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ABRIL | 2019  EDIÇÃO No 3

H U M A N A S

Na história brasileira, as populações indígenas nunca


tiveram o reconhecimento de suas identidades
e raízes à altura do que a chegada dos portugueses
lhes tirou. Enquanto aguardam mais uma leva de
desafios, indígenas de todo o Brasil precisam lidar com
a devastação ambiental e com a violência de
grileiros e exploradores da floresta.
Os povos indígenas do Brasil

H
á cerca de 305 povos indígenas no Brasil, totalizando
O QUE FALAM
SOBRE O ASSUNTO aproximadamente 900 000 pessoas, ou 0,4% da população do país.
DESTA EDIÇÃO? O governo reconheceu 690 territórios para a população indígena,
que abrange cerca de 13% do território brasileiro. Quase todas estas terras
(98,5%) encontram-se na Amazônia.
Mas, apesar de cerca de metade dos indígenas brasileiros viverem fora da
Amazônia, esses povos ocupam somente 1,5% da área total reservada para
os índios no país.
Os povos que vivem nas savanas e florestas atlânticas do sul, como
os Guarani e os Kaingang, e no interior seco do Nordeste, como os
Pataxó Hã Hã Hãe e os Tupinambá, estavam entre os primeiros que foram
contatados pelos colonizadores europeus quando eles desembarcaram no
Brasil em 1500.
Apesar das centenas de anos de contato com a sociedade de fora, na maioria
dos casos os índios lutaram para manter sua língua e costumes em face do
roubo e invasão das suas terras, que continua hoje.
O maior povo hoje é os Guarani, com uma população de 5 100, mas eles têm
muito pouca terra agora. Durante os últimos 100 anos, quase toda a sua
terra foi roubada e transformada em vastas redes secas de fazendas de gado
e plantações de soja e cana-de-açúcar. Muitas comunidades estão morando
em reservas superlotadas, e outras vivem sob lonas em beiras de estradas.
As pessoas com o maior território são os Yanomami, um povo relativamente
Moradores prestes a
isolado com uma população de 19 000, que ocupam 9,4 milhões de hectares
serem desalojados pela
usina de Belo Monte no norte da Amazônia.
ocupam barragem
temporária no canteiro de O maior povo amazônico no Brasil é os Tikuna, que somam 40 000.
obras e protestam contra O menor é composto por apenas um homem, que vive em um pequeno
a construção, no rio Xingu, pedaço de floresta cercado por fazendas de gado e plantações de soja na
perto de Altamira (PA), Amazônia ocidental, e ilude todas as tentativas de contato.
em junho de 2012. Belo
Monte é a terceira maior Muitos povos amazônicos numeram menos de 1 000. O povo Akuntsu, por
hidrelétrica do mundo
e seu projeto previa
exemplo, agora é composto por apenas quatro pessoas, e os Awá apenas
deslocar mais de 20 mil por 450.
pessoas.

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Índios isolados
Brasil é o lar de mais povos isolados do que em qualquer outro lugar
do planeta. Estima-se agora que cerca de 80 grupos isolados vivem na
Amazônia. Alguns numeram de várias centenas e vivem em áreas remotas
de fronteira no estado do Acre e em territórios protegidos, como o Vale
do Javari, na fronteira com o Peru. Outros são fragmentos dispersos, os
sobreviventes de grupos quase dizimados pelos impactos da explosão
da borracha e expansão da agricultura no século passado. Muitos, como
os nômades Kawahiva, que somam algumas dezenas, estão fugindo de
madeireiros e fazendeiros que invadem suas terras.

Com a pressão montada para explorar suas terras, todos os índios isolados
são extremamente vulneráveis tanto a ataques violentos (que são comuns),
como a doenças comuns em outros lugares, como gripe e sarampo, para as
quais eles não têm imunidade.

Modos de vida
A maioria dos povos vive completamente das florestas, savanas e rios por
uma mistura de caça, coleta e pesca. Eles cultivam plantas para alimentos
e medicamentos e usam plantas para construir casas e fazer objetos do
quotidiano.

“Nós índios somos como plantas. Como podemos viver


sem o nosso solo, sem a nossa terra?”
Marta Guarani

Museu Nacional, no Rio de Janeiro, onde, no dia 2 de setembro de 2018, um incêndio causou uma perda irreparável para as
culturas indígenas.

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Culturas básicas, como mandioca, batata-doce, milho, banana e abacaxi, são
cultivadas em roçados. Animais como queixadas, antas e macacos e aves
como o mutum são caçados para a alimentação.
Alguns grupos, como os Matis, usam zarabatanas com dardos envenenados
para capturar a caça. A maioria usa arcos e flechas, e alguns também usam
espingardas. Castanhas e frutas, como açaí e pupunha, são regularmente
colhidas e mel de abelhas é saboreado.
Peixe, particularmente na Amazônia, é um alimento importante. Muitos
povos indígenas usam um veneno natural chamado de timbó para atordoar
e capturar peixes. Os Enawenê Nawê, que não comem carne vermelha, são
famosos pelas barragens de madeira chamadas waitiwina, que constroem
em pequenos rios a cada ano para pegar e defumar grandes quantidades
de peixe. Sua cerimônia Yakwa está ligada às barragens de pesca e tem sido
reconhecida como parte do patrimônio nacional do Brasil.
Alguns povos – os Awá, os Maku no noroeste e alguns povos isolados – são
caçadores-coletores nômades. Eles vivem em pequenos grupos familiares
e mantêm poucas posses, o que lhes permite mover-se rapidamente na
floresta. Eles erguem abrigos de mudas de árvores e folhas de palmeira em
apenas algumas horas.
Como todos os povos indígenas, eles carregam mapas mentais incrivelmente
detalhados da terra e sua topografia, fauna e flora, e os melhores lugares de
caça. Os Awá às vezes caçam durante a noite usando tochas feitas de resina
da árvore maçaranduba.

“Quando meus filhos estão com fome eu vou para a


floresta e encontro comida para eles.”
Pira’i Ma’a Awá

Conhecimento de etnobotânica e papel de


conservação
Os povos indígenas têm um inigualável conhecimento de suas plantas
e animais, e desempenham um papel crucial na conservação da
biodiversidade.

“Vocês têm escolas. Nós não temos, mas sabemos cuidar


da floresta.”
Davi Kopenawa Yanomami

De acordo com estudos científicos, as terras indígenas são atualmente a


mais importante barreira para o desmatamento da Amazônia.
Em alguns estados, como Maranhão, as últimas áreas remanescentes de
floresta se encontram apenas em territórios indígenas (os Awá são um bom
exemplo disso), e estes estão sob enorme pressão de intrusos.
O seu papel na conservação da rica biodiversidade do cerrado e da floresta
amazônica é vital.

“Por que está demorando tanto tempo para acreditar


que se ferimos a natureza, ferimos a nós mesmos? Nós
não estamos vendo o mundo de fora. Nós não estamos
separados disso.”
Davi Kopenawa Yanomami

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Os Yanomami cultivam 500 plantas para alimentos, medicamentos,
construção de casas e outras necessidades. Eles usam 9 espécies de plantas
diferentes apenas para veneno de peixe. Os Tukano conhecem
137 variedades de mandioca.

Guaraná, o refrigerante cola onipresente no Brasil, era conhecido pelos índios


Sateré Mawé muito antes de ser comercializado. Eles torravam as sementes,
trituravam em um pó misturado com água, e bebiam antes de sair para
uma caçada. O Guaraná garantia que não sentiriam fome, e tinham energia
suficiente para manter a caçada.

Muitos povos indígenas brasileiros, como os do Parque do Xingu, os


Yanomami e os Enawenê Nawê vivem em malocas – grandes casas
comunais – que abrigam famílias extensas, que amarram suas redes a partir
das vigas e dividem a comida em torno de lareiras familiares.

Xamanismo e mundo espiritual


Como os povos indígenas de todo o mundo, os índios do Brasil têm conexões
espirituais muito profundas com a terra. Isso se reflete em suas ricas
histórias orais, cosmologia, mitos e rituais.

Alguns grupos usam plantas alucinógenas, que lhes permitem viajar para
outros mundos para se conectar com os espíritos, e para curar doenças.
Isto não é casual ou de lazer, mas são necessários anos de treinamento de
iniciação.

Xamãs Yanomami inalam yakoana ou yopo, um rapé alucinógeno, a fim


de chamar os seus espíritos xamânicos, ou xapiri. Os xapiri têm um papel
crucial nas cerimônias de cura e durante a reahu, ou festa funeral, quando as
comunidades se reúnem para consumir as cinzas de pessoas mortas.

Kuarup na aldeia Tuatuari,


da etnia Yawalapiti,
em homenagem ao
indigenista Orlando Villas,
em junho de 2003, no
Parque Indígena do Xingu.

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“Eu sou um xamã da floresta e eu trabalho com as forças
da natureza, e não com as forças do dinheiro ou armas.
O papel do xamã é realmente importante: curar as
pessoas doentes e estudar para conhecer o mundo.”
Davi Kopenawa Yanomami

Os xamãs de povos como os Kaxinawá e Ashaninka bebem ayahuasca, uma


bebida feita a partir da videira caapi, durante as sessões de cura. Outros,
como os Araweté e Akuntsu fumam tabaco, ou o inalam como rapé.

Alguns, como os Awá, não tomam estimulantes ou drogas, mas entram


em transe através do poder da dança rítmica e batendo palmas para a
viagem ao iwa, ou morada dos espíritos, onde se encontram as almas dos
antepassados e os espíritos da floresta, os karawara.

A transição da infância para a idade adulta é muitas vezes marcada por


cerimônias e reclusão. Quando uma garota Tikuna menstrua pela primeira
vez, ela é pintada de preto com tinta de genipapo e adornada com penas
de águia. Ela canta, dança e pula sobre fogo por até quatro dias quase sem
dormir, e depois vai para um isolamento durante vários meses, durante
os quais ela é ensinada sobre a história de seu povo e informada de suas
futuras responsabilidades.

Os povos do Xingu são famosos por cerimônias fúnebres em homenagem


a líderes mortos, que são representados por troncos de madeira decorados
chamados kwarup.

História
A história dos povos indígenas do Brasil tem sido marcada pela brutalidade,
escravidão, violência, doenças e genocídio.

Quando os primeiros colonos europeus chegaram em 1500 à terra que é


hoje o Brasil, era habitada por um número estimado de 11 milhões de
índios, que viviam em cerca de 2 000 grupos. No primeiro século de
contato, 90% foram eliminados, principalmente por meio de doenças
importadas pelos colonizadores, como a gripe, sarampo e varíola. Nos
séculos seguintes, milhares de vítimas morreram, escravizados nas
plantações de cana-de-açúcar e borracha.

Na década de 1950 a população tinha caído para um número tão baixo que
o senador e antropólogo eminente Darcy Ribeiro previu que não sobreviveria
nenhum índio até o ano de 1980. Estima-se que, em média, um grupo se
tornou extinto a cada ano durante o último século.

Em 1967, um procurador federal chamado Jader Figueiredo publicou um


relatório de 7 000 páginas catalogando milhares de atrocidades e crimes
cometidos contra os índios, inclusive o assassinato, o roubo de terra e a
escravidão.

Em um caso notório conhecido como “o massacre do paralelo 11”, um barão


da borracha ordenou seus homens a arremessar paus de dinamite em uma
aldeia Cinta Larga. Aqueles que sobreviveram foram assassinados quando
seringueiros entraram na vila a pé e os atacaram com facões.

O relatório fez manchetes internacionais e levou à dissolução do Serviço


de Proteção ao Índio do governo (SPI) que foi substituído pela FUNAI. Esta
continua a ser o departamento de assuntos indígenas do governo hoje.

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Survival International foi fundada em 1969 em reação a um artigo do
jornalista Norman Lewis na revista Sunday Times sobre o genocídio dos
índios brasileiros.
O tamanho da população indígena, gradualmente, começou a crescer mais
uma vez, embora quando a Amazônia foi aberta para o desenvolvimento
pelos militares na década de 1960, 70 e 80, uma nova onda de barragens
hidrelétricas, pecuária, minas e estradas significou que dezenas de milhares
de índios perderam suas terras e vidas. Dezenas de povos desapareceram
para sempre.
22 anos de ditadura militar terminaram em 1985, e uma nova constituição
foi redigida. Os índios e seus apoiadores fizeram pressão por mais direitos.
Os índios têm conseguido muitos avanços, embora ainda não gozem dos
direitos territoriais que têm sob a lei internacional.

“Isso aqui é minha vida, minha alma. Se você me levar


para longe dessa terra, você leva a minha vida.”
Marcos Veron, Guarani

Desafios atuais e ameaças


Nos 514 anos desde que os europeus chegaram ao Brasil, os povos indígenas
sofreram genocídio em grande escala, e a perda da maioria de suas terras.

Comunidade indígena
Pataxó Hã Hã Hãe, próxima
ao rio Paraopeba tomado por
lama após o colapso de uma
barragem em uma mina de
minério de ferro pertencente
à mineradora Vale, perto da
cidade de Brumadinho, em
30 de janeiro de 2019.

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“Nós não sabíamos que os brancos iam tirar a nossa terra.
Nós não sabíamos de nada sobre o desmatamento. Nós
não sabíamos sobre as leis dos homens brancos.”
Enawenê Nawê

Hoje, o Brasil tem planos agressivos para desenvolver e industrializar a


Amazônia. Até os territórios mais remotos estão agora sob ameaça. Vários
complexos de barragens hidrelétricas estão sendo construídos perto de
grupos isolados, e eles também irão privar milhares de outros índios da
terra, água e meios de subsistência. Os complexos de barragens irão fornecer
energia barata para as empresas de mineração, que estão prestes a realizar
a mineração em grande escala nas terras indígenas se o Congresso aprovar
um projeto de lei que está sendo empurrado duramente pelo lobby de
mineração.
Muito povos do sul do país como os Guarani vivem em condições desumanas
sob barracos de lona em beiras de estradas. Seus líderes estão sendo
sistematicamente atacados e mortos por milícias privadas de pistoleiros
contratados pelos fazendeiros para evitar que eles ocupem sua terra
ancestral. Muitos Guarani cometem suicídio em desespero com a falta de
qualquer futuro significativo.

“Os Guarani estão se suicidando por falta da terra. A


gente antigamente tinha a liberdade, mas hoje em dia
nós não temos mais liberdade. Então, por isso, os nossos
jovens vivem pensando que eles não têm mais condições
de viver. Eles se sentam e pensam muito, se perdem e se
suicidam.”
Rosalino Ortiz, Guarani

Organizações e resistência indígena


Hoje, existem mais de 200 organizações indígenas, que estão lutando para
defender seus direitos duramente conquistados. Centenas de índios foram
às ruas no ano passado para protestar contra os planos do governo para
enfraquecer os seus direitos. Muitos executam seus próprios projetos, postos
de saúde e escolas bilíngues. Os Tikuna estabeleceram um museu para
mostrar suas tecnologias, arte, cultura e língua para os não índios.
Alguns grupos fizeram vídeos e DVDs gravando rituais e cerimônias para os
seus descendentes, e para aumentar a compreensão de seus modos de vida.
O Conselho Indígena de Roraima faz projetos de criação de animais e pesca,
e preservação de bancos de sementes para a diversidade genética para
garantir a autossuficiência do grupo.
Apesar dessas conquistas, ainda há um racismo endêmico contra os índios
do Brasil. Na lei, eles ainda são considerados menores de idade. O objetivo
mais importante para os povos indígenas do Brasil é o controle sobre suas
terras. O Brasil é um de somente dois países da América do Sul que não
reconhecem o direito de posse de terras indígenas.

“Nós existimos. Eu quero dizer ao mundo que estamos


vivos e queremos ser respeitados como povos.”
Marta Guarani

SURVIVAL. Os povos indígenas do Brasil. Disponível em: <https://www.survivalbrasil.org/


povos/indios-brasileiros>. Acesso em: 19 mar. 2019.

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CONHEÇA A
OPINIÃO DE
QUEM ESTUDA
O ASSUNTO.

Quem é o índio
no Brasil?
Renata Albuquerque Mulheres indígenas da etnia

E
Kalapalo dançam Yamuricumã na
duardo Viveiros de Castro é professor aldeia Aiha, em Mato Grosso
de Antropologia do Museu Nacional,
vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro, e um dos grandes
especialistas do país em Etnologia Indígena. Em uma entrevista com título
provocador – “No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é” –,
Viveiros de Castro oferece duas definições importantes que recuperamos
para começar nossa conversa sobre os povos indígenas no Brasil. Ele afirma
que “ ‘índio’ é qualquer membro de uma comunidade indígena, reconhecido
por ela como tal”. A “comunidade indígena”, por sua vez, “é toda comunidade
fundada em relações de parentesco ou vizinhança entre seus membros, que
mantém laços histórico-culturais com as organizações sociais indígenas
pré-colombianas”1.
Antes do início do processo colonial, milhares de povos e nações diferentes
viviam nas terras que hoje conhecemos como as Américas. Muitos foram
dizimados pela violência que fez parte da colonização, e já não existem mais.
Temos registro do seu idioma e dos seus costumes, mas não há nenhum
descendente vivo. Outros povos sobreviveram à colonização e ainda vivem
em comunidades que relembram o modo de vida pré-colombiano e que se
identificam como descendentes dessas nações ancestrais. São os indígenas
do Brasil contemporâneo.
Hoje, no Brasil, existem cerca de 305 povos indígenas diferentes, de acordo
com dados apresentados na reportagem da Survival International, um
movimento global que organiza a defesa dos direitos dos povos indígenas
do mundo2. Isso significa que existem milhares de comunidades indígenas –
aldeias – nas quais a vida é organizada em diálogo com os costumes desses
mais de 300 povos diferentes. Indígenas de um mesmo povo podem viver em
aldeias diferentes, em regiões diferentes do Brasil ou do mundo. Um indígena
do povo Guarani, por exemplo, pode viver em uma aldeia no interior do Mato
Grosso do Sul, em uma aldeia na cidade de São Paulo ou em uma aldeia no
Paraguai ou na Bolívia – em todos os casos ele continua sendo um Guarani.
O que faz dele um Guarani é o reconhecimento que existe entre ele e a sua
comunidade, e isso não desaparece quando um Guarani muda de endereço.

1. CASTRO, Eduardo Viveiros de. “No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é”. Entrevista à equipe de edição do site Povos Indígenas no Brasil,
originalmente publicada no livro Povos Indígenas no Brasil 2001/2005. Disponível em: <https://pib.socioambiental.org/files/file/PIB_institucional/
No_Brasil_todo_mundo_%C3%A9_%C3%ADndio.pdf>. Acesso em: 3 mar. 2019.
2. SURVIVAL. Os povos indígenas do Brasil. Disponível em: <https://www.survivalbrasil.org/povos/indios-brasileiros>. Acesso em: 3 mar. 2019.

9
> O índio na cidade
Muita gente se pergunta se os povos indígenas estariam desaparecendo
com o avanço da globalização e da expansão dos costumes ocidentais. A
resposta é não – não exatamente. A globalização e a expansão da cultura
ocidental são desafios reais que os povos indígenas enfrentam, colocam em
risco o interesse dos jovens pelo idioma ancestral, pelos saberes e costumes
tradicionais e pelo modo de vida próprio do seu povo. Apesar desses desafios,
ninguém deixa de ser índio só porque se muda para uma grande cidade,
porque vai para a faculdade, porque começa a escutar música pop, porque
faz uma conta em uma rede social ou porque usa celular. A identidade
indígena não se dissolve em nenhum desses casos.
A dimensão étnica e identitária não é o maior desafio que enfrentam
os indígenas quando saem de suas aldeias e vão viver na cidade. Eles
continuam sabendo quem são. A dificuldade de compreensão sobre a
identidade dos indígenas que vivem na cidade é um problema decorrente
de explicações de mundo deterministas, que vinculam a identidade
a estereótipos de comportamento. No caso dos povos indígenas, as
explicações deterministas querem fazer acreditar que é a vida na aldeia
(ou, ainda, a vida na floresta) que determinaria a identidade indígena, mas a
realidade etnográfica mostra há décadas que essa explicação não é correta.
Ainda que a dimensão identitária não seja o desafio central enfrentado
pelos índios que vivem na cidade, a saída da aldeia pode trazer
problemas que precisam ser discutidos com cuidado. Em reportagem
publicada pela Agência Brasil, Bianca Paiva e Maíra Heinen explicam
como a pobreza e o preconceito passam a fazer parte do dia a dia de
grande parte dos índios que vivem nas cidades brasileiras3. De acordo
com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
apresentados na reportagem, em 2017 quase metade da população
indígena brasileira viveria em centros urbanos. Esse diagnóstico aponta
para a urgência do debate sobre a superação do preconceito contra
indígenas que obstrui o acesso dessas pessoas ao mercado formal de
Crianças indígenas
da Aldeia Guarani trabalho e à educação, produzindo uma situação de pobreza estrutural
Tekoa Pyau, no bairro alimentada pelo etnocentrismo.
Jaraguá, em São Paulo,
setembro de 2015.

O que é etnocentrismo?
De acordo com Claude Lévi-Strauss, em seu
clássico “Raça e História”, o etnocentrismo
é a tendência, que todas as sociedades
partilham, de tomar a sua cultura como
parâmetro para a análise de outras culturas.
Associada ao evolucionismo cultural, típico
do pensamento ocidental, essa tendência
supõe a superioridade da cultura do
observador em detrimento da cultura do
observado. É uma maneira de hierarquizar
a diversidade cultural da humanidade, e
engendra o racismo e outras formas de
preconceito.

3. PAIVA, Bianca; HEINEN, Maíra. Indígenas na cidade: pobreza e preconceito marcam condição de vida. Agência Brasil, 19 abr. 2017. Disponível em:
<http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2017-04/indigenas-na-cidade-pobreza-e-preconceito-marcam-condicao-de-vida>.
Acesso em: 3 mar. 2019.

10
> No Brasil todo mundo é índio
Quando Viveiros de Castro afirma, em tom de provocação, que no Brasil
todo mundo é índio, exceto quem não é, ele quer chamar a atenção para o
argumento de que a identidade indígena é um modo de ser, e não um modo
de parecer. Isso quer dizer que ninguém deixa de ser índio por não usar
cocar ou arco e flecha, e que “ser indígena” não é uma identidade que vai se
esgotar e desaparecer com o tempo. Sendo assim, e se a identidade do índio
independe do seu modo de parecer, o problema de “quem é o índio” não é
um problema dos próprios índios. Esse ponto de vista leva o autor a defender
que faz tanto sentido perguntar “quem é o índio” quanto perguntar
“quem não é o índio”, se estivermos pensando na questão desde o ponto
de vista individual. É por isso que o antropólogo pensa a questão desde a
comunidade, e propõe que a identidade indígena parta do reconhecimento
da comunidade da qual se faz parte. Esse giro ao comunitário como
organizador da identidade seria, para o autor, a grande inovação da
Constituição Brasileira de 1988.

> A questão indígena na Constituição de 1988


A Constituição de 1988 traz pelo menos duas inovações jurídicas
fundamentais, no que se refere aos direitos dos povos indígenas do país:
reconhece que o índio não é uma categoria social transitória, que tende
a desaparecer com o avanço da “civilização”, e reconhece que os direitos
desses povos são originários, anteriores ao próprio Estado4. Concordando
com a reportagem publicada pelo Instituto Socioambiental (ISA)5, vamos
considerar que essa primeira inovação se expressa como direito à diferença
e a segunda, como direito à terra.

O direito dos povos indígenas à diferença garante que o Estado


brasileiro reconheça o seu direito de permanecer indígena, abandonando
a ideia de que o índio deveria ser assimilado à cultura nacional. Essa visão
antiquada a respeito da diversidade cultural, que a antropologia chama
de visão assimilacionista, era sustentada por uma leitura etnocêntrica que
supunha a superioridade dos modos de vida não indígenas, que seriam,
portanto, um objetivo para cada cidadão brasileiro.

“Com os novos preceitos constitucionais, assegurou-se


aos povos indígenas o respeito à sua organização social,
costumes, línguas, crenças e tradições. Pela primeira vez,
reconhece-se aos índios no Brasil o direito à diferença;
isto é: de serem índios e de permanecerem como tal
indefinidamente. É o que reza o caput do artigo 231 da
Constituição:
‘São reconhecidos aos índios sua organização social,
costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos
originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,
competindo à União demarcá-las, proteger e fazer
respeitar todos os seus bens’ ”.
BRASIL. Constituição (1988): Constituição da República Federativa do Brasil.
Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. 292 p.

4. POVOS INDÍGENAS NO BRASIL. Direitos constitucionais dos índios. Disponível em: <https://pib.socioambiental.org/pt/Constitui%C3%A7%C3%A3o>.
Acesso em: 3 mar. 2019.
5. POVOS INDÍGENAS NO BRASIL. Direitos constitucionais dos índios. Disponível em: <https://pib.socioambiental.org/pt/Constitui%C3%A7%C3%A3o>.
Acesso em: 3 mar. 2019.

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O direito constitucional dos povos indígenas à terra expressa a percepção
de que a relação entre os índios e seus territórios é anterior ao Estado
brasileiro e que não poderia ser ameaçada pela sua criação. Trata-se do
reconhecimento da ancestralidade desses povos e da especificidade dos
seus modos de vida, organizados pela lógica comunitária e em relação
íntima com o meio ambiente. A declaração de uma região como um
território indígena também reconhece, portanto, o aspecto coletivo da
questão identitária, pois estabelece que os vínculos existentes com a terra
também são os vínculos que constituem um povo enquanto tal.

> As lutas históricas dos povos indígenas


Além de lutarem pelo seu direito à diversidade cultural e por combaterem
o preconceito racial contra suas etnias, os povos indígenas brasileiros
há décadas enfrentam batalhas duras para garantir que seus direitos
constitucionais sejam respeitados no país. Um dos principais desafios que
enfrentam os indígenas brasileiros é o de garantir a demarcação dos seus
territórios ancestrais, tarefa árdua que muitas vezes enfrenta interesses
econômicos poderosos. A demarcação de uma terra indígena vinha sendo
realizada, nas últimas décadas, pela Funai, a Fundação Nacional do Índio.
Era uma competência do Ministério da Justiça, e sua homologação dependia
da ação da Presidência da República. As demarcações de terra indígena
entendidas como um assunto de justiça social compreendem que os direitos
dos povos originários dessas terras não podem ser marginalizados no
ambiente republicano, e devem ser uma preocupação do Poder Executivo.
No Brasil, as terras indígenas continuam sendo bens da União, apesar de os
indígenas terem direito a elas e usufruto delas. Isso significa que são terras
públicas que são reconhecidas pela União como indígenas. Trata-se de uma
tentativa de restabelecer o direito daqueles grupos sobre a terra ainda no
contexto republicano. Outra vez, um assunto de justiça social. Muitos setores
da sociedade brasileira se opõem a esse conjunto de direitos, sobrepondo
seus interesses econômicos aos interesses sociais dos povos indígenas.
Chamamos de grilagem a invasão ilegal de terras públicas – indígenas –
por qualquer agente privado que queira se apossar da região. A grilagem
manifesta o descompromisso com os direitos indígenas, e normalmente é
executada por madeireiros ou por grandes fazendeiros, que se ocupam de
porções das terras indígenas.

Índios da etnia Guarani na


Aldeia Ribeirão Silveira fazem
pintura para celebração do
Arapyau, o ano novo Guarani.

12
Fumaça encobre a
Floresta Amazônica, do
lado de fora de uma
reserva indígena, perto
de Jundiá, estado de
Roraima, em janeiro de Muitas visões de mundo concorrem com os direitos indígenas, e não é
2019. incomum que o próprio Estado tente se ocupar de porções desses territórios
com fins econômicos. O discurso desenvolvimentista geralmente justifica o
deslocamento de indígenas, que se vêm obrigados a abandonar suas terras
ancestrais para a construção de uma estrada ou de uma represa. Megaobras
de desenvolvimento, como a Usina de Belo Monte, têm sido fonte de
grande polêmica na sociedade brasileira. Seus defensores desvalorizam
as perspectivas de vida indígenas e impõem sua visão de mundo sobre
tempo e boa vida, geralmente não levando em conta as opiniões e as
necessidades das pessoas que seriam afetadas pelas obras. Os opositores
desses megaprojetos, geralmente os próprios indígenas e seus apoiadores,
defendem que o futuro não precisa passar pelo massacre dos povos
indígenas, e que a construção de infraestrutura não precisa violar os direitos
coletivos desses povos.

Política indígena e política indigenista


Com tantos desafios para superar, os povos indígenas se tornaram atores políticos mobilizados
e engajados com os problemas da sociedade. Também recebem a solidariedade de atores
políticos não indígenas, que procuram combater injustiças históricas e defender os direitos
dos povos indígenas. Chama-se de política indígena o variado conjunto de ações políticas
organizado e protagonizado pelos povos indígenas; as políticas indigenistas, por sua vez, são
políticas dirigidas aos problemas enfrentados pelos índios, mas são políticas executadas pelo
Estado através de suas diferentes instituições.

Renata Albuquerque é antropóloga e professora


universitária. Especialista em Estudos Comparados
sobre as Américas, a pesquisadora realizou pesquisas
na Amazônia boliviana, em um dos maiores territórios
indígenas do país. Trabalha com antropologia do
desenvolvimento e antropologia da política, com foco em
processos protagonizados por povos indígenas.

13
1.  Qual a diferença entre “ser índio” e “parecer índio”?
2.  Por que a diversidade é considerada um direito constitucional?

HORA DE
ARTICULAR
SUAS IDEIAS

Uma picape passa por um mural que mostra povos indígenas


e frutas nativas perto de Manaus, estado do Amazonas,
fevereiro de 2019.

14
Onde estão os indígenas?

15
1.  A identidade dos povos indígenas não passa exclusivamente pela sua
expressão material, e é construída na relação entre as pessoas e as comunidades
às quais elas pertencem. Como qualquer outra cultura, cada cultura indígena
também se transforma ao longo do tempo, apresentando-se cada vez de uma
SUGESTÕES maneira. Não seria razoável esperar encontrar os mesmos traços culturais
DE RESPOSTAS
DO EDITORIAL
manifestos por um indígena em 1500 e em 2019. Apesar de diferentes, ambos
seriam indígenas.
2.  A Constituição de 1988 reconhece que os povos indígenas que já existiam
aqui antes do início do processo colonial devem ter seus direitos reconhecidos
e respeitados. Trata-se da tentativa de conciliar os interesses específicos desses
povos originários com os interesses da República. O Brasil reconhece que
nenhum cidadão brasileiro que se identifique como indígena precisa deixar de
sê-lo para ter garantido qualquer um dos seus direitos. Assim, prevê o direito à
diferença, o direito à diversidade, o direito de continuar sendo indígena.
Conteúdos abordados:
• Identidade indígena O Articulação CHT tem como objetivo discutir temas relevantes com base nas Ciências
• Etnocentrismo Humanas e suas Tecnologias. Os conteúdos abordados auxiliam na análise do objeto pro-
• Direito à terra posto; contudo, não são pré-requisitos para o uso desta ferramenta pedagógica em sala
• Diversidade cultural de aula. O Articulação CHT almeja estimular os estudantes a analisar os eventos cotidianos
à luz das Ciências Humanas e contribuir com elementos para debates e reflexões críticas.

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ABRIL | 2019  EDIÇÃO No 3
H U M A N A S

Diretor de conteúdo e negócios Coordenadora de preparação e revisão


Ricardo Tavares de Oliveira Lilian Semenichin
Diretor editorial adjunto Supervisora de preparação e revisão
Cayube Galas Adriana Soares
Gerente editorial Preparadora
Júlio César D. da Silva Ibrahim Ana Lúcia P. Horn
Editora Revisoras
Claudia Pedro Winterstein Aurea Santos
Editores assistentes Eliana Medina
Georges Nicolau Kormikiaris Supervisora de iconografia e
Henrique Bosso da Costa licenciamento de textos
Gerente de produção editorial Elaine Bueno
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Coordenador de produção editorial Priscila Liberato Narciso
Marcelo Henrique Ferreira Fontes Coordenadora de ilustrações e cartografia
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Coordenadora de arte
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Supervisor de arte
Fabiano dos Santos Mariano
Projeto gráfico
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Editora de arte
Adriana Maria Nery de Souza

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p.1. Luciola ZVarick/Pulsar Imagens, p.2. Mario Tama/Getty Images, p.3. CP DC Press/Shutterstock.com,
p.5. Renato Soares/Pulsar Imagens, p.7. Cadu Rolim/Fotoarena, p.9. Renato Soares/Pulsar Imagens,
p.10. Rubens Chaves/Pulsar Imagens, p.12. Du Zuppani/Pulsar Imagens,
p.13. Dado Galdieri/Bloomberg/Getty Images, Acervo do autor, p.14. Dado Galdieri/Bloomberg/Getty Images,
p.15. Arquivo/Estadão Conteúdo

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