viagem, o que gera, quase imediatamente, uma ação coletiva no
sentido de olhar para a direção de onde vem aquele ruído. Quando a dona do aparelho atende
a chamada, os olhares para ela deixam de ser discretos e tornam-se fixos, pois ela —
conversando ao celular — está quebrando o silêncio do ônibus. Os olhares fixos fazem parte
da codificação instrumental do corpo dentro do ônibus e tem o intuito de constranger a pessoa
que atende o telefone, até que ela desligue e devolva o silêncio.
Por vezes, a minha situação enquanto pesquisador foi incômoda, devido a essa
atitude blasé dos passageiros de ônibus. Como o “não olhar” e “não tocar” fazem parte do
modo de uso do ônibus, a posição de pesquisador me obrigava necessariamente a contrapor tal
modo de uso. Enquanto eu observava cada nuance das viagens e, mais ainda, anotava essas
nuances num “diário de campo”, diversos passageiros olhavam para mim, denotando um certo
estranhamento àquela atitude minha, nada indiferente à trama, o que causava um certo
constrangimento. A situação de estranhamento era ainda maior quando eu quebrava o
silêncio, para ter algum tipo de conversa informal com os passageiros. Assim, a diferença das
“fases em interação” — pesquisador e passageiro — causavam esse tipo de constrangimento
com alguma freqüência. Por este motivo, fotografar aquela trama se tornava algo quase
inimaginável. Algumas das conversas informais eram uma forma de “justificar” a minha
loquacidade ao observar a trama em cada um de seus detalhes.
Essa modalidade de silêncio — deve-se ressaltar — é típica e mais comum nos
ônibus circulares, que circulam nas regiões administrativas de Brasília, por serem marcados
pelo jogo da circulação fria, em que acentuam-se os traços do não-lugar. Esse silêncio
comunicativo também está presente nos ônibus metropolitanos, que circulam entre as regiões
administrativas. No entanto, nestes casos, eles são menos característicos, devido à forma de
circulação quente, em que não apenas o silêncio representa cortesia, mas também outras
formas de comunicação.

v Saindo da rotina
A rotina das viagens segue geralmente o mesmo ritmo. As imagens se repetem
como um filme que é reproduzido diariamente. Os passageiros sempre olham pela janela,
alheios à paisagem que o ônibus vai deixando para trás. É tudo apenas a reprodução das
mesmas imagens, com as mesmas personagens e, com a repetição, os passageiros parecem

52
ficar alheios a este “mundo exterior”, recolhendo-se ao silêncio oferecido como cortesia pelos
outros passageiros. O denso silêncio dificilmente abre espaço para que o roteiro seja reescrito
dia após dia; especialmente nos ônibus circulares. Na linha 355, em Taguatinga, o filme é
repetido viagem após viagem: saindo do terminal, ele pára em todas as paradas; o embarque é
quase sempre de estudantes, o que faz com que as paradas nas escolas sejam mais longas para
o desembarque. Tudo se repete: os gestos, as falas, as personagens. Tudo no mesmo silêncio
comunicativo que parece, de fato, seguir um rígido roteiro.
Nesse cenário, “acontecimentos extraordinários” assumem importância
fundamental, principalmente no jogo da circulação fria do ônibus circular. Em uma viagem da
linha 355, presenciei um momento em que uma criança deixara cair diversas bolinhas de
brinquedo no chão do ônibus. Devido à aceleração e à frenagem do ônibus, as bolinhas
dançavam no chão do ônibus, indo e vindo de um lado a outro. Em poucos instantes, a dança
daquelas bolinhas se tornaram um espetáculo para a “platéia” do ônibus. Os passageiros logo
quebraram o silêncio, passaram a conversar e os olhares — sempre fixos na paisagem externa
— mudaram de direção, seguindo o novo espetáculo. O que de fato acontece é que, diante da
repetição do ritual de uso dos ônibus, qualquer novo acontecimento que saia da rotina
representa um momento de percepção da identidade de passageiro de ônibus. Ou seja, sair da
rotina, neste caso, significa perceber a equivalência das identidades que entram interação;
relembrar aos passageiros da sua condição e do outro como passageiros; tornar visível — aos
passageiros — que eles formam um grupo que estão constantemente interagindo. E é nesse
sentido que os fatos que extrapolam a rotina também abrem margem para novas estratégias no
jogo dos deslocamentos diários. Destarte, neste momento — por exemplo — é possível
quebrar o silêncio fundante das interações do ônibus para fazer comentários sobre o
acontecimento extraordinário.
Embora esse caractere dos novos acontecimentos — de relembrar as fases em
interação — seja mais nítido nos ônibus circulares, ele também aparece eventualmente nos
ônibus metropolitanos. Alguns deles passam por importantes pontos turísticos de Brasília. No
entanto, essas paisagens também constituem, para os passageiros, um filme repetido e
efêmero, que é observado apenas distraidamente. No entanto, viajando em um destes ônibus
presenciei mais um acontecimento extraordinário. A singularidade neste caso é que o fato se
passava do lado de fora: membros da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e alguns outros
manifestantes se reuniam em frente ao Congresso Nacional — um dos principais pontos
turísticos de Brasília e sede do poder legislativo —, fazendo protesto em favor de uma causa

53
trabalhista. Ora, naturalmente aquilo alterava aquela paisagem que costumava se repetir
diariamente e, por isso, se tornou brevemente motivo de comentários do tipo “reclamação” —
principalmente no que tange à classe política — e foco dos olhares da maioria dos
passageiros. Dois passageiros — com materiais escolares, aparentando serem estudantes —
sacaram câmeras fotográficas para registrar a cena.
Destarte, novos acontecimentos — o extraordinário — representam novas
estratégias diante do jogo. O que outrora poderia ser encarado sob a forma de
constrangimento, como usar uma câmera fotográfica, pode ser tido sob uma nova óptica numa
situação extraordinária. Assim, “sair da rotina” significa — recorrendo à terminologia de
Strauss — renomear, reavaliar — à partir das novas classificações — e executar novas ações,
fora do repertório usual desse ritual cotidiano.

40
v Músicos, atores, vendedores e pedintes

“Ela tem paralisia cerebral. Ela não anda e não fala. Ela enxerga muito pouco. É
através de leite e dos remédios que ela toma que ela vai melhorando. Esses
remédios custam caro, e eu não tenho condição de comprar, por isso eu ‘tô’
pedindo. Eu não ‘tô’ roubando. Eu ‘tô’ pedindo só pra interar o leite dela e os
remédios dela. Se vocês ‘puder’ ajudar… Qualquer ajuda que vocês ‘der’, eu
agradeço. Vão com Deus e boa viagem”.
(Mulher pedindo dinheiro, com uma criança no colo, num ônibus da linha 300)

“Testado e aprovado, registrado, produto ‘pra’ exportação. Vou mostrar na


prática. ‘Pra’ qualquer tipo de legume; facilitar sua vida, assim ‘ó’… Descascando
legume sem desperdício, é a primeira vantagem. Com isso, acidente acabou,
pessoal. Se pegar na mão, não corta. Corta também uma batata ‘chips’ que é uma
beleza. O legume ele corta, a fruta ele corta, só não corta sua mão, ‘né’? Batata
palha; prática. Olha só que eficiência. Um aparelho prepara batata ‘chips’, batata
palha, salada fatiada… Olha só a salada de frutas como se corta. Você vai ter uma
excelente salada de frutas, sem sementes. Frutas como a laranja você descasca com
essa facilidade. Quer uma salada ‘light’? Você pode cortar seus legumes com esse
corte mais fininho. Moço, quanto custa um aparelho desses? Na loja custa cinco e
noventa e nove. Na minha mão é três reais apenas. Na promoção, você leva dois por
cinco. Tem o ‘boleador’ ainda. Dona de casa que gosta de decoração de pratos ou
até mesmo incentivar essa criançada a comer. Hoje ‘tá’ um sucesso, você prepara o
‘legumes’ assim ‘ó’, no formato da bolinha. É um incentivo a mais pro seu filho
comer. Pode fazer ela frita também, ‘né’?Três utilidades em um único aparelho.
Hoje, na promoção, você paga três reais. Levando dois na minha mão, você paga
cinco reais. Lâmina de aço ‘inox’. Esse não enferruja, ‘tá’?Quem quiser adquirir
‘tá’ aí a oportunidade de levar um excelente aparelho na minha mão por três reais.
Levando dois você paga cinco reais”.
(Vendedor, fazendo demonstração de produto, num ônibus da linha 300)

40
A escolha pelo uso da terminologia “pedinte” não tem nenhuma finalidade pejorativa. Ao contrário,
optou-se pelo termo pedinte — como tradução imediata da palavra beggar, usada por Augé —, considerando as
interpretações pejorativas às quais pode estar associado o termo “mendigo”.
54
Em Brasília, músicos, vendedores e pedintes fazem parte da paisagem dos ônibus
metropolitanos, que ligam o centro à periferia. Especialmente nos grandes vazios que ligam
ambos os espaços — onde o ônibus raramente faz paradas para embarque e desembarque —,
os ônibus se tornam palco de espetáculos para essas três classes de transeuntes. Esses
espetáculos acontecem diariamente nesse tipo de viagem, motivo pelo qual não podemos
considerá-los algo fora da rotina. Pelo contrário, esses espetáculos — cada um à sua maneira
— são caracteres constituintes da “circulação quente”, contribuindo de certa forma com mais
calor. Isso porque, ao fazerem suas performances, músicos, vendedores e pedintes trazem a
noção de grupo à tona, gerando comentários e conversas mais duradouras.
A escolha do termo espetáculo, associado à performance, se filia à idéia de
representação (“presentation”) de Goffman (2007). Segundo ele, o termo representação pode
ser usado para se referir “a toda atividade de um indivíduo que se passa num período
caracterizado por sua presença contínua diante de um grupo particular de observadores e que
tem sobre estes algum influência” (Goffman, 2007: 29). Assim, tanto vendedores, quanto
músicos e pedintes, de alguma forma, estão apresentando o seu “eu” de forma a gerar
influência sobre o grupo de passageiros de ônibus, apresentando-lhes uma fachada que,
segundo Goffman, é um “equipamento expressivo de tipo padronizado intencional (…)
empregado pelo indivíduo durante sua representação” (Goffman, 2007: 29). Fazem parte
dessa fachada o cenário, constituído pelo próprio ônibus; a platéia e, claro, o roteiro que inclui
uma pré-disposição da performance. Nesse sentido, é correto afirmar que tanto o músico,
quanto o vendedor ou o pedinte, executam performances, incluindo nela dramaticidade, que
consiste na acentuação dos traços expressivos de sua performance, com o intuito de aumentar
a influência sobre o grupo dos passageiros (cf. Goffman, 2007: 36). É claro que cada um
representa à sua maneira, segundo seu próprio roteiro.
As performances acontecem devido a condições temporais favoráveis pois,
diferente do que acontece nos ônibus circulares, nas grandes avenidas que ligam o centro à
periferia de Brasília, a rotatividade é muito baixa. Mais ainda, nesse contexto da circulação
quente — que sempre abre “uma gama mais ampla de ações e pensamentos” (cf. Capítulo I)
—, esses espetáculos são, de forma geral, bem recebidos, pois acabam se tornando uma
distração, principalmente quando são espetáculos de música ou de teatro. Em tudo esses
transeuntes se diferenciam do restante do ônibus, pois se encontram em outra fase de
interação: não são passageiros de ônibus; são, antes, trabalhadores. A diferença logo é
percebida na “admissão” destes transeuntes ao entrar no ônibus: de maneira geral, eles fazem

55
algum tipo de gesto de mão quando estão de fora do ônibus, e o motorista permite a entrada
deles pela porta traseira, sem pagar passagem. É claro que essa relação nem sempre acontece
assim, pois alguns motoristas não abrem espaço para esse tipo de espetáculo e alguns desses
“transeuntes-trabalhadores” preferem pagar para ter o direito de representarem.
Existem algumas diferenças entre as representações dos vendedores, músicos e
pedintes. Os músicos, de forma geral, iniciam a performance sem qualquer discurso anterior.
Nos ônibus da linha 300, que liga Taguatinga ao Plano Piloto, é comum que, no horário das
18h — quando já existem alguns passageiros em pé —, um flautista faça suas apresentações.
Devido à duração da viagem, ele toca em média 5 músicas: tocando violão e acompanhando
com sua flauta andina. O repertório tem forte apelo popular, passando de clássicos
internacionais — “Beatles” e “Simon and Garfunkel” — a sucessos nacionais, como Caetano
Veloso. Este músico é quase sempre muito bem recebido e, ao final, a maioria dos passageiros
e mesmo o cobrador pagam a ele uma quantia. Augé chama a atenção, “passar o chapéu é uma
forma de impor generosidade: tomando vantagem do espaço fechado do ‘carro’, o cantor ou
músico tem alguns minutos para performar e seduzir” (Augé, 2002: 46)41. Assim, os músicos
têm um período de tempo — que no caso de Brasília, representa a execução de, em média 4
ou 5 músicas — para usar seu talento e “impor” a idéia de uma retribuição necessária. Não é
raro, também, que os músicos se apresentem em pares: enquanto um recolhe as “retribuições”
o segundo continua fazendo a performance.
Oferecer serviços artísticos parece ser bem diferente de “pedir”, embora ambos se
tratem de executar performances. Cantar, tocar um instrumento ou fazer qualquer tipo de peça
teatral parece exigir uma retribuição. Não raro, nestes casos, quase a totalidade dos
passageiros oferecem retribuição. Figura marcante dos ônibus metropolitanos em Brasília, o
ator que se identifica como “Marquinho Candango” faz comédia no ônibus, e consegue
sempre arrancar muitas gargalhadas dos passageiros, que acabam se tornando personagens do
seu espetáculo, bem como o cobrador e o motorista. “O cobrador é o amor da minha vida!
Motorista, se isso é verdade dê duas buzinadas!” O motorista entra na brincadeira do ator e
responde com duas breves “buzinadas”. E assim começa seu espetáculo, que costuma incluir
também muitas piadas sobre os moradores do Plano Piloto e das várias cidades-satélites de
Brasília. A lógica da retribuição é vista na hora de “passar o chapéu”, que também não passa
alheia ao comediante: “Moço, pode acordar que eu já passei o chapéu”. Segundo uma
passageira, “ele une o útil ao agradável; tem o talento de arrancar sorrisos e nada mais justo
41
Tradução livre para: “passing the hat is a way of imposing generosity: taking advantage of the enclosed
space of the ‘car’, the singer or musician has some minutes to perform and seduce” (Augé, 2002: 46).
56
que ele ganhe por isso”. Nessa fala, notamos que oferecer serviços artísticos no ônibus
representa distração aos passageiros que fazem uma longa viagem entre centro e periferia; e,
por oferecerem distração, esses artistas merecem uma retribuição. O final da apresentação de
Marquinho Candango é feito com uma declaração emblemática: “Todos nós somos iguais. A
prova disso tudo é que estamos no mesmo ônibus, no mesmo horário, tudo fechado, se
acontecer algo comigo, acontece com você” — relembrando a condição de grupo dos
passageiros de ônibus.
O ato de “pedir” — begging — não exige uma retribuição automática, pois o
pedinte não oferece um serviço a ser pago. Pelo contrário, os pedintes geralmente são
repudiados pela platéia de passageiros e, por isso, a performance parece ser ainda mais
fundamental neste caso. A dramaticidade — como no caso da mulher que pede dinheiro, com
uma criança doente no colo — parece ser elemento crucial para convencer os passageiros.
Segundo Augé,

Pedintes ‘dão algo para olhar’, mas oferecem nada mais que eles mesmos, uma
presence bruta, um ausência massiva; eles ‘dão algo para olhar’ mas não olham para
ninguém, a não ser com a ajuda de óculos escuros e bengalas (…), não propriamente
cegos, mas sem olhos, sem palavras e sem um trabalho, uma passividade pura, uma
súplica sem voz interpelando apenas aqueles que querem se ‘interpelados’ (Augé,
2002: 47-48)42.

Assim, considerando que os pedintes — beggars — não têm nada a oferecer, se


não eles mesmos, o roteiro de suas performances costumam ser cheios de informações sobre
si mesmos, sobre suas famílias, eivadas de fatores dramáticos. No entanto, muitos dos
pedintes parecem perceber a situação incômoda de sua performance, e substituem os pedidos
orais — quase cantados — por um pedaço de papel que dá alguma informação sobre eles e
sobre a sua situação, resultando no que Augé chama de “pedir em silêncio” (cf. Augé, 2002:
47)43. Destarte, os pedintes podem oferecer um silêncio cortês; o mesmo cultivado
freqüentemente nos ônibus. Não raro, esses pedidos em silêncio são mais bem recebidos do
que os discursos falados-cantados.
O grande diferencial do dinheiro dado ao “artista” e ao “pedinte” no ônibus é que,
no caso do segundo, existe uma filantropia “forçada” — principalmente pela natureza
circunscrita do espaço do ônibus —, enquanto que para o primeiro caso existe o

42
Tradução livre para: “Beggars ‘give something to look at’, but offer nothing more than themselves, a
brute presence, a massive absence; they ‘give something to look at’ but look at no one, without the aid of
sunglasses and canes (…), not blind at all, but without eyes, obvious, without words and without a job, a pure
passivity, an unvoiced appeal interpellating only those who want to be ‘interpellated’” (Augé, 2002: 47-48).
43
Tradução para: “begging in silence” (Augé, 2002: 47).
57
“profissionalismo”, do ponto de vista da performance. Há que se ressaltar, no entanto, que há
retribuição para ambos os casos, quanto a própria performance.
Os vendedores parecem se diferenciar de ambos. Não se dá dinheiro aos
vendedores. As pessoas compram seus produtos, embora essa noção de dar mereça uma futura
problematização. Os produtos mais vendidos dentro destes ônibus são objetos ou alimentos de
baixo valor: o padrão é R$ 1,00. Balinhas, chicletes e outros doces, agulhas de costura,
“salgadinhos” estilo “chips”, canetas e outros objetos que dificilmente ultrapassam a quantia
de R$ 1,00. Aqui a performance também tem papel fundamental para convencer os “clientes”,
uma vez que — inicialmente — boa parte dos produtos parece não ter utilidade imediata.
Assim, por vezes, os passageiros parecem comprar produtos “passionalmente”, para ajudar os
vendedores e é nesse sentido que essa noção de “dar” merece ser problematizada. Um caso à
parte é o do vendedor que teve seu discurso supracitado na epígrafe desta sessão. A
performance inicia-se com o figurino do vendedor, que usa indumentária remetendo-se à
profissão de chef de cozinha. O produto — que serve para cortar legumes e verduras — custa
R$ 3,00; valor acima dos padrões para essa modalidade de comércio. No entanto, ele faz
demonstrações do produto, cortando — “ao vivo —, alfaces, berinjelas, tomates, cenouras e
batatas, como é feito nesses comerciais de televisões que vendem produtos da Polishop. A
performance surte efeito, e os passageiros — quase todos — compram o seu produto. O
mesmo caso se aplica a outro vendedor que se veste de palhaço, recita poesias e vende cartões
postais nos ônibus. Em ambos os casos, mais do que vendedores, eles parecem não apenas
vender um produto, mas a própria performance. Neste sentido, chegamos a um ponto de
convergência entre vendedores, artistas e pedintes: vendem performances, como se estivessem
oferecendo a si mesmos, distraindo os passageiros.

58
Foto 3 – O comediante Marquinho
Candango em uma de suas
performances. Até a roupa colorida é
importante para o sucesso da
apresentação, uma vez que o
diferencia dos passageiros de ônibus.
(Marcos Henrique da S. Amaral – Julho
de 2009)

Foto 4 – O
comediante
Marquinho Candango,
na hora de “passar o
chapéu”. (Marcos
Henrique da S. Amaral
– Julho de 2009)

59
Considerações Finais

Inicialmente, lançamos questões que problematizavam a noção de não-lugar,


instigando a investigação acerca dos modos de uso dos ônibus em Brasília, buscando aspectos
no cotidiano do uso dessa modalidade de transporte público que pudessem ser elucidativos no
que tange à trama metropolitana. Após investigar a típica forma de sociabilidade que se
desenrola no cenário dos ônibus da cidade, podemos levantar alguns pontos que, de alguma
forma, servem para mapear o cotidiano dos deslocamentos diários. Com isso, mais do que
responder às questões inicialmente postas — fazendo a conexão entre os deslocamentos feitos
pelos ônibus e a trama da metrópole —, convém levantar pontos que se mostraram
importantes ao longo da pesquisa, além de buscar um diálogo entre pesquisa e teoria
sociológica.
O primeiro ponto relevante sobre a trama metropolitana de Brasília diz respeito à
ambivalência centro/periferia, que na verdade é referente ao par auto-suficiência/dependência
funcional que caracteriza os espaços urbanos. Assim, nesta trama, podemos observar — à
partir desse modelo típico ideal — que o Plano Piloto assume função de centro devido à
concentração de empregos e serviços, que são escassos em outras áreas da metrópole. Tais
áreas acabam por depender da região central em tudo, nos levando à primeira definição de
“metrópole” referente à centralidade de um espaço urbano em relação a outros, no que tange
ao fluxo de pessoas e serviços. Com isso, é correto afirmar que a região central de Brasília —
o seu Plano Piloto original — assume papel de “centro” no cotidiano da cidade e se torna o
principal marco cognitivo para a trama metropolitana, incluindo aspectos relevantes para a
pesquisa, como o fluxo de pessoas entre os espaços, ou seja, os deslocamentos diários.
No que diz respeito a estes deslocamentos, vimos primeiramente que quase 60%
deles têm como destino a região central, por meio das grandes vias de trânsito rápido que
ligam centro e periferia, e que se caracterizam por serem demasiadamente congestionadas nos
“horários de pico”, próximos das 8h, 12h e 18h. Em segundo lugar, destacamos a importância
dos ônibus para o desenrolar desses deslocamentos, principalmente para os moradores das
cidades-satélites, pois, como vimos, é um meio de transporte típico da periferia. Assim, os
ônibus se caracterizam inicialmente como principal elo entre centro e periferia, fato
elucidativo do mais marcante padrão de deslocamento em Brasília, que diz respeito à conexão
entre duas regiões administrativas representativas dessa ambivalência. Outros padrões que

60
foram investigados dizem respeito aos ônibus circulares, que se limitam a uma única região
administrativa não desafiando suas fronteiras. Em nossa pesquisa, observamos uma linha
representante dos ônibus circulares que viajam diariamente no centro de Brasília, e outra linha
que tem seus limites em Taguatinga.
Tendo identificado padrões de deslocamentos dos ônibus de Brasília, a nossa
análise se volta para o nível da sociabilidade da trama de uso dos ônibus na cidade, ou seja,
saímos de uma análise da trama metropolitana propriamente dita, e entramos na análise dos
usos dos ônibus, que aqui são observados como espaço onde ocorrem cruzamentos de
trajetórias. Um grande achado da pesquisa foi a verificação de que existem “formas de
circulação” diferentes, dado o contexto metropolitano, que aqui denominamos de “circulação
quente” e “circulação fria”, referindo-se respectivamente às tramas que acontecem nos ônibus
metropolitanos — que conectam duas regiões administrativas diferentes — e nos ônibus
circulares, dentre os quais foram observados casos no Plano Piloto e em Taguatinga.
A circulação quente refere-se à longa duração e à baixa rotatividade de
passageiros que marcam as viagens entre o centro e a periferia de Brasília. Trata-se de um
cenário favorável para conversas e novas situações, devido aos longos trechos — de mais de
10 quilômetros — sem qualquer embarque ou desembarque de passageiro. Com isso,
trouxemos a problematização da noção de não-lugar que norteou o trabalho. Embora sejam
marcados, de fato, por um modo de uso que vincula os usuários — entre eles mesmos e ao
espaço do ônibus —, que é sentido na forma de uma comunicação expressa e por vezes
corporal, e é marcadamente característico dos não-lugares; os ônibus metropolitanos de
Brasília que ligam centro e periferia parecem abrir espaço para que outras identidades que não
a de “passageiro de ônibus” de ônibus sejam colocadas em jogo. Assim, esse cenário admite
novas práticas — novas estratégias — que não propriamente a atitude blasé que parece ser
marcante na metrópole. Delimitamos, destarte, uma circulação quente que não tem
propriamente o anonimato como principal característica, mas é sim um jogo em que novas
estratégias são sempre colocadas em prática, em que a conversação é admitida em detrimento
ao silêncio, em que o anonimato não é regra — e por vezes é algo indesejado pelos
passageiros. O jogo da circulação quente abre a possibilidade para as performances de
músicos e vendedores, que em si mesmas geram a possibilidade de novas estratégias. Assim,
a circulação quente é expressão de um fato para o qual Augé (1994) chama a atenção: a
recomposição do lugar antropológico dentro de um não-lugar.

61
A circulação fria, referente aos ônibus circulares — tanto aqueles que viajam no
centro quanto aqueles que viajam na periferia, que mostraram-se não muito distintos no que
tange à trama da sociabilidade —, acaba se articulando mais idealmente à noção de não lugar,
sendo o espaço do silêncio e da função fática da linguagem, um esforço para assegurar o
mínimo de comunicação. É espaço de uma identidade partilhada, sendo que o jogo não admite
estratégias muito diferentes daquelas ‘prescritas’ pelo modo de uso do ônibus. Assim, o
referencial teórico de Augé (1994) cabe muito bem na análise dos ônibus circulares, cenários
da circulação fria, onde predomina a presença de usuários blasés, como define bem Simmel
(1967), ao mostrar tal caractere como essencial na trama da metrópole, bem como a atitude de
reserva e a falta de envolvimento dos agentes em tal trama. Todavia, tal referencial teórico
não se adapta pronta e imediatamente ao caso dos ônibus metropolitanos — que ligam centro
e periferia —, cenários típicos de uma circulação quente.
Essa ambivalência quente/frio, bem elucidada por Ribeiro (1998) que mostra o par
como a oposição formada entre o encorajamento e o desencorajamento do contato entre os
participantes da trama, não é sinônimo da ausência de ‘vínculo’ entre os passageiros em um
ou outro caso. No capítulo II, busquei mostrar que mesmo no silêncio — que os passageiros
oferecem uns aos outros como ‘cortesia’ — os participantes da trama dos ônibus se
comunicam e estão vinculados por um certo ‘código’, expresso continuamente em avisos
colados nos vidros dos ônibus e, implicitamente, na comunicação corporal que os passageiros
estabelecem sem que tenham reflexividade sobre isso, “um saber não sabido” que faz parte do
domínio prático desses agentes como douta ignorância44. Assim, independente do jogo que se
desenrola no ônibus — se ele for quente ou frio —, existe um código que vincula os usuários
deste serviço, o que faz com que as práticas sejam, de alguma forma, vinculadas. Aliás, é
apenas a partir dessa afirmação axiomática que este trabalho ganha sentido lógico, admitindo
a máxima de Strauss (1999) de que um grupo se organiza em torno de uma terminologia em
comum, pela qual se comunica. Não havendo tal terminologia, não existe grupo.
Busquei então levar, sob essa perspectiva interacionista, a discussão para esse
âmbito das interações, parte do trabalho em que a etnografia fica mais evidente, em que busco
mapear a gama de significantes e significados estruturados no curso das interações. Obtive
aqui, à partir da divisão entre discussão teórica, o correr natural do cotidiano de uso dos
ônibus, e o “sair da rotina” que também se encontra presente no cotidiano dos transportes
públicos, o desenho da terminologia que acaba por fundamentar as práticas nesse contexto.
44
Para se inserir mais nas teorias das práticas e dos jogos de sociabilidade cotidianos, é válida a leitura de
Esboço de uma teoria da prática, de Bourdieu (2002), e A invenção do cotidiano, de Certeau (1994).
62
Desenho que contém desde comportamentos uniformes — como o próprio silêncio e as
expressões de ‘boa vivência’ — aos acontecimentos que dão possibilidade a novas estratégias,
tais como a presença de vendedores, pedintes e músicos nos ônibus. Sumariamente, cada traço
desse desenho feito no capítulo II responde a questão lançada inicialmente: “quais são os
códigos (modos de uso) que vinculam os usuários ao espaço do ônibus e aos outros
passageiros”. À pergunta que diz respeito à ligação entre tais modos de uso e a trama
metropolitana, buscamos responder a partir da definição dos padrões de deslocamento — e as
formas de deslocar-se — e da pontuação das categorias de circulação quente e circulação fria.
Diante das incontáveis possibilidades de análise no que tange ao ritual diário de
uso do transporte público em Brasília, talvez seja conveniente para possíveis estudos futuros
acerca do assunto, o levantamento de alguns pontos como (i) a importância que os ônibus e o
metrô assumem na trama metropolitana de Brasília45; (ii) o metrô de Brasília46; (iii) a ligação
entre Brasília e as formas de deslocamento privadas. O tema é vasto. Conley (2002), ao
escrever o posfácio da obra “In the metro” de Augé (2002), sugere que para futuros estudos
etnográficos no transporte público fatores como os estímulos olfativos — os aromas —
devem ser levados em consideração, por serem em si mesmos, memórias47.
Embora o trabalho não abranja os pontos supracitados, fica claro a relevância da
discussão do ponto de vista teórico-analítico, considerando a afinidade entre os tipos
peculiares de sociabilidade que se dão na trama específica observada e a teoria sociológica,
principalmente no que toca à questão interacionista. Mais do que isso, o trabalho acaba por
servir como elucidação para tipos muito característicos de relações que acontecem no
contexto da cidade grande, servindo como base para compreender a trama metropolitana de
Brasília e os deslocamentos que acontecem neste espaço urbano.

45
Tal ponto pode nos remeter a uma análise do filme “Taxi Driver”, que mostra nitidamente a
importância dos táxis no cotidiano da cidade de Nova York. A idéia aqui é transpor este cenário — pensando nos
deslocamentos feitos na cidade — para o caso brasiliense, em que os ônibus parecem ter importância semelhante
aos táxis de Nova York.
46
Seria possível fazer estudo etnográfico semelhante a este no metrô de Brasília? Mais ainda, caberia uma
analogia com o trabalho de “In the metro” de Augé (2002)?
47
“In a foreseeable future of the metro, aroma may be a matter of mind” (Conley, 2002: 105). “For
everyday ethnologist who follows his or her nose, the metro offers an incomparable olfactory range. At the Place
Monge, near where Augé lived, on Sunday morning shoppers bring the aromas of cheese and freshly butchered
meat or charcuterie into the station” (Conley, 2002: 104).
63
Epílogo

O Grande Circular percorre duas das principais vias do centro de Brasília: a W3


Sul e Norte, e a L2 sul e norte; e é responsável pelo “leva-e-traz” de muitos passageiros que
dependem do ônibus para ir ao trabalho, à escola, à faculdade ou mesmo a um passeio pelo
Plano Piloto. É comum vê-lo lotado e, quase sempre, ele faz inúmeras paradas em suas quase
uma hora e meia de viagem. São raras as vezes que passa por uma parada sem embarcar ou
desembarcar um passageiro.
Algumas paradas são bem demoradas, como a da estação de metrô “Asa Sul”. Ali,
vão-se em média 10 a 15 minutos de espera.
(…)
Certo dia, embarco no Grande Circular. Chegando à parada da estação de metrô, o
motorista pára, desce do ônibus, toma um cafezinho, entra lá numa salinha, volta passados 7
minutos, se volta aos passageiros, que pacientemente aguardam, e diz: “Se vocês quiserem,
podem passar para aquele outro ônibus ali que está saindo daqui a pouco”.
(…)
O Grande Circular também passa bem perto da Câmara Legislativa do Distrito
Federal, no final da Asa Norte. A impressão é que, após passear suavemente pelo quarteirão,
estamos voltando, ao invés de prosseguirmos viagem.

64
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