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1. Interpretação, integração e aplicação das normas constitucionais

1.1. Interpretação das normas constitucionais

«Interpretar as normas constitucionais significa (como toda a


interpretação de normas jurídicas) compreender, investigar e mediatizar
o conteúdo semântico dos enunciados linguísticos que formam o texto
constitucional. A interpretação jurídico-constitucional reconduzse, pois, à
atribuição de um significado a um ou vários símbolos linguísticos escritos
na constituição. Esta interpretação faz-se mediante a utilização de
determinados critérios (ou medidas) que se pretendem objectivos,
transparentes e científicos (teoria ou doutrina da hermenêutica)159. «Nos
feitos submetidos a julgamento os tribunais não podem aplicar leis ou
princípios que ofendam a Constituição» (art.º 214.º da CRM). A norma que
acabamos de citar, traduz o reconhecimento da importância da
interpretação constitucional – não só para os tribunais (sobretudo quando
podem, e devem, desaplicar normas inconstitucionais) mas também, e
desde logo, para o legislador e para a administração. «Todos aqueles que
são incumbidos de aplicar e concretizar a constituição devem: (1)
encontrar um resultado constitucionalmente «justo» através da adopção
de um procedimento (método) racional e controlável; (2) fundamentar
este resultado também de forma racional e controlável (HESSE).

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Essas notas foram baseadas no Manual de Direitto Constitucional do Msc. António Leão denominado Lições
proferidas ao 1º ano do Curso de Direito da Faculdade de Economia e Gestão da Universidade Católica de
Moçambique, 2011.
Considerar a interpretação como tarefa, significa, por conseguinte, que
toda a norma é ―significativa‖, mas o significado não constitui um dado
prévio; é, sim, o resultado da tarefa interpretativa».

A interpretação constitucional – a determinação do sentido da norma


constitucional – não é de natureza diferente da que se opera noutras
áreas, ou seja, da interpretação das restantes normas do ordenamento
jurídico. Por isso, são de aceitar, neste âmbito, os cânones gerais da
interpretação jurídica constantes do Código Civil: (a) quanto aos sujeitos,
(b) quanto ao objecto, (c) quanto aos elementos, e (d) quanto ao
resultado da interpretação constitucional. As regras do Código Civil sobre
estas matérias podem considerar-se, segundo Jorge Miranda,
substancialmente constitucionais, não repugnando, para o Autor, vê-las
dotadas de um valor de costume constitucional ( praeter legem ).

1.2. Os sujeitos da interpretação

Quem pode fazer a interpretação da Constituição? Qualquer um de nós


pode interpretar, ou fazer a determinação do sentido da norma
constitucional. Mas há um tipo de interpretação que só pode ser feita por
uma fonte não hierarquicamente inferior à fonte interpretanda, cuja
interpretação era controversa (regra geral, pelo autor da norma
interpretanda, v. o art.º 13.º/1 do C.C.) e que tem, por isso, um efeito
vinculativo – falamos então de interpretação autêntica.
Consequentemente, a interpretação autêntica da Constituição só pode

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ser feita por lei com força constitucional - ou seja, em Constituição
rígida, por lei decretada pelo processo peculiar de revisão, e não por lei
ordinária. A lei ordinária não tem capacidade ou força jurídica para tal.
Assim, quando a própria Constituição prescreve o exercício de certo
direito ou o tratamento de certo instituto «nos termos da lei», não há
aqui qualquer fenómeno de desconstitucionalização e, muito menos, de
delegação de poder constituinte no poder legislativo. Essa lei deve
conformar-se com os parâmetros da Constituição e está sujeita, como
qualquer outra, ao juízo de constitucionalidade (e à interpretação que
este juízo pressupõe).

1.2.1. O objecto da interpretação

A interpretação constitucional deve levar em consideração o objecto que


efectivamente se pretende captar, de acordo com os dois dualismos já
clássicos ao longo da evolução da Teoria Geral do Direito em matéria de
interpretação jurídica: (a) entre subjectivismo e objectivismo, sendo de
preferir a interpretação que quer obter o sentido objectivista, o qual se
expressa na exterioridade da fonte constitucional; (b) entre historicismo
e actualismo, sendo aqui de preferir o sentido actualista, contra o sentido
que eventualmente se pudesse alcançar no momento de edição do
preceito interpretando. Ou seja, interessa-nos menos perguntar: que
solução quis o legislador adoptar? (posição subjectivista historicista); ou:
que solução um legislador como o de 1990 quereria adoptar hoje?
(posição subjectivista actualista); ou: que solução foi considerada

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objectivamente consagrada, no momento da sua aprovação? (posição
objectivista historicista). Interessa-nos, sobretudo, perguntar: que
solução é considerada objectivamente consagrada hoje, no momento da
interpretação? (posição objectivista actualista, ou evolutiva). É neste
contexto que se enquadra o fenómeno que antes tratámos da
interpretação evolutiva da Constituição.

1.3. Os elementos da interpretação

Na ausência de normas constitucionais específicas que o prevejam (cfr.


art.º 43.º da CRM, em matéria de direitos fundamentais), valem, nesta
matéria, os elementos de interpretação constantes do art.º 9.º do Código
Civil (CC): num primeiro momento, (a) o elemento literal – traduz
directamente o que está expresso na norma.
Aliás, o ponto de partida da interpretação está no texto: «a interpretação
não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o
pensamento legislativo» (art.º 9.º/1 do CC). Letra e espírito. Só que em
muitos casos o elemento literal não é suficiente, tornando-se por isso
imperioso recorrer aos elementos extra-literais, nos quais se incluem: (b)
o elemento sistemático – quando se afirma que o intérprete deve atentar
na «unidade do sistema jurídico»; (c) o elemento histórico – quando se
estipula que o intérprete deve ter em conta «as circunstâncias em que a
lei foi elaborada»; e, por fim, (d) o elemento teleológico – ou seja, a
finalidade que presidiu à criação do preceito interpretando.

1.4. Os resultados da interpretação

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A tarefa interpretativa vale sobretudo pelas conclusões a que pode
chegar no plano dos resultados, pois que, embora seja, geralmente (a)
declarativa, porque o sentido literal corresponde ao sentido lógico da
fonte constitucional, ás vezes torna-se necessário admitir outras
conclusões: (b) a interpretação restritiva, quando o sentido deve ficar
aquém daquilo que se diz na letra constitucional; (c) a interpretação
extensiva, quando o sentido normativo deve ir além do sentido literal
expresso no preceito constitucional; (d) a interpretação enunciativa (ou
inferência lógica de regras implícitas), quando do sentido literal se
inferem,
podem, no entanto, não coincidir; impõem-se então o sacrifício da letra.
Pela mera consideração do elemento literal atinge-se o sentido literal de
uma lei. Mas é pela conjugação do elemento literal com os elementos
extra literais que se atinge o sentido dessa lei – ratio legis (o sentido, o
espírito ou a razão da lei). As relações entre esses sentidos podem ser
várias. 168 v. art.º 9.º/1 do CC. As relações podem ser de subordinação
(aos princípios gerais do sistema jurídico); conexão (com o sistema em
que se integra); por analogia (ou semelhança com outros preceitos de
outros institutos relacionados com a fonte que se pretende interpretar; os
art.ºs 305.º/1 e 2067.º do CC sugerem que alguém se pode substituir ao
sujeito na actuação jurídica). 169 v. art.º 9.º/1 do CC. Devem ter-se em
conta os dados ou acontecimentos históricos que expliquem a lei:
precedentes normativos (históricos e comparativos); trabalhos
preparatórios; occasio legis (todo o circunstancialismo social que rodeou
o aparecimento da lei). Quando se diz que «na fixação do sentido e

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alcance da lei, o interprete presumirá que o legislador considerou as
soluções mais acertadas (...)», art.º 9.º/3 do CC. Todo o Direito é
finalista. Toda a fonte existe para atingir fins ou objectivos sociais. Por
isso, enquanto não se descobrir o «para quê» duma lei, não se detém
ainda a chave da sua interpretação (exemplo do duplo seguro). O sentido
literal identifica-se com o sentido real. Pode ser lata, restrita ou,
eventualmente, média, consoante o sentido real corresponda à acepção
mais lata, mais restrita ou intermédia da mesma expressão gramatical. O
sentido literal é mais amplo do que o sentido real. Obriga a uma
limitação ou restrição atendendo aos elementos extra-literais da
interpretação. O sentido literal é mais estreito do que o sentido real. A
letra da lei deve ser estendida ou alargada em função da ponderação dos
elementos extra-literais da interpretação. A interpretação extensiva
pressupõe que dada hipótese, não estando compreendida na letra da lei,
o está todavia no seu espírito; há ainda regra, visto que o espírito é o que
é decisivo.
outros sentidos, a partir de meros argumentos lógicos, que assim fazem
revelar novas determinações de dever-ser; ou, por fim, (e) a
interpretação abrogante, sempre que a fonte constitucional esteja
desprovida de um sentido ordenador, seja por razões lógicas, seja por
razões valorativas.
Se o diploma publicado posteriormente contradiz um outro anterior, há
que atender aqui ao princípio de que, lei nova revoga lei anterior.
Admitindo, no entanto, um caso de publicação simultânea, no caso de
não se encontrar, de todo, nenhum outro critério que aponte para a
prevalência de uma delas, a interpretação abrogante revela-nos a

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existência de uma lacuna. b) Valorativa, quando as valorações
subjacentes às disposições em causa se mostrarem incompatíveis entre si.
Pode, no entanto, ocorrer que de facto se encontrem, num mesmo
diploma, regras que exprimem valorações diversas ou mesmo
contraditórias. Há quem entenda não serem admissíveis na ordem jurídica
moçambicana: a interpretação correctiva (o intérprete afasta a norma
inadequada, considerando que o legislador não a teria querido se tivesse
previsto o seu resultado) e a interpretação abrogante (valorativa). As
alterações cabem às fontes de Direito e não ao intérprete. Pela mesma
ordem de razão, pela qual não é permitida no ordenamento jurídico
moçambicano, a interpretação correctiva, também a valorização do
intérprete não se pode substituir à valoração do legislador. É o que
decorre do art.º 8.º/2 do Cód. Civil.

1.5. Interpretação constitucional e interpretação conforme à


Constituição

A análise do problema da interpretação constitucional deve diferenciar-se


de uma outra realidade hermenêutica que, só aparentemente, se pode
considerar uma verdadeira interpretação constitucional. Falamos na
interpretação conforme à Constituição, que se insere nas relações entre o
Direito Constitucional e o Direito infra-constitucional. No que respeita à
interpretação da legislação ordinária fala-se de um princípio de
interpretação conforme à Constituição – ou de interpretação das leis em
conformidade com a Constituição – para escolha de um sentido que seja
mais compatível com o texto constitucional. Segundo este princípio, no

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caso de normas polissémicas ou plurisignificativas deve darse preferência
à interpretação que lhe dê um sentido em conformidade com a
Constituição. Esta formulação comporta várias dimensões: (a) o princípio
da prevalência da Constituição; (b) o princípio da conservação de normas;
e (c) o princípio da exclusão da interpretação conforme à Constituição,
mas contra legem . a) O princípio da prevalência da Constituição (art.º
2.º/4 da CRM) impõe que, dentre as várias possibilidades de
interpretação, só deve escolher-se uma interpretação que não seja
contrária ao texto e programa da norma ou normas constitucionais. b) O
princípio da conservação de normas, afirma que a norma não deve ser
declarada inconstitucional quando, observados os fins da norma, ela pode
ser interpretada em conformidade com a Constituição. c) O princípio da
exclusão da interpretação conforme à Constituição, mas c o n t r a l e g e
m , nesse caso, não resta alternativa senão a de considerar a norma
inconstitucional.

1.6. A integração de lacunas da Constituição

Durante muito tempo vigorou a concepção do carácter absoluto e infalível


do legislador constituinte. Hoje considera-se que o legislador não é
infalível, «há mais coisas no céu e na terra do que na cabeça do
legislador». Basta pensar no costume constitucional praeter legem , na
expressa prescrição de integração pela Declaração Universal dos Direitos
do Homem e pela Carta Africana
dos Direitos do Homem e dos Povos(art.º 43 da CRM) e na devolução para
a lei ordinária da previsão de direitos fundamentais para além daqueles

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que são consagrados na Constituição (art.º 42 da CRM). Escreve Jorge
Miranda que «nem sequer lei constitucional, costume constitucional,
Declaração Universal, outras regras de Direito interno e de Direito
internacional no seu conjunto se dotam de plenitude de
regulamentação»208. Significa que, inevitavelmente, há lacunas no
Direito Constitucional, carecidas de integração209.

1.6.1. Lacunas constitucionais e omissões legislativas

Há, contudo, que ter atenção que as lacunas constitucionais (a falta de


previsão normativa na Constituição) não se confundem com omissões
legislativas (a falta de uma lei ordinária que a Constituição determina
que exista), as quais correspondem a normas constitucionais não
exequíveis por si mesmas210. Exemplo de uma lacuna constitucional é a
falta de previsão do prazo para promulgação das leis de revisão
constitucional. Por analogia do princípio podemos defender que o prazo
será o mesmo para a promulgação das restantes leis (os 30 dias previstos
no art.º 163.º/2 da CRM). Exemplo de uma omissão legislativa é, por
exemplo a inexistência do mecanismo processual de acção popular (cfr.
art.º 81.º da CRM).

1.6.2. Admissão das orientações gerais sobre integração de lacunas


jurídicas

Pela mesma ordem de razões que se aplica o art.º 9.º do CC em matéria


de interpretação, também aqui se deve aplicar o art.º 10.º do CC em

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matéria de integração de
lacunas211. Há no entanto algumas especificidades em matéria de
integração de lacunas em Direito Constitucional.

1.6.3. Singularidades na integração de lacunas constitucionais

As especificidades quanto à integração de lacunas em Direito


Constitucional estão intimamente ligadas com a matéria de direitos
fundamentais. Neste caso (a) em matéria de restrição de direitos
liberdades e garantias, o Direito Constitucional não tem lacunas (cfr. art.º
56/3 da CRM); (b) em segundo lugar, a Constituição define como princípio
a interpretação e da de integração
intra sistemáticos de lacunas no Direito moçambicano: a analogia legis
(analogia da lei, art.º 10.º/1 e 2); e a analogia juris (do direito, «a norma
que o interprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do
sistema», art.º 10.º/3). Há analogia legis , sempre que os casos que o
direito não preveja sejam regulados segundo a norma aplicável aos casos
análogos (art.º 10.º/1), aqueles em que procedem as mesmas razões
justificativas que no caso omisso (art.º 10.º/2). Ou seja, por outras
palavras, a primeira coisa a fazer na integração de lacunas é procurar
uma lei ou, porque não, embora muito menos provavelmente, um
costume ( praeter legem) , que regule uma matéria similar à que carece
de estatuto jurídico. Um exemplo de analogia legis é o recurso a uma lei,
dispondo sobre a televisão sem cabo para reger matérias de televisão por
cabo, relativamente às quais existe lacuna legal. Mas a similitude, para
ser estabelecida, obriga não tanto a uma mera comparação crua de

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situações (similitude material) de facto, mas, mais do que isso, a uma
comparação de qualificações jurídicas ( ratio legis ). Só se houver uma
identidade de razões é que é legítimo estabelecerse uma relação de
analogia. Há certos casos em que se exclui a integração por analogia: (a)
às regras excepcionais, sejam estas legais ou consuetudinárias. O art.º
11.º do C. Civil, exclui a aplicação analógica das normas excepcionais,
mas admite a sua interpretação extensiva; (b) às regras penais in mala
partem , i.e., aquelas que definem os crimes ou estabelecem as penas e
os seus efeitos (art.º 60.º/1 da CRM e art.º 18.º do C. Penal); (c) às leis
restritivas de direitos, liberdades e garantias em geral (art.º 56.º/3 da
CRM), por razões de defesa da liberdade individual contra abusos do
poder. Impõem-se o princípio da tipicidade (MARCELO REBELO DE SOUSA).
Revelando-se impossível o recurso a uma regra determinada, há que
procurar a regulamentação para o caso dentro do espírito do sistema
(analogia juris ). Há que apelar aos princípios jurídicos e, daí, retirar uma
regulamentação para o caso. O integrador de lacunas, ao ter de
estabelecer a disciplina do caso como se fosse o legislador, atende à
substância dos princípios jurídicos e cria uma regra numa posição
estritamente objectiva. Por isso se fala, na orientação generalizadora e
objectivista que preside à analogia juris , prevista no art.º 10.º/3. São
raríssimas as situações em que uma lacuna não é preenchível. No
entanto, o direito apresenta lacunas reais, algumas delas avessas em
absoluto ao seu preenchimento. A título de exemplo, dois casos em que
obstáculos técnicos impedem a própria possibilidade de criação de uma
regra: (aa) o caso de o integrador de lacunas poder substituir o legislador
em circunstâncias específicas (por exemplo se a lacuna resulta da

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exclusão de vários direitos nacionais e o responsável pela integração de
lacunas não pode substituir-se aos correspondentes legisladores); (bb) o
caso de o integrador de lacunas não poder substituir-se aos serviços
administrativos sem os quais a solução encontrada é inexequível (por
exemplo se a criação de certo direito exige a existência de um sistema de
registo sem o qual ela será inviável, não podendo o integrador de lacunas
substituir-se à Administração Pública na implementação desse sistema)
(MARCELO REBELO DE SOUSA).
integração de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do
Homem e da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos (art.º 43
da CRM).

1.7. Aplicação das normas constitucionais

1.7.1. Aplicação das normas constitucionais no tempo em geral

Três problemas centrais: (a) o início da vigência; (b) a cessação da


vigência; (c) a sucessão de fontes. A determinação concreta do início da
vigência das normas constitucionais pode seguir dois esquemas distintos:
(a) uma vigência determinada pela própria fonte constitucional (o início
da vigência coincide com o início da vigência do texto constitucional); (b)
uma vigência supletivamente imposta por outra fonte normativa, de
vocação geral (sempre que a fonte constitucional nada diga, um prazo
supletivo geral de vacatio legis ). A cessação de vigência das normas
constitucionais corresponde a uma vontade de extinguir os seus efeitos

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podendo ocorrer duas situações distintas: (a) revogação constitucional (a
manifestação de uma nova vontade do poder constituinte), que pode, por
sua vez, ser (aa) expressa (quando é explicita na cessação da vigência da
norma), ou (bb) tácita (quando essa vontade revogatória se infere apenas
da existência de um novo regime incompatível com o pré-existente)212;
(b) caducidade constitucional (o fim da vigência fica a dever-se não a
uma intenção de que tal suceda, mas a acontecimentos que têm essa
automática virtualidade, como é o caso do decurso de um prazo, havendo
fontes temporárias, ou quando deixam de se reunir os pressupostos de
aplicação de certa norma). Os fenómenos jurídicos em matéria de
sucessão de fontes, decorrentes da superveniência de norma
constitucionais, podem sintetizar-se do seguinte modo: (a) na passagem
de uma ordem constitucional a outra, a acção de uma Constituição nova
sobre a Constituição anterior (revogação global e, em certos casos,
caducidade); (b) na sucessão entre preceitos da ordem constitucional
antiga e a ordem constitucional nova, a acção das normas constitucionais
novas sobre normas constitucionais anteriores (revogação stricto
sensu ). A sucessão entre preceitos da ordem infra-constitucional antiga e
a ordem constitucional nova têm tratamento autónomo no ponto
seguinte. Em cada país e em cada momento, só pode prevalecer certa
ideia de Direito. Por isso, não pode haver senão uma Constituição – em
sentido material e em sentido formal. Consequentemente, uma
Constituição nova revoga a Constituição anterior. Esta revogação é uma
revogação global, ou de sistema. Diferentemente, em caso de
modificação parcial da Constituição de que é exemplo paradigmático a
revisão constitucional, opera o fenómeno da revogação stricto sensu, i.e.

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, norma a norma. Mas podemos ainda equacionar duas outras situações:
(c) a subsistência de normas constitucionais anteriores, ou seja, a
manutenção de preceitos da ordem constitucional anterior como
integrando a ordem constitucional nova (recepção material, para Jorge
Miranda, ou passagem constitucional, para Jorge Gouveia); ou (d) a
subsistência de normas constitucionais anteriores, com força de normas
de direito ordinário, ou seja, a manutenção de preceitos da ordem
constitucional anterior a título de preceitos infra-constitucionais
(desconstitucionalização).

1.7.2. Sucessão das normas constitucionais e infra-constitucionais no


tempo

O que agora está em causa é a relação entre as normas constitucionais


novas e o direito ordinário anterior. Colocam-se basicamente duas
questões: (a) Acção de Constituição nova sobre normas ordinárias
anteriores não desconformes com ela - novação; (b) Acção de normas
constitucionais novas (provenientes de Constituição nova ou de
modificação constitucional) sobre normas ordinárias anteriores
desconformes - caducidade por inconstitucionalidade superveniente. a)
Uma Constituição nova não faz nunca «tábua rasa» do Direito ordinário
anterior, mesmo nos casos de formação originária dos Estados, ou na
sequência de revoluções muito extensas e profundas. Desde logo por uma
questão pragmática, porque – como escreve Jorge Miranda – «constituir
ou reconstituir tudo desde a base seria esforço demasiado pesado ou
impossível em curto tempo e, entretanto, seria gravemente afectada a

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segurança jurídica. Há sempre
factores de continuidade – até na vida internacional que sobrelevam os de
descontinuidade». A superveniência de uma Constituição provoca, por
isso, um fenómeno de novação do Direito ordinário interno anterior.
Como todas e cada uma das normas, legislativas, regulamentares, e
outras, retiram a sua validade, directa ou indirectamente, da
Constituição, a mudança de Constituição acarreta mudança de
fundamento de validade: as normas, ainda que formalmente intocadas,
são novadas, no seu título ou na sua força jurídica, pela Constituição; e
sistematicamente deixam de ser as mesmas. Foi o que aconteceu na
formação do novo Estado moçambicano, e com a entrada em vigor da
Constituição de 1975, que previa no seu art.º 71.º que «A legislação
anterior no que não for contrária à Constituição mantém-se em vigor até
que seja modificada ou revogada», actual art.º 312 da CRM). b) Nas
hipóteses de modificação constitucional, vigora o princípio tempus regit
actum (os actos regem-se pela lei em vigor à data da sua prática).
Significa, neste caso, que as normas constitucionais novas (provenientes
de Constituição nova ou de modificação constitucional) provocam a
caducidade por inconstitucionalidade superveniente das normas
ordinárias anteriores desconformes. À partida, este problema só se coloca
nos casos de inconstitucionalidade material, e não nos casos de
inconstitucionalidade orgânica ou formal, pois, nestes casos, a
inconstitucionalidade deve ser sempre apreciada à luz das normas
constitucionais vigentes à data da criação das normas em causa.
Tomemos por exemplo uma norma de Direito ordinário, ―herdada‖ do
período colonial, ou publicada anteriormente a 1990, que estava

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conforme à Constituição de 1975, mas que é contrária à actual
Constituição: se a inconstitucionalidade é material verifica-se a
caducidade dessa norma por inconstitucionalidade superveniente;
diferentemente se está em causa uma inconstitucionalidade orgânica, ou
formal relativamente à actual Constituição, essa inconstitucionalidade é
irrelevante porque, nestes casos, a conformidade com a Constituição
deve sempre ser averiguada à luz das normas constitucionais vigentes à
data da criação da norma em análise. Até aqui a solução é – diríamos –
pacífica. Questão diferente é o problema dos efeitos das normas
constitucionais novas (provenientes dessa Constituição nova ou dessa
revisão constitucional). Para melhor explicar o que está em causa,
imagine-se uma norma de Direito ordinário, ―herdada‖ do período
colonial, que contrariava a Constituição de 1975 (embora nunca tivesse
sido declarada inconstitucional), mas que é agora conforme à actual
Constituição. Segundo Jorge Miranda, a revisão constitucional «só tem
efeitos negativos — sobre as normas ordinárias anteriores contrárias —
não positivos — sobre as não desconformes». Por isso, nestas hipóteses de
revisão constitucional, não se opera novação. Diferente entendimento
sustentam Gomes Canotilho e Vital Moreira. Segundo estes Autores, a
alteração da Constituição por via da revisão constitucional pode ter dois
efeitos sob o ponto de vista da inconstitucionalidade. Por um lado, pode
tornar inconstitucionais normas que o não eram antes da revisão (a
inconstitucionalidade superveniente a que nos referíamos há pouco); por
outro lado, pode fazer com que normas que anteriormente eram
inconstitucionais deixem de o ser (constitucionalização superveniente).
Uma posição intermédia – entre a tese de Jorge Miranda e a de Gomes

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Canotilho e Vital Moreira – é a que não aceita a convalidação do acto nulo
pelo termo da vigência da norma constitucional desrespeitada, mas
admite a possibilidade de uma «específica intenção convalidatória» a
apurar através da interpretação da vontade do legislador constitucional
(que poderá ter em vista «salvar» certas normas ordinárias, julgadas
necessárias ou úteis).

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