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CENTRO EDUCACIONAL LOPES FERREIRA

DISCIPLINA: LÍNGUA PORTUGUESA


PROFESSORA: NATHÁ LIA RANGEL

FELICIDADE CLANDESTINA menina, e que eu voltasse no dia seguinte para


buscá -lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em
Ela era gorda, baixa, sardenta e de breve a esperança de novo me tomava toda e eu
cabelos excessivamente crespos, meio recomeçava na rua a andar pulando, que era o
arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto meu modo estranho de andar pelas ruas de
nó s todas ainda éramos achatadas. Como se nã o Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a
bastasse enchia os dois bolsos da blusa, por promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias
cima do busto, com balas. Mas possuía o que seguintes seriam mais tarde a minha vida
qualquer criança devoradora de histó rias inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei
gostaria de ter: um pai dono de livraria. pulando pelas ruas como sempre e nã o caí
nenhuma vez.
Pouco aproveitava. E nó s menos
ainda: até para aniversá rio, em vez de pelo Mas nã o ficou simplesmente nisso. O
menos um livrinho barato, ela nos entregava em plano secreto da filha do dono de livraria era
mã os um cartã o-postal da loja do pai. Ainda por tranquilo e diabó lico. No dia seguinte lá estava
cima era de paisagem do Recife mesmo, onde eu à porta de sua casa, com um sorriso e o
morá vamos, com suas pontes mais do que coraçã o batendo. Para ouvir a resposta calma: o
vistas. Atrá s escrevia com letra bordadíssima livro ainda nã o estava em seu poder, que eu
palavras como “data natalícia” e “saudade”. voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como
mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia
Mas que talento tinha para a seguinte” com ela ia se repetir com meu coraçã o
crueldade. Ela toda era pura vingança, batendo.
chupando balas com barulho. Como essa
menina devia nos odiar, nó s que éramos E assim continuou. Quanto tempo?
imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, Nã o sei. Ela sabia que era tempo indefinido,
de cabelos livres. Comigo exerceu com calma enquanto o fel nã o escorresse todo de seu corpo
ferocidade o seu sadismo. Na minha â nsia de grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me
ler, eu nem notava as humilhaçõ es a que ela me escolhera para eu sofrer, à s vezes adivinho.
submetia: continuava a implorar-lhe Mas, adivinhando mesmo, à s vezes aceito: como
emprestados os livros que ela nã o lia. se quem quer me fazer sofrer esteja precisando
danadamente que eu sofra.
Até que veio para ela o magno dia de
começar a exercer sobre mim uma tortura Quanto tempo? Eu ia diariamente à
chinesa. Como casualmente, informou-me que sua casa, sem faltar um dia sequer. À s vezes ela
possuía As reinaçõ es de Narizinho, de Monteiro dizia: pois o livro esteve comigo ontem de
Lobato. tarde, mas você só veio de manhã , de modo que
o emprestei a outra menina. E eu, que nã o era
Era um livro grosso, meu Deus, era um dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando
livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, sob os meus olhos espantados.
dormindo-o. E completamente acima de minhas
posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa Até que um dia, quando eu estava à
no dia seguinte e que ela o emprestaria. porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa
a sua recusa, apareceu sua mã e. Ela devia estar
Até o dia seguinte eu me transformei estranhando a apariçã o muda e diá ria daquela
na pró pria esperança da alegria: eu nã o vivia, menina à porta de sua casa. Pediu explicaçõ es a
eu nadava devagar num mar suave, as ondas me nó s duas. Houve uma confusã o silenciosa,
levavam e me traziam. entrecortada de palavras pouco elucidativas. A
senhora achava cada vez mais estranho o fato
No dia seguinte fui à sua casa, de nã o estar entendendo. Até que essa mã e boa
literalmente correndo. Ela nã o morava num entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme
sobrado como eu, e sim numa casa. Nã o me surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu
mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, daqui de casa e você nem quis ler!
disse-me que havia emprestado o livro a outra
E o pior para essa mulher nã o era a Chegando em casa, nã o comecei a ler.
descoberta do que acontecia. Devia ser a Fingia que nã o o tinha, só para depois ter o
descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela susto de o ter. Horas depois, li algumas linhas
nos espiava em silêncio: a potência de maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela
perversidade de sua filha desconhecida e a casa, adiei ainda mais indo comer pã o com
menina loura em pé à porta, exausta, ao vento manteiga, fingi que nã o sabia onde guardara o
das ruas de Recife. Foi entã o que, finalmente se livro, achava-o, abria-o por alguns instantes.
refazendo, disse firme e calma para a filha: você Criava as mais falsas dificuldades para aquela
vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: coisa clandestina que era a felicidade. A
“E você fica com o livro por quanto tempo felicidade sempre iria ser clandestina para mim.
quiser.” Entendem? Valia mais do que me dar o Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu
livro: “pelo tempo que eu quisesse” é tudo o que vivia no ar… havia orgulho e pudor em mim. Eu
uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a era uma rainha delicada.
ousadia de querer.
À s vezes sentava-me na rede,
Como contar o que se seguiu? Eu balançando-me com o livro aberto no colo, sem
estava estonteada, e assim recebi o livro na tocá -lo, em êxtase puríssimo.
mã o. Acho que eu nã o disse nada. Peguei o livro.
Nã o, nã o saí pulando como sempre. Saí andando Nã o era mais uma menina com um
bem devagar. Sei que segurava o livro grosso livro: era uma mulher com o seu amante.
com as duas mã os, comprimindo-o contra o
peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, (LISPECTOR, Clarice. Felicidade Clandestina. In:
também pouco importa. Meu peito estava Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Rocco,
quente, meu coraçã o pensativo. 1998).

1) Nos primeiros pará grafos, está explicada uma razã o do conflito entre a narradora e a colega. Esse
conflito está relacionado a diferenças psicoló gicas ou físicas? Por quê?

2) O clímax está localizado:

3) De acordo com os assuntos que traz, esse texto pode ser dividido em quatro partes. Indique os
pará grafos correspondentes a cada uma das partes:
a) Descriçã o:
b) A tortura chinesa:
c) A trama é descoberta:
d) O prazer da posse do livro:

4) Que características interiores, psicoló gicas, podemos enxergar na filha do dono da livraria?

5) A menina prometeu o livro para o dia seguinte. Transcreva do texto o trecho que mostra como a
protagonista se sentia nessa espera pelo “dia seguinte”.

6) Transcreva do oitavo pará grafo o trecho onde fica evidente que a tortura psicoló gica nã o era algo
improvisado.

7) O aparecimento da mã e desmascara a filha. De que forma ela deixa evidente que a filha estava mentindo,
enganando tristemente?

8) Para a mã e, o que devia ser pior do que a “descoberta do que acontecia” naquele momento?

9) “Ela nos espiava em silêncio: a potência da perversidade de sua filha desconhecida...” Por que filha
desconhecida?

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