Explorar E-books
Categorias
Explorar Audiolivros
Categorias
Explorar Revistas
Categorias
Explorar Documentos
Categorias
HISTÓRIA DA
FILOSOFIA ANTIGA
8
HISTÓRIA DA FILOSOFIA ANTIGA
Andréa Alves de Abreu
2021
CASA NOSSA SENHORA DA PAZ – AÇÃO SOCIAL FRANCISCANA, PROVÍNCIA
FRANCISCANA DA IMACULADA CONCEIÇÃO DO BRASIL –
ORDEM DOS FRADES MENORES
PRESIDENTE
Frei Thiago Alexandre Hayakawa, OFM
DIRETOR GERAL
Jorge Apóstolos Siarcos
REITOR
Frei Gilberto Gonçalves Garcia, OFM
VICE-REITOR
Frei Thiago Alexandre Hayakawa, OFM
PRÓ-REITOR DE ADMINISTRAÇÃO E PLANEJAMENTO
Adriel de Moura Cabral
PRÓ-REITOR DE ENSINO, PESQUISA E EXTENSÃO
Dilnei Giseli Lorenzi
COORDENADOR DO NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA - NEAD
Renato Adriano Pezenti
GESTOR DO CENTRO DE SOLUÇÕES EDUCACIONAIS - CSE
Fernando Rodrigo Andrian
CURADORIA TÉCNICA
Alexandra Aguirre
CURADOR INSTITUCIONAL
Luis Fernando Crespo
DESIGNER INSTRUCIONAL
Luiza Cunha Canto Correia de Morais
REVISÃO ORTOGRÁFICA
Ana Carolina Martins
PROJETO GRÁFICO
Impulsa Comunicação
DIAGRAMADOR
Daniel Landucci
CAPA
Daniel Landucci
1 UNIDADE 1
FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA
INTRODUÇÃO
Nesta Unidade, será estudada a História da Filosofia Antiga, a partir das primeiras te-
orizações realizadas pelos filósofos pré-socráticos. O que marca o surgimento dessas
teorizações é a tentativa de responder racionalmente as perguntas sobre a realidade e
o significado da natureza. Inicialmente, será feita uma discussão sobre o significado da
expressão “filósofos pré-socráticos”, a fim de que se compreenda o referencial teórico
que os nomeia e que os explica.
A seguir, serão discutidos os pressupostos que foram aceitos pelos pré-socráticos para
que constituíssem, em oposição à narrativa dos deuses, as suas narrativas racionais. Os
conceitos de cosmo, physis e arqué serão trabalhados para que se possa compreender
como alguns dos pré-socráticos eleitos nesta disciplina os utilizaram na elaboração de
suas filosofias.
6
promover uma primeira aproximação à questão que se quer estudar. Por isso, veja-se a 1
classificação espaço-temporal dos filósofos pré-socráticos a ser apresentada a seguir.
Note-se que a essa classificação se deve acrescentar uma outra informação importan-
te: esses períodos históricos se dão na filosofia que se registra na Grécia. Conside-
rando-se esta última informação, pode-se inferir a origem geográfica da filosofia: ela é
grega. Mas isso também merece uma análise mais detida, como será visto em breve.
` Período helenístico ou greco-romano: final do século III a.C. até o século VI a.C.
1 dizer o prefixo “pré” utilizado nessa expressão? Por que a cunhagem dessa expressão
toma como referência Sócrates, o filósofo que se encontra historicamente em um período
imediatamente subsequente ao pré-socrático? Com o propósito de continuar responden-
do a essas novas questões, é preciso retomar a origem histórica da própria expressão,
ressaltando que o seu nascimento já marca uma abordagem filosófica, ou seja, já é a
formulação conceitual de algo que está ganhando significado ao ser nomeado.
IMPORTANTE
O que se conhece sobre Sócrates advém do depoimento de seus discípulos ou de seus
adversários. No diálogo Teeteto (2007), de Platão, Sócrates se apresenta como um parteiro,
aquele que é capaz de trazer à luz o pensamento dos outros e ainda como aquele que é
estéril em sabedoria.
A expressão “filósofos pré-socráticos” somente passa a ser utilizada pela literatura espe-
cializada a partir de 1788, ao aparecer pela primeira vez em um manual intitulado Filosofia
pré-socrática, de autoria do alemão Johann Augustus Eberhard (LAKS, 2002). Sob essa
expressão são reunidos diversos pensadores, tanto os que cronologicamente antecediam
Sócrates quanto outros que lhe eram contemporâneos. Sob ela também estavam os filóso-
fos que se ocupavam com a natureza, assim como outros que se ocupavam com a política.
Dessa forma, tanto a diversidade de períodos históricos quanto a de temas de interesse
reuniam-se sob a mesma legenda, parecendo conferir pouca precisão aos critérios aplica-
dos para reunir os diferentes filósofos. Seja como for, essa expressão se consagrou na lite-
ratura e permanece usual no meio acadêmico. O que interessa notar é que nem os filósofos
que hoje nomeamos pré-socráticos se apresentavam dessa forma ou eram reconhecidos
assim. E não o eram mesmo por seus sucessores temporalmente mais próximos, a não ser,
como se viu, a partir do longo período temporal que os separou do século XVIII.
Se por um lado a expressão “filósofos pré-socráticos” contribui para que se faça, ainda que
de forma imprecisa, referência a um período histórico e a um objeto de estudos, por outro,
ela também gera alguns conflitos em função da forma pela qual se constitui. Justamente, o
prefixo “pré” e a adjetivação do nome “Sócrates” têm sido discutidos na tentativa de conferir
o devido vigor aos pensadores que, historicamente, foram abrigados sob essa expressão.
Para o professor Carneiro Leão (1977), a palavra “pré” (como utilizada em pré-socráticos)
evoca uma anterioridade, que pode assumir a conotação de algo que ainda não foi reali-
zado ou a conotação de um ainda não, deixando-se antever uma possível superioridade
daquilo que ainda não-é, mas que será depois. Especialmente, parece conotar um grupo
de filósofos que ainda não são socráticos, justamente porque Sócrates seria o modelo de
filósofo, isto é, seria aquele que modelaria o que é ser filósofo. A cunhagem da expressão
parece ter um caráter preparatório à aparição de Sócrates e, ao mesmo tempo, anunciar
a sua posterioridade como aquilo que supera intelectualmente o que lhe antecede, reve-
lando uma possível primitividade conceitual presente na filosofia dos pré-socráticos.
A força semântica da expressão supõe, segundo Carneiro Leão (1977), uma espécie de
barreira axiológica, ou seja, uma espécie de barreira de valores morais, pois parece
conferir a Sócrates o poder de discriminar quem pode e quem não pode ser filósofo.
Se é assim, então os pré-socráticos estariam na pré-história da história da filosofia,
8
eles seriam uma espécie de preparadores do evento mais importante que estaria por 1
vir. A aparição de Sócrates serviria para culminar esse evento e ofuscar o que ficou
para trás e que, assim, cumpriria apenas a função de ser um preparatório. No entanto,
ressalte-se que isso é uma primeira suspeita provocada pelo contato com a expressão.
Suspeita essa que se desconstrói quando se estuda o vigor do pensamento que animou
os pré-socráticos e que permanece vivo no interior do pensamento filosófico ocidental.
Até aqui, foi possível começar a traçar uma resposta consistente à pergunta inicial sobre
o significado da expressão ”filósofos pré-socráticos”, visto que foi exposto o histórico de
seu surgimento e a intenção de classificar tais filósofos considerando-se os seus objetos
de estudos, embora essa iniciativa carregue consigo algumas inconsistências quanto à
datação e aos interesses de estudos. Ainda é preciso compreender melhor o que significa
dizer que esses filósofos estudavam a natureza, os assuntos naturais. O que significa
a natureza para esses pensadores? Eis aqui uma nova pergunta, mas que deixa ainda
outra em aberto: falta responder quais são os materiais aos quais a história da filosofia
tem acesso para estudar os filósofos pré-socráticos. A reposta a essa questão ajudará
a compor o cenário necessário para que se compreenda, de forma detalhada, o objeto
de estudos desses pensadores, assim como o vigor filosófico de seus pensamentos. E,
consequentemente, para que se abandone a visão de que eles são filósofos inaugurais e
já superados na história da Filosofia Antiga.
1
O filósofo inglês Alfred North Whitehead (1957, p. 39) afirma, jocosamente que “uma carac-
terização mais precisa da tradição filosófica europeia é dizer que ela consiste em uma série
de notas de rodapé a Platão”. Entre os estudantes de filosofia, circula uma nova jocosidade
acrescentada a essa de Whitehead: uma caracterização geral das filosofias de Platão e
de Aristóteles consiste em uma série de notas de rodapé aos filósofos pré-socráticos.
Isso, tanto porque o pensamento dos pré-socráticos foi objeto de frequentes considerações
de Platão e de Aristóteles quanto porque seus pensamentos são, vigorosamente, filosóficos
e servem de referência a esses filósofos.
O material do qual a História da Filosofia Antiga se vale para estudar os filósofos pré-
-socráticos é formado pela doxografia e pelos fragmentos. E eis aqui um bom novo
problema a ser discutido: trata-se do fato de que o registro dessas fontes se dá por meio
de terceiros. É preciso registrar que a doxografia define-se como uma síntese do que
pensavam os filósofos e, também, de comentários que são feitos sobre eles. Geralmen-
te, esses comentários são breves e realizados por seus sucessores. Por sua vez, os
fragmentos consistem em citações atribuídas aos próprios pré-socráticos, presentes em
obras posteriores a eles. Diferentemente do que possa parecer, fragmentos não são pe-
quenos pedaços de papel de escritos antigos encontrados e preservados. O fragmento
apresenta as próprias palavras do filósofo, enquanto na doxografia, o seu pensamento
é apresentado por meio da palavra de outros.
EXEMPLOS
FRAGMENTO DOXOGRAFIA
Observa-se, na Figura acima, que esse fragmento é sobre Pitágoras e é atribuído a Xe-
nófanes. Alguém que ouviu as palavras de Pitágoras as reproduziu e elas foram trans-
mitidas à posteridade. Assim o fragmento tentar reproduzir o que foi dito. Já Aristóteles
não faz questão de reproduzir as palavras de Empédocles fielmente. Ao contrário, ele
afirma um pensamento de Empédocles usando as suas próprias palavras.
10
E quanto à forma pela qual surgiu a filosofia? A filosofia pode ou não se dizer genuinamente 1
grega? Essa discussão tem animado o meio acadêmico e duas teses distintas tentam dar
respostas a essa interrogação. Por um lado, há a defesa da tese de uma filosofia nascida
genuinamente no interior da Grécia, sem nenhuma influência de culturas estrangeiras e
que supõe, por isso mesmo, a existência de um “milagre grego”. Isso porque os primeiros
filósofos estariam expostos às mesmas influências socioculturais dos demais homens, mas
seriam dotados da genialidade de pensar de forma diferente dos outros: eis aí a noção de
milagre, pois o surgimento da filosofia na Grécia se justificaria como um acontecimento fora
do que se poderia esperar, fora do comum e, portanto, propiciado por um povo excepcional.
Por outro lado, há a defesa da tese orientalista supondo que o surgimento da filosofia foi
dependente da cultura oriental e contou com a contribuição dos conhecimentos já desen-
volvidos pelos povos egípcios, assírios, persas, caldeus, babilônicos, como citado pela pro-
fessora Marilena Chauí (1998). O fato de o povo grego ser navegante e comerciante o fez
entrar em contato com essas culturas e conhecer as técnicas desenvolvidas nelas. Ao co-
nhecê-las, puderam apropriar-se delas à sua maneira e transformá-las. Assim, a partir dos
conhecimentos adquiridos da agrimensura egípcia, os gregos desenvolveram a aritmética e
a geometria; da astrologia dos caldeus e dos babilônicos, desenvolveram a astronomia e a
meteorologia; da genealogia dos persas, deram origem à ciência da história e, a partir dos
rituais orientais de purificação da alma, desencadearam as discussões filosóficas sobre o
que seria a alma humana e qual seria o seu destino.
Pode-se afirmar que o pensamento dos filósofos pré-socráticos exibe uma racionali-
zação acerca da realidade. E porque, então, qualificá-lo a partir dessa ideia de “racio-
nalização”? A resposta aqui aponta para
Figura 02. Conhecimento
o que, inicialmente, pode ser chamado
de passagem do pensamento míti-
Fonte: 123rf
Os deuses gregos narravam, por meio do poeta, a origem do mundo e das coisas exis-
tentes no mundo, a partir das lutas, alianças e de relações sexuais entre os próprios
deuses que regem o mundo, a fortuna e o infortúnio dos homens. Eis aqui a cosmo-
gonia e a teogonia. A cosmogonia narra o surgimento e a forma pela qual o mundo se
organiza, a partir das fontes divinas que lhes originaram. Por sua vez, a teogonia narra
a origem dos deuses a partir de seus pais.
EXEMPLO
Homero, com a Ilíada e a Odisseia (século IV a.C.), e Hesíodo, com a Teogonia e Os tra-
balhos e os dias (século VIII a. C.), narram a palavra dos deuses, o mito. Essa narrativa é
poética e produto dos depoimentos orais recolhidos dos poetas gregos, que fizeram parte da
história da Grécia desde o período arcaico (c. 1500 a. C.).
Já que foi possível compreender até aqui como se inicia o discurso filosófico nesse
período histórico da filosofia nomeado “pré-socrático”, resta compreender o objeto de
estudos desses filósofos. Seu objeto de estudos era a physis – que se traduz por natu-
reza. Fora a mera tradução linguística, deve-se tentar inferir o que o povo grego queria
dizer quando pronunciava physis.
12
Segundo o professor Gerd Bornheim (1998), para o povo grego a physis designa tudo o 1
que vem a ser por si mesmo, tudo o que brota, emerge, abre-se. Sobretudo, refere-se
a um desabrochar que se origina de si mesmo. A physis qualifica aquilo que é primário,
que se encontra na primazia, que se encontra no fundamento e que persiste, perdura.
Aquilo que está em franca oposição ao que é secundário, ao que existe por derivação
e ao que é transitório. Dessa forma, a physis encontra nela mesma a sua origem, pro-
duz as suas próprias leis e as obedece. Além disso, segundo Iglésias (1997), a physis
produz leis naturais que são imutáveis, inexoráveis, leis que podem ser conhecidas
pelos homens, mas que não podem ser modificadas por eles.
É em função desse estudo da physis que se pode afirmar que a filosofia dos pré-socrá-
ticos é uma cosmologia. Diferentemente da cosmogonia, que produzia as suas expli-
cações a partir da narrativa dos deuses, a cosmologia produzia explicações racionais,
elaboradas a partir do uso da razão. A palavra cosmo significa o mundo ordenado, que
possui um princípio que é causador e ordenador de tudo o que é existente e acontece
na natureza. No cosmo se encontram a ordem, a harmonia e a beleza. E, por sua vez,
a beleza se origina da harmonia das formas. Note-se que a palavra “cosmética”, ao ser
associada à beleza, encontra aí o seu sentido. A lei natural do cosmo é a causalidade.
1.1 OS MILÉSIOS
Aristóteles foi o primeiro filósofo a fazer referência aos pré-socráticos de forma regular. Em
sua Metafísica, ensina (DIÔGENES LAÊRTIOS, 2008, p. 21): “Tales [...] diz que o princípio é a
água (por esse motivo afirmou que a terra repousa sobre a água)”. Aristóteles supõe que Tales
é levado a formar essa opinião por ter observado que a umidade está presente em todos os
alimentos, em todas as coisas vivas. Portanto, são as aparências que o levam a essa conclu-
são, porque, como afirma Simplicius, citado por Bornheim (1998, p. 22), “aquilo que é quente
necessita de umidade para viver, e o que é morto seca, e todos os germes são úmidos, e
todo alimento é cheio de suco; ora é natural que cada coisa se nutra daquilo de que provém”.
Assim, é a água que mantém e é o princípio de tudo o que existe.
Uma outra suposição para Tales ter eleito a água como princípio é a de que ela não possui
nenhuma forma específica, constituindo-se em uma dinâmica de tornar-se um vir a ser o ou-
tro, mas sem jamais deixar de ser ela mesma, ou
Figura 03. Tales de Mileto
seja, sem jamais deixar de ser água. E seria por
isso que ela é o princípio único de tudo. Note-se
Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Tales_de_Mileto#/media/Ficheiro:Illustrerad_
Diôgenes Laêrtios (2008) lista os seguintes feitos atribuídos a Tales: estudou astro-
nomia; previu os eclipses do sol e a determinação de solstícios; defendeu, de forma
pioneira, a imortalidade da alma; nomeou o último dia do mês como trigésimo; inscre-
14
veu um triângulo em um círculo e foi conselheiro em assuntos políticos. É impreciso 1
se Tales permaneceu solteiro e se teve filhos. Há relatos de que ele tenha adotado o
filho da irmã e quando indagado por que não teve os próprios tenha respondido: “por
amor aos filhos”.
Diôgenes confere a Tales certas respostas às indagações que lhes eram remetidas. Al-
gumas podem parecer divertidas, mas, sobretudo, despertam, em quem as ouve, uma
inquietação que aponta para o caráter reflexivo dessas respostas. Seguem as pergun-
tas e respostas como citadas por Diôgenes Laêrtios (2008, p. 22): Tales afirmava que
a morte não difere da vida. “Por que então, disse alguém, não morres? Porque, disse
ele, não faz diferença”. Perguntado sobre qual era a coisa mais difícil, ele respondeu:
“conhecer-se a si mesmo”. Perguntado sobre a coisa mais fácil, afirmou “Dar conselhos
aos outros”. Questionado sobre como uma pessoa poderia suportar melhor a adversi-
dade, retrucou: “Se lhe for possível ver seus inimigos em situação pior”.
No diálogo Teeteto, de Platão (2007), há uma passagem que faz referência a Tales.
Platão narra que Tales caminhava olhando o céu e observando os astros. Nesse per-
curso, ele cai em um poço. Uma camponesa assiste a cena e zomba, dizendo que ele
“procurava conhecer o que se passava no céu, mas que não via o que estava junto dos
próprios pés” (PLATÃO, 2007, p. 93). Com essa descrição, Platão quer fazer referência
à figura do filósofo, à atividade de pensar e à vida mundana: o pensamento é aquilo que
retira do mundo operativo, cotidiano e prático aquele que se dedica a pensar. Mais do
que isso, Platão parece reunir em um só quadro a filosofia, representada por Tales, e a
vida prática, representada pela camponesa. A zombaria que ela faz é a constatação de
que a vida filosófica e a vida mundana se pertencem, pois, mesmo se quisesse, Tales
não poderia se dedicar somente ao pensamento, tendo que se dedicar à vida mundana
também (essa vida que a camponesa afirma que estava “junto dos próprios pés”). É no-
tório que, nessa passagem, Platão se valeu de Tales para exemplificar o ofício do filóso-
fo, referendando, assim, o vigor de pensamento que se pode atribuir aos pré-socráticos.
Se para Tales a arqué é a água, para Anaximandro, seu sucessor e pupilo, a arqué
é o ápeiron – que pode ser entendido como o indefinido e o infinito.
Anaximandro, natural de Mileto, foi discípulo de Tales, mas diferentemente de seu mes-
tre, entendia que a arqué, ou seja, o princípio e o elemento presente em todas as coisas
que existem, é o ápeiron. Supõe-se que ele tenha vivido de 547 a 610 a.C. e tenha sido
geógrafo, matemático, astrônomo e político. Outros dados acerca da sua vida particular
não são conhecidos. Há relatos doxográficos de que tenha escrito o livro Sobre a Natu-
reza – mas esse livro se perdeu. O que se conhece a respeito de Anaximandro advém
de um fragmento e dos comentários de filósofos que o sucederam. O fragmento referido
a Anaximandro atesta a compreensão de que arqué deve ser entendida como a unidade
primordial, da qual todas as coisas emergem e para a qual todas as coisas retornam.
1 causa e que a causa deve ser superior ao seu efeito. Essa exigência de se buscar uma
causa para todo o efeito e de estabelecer relações de grandeza entre eles constitui-se em
um dos debates presentes nas discussões filosóficas ao longo dos séculos.
Ápeiron, sendo ilimitado e indeterminado, não pode ser apontado no mundo físico –
como o podem ser a água e o fogo, por exemplo. Assim sendo, torna-se estranho afir-
mar que para os milésios o princípio originador de tudo era concreto e, portanto, não
abstrato. A afirmação quanto à concretude do ápeiron torna-se estranha da mesma
forma que é estranho afirmar que o ápeiron é uma noção abstrata, uma vez que os
milésios não teorizaram sobre a possibilidade de que explicações racionais poderiam
supor fundamentos abstratos. Da mesma forma que soa estranho aos ouvidos pós pré-
-socráticos afirmar a concretude do que não pode ser apontado na natureza, soa es-
tranho aos ouvidos dos milésios definir um princípio abstrato. Dessa forma, a literatura
filosófica tem optado por afirmar que o ápeiron é um princípio explicador da realidade,
como o fazia Anaximandro, sem afirmar que o ápeiron seja uma abstração. O discípulo
de Anaximandro, Anaxímenes, tentará contornar o embaraço de enunciar um princípio
explicador não natural e concreto e negará, parcialmente, a doutrina de seu mestre
afirmando que tal princípio é o ar.
Com a sua tese sobre o ápeiron, Anaximandro divergia de Tales acerca da arqué, mas
ressaltava que a água, no início dos tempos, cobria toda a Terra e que todos os seres
vivos surgiram do mar, enquanto o homem, por sua vez, teria se derivado dos peixes.
Ressalte-se que a divergência entre os pré-socráticos quanto à arqué não os afastava
do embate intelectual, uma vez que não era sinônimo de superação de uma teoria pela
outra e nem de ofensa de um filósofo a outro. Pelo contrário, era o embate do pensamento
em curso, o exercício do pensamento filosófico que permitiu, por meio da especulação
racional, várias suposições e elaborações de argumentos a respeito do mesmo assunto.
Anaxímenes de Mileto foi discípulo e sucessor de Anaximandro. Estima-se que ele te-
nha nascido em 585 e morrido entre 528 e 525 a.C. Estudou particularmente a me-
teorologia, entretanto, não se encontram maiores detalhes de sua vida particular. Foi
considerado o filósofo principal da Escola de Mileto.
16
cidade do ar está presente em todas as coisas Figura 04. Anaxímenes de Mileto
1
mediante condensação ou rarefação. Dessa
mar. 2021.
sua existência se dá por meio do frio, do calor,
da umidade e do movimento, que é responsá-
vel por mudar tudo. Note-se que aqui há uma
exigência de abstração, pois o que acontece na
realidade natural experimentada pelo ar (ou seja, o calor e o frio, por exemplo), o que
explica a transformação de um estado no outro, a rarefação e a condensação, são o
exercício intelectual de compreender a mudança que se dá entre um estado físico e
outro, ou seja, a abstração. Eis aqui uma das contribuições ao pensamento filosófico
deixada por Anaxímenes.
PARA REFLETIR
Observe no mapa do mundo grego a proximidade das cidades da Jônia com o Oriente e re-
flita acerca de como as influências culturais – proporcionadas pelas viagens comerciais entre
o Ocidente e o Oriente – puderam contribuir para o surgimento da Filosofia.
1
Figura 05. Mapa do mundo grego
2.1 HERÁCLITO
Heráclito nasceu na cidade de Éfeso, situada na Jônia. As datas que registram seu
nascimento e morte não são precisas, mas estima-se que o apogeu de suas discussões
filosóficas tenha sido entre 504 e 500 a. C. Essa estimativa faz supor que ele pertença à
geração que sucede Xenófanes – a quem sua filosofia se contrapõe – e à geração que
antecede Parmênides, que lhe faz oposição. Sua família possuía prerrogativas reais,
pois descendia dos fundadores da cidade, mas não constam registros de sua participa-
ção no governo e nem na política. Sobre a sua vida pessoal, muito pouco é conhecido,
embora existam referências sobre seu comportamento. Heráclito era considerado or-
gulhoso, desprezava seus concidadãos, assim como os antigos poetas e os sábios de
18
seu tempo. Desdenhava, também, da religião. Segundo Diôgenes de Laêrtios (2008. 1
p. 251), Heráclito era “[...] mais altivo que qualquer outro homem e olhava a todos com
desdém”. Não teve um mestre e não deixou discípulos. É considerado o pensador pré-
-socrático mais eminente por conta de sua sofisticada teoria filosófica. Recebeu de seus
contemporâneos o cognato de “O Obscuro”, tal era a complexidade de suas teorias.
Agora, repare no filósofo sentado solitário, com as costas voltadas para toda a cena.
Sua imagem é reportada a Heráclito, O Obscuro, que, segundo a doxografia, despreza-
va os demais sábios de seu tempo.
1 e que são diversas no mundo. Essa explicação não poderia se assentar em algo que
fosse imóvel, pois, uma vez que a physis é fonte de onde tudo emerge, brota, vem a ser,
o que ela mostra nesse permanente desdobrar-se e fazer brotar é a própria mudança, a
própria dinâmica móvel que a caracteriza.
Note-se que a palavra “Lógos” quando se faz referência à filosofia de Heráclito apa-
rece em maiúscula. Isso é assim, pois diferente dos outros filósofos pré-socráticos,
para Heráclito o Lógos assume o caráter e o status de princípio unificador do real.
Embora a palavra “Lógos” possua diferentes sentidos, ela está sendo utilizada aqui
como lei natural, ordem cósmica, e que, justamente por ser uma ordem, ordena algo
– e o que ela tem a ordenar é a mudança. Mesmo estando tudo em movimento, em
fluxo perpétuo e sendo o mundo habitado pelos diversos particulares, assim como é
diverso tudo o que há na natureza, o Lógos, em Heráclito, cumpre a função de ser o
princípio unificador do real, constituindo-se no elemento fundador da racionalidade no
mundo. Mesmo que tudo seja movimento no mundo, a realidade possui uma unidade
na pluralidade, pois, por mais plural, diversificado que o mundo seja, há o Lógos como
unificador do real, conferindo, então, a unidade à pluralidade. Em outras palavras, o
mundo é plural, mas se unifica no Lógos. Essa unidade pode ser compreendida como
reunidora dos opostos. Observa-se que dizer que a realidade é marcada pelo conflito
entre os opostos não confere a esse conflito caráter negativo. Esse conflito é positivo,
20
pois cumpre a função de garantir o equilíbrio ao promover a equivalência e reunião dos 1
opostos, colocando-os em curso e garantindo a diversidade dos particulares no mundo.
1 2.2 XENÓFANES
Xenófanes nasceu em Colofon, na Jônia, e é clas- Figura 07. Xenófanes de Cólofon
sificado como integrante da Escola Jônica. Suas
datas de nascimento e morte são imprecisas, mas
media/Ficheiro:Xenophanes_in_Thomas_Stanley_History_
Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Xen%C3%B3fanes#/
estima-se que tenha nascido entre 580 e 570 a. C.
e morrido por volta de 460 a. C. Foi poeta, sábio e
rapsodo, percorreu várias cidades da Grécia e su-
A oposição que Xenófanes faz aos filósofos de Escola de Mileto, a Homero e a Hesíodo,
pode ser compreendida a partir da recusa das aparências como forma de se ter acesso
ao conhecimento e do estabelecimento de um princípio único, permanente e imóvel
sustentador de toda a realidade aparente. O movimento objetivo marcado pelo aparecer
e desaparecer – como o nascimento e morte dos seres particulares – é percebido objeti-
vamente, pois esse movimento se dá a conhecer pelas aparências, que são fenômenos
testemunhados pelos sentidos, é possível vê-los no mundo, fenômenos destinados a
serem vistos e percebidos. Eram essas mudanças presentes na natureza, na physis,
que os filósofos da Escola de Mileto tentaram explicar. Mais do que isso, encontraram
como princípio explicador da realidade natural um princípio também natural.
Xenófanes compreendeu que o cosmo é ordenado por uma ordem racional, que corres-
ponde à racionalidade humana, e que, por isso, é possível conhecê-la pela especulação
racional. Em oposição aos milésios, interpretou que essa ordem não é objetiva e sim
subjetiva, devendo ser alcançada pelo uso da razão, sem que as aparências contradi-
tórias do mundo sensível exerçam qualquer influência.
Eis o princípio enunciado por Hegel (1973, p. 76) para a compreensão do pensamento
de Xenófanes: “somente é o ‘um’, somente é o ser”. E o “um” é alcançado pelo pensa-
mento, somente o “um” tem realidade efetiva. O que não é o “um” não possui realidade
22
efetiva e nem ser. O que não é o “um” tem apenas aparência. Como o “um” é uma 1
abstração, Hegel (1973) afirma que, nesse momento da história da Filosofia Antiga, o
pensamento experimenta a sua mais alta liberdade, visto que nesse momento ele é ma-
nifestado para si mesmo, encontrando-se livre das aparências. O pensamento não está
mais submetido às transformações ilusórias das aparências e nem mais à palavra dos
deuses trazida pelos poetas, como Homero e Hesíodo. Esse “um” que é alcançado pelo
pensamento é privado de determinação, ou seja, é indeterminado, não é submetido a
nenhum ordenamento, o que significa dizer: nada está acima do “um” para que possa
determiná-lo, para que possa ordená-lo. O “um” não é susceptível às transformações
como são transformadas as aparências – tal qual o dia se transforma na noite, o pe-
queno se transforma no grande, por exemplo. Mais ainda: o “um” é eterno. E, para que
isso seja compreendido, é preciso afastar algumas noções mais familiares que se tem
em relação a essa palavra. Aqui, o eterno não guarda nenhuma relação com o tempo
passado ou futuro e nem com um tempo infinitamente longo. O eterno é aquilo que é
igual a si mesmo, presente e que não recebe nenhuma intervenção do tempo. O eterno
é, portanto, o que está fora do tempo. Como o aparecer e o desaparecer, as mudanças,
o devir e as aparências estão incluídas no tempo, estão excluídas do eterno. O que é
eterno é ilimitado, pois não possui início e nem fim.
O “um” que é alcançado pelo pensamento em Xenófanes é deus. Ele não pode ser “um
deus”, pois, se o fosse, faria supor que existem vários deuses e ele apenas seria mais
um entre outros. O que se alega é que ele é “um” e é eterno, pois não se corrompe
no tempo, e é imóvel, pois não se transforma em outra coisa. A palavra deus aqui não
tem o mesmo sentido devocional e religioso experimentado pelas pessoas de fé. Em
Xenófanes, deus é um exercício experimentado pela razão que consegue alcançar um
princípio unificador para explicar a realidade. Nas palavras de Aristóteles: “Xenófanes,
contudo, o primeiro expoente da doutrina da unidade, (pois Parmênides teria sido seu
discípulo) [...], observando o universo todo, dizia que a unidade é deus” (ARISTÓTELES
apud BORNHEIM, 1998, p. 29).
Deus é diferente dos deuses de Homero e de Hesíodo, os quais são repugnados nas
sátiras de Xenófanes. Veja-se: “Homero e Hesíodo atribuíram aos deuses tudo o que
para os homens é opróbrio e vergonha: roubo, adultério e fraudes recíprocas”; “Mas os
mortais imaginavam que os deuses são engendrados, têm vestimentas, voz e forma
semelhantes a eles” (BORNHEIM, 1998, p. 31). Nesses versos, Xenófanes critica o fato
de que os poetas somente conseguem compreender as aparências – não conseguem
fazer o exercício de pensar para além das aparências – e, por isso, fazem os deuses
semelhantes aos homens, com os mesmos hábitos, tais como roubar e usar roupas, ter
um corpo semelhante ao dos seres humanos. Homero e Hesíodo são satirizados por
não compreenderem que há algo além das aparências e que as explica.
GLOSSÁRIO
A sátira é um gênero literário que pode ser definida como uma peça em versos constituídos
para atacar os vícios e erros dos homens.
1 2.3 PARMÊNIDES
Parmênides nasceu na cidade de Eléia, território que Figura 08. Parmênides de Eléia
atualmente corresponde à cidade de Vélia, na Itália. Foi
Fonte: https://picryl.com/media/parmenides-ebe7e6.
discípulo de Amínias, um filósofo que se filiava à doutri-
na de Pitágoras. Sua vida pessoal é pouco conhecida.
Estima-se que a sua família era rica e ilustre. Declarou
que a Terra é esférica e se encontra no centro do Uni-
verso. Entretanto, há divergências entre os autores so-
bre o momento culminante de sua existência, ou seja,
quanto ao período de maior efervescência de suas
Parmênides se refere ao Ser como pura imobilidade, mas isso não significa pura estáti-
ca, paralisia. Antes, a imobilidade (ou o imobilismo parmenidiano) diz respeito à exis-
tência de uma verdadeira realidade que é dotada das seguintes características: eter-
nidade, imutabilidade, continuidade, indivisibilidade e que não possui princípio,
nem fim. Essas características reunidas conferem ao Ser permanência e o distinguem,
assim, do Ser de Heráclito, concebido como movimento, fluxo perpétuo.
Concebendo o Ser dessa forma, é possível afirmar que Parmênides está buscando, para
além das aparências, aquilo que explica as próprias aparências, as quais se mostram
intercambiáveis, contrárias e fugidias. Para ele, a transformação do frio em quente e
do pequeno em grande, por exemplo, atesta somente a aparência, a forma pela qual as
coisas aparecem aos sentidos e não fornecem o bom modelo para se pensar o Ser – pois
o Ser deve ser pensado em seu sentido abstrato e não a partir do que se move diante dos
sentidos. Note-se, aqui se delineia uma questão que se torna objeto de discussão de toda
a filosofia ao longo de sua história: a distinção entre ser e aparecer.
24
É possível afirmar que para defender a sua tese, de que há uma realidade imóvel, Par- 1
mênides lança mão de argumentos de caráter lógico. Contudo, ressalte-se que não é
possível afirmar que ele elabore uma argumentação lógica – tal qual a Lógica, como um
ramo da Filosofia, a ser conhecida posteriormente aos filósofos pré-socráticos. No en-
tanto, pode-se dizer e verificar que seus argumentos já se justificam ao realizar apelos
lógicos para defender a tese do imobilismo.
Os fragmentos atribuídos a Parmênides permitem avaliar que o que lhe faz pressupor
a noção de mudança é a noção de permanência e essa afirmação se constitui fazendo
um apelo lógico às noções de antecedência e sucessão. Ela, a permanência, antecede
a noção de mudança e que permite que a mudança seja concebida. Por isso, o caráter
lógico do argumento, visto que não é possível se referir à mudança sem que antes se
tenha concebido o que seja a permanência, ou seja, que a permanência exista.
Assim, é daquilo que permanece como sendo o que é (ou seja, que é imóvel e que
permanece idêntico a si mesmo fora do fluxo das mudanças) que se gera a mudança, a
mobilidade. Porquanto, se tudo fosse móvel, se nada permanecesse idêntico a si mes-
mo, como seria possível reconhecer alguma coisa? Como seria possível reconhecer
o quente se a noção de quente não fosse permanente? O transformar-se no contrário
exige, ao menos, a permanência dos contrários. Porém, se tudo muda, então os contrá-
rios não permanecem e se não permanecem não poderão, sequer, ser contrários. A não
permanência aniquilaria o Ser. Portanto, o Ser é permanência, dotado das característi-
cas já descritas: ele é eterno, imutável, contínuo, indivisível, sem princípio e sem fim. É
porque existe algo que permanece que se torna possível conhecer aquilo que muda e
que, nessa mudança, se transforma em outra coisa, inclusive no seu contrário.
Em uma das partes do seu poema, Parmênides opõe a razão à opinião. Ele defende
que, para pensar e conhecer o Ser, é preciso seguir o caminho do pensamento, da
razão. Esse é o caminho da Verdade. E, para seguir o caminho da Verdade, é neces-
sário o afastamento dos hábitos e das impressões sensíveis que chegam aos homens
pelos sentidos. Essas impressões sensíveis são imprecisas e mutáveis, não são um
caminho para o Ser, pois não se pode chegar ao Ser pelo caminho da imprecisão e da
mutabilidade. A imprecisão e a mutabilidade que chegam aos homens pelos sentidos
pavimentam o caminho da opinião e não o da verdade. É sobre esse mundo que se
dá aos sentidos, ou seja, o mundo de aparências, onde os homens podem formular as
suas opiniões, mas não a verdade. A opinião se ocupa com as aparências, ou seja,
ocupa-se com o Não-Ser. A desvalorização dos sentidos e a valorização da razão en-
contram-se em um dos seus fragmentos, como citado por Diôgenes Laêrtios (2008, p.
257): “Não deixes que o hábito reiterado te leve à força por este caminho, nem sejas
1 governado pelo olho sem objetivo, pelo ouvido que ecoa e pela língua, mas julga com
a razão a prova bem contestada”. Aqui, o olho e o ouvido referem-se aos sentidos que
apreendem as aparências mutáveis; a língua à opinião em oposição à razão capaz de
julgar e encontrar a verdade.
3.1 EMPÉDOCLES
Empédocles nasceu em Agrigento, por volta Figura 09. Empédocles de Agrigento
de 450 a.C. Pertenceu a uma família influente
e teve participação ativa na vida política, de-
Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Portrait_
ofEmpedocles_Wellcome_M0004262.jpg. Acesso em:2
fendendo a preservação da democracia e, em
desprezo à oligarquia, recusou-se a assumir
a função de rei que lhe cabia. Entre os seus
escritos, encontram-se dois poemas: Sobre a
Natureza e Purificações. Vários fragmentos
reportados a eles foram preservados.
26
Pelo nascimento, os homens, por exemplo, aparecem no mundo e, pela morte, desa- 1
parecem, mas esses fenômenos são aparências e não revelam a realidade em si. O
que as aparências revelam é apenas a distorção de uma realidade que é, nela mesma,
imutável. Assim, o nascimento e a morte como fenômenos que atestam tanto a geração
de algo vindo do nada quanto a destruição da coisa antes existente seriam admitidos
como verdades somente por homens inocentes. Suas inocências estariam em crer que
algo que não-é (o nada) fosse capaz de gerar algo que passa a ser, existir, que nasce
e surge. E, também, que algo que é (o ser surgido) possa deixar de sê-lo, ou seja, que
possa se destruir pela morte.
Para Empédocles, é impossível que alguma coisa venha a perecer, a ser destruída,
por ela mesma. Considerando-se que a causalidade é uma regra interna à physis,
para que alguma coisa seja destruída, deverá haver algo que a anteceda para que
possa destruí-la. Se assim fosse, essa cadeia causal seria infinita e sempre restaria
saber quem destruiria o primeiro destruidor da cadeia. Para tentar salvar a possibili-
dade de destruição como algo externo à coisa que existe, seria preciso supor que há
um agente externo à coisa existente, que deverá agir para destruí-la. Sobretudo, esse
agente deve ser, ele mesmo, indestrutível. Por outro lado, se as coisas existentes
pudessem deixar de existir por elas mesmas, nenhuma certeza, nenhuma garantia
quanto à existência do mundo e das coisas que existem nele estaria assegurada. Se
o poder de destruição estivesse nas coisas e não fora delas, o simples fato de voltar
para a casa estaria comprometido, já que a casa teria o poder de desaparecer e não
haveria nenhuma garantia de que o seu proprietário a encontraria ao retornar. Rejei-
tando tanto o argumento de um agente causal externo à coisa, possuidor do poder de
destruí-la, modificá-la, quanto negando o argumento de um agente próprio à coisa,
que lhe conferisse o poder de destruição, de mudança, Empédocles fundamenta o
seu lógos: o lógos como um princípio racional que regula o cosmo.
1
E, como elas se misturam para constituir o princípio formador do cosmo?
Com a sua teoria, Empédocles, além de explicar a physis, também contribui para a
composição de um sistema ético. Isto porque o amor, o comportamento amoroso, é
capaz de promover a união, enquanto o ódio e o sentimento odioso contribuem para
a destruição, para o desentendimento, para a separação e para a morte. Então, uma
vida estimulada pelo amor seria a forma de conduta mais adequada, posto que é o
amor que a sustenta. Como a ação do amor limita a ação do ódio, quanto mais os atos
forem amorosos, mais a vida conseguirá se sustentar como vida e menos o ódio terá
a oportunidade de agir levando à destruição. Dessa forma, a realidade encontra o seu
fundamento racional a partir da mistura desses elementos materiais e imateriais.
3.2 ANAXÁGORAS
Anaxágoras recebeu grande reputação como fí- Figura 10. Anaxágoras de Clazômenas
sico, matemático, astrônomo e meteorologista. Ficheiro:Anaxagoras_Lebiedzki_Rahl.jpg. Acesso em: 2 mar. 2021.
Nasceu em Clazômenas, na Jônia, provavel-
Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Anax%C3%A1goras#/media/
28
movimento. Compreendeu que as coisas são divisíveis de forma ilimitada e quanto 1
menores forem os elementos daquilo que é misturado, mais homogênea essa mistura
será. A partir desse fundamento, concebeu que a realidade é una e está plenamente
amalgamada, misturada. Essa realidade é movida por alguma inteligência e assim se
originam as coisas que se dão a ver aos homens no mundo das aparências.
Para que se compreenda como se dá essa mistura que Anaxágoras afirma haver na
realidade, é necessário que se conheça o conceito de homeômero postulado por ele.
EXEMPLO
No trigo, que é um homeômero, há porções de todas as coisas, mas prevalece quantitati-
vamente porções de trigo. Quando um ser humano se alimenta de trigo, a carne que há no
trigo se junta à carne que há no ser humano. Assim, não é o trigo que se torna a carne do ser
humano que o comeu, mas a carne que havia no trigo é que é incorporada à carne do ser
humano, posto que o trigo traz em si tudo o que há no mundo, inclusive a carne.
1 e que faz aparecer as coisas no mundo: “[...] a porta gira em seus gonzos, mostrando
e escondendo a abertura, tudo é invertido no círculo, ciclo, espiral que os esmagados
pela roda e os inexperientes não podem pôr em movimento, nem parar, nem recortar”.
SAIBA MAIS
Kostas Axelos (1924-2010) foi um ateniense, professor de filosofia na França. Seu texto so-
bre Anaxágoras encontra-se traduzido e publicado no volume dedicado aos Pré-socráticos da
Coleção Os Pensadores. Essa coleção foi publicada no Brasil, a partir de 1973, em diferentes
edições, e conta com forte reputação no meio acadêmico brasileiro, em função da qualidade
dos textos aí traduzidos.
Nessa mistura proveniente do ciclo rotativo, em que “tudo é invertido no círculo”, cabe ao
nous separar o que está misturado e, ao fazê-lo, promover o ser e o devir. Aqui, o devir
do ser é mistura e o desaparecer é separação. O nada não cria nada e tudo se forma
do que já preexiste graças à mistura e à separação. Anaxágoras não fazia referência à ori-
gem das coisas. Ele substituía a noção de origem pela de separação. Veja-se o fragmento
17, atribuído a Anaxágoras presente também em Bornheim (1998, p. 96): “[...] nada nasce
ou perece, mas há mistura e separação das coisas que são. E, assim, deveriam chamar
corretamente o nascimento de mistura e a destruição de separação”.
Note-se que, para Anaxágoras, tanto as partes quanto o todo são ilimitados. E como
isso é possível? Pois, parece familiar e intuitivo conceber que uma parte do todo já
traz em si a limitação justamente por ser uma parte. Isto se explica, pois, as coisas
são concebidas como ilimitadas no que se refere ao acréscimo que recebem durante o
processo de separação. Ou seja, as coisas são ilimitadas tanto quando são dirigi-
das ao menor quanto quando são dirigidas ao maior. Veja como essas formulações
aparecem no fragmento 6, atribuído a Anaxágoras:
30
[e] como há partes iguais do grande e do pequeno, todas as coisas podem
conter todas as coisas. Também não podem estar separadas, pois todas as
1
coisas participam de todas as coisas. Não sendo possível, o último grau de
pequenez, não se podem separar, nem serem por si mesmas; também agora,
como no início, devem estar todas juntas. E em todas as coisas muitas coisas
estão contidas e as coisas separadas existem em quantidade igual, tanto nas
maiores como nas menores. (BORNHEIM, 1998, p. 94)
SAIBA MAIS
É a partir dos fragmentos e da doxografia que se torna possível tentar compreender os fi-
lósofos pré-socráticos. Portanto, um excelente exercício para estudantes e estudiosos de
Filosofia é tentar recompor os argumentos presentes em um fragmento.
A raiz da conclusão de Anaxágoras – de que tudo está contido em tudo – parece derivar
da noção de que coisas contrárias possuem a mesma origem e, além disso, como os
componentes da realidade são ilimitados, não é possível conhecer as suas quantidades
nas coisas. Os sentidos não são competentes para perceber a realidade inaparente
e quando os homens julgam a verdade somente pelo que lhes chegam aos sentidos,
equivocam-se e tomam o aparente como verdadeiro.
3.3 DEMÓCRITO
Leucipo é o fundador da Escola Atomista. Pou- Figura 11. Leucipo
co se conhece a seu respeito, mas o pensa-
mento que desenvolveu sobre o atomismo foi
Ficheiro:Pinacoteca_Querini_Stampalia_-_Leucippus_-_
fortemente difundido por Demócrito, seu discí-
Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Leucipo#/media/
pulo. O atomismo é uma das teorias pré-so-
cráticas que influenciou vigorosamente a An-
1 Por isso o átomo e o vazio deveriam ser defendidos em suas formalidades, ou seja,
como conceitos formais. E o que isso significa? Significa que conceitos formais são
impostos pela razão e não recebem a intervenção das convenções subjetivas dos ho-
mens, como quando eles convencionam que algo é doce ou amargo. Como a realidade
consiste em átomos e no vazio, os átomos se movimentam no vazio se atraindo e se
repelindo. Nesse movimento de atração e de repulsão, os átomos originam tanto os fe-
nômenos naturais quanto o movimento. Como os átomos possuem formas geométricas
diferentes, geram atrações e repulsões diferentes. Aqui, mais um fundamento é admiti-
do: trata-se da atração entre semelhantes e da repulsão entre dissemelhantes. Assim,
átomos de formas geométricas diferentes se atraem e de formas diferentes se repelem.
Para os atomistas, o vazio é existente e identificado com o não-ser. Isto equivale dizer
que o não-ser existe e convive com os átomos que se movimentam nele. Por sua vez,
os átomos são infinitos em número e em forma. Resguardadas as devidas particulari-
dades, Demócrito toma de empréstimo alguns conceitos caros a Parmênides e a Em-
pédocles. Como o “Uno”, de Parmênides, os átomos possuem as qualidades de serem
eternos, indivisíveis, indestrutíveis e homogêneos. Como em Empédocles, a geração
e a destruição das coisas existentes são explicadas pelos atos de associação e de
dissociação de seres que não são gerados, nem destrutíveis. A diferença é que, em
Demócrito, esses seres são os átomos.
Demócrito postula a realidade do movimento. Segundo Hegel (1973), o seu ponto de parti-
da para tal postulação é o movimento próprio ao pensamento. O pensamento é uma expe-
riência existente daquele que pensa. Logo, a existência do pensamento pode ser afirmada.
O pensamento tem um movimento – é capaz de percorrer o passado, fixar-se no presente
e se dirigir ao futuro. Assim, percebe-se que o pensamento existe dentro de um movimento.
E, se o pensamento existe dentro de um movimento, o movimento também existe. Sendo
possível afirmar o movimento, torna-se possível afirmar também o espaço vazio necessário
para que o movimento se dê. Isso implica dizer que o não-ser tem tanta realidade quanto o
ser. Se o espaço fosse pleno, sem espaços vazios, não poderia haver o movimento.
32
EXEMPLO 1
Uma criança se desloca da sala para o quarto, portanto, realiza um deslocamento espacial.
Quando essa mesma criança nasceu, ela apareceu no mundo e, com isso, foi visto o movi-
mento de geração. Quando ela for adulta, os sentidos verão o movimento de alteração e, em
sua morte e desaparecimento, os sentidos verão o movimento de corrupção.
Para Hegel (1973), com Demócrito o pensamento rompe com a concepção antropomór-
fica do mito e não admite qualquer interferência brusca no curso natural dos fenômenos,
pois suas explicações são materiais, diferentemente, por exemplo, de Empédocles, ao
defender que o elemento imaterial, que é o amor, unia e que o elemento imaterial, que é
o ódio, separava os demais elementos, ou seja, a terra, o fogo, a água e o ar. Com isso,
ele estabelece, pela primeira vez, uma concepção materialista da existência, o que lhe
rendeu acusações de parte da metafísica de Platão e, posteriormente, de alguns teólogos
da Idade Média. Segundo a doxografia de Diôgenes de Laêrtios (2008), consta que Pla-
tão pretendia queimar os escritos de Demócrito, mas os pitagóricos Amiclas e Cleinias o
dissuadiram, alegando que isso não surtiria nenhum efeito, pois aquelas obras já haviam
circulado bastante e seus conteúdos já eram conhecidos por outros muitos homens.
authorities,_and_including_chronological_summaries_and_
times_to_the_present,_founded_on_the_most_modern_
media/Ficheiro:The_story_of_the_greatest_nations;_a_
comprehensive_history,_extending_from_the_earliest_
Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Pit%C3%A1goras#/
34
E como o orfismo influenciou o pensamento filosófico de Pitágoras? Para responder 1
a essa pergunta e para que se saiba o quanto há de teorização racional na doutrina
religiosa à qual Pitágoras foi exposto, é necessário, antes, que se conheça um pouco
sobre os fundamentos órficos.
01. O homem é dotado de uma potência divina (daímon). Essa potência governa o destino da
alma. Unida à alma, ela vem habitar o corpo em função de uma culpa original da própria alma;
02. A existência da alma é anterior à existência do corpo e subsiste à morte corporal. A alma
precisa realizar várias encarnações até alcançar a sua purificação.
03. A religiosidade órfica realiza rituais para que a alma consiga ouvir as orientações do seu
daímon, com o objetivo de que ela se livre da roda dos nascimentos;
05. Os que se purificarem receberão recompensas futuras na vida imortal, uma vez que o
destino dos homens é o de retornar ao divino, pois uma alma é habitada por um daímon.
Assim, a purificação liberta a alma de todas as culpas.
Porque tem uma potência divina, um daímon, a alma deve se manter purificada para que
se mostre merecedora da imortalidade que os deuses lhe conferiram. E por que essas
considerações religiosas contribuíram para que Pitágoras fizesse parte da história da filo-
sofia? Uma de suas contribuições para a filosofia a partir dessas crenças e rituais é que
a religião perde o seu caráter de exterioridade e ganha, segundo Chauí (2002), o caráter
de interioridade. Isso significa dizer que a religião suscita a ascese moral e a catarse da
alma. Assim, a preocupação com a vida interior, a vida da alma, torna-se mais relevante
do que o culto aos deuses. Aqui, fortemente, é como se a decisão pelos rituais de purifi-
cação feitos pelo próprio homem interferisse no destino de suas almas. Com isso, os deu-
ses, cantados por Homero, perderiam seus poderes sobre a vida e morte dos homens.
Afirmar que a alma é imortal e sustentar teoricamente essa afirmação gera um enca-
deamento de ordem filosófica muito relevante: essa afirmação implica que por meio do
esforço mental, do uso da razão, o homem é capaz de realizar o processo de libertação
da alma. Usando a especulação racional, o homem é capaz de compreender a relação
entre o corpo e a alma e, mais ainda, agir para que a alma se liberte do corpo ao qual
se encontra aprisionada, pois se ela é imortal, após a morte do corpo terá um lugar
para onde ir. Embora essa afirmação tenha um cunho religioso muito forte, ela é filoso-
ficamente importante, pois marca o ultrapassamento da barreira imposta pela religião
vigente de que o homem não poderia compreender a relação corpo e alma. Com os
valores do orfismo, o homem tanto se vê em condições de questionar a relação corpo-
-alma quanto encontra a possibilidade de pensar a libertação da alma.
A doxografia atribui a Pitágoras uma fala figurativa do filósofo. Segundo ele, nos Jogos
Olímpicos, encontram-se três diferentes tipos de homens: os comerciantes – que se
interessam em vender e obter lucros –; os que vão para se exibir como competidores
– para serem vistos pelo público –; e os que vão para contemplar o espetáculo. A cada
um desses tipos corresponde, respectivamente, um tipo de alma:
REPRESENTAÇÕES
36
Note-se que os espectadores são os mais desinteressados dentro do espetáculo. Seu 1
desinteresse reside em não se ocupar com nenhuma tarefa mundana, visto que, duran-
te os Jogos Olímpicos, ele não está envolvido com o comércio e nem com a disputa. Ele
é livre das atividades mundanas e livre, portanto, para contemplar, para se ocupar com
o pensamento diante do espetáculo olímpico.
Pitágoras tinha contato com o som produzido pela lira de quatro cordas durante a rea-
lização dos exercícios espirituais de sua escola. Supõe-se que ele tenha percebido os
princípios e as regras que a música obedecia para criar os acordes e fazer a concordân-
cia entre os sons discordantes. O que ele parece ter percebido – e que pode ter sido a
motivação para que formulasse uma de suas teorias – é que os sons da lira obedecem
a regras de harmonia e, sobretudo, essas regras são numéricas. Disso, ele deriva que
o som é número. E ainda mais importante: é o número que promove a harmonia entre
os contrários (no caso específico, entre os sons discordantes).
1 Retomando o afresco “Escola de Atenas” de Rafael Sanzio, repare no filósofo que es-
creve e que tem vários outros ao seu redor anotando o que ele está escrevendo. Sua
imagem é reportada a Pitágoras com os seus discípulos ao redor.
A partir da conclusão que o som é número, parece que Pitágoras olha para a realidade e
percebe que a lei que harmoniza e põe em concordância os contrários – como o quente
e o frio, o pequeno e o grande, o justo e o injusto –, e dá ordenações e proporções à re-
alidade, também, como número. O mundo é regido pelas leis de proporcionalidade
das cordas da lira.
38
Note-se que quando Aristóteles afirma “os números são por natureza os primeiros”, ele 1
se refere ao princípio ordenador, à arqué e que os números possuem semelhança “com
as coisas que existem e que são geradas”, ou seja, com a natureza, a physis. Assina-
la-se ainda a referência à arqué como entendida pelos milésios, quando Aristóteles se
refere “mais do que no fogo, na terra e na água”. Tanto quanto princípio da matéria, o
número é agente das modificações que ocorrem na matéria. Resta, então, compreender
como o número passou a ser concebido dessa forma.
EXEMPLO
As gestações dos animais e dos homens obedecem a períodos que podem ser contados, assim
como as estações do ano, o dia e a noite. Isso faz entender que a natureza se regula por números.
Por sua vez, a dualidade é o princípio da mudança, o princípio do devir, do vir a ser.
A unidade é o princípio da pluralidade. É possível, assim, concluir-se que o cosmo é
regulado pela dualidade de pares opostos. Esses pares opostos serão listados a seguir
pelas palavras de Nietzsche (1973, p. 61-62):
E, por que nessa citação, Nietzsche (1973, p. 61-62) afirma que “não há qualidades,
não há nada além de quantidades”? Ele o afirma em decorrência das qualidades sen-
síveis das coisas que aparecem como fenômenos no mundo diante de todos, ou seja,
o grande e o pequeno, o frio e o quente, são, de fato, a diversidade das proporções.
Elas aparecem aos sentidos, mas, de fato, são expressões das proporções numéricas
e, dessa forma, “não há nada além de quantidades”. Novamente: no mundo, tudo se
organiza pelas proporções numéricas e a música parece ter sido o grande espelho para
que isso pudesse ser visto. Eis aqui a ordem universal de Pitágoras, trata-se de uma
cosmologia matemática.
CONCLUSÃO
Ao final da Unidade 1 do componente curricular História da Filosofia Antiga, foi possível
compreender que a expressão “filósofos pré-socráticos” é uma tentativa didática de
registrar a diferença do objeto de estudos desses filósofos em relação à tradição de
pensamento, que se inaugura na história da filosofia a partir de Sócrates – não se tra-
tando de um demérito à filosofia praticada pelos pré-socráticos, como se as suas teorias
fossem um mero trabalho preparatório à filosofia de Sócrates.
A fim de compor seus estudos, os pré-socráticos assumiram que a Physis é regida por
uma ordem natural e buscaram conhecê-la por meio do estudo de suas causas naturais,
ou seja, procuram conhecê-la a partir de sua cadeia causal. Admitiram a arqué como o
elemento primordial e princípio básico presente em toda a realidade. Cada pré-socrático
elegeu e justificou as razões da eleição de sua arqué.
O lógos se traduz do grego como discurso, sobretudo, como discurso racional em oposição
ao discurso mítico dos deuses. O lógos explica a realidade a partir das causas naturais e
é produtor de razões e de discurso racional sujeito a críticas e a novos questionamentos.
40
Entre os filósofos pré-socráticos aqui estudados, cada qual apresentou a sua compre- 1
ensão acerca da arqué e cada qual compreendeu a forma de aproximar o lógos humano
do lógos natural. Foram os conceitos de arqué e lógos, como apropriados pelos dife-
rentes filósofos pré-socráticos, que permitiram uma compreensão de suas formas de
responder às suas questões sobre a physis.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Loyola, marques sur la construction d’une catégorie de
2002. l’historiographie philosophique. Qu’est-ce que la
2. AXELOS, Kostas. Anaxágoras e as origens da fa- philosophie présocratique? What is presocratic
lha. In: SOUZA, José Cavalcante de Souza (Org.). philosophy?. Villeneuve d’Ascq: Presses universi-
Os pré-socráticos. São Paulo: Abril, 1973. p. 294- taires du Septentrion, 2002. Disponível em : https://
300. doi.org/10.4000/books.septentrion.55587. Acesso
em: 26 fev. 2021.
3. BORNHEIM, Gerd A. Os filósofos pré-socráti-
cos. São Paulo: Cultrix, 1998. 10. LEÃO, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a Pen-
sar. Petrópolis: Vozes, 1977.
4. CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Pau-
lo: Ática, 1998. 11. MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da
Filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de
5. CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Fi- Janeiro: Zahaar, 1998.
losofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002. v.1. 12. NIETZSCHE, Friedrich. Os Pitagóricos. In: SOU-
ZA, José Cavalcante de Souza (Org.). Os pré-socrá-
6. DIÔGENES LAÊRTIOS. Vidas e Doutrinas dos ticos. São Paulo: Abril, 1973. Col. Os Pensadores.
Filósofos Ilustres. Brasília: UNB, 2008. p. 285-293.
7. HEGEL, Georg W. F. A Escola Eleática. In: SOU- 13. PLATÃO. Diálogos: Teeteto, Sofista, Protágoras.
ZA, José Cavalcante de Souza (Org.). Os pré-socrá- Bauru: Edipro, 2007.
ticos. São Paulo: Abril, 1973. Col. Os Pensadores.
p. 272-285. 14. SOUZA, José Cavalcante de Souza. Os pré-so-
cráticos. São Paulo: Abril, 1973.
8. IGLÉSIAS, Maura. Pré-socráticos: físicos e sofis-
tas. In: REZENDE, Antônio (Org.). Curso de Filoso- 15. WHITEHEAD, Alfred North. Process and reality:
fia. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. p. 17-42. an essay in cosmology. New York : The Free Press,
1957.
9. LAKS, André. Philosophes Présocratiques: Re-
UNIDADE 2
2
SÓCRATES E PLATÃO (OU MÉTODO
SOCRÁTICO E CONCEITOS PLATÔNICOS)
INTRODUÇÃO
Na Unidade 2 do componente curricular História da Filosofia Antiga serão estudados
alguns conceitos-chave da filosofia de Platão. Fazer referência histórica aos conceitos
platônicos implica fazer, também, referência a Sócrates. A obra de Platão – em sua
maior parte escrita em forma de diálogo – tem como personagem central o seu mes-
tre, Sócrates. As referências a Sócrates não apenas transmitem os seus ensinamentos
como também descrevem a prática do filósofo por excelência, pois ser filósofo é saber
conduzir o discurso, refletindo sobre a fala do outro, da sua própria e criar condições
para que ambos pensem o que permaneceu impensado.
É pela prática do método socrático que Platão também elabora as suas teorias acerca
da política e da possibilidade de conhecer. Tanto em uma quanto na outra, o que seja o
homem resta como pano de fundo em suas discussões. Nesta unidade do componente
curricular, serão feitas algumas pontuações a respeito do contexto de surgimento de
alguns dos conceitos platônicos presentes em sua obra, seja no que se refere à política,
seja quanto à possibilidade de conhecer, âmbitos em que a discussão sobre as formas,
as ideias, os mundos sensível e inteligível, as partes da alma e sua imortalidade, estão,
necessariamente, presentes.
42
que Sócrates disse: “eu não disse que a trovoada de Xantipa acabaria em chuva?”);
em outra ocasião, arrancou-lhe o manto no mercado (DIÔGENES LAÊRTIOS, 2008, p.
57). Sócrates dizia que as discussões frequentes com Xantipa o ajudavam a manter o 2
controle de si mesmo.
A história da Filosofia Antiga tem em Sócrates a figura que marca uma linha divisória
que remete a um momento temporal anterior ao seu, os filósofos pré-socráticos.
É a partir do seu nome que se adjetivam os filósofos que o antecederam. A razão dessa
linha divisória é dada pela diferença entre os objetos de estudos que caracterizam os
pré-socráticos e Sócrates, pois, enquanto aqueles se interessavam pelos assuntos na-
turais, este se interessava pelos temas humanos. Essa linha divisória é um recurso
didático, ou seja, é uma forma que a história encontra para dividir e classificar a dife-
rença entre os objetos de estudos de ambos.
Além disso, a linha é extemporânea: essa nomeação é dada pelos historiadores que
olham para o passado e tentam nomear os fenômenos que conseguem reconhecer lá.
Embora os filósofos pré-socráticos não se nomeassem assim – e Sócrates tão pouco o
fizesse –, tanto aqueles quanto esse reconheciam, cada um em seu tempo histórico, os
seus interesses de estudo. Como o olhar de Sócrates pôde ser retrospectivo, ele teve
a chance de se reconhecer por diferença em relação aos filósofos que o antecederam.
Isto é, enquanto os pré-socráticos se reconheciam como estudiosos da physis (da natu-
reza), Sócrates se reconhecia – por diferença a eles – como um estudioso dos assuntos
humanos relativos à organização da vida pública e da vida política. Dada a diferença, há
algo em comum que deve ser considerado aqui: tanto os filósofos pré-socráticos quanto
Sócrates tentavam, por meio da especulação racional e do uso da razão, compreender
o significado de seus objetos de estudos.
Tão importante quanto o objeto de estudos de Sócrates é o método que ele utiliza para
realizar as suas investigações. O método socrático pode ser conhecido mediante a
análise dos textos de Platão. Entretanto, antes que seja feito o estudo de seu método,
é preciso considerar o contexto histórico em que Sócrates viveu e de que maneira
as transformações políticas e econômicas de Atenas, a sua cidade natal, contribuíram
para a sua formação filosófica e, simultaneamente, para a constituição de seu método
de investigação. A filosofia, como um campo de conhecimento independente em rela-
ção às doutrinas religiosas, surge simultaneamente ao desenvolvimento das atividades
Na cidade grega de Atenas, no século V a.C., a democracia direta era exercida como
regime político, ou seja, como uma forma de produção de leis e de administração dos
interesses financeiros, militares e de organização da vida pública. Em primeira instân-
cia, esse tipo de regime requer a participação ativa dos homens que deveriam, nas
Assembleias, defender as suas opiniões em relação às decisões que seriam tomadas,
visando o bem comum da cidade. A Assembleia do Povo podia ser frequentada por
aqueles que atendessem aos seguintes requisitos: ser do sexo masculino, ser adulto e
ter nascido na cidade. As mulheres, os estrangeiros, os escravos, as crianças e os
privados de seus direitos políticos eram excluídos da participação. O que determi-
nava a perda de direitos políticos era a prática de alguns delitos, como maltratar os pró-
prios pais, descumprir os deveres militares, dilapidar o patrimônio público e se prostituir,
por exemplo (ARISTÓTELES, 1995). Aqueles que podiam se reunir nas assembleias
para defender opiniões e deliberar sobre os destinos da cidade portavam o direito de
isegoria. E quem portava esse direito? Portava o direito de isegoria aqueles que eram
iguais perante a lei, ou seja, os que eram dotados de isonomia.
IMPORTANTE
O estudo da origem das palavras contribui para que os conceitos possam ser melhor com-
preendidos. Nesse sentido, veja-se a origem das palavras isegoria e isonomia. Segundo
Chauí (2002), a palavra isegoria é composta pelos elementos ise e goria. Ise se origina de
isos – que se traduz para a língua portuguesa como igual, igualmente repartido, equitável.
Por sua vez, goria deriva do verbo agoreúo – que se traduz como falar em público, discursar
em público. Por esse motivo, isegoria significa falar em público em condições equitáveis,
igualmente repartidas.
Ainda de acordo com Chauí (2002), a palavra isonomia é composta pelos elementos ise
(como descrito acima) e nomos – que se traduz como normas convencionadas pelos ho-
mens, diferentes, portanto, das normas da natureza e das normas divinas. Assim, isonomia
significa igualdade pelas leis humanas.
Em um regime político de democracia direta, cabia aos cidadãos participantes das As-
sembleias a defesa de suas opiniões. Para que essas defesas fossem bem-sucedidas,
os cidadãos precisavam do domínio de técnicas de composição de discursos persuasi-
vos, convincentes, pois entrava em votação a opinião mais bem defendida, o discurso
mais sensibilizador, que mais angariasse a concordância dos outros cidadãos. É a partir
dessa nova necessidade de discursar de forma convincente que aparecem na Grécia
44
sábios com um tipo de saber fundamental para o momento político. Ao lado dos demais
sábios em meteorologia e em astrologia, surgem os sofistas, os detentores da técnica
de bem argumentar, portanto, da técnica retórica. Por isso, os sofistas serão os profes- 2
sores de retórica dos cidadãos gregos que participavam ativamente da vida política da
cidade por meio dos discursos orais.
EXEMPLO
Exemplos dos assuntos de deliberação nas Assembleias: continuidade ou não dos magis-
trados em seus cargos; questões militares ligadas à defesa da cidade; enunciação de bens
confiscados pelo Estado; denúncias de traição (ARISTÓTELES, 1995).
Veja o afresco Escola de Atenas. Ele se encontra no Museu do Vaticano e foi pintado
por Rafael Sanzio entre 1509 e 1510. Note-se a figura de Sócrates retratado conversan-
do – fazendo as suas interrogações, envolvido com outras pessoas.
Enquanto a physis produz e obedece às suas próprias leis, o nomos não é regido por
nenhuma lei natural e, sequer, por uma lei divina. Mais ainda: as leis do nomos são
construídas pelos homens, mutáveis, portanto, completamente diferentes das leis
naturais da physis, as quais são imutáveis. Para a construção dos discursos retóricos,
a descoberta de que os assuntos humanos são regidos por leis mutáveis, construídas
pelos próprios humanos, é essencial. Isso porque quando os sofistas assumem a pre-
missa de que a verdade é relativa, abre-se a possibilidade para que aquele que discursa
2 possa mudar de opinião e compor um novo discurso, defendendo um novo ponto de
vista. Com isso, torna-se possível elaborar discursos distintos dos anteriormente defen-
didos, os quais, também, passam a ser defensáveis.
O impacto desses ensinamentos podia ser sentido nas decisões políticas das diferentes
cidades e uma das grandes críticas de Platão aos sofistas reside nisso: os cidadãos,
os responsáveis pelos destinos políticos das suas cidades, estavam imbuídos da pre-
ocupação de ganhar a disputa verbal, preocupados com a forma do discurso e não
necessariamente com o conteúdo do que estava sendo dito. Eis aqui, então, uma das
mais veementes críticas de Platão endereçadas aos sofistas: o discurso retórico que
eles ensinavam era desprovido de conteúdo reflexivo, não estimulava a reflexão
dos cidadãos que, ao proferirem discursos vazios de conteúdo, influenciavam, de
forma negativa, a decisão dos outros cidadãos e levavam a injustiça às cidades.
A crítica enunciada por Platão aos sofistas assume um pressuposto básico: para que
um ponto de vista possa ser defendido em um discurso, é necessário antes que o
conteúdo do argumento que será defendido seja fruto de uma detalhada reflexão em
busca dos significados. E da mesma forma que os sofistas são conhecidos por meio
dos escritos de Platão, também será por meio de seus escritos que a história da filosofia
fará o registro dos pensamentos de Sócrates. Tal qual os sofistas, Sócrates se ocupará
com os assuntos humanos. Contudo, diferentemente daqueles, irá se preocupar com o
significado daquilo que é afirmado ou negado. E tão importante quanto o conteúdo do
que é enunciado, também o será a forma pela qual as afirmações e negações serão
enunciadas, como elas serão alcançadas e, essencialmente, se é possível alcançá-las.
Confira o exemplo a seguir.
EXEMPLO
Antes de compor um discurso que defende se esse ou aquele ato foi justo, é preciso se inda-
gar sobre o que seja a justiça. Antes de se responder sobre o que seja a justiça, é necessário
analisar como essa resposta foi forjada. Essa resposta é fruto da opinião quotidiana ou é fruto
de uma reflexão detida?
46
É a partir da forma pela qual Sócrates faz as suas indagações que ele será consagrado
por Platão como um filósofo por excelência. A palavra filosofia, quando analisada em sua
filologia, revela-se como amor ao saber. Dessa forma, o filósofo seria, então, aquele 2
que ama o saber, aquele que ama o ato pelo qual alguma coisa vem a ser conheci-
da, aquele que ama realizar o ato de saber – e isso é diferente do sofista, que se apre-
senta como aquele que detém o saber. O sofista tanto detém o saber de bem compor os
discursos, como ainda a técnica de ensinar a compor discursos e os muitos conhecimen-
tos acerca de muitos assuntos – diferentemente de Sócrates, que se apresentava como
aquele que nada sabe e, justamente, porque nada sabe, busca sempre saber.
Para os historiadores, a vida pessoal de Sócrates e a sua prática filosófica estão intima-
mente ligadas. Sócrates viveu na Grécia ao longo do século V a.C., durante a consolida-
ção da democracia ateniense. Como não deixou nada escrito, tudo de mais consistente
que se conhece acerca da filosofia de Sócrates é o que foi deixado por Platão. Aqui uma
questão importante se impõe: para que se conheça a filosofia socrática, é necessário
que se faça uma análise dos textos platônicos. Isso implica assumir uma premissa:
os textos de Platão combinam conteúdo e forma, por isso expressam a importância não
apenas do que foi dito e da conclusão a que se chega, mas também a forma pela qual os
argumentos são construídos e as conclusões são estabelecidas. Essa expressão marca
um caminho de pensamento, um percurso que é importante para levar a alguma conclu-
são, sobretudo, que é importante como um percurso em si, no qual se exercita a atividade
de pensar. Ou seja, como se exercita a filosofia, o amor ao saber.
IMPORTANTE
A literatura filosófica também conta com os escritos de Xenofonte e de Aristófanes sobre
Sócrates, porém a tradição acadêmica privilegia a literatura deixada por Platão. Acerca de
Sócrates, Xenofonte deixou obras consideradas mais biográficas do que filosóficas. São elas:
Defesa de Sócrates; ditos e feitos memoráveis de Sócrates e Apologia de Sócrates.
Aristófanes escreveu a comédia As nuvens que satiriza Sócrates.
latão elege o diálogo como forma e estilo de escrita. Procura reproduzir diálogos nos quais
Sócrates foi o protagonista ou poderia tê-lo sido. Assim, conhecer a filosofia socrática
é indissociável de conhecer o método que Sócrates utiliza para filosofar. Quando os
estudiosos de Filosofia leem os diálogos platônicos, depreendem dele o método socrá-
tico que passa a ser descrito independentemente do conteúdo ao qual estava ade-
rido. No entanto, é fundamental que se leve em consideração não apenas a forma do
diálogo, mas também o seu conteúdo, pois conteúdo e forma foram gerados em conjunto
e não devem ser desassociados. Para fins didáticos, aqui será feita uma descrição inicial
do método socrático e, a seguir, a descrição do diálogo Eutífron ou da Piedade, apresen-
tando tanto o conteúdo desse diálogo quanto o método em seu interior.
O método socrático pode ser apresentado em duas etapas: ironia e maiêutica. Só-
crates era o grande interrogador, que, diante de seu interlocutor, enunciava a pergunta
“o que é?”; e diante da resposta, convidava o outro a pensar junto sobre o significado
e o conteúdo dela. Em outras palavras, era preciso examinar se aquela resposta era
produzida de forma irrefletida, se era fruto do hábito ou se era produzida de forma
A outra fase do método é dada pela maiêutica. Essa palavra pode ser traduzida
como “parteira”. Sócrates era filho de uma parteira e entendia que sua função era se-
melhante à de sua mãe. Enquanto a parteira traz à luz uma nova criança, auxilia a
grávida em seu parto e ajuda as mulheres a distinguirem a gravidez verdadeira de uma
falsa, Sócrates se identificava como um parteiro de ideias. Ele também auxiliava os
outros a trazerem à luz os seus pensamentos, ajudava-os a abortarem as falsas ideias
e a distinguirem um pensamento de uma mera opinião. Assim, a maiêutica consiste
em uma técnica dialógica de expurgação das falsas opiniões, de tal maneira que,
posteriormente, o interlocutor possa encontrar a resposta a partir de si mesmo, a
partir de suas próprias reflexões.
Em alguns diálogos de Platão e após uma série de interrogações feitas por Sócrates
a seu interlocutor, nenhuma resposta positiva é alcançada sobre o tema. Durante o
diálogo, as opiniões dos interlocutores de Sócrates são desconstruídas, mas nenhuma
resposta sólida e conclusiva é dada à pergunta inicial. Essa desconstrução, sem ofere-
cer nenhuma resposta conclusiva, também é uma prática discursiva filosófica realizada
por Sócrates. Diante de uma questão que permanece sem resposta positiva, os interlo-
cutores encontram-se em aporia. Os diálogos aporéticos de Sócrates abrem caminhos
para que algo novo seja pensado, já que os interlocutores se encontram em aporia,
perplexos, sem saber o que dizer.
48
Platão, em seu diálogo intitulado Sofista, descreve seis características dos sofistas, das
quais cinco são negativas, somente a sexta é positiva e ela reflete uma sabedoria espe-
cial, aquela atribuída a Sócrates. Resumidamente são elas (IGLÉSIAS, 1997): 2
I. O sofista viaja de cidade em cidade, ensina aos cidadãos sem se importar com os desti-
nos de uma cidade especificamente; ao contrário, Sócrates está comprometido com as deci-
sões políticas que ocorrem em sua cidade;
II. O sofista recebe dinheiro por seus ensinamentos; para Sócrates, filosofar e viver a sua
vida se confundem, ele se sente livre filosofando, ao contrário dos sofistas, que se compro-
metem com o resultado de seus trabalhos remunerados;
III. O sofista é alguém que sabe tudo e que vende o seu saber sem nenhuma crítica. Platão
identifica esse saber com as mercadorias e reconhece no sofista um mercador; Sócrates se
apresenta como aquele que nada sabe e busca a verdade no interior de seu interlocutor por
meio da dialética;
V. O sofista refuta sem se importar com a verdade, seu interesse é vencer a disputa verbal;
Sócrates refuta a fim de purificar a sua alma e a alma do outro da ignorância.
Ainda realizando uma descrição do método socrático descolado do seu exercício no in-
terior dos diálogos, é possível afirmar que Sócrates pratica a dialética. A dialética socrá-
tica pode ser definida como um embate verbal que pretende fazer com que a verdade
apareça por meio da fala dos interlocutores. O jogo de perguntas e de respostas tem o
objetivo de fazer com que os interlocutores pensem o que não estava pensado em suas
falas. Nesse sentido, a dialética faz um diálogo generoso, pois dá oportunidade aos in-
terlocutores para pensarem as suas falas e a fala do outro. Na filosofia de Platão, a for-
ma e o conteúdo encontram-se intimamente reunidos e é um esforço presente em
seus escritos evidenciar essa reunião, fundando, assim, um gênero literário para
a filosofia, o qual difere do discurso poético pelo qual os deuses e seus dogmas eram
apresentados. E é também diferente do discurso retórico – que caracteriza o discurso
sofístico –, que se importa, especialmente, em vencer a disputa verbal. Considerando
isto, deste momento em diante será apresentado o diálogo Eutífron, com o objetivo de
evidenciar o discurso socrático como descrito anteriormente.
A vida pública dos homens era orientada por suas condutas diante dos deuses e, desta
forma, a piedade não se referia a um estado de vida privado. A religião era responsável
2 por ensinar sobre a prática moral e a como se conduzir na vida pública.
O diálogo se inicia diante do Pórtico do Rei justamente quando Eutífron está indo acusar
seu pai de homicídio e se encontra com Sócrates, que está sendo acusado por Meleto
de criar deuses e corromper os jovens da cidade. Aqui, faz-se necessário compreender
o motivo Eutífron acusa seu pai e as críticas que recebe por isso, assim como as razões
do acusador de Sócrates e a forma como Sócrates recebe tal acusação. Eutífron se apre-
senta como aquele que fala das coisas religiosas na Assembleia, prediz o futuro e que
também conhece das coisas divinas, piedosas e ímpias. A acusação que faz se assenta
na atitude de seu pai, que ao descobrir que um dos seus empregados matou um homem,
amarrou o assassino e o jogou em uma fossa, fazendo-o aguardar por um mensageiro
enviado ao exegeta, que deveria o instruir como proceder nesse caso. Antes que o men-
sageiro retornasse, o homem morreu, pois não recebeu cuidados durante esse período.
Eutífron entende ser necessária à sua acusação, pois acredita, de acordo com os seus
princípios religiosos, que aquele que sabe de um crime e não o denuncia se torna
tão culpado e pecador quanto o criminoso. Aqui, manifesta-se a íntima relação entre
religião e comportamento social, pois, segundo Santos (1987, p. 78), o que Eutífron
pretende com a sua acusação é “evitar a poluição que qualquer crime grave não puni-
do atrai, enquanto não for social e individualmente purificado pela acusação”. Pela lei
divina, omitir-se quando se testemunhou um assassinato torna o omisso tão culpado
quanto o homicida e como Eutífron é um conhecedor das coisas divinas, precisa libertar
o assassino e a todos aqueles que sabem do crime do “miasma que um homicídio não
punido sempre arrasta” (SANTOS,1987, p. 77).
Por Eutífron se intitular conhecedor dos deuses e afirmar que os que o criticam como
ímpio são ignorantes das coisas divinas e do que seja piedoso ou ímpio, Sócrates soli-
cita que ele defina a piedade, a fim de que isso o ajude em sua defesa. Ademais, confia
que se Eutífron acusa seu pai, em nome dos deuses, deve saber o que é a “piedade”,
o que, segundo Santos (1987, p. 77), preenche “a condição de um diálogo socrático tí-
pico: que o interlocutor manifeste uma firme convicção nas suas necessidades”. Assim,
50
ele afirma “de nada valeria o que sei, Sócrates, nem [me] distinguiria [...] em coisa algu-
ma dos demais homens, se eu não conhecesse muito bem matéria” (5-a). Já que Eutí-
fron está seguro de que deve acusar seu pai, então ele deve saber o que é a piedade. 2
Assim, Sócrates lhe remete essa interrogação. À essa indagação inicial, são devolvidas
cinco respostas, as quais serão analisadas a seguir.
A primeira resposta de Eutífron aparece em 5-d, quando Sócrates lhe pergunta o que
vem a ser o piedoso e o ato ímpio. A resposta é: “piedoso é o que estou fazendo agora,
a saber, perseguir os criminosos”. Diante de um exemplo sobre o ato de piedade, Só-
crates insiste que Eutífron explique melhor. Nessa passagem, mais uma vez, a atitude
de Eutífron se confunde com a de Meleto, pois ambos estão invocando a ortodoxia reli-
giosa para justificar as suas ações e nenhuma reflexão pessoal foi produzida.
IMPORTANTE
O tipógrafo e humanista francês Henri Estienne (c. 1531-1598) publicou em Paris uma
edição bilíngue (grego e latim) das obras de Platão. Nessa publicação, as páginas foram
divididas em duas colunas, sendo que o original em grego se manteve à esquerda e a tra-
dição em latim à direita. Os parágrafos nas duas línguas foram identificados pelas letras
“a, b, c, d”, cada uma delas precedida por um número. Essa padronização foi adotada pe-
las traduções que se sucederam àquela de Estienne. A importância dessa padronização
é a de que um trecho citado de qualquer obra de Platão pode ser localizado em qualquer
tradução publicada em qualquer lugar do mundo.
Nesta Unidade 2 do componente curricular História da Filosofia Antiga, foi citado, por exem-
plo, o diálogo Eutífron, que, no Brasil, encontra-se publicado, também, pela editora da Uni-
versidade Federal do Pará (UFPA), com tradução do professor Carlos Alberto Nunes. A refe-
rência a essa publicação segue as normas da ABNT e se encontra na listagem de referências
bibliográficas ao final desta unidade. No corpo do texto, as referências aos diálogos pla-
tônicos seguem a padronização adotada pelos estudiosos de Filosofia Antiga. Assim,
ao lado das citações de Eutífron, se encontra, por exemplo, “Eutífron 5-d“. Isso significa que
aquela citação ou conceito aparece no diálogo Eutífron, diante da passagem “5”, que aparece
acompanhada pela letra “d”. Nesse sistema de identificação, o leitor deve procurar por “5d”
no interior do diálogo e não pela página na qual a citação ou conceito aparece, como no caso
das citações que seguem as normas da ABNT. Como o diálogo aqui selecionado se encontra
na publicação já referida, para identificar qualquer citação feita a ele, deve-se procurar na
publicação o Eutífron (pois, nessa edição há vários outros diálogos publicados) e a menção
“5-d” que se localiza à margem do texto. O mesmo vale para os demais diálogos de Platão.
À insatisfação de Sócrates, Eutífron fornece a sua segunda resposta: “o que aos deuses
agrada é pio; o que desagrada, ímpio” (7a). Novamente, Sócrates aponta a fragilidade
dessa tese, uma vez que o que agrada a uns deuses pode ser, ao mesmo tempo, odioso
a outros. Exposto à fragilidade de sua segunda resposta, Eutífron tenta uma terceira:
“pio é o que todos os deuses amam; e o contrário disso, o que todos os deuses odeiam,
é ímpio” (10-a). Sócrates a refuta, afirmando que o que é amado pelos deuses não é
capaz de exprimir a natureza da piedade; pode, sim, exprimir uma forma de sentir e
ser afetado por algo.
Sem se interessar por uma das propriedades da piedade, como a de ser amada pelos
deuses, Sócrates exige que, sem rodeios, seja dito o que é piedoso e o que é ímpio.
2 Iniciando uma nova tentativa de entender o que Eutífron tem a dizer sobre a piedade,
Sócrates estima que a piedade seja uma parte da justiça e indaga a que parte da jus-
tiça ela pertence. Com o propósito de construir esse novo caminho, Sócrates introduz
a questão do temor e do respeito a partir da seguinte fala poética da qual se mostra
discordante: “Por que não cantas também Zeus potente, criador de tudo isso e ordena-
dor? É mui certo: onde há medo, há respeito” (12-b). Note-se que, desse momento em
diante, Sócrates iniciará a sua técnica da maiêutica, pois fará perguntas que ajudarão
Eutífron a encontrar respostas a partir de si mesmo.
Pensando acerca dessa nova afirmação, Sócrates faz alusão aos serviços prestados
por médicos, construtores de navios e arquitetos, a fim de lançar uma nova interrogação
correlata a Eutífron: “Então, dize-me, por Zeus, qual é esse belo trabalho que produzem
os deuses quando nos usam como ministros deles?” (15-e). Sem especificar em que
consiste a sua afirmação, Eutífron responde que em “muitas e belas coisas” (13-e).
Diante da insatisfação de Sócrates, Eutífron lança uma nova fala que ajudará a construir
a quinta resposta positiva do diálogo, em que diz:
Já te disse há pouco, Sócrates, que seria por demais cansativo aprenderes
com minúcias tudo isso. O essencial é o seguinte: quando alguém sabe o modo
de dizer ou de fazer o que é agradável aos deuses, orando ou sacrificando, é
o que se denomina piedade, sendo isso o que assegura a salvação das casas
dos particulares como da cidade em geral: o oposto do que é agradável aos
deuses é ímpio, que tudo perverte e põe a perder (14-b).
Descontente com a definição generalista de que quando usam os seres humanos como
ministros os deuses produzem muitas e belas coisas, Sócrates insiste mais e recebe o
assentimento de Eutífron ao concluir que a piedade é, então, uma “espécie de ciência
de sacrifícios e de orações” (14-c), uma espécie de “comércio entre deuses e homens”
(14-e), obtendo aqui a quinta resposta sobre o que seja a piedade. Em sendo isso ver-
dade, Sócrates retorna ao início do diálogo, pois concluiu que, ao receber presentes dos
homens, os deuses se sentem amados por eles, portanto, a piedade é o que é amado
pelos deuses. Por conseguinte, Sócrates se vê diante de uma proposição falsa, uma
52
vez que já haviam concordado, anteriormente, que o que é pio e o que é amado pelos
deuses são distintos. Assim, o diálogo termina em aporia, com Sócrates desejoso de
continuar investigando sobre o que seja a piedade e com Eutífron se retirando, alegan- 2
do pressa.
Terminar o diálogo sem nenhuma reposta positiva sobre o que seja piedade não equi-
vale a um fracasso do exercício de pensar. Posto em aporia, Eutífron se vê incapaz de
responder a uma pergunta que, inicialmente, não parecia oferecer nenhuma resposta
difícil. Além disso, admite que todas as análises de suas respostas sobre o que lhe foi
perguntado não puderam se sustentar pelo uso da razão, o que demonstra a contribui-
ção do discurso dialético, pois fez Eutífron reconhecer que não sabia o que pensava
saber, dando-lhe a oportunidade de se entregar ao pensamento.
Figura 07. A Morte de Sócrates
Fonte: 123RF
Em sua viagem à Siracusa, encontrou Díon, cunhado do tirano Dionísio I. Sob sua in-
fluência, o jovem Díon passa a admirar os ensinamentos socráticos e renuncia à vida
de luxo na corte de seu cunhado. Considerado como má influência pelo tirano, Platão
é expulso de Siracusa, sendo vendido como escravo e depois resgatado por seus ami-
gos. Retorna a Atenas e, em 387 a. C., funda a sua escola filosófica nomeada “Acade-
mia”. Em seu pórtico, escreveu: “Que não entre aqui quem não souber geometria” – tal
a importância que atribuía à matemática e aos ensinamentos pitagóricos recebidos e
reelaborados em sua filosofia.
Sua família participava da vida política e, por tradição familiar, Platão pretendia ser
político. Mas a corrupção e a violência que vivenciou tanto no regime aristocrata quan-
to no regime democrata o afastaram da administração pública e o aproximaram da
filosofia. Deixou várias obras escritas – que se encontram preservadas. A maior parte
dos seus estudos está sob a forma de diálogos. Seus demais escritos são cartas. São
treze ao todo, sendo que somente as Cartas III, VII e VIII são consideradas autênticas.
A literatura acadêmica tende a considerar a Carta VII a mais importante. Nela, há
uma longa reflexão, em tom amargo, acerca do seu projeto político. Uma classificação
dos diálogos platônicos encontra-se ao final desta unidade e segue a caracterização
proposta por Chauí (2002) e Marcondes (1998). Sócrates permanece sendo o perso-
nagem principal em todos os diálogos de Platão. É em função dos aprendizados de-
senvolvidos com o seu mestre que escreve a sua obra e, com a maturidade, elabora
suas próprias teses filosóficas.
54
Como, então, educar os homens para atos justos? Para educá-los será necessário re-
conhecer que as almas humanas são: naturalmente, dotadas de virtudes, assim como
também talhadas por virtudes. E, pela condição humana, existem três delas que são 2
essenciais à edificação do Estado justo, são elas: a temperança, a coragem e a pru-
dência. Um Estado justo deve ter em seu interior a convivência harmônica dessas três
virtudes. Se é assim, repete-se aqui a pergunta: como, então, educá-las? E mais: como
organizar o Estado justo a partir dessas almas educadas? Em primeira instância: como
organizar a vida política?
IMPORTANTE
Veja-se que afirmar que as almas já nascem dotadas de virtudes, que deverão ser edu-
cadas pelo Estado, assume um pressuposto bastante distinto da concepção moderna de
educação. Modernamente, compreende-se que as virtudes são construídas socialmente,
que não são fruto da natureza, como o são a cor dos olhos e dos cabelos, por exemplo.
Note-se que a discussão de uma teoria filosófica (e quiçá, de qualquer teoria) deve pro-
curar compreender quais são os argumentos do texto e realizar as análises a partir
desses argumentos, tentando não deixar interferir na discussão os valores pessoais de
quem lê e nem os valores presentes em outras teorias. O esforço de um leitor deverá ser o
de compreender quais são os pressupostos e os argumentos utilizados pelo autor quando
o mesmo construiu a sua teoria. Ou melhor dizendo, os recursos que o autor utiliza para
traçar o seu caminho de pensamento, para, a partir daí, tentar pensar junto a ele: eis aqui
um bom exercício filosófico. As críticas pessoais e as críticas de outros autores às obras
estudadas também são importantes e devem ser incorporadas à leitura, mas resguarde-se
simultaneamente às críticas, os argumentos dos autores.
No meio acadêmico, A República, constituída por 10 livros, tem sido eleita a obra mais
discutida quando se pensa a política em Platão. E, por isso, alguns de seus livros serão
trabalhados aqui. Em uma breve apresentação, é possível afirmar que A República trata
de questões de ordem epistemológica, ontológica, estética, pedagógica, moral e políti-
ca. Todas essas questões têm como substrato – como pano de fundo – a tentativa de
definir o que seja a justiça, uma vez que somente a partir dessa compreensão de justiça
é que se pode pensar a política em Platão.
O Livro II de A República tem seu início com a indagação sobre a natureza da justiça.
Quanto à essa natureza, são apresentadas três suposições:
III. Se a justiça pode ser um bem estimado, ao mesmo tempo, como um bem em si mesmo
e por suas consequências.
A fim de responder a tal questão, Sócrates, junto aos seus interlocutores – que são
Glauco e Adimanto (irmãos de Platão), Polemarco (um comerciante) e o sofista Trasí-
2 maco – irá analisar a maneira como a justiça e a injustiça se originam na cidade. Essa
análise se dá a partir do momento em que Sócrates anuncia que irá fundar uma ci-
dade pelo lógos, ou seja, pelo discurso. Isso significa que ele falará sobre cidade, que
tentará supô-la pela fala, pelo lógos. Considerando a natureza política da justiça e para
melhor compreender o que seja fundar uma cidade pelo lógos, serão descritos, a seguir,
os argumentos da maioria da população, do poeta e do filósofo sobre a justiça, pois es-
ses argumentos (ou seja, esses lógos) permitem traçar as diferenças entre os usos que
são feitos do lógos, o que evidenciará a sua função para cada um dos falantes.
Para a maioria dos homens, a justiça é um bem por suas consequências e ninguém é
justo por compreender que a justiça seja um bem em si. Pelo contrário, os homens são
justos por desejarem manter as suas reputações, sendo que é melhor parecer
ser justo do que, necessariamente, sê-lo. Assim, a função do lógos, para a maioria,
é a de conferir uma aparência que seja capaz de fazer um homem aparecer como ele
deseja, independentemente do que ele seja. Aqui, a função do lógos é a de resguardar
a reputação dos homens, mesmo que essa reputação seja apenas aparente.
A afirmação de que é melhor parecer justo do que ser justo é extraída após Glauco
enunciar o Mito de Giges. E o que narra esse mito? Giges era um pastor que, junto aos
demais pastores, dirigia-se à cidade para prestar contas ao Rei. No caminho, ele encon-
tra um anel de ouro e passa a utilizá-lo. Em um dado momento e, por acaso, ele gira o
anel no dedo. Ao fazê-lo, percebe que ficou invisível. Chegando à cidade, Giges seduz
a mulher do Rei, fica invisível e consegue assassiná-lo. Com isso, toma o poder, passa
a ser o Rei da cidade e, aos olhos de todos, seu reinado parecia ter sido conquistado
legitimamente. Ninguém, além de Giges, viu a verdade. Aos olhos dos outros, a forma
pela qual Giges assumiu o poder é justa, pois ele matou o Rei. O que as pessoas des-
conheciam era a forma injusta pela qual ele cometeu o assassinato, pois o homicídio
foi cometido enquanto Giges estava invisível e o rei não pôde se defender. Como Giges
conseguiu tomar o poder, parecer justo se mostrou muito vantajoso, ainda que de fato a
conquista não tenha sido de forma justa. Sendo assim, esse mito serve para sustentar
o lógos da maioria que afirma que é melhor parecer justo do que ser justo.
Com isso, os poetas admitem que a justiça poderia ser um bem estimado por suas
consequências, pois, como os critérios de punição dos deuses são arbitrários, não
vale a pena ser justo. Isso porque o homem justo pode ser punido da mesma forma que
56
o homem injusto ou pior: pode acontecer que o justo seja punido e o injusto não. Dessa
forma, se um ato injusto for vantajoso para quem o comete e se o homem injusto for pu-
nido por isso, sempre haverá a chance de oferecer agrados aos deuses e ser perdoado. 2
Precisamente por isso, a função do lógos é a de tornar os deuses visíveis aos homens,
para que estes os compreendam, conheçam os seus caprichos e saibam como agradá-
-los em busca de fortunas e perdão. Em função disso,
Para Platão, a figura do poeta nas cidades cumpre a função de educar os cidadãos.
Contudo, essa educação não é percebida como a mais adequada, uma vez que ela se
dá pela “mimésis”, pela imitação dos deuses. Todavia, uma questão inquietante para
Platão é quanto ao estilo da poesia, já vez que o seu estilo não se encontra separado
do conteúdo que está sendo ensinado. Os prosadores e poetas narram os aconteci-
mentos passados, presentes e futuros por meio da narrativa e da imitação e, como
o aprendizado se dá por meio do que está sendo narrado e imitado, é preciso avaliar a
forma pela qual os conteúdos estão sendo ensinados, assim como os próprios conteú-
dos. (República III, 392-d).
IMPORTANTE
Seguindo o sistema de referências bibliográficas adotado pelos estudiosos em Filosofia An-
tiga, a referência aos livros que se encontram em A República é feita da seguinte forma:
República (título da obra), de acordo com o número do livro citado (número do livro), número
da passagem, seguido da letra correspondente. Assim, por exemplo, “República III, 392d”
significa que a citação ou conceito se encontra em A República, em seu Livro III, na passa-
gem 392d (passagem essa que se localiza à margem do texto).
Sendo assim, o homem considerado por Platão como moderado (como deve ser tam-
bém o guerreiro) não irá querer, em uma narrativa, imitar algum feito indigno, pois o ato
de imitar algo é capaz de modelar o próprio imitador. Para o bem da cidade, deveriam
ser recebidos nela o poeta e o narrador de histórias mais austeros, capazes de imitar a
fala do homem de bem e de se exprimir segundo “aqueles modelos que de início regu-
lamos, quando tentávamos imitar os militares” (República III, 398b).
Ainda quanto à forma daquilo que deve ser dito, Platão afirma que as harmonias lamen-
tosas, ou seja, as composições com sonoridade que remetem às tristezas, que trazem
gemidos em seus discursos, também devem ser banidas das cidades e o que importa
na educação dos guardiões é que eles conheçam as formas da
Para Platão, o que seja a justiça precisa ser investigado sem o domínio da reputação e
sem o lógos poético. No Livro II de A República, Sócrates pede que o seu interlocutor,
Glauco, não permita que a discussão sobre a justiça se perca. Sócrates entende que
a filosofia não é nem sofística – como pretende a maioria dos homens – nem poesia,
afastando, assim, os argumentos dos poetas.
Ao anunciar que irá fundar uma cidade pelo lógos, a fim de que a justiça e a injustiça apare-
çam e possam ser vistas e compreendidas, Sócrates também revela a função do lógos na
filosofia: a de tornar as coisas visíveis. Nessa fundação da cidade pelo lógos filosófico,
torna-se possível distinguir a cidade saudável da cidade flegmática. A primeira cidade, a
saudável, é pacífica e dotada de coisas que os homens necessitam, como alimenta-
ção, vestuário, habitação e coisas do gênero. Cada um de seus habitantes exerce a função
que a natureza o tornou capaz de exercer e, assim, todas as coisas que fazem são perfei-
tas. Já a segunda cidade, flegmática, está inchada de muitas necessidades. Seu corpo
é doente, assim como é doente o corpo dos homens inchados de humores. Essa cidade
está repleta de caçadores, imitadores, poetas e seus servidores. Para que todos sejam sa-
tisfeitos em suas muitas necessidades é preciso um exército completo capaz de defender
a cidade. Aqui, a figura do guerreiro é fundamental para a existência da cidade saudável.
Para ser guerreiro é preciso ter uma boa natureza. Ele deverá ser perspicaz, rápido na
perseguição do inimigo, forte para combater, valente para lutar com energia e animoso,
pois com bom ânimo todas as situações podem ser enfrentadas, tanto as adversas
quanto as favoráveis. E para além disso tudo, o guerreiro precisa saber reconhecer e
distinguir o familiar do estranho, considerando-se que se ele deve ser valente diante
dos inimigos e brando com os que lhes são familiares. Essa capacidade de conhecer e
distinguir o estranho do familiar é conferida ao guerreiro, porque ele possui uma natu-
reza que se assemelha àquela do filósofo (embora guerreiros e filósofos não sejam da
mesma natureza, como se verá a seguir). Essa semelhança pode ser admitida, já que,
para fazer distinções, é preciso, antes, conhecer o que seja a estranheza e a familiari-
dade. Assim, em uma primeira definição do guardião, tem-se que ele tem que ter
um “instinto” de filósofo: fogoso, rápido e forte. Quanto a isso, veja-se um trecho
do diálogo de Glauco e Sócrates no Livro II de A República em 376a:
Sócrates: Ora, não se te afigura que o futuro guardião precisará ainda de
acrescentar ao seu temperamento fogoso um instinto de filósofo?
Sócrates: Essa qualidade [...] vê-la-ás também nos cães, coisa que é digna de
admiração num animal.
58
Glauco: Que qualidade?
Percebe-se que Platão, de alguma forma, compara os homens guerreiros a cães que sabem
identificar os familiares dos estranhos. Contemporaneamente, isso soa pejorativo e discrimi-
natório, mas a razão de citá-lo se restringe ao conteúdo filosófico que está sendo trabalhado.
O esforço é de tentar uma aproximação com os recursos, com a linguagem e com a cultura
daquele momento histórico estudado. Ainda que hoje algumas considerações aos textos de
outros momentos históricos diferentes do atual sejam criticáveis do ponto de vista da moral
vigente, é preciso compreendê-los à luz de seu momento histórico, principalmente para cri-
ticá-los. Aqui, realizar uma citação que compara homens a cães não implica a admissão de
uma prática social discriminatória.
Sendo assim, qual a relação que se estabelece entre os diferentes lógos e a cidade? E
mais: qual lógos deve vigorar na cidade? Com a finalidade de estabelecer a relação entre
os argumentos da maioria, dos poetas e do filósofo, em relação às cidades saudável e fleg-
mática, é possível assegurar que os argumentos da maioria e dos poetas estão na cidade
flegmática, desvanecida de necessidades, de variados utensílios e de seus fabricantes. É
na cidade inchada que são encontrados os argumentos dos poetas e de seus servidores,
ou seja, daqueles que declamam os seus poemas aos deuses. Já na cidade saudável, en-
contra-se o argumento do guerreiro que sabe distinguir o familiar do estranho.
Após ter considerado que o lógos filosófico é o único capaz de criar a cidade saudável,
torna-se necessário estabelecer a organização da sociedade e as razões dessa orga-
nização. Retomando que as virtudes da alma são transferidas para o Estado, torna-se
importante agora conhecer como a coragem, a temperança e a prudência – as virtudes
essenciais à prática política – podem ser transferidas, a fim de formar o Estado justo.
Tomando como exemplo as classes sociais já existentes na cidade, Sócrates permane-
ce construindo pelo lógos a cidade saudável.
CLASSE
Agricultores;
Comerciantes e artesãos
Assim, a cidade saudável criada pelo lógos socrático se ocupará da educação das
crianças, para que se possa destinar cada um dos educados à classe à qual pertencem.
Note-se que a educação fará o papel de aflorar a virtude que foi, naturalmente, talhada
em cada uma das almas. Descoberta qual é essa forte virtude, o cidadão será destinado
a se integrar em sua devida classe. Resta, então, compreender como se dará a educa-
ção na cidade saudável descrita em A República.
60
Figura 09. Justiça, de Francesco Bonazza
Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Cardinal_virtues#/media/File:Giustizia_
Francesco_Bonazza.jpg. Acesso em: 5 mar. 2021.
A estátua alegórica da Justiça, de Francesco Bonaz-
za, encontra-se na fachada da Igreja de Santa Maria
Del Rosário, na Veneza.
A fim de fazer aflorar essas virtudes, todos deverão ser educados. A prudência é a
virtude que faz o homem adotar as boas medidas e é exercida, sobretudo, no
magistrado – considerado por Platão como o guardião do Estado, como aquele que
é capaz de fazer reinar o bom conselho. A educação dos magistrados será a mais im-
portante, visto que os mesmos deverão elaborar as leis, fazê-las cumprir e resguardar
a cidade para que as classes não confundam os seus papéis na sociedade. Conforme
a educação dos magistrados se refina, torna-se possível estabelecer aquele que é
dotado da mais apurada razão e que, justamente por isso, poderá governar a cidade.
Esse será o rei-filósofo. Para que essas classes sejam obtidas, um rígido programa
educativo deverá ser seguido.
Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Cardinal_virtues#/media/File:Fortezza_
Giuseppe_Torretti.jpg. Acesso em: 5 mar. 2021.
A estátua alegórica da Fortaleza está localizada na
fachada da Igreja de Santa Maria Del Rosário,
na Veneza.
Os guardiões terão seus corpos educados pela ginástica, enquanto seus espíri-
tos serão educados pela música, poesia, dança e artes marciais. A casa dos guar-
diões será a cidade e lhes será negada a propriedade, pois suas residências deverão
ser públicas. Os homens e as mulheres terão suas vidas em comunidade, poderão fazer
sexo livremente e seus filhos serão responsabilidade de todos. Com isso, a posse da
propriedade privada e da família lhes serão negadas. Essa negação fará com que os
guerreiros não constituam nem o direito à herança da propriedade, nem uma linhagem
de sangue, evitando, com isso, a disputa entre eles. Os guardiões deverão ter uma exis-
tência cívica, pública, voltada ao bem comum. Dessa forma, a coragem é a virtude que
os caracteriza e caberá ao magistrado zelar para que ela seja devidamente exercida.
Por sua vez, a temperança é definida como um certo ritmo ou freio que se põe aos
prazeres e paixões. Ela é a virtude capaz de submeter a parte inferior da alma à
sua outra parte superior e reside tanto naqueles que mandam (nos magistrados)
quanto naqueles que obedecem (a classe econômica e classe guerreira). Essa
relação de mando e obediência se dá em favor da consonância e da harmonia. Conse-
62
quentemente, é no reflexo da alma no Estado que tal submissão do inferior ao superior
se dá. Nas palavras de Platão, no Livro IV de A República 432a: “De maneira que pode-
ríamos dizer com toda a razão que a temperança é essa concórdia, harmonia, entre os 2
naturalmente piores e os naturalmente melhores sobre a questão de saber quem deve
governar, quer na cidade quer num indivíduo”.
Aos 35 anos, se bem-sucedidos em uma nova seleção, estudarão ética, física e políti-
ca. Nessa fase, já estarão ocupando cargos importantes na administração pública e no
comando militar e continuarão sendo submetidos aos exercícios de fortalecimento do
intelecto e da moral. Finalmente, aos 50 anos, passarão pelo exame final, caso sejam
aprovados serão os magistrados e os dirigentes políticos. Isso significa dizer que os apro-
vados serão filósofos. Estará formado, assim, o rei-filósofo de Platão. Como filósofos,
estarão aptos a governar a cidade, não se permitindo, por meio da prudência que lhes
2 cabe, que a virtude de uma classe social se confunda com a virtude da outra classe.
Sendo a alma constituída pelas três virtudes e o Estado um reflexo das almas que o
povoam, é a justiça quem se encarrega de fazer a transferência dessas virtudes
para ele. A compreensão sobre o que seja a justiça pode ser ouvida no diálogo entre
Sócrates e Glauco, ainda no Livro IV de A República 432b:
Sócrates: - Assim, ao que me parece, a virtude que contém a cada um nos
limites do seu dever anda par a par com a prudência, a fortaleza, e a temperan-
ça no aprimoramento do Estado.
Sócrates: - Mas essa virtude que em tua opinião trabalha com as outras para
a perfeição do Estado não é por ventura a justiça?
Uma vez que é a justiça que transfere as demais virtudes citadas para o Estado, é ela
também a responsável pela não interferência do âmbito de uma no âmbito da outra.
Da mesma forma, o homem justo é aquele capaz de distinguir entre os deveres
e as atribuições de cada uma das classes do Estado e, ainda, ter a capacidade de
exercer seus deveres sem intervir nos deveres do outro. Assim, a justiça se dará
no interior da alma, na vida pública (e, portanto, na política), quando “a classe dos ne-
gociantes, auxiliares e guardiões se ocupar das suas próprias tarefas, executando cada
um deles o que lhe compete [...]” (A República III 432b).
64
Para o Estado, a confusão entre os deveres do magistrado prudente, do guerreiro co-
rajoso e dos demais cidadãos temperados não pode ocorrer; e, caso ocorra, o Estado
se enfraquecerá e não poderá subsistir. Percebe-se, com isso, a vinculação que Platão 2
faz do seu projeto político com o conceito de justiça e o quanto esse último se serve da
natureza humana para se constituir.
O projeto político de Platão ocupou fortemente a sua atenção, mas jamais foi implan-
tado. A sua importância para a história da filosofia se encontra muito mais nas formas
pelas quais são articulados os conceitos e os argumentos construídos do que em sua
efetivação política. A despeito do insucesso prático, esse projeto ocupou toda a sua vida
filosófica. Em 367 a.C., Dionísio I morre e o trono é assumido por seu filho, Dionísio II,
que aos 30 anos não possuía experiência política para assumir o cargo.
Díon, o cunhado do tirano morto, pede que Platão faça a instrução de Dionísio II. Platão
o atende, mas retorna à Atenas decepcionado com o novo tirano que, sentindo-se ame-
açado por Díon, o coloca em exílio. Em 361 a.C., Dionísio II convida vários filósofos a
irem à Siracusa, entre eles Platão e seu amigo Arquitas. Ele os mantém em sua corte e
trava diálogos diários com todos. Durante a exposição de Platão acerca do programa de
estudos para o qual um filósofo deve ser submetido, Dionísio II se mostra impaciente e
diz já saber o suficiente para publicar um manual de filosofia a partir daquela exposição.
Platão se indigna, tenta ir embora, mas é mantido na corte em prisão domiciliar. Graças
à intervenção de seu amigo Arquitas, consegue a liberdade. Após mais essa experiên-
cia frustrada com a política, Platão retorna à Atenas e se dedica aos ensinamentos em
sua Academia e à escrita de seus livros. Morre aos 80 anos (RIBEIRO; SARDI, 2008).
É tentando teorizar sobre como é possível conhecer, que Platão realiza questionamen-
tos em relação a variabilidade do mundo sensível, desse mundo que é percebido
pelos sentidos: visual, olfativo, gustativo, tátil, auditivo. O mundo, tal qual é percebido
pelos sentidos, é múltiplo, apresenta variados objetos, em várias cores, vários seres
vivos da mesma espécie, vários de espécies diferentes, vários sons. Além de toda essa
variedade, tudo o que há no mundo parece instável, nada permanece como é, ou seja,
as estações do ano mudam, animais, vegetais e pessoas nascem, envelhecem, mor-
rem. Ora existem, ora não existem mais. Ao ser percebido pelos sentidos, o mundo
se mostra instável e mutável. Como, então, conhecer com alguma certeza se nada é
permanente e estável? Se nada possui uma forma estável que sirva de modelo para
conhecer todas as variações?
IMPORTANTE
Antes que aqui seja iniciado o estudo sobre os mundos sensível e inteligível, vale uma consi-
deração a respeito dos escritos de Platão e as várias referências que faz ao mito. O início da
filosofia é marcado por uma gradual ruptura com a mitologia, ou seja, com o método de
explicação da realidade por meio dos deuses. Essa ruptura se dá, justamente, porque os
homens descobrem que são capazes, por meio da especulação racional, de produzir as
respostas que antes lhes eram dadas pelos deuses e que lhes chegavam pelo mito, ou
seja, pela narrativa acerca dos deuses, que possuíam os poetas como seus porta-vozes. Mes-
mo considerando tal ruptura e ainda que Platão almeje a produção de argumentos filosóficos e
não poéticos e míticos, mesmo assim, a referência aos mitos é importante em seus diálogos.
As referências ao demiurgo no Timeu, ao mito de Er, ao mito de Giges e à Alegoria da Caverna,
em A República, são exemplos disso. Como, então, explicar essas referências míticas tão im-
portantes para alguém que deseja conhecer fazendo uso da filosofia e não do mito?
As interpretações acadêmicas a respeito do uso dos mitos por Platão são variadas. Para
alguns intérpretes, o mito é utilizado por Platão tanto para fins didáticos quanto para criticar
os poetas e o tipo de saber que eles propagavam com suas poesias sobre os deuses. O uso
dos argumentos míticos teria fins didáticos e serviria para tornar o conteúdo a ser transmitido
mais familiar aos leitores, mais palatável ao interlocutor. O mesmo valeria para as parábolas
criadas por Platão. Feita essa consideração, serão analisados, a seguir, outros textos de
Platão que fazem referências aos mitos.
É, no diálogo Timeu que Platão formula a relação entre os mundos sensível e inteligível.
Platão se apoia no mito, que se dedica a explicar a criação do mundo ou, como lhe inte-
ressa, do mundo sensível. Segundo o mito, o Bem e as ideias sempre existiram. Sepa-
rado deles havia a matéria disforme, sem forma e sem nenhuma ordenação. Por ação
do Bem, é criado um demiurgo, ou seja, um artesão dotado de fina inteligência, com
conhecimentos sobre matemática e arquitetura e também dotado de bondade. “Bem” é
um conceito em Platão que, para fins didáticos, por hora, precisa ser admitido e que se
tornará compreensível ao longo desses estudos.
66
no mundo sensível também haverá uma alma que o governa e ordena. Essa alma do
mundo sensível é, também, uma cópia imperfeita daquela existente no mundo inteligí-
vel. Acompanhe as palavras de Lopes (2011). 2
Note-se que, com isso, se estabelece uma relação de imitação entre os dois mundos
– em que o mundo sensível é uma imitação (mimésis), uma cópia do mundo inteligível.
Como cópia de um mundo perfeito, o mundo sensível, que é imperfeito, é, em si mesmo,
uma cópia imperfeita. E como se formam essas noções de perfeição e imperfeição?
As coisas existentes no mundo sensível são criadas pelo demiurgo, pelo artesão. Sen-
do assim, o demiurgo é a causa das coisas como construtor, como arquiteto, e sua
2 função é dar forma àquela matéria que, anteriormente à sua ação, era informe. No
entanto, a causa, a essência de cada uma das coisas criadas por ele (das coisas sen-
síveis) são as ideias perfeitas existentes no mundo inteligível. As ideias inteligíveis são
causas das coisas sensíveis, posto que as ideias inteligíveis servem como modelos a
serem copiados pelo demiurgo.
Essa busca das formas, da ideia geral, é percebida nos diálogos de Platão. Quando
Sócrates pergunta “o que é?”, não lhe interessam os exemplos e as opiniões. O que
ele deseja encontrar é a ideia geral, a forma perfeita que origina as opiniões e todas
as coisas que existem no mundo. Note-se, uma citação do diálogo de Sócrates com
Eutífron a seguir. Ao perguntar a Eutífron o que vem a ser o piedoso e o ato ímpio, sua
resposta é: “piedoso é o que estou fazendo agora, a saber, perseguir os criminosos”
(5-e). A resposta de Eutífron fornece apenas um exemplo do ato de piedade. Por isso,
Sócrates insiste que Eutífron explique melhor, pois deseja encontrar “a ideia geral que
faz com que os atos piedosos sejam piedosos”, deseja conhecer essa ideia geral para
que “contemplando-a e me servindo dela como de um paradigma, possa dizer que toda
ação que se lhe assemelha ou seja praticada por ti ou por qualquer outra pessoa é pia
e o que disso diferir, ímpio” (6-e). O que aparece como pano de fundo na reclamação de
Sócrates é que ele deseja ter acesso à ideia geral, à forma perfeita que originou a pie-
dade, pois ele acredita que tudo o que é se originou de uma ideia geral, de uma forma
68
perfeita e, portanto, não pode ser diferente com a piedade. A insistência de Sócrates
quanto ao que seja a piedade reforça a cada resposta de Eutífron o fracasso do pensa-
mento mítico para atender a uma pergunta que apela por uma definição permanente, 2
independentemente dos exemplos.
Mútaveis Imútaveis
A ordem dos seres imutáveis se dá no mundo inteligível. Nela, os seres são imutáveis,
permanecem (sempre!) idênticos a si mesmos, são incriados (portanto, sem nascimen-
to) e não perecem (ou seja, nem se degeneram e nem morrem), são invisíveis (logo,
não são percebidos pela visão), mas são visíveis para o intelecto. Já na ordem dos
seres mutáveis que se encontram no mundo sensível – ou seja, no mundo que é apre-
endido pelos sentidos – tudo está subordinado ao devir, ao vir a ser. Nada permanece
como se apresenta nesse mesmo instante, tudo escapa da permanência; tudo está
sujeito à mudança, ao movimento. Isso que se muda e se move é percebido tanto pelos
sentidos quanto pelo intelecto.
lhe modela, que lhe é modelar) e isso faz com que o mundo sensível seja uma cópia
imperfeita do mundo inteligível tanto em sua forma quanto em sua ordem. Em outras
2 palavras, tanto a forma quanto a ordenação existentes no mundo inteligível são copia-
das no mundo sensível e é por isso que se pode afirmar que o mundo sensível participa
do mundo inteligível.
Nesse caso, participar se refere a ter recebido, a partir do mundo inteligível, a forma e
a ordenação que se encontra no mundo sensível. O mesmo acontece no mundo inteli-
gível, participar significa que tanto aquele que conhece quanto aquele que é conhe-
cido são da mesma natureza. Ou ainda, conhecedor e conhecido participam de uma
natureza comum. Como o conhecedor e o conhecido participam da mesma natureza em
ambos os mundos, isso quer dizer que, nos mundos sensível e inteligível, existem equi-
valentes quanto ao modo de conhecer. Desse modo, enquanto aquilo que é sensível é
conhecido pela sensação, aquilo que é inteligível é conhecido pela intelecção; enquanto
o sensível é conhecido pelas sensações corporais, o inteligível, que é incorporal,
é conhecido intelectualmente.
Para que se conheça a verdade e se consiga conhecer algo fora do âmbito do provável,
do hipotético, Platão utiliza-se do método dos geômetras, justamente para alcançar o
não-hipotético. Ou seja, dentro da cadeia de hipóteses, é preciso identificar a causa
que se encontra no topo da cadeia causal, tanto sustentando toda a cadeia como sendo
também aquela que não necessita de nenhuma hipótese para sustentá-la. O encontro
do não-hipotético é, então, o absoluto, ou seja, aquele que gera todas coisas e não é
gerado por nada e nem por ninguém (PESSANHA, 1997).
70
Platão entende que é possível utilizar o método dialético para alcançar as essências
eternas. Compreendendo que essas essências são interligadas ao percorrer o caminho
que as interliga, é possível encontrar essências cada vez mais gerais. Ao final da cadeia 2
de essências interligadas, encontra-se a super essência. Ou seja, aquela que não de-
pende de essência alguma para originá-la e que é, ao mesmo tempo, a causa de todas
as outras essências. Essa causa última é nomeada por Platão como “a ideia do Bem”,
que é comparada ao sol. Assim como o sol, o Bem é a fonte de toda a luz e, como tal,
põe às claras os objetos – permitindo que estes possam ser conhecidos e também que
os homens possam conhecê-los. Note-se que o Bem é responsável tanto por tornar os
objetos conhecíveis, quanto por tornar os homens conhecedores. A referência ao Bem
é encontrada na Alegoria da Caverna, que é descrita no Livro VII de A República.
Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Plato_-_Allegory_of_the_
Cave.png. Acesso em: 5 mar. 2021.
pensamento transposto por Platão e seus personagens. Uma exposição didática desses
textos não dispensa uma leitura atenta aos originais, além de uma boa disposição para
2 enfrentar as suas leituras. É justamente a partir da leitura dos originais que o pensamento
é exercitado, propiciando ao meio acadêmico o surgimento de novas pesquisas e com-
preensões. Então, segue-se o comentário didático de parte de um diálogo platônico, com
o objetivo de melhor compreender a ideia do Bem, que é a fonte de conhecimentos dos
dois mundos (racional e sensível). Antes que se inicie a exposição, é importante lembrar
que a leitura do texto original é essencial para a formação dos estudantes de filosofia.
Com esse cenário construído, Sócrates pede a Glauco que imagine o que aconteceria se
“alguém soltasse um deles e o forçasse a endireitar-se de repente, a voltar o pescoço, a
andar e a olhar para a luz, ao fazer tudo isso, sentiria dor e o deslumbramento o impediria
de fixar os objetos cujas sombras via outrora” (517-d). Aqui, pode-se compreender que
esse “alguém” que o forçaria a sair da caverna, onde somente se enxergam as sombras,
seria a própria força do pensamento, o próprio desejo de conhecer. Mas como a caverna
(supostamente, o mundo sensível) é o lugar das sombras (supostamente o lugar das
opiniões e da fala dos sofistas), seria difícil para o prisioneiro, que iniciou a sua escalada
ascendente em direção ao conhecimento, percorrer imediatamente o caminho. Para que
ele se acostume com a luz forte do sol, que se encontra no topo da escalada e que ilumi-
na tudo – inclusive o interior da caverna, ainda que lá a iluminação seja indireta –, será
necessário que ele se encontre aos poucos com a claridade. Acompanhe as palavras de
Sócrates sobre o que o prisioneiro liberto precisaria em sua nova empreitada:
Precisava de se habituar, julgo eu, se quisesse ver o mundo superior. Em pri-
meiro lugar, olharia mais facilmente para as sombras, depois disso, para as
imagens dos homens e dos outros objetos. A partir de então, seria capaz de
contemplar o que há no céu, durante a noite, olhando para a luz das estrelas
e da Lua, mais facilmente do que se fosse o Sol e o seu brilho de dia. (516b)
72
Há uma fala de Sócrates que, durante o diálogo, recupera algumas passagens da ale-
goria e faz uma clara referência à ideia do Bem, como segue:
2
Meu caro Glauco, este quadro – prossegui eu – deve agora aplicar-se a tudo
quanto dissemos anteriormente, comparando o mundo visível através dos
olhos à caverna da prisão, e a luz da fogueira que lá existia à força do Sol.
Quanto à subida ao mundo superior e à visão do que lá se encontra, se a to-
mares como a ascensão da alma ao mundo inteligível, não iludirás a minha
expectativa, já que é teu desejo conhecê-la. O Deus sabe se ela é verdadeira.
Pois, segundo entendo, no limite do cognoscível é que se avista, a custo, a
ideia do Bem; e, uma vez avistada, compreende-se que ela é para todos a
causa de quanto há de justo e belo; que no mundo visível, foi ela que criou a
luz, da qual é senhora; e que, no mundo inteligível, é ela a senhora da verdade
e da inteligência, e que é preciso vê-la para se ser sensato na vida particular e
pública. (República VII 517b, grifo nosso)
com que a parte alta da alma submeta e governe a sua parte baixa. Acompanhe uma
passagem do Livro IV, na qual Sócrates afirma:
2
parece-me [...] que na alma do homem há como que uma parte melhor e outra
pior; quando a melhor por natureza domina a pior, chama-se a isso ‘senhor de
si’– o que é um elogio, sem dúvida; porém, quando devido a uma má educação
ou companhia, a parte melhor, sendo mais pequena, é dominada pela supera-
bundância da pior, a tal expressão censura o facto como coisa vergonhosa e
chama ao homem que se encontra nessa situação de escravo de si mesmo e
libertino (431 a, b).
Veja-se que, considerando a citação acima, entende-se que há uma divisão também na
alma, pois Sócrates se refere à alma afirmando que nela há uma parte melhor e outra
pior. Note-se ainda que a temperança, além de estar presente nos artesãos, comercian-
tes e nos magistrados, deve estar presente também nos guerreiros, pois estes também
devem se esforçar para que a temperança atue, lhes tornando senhores de si mesmos,
sem deixar que os prazeres e apetites da alma os escravize.
A temperança é, então, a virtude que irá promover a harmonia tanto no interior da alma
quanto na cidade, pois fará com que os homens de cada classe controlem a si mesmos e
com que a classe dos magistrados controle a todos, promovendo, assim, a vida harmônica.
Quanto à importância da temperança, acompanhe, mais uma vez, as palavras de Sócrates
no Livro IV, atentando-se, especialmente, para a frase final da citação, que reafirma que é a
temperança que deve comandar “quer na cidade, quer num indivíduo”:
Porque não é como a coragem e a sabedoria, que, existindo cada uma só num
lado da cidade, a tornavam, uma sábia, a outra corajosa, que a temperança
actua. Esta estende-se completamente por toda a cidade, pondo-os todos a
cantar em uníssono a mesma oitava, tanto os mais fracos como os mais for-
tes, como os intermediários [...]. De maneira que poderíamos dizer com toda
a razão que a temperança é esta concórdia, harmonia, entre os naturalmente
piores e os naturalmente melhores, sobre a questão de saber quem deve co-
mandar, quer na cidade quer num indivíduo. (432a).
Em Platão, a alma é dividida em três partes assim nomeadas: racional, impulsiva (ou
irascível) e apetitiva (ou concupiscível). Veja-se que somente é possível transferir as
virtudes da alma para a cidade, porque existe uma mesma ordem regrando a cidade e
a alma. Essa mesma ordem é a justiça, que deve ser compreendida, ela também, como
uma virtude. Essa divisão não é física, trata-se de uma divisão racional da alma, uma
divisão que pode ser alcançada por meio da razão.
74
As três partes da alma se referem à três capacidades humanas. Entre as três partes da
alma, a que mais mantém contato com o mundo sensível é a que se refere ao desejo.
É nessa parte que se encontra o desejo de se alimentar, reproduzir-se, obter riquezas e 2
prazeres: trata-se da parte apetitiva ou concupiscível. Em outra parte, encontram-se os
sentimentos de raiva, ira, tristeza e alegria. Essa parte é ligada à ação. É ela que move
e demove os homens a agirem: trata-se da parte impulsiva ou irascível. A outra parte diz
respeito à capacidade raciocinar de forma mais sofisticada e de encontrar a verdade:
trata-se da parte racional.
Esse homem impulsivo e irascível pode ter as suas emoções educadas e, com
isso, reprimir seus ímpetos raivosos por meio do uso da razão. Isso implica dizer
que é possível submeter as emoções ao filtro da razão, o que leva a crer que a parte
impulsiva da alma também é capaz de realizar algum tipo de julgamento, embora não
deixe de ser irracional e não esteja ao nível da sua parte racional. Aqui, afirma-se que é
possível educar o homem irascível de tal forma que se crie uma afinidade entre as suas
emoções e a parte racional da alma. Isso faz com que sejam geradas as emoções mais
estáveis. A sua natureza impulsiva deve ser, então, educada, por afinar-se às emoções
mais ponderadas, fazendo com que a razão e a impulsividade caminhem juntas.
Note que, na cidade saudável, o guerreiro, ou seja, aquele que tem a virtude da coragem
fortemente talhada em sua alma, é um grande aliado dos magistrados, pois cumpre as
suas ordens e protege a cidade devidamente como deve ser protegida. Diferentemente
dos artesãos e dos comerciantes, os guerreiros não se deixam levar pelos prazeres e
2 necessidades da parte apetitiva da alma.
Glauco: Absolutamente.
Glauco: Exatamente.
76
Assim, da mesma forma que a cidade saudável tem a justiça contendo cada uma das
classes sociais em seu devido limite, a prudência contém cada uma das partes da alma
contidas em seus limites. Assim contidas, a cidade e a alma permanecem em harmonia. 2
A harmonia entre as partes constitutivas da alma origina a harmonia no interior da cidade.
Como, vivendo no mundo sensível, imersos na mundanidade, os homens são atraídos pelo
mundo inteligível? Como os homens sentem o desejo de filosofar se vivem imersos no
mundo dos afazeres, dos cuidados com o corpo, no mundo das cópias imperfeitas (do simu-
lacro!), imersos em um mundo em que a opinião e a crença – e não a reflexão – dominam
as horas do dia a dia? De forma ainda mais inquietante: já que vivem imersos no mundo
das opiniões e dos simulacros, como os homens podem reconhecer uma ideia verdadeira
quando estiverem diante dela? Tentando responder a essas perguntas, Platão faz referên-
cia ao Mito de Er ou Mito da Reminiscência, no Livro X, de 614b até 621b de A República.
A elaboração desta seção contou com a tradução portuguesa do “Mito de Er” realizada por
Maria Helena da Rocha Pereira e publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian. Mas res-
salte-se que há uma outra tradução portuguesa do professor Rodolfo Pais Nunes Lopes,
igualmente boa, que se encontra disponível em http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.
php/nuntius_antiquus/article/view/14895/1125612081. Acesso em: 14 nov. 2020.
Repare que, na citação acima, Láquesis está sorteando a ordem pela qual as almas irão
iniciar as suas escolhas. Está sendo sorteado quem será o primeiro, segundo e assim
2 sucessivamente que terá a chance de olhar os diferentes destinos que poderão lhes ca-
ber na terra. Observe a frase em destaque. O que ela significa? Significa que cada alma
deverá escolher uma vida já determinada entre muitas outras também já determinadas.
A escolha depende da alma e o cultivo da virtude durante a vida escolhida tam-
bém dependerá unicamente da alma, esforçando-se para não cometer injustiça. E
deverá fazê-lo, pois são pelos atos injustos que as almas são punidas.
Cada ato injusto cometido deveria ser pago 10 vezes. Assim, cada ato injusto poderia
ser pago ao longo de uma vida humana estimada em torno de 100 anos. Em outras
palavras, o que se estima é que uma vida humana com duração em torno de 100
anos deveria ser suficiente para a expiação de um ato injusto cometido em uma vida
passada. Como a cada ato injusto poderia equivaler a 100 anos de punição, quanto
mais atos injustos cometidos, maior o número de reencarnações. Como são livres
para escolher, muitas almas escolhiam vidas distintas das que tiveram antes, a fim de
evitarem novos sofrimentos. Outras escolhiam vidas tirânicas, por ignorarem o valor
real da virtude, por conta de, na vida anterior, somente a terem praticado por hábito e
não por filosofia. Foi o caso daquele a quem coube a primeira escolha. Nas palavras
de Sócrates (República X, 619-c):
[...] contava Er, aquele a quem coubera a primeira sorte logo se precipitou para
escolher a tirania maior, e, por insensatez e cobiça, arrebatou-a, sem ter exa-
minado capazmente todas as consequências, antes lhe passou despercebido
que o destino que lá estava fixado comportava comer os próprios filhos e outras
desgraças. Mas, depois que a observou com vagar, batia no peito e lamentava
a sua escolha, sem se ater às prescrições do profeta. Efectivamente, não era a
si mesmo que se acusava da desgraça, mas à sorte e às divindades e a tudo,
mais do que a si mesmo. Ora, esse é um dos que vinham do céu, e vivera, na
encarnação anterior, num Estado bem governado; a sua participação na virtude
devia-se ao hábito, não à filosofia [...].
Note, na citação acima, que a escolha dessa alma foi pela tirania, pois, embora na vida
anterior tenha vivido em um “Estado bem governado” e praticado a virtude, o fez apenas
pelo hábito. É de se supor que a parte irracional de sua alma foi controlada pela parte
racional de seu governante e que permaneceu em harmonia não por uma ação sua,
mas do outro, do seu governante, no caso. A insistência com esse exemplo é para mos-
trar que o que guia a vida dos nomes é, segundo Platão, o cultivo das virtudes e que
esse é um esforço que os homens são capazes de fazê-lo. Ou seja, são capazes de
conhecer por meio da filosofia.
Ainda considerando o Mito de Er, é preciso acrescentar que as almas, após escolherem
os seus destinos e antes de reencarnarem, deverão passar pelo rio Lethé, onde serão
obrigadas a beber de suas águas. A palavra Lethé se traduz para o português como
“esquecimento”. Portanto, antes de reencarnarem, as almas deverão passar pelo
rio do esquecimento e beber da água do esquecimento. Ao fazê-lo, esquecer-se-ão
do que contemplaram enquanto estavam desencarnadas. As almas que anseiam pelo
poder, riquezas e prazeres são as que mais bebem. As almas que escolheram uma vida
virtuosa são as que menos bebem. Isto é,
78
[q]uando já entardecia, [as almas] acamparam junto ao rio, cuja água nenhum
vaso pode conservar. Todas são forçadas a beber uma certa quantidade dessa
água, mas aquelas a quem a reflexão não salvaguarda, bebem mais do que a 2
medida. Enquanto se bebe, esquece-se tudo. (República X, 621-b)
Por terem passado pelo rio do esquecimento e bebido um pouco de suas águas, as
almas, ao reencarnarem, ao ganharem um novo corpo e passarem a viver, novamente,
no mundo, lembram-se com um pouco mais de facilidade do que contemplaram e são
desejosas de saber cada vez mais. Essas são as almas dos filósofos que irão se entre-
gar à busca do conhecimento.
A partir da consideração sobre as águas do rio Lethé, pode-se inferir a Teoria da Remi-
niscência em Platão. Por que reminiscência? Porque, em Platão, conhecer é lembrar,
é ter acesso àquilo que a alma conheceu no mundo inteligível, sendo guiado pela inves-
tigação filosófica. Nesse sentido, conhecer na vida mundana é reconhecer, é olhar para
as formas imperfeitas, as cópias, os simulacros presentes no mundo sensível e recordar
das formas perfeitas presentes no mundo inteligível, as quais são as suas essências.
A alma é, então, concebida como uma forma que pode contemplar as ideias per-
feitas, pois a suposição é a de que ela possua a mesma natureza dessas ideias:
tal como essas, a alma é uma forma imortal. Seu alojamento nos corpos é apenas
provisório, a passagem por diversas reencarnações é uma escalada de educação e
de conhecimento que a alma deve percorrer até retornar definitivamente para o mundo
inteligível. Alojada no corpo, ela encontra no mundo os objetos sensíveis que são cópias
do que há no mundo inteligível e pode, aos poucos, e com o exercício filosófico, relem-
brar as essências que já contemplou. É nesse sentido que o conhecimento é, de fato,
reconhecimento, reminiscência.
Note que é a imortalidade da alma que permite ao homem alcançar, no mundo, algum
conhecimento. Não fosse ela imortal e não fosse ela alojável no corpo, o homem não
poderia alcançar qualquer tipo de conhecimento, visto que são as reminiscências que
ela guarda do mundo inteligível que permitem ao homem (aquele que tem em seu corpo
uma alma alojada) conhecer e tentar se resguardar com sabedoria e se manter no
caminho justo. Quanto a isso, acompanhe as palavras de Sócrates, finalizando o último
parágrafo do último livro de A República, em que dialoga com Glauco, comentando o
mito de Er: (621c).
Foi assim, ó Gláucon, que a história se salvou e não pereceu. E poderá salvar-
-nos, se lhe dermos crédito, e fazer-nos passar a salvo do rio do Lethé e não
poluir a alma. Se acreditarem em mim, crendo que a alma é imortal e capaz de
suportar todos os males e todos os bens, seguiremos sempre o caminho para
o alto e praticamente por todas as formas a justiça, com sabedoria, a fim de
sermos caros a nós mesmos e aos deuses, enquanto permanecermos aqui;
e, depois de termos ganhado os prêmios da justiça, como os vencedores dos
jogos que andam em volta, a recolher as prendas da multidão, tanto aqui como
na viagem de mil anos que descrevemos, havemos de ser felizes.
niscência, que só é possível graças à alma imortal. Sócrates, com isso, pede que um
escravo diga qual será o comprimento do lado de um quadrado dado, cuja superfície
2 seja o dobro da superfície de um outro quadrado dado. O que Sócrates pretende com
isso? A intenção dele não é a de que o escravo consiga demonstrar o teorema de
Pitágoras, mas que demonstre, apenas, alguns cálculos elementares. Inicialmente,
o escravo fornece respostas equivocadas, que são descartadas por Sócrates, e que
fazem o escravo reconhecer a sua ignorância, ou seja, o seu desconhecimento e o
vazio da validade de suas respostas iniciais. A seguir, por uma série de indagações
ainda de Sócrates, o escravo é levado a enunciar os cálculos elementares esperados.
Assim o faz porque as respostas já estavam dentro dele mesmo, já estavam latentes
em sua alma. Por esse processo de perguntas guiadas, o escravo pode se lembrar do
que a sua alma imortal contemplou um dia.
Diálogos construtivos: ao final do diálogo, é possível perceber que foi realizada uma ex-
posição sistemática do tema, possibilitando a elaboração de uma teoria acerca da questão
discutida. Exemplos: A República; Fedro; Leis; Fédon; Político;
Diálogos enigmáticos: o diálogo termina em aporia, em função da questão discutida conter uma
dificuldade insolúvel. A esse tipo de aporia não é seguida de maiêutica. Ex. Parmênides; Teeteto.
80
I. Diálogos da juventude: 2
Críton ou sobre o dever
Cármides ou sobre a moderação
Crátilo ou sobre a linguagem
Eutidem: (contra a erística)
Eutífron ou sobre a piedade
Górgias ou sobre a retórica
Hípias menor ou sobre a falsidade
Hípias maior ou sobre a beleza
Ion ou sobre a Ilíada
Laques ou sobre a coragem
Lisis ou sobre a amizade
Menexeno ou oração fúnebre
Mênon ou sobre a virtude
Protágoras ou sobre os sofistas
CONCLUSÃO
Ao final da Unidade 2 do componente curricular da disciplina História da Filosofia, é
possível considerar que os conceitos filosóficos de forma, ideias, mundos sensível e
inteligível, partes da alma e sua imortalidade, estão intimamente ligados a uma cadeia
causal, que, ao seu final, revela a origem não causada da cadeia, que é a ideia de Bem.
Todo esse encadeamento é necessário para que se possa conhecer, como também foi
o caso na disciplina, o projeto político de Platão. Estudar o seu projeto político implicou
compreender que a alma se encontra dividida em três partes (divisão não-física, mas
que se compreende racionalmente), que precisam ter as suas virtudes postas em har-
monia justamente pela sua parte racional – aquela que é menor e, no entanto, superior
à sua parte irracional talhada pelos apetites e impulsividade. O que é assim na alma o é
também na cidade, igualmente dividida em três classes sociais que, igualmente, preci-
sam conviver em harmonia, a fim de que a cidade seja saudável. Construir e conduzir o
2 projeto político da cidade saudável somente poderia se fazer por meio do filósofo, aque-
le que, graças à imortalidade da alma que contemplou as formas perfeitas no mundo
inteligível, pode, agora, encarnada no mundo sensível, recordar-se do que contemplou,
graças à sua virtude natural e a devida educação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. ARISTÓTELES. A Constituição de Atenas. São 8. PESSANHA, José Américo Motta. Platão e as
Paulo: Hucitec, 1995. Ideias. In: REZENDE, Antônio (Org.). Curso de Filo-
2. BENOIT, Hector. Sócrates. In: PECORARO, Ros- sofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. p. 43-57. .
sano (Org.). Os Filósofos: clássicos da filosofia de 9. PLATÃO. A República. Introdução, Tradução e
Sócrates a Rousseau. Rio de Janeiro: Petrópolis: Vo- notas de Maria Helena da Rocha Pereira, 12ª Edição,
zes/Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2008. p. 9-39 . Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.
3. CHATEAU, Jean-Yves. Philosophie et Religion: 10. PLATÃO. Diálogos: Critão, Menão, Hípias Maior
Platon Euthyphron. Paris: J. Vrin, 2005. e outros. 2. ed. Tradução Carlos Alberto Nunes. Be-
4. CHAUI, Marilena. Introdução à História da Fi- lém: EDUFPA, 2007.
losofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: 11. RIBEIRO, André A.; SARDI, Sérgio Augusto. Pla-
Companhia das Letras, 2002. v.1. tão. In: PECORARO, Rossano (Org.). Os Filósofos:
5. LAÊRTIOS, Diôgenes. Vidas e Doutrinas dos clássicos da filosofia de Sócrates a Rousseau. Rio
Filósofos Ilustres. Brasília: UNB, 2008. de Janeiro: Petrópolis: Vozes/Rio de Janeiro: PUC-
-Rio, 2008. p. 40-60. .
6. IGLÉSIAS, Maura. Pré-socráticos: físicos e sofis-
tas. In: REZENDE, Antônio (Org.). Curso de Filoso- 12. SANTOS, José Trindade. Saber e Formas: estu-
fia. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. p. 17-42 . do de filosofia no Êutifron de Platão. Lisboa: Presen-
ça, 1987.
7. MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da
Filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de
Janeiro: Zahaar, 1998.
82
2
UNIDADE 3
INTRODUÇÃO
Na Unidade 3 do componente Curricular História da Filosofia Antiga será estudada a
filosofia de Aristóteles, considerando-se a sua ontologia, suas teorias do movimento e
do Primeiro Motor, seus conceitos de ética, virtude e moral e as suas concepções de
alma. Mesmo sendo conceitos variados em um sistema filosófico vasto e riquíssimo, é
possível encontrar uma unidade entre eles. Trata-se da compreensão aristotélica de
que tudo o que há para ser conhecido encontra-se na realidade, no mundo sensível. É
nele que se encontram os objetos que se dão a conhecer.
Para fazer frente a tais objetos, a capacidade intelectiva da alma informada no corpo cum-
pre perfeitamente esse papel, sem apelo a qualquer possibilidade de realidade transcen-
dente. O movimento que a matéria informada faz para atingir o acabamento perfeito da
forma também se encontra no composto corpo/alma que se move em busca da felicidade,
do Sumo Bem que deve guiar as ações do homem virtuoso que necessita do permanente
exercício das boas ações, a fim de formar a sua boa disposição de caráter.
Tudo no mundo está em pleno movimento, pleno devir, acalentado pelo desejo de per-
feição e imobilidade. Tudo se move pelo desejo em direção ao Motor Primeiro, que nada
deseja porque nada lhe falta. Esses fundamentos da filosofia aristotélica serão apresen-
tados nesta unidade do curso, sob a tentativa de demonstrar a coesão que caracteriza
o sistema filosófico de Aristóteles.
Com a morte de Platão e sem conquistar a direção da Academia, aceita o convite do go-
vernante de Atarnéia, na Ásia Menor, para realizar reformas políticas com base em seus
conhecimentos acadêmicos. Foi o educador de Alexandre, o Grande – dos 13 aos 20
anos de idade do jovem –, e, embora divergissem a respeito do melhor regime político,
84
Alexandre era considerado um excelente aluno. Com Figura 16. Aristóteles
a dominação de Atenas pela Macedônia, comandada
Fonte: 123rf
por Alexandre, Aristóteles retorna à cidade onde reali-
zou os seus estudos e funda o Liceu, a sua escola, tra- 3
balhando nela por 13 anos – período que coincide com
o tempo de ocupação de Atenas pelos macedônios.
A biblioteca do Liceu era vasta e caracterizada pelo
trabalho catalográfico e descritivo, tanto dos estudos
sobre a física, astronomia, botânica, zoologia, quanto
sobre os estudos em filosofia.
Pensar a ontologia em Aristóteles alude a pelo menos três questões igualmente importan-
tes e que não podem ser pensadas separadamente: a origem do termo em sua etimolo-
gia, o seu significado filosófico e a sua utilização histórica. Uma vez que essas questões
sejam aqui discutidas, será possível compreender o significado da ontologia aristotélica.
O termo “ontologia” jamais foi utilizado por Aristóteles. De fato, há registro histórico
de seu uso por volta do ano 50 a.C., o que já indica a incompatibilidade temporal de
sua aplicação em período anterior. No entanto, não é anacrônico fazer referência à on-
tologia aristotélica, ou platônica ou parmídia. E por que não o seria? Em primeiro lugar,
é preciso admitir que anacronismo significa reunir em tempos históricos distintos
(em cronologias distintas, portanto), conceitos, costumes e valores morais especí-
ficos pertencentes a uma época histórica e não à outra. E o grande perigo disso
consiste em analisar uma produção filosófica, por exemplo, a partir de critérios que não
lhes são apropriados, pois não são comuns ao seu tempo de produção. Contudo, já se
afirmou aqui que não é anacrônico referir-se à ontologia dos filósofos da Antiguidade
Clássica e as razões para isso serão expostas a seguir.
O estudo dos textos filosóficos permite que sejam feitas várias inferências quanto ao
conteúdo escrito, aos conceitos ali emitidos, às teses presentes, a seus argumentos
justificadores, a coerência interna desses argumentos e, também, quanto à forma pela
qual esse conteúdo foi escrito. A partir desses estudos é possível estabelecer, por exem-
plo, a ontologia aristotélica em comparação à platônica. Veja-se: embora os intérpretes
posteriores aos próprios filósofos possam utilizar termos que estes jamais utilizaram em
suas filosofias, o que justifica esse uso é o fato de que tais termos conceituais foram
extraídos do interior de suas obras. Mesmo que a nomenclatura seja estranha aos filó-
sofos, o seu significado reflete o conteúdo das obras estudadas e propicia que sejam
traçadas comparações entre elas a partir desses conceitos delas extraídos. É impor-
tante destacar que não se trata de primeiro cunhar a nomenclatura para depois tentar
vestir a filosofia nela. Ao contrário, é justamente a leitura da obra filosófica que permite
a cunhagem do termo, a produção da nomenclatura. Sendo assim, a seguir, será apre-
3 sentada a ontologia aristotélica, considerando-se o seu nascedouro na filosofia. Isso
implica recorrer às filosofias de Heráclito, Parmênides e de Platão.
Para que o filósofo pré-socrático pudesse afirmar Figura 02. Parmênides de Eleia
algo acerca da verdade, era preciso encontrar um
Fonte: 123rf
fundamento explicador totalmente distinto da forma
pela qual a natureza se apresentava. O que irá afir-
mar Parmênides? Ele afirmará o Ser, aquele que
é idêntico a si mesmo, eterno, imutável e impe-
recível – ao contrário das aparências da natureza
que se transformam em seus contrários, são mu-
táveis, mortais e perecíveis. Sendo o Ser invisível,
ele é alcançado pelo uso da razão, da argumen-
tação lógica – embora, ressalte-se novamente, o
uso da lógica filosófica, como trabalhado hoje nas
universidades, não fosse um vocabulário presente
para Parmênides. Do mesmo modo, os princípios
racionais também não pertenciam ao vocabulário
de Parmênides, ainda que possam ser inferidos da
forma e do conteúdo de sua filosofia. Quais são esses princípios e qual a relação destes
com a ontologia aristotélica, objeto da presente discussão?
86
Entre os princípios racionais encontram-se: o princípio da identidade; o princípio
da não contradição e o princípio do terceiro excluído. Ao longo desse texto, serão
apresentados esses princípios racionais, para que se constituam as bases teóricas ne-
cessárias à compreensão da ontologia aristotélica. 3
Trata-se de perguntar: quais princípios de racionalidade orientam a noção de razão que
se pode observar na filosofia até os dias de hoje? Essa resposta implica recorrer ao pen-
samento de Heráclito e de Parmênides para, após, descrever os desdobramentos dessas
influências nos pensamentos de Platão, que, por sua vez, influenciou o pensamento de
Aristóteles, e que permanece influenciando o pensamento ocidental até os dias de hoje.
Em Heráclito, a lei da racionalidade é dada pela harmonia entre os contrários. Para ele, a
racionalidade se caracteriza pelo fluxo constante de mudanças e contradições. Um
comentário de Hegel (1973) à filosofia de Heráclito pode ajudar a compreender a importância
do fluxo constante de mudanças e dos contrários em sua filosofia, pois, segundo o autor:
[d]a harmonia faz parte a diferença; é preciso que haja essencial e absoluta-
mente uma diferença. Esta harmonia é precisamente o absoluto devir, transfor-
mar-se – não devir outro, agora este, depois aquele. O essencial é que cada
diferente, cada particular seja diferente um do outro – mas não de um abstrato
qualquer outro, mas de seu outro; cada um apenas é, na medida em que seu
outro em si esteja consigo, em seu conceito. Mudança é unidade, relação de
ambos a um, um ser, este e o outro. Na harmonia e no pensamento concor-
damos que seja assim; vemos, pensamos a mudança, a unidade essencial.
(HEGEL, 1973, p. 66)
Platão encontra uma forma de conciliar a lei da racionalidade heraclítica dada pela har-
monia entre os contrários com a exigência de permanência presente no Ser parmídio.
Platão, então, concilia os argumentos de Heráclito sobre a mudança com os argumen-
tos de Parmênides sobre a permanência, preservando a racionalidade presente em
ambos – além, disso livrará os discursos desses pré-socráticos de serem comparados
à banalização argumentativa dos sofistas.
3 Ao teorizar sobre os mundos sensível e inteligível, Platão admite que é possível pro-
duzir conhecimento – ou seja, exercitar o uso da razão – tanto em um quanto no outro.
Com isso, viabiliza a tese heraclítica de que se pode conhecer no mundo das mudanças
e contradições (que é o mundo sensível) e, ao mesmo tempo, torna possível a tese
parmídia de que há um conhecimento verdadeiro dado a partir de algo que é eterno,
imutável e idêntico a si mesmo (presente no mundo inteligível). Com isso, estabelece
uma hierarquia entre esses tipos de conhecimento, sendo que o conhecimento que se
trava no mundo sensível é inferior em veracidade e autenticidade ao conhecimen-
to possível no mundo inteligível. Eis aqui a admissão platônica de que é possível,
sim, conhecer no mundo das mudanças e contradições, desde que se preserve que
esse conhecimento é um passo para que se alcance o conhecimento verdadeiro.
Remontar à tese platônica dos dois mundos se torna importante nesse momento, pois
se percebe que o princípio da identidade, o princípio de permanecer idêntico a si mes-
mo, foi preservado por Platão. Com isso, constrói-se uma referência à análise do que
seja a possibilidade de conhecer dada pelos graus de verdade produzidos. Essa refe-
rência começa a desenhar um caráter de universalização do discurso, pois, pelo dis-
curso, estabelece-se o quê, como e a partir do que uma coisa pode ser conhecida.
Tal qual Platão, Aristóteles entendia que as ações humanas deveriam ser guiadas por
valores universais, sendo estes fundados em uma ciência que aspirava ser capaz de
ordenar e disciplinar a linguagem e o pensamento em termos que pudessem ser uni-
versalmente válidos. Aqui, o discurso racional aristotélico tem a pretensão de se
remeter àquilo que é dito, que se encontra entre os homens e que encontra o seu
lugar na linguagem e, não mais, pretende se remeter às ideias fora do mundo - trans-
cendentes, portanto. Para Aristóteles, é necessário que o pensamento obedeça a nor-
mas que permitam demonstrações corretas. Tais normas conferem regras ao raciocínio
e são consideradas regras internas à razão, próprias à razão. Não se trata, pois, de
conferir à razão um regramento estranho a ela, não se trata do fornecimento de regras
estranhas à forma mesma pela qual a razão já opera. Trata-se, sim, de uma descrição
dessas regras já existentes, internas à razão.
88
diana. Nas palavras de Gomes (1985, p. 10), “o Órganon é o conjunto de seis livros sobre
a arte de filosofar, a propedêutica a toda a arte de filosofar. Não é a filosofia propriamente
dita, é a arte de exercitar a filosofia, como o adro que está antes do santuário”.
3
O que estimula a elaboração desse escrito aristotélico é a grande quantidade de obras
anteriores, que trazem tanto contradições reais quanto aparentes, sendo que tal escrito
cumprirá a função de fundamentar um caminho para o percurso do pensamento filosófico,
desembaraçando-o dos discursos precedentes, especialmente aqueles dos sofistas.
O Órganon (2010) é composto por seis livros: Categorias; Da Interpretação; Analíticos Ante-
riores; Analíticos Posteriores; Tópicos e Refutações Sofísticas. Todos expressam a compre-
ensão do que seja a racionalidade aristotélica e, particularmente interessante ao estudo do
que seja a substância, é o primeiro livro – Categorias –, que será brevemente aqui descrito,
a fim de que se considere a definição de ontologia que se busca nesse momento.
Categorias discute os fatos linguísticos tendo em conta as coisas que são ditas sem
combinação e a distinção destas das coisas que são ditas com combinação, a fim de
tratar de termos e conceitos (Cat. I, a 6). A seguir, Aristóteles apresenta as categorias
que são: substância; quantidade; qualidade; relação; lugar; tempo; postura; posse; ação
e passividade. A enunciação das categorias permitirá o estabelecimento da relação en-
tre a realidade e o discurso e, sobretudo, essas categorias apresentam os modos de
ser. Por “modos de ser”, entende-se a maneira de se dizer algo sobre o ser das coi-
sas, o modo de predicar o ser das coisas em seus fundamentos. Trata-se de predicar a
essência do ser. Ao fazê-lo, as categorias afirmam aquilo que o ser é; as categorias afir-
mam o modo de ser; o modo pelo qual uma coisa é o que é. Categorias faz um estudo
dos elementos do discurso, pesquisa as palavras, seus sinônimos, homônimos, analisa
a linguagem usual daquele momento histórico, identifica os usos dos termos, classifica
e enumera os sentidos que as palavras e os termos recebem em seus empregos usuais
e expõe os seus sentidos, com o propósito de promover a correta utilização das pala-
vras e dos termos, buscando-se evitar que as pessoas sejam persuadidas pelos
discursos vazios. Sobretudo, tenta reunir recursos, instrumentos, para que a busca da
verdade seja realizada por meio de discursos coerentes.
IMPORTANTE
Como Aristóteles é um autor da Antiguidade, as referências às suas obras não seguem
as normas da ABNT no interior do texto. As referências às obras de Aristóteles são feitas
adotando-se um sistema proposto por Immanuel Bekker no século XVIII. Esse sistema pa-
droniza as obras aristotélicas em todo o mundo e em toda e qualquer língua. O objetivo
é que as traduções nas diferentes línguas possam fazer remissão umas às outras. Veja-se a
forma pela qual essas referências são feitas: título da obra – pode vir abreviado caso esteja
entre parênteses ou por extenso caso esteja no interior da frase; seguido de um algarismo
arábico que indica o capítulo; depois, usa-se as letras para indicar em qual coluna se encon-
tra a passagem do texto citada; e, na sequência, deve-se mencionar a(s) linha(s) do texto em
que ocorre a citação.
Exemplo: (Et. Nic. IV, b 22-27), ou seja, Ética a Nicômaco, Livro IV, coluna b, linhas 22 a 27.
Esse sistema de referência caracteriza os textos antigos e é apresentado nos trabalhos aca-
dêmicos daqueles que se dedicam aos estudos em filosofia antiga. Ao final do trabalho aca-
dêmico, deve-se listar as obras que sofreram citação e referências no interior do texto, de
3
acordo com as normas da ABNT NBR 6023.
90
EXEMPLO
Uma coisa não pode ser percebida neste momento como um gato amarelo e no momento
seguinte como um gato branco ou mesmo como um cão preto. O gato amarelo percebido 3
neste momento precisa conservar a sua identidade de gato e de gato amarelo em todos os
momentos em que ele for percebido por alguém. Somente assim será possível produzir acer-
ca dele algum conhecimento, por exemplo, a nomeação “gato amarelo”.
Observe que o princípio da identidade pode ser inferido da passagem que será apresen-
ta a seguir em Categorias. E ainda que, para atender a fins didáticos, foram introduzidos
alguns comentários à citação como recursos para auxiliar a compreensão (Cat. V 4a 1):
` “Nenhuma substância, pelo que parece, apresenta graus ou admite um mais e um menos”
isso significa dizer: uma substância deve conservar a sua identidade, não é possível que
haja variação na identidade da substância.
` “Não quero dizer aqui que uma substância não possa ser mais verdadeiramente chamada de
substância e menos verdadeiramente chamada de substância do que outras. De fato, disse-
mos que pode. Mais entendo que nenhuma substância como tal pode admitir graduação em
si mesma. Por exemplo, a mesma substância – homem – não pode ser mais ou menos ho-
mem na comparação consigo mesmo ou com outro homem” na linguagem vulgar, é possível
afirmar que Paulo é mais homem do que Pedro, mas somente em sentido metafórico. Afirma-
ções desse tipo, podem ser substituídas, por exemplo, por: Paulo é mais forte do que Pedro.
` “Esse homem não é mais homem do que aquele, como uma coisa branca é mais ou menos
branca do que um outro objeto branco o possa ser, ou como um objeto belo apresenta mais
ou menos beleza do que outros” note-se que a variação aqui é de grau e não de substância.
` “A mesma qualidade no mesmo objeto pode ser as vezes variável quanto ao grau. Por
exemplo, um corpo, no caso de ser branco, é qualificado de mais branco precisamente
agora do que o era ou, no caso de quente, é qualificado de mais ou menos quente. Uma
substância, porém, enquanto substância, não é mais ou menos do que em si mesma. Um
homem não é mais homem [agora] do que o foi em algum momento do passado, e isto
vale para todas as demais substâncias. Por conseguinte, a substância não pode apresen-
tar graus” (Cat. V 4a 1, grifo nosso).
IMPORTANTE
Considerando-se a substância individual – entendendo-se por “essência” o suporte que faz
3 com que uma coisa seja aquilo que ela é –, a essência é um suporte aos predicados, como
aquilo que subjaz aos predicados. Os “acidentes” são as características mutáveis da coisa. São
acidentes porque não afetam a essência da coisa, não afetam aquilo que é essencial à coisa.
É importante reter que a contrariedade não pode se dar ao mesmo tempo e na mesma
relação. Um homem pode estar sadio hoje e doente amanhã, mas não pode estar
doente e sadio ao mesmo tempo. João pode estar à direita de Pedro hoje e poderá
estar à esquerda de Pedro amanhã, mas não pode estar ao mesmo tempo à direita e
à esquerda de Pedro. Da mesma forma, quando se enuncia a palavra “triângulo”, está
se fazendo referência a uma figura geométrica de três lados. Essa figura não pode
ter e não-ter três lados. Note-se que o princípio da não contradição é essencial para
que o princípio da identidade possa ser operado, possa ser aplicado e funcionar. Pelo
princípio da não contradição, é possível inferir que uma coisa ou uma ideia que
são negadas nelas mesmas não podem nem existir e nem ser pensadas. Não é
possível pensar um gato que tenha o corpo todo amarelo e não tenha o corpo todo
amarelo ao mesmo tempo. Esse suposto gato não pode ser afirmado e nenhum co-
nhecimento pode ser realizado em relação a ele.
92
de ser princípio ou causa imanente da multiplicidade, ou seja, da variedade de coisas
no mundo, da mudança (aquela mesma destacada por Heráclito) e da unidade, assim
como da inteligibilidade. A substância pode ser dita em quatro sentidos: como princípio
ou arqué; como causa ou aítia; como substrato ou hypokeímenon e como essência ou 3
tò ti en eînai. Conhecer esses sentidos ajuda a compreender a ontologia aristotélica, por
isso, eles serão descritos a seguir (CHAUI, 2002).
A substância também pode ser dita como causa ou aítia. E é fundamental compreender
os quatro sentidos de causa para Aristóteles. Antes, é necessário destacar que cau-
sa deve ser compreendida como aquilo que responde por alguma coisa ou que
responde pela existência de algo ou, ainda, que é responsável por algo. São os
seguintes os quatro sentidos de causa para Aristóteles:
` Causa material: diz-se da causa que responde pela matéria de que a coisa é feita;
` Causa formal: diz-se da causa que responde pela forma ou essência de uma coisa;
` Causa eficiente ou motriz: diz-se da causa que responde pela presença de determinada
forma dentro de uma matéria ou, ainda, pela determinação de uma matéria por uma essência;
` Causa final: diz-se da causa de uma coisa ser tal como ela é; da causa que diz o porquê
e para qual finalidade essa coisa passa a existir.
Dado que a substância também pode ser dita como causa, verifica-se que ela é causa
das coisas ou dos entes ao lhes conferir forma, matéria, finalidade e inscrição.
tempo (pois ela antecede as demais propriedades, sem ela não haveria nem inerên-
cia e nem predicação) e é a primeira na ordem do conhecimento, pois o que há para
conhecer se encontra presente na substância.
3
No sentido de “essência” (ou tò ti en eînai), a substância pode ser entendida como “aquilo
que a coisa é”. A essência responde por aquilo que a coisa é e se refere à individualidade e
à unidade numérica naquilo que a coisa é em si e por si mesma. No sentido de “essência”,
a substância é a unidade inteligível das propriedades que determinam aquilo que a coisa
é. Dessa forma, a substância é a essência que individualiza um ser concreto.
Aristóteles, ao formular que o que existe são as substâncias individuais, está, ao mes-
mo tempo, estabelecendo o objeto da metafísica, que é o conhecimento da substância
como princípio, causa, substrato e essência. A substância é afirmada diante das coisas
singulares. Assim, diante de Pedro (um indivíduo concreto com uma biografia), tem-se
uma substância primária que pode ser conhecida. Os indivíduos são formados pela ma-
téria (hyle) e pela forma (eidos). A matéria é o princípio individuador, enquanto a for-
ma é a maneira pela qual, em cada indivíduo, a matéria irá se organizar. É isso que
garante que, em cada espécie, todos os indivíduos tenham a mesma forma, embora a
matéria em cada um deles seja diferente, ao menos do ponto de vista quantitativo. Vide
de exemplo Pedro, um indivíduo com a sua biografia. Ele é uma substância primária, da
qual se pode abstrair, por exemplo, a substância secundária: ser humano. Assim, todos
os homens têm a mesma forma de Pedro, mas diferem do ponto de vista da matéria que
se individua diferentemente em cada homem existente.
IMPORTANTE
O hilemorfismo aristotélico é uma doutrina na qual a forma e a matéria são os constituintes
metafísicos da substância individual. A forma governa a matéria e é imanente às coisas, não
podendo, por isso mesmo, existir fora delas. É pela forma que a matéria pode ser isto ou aquilo.
Nesse sentido, a substância é um sínolo, ou seja, a união da matéria com a forma. A matéria se
traduz de hylé, que popularmente se referia à floresta, que fornecia madeira para a construção
de navios. Vem daí o sentido de “material apropriado para” (FARIA, 1997, p. 71).
É possível depreender dessa relação que Aristóteles estabelece entre matéria e forma,
que não é necessário recorrer a nenhuma instância fora da realidade para conhecê-la.
O que há para ser conhecido já está posto no indivíduo, na realidade. Cada indivíduo
traz em si a substância que é comum a todos os indivíduos de seu gênero e es-
pécie, e é a forma que o individua que o torna uma unidade. Sobretudo, essa subs-
tância comum não é pensada anteriormente ao indivíduo, ao contrário, ela é abstraída
dele. É o indivíduo que permite que a ideia de substância seja pensada. Nesse sentido,
ideias gerais, como gênero e espécie, resultam da abstração realizada a partir de cada
um dos seres concretos.
EXEMPLO
Pedro existe e, a partir dele, pode-se abstrair que ele é humano, é mamífero, é primata, ou seja,
todas as suas predicações são abstraídas da sua existência.
94
Como, então, a filosofia de Aristóteles conversa com a de Platão, que, por sua vez, con-
versava com a de Heráclito e a de Parmênides? Aristóteles recusa a existência de um
mundo superior ao mundo sensível e este que seria o fundamento causal e explicaria
esse mesmo mundo sensível. Para Aristóteles, o que há para ser conhecido está no 3
mundo sensível (o único mundo existente), ele nega as formas puras e inteligíveis do
mundo inteligível de seu mestre Platão. Aristóteles afirma, sim, que é o intelecto huma-
no que separa a forma da matéria pelo exercício de abstração, considerando-se a forma
de cada um dos objetos concretos.
EXEMPLO
Essa rosa existe, mas a ideia de rosa antecedente à rosa, não existe. A ideia de rosa, que faz
com que uma pessoa reconheça uma rosa diante dela, foi adquirida por abstração, a partir da
realidade concreta.
Fonte: 123rf.com
Mais uma vez, o afresco de Rafael Sanzio ajuda a compreender a filosofia. Repare
nos dois personagens centrais da pintura, que dividem a cena ao meio. À esquerda,
está Platão, apontando para o céu das ideias perfeitas, o único fundamento de toda
3 a realidade e para onde o pensamento deve se dirigir se quiser conhecer a verdade.
À direita, está Aristóteles. Sua mão aponta para baixo, para o mundo concreto, para
a realidade onde se encontra tudo o que há para ser conhecido e para onde os olhos
daqueles que querem conhecer a verdade devem estar voltados. Cada um deles car-
rega consigo seus próprios livros, suas teorias. A despeito das diferenças, discutem e
realizam o embate dialético.
Aristóteles definiu a sua filosofia primeira como o estudo do ser das coisas, em
grego “ousia”. Na língua portuguesa, ousia é traduzida por “essência”, uma vez que re-
cebe a tradução da palavra latina “essentia”. Assim, a “filosofia primeira” se traduz, em
seu sentido, como conhecimento da essência do ser real, daquilo que é em si mesmo, a
despeito das mudanças que as aparências sofrem. Eis porque o século XVII irá utilizar
a palavra “ontologia” para se referir à “filosofia primeira” de Aristóteles. Com o passar
do tempo, a palavra “ontologia” é incorporada ao vocabulário da filosofia (em especial
de seus intérpretes) para designar o estudo do ser.
IMPORTANTE
Ontologia não se restringe aos estudos relativos à filosofia aristotélica, ela perpassa a todos os
filósofos e suas filosofias.
96
anteriores aos estudos da “filosofia primeira”, mas não é essa disposição espacial das
obras que originará a palavra metafísica, como entendem alguns.
Embora a palavra “ontologia” seja recorrente nos estudos filosóficos, a tradição filosó- 3
fica irá consagrar a palavra “metafísica” para designar o estudo do ser. A razão é a de
que metafísica significa o que vem antes, ou ainda, o estudo de algo que se encontra
acima e que é condição daquilo que vem depois. Em outras palavras, sem a metafísica,
a compreensão da física fica incompleta, pois o que dá condição à existência da física
(do mundo físico que está diante dos olhos de todos) é a metafísica. É o estudo do que
está além da física o que permite compreender os seus fundamentos, que permite
compreender aquilo que dá condição de o mundo físico ser o que é e operar como
opera. Em última instância, é a metafísica que permite que os homens compreendam o
sentido do mundo em que habitam.
Segundo Aristóteles (2010), a forma é imutável, isso porque tanto os quatro elementos
quanto os gêneros, as espécies e a essência do indivíduo não se alteram e nem desa-
parecem. No entanto, a realidade mostra que as formas mudam, transformam-se diante
dos olhos dos homens. Por exemplo: a semente se transforma em árvore; a lagarta em
borboleta; o mármore em estátua; a madeira em mesa. O que explica, então, a mu-
dança, o devir? Essa mesma mudança e devir que ocuparam Heráclito? Segundo Aris-
tóteles, a própria matéria tem em sua natureza a capacidade de alterar-se e mudar de
forma. Isso implica uma afirmação forte: o princípio da mudança é a matéria. Assumir
isso, ou seja, fazer essa assunção, explica porque o composto matéria e forma muda,
transforma-se, é submisso ao devir, pois, uma vez que a matéria traz em si o princípio
da mudança, o par matéria e forma – a matéria informada – sofre mudança também.
Entre as mudanças que se desvelam diante dos homens no mundo, dois tipos dife-
rentes se apresentam: a mudança radical (ou por transformação) e a mudança como
desenvolvimento (ou desdobramento). Diz-se que há uma mudança radical quando
3 uma matéria ganha uma forma completamente diferente da primeira; revela-se que
há uma mudança como desenvolvimento quando a forma já contida em uma ma-
téria se modifica, mas o faz guardando traços da aparência anterior. Dadas essas
explicações e já assumindo que é a matéria que traz em sua natureza o princípio
da mudança, resta uma pergunta a ser feita: qual a razão da mudança dos seres?
Sendo a causa eficiente o instrumento para a mudança, ela não é, no entanto, a causa
que responde mais profundamente pelas mudanças. Para explicar por que a causa
eficiente opera fazendo a matéria mudar de forma, Aristóteles precisou assumir um
novo princípio: o de que todo ser realiza mudanças e movimentos por que deseja
a perfeição. O que move os seres às mudanças é, então, o desejo de alcançar a
perfeição, é o desejo de realização de suas essências, é o desejo de realizar a sua
identidade plenamente consigo mesmo. Dessa forma, para que a causa eficiente ope-
re, há a necessidade de que a causa final também opere, concorrendo para que as
mudanças se concretizem. Veja: quando Aristóteles assume que os seres se movem
porque desejam a perfeição, ele está assumindo, simultaneamente, que é a causa
final (ou seja, a causa que responde pela finalidade pela qual uma coisa vem a ser no
mundo) que está agindo como uma precondição para a operação da causa eficiente.
98
Figura 04. Causas e mudanças
CAUSAS
3
Estabelecidos esses princípios, é preciso reconhecer um outro papel que a matéria de-
sempenha em relação ao movimento. Trata-se de uma espécie de movimento interno
à matéria, pois ela também deseja a perfeição, e a sua perfeição começa a se realizar
quando ela é informada, quando ela ganha uma forma. Porém, mesmo a matéria infor-
mada está inacabada, está desejando a perfeição imóvel da forma e tem por finalidade
o movimento ou a mudança. Assim, a matéria que é, por natureza, imperfeita, busca,
por meio das mudanças, a perfeição. Trata-se da busca do inacabado pelo acabamen-
to, já que o fim é o término do movimento, ou seja, a perfeição.
Considerando-se que existe uma perfeição imutável que deverá ser perseguida e alcan-
çada, será pela forma que o ser saberá qual é a sua perfeição imutável, uma vez que é
a causa formal que determina qual é a perfeição ou o acabamento da essência do ser.
Desse modo, a causa final expressa a causa formal como finalidade de um ser (ou de
uma coisa) e orienta as operações da causa eficiente. É pela causa final que uma coisa
se transforma e é, por isso, que ela é, na filosofia aristotélica, a causa primeira, ela é a
razão de toda a mudança.
Como se pode perceber, as quatro causas possuem ações conjuntas na filosofia aristo-
télica, isto é, a ação de uma está intimamente ligada à ação de outra. A fim de explicar
como se dão essas ações integradas, Aristóteles recorre aos seus conceitos de ato
(enérgeia) e o de potência (dýnamis). A palavra “ato” se refere à forma de um ser na
atualidade, à enérgeia, é a essência de um ser tal como ele é no momento atual, na
atualidade. A palavra “potência” ou “potencialidade” diz respeito à matéria de um ser e à
capacidade que ele tem para realizar o seu vir a ser no tempo. A matéria é móvel, uma
vez que ela é potência (dýnamis). A causa eficiente move o ser móvel e se guia pela
enteléquia. Entenda-se por “enteléquia”, a “forma acabada”.
EXEMPLO
A semente de um abacateiro é um abacateiro em potência. Quando essa semente se transfor-
3 ma em abacateiro, diz-se que aquela potência foi atualizada no tempo. Com o passar do tempo,
esse abacateiro também irá atualizar a sua potência: ora ele será jovem, ora dará frutos, ora
será uma árvore envelhecida. Cada uma dessas atualizações, ou seja, cada uma dessas dife-
rentes formas assumidas mostrará a potência contida em cada uma delas.
Quanto à forma, cabe ainda dizer que cada ser aparece no mundo exibindo a sua forma
atual e, também, resguardando a forma completa potencialmente contida em sua maté-
ria. Logo, cada ser exibe a sua forma atual e resguarda a forma que poderá ou deverá
exibir ao longo do tempo.
Note-se que a atualização da forma retrata uma atualização da matéria, mostrando, mais
uma vez, uma unidade entre matéria e forma. Quem realiza (note-se: realizar no sentido
de tornar possível, propiciar) essa unidade é a causa eficiente. É ela que é responsável
por atualizar a forma que está potencialmente contida na matéria. Dessa maneira, a cau-
sa eficiente é responsável por fazer um ser passar do estado menos perfeito ao estado
mais perfeito. Isso não equivale a dizer que o ser muda de forma e sim que o ser passa de
um estado menos perfeito a um mais perfeito, em direção ao seu estado acabado. Nesse
trânsito, a matéria assume um comportamento passivo, ela é um o suporte que recebe as
formas atual e potencial. Ainda nesse trânsito, ela é guiada pela causa final, a fim de atua-
lizar as potencialidades nela contidas. Cabe à causa eficiente operar essas atualizações.
A partir do que foi exposto, é possível depreender que, para a matéria, a causa final é o
movimento, isso porque é o movimento que cumpre a função de atualizar uma potência,
e é em função dessa atualização que a matéria ou se move ou é movida (ou seja, realiza
um movimento) pela causa eficiente. Aqui o movimento é causa final da causa material.
Por sua vez, para o movimento, a causa final é a forma – à medida que é ela que com-
pleta o movimento e é em função dessa completude que o movimento se realiza. Em
outras palavras, o movimento se realiza em busca da forma perfeita. É, então, nesse
sentido, que a causa formal é causa final do movimento.
Como pode ser depreendido do que foi estudado até aqui, há uma íntima relação en-
tre causa formal e causa final. Essa relação se justifica pelas razões que se seguem.
A forma é o real, portanto, o atual e, ao mesmo tempo, a forma é sempre um ato. Por
sua vez, a matéria é uma potência e ela guarda em si uma virtualidade, pois está sem-
pre entregue ao devir, ao vir a ser. Cada substância tem inscrita em sua matéria uma
potencialidade, e essa inscrição é feita pela forma. Como o real é mais perfeito do que
o virtual, visto que o real está atualizado e o virtual está por vir, a forma (que é real) é
mais perfeita do que a matéria (que é virtual). Por ser a forma mais real do que a maté-
ria, ela (a forma) impulsiona a matéria para a atualização possível. Essa passagem da
virtualidade à realidade descreve o movimento do devir. Dentro desse movimento, cada
novo real contém em si virtualidades que poderão ser atualizadas (AUBENQUE, 2011).
A teoria das quatro causas aristotélicas explica e é válida tanto para o que acontece
com os seres naturais quanto para o que acontece com as ações dos homens no mun-
100
do quanto para os artefatos e artifícios produzidos pela técnica. Novamente, tome-se
como exemplo a estátua de David: o mármore é uma pedra em ato que contém, em po-
tência, a estátua, assim, o mármore é a causa material da estátua. O David (a estátua)
é, em ato, a causa formal que Michelangelo (seu escultor) ordenou à matéria; o escultor 3
é, também, a causa eficiente da estátua. Por sua vez, a função que os usuários da es-
tátua irão lhe atribuir será a sua causa final. Para alguns, por exemplo, o David é a força
artística manifestando a vida pulsante; para outros, um cálculo de engenharia perfeito;
para outros ainda, uma reverência à passagem religiosa; e ainda, a outros, uma forma
de obter lucros com a indústria turística e assim por diante.
Fonte: 123rf.com
Pelo exposto, é possível traçar o seguinte esquema, de acordo com Chaui (2002):
I. O devir, mesmo sendo virtual, é existente, racional, inteligível e cognoscível (ou seja,
pode ser conhecido);
II. O devir possui uma causa final: trata-se da atualização das potências da forma
contidas na matéria;
IV. O devir tem a função de tornar algo real, de lhe conferir realidade, nesse sentido, de realizá-lo;
3 VI. É pelo devir que algo tem atualização, ou seja, torna-se ato;
VII. A fim de atualizar as potências, o devir é dirigido pelos desejos de imobilidade e de imu-
tabilidade;
Ao que parece até aqui, Aristóteles ofereceu uma resposta à filosofia de Platão, desti-
tuindo o mundo inteligível de existência e afirmando que o quê há para ser conhecido
está no mundo sensível. Além disso, ofereceu uma resposta à filosofia de Heráclito
quanto às mudanças e ao devir. Tanto para Heráclito quanto para Aristóteles, o devir
pode ser afirmado e se concretiza na passagem de uma forma a outra, de um ato a ou-
tro ato. Entretanto, o que os difere é que, em Aristóteles, a passagem de uma forma
à outra não implica contradição, como implicava a Heráclito. Para escapar do argu-
mento da contradição, Aristóteles afirmará que a passagem se dá não de uma forma à
outra como pensava Heráclito, mas da potência ao ato.
Como a potência pertence à forma e a forma está em relação à matéria, essa passa-
gem não destrói a matéria. Antes, essa passagem concretiza a matéria. De acordo
com Aristóteles, Heráclito, Parmênides e Platão se equivocaram quando pensaram que
o núcleo do devir era a forma. Contra isso, Aristóteles afirma que o núcleo do devir é
a potência. O devir é acionado pela matéria como potencialidade de formas que se
desenvolvem ao longo do tempo. Por sua vez, a matéria informada conserva atos de
potência em seu interior. Com isso, nenhum movimento contraditório de transformação
do ser no não-ser está posto, mas, sim, está posto o devir como potencialidade.
II. Em relação ao tempo, pois uma substância individual possui em sua atualidade as pro-
priedades de sua espécie;
III. Como a potência somente pode ser atualizada pela ação de um ato, um ser em potência
apenas tem a sua potencialidade atualizada se houver a ação de um outro ser em ato.
102
Dessa última afirmação de que “potência apenas tem a sua potencialidade atualizada
se houver a ação de um outro ser em ato” é possível inferir que, para Aristóteles, haverá
a necessidade da “ação de um outro ser em ato”, atualizando a potência do outro. É
certo que, aqui, monta-se uma cadeia causal. Nas palavras de Aristóteles (Física, L VII, 3
241a 24-26; 242b 16-20):
Tudo o que está em movimento deve ser movido por algo. Logo, se ele não tem
em si mesmo a fonte do movimento, é evidente que é movido por algo diferente
de si mesmo, pois deve haver algum outro que o mova. [...] Uma vez que tudo
o que está em movimento deve ser movido por algo, assumamos o caso no
qual algo está em movimento e é movido por algo que está, ele mesmo, em
movimento e que, de novo, é movido por outro que está em movimento, e este
por um outro e assim sucessivamente. Então a série não pode continuar ao
infinito, mas deve haver um primeiro movente.
É, justamente, para evitar essa cadeia causal infinita do movimento (como na citação
anterior, como algo que está em movimento e que de novo é movido por outro [...] e
assim sucessivamente, que Aristóteles irá construir a sua teoria do Primeiro Motor.
Com o propósito de construir a tese do Primeiro Motor, Aristóteles admitirá que o mun-
do se divide em três esferas da realidade: o mundo sublunar, o mundo celeste (ou su-
pralunar) e o Primeiro Motor Imóvel (ou Primeiro Motor Divino). (i) O mundo sublunar
ou terrestre corresponde ao mundo sensível, o mundo dos seres composto de forma
e matéria e, também, dos quatro elementos: a água, fogo, terra e ar. (ii) O mundo
supralunar ou celeste é composto por seres que possuem matéria e forma etéreas
formadas pelo quinto elemento, o éter. Esse quinto elemento é leve, puro e incorruptí-
vel. (iii) Por fim, o mundo divino é a forma pura ou o ato puro.
Para que se entenda o que seja o motor perfeito é necessário, antes, compreender o sen-
tido da palavra “perfeito” quando utilizada, nesse caso, por Aristóteles. “Perfeito” é algo
que é completo em si mesmo, não experimenta nenhuma carência, que não necessita
de nada que esteja ou pertença ao outro e que não é dotado de desejo – visto que nada
lhe falta. E, já que nada lhe falta, o mesmo não se movimenta em direção a nada, ele é
imóvel, pois não tem (porque não necessita) potencialidades para se atualizar.
Entendido, então, o sentido de perfeição, pode-se admitir que o motor perfeito é deus.
Note-se que a palavra “deus” é utilizada aqui em letras minúsculas, pois não se refere a
um deus de uma religião específica. Aqui, deus é a perfeição à qual tendem, por movi-
mento, os mundos supra e sublunar. Deus é ato puro, ou seja, não se atualiza, pois já é
puro. Em sendo puro e não precisando se atualizar, não precisando se movimentar em
3 busca de sua atualização, deus é, então, imóvel. Nada o move, ele não pode ser movi-
do por nada. Caso deus pudesse ser movido por algo, haveria nele alguma potência a
ser atualizada ou ele seria passivo e necessitaria de algo exterior a ele que o movesse
e o colocasse no curso do seu movimento.
Contudo, como o movimento é próprio aos seres que carecem de algo, se deus se
movesse, ele seria carente. Se fosse carente, algo lhe estaria faltando. Logo, se deus
se movesse, ele não seria perfeito, seria incompleto. Além disso, seria necessário
admitir que deus possuiria materialidade, pois somente a matéria tem potência móvel.
Por ser ato puro, deus é desprovido de materialidade, potencialidade e passividade. No-
te-se: “ser desprovido de“ não significa uma falta, pois a deus nada falta. Antes, significa
a ausência de necessidade, pois deus é completo, é perfeito.
Télos = deus
104
Uma vez que o movimento tenha alcançado a perfeição ou a felicidade ou a imobilidade, por
exemplo, torna-se possível dizer que ele alcançou o seu télos – e é, nesse sentido, que “télos”
permite uma avaliação, ou seja, permite avaliar se o movimento alcançou ou não o seu télos.
3
Dada essas compreensões acerca de deus e de télos, pode-se afirmar, segundo Aristóte-
les, que deus é o télos do mundo, atuando como a causa final de tudo o que há no
mundo, pois reside nele (em deus) a finalidade de todos os seres existentes. É deus que,
à distância, move o mundo. Apontar isso não significa que deus tenha uma espécie de
alavanca motora ou qualquer engrenagem que entre em contato com os seres e que os
ponha em movimento. Se deus tivesse essa engrenagem de contato entre ele e os seres
do mundo, deus funcionaria como a causa eficiente que opera mantendo contato com a
matéria, assim como o escultor faz com a sua escultura e, nesse sentido, ele não é o criador
do mundo, não é o fabricador do mundo. Deus age à distância e atua como a causa final.
Em direção à causa final, todos os seres tendem, e, como foi visto, a causa final de todos
os seres é deus. Logo, todos os seres tendem a deus. Eles o fazem por necessidade
natural ou racionalmente. Essa tendência é natural nos animais que agem, que são movi-
dos pela necessidade sem deliberar sobre suas ações. E é racional nos homens que age
deliberadamente, tendendo à felicidade, que, em primeira instância, é deus.
Dado que somente deus é feliz, pois, sendo ele a perfeição, nada lhe falta, nada lhe é
objeto de desejo, ele, sim, é o desejável. Na relação entre os seres do mundo e deus,
os seres do mundo são os desejantes e, ao almejarem a felicidade, são movidos em
direção a deus, que é o desejável. Assim, os desejantes se movem para atualizar as
suas potências e, ao fazerem isso, desejam o desejável.
Em seus estudos, Chaui (2002) defende que não são os seres supra e sublunares que
se movimentam para imitar a imobilidade do Primeiro Motor, visto que, se assim fosse,
esse movimento seria em vão, dada a corrupção impressa na matéria dos seres sublu-
nares. Assim, a autora afirma que quem imita a imobilidade é o próprio movimento, é o
permanente movimento que imita a imobilidade eterna. Não são os seres que imitam a
imobilidade, mas, sim, os gêneros e as espécies, que imitam e experimentam alguma
perenidade quando se reproduzem, imitando, com isso, a imobilidade. Todo o esforço
de reprodução é, dessa forma, um esforço de permanência de algo e, dada a cor-
rupção impressa na matéria, quem consegue experimentar algum tipo de permanência
(portanto, algo próximo à imobilidade) é o processo de reprodução dos seres, que insta-
la o mesmo gênero e a mesma espécie no mundo quando se reproduzem.
Para Aristóteles, as ações têm por fim um bem, e ele assume que todas as coisas se di-
recionam ao bem. Ao mesmo tempo, admite que existem tantos fins quanto são os bens.
Isto é, admite uma reciprocidade quantitativa entre fins e bens. Em suas palavras: “[...]
se existe uma finalidade para tudo que fazemos, essa será o bem realizável mediante a
ação; e, se há mais de uma, serão os bens realizáveis através dela” (EN 1095 b).
Alguns bens são almejados como fins, tendo em vista bens ainda mais elevados do
que o primeiro bem produzido, fazendo com que este possa figurar apenas como um
instrumento para o alcance de outro bem ainda maior. Veja o exemplo citado por Aris-
tóteles acerca da selaria: a sela produzida pelo artesão é um meio para que se possa,
durante a guerra, manter o cavaleiro firme sobre o cavalo e, com isso, contribuir para
que a guerra seja vencida. Nesse sentido, são considerados bens instrumentais. Por
outro lado, existem bens que são bens neles mesmos, ou, ainda, não são meios para
outros fins. Estes são considerados bens intrínsecos, como a honra, o prazer, a vida.
106
Considerando-se que o fim das ações é o bem e que existem ações que podem ser fins
para bens ainda maiores, Aristóteles se recusa a promover uma cadeia causal infinita
entre os bens, visto que, se fossem considerados apenas os bens instrumentais, uma
cadeia causal infinita poderia ser gerada e isso implicaria uma relativização das ações 3
humanas. Pois, se todos os bens fossem considerados instrumentos para outros bens
maiores, toda e qualquer ação seria justificável e o julgamento moral estaria compro-
metido. Isso resulta que não pode haver apenas bens instrumentais, como no caso da
selaria. Com a finalidade de evitar a cadeia causal e o juízo relativista, Aristóteles con-
sidera que existe um fim último que orienta todas as ações humanas: trata-se do Sumo
Bem, e quem pode conhecê-lo é a ciência política.
Entenda-se aqui a palavra política como sendo a ação dos homens na vida públi-
ca, na vida compartilhada entre os muitos homens. E isso é diferente de se referir
à política apenas como ações realizadas pelos poucos homens que ocupam os
cargos públicos que deliberam sobre os destinos das cidades.
O Sumo Bem se caracteriza como um bem absoluto, isto é, um bem em si mesmo, que
deve ser “buscado por si mesmo” e não em vista de um outro fim. O Sumo Bem é, ainda,
incondicionado. Isso significa dizer que ele não é condicionado por nenhum outro fim e,
também, não condiciona nenhum fim, ele é por si mesmo. Nas palavras de Aristóteles:
[...] chamamos aquilo que merece ser buscado por si mesmo mais absoluto do
que aquilo que merece ser buscado com vistas em outra coisa, e aquilo que
nunca é desejável no interior de outra coisa mais absoluto do que as coisas
desejáveis tanto em si mesmas como no interesse de uma terceira; por isso
chamamos de absoluto e incondicional aquilo que é sempre desejável em si
mesmo e nunca no interior de outra coisa (EN 1097 b)
Ao assumir que há o Sumo Bem, Aristóteles também assume que todas as ações hu-
manas são realizadas tendo por finalidade alcançar a felicidade. Note-se que se trata de
mais uma assunção do filósofo. Para assumi-la, ele parte da observação da realidade,
afirmando que, do mais simples ao mais instruído dos homens, todos buscam a felici-
dade. Essa é buscada por si mesma e não como um meio para se alcançar um outro
fim. Nesse sentido, a felicidade é entendida como absoluta e autossuficiente. Além
disso, Aristóteles considera que a felicidade é a mais desejável entre todas as coisas
e que a sua busca é a finalidade da ação. Assim, os homens agem para serem felizes.
IMPORTANTE
As palavras eudaimonismo ou eudaimonia referem-se à doutrina que defende a felicidade
como sendo a finalidade da vida dos homens. Nesse sentido, a felicidade é um télos comum a
todos os seres humanos.
O Sumo Bem é estudado pela ciência política, que, por sua vez, é estudada pela ética.
O estudo da política cabe à ética porque, no mundo, há uma enorme diversidade de
opiniões. Mais do que profusas, essas opiniões são mutáveis e devem a sua origem
3 unicamente aos homens. Isso implica dizer que nem os deuses nem a natureza regram
as opiniões humanas, elas são produto e responsabilidade dos próprios homens.
Ainda quanto à virtude moral, é possível afirmar que ela é uma disposição de caráter
que permite que o homem possa apresentar comportamentos moderados. É a
prática e a manutenção dos hábitos virtuosos que conformam uma vida virtuosa, e são
as ações reiteradas que formam o caráter, pois é essa repetição de ações que forma a
disposição do caráter. Aristóteles se refere à mediania, que seria uma mediação prati-
cada pelo homem diante dos vícios tendo em vista a virtude. Assim, se diante dos vícios
o homem virtuoso encontra o caminho do meio, ou seja, a mediania, diante do Sumo
Bem ele vai ao extremo do caminho, quer dizer, ele o persegue sem economia. Em suas
palavras (EN II, 6, 1106b, 273):
[...] a virtude é, pois, uma disposição de caráter relacionada com a escolha e
consistente numa mediania, isto é, a mediania relativa a nós, a qual é determi-
nada por um princípio racional próprio do homem dotado de sabedoria prática.
É um meio termo entre dois vícios, um por excesso e outro por falta; pois que,
enquanto os vícios ou vão muito longe ou ficam aquém do que é conveniente
no tocante às ações e paixões, a virtude escolhe e encontra o meio termo.
108
E assim, no que toca à sua substância e à definição que lhe estabelece a
essência, a virtude é uma mediania; com referência ao sumo bem e ao mais
justo, é, porém, um extremo.
3
Como até aqui seriam relacionadas a felicidade e a virtude?
Elas seriam relacionadas por meio da racionalidade humana, pois é a prática dos atos
virtuosos – os quais são orientados unicamente pelo uso da razão – que faz com que
o homem alcance a felicidade. E para que se alcance a felicidade, é necessário que o
homem exercite a prudência.
O Livro III da Ética a Nicômaco (EN) se inicia com a afirmação de que a virtude se
relaciona às emoções e ações. As virtudes, por sua vez, se dão por meio dos atos vo-
luntários, não voluntários e involuntários. Sendo assim, para que se estude a virtude, é
preciso que se compreenda o que sejam esses atos, essas ações.
Note-se que é necessário estudar essas ações justamente porque elas são o lugar de
aparição das virtudes. Em Platão, as virtudes se inscrevem na alma e se refletem na
ação. Em Aristóteles é diferente. Para ele, a virtude aparece no mundo unicamente por
meio da ação do agente. Justamente porque o agente é quem principia a ação é que
ele pode, também, ser quem principia a virtude. Aqui, a palavra “principia” tem o sentido
de princípio, como aquilo que dá origem a algo. Então, o agente pode ser compreendido
como o principiador da virtude.
Para Aristóteles, o homem “valoroso” é a medida do valor da ação que ele mesmo inicia.
Ele é a medida da ação, porque é somente nele que a ação pode ser valorada, medida.
Não há nenhuma esfera transcendente que possa avaliar se a sua ação é boa ou não
ou que possa orientá-lo sobre como proceder. Seu julgamento moral se dará no curso
da ação, não há outro auxílio para orientá-lo que não seja o da prudência, o qual ele
mesmo deve lançar mão ao agir. Suas ações são guiadas pelo bem que lhe aparece e
o que ele deseja é esse bem que lhe aparece.
Essa forma de pensar implica uma reação contundente em relação a Platão, pois
não há como sair das aparências em direção às essências e, a partir delas, julgar.
Ao julgar pelas aparências, o agente pode se enganar em suas deliberações, e
isso é o que há de real, pois não há uma instância fora das aparências a qual
ele possa recorrer.
AÇÕES
3
As ações involuntárias são aquelas cujo princípio que leva à ação se encontra fora
do agente. Essas ações ocorrem por duas razões: ou o agente é impelido por uma força
externa que o obriga a agir ainda que a contragosto ou age por ignorar as circunstâncias
particulares em que a ação ocorre. Mesmo diante de uma força externa que obriga o agente
à ação, pode ser que seja dada a ele a escolha de se submeter ou não. Caso isso seja pos-
sível, de uma ação inicialmente involuntária, pode-se passar a uma ação voluntária. Quan-
do isso ocorre, caracteriza-se que está sendo dado ao agente a deliberação sobre agir
ou não, pois as circunstâncias particulares da ação já não estão sendo ignoradas por ele.
Note-se que conhecer as condições particulares em que a ação pode ou não se dar é im-
portante, pois isso implica a decisão do agente em principiar ou não um ato novo no mundo.
Por sua vez, os atos não voluntários são produzidos por ignorância em relação
às circunstâncias particulares em que a ação ocorre. Aqueles que praticam os atos
não voluntários e são capazes de sentir aflição e arrependimento diante do resultado de
suas ações, assemelham-se aos que agem de forma involuntária. No entanto, aqueles
que agiram não voluntariamente, mas que diante dos resultados de suas ações não
experimentam nem aflição e nem arrependimento, segundo Aristóteles, não podem ser
comparados aos que agem de forma involuntária.
110
A fim de poder julgar se as ações são voluntárias, involuntárias ou não voluntárias,
Aristóteles faz um mapeamento das mesmas, na tentativa de diagnosticar as possíveis
circunstâncias em que as ações podem ser desencadeadas. Ele realiza um estudo
sobre “[...] quem age, o que faz, sobre o quê ou em que age (por exemplo, com um 3
instrumento), com vistas a que (por exemplo, com vistas à salvação) e como age (por
exemplo, calma ou violentamente)” (ZINGANO, 2008, p. 62). Desse estudo, as seguin-
tes conclusões relativas ao agente e aos seus atos podem ser extraídas quando:
II. O agente ignora uma das circunstâncias particulares em que ocorrem as suas
ações: seu ato pode ser não voluntário;
III. O agente realiza o ato não voluntário e, a partir dos resultados de sua ação, experi-
menta aflições e arrependimentos: seu ato não voluntário se assemelha ao ato involuntário;
IV. O agente realiza o ato não voluntário e, a partir dos resultados de sua ação, não
experimenta aflições e arrependimentos: seu ato não voluntário não pode se assemelhar ao
ato involuntário;
A opinião também não equivale à escolha deliberada, visto que é possível opinar
sobre várias coisas, inclusive sobre as coisas eternas e as impossíveis; é possível ofe-
recer opiniões falsas ou verdadeiras, mas aquele que opina não se equivale àquele que
age. Note que, com isso, pode-se extrair uma conclusão: somente é possível deliberar
em relação àquilo que se encontra sob o domínio daquele que irá deliberar. Assim,
tanto as circunstâncias da ação precisam ser conhecidas quanto precisam ser possíveis.
O objeto das escolhas deliberadas são os meios para que se possa alcançar os fins.
Isso implica dizer que os fins não são objetos de deliberação do agente. Antes, os fins
são orientadores das ações deliberadas, e é em função deles que a ação se desenca-
deia, fazendo com que elas sejam “[...] em vista de outras coisas [...]” (ZINGANO, 2008,
p. 68), uma vez que são meios aos fins. Independentemente do valor que se almeja ao
fim da ação, o julgamento moral do agente recai sobre os meios eleitos por ele, a fim
de alcançar o seu produto final. Para a filosofia moral de Aristóteles, importa frisar que
a escolha deliberada é produto de reflexão, do uso da razão e é justamente por isso
3 que o julgamento moral recai sobre os meios eleitos pelo agente para a sua ação. Pen-
sar sobre esses meios é julgar moralmente a ação do sujeito e, também, o seu esforço
de reflexão, de uso da razão.
Embora o desejo não possa ser objeto de deliberação, ele cumpre uma função essen-
cial no processo da ação. Isso porque, após deliberar e desencadear a ação, o agente
passa a desejar que a ação seja conforme a sua deliberação. Da mesma forma, o
desejo também se encontra nos fins, pois os fins foram desejados tanto quanto é dese-
jado que as ações transcorram de acordo com a deliberação anteriormente realizada.
O desejo é, ainda, o grande motivador da ação, pois, embora a razão a prepare, é o
desejo de alcançar o fim que motiva a ação.
Figura 08. Desejo
Fonte: 123rf
112
e o vício são duas possibilidades aos agentes, isso porque, de acordo com Aristóteles
(EN 1113b 7-9):
[...] com efeito, naquelas coisas em que o agir está em nosso poder, igualmente
está o não agir, e naquelas nas quais o não está em nosso poder, também está 3
o sim, de sorte que, se está em nosso poder agir, quando é belo, também o
não agir estará em nosso poder quando é desonroso, e se o não agir, quando
é belo, está em nosso poder, também estará em nosso poder agir quando é
desonroso. Se está em nosso poder fazer as coisas belas e as desonrosas,
e, similarmente o não fazer, e se é isto sermos bons e sermos maus, está em
nosso poder, por conseguinte, sermos equitáveis e sermos maus.
O que está em jogo diante da opção entre os contrários é que o agente não possui um
modelo de prudência que possa guiá-lo em meio às suas escolhas deliberadas. Para
o valoroso cometer um ato prudente, saber pesar os contrários e se exercitar nessa
prática tende a promover, no agente, as boas disposições que o levam a agir de forma
virtuosa. Então, é o exercício das boas deliberações e das boas ações que permitem ao
agente conquistar essa boa disposição nos momentos de deliberação. Cada nova de-
liberação é um exercício que, embora possa se apoiar nas experiências anteriormente
adquiridas nas deliberações passadas, não conta com nenhuma garantia de sucesso
futuro. Tudo que o agente consegue ter como positivo para deliberar adequadamente é
a boa disposição de caráter que ele venha exercitando ao longo de sua vida. Isso, sem
esquecer que para o agente tudo é frágil e fugidio.
Toda nova deliberação tanto pode mostrar as suas virtudes quanto os seus vícios, porque ele
sempre estará diante dos contrários.
Como essas deliberações realizadas ao longo da vida do agente, que exercitam a sua
disposição de caráter, não cabe ao viciado tornar-se virtuoso por uma decisão repentina.
Visto que, da mesma forma que o agente virtuoso forma a sua boa disposição de ca-
ráter ao longo das suas boas deliberações feitas ao longo da vida, o vicioso também
forma a sua disposição de caráter. E a sua disposição é má e viciosa. Conforme Aristó-
teles (EN 1114a 9-21),
[...] o ignorar que as disposições provêm do exercitar-se nos atos particulares é
marca de alguém totalmente insensível; mais ainda, é irracional que o homem que
comete uma injustiça não pretenda ser intemperante; se alguém pratica as ações
pelas quais se tornará injusto, não ignorando, ele é voluntariamente injusto.
A alma tem a sua existência no corpo e “[...] estão corretos os que sustentam que a alma
nem é corpo, nem existe sem corpo. Não é corpo, mas pertence a um corpo e, por esta
razão, existe em um corpo, e corpo do tipo apropriado” (De Anima, 405b 31). E o que
seria esse “corpo apropriado” ao qual a alma pertence? Interpretando os seus anteces-
sores que, por exemplo, atribuíam às plantas as sensações de dor, prazer, tristeza e
alegria, Aristóteles demonstra a necessidade de atribuição de critérios para distinguir as
diferentes funções que a alma cumpre e a quais seres vivos essas funções podem ser
atribuídas. Em função disso, ele registrou sua preocupação em relação ao conceito de
alma da seguinte forma:
[a]vida é encontrada nos animais e plantas; mas, enquanto nos animais ela
se manifesta claramente, nas plantas está oculta e não é evidente. Pois, an-
tes que possamos afirmar a presença da vida nas plantas, deve-se fazer uma
longa investigação sobre se as plantas possuem uma alma e uma capacidade
distintiva para desejo, prazer e dor. Ora, Anaxágoras e Empédocles dizem que
elas são influenciadas pelo desejo; também afirmam que têm sensação, e tris-
teza, e prazer. [...] Platão declara realmente que elas sentem desejo apenas
por sua necessidade de alimento. Se admitirmos isso, segue-se que também
sentem alegria e tristeza e têm sensações. (De Anima I, 815 a 10-23).
Sendo a alma uma essência imaterial, ela não é dota- Figura 09. Corpo
da de movimento. Sendo o corpo matéria, ele é passível
Fonte: 123rf.
114
-se não apenas se alimentar, mas também se reproduzir, desenvolver-se, envelhecer e
morrer (ou seja, “perecer por si mesmo”). Atente-se que é pela reprodução, garantida
pela parte nutritiva da alma, que se torna possível “participar do eterno e do divino”,
posto que a permanente reaparição das gerações no mundo confere alguma perenida- 3
de às espécies e é nessa capacidade de ser perene que os seres vivos “participam do
divino”. Ou seja,
[a] operação que é a mais natural de todas para os seres vivos (para aqueles
seres vivos que são perfeitamente desenvolvidos, não têm defeitos e não são
de geração espontânea) é a de produzir outro ser igual a si - um animal outro
animal, uma planta outra planta, a fim de participar, na medida do possível, do
eterno e do divino: com efeito, é a isso que todos aspiram e é esse o fim pelo
qual realizam tudo o que, por natureza, realizam [...]. Como, portanto, os seres
vivos não podem participar do eterno e do divino com continuidade, pela razão
de que nenhum dos seres corruptíveis pode permanecer idêntico e numeri-
camente uno, então cada um participa enquanto lhe é possível participar, um
mais, outro menos - permanecendo não ele, mas outro, semelhante a ele; não
um de número, mas um de espécie. (De Anima B4, 415 a 26-b 7).
É possível explicar a união substancial corpo e alma, em Aristóteles, por meio da sua
teoria do hilemorfismo. Sendo a alma, a forma e o corpo a matéria, caberá à alma
efetivar o corpo e, como assevera essa mesma teoria hilemórfica, a forma se sobrepõe
à matéria e não existe separada dela, a alma se sobrepõe ao corpo e não existe separa-
da dele. É, então, apenas por um exercício da razão que alma e corpo são separáveis.
Por isso, inclusive, não é preciso investigar se é algo uno a alma e o corpo, as-
sim como tampouco a cera e a figura, e nem, em geral, a matéria de cada coisa
e aquilo de que a matéria é matéria; pois, uma vez que o uno e o ser se dizem
de mais modos, o principal deles é a efetividade (De Anima, II 1, 412 b 6-9)
Os seres vivos são dotados de movimento e, como a alma e corpo formam um compos-
to, resta explicar como se dá o movimento dos corpos. O movimento dos seres vivos
seguirá o mesmo princípio explicativo do movimento que Aristóteles forneceu ao seu
sistema filosófico quando teorizou sobre o Primeiro Motor. Para ele, a alma é o motor
do corpo, mas isso não implica que a alma, como motor, seja ela, também, movida.
Para justificar essa afirmação, enumera os dois modos pelos quais as coisas podem se
mover: ou elas se movem por elas mesmas ou por outra coisa. Aquilo que se move por
outra coisa o faz pelo fato de estar contido em alguma coisa móvel. Aristóteles ilustra
essa afirmação com o exemplo do marinheiro em seu navio: conforme o navio se des-
loca, o marinheiro se move, mas não o faz por seus próprios membros, como o fazem
todos os homens. Nesse caso, o marinheiro somente se move porque aquilo em que ele
está alojado se move e o conduz. Logo, o marinheiro se move por acidente.
No caso da alma, ela somente se move porque está alojada em um corpo movível, sen-
do que, ela mesma, é imóvel, mesmo sendo o princípio do movimento nos corpos vivos.
Sendo a alma o motor do movimento e sendo ela imóvel, afirma-se que a alma é um
motor imóvel. Diferentemente do navegante em seu navio, que se move por acidente,
a alma se move por escolha e pensamento, determinando o corpo a fazê-lo.
Para Aristóteles (2006), a alma age sobre o corpo e o corpo é o executor das funções
que a alma determina; e isso se dá de modo que haja reciprocidade nessa relação, pois
Cabe ressaltar que a alma nutritiva ou função nutritiva e reprodutiva da alma está pre-
sente em todos os animais e vegetais. Sua função é a de conservação e de reprodução
da vida, e nela não se exerce a função de conhecer.
116
Dentro do sistema teórico aristotélico, os conceitos de ato e potência contribuem à
interpretação do que seja a sensação: homens e animais possuem faculdades sensiti-
vas que não se encontram em ato, mas sim em potência, e, por isso, são capazes de
receber sensações. Ao entrar em contato com o objeto sensível, a capacidade sensitiva 3
se converte em sentir. Como em De Anima (B5, 417 a 17-20):
[t]odas as coisas padecem e são movidas por um agente que é em ato. Por
isso, de um lado é possível que padeçam por obra do semelhante e, por outro,
é possível que padeçam também por obra do dessemelhante, como se disse:
de fato, padece o dessemelhante, mas, depois de ter padecido, é semelhante.
De acordo com o exposto, é possível avaliar que a sensação não é uma mera subs-
tituição de um estado por outro ou por seu oposto. Antes, é a realização da potência
de atualizar algo. Diante do sensível, os seres que são dotados de alma sensitiva
passam da capacidade de sentir em potência à capacidade de sentir em ato, pois
a faculdade sensitiva é, em potência, aquilo que o sensível é em ato.
A sensação assimila a forma, pois os sentidos são capazes de receber as formas sensí-
veis, porém, sem a matéria. Para ilustrar essa afirmação, Aristóteles cita o exemplo da
folha de cera que é capaz de receber uma marca que lhe é impressa por meio de um anel
de ferro ou de ouro. O que a folha de cera recebe é a forma do instrumento de ferro ou de
ouro, mas não a própria matéria que é o ferro ou o ouro. Esse exemplo é para referendar
que os sentidos são afetados pelos objetos sensíveis, porém, sem incorporá-los.
Por fim, há o movimento que deriva do desejo. Como na teoria que explica o Primeiro
Motor, o desejo impulsiona o movimento em direção ao objeto desejado, que, por sua
vez, é captado pelo animal por meio das sensações.
3
4.3 ALMA INTELECTIVA
A alma intelectiva se encontra exclusivamente no homem e responde pelo conhecimen-
to intelectual. Em função disso, a alma intelectiva marca a diferença entre os homens e
os demais animais. Assim, ela assume duas funções:
Tabela 01. Alma intelectiva
Mesmo considerando-se que a alma não pode se separar do corpo, Aristóteles conside-
ra que é possível pensar o intelecto como separável (e não separado) do corpo. Isso se
dá graças às particularidades dessa faculdade intelectiva.
O termo grego nous pode ser traduzido por intelecto e faz referência à faculdade da alma,
que somente os humanos possuem. Aristóteles a considera a parte divina presente no
homem, aquela que vem de fora, que, como uma criança, é gerada e que, particularmen-
te, não é destruída na morte. Por isso, o filósofo aponta que “[...] existe a possibilidade de
que apenas o intelecto venha de fora e somente ele seja divino, pois a atividade física não
partilha da atividade da razão” (Da Geração dos Animais, II 3, 736b 27-29).
É nesse ponto que a teoria aristotélica parece abandonar o domínio natural e descritivo
das funções da alma e assume um viés metafísico. Esse ponto tem sido objeto de
discussões e pesquisas acadêmicas dado o embaraço que essa afirmação gera se
comparada à afirmação realizada no De anima de que a alma não existe sem um corpo.
118
Somada, todas essas potencialidades apresentadas até aqui (e cada qual com a sua
finalidade própria), elas assumem a função de realizar no homem a forma humana
enquanto ser racional. São justamente as funções vitais de geração e de corrupção
que estabelecem tanto a continuidade quanto a hierarquia dos seres vivos. Hie- 3
rarquia porque, em cada grau, essas funções se especializam e se realizam de modo
cada vez mais perfeito e completo.
Como a alma é enteléquia do corpo e o corpo o seu órganon, ambos são inseparáveis.
No entanto, o estudo da alma racional (ou intelecto, ou nous) pode ser feito separadamente,
uma vez que, como visto anteriormente, a alma pode ser concebida como separável do
corpo. O pensamento é um ato do intelecto que se atualiza no próprio pensamento, ou seja,
toda vez que o homem pensa, o ato de pensar está se realizando, está se atualizando.
Da mesma forma que a sensação, o intelecto recebe a forma do objeto, mas não recebe
a sua matéria. Em relação às coisas, o intelecto faz a apreensão da forma intelectual delas,
isto é, apreende os seus significados, seus conceitos, mas jamais apreende as suas mate-
rialidades. Nesse sentido, conhecer é o mesmo que captar a forma atual da coisa que está
sendo conhecida. É porque as coisas se dão a conhecer que o intelecto pode conhecê-las.
Em outras palavras, o pensamento é o ato comum que se dá entre o intelecto e o inteligí-
vel, da mesma forma como a sensação é o ato que é comum aos sentidos e ao sensível.
Embora possam ser apontadas semelhanças entre o intelecto e a sensação, existem sig-
nificativas diferenças entre eles. Os órgãos dos sentidos não sobrevivem sem o corpo e
as sensações podem se tornar mais fracas com a velhice ou mesmo podem desaparecer
em função de alguma doença. Diferentemente disso, o intelecto pode perdurar sem o cor-
po e nada que aconteça no corpo pode afetar a função intelectual. Isso é possível porque,
como afirma Aristóteles (2005), raciocinar, odiar e lembrar são afecções do sujeito que
possui intelecto, mas não o são do próprio intelecto. Com o desaparecimento do sujei-
to, essas afecções podem desaparecer, mas o intelecto não desaparece. Isso acontece
porque o intelecto é uma atividade pura, realizável sem a intervenção de qualquer função
corporal (diferentemente, portanto, da sensação que depende de uma afecção externa,
por exemplo, a incidência de luz sobre os olhos, o som sobre os ouvidos etc.).
Essa assunção de Aristóteles acarreta-lhe um novo embaraço, pois a sua teoria admite
que todo o conhecimento começa na sensação e dela depende para se estabelecer.
Vários intérpretes da filosofia aristotélica têm fornecido respostas a esses dois em-
baraços aqui citados. Porém, cabe realçar que fazer referência a tais embaraços não
aponta para nenhuma falha ou fracasso do sistema filosófico aristotélico. Antes, aponta
para a grandeza e consistência de sua filosofia, pois ainda que nem todas as respostas
possam ser satisfatórias a ponto de desfazer os possíveis conflitos internos do seu sis-
tema, sempre há algo novo a ser pensado a partir de seus escritos, que permanecem
mostrando o quanto a sua filosofia é estável e objeto de disputa entre os estudiosos.
CONCLUSÃO
A teoria das quatro causas, os conceitos de ato e de potência e a teoria do movimento,
presentes no sistema filosófico aristotélico, tanto ajudam a compreender a virtude e a
moral quanto as permanentes mudanças às quais os seres do mundo estão submetidos.
Seja qual for o objeto de estudos, o que é fundamental para esse discípulo de Platão é que
o que há para ser conhecido encontra-se no mundo sensível. Aliás, a expressão “mundo
sensível” somente faz sentido quando se quer demarcar a diferença da filosofia aristotélica
3 em relação à platônica. Imersos em um mundo que se move em atendimento ao desejo de
perfeição, os seres do mundo guardam em si a potência necessária, segundo as suas ne-
cessidades, para atualizarem as suas formas que, em movimento permanente engendrado
pelo concurso das quatro causas, regram a todos em direção ao Primeiro Motor.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução Le- 9. CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. São Pau-
onel Vallandro e Gerd Bornheim. In: Os Pensadores. lo: Ática, 1998.
São Paulo: Abril, 1973, p. 245-436 . 10. FARIA, Maria do Carmo Bettencourt de. O realis-
2. ARISTÓTELES. Física. Tradução Lucas Angioni. mo aristotélico. In: REZENDE, Antônio (Org.). Curso
Campinas: Ed. UNICAMP, 2009. de Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1997, p. 58-73 .
3. ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução Giovanni 11. GOMES, Pinharanda. Prefácio. In: ARISTÓTE-
Reale. São Paulo: Loyola, 2005. LES. O Órganon. Lisboa: Guimarães Editores, 1985,
4. ARISTÓTELES. De anima. Tradução Maria Cecí- p. 9-16.
lia Gomes dos Reis. São Paulo: Ed. 34, 2006. 12. HEGEL, Georg W. F. A Escola Eleática. In: SOU-
5. ARISTÓTELES. Órganon. Tradução de Edson ZA, José Cavalcante de Souza (Org.). Os pré-socrá-
Bini. Bauru: Edipro, 2010. ticos. São Paulo: Abril, 1973. Col. Os Pensadores.
p. 272-285.
6. BINI, Edson. Dados biográficos. In: ARISTÓTE-
LES. Órganon. Tradução de Edson Bini. Bauru: Edi- 13. SANTORO, Fernando. Aristóteles. In: PECO-
pro, 2010, p. 9-15. . RARO, Rosano (Org.). Os Filósofos: clássicos da
filosofia de Sócrates a Rousseau. Rio de Janeiro:
7. AUBENQUE, PIERRE. O problema do ser em Petrópolis: Vozes/Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2008, p.
Aristóteles. São Paulo: Paulus, 2011. 61-85.
8. CHAUI, Marilena. Introdução à História da Fi- 14. ZINGANO, Marco. Aristóteles: Ethica Nicoma-
losofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: chea I 13 – III 8 tratado da virtude moral. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002. v.1. Odysseus. 2008.
120
3
UNIDADE 4
INTRODUÇÃO
Nesta Unidade do componente Curricular História da Filosofia Antiga serão discutidas
as escolas filosóficas que caracterizaram o período nomeado helenístico. As transfor-
mações econômicas políticas e culturais desencadeadas pelas conquistas realizadas
por Alexandre, em seu projeto de predomínio macedônico sobre a Grécia e sobre o
Oriente, foram fundamentais para a elaboração da filosofia naquele momento histórico.
Como responder à nova realidade política que não encontrava referências no cenário
político em que Platão e Aristóteles escreveram as suas filosofias?
A filosofia helenística irá se esforçar para responder à nova realidade política, por isso
foi considerada uma filosofia que não se ocupou em sistematizar dogmas, assim como
ocorreu àquela que a antecedeu. Antes, ocupou-se em produzir respostas sobre como
se guiar na vida prática, como alcançar a felicidade em meio ao novo mundo.
Seu primeiro contato com a filosofia se deu aos 14 anos. As leituras que realizou sobre a
teoria atomista de Demócrito (460-370 a. C.) foram decisivas para que se dedicasse aos
estudos em filosofia e se tornasse adepto do atomismo. De acordo com os estudos de
Diôgenes Laêrtios (2008), estima-se que, ainda na infância, o fato de ter acompanhado a
sua mãe de casa em casa – na realização do ofício de benzedeira – tenha sido também
122
importante para que ele iniciasse os seus questionamentos Figura 17. Epicuro
sobre a religião e a relação dos homens com o sagrado.
Fonte: https://pixabay.com/pt/vectors/epicuro-
produção filosófica de Epicuro – torna-se necessário registrar 4
aqui como essas transformações ocorreram, de forma que,
posteriormente, seja possível realizar uma correlação entre
a sua filosofia e o seu tempo histórico. A descrição dessas
transformações também é importante, visto que, a partir
delas, será caracterizado um período histórico denomina-
do “helenismo”, no qual se inserem vários filósofos com as
suas respectivas escolas de pensamento, sendo que os mais
23 mar. 2021.
destacados são Epicuro, Sêneca e Sexto Empírico, e cujas
filosofias formam o objeto de estudos da Unidade 4 do Com-
ponente Curricular História da Filosofia Antiga (conferir).
Diferentemente disso, o termo “helenístico” se refere aos povos que passaram a uti-
lizar oficialmente a língua grega, a partir da dominação militar e política de Alexandre,
e esse uso se estendeu até o momento em que a Grécia passou a ser dominada por
Roma, em 146 a.C. Dessa forma, “helenismo” não se confunde com “helênico”, pois
este último designa apenas os povos gregos. O mundo helenístico se caracterizava
pela convivência de vários povos, cada qual com a sua língua materna, mas que,
ao serem governados pela Macedônia, foram submetidos à língua grega como oficial e
forma de comunicação universal.
124
Em meio a diferentes culturas religiosas próprias aos inúmeros territórios conquistados
por Alexandre, longe da democracia ateniense e vivendo uma monarquia cuja soberania
se originava na Macedônia e cada vez mais distantes da crença nos deuses mitológicos,
as regras morais vividas pelos gregos se inclinavam a atender muito mais aos interesses
individuais, à busca pelo prazer e à sobrevivência econômica do dia a dia. Esses eram
4
os interesses da vida privada que se revelavam como primordiais e isso pode ser depre-
endido de seus temas filosóficos discutidos, sendo a tranquilidade pessoal e o prazer da
quietude os mais frequentes. Diante de um mundo que parecia em ruína e desintegração
econômica e política, a filosofia apareceu como um lugar de recolhimento, capaz de
proporcionar ao homem o isolamento racional necessário para que ele pudesse exer-
cer o domínio de suas paixões e conduzir a sua vida prática com excelência.
De acordo com o seu tempo histórico de perda de autonomia política, Epicuro irá formu-
lar a sua filosofia tentando responder às exigências dessa nova forma de organização
da vida pública. Em Atenas (306 a.C.), fundou a sua escola, nomeada “Jardim”.
Especula-se que a origem do nome venha do fato de que Epicuro se reunia com os
seus discípulos em um jardim.
126
investigamos se já não tivéssemos tido um conhecimento anterior. Por exem-
plo, para podermos afirmar: ‘aquilo que está a distância é um cavalo ou um boi’,
devemos, por antecipação, ter conhecido, em alguma ocasião, a figura de um
cavalo ou de um boi. (DIÔGENES LAÊRTIOS, 2008, p. 290)
A partir do exposto acima pelo autor, é possível entender que, uma vez que um primeiro
4
contato foi realizado tanto com as coisas no mundo concreto, como com as palavras es-
critas e faladas que as designam foram absorvidas, quando os homens se encontrarem
novamente diante delas, dar-se-á a possibilidade de reconhecê-las sempre que alguém
se referir a elas. Assim, as prolepses são como a memória dos conhecimentos que
foram produzidos a partir das coisas que afetam o homem exteriormente. Note
que, aqui, a sensação cumpre um papel inicial no processo de conhecimento, pois os
conhecimentos já adquiridos somente podem se imprimir no homem porque, o primeiro
contato se dá pelas sensações.
Da mesma forma, algumas dores podem levar ao prazer e, em vista disso, devem ser
desejadas, considerando-se o fim prazeroso a ser mais tarde alcançado. Isso implica
que os sentimentos de prazer e de dor, além de levarem ao conhecimento, precisam,
eles mesmos, ser administrados pelo homem que reconhece que a escolha da dor não
é feita pela dor em si mesma, mas pelo fim que será possível alcançar por meio dela. Na
visão de Epicuro, quem tem a capacidade de administrar esses sentimentos é o filósofo,
aquele que se dedica a pensar, a fazer uso da razão, que é capaz de reconhecer que
é preciso deliberar com os próprios sentimentos em busca dos benefícios finais que
devem ser alcançados racionalmente.
opinião. Assim, a sensação de frio é evidente, a fome, o medo, o amor são evidentes e
cumprem a função de fazer o homem conhecer o que as coisas são.
É por meio de uma releitura do atomismo de Demócrito que se constrói a Física epicu-
rista, é essencial à fundação de sua compreensão material da existência, uma vez que
4 compreende que os deuses não se ocupam com a vida dos homens e sequer com as
coisas mundanas, os deuses vivem as suas vidas e elas são vidas sagradas e felizes.
Para a física de Epicuro, do nada não se pode gerar coisa alguma, por isso, o que exis-
te sempre existiu, pois se assim não fosse, algo teria que ser gerado do nada – o
que seria contraditório. Da mesma forma, também não há aniquilamento no mundo e
nas coisas, pois se houvesse seria preciso admitir que o nada estaria sendo gerado a
partir das aniquilações. Os átomos explicam, então, como os seres são gerados, pois
eles são agregações de átomos. Quando esses átomos se separam, os seres deixam
de existir, mas os átomos perduram e se recombinam, formando os novos seres. O
atomismo de Epicuro aponta, aqui, para a eternidade, para a compreensão de que algo
possa existir para sempre e esse algo é material, são os átomos.
Daí a noção de que a física epicurista é uma preparação à sua ética, pois não há outra
instância que o homem possa recorrer para deliberar sobre o certo e o errado na con-
dução da vida prática, a não ser pelo uso da razão. Ressalta-se aqui que Epicuro não
esboça uma filosofia ateia. Pelo contrário, ele admite a existência dos deuses, mas o faz
de forma racional e se contrapõe à forma que compreendia como sendo supersticiosa –
baseada no clamor por favores em troca de devoção, e a lembrança de ver a sua mãe
como benzedeira parece ter contribuído para isso.
128
Figura 03. Prazer epicurista
4
Prazer Alma Corpo
Uma vez que os prazeres estejam definidos, o homem deve se guiar para alcançá-los
pela via da moderação. Note que os prazeres são buscados não como um fim neles
mesmos, a busca do prazer se dá a fim de que o homem deixe de sentir as dores
que o corpo e a alma estão naturalmente condenados a sentir. O prazer é, então,
uma interrupção do sofrimento e não uma aquisição excessiva de coisas que promovam
prazer permanentemente.
Sabe-se que Epicuro se refere à fome e à sede como naturais, como sensações que
acometem o corpo naturalmente. Satisfazê-las é dar ao corpo o que ele necessita para
que ele pare de sentir tais faltas, para que ele deixe de experimentar uma carência, um
tipo de sofrimento. Aqui, a possibilidade de fornecer o saciamento e deixar de sentir o
sofrimento da ausência é mais simples, pois é o próprio corpo que oferece o limite da
satisfação: beber a água sacia a sede, comer sacia a fome. Por terem limites claros e
serem de imediata satisfação, somente esses prazeres devem buscados.
Epicuro também se refere às variações do prazer, e o exemplo dado foi o desejo por ali-
mentos suntuosos. Nesse caso, o corpo sente a falta de um alimento mais sofisticado,
como o vinho. Esse prazer pode ser satisfeito uma vez ou outra, ocasionalmente, mais
ele deve ser moderado, pois a razão deve submeter o corpo ao necessário e não o con-
trário – não é o corpo que deve exigir os excessos, pois quanto mais o corpo exige, mais
4
ele sente falta de algo, ou seja, mais ele sofre. De outra forma, o desejo por fortunas e
honrarias – como as coroas e as estátuas erguidas a alguém – deve ser evitado, uma
vez que é capaz de tornar o homem insaciável, visto que os seus limites não são claros,
o que pode levar o homem a desejar cada vez mais e, consequentemente, sofrer cada
vez mais pela ausência daquilo que ele ainda não tem.
O hedonismo epicurista tem uma característica peculiar: sentir prazer é evitar a dor –
seja a do corpo, seja a da alma. Dores que o homem está, por natureza, por condição
natural, destinado a sentir. Para Epicuro, uma vez que o homem tenha uma essência
material, o seu bem específico será, ele também, material, e essa materialidade é dada
pela natureza. É, então, nesse sentido que se pode dizer que a essência humana é
material, pois é o corpo, com as suas urgências materiais de fome, sede, de sexo, que
exige saciedade, que exige o bem que se traduz por prazer. Portanto, o bem é o prazer,
mas em uma moderação tal que se transforma em cessação do desejo, dado que o
desejo é falta, é carência, é sofrimento. Logo, o prazer é não sentir desejo.
Hedonismo é uma doutrina que defende o prazer como o sumo bem e, por isso, a
vida do homem tem por finalidade a busca do prazer.
Como doutrina, o hedonismo foi defendido pela primeira vez pelo sofista Aristipo de Ci-
rene. Não se tem um registro preciso de seu nascimento e morte, mas sabe-se que ele
foi contemporâneo de Sócrates. Os cirenaicos, ou seja, os nascidos em Cirene (antiga
colônia grega situada atualmente na Líbia) e adeptos da doutrina hedonista de Aristipo,
entendiam que o prazer físico era a finalidade (o télos) da vida humana. Condenavam os
excessos, mas admitiam que os prazeres do corpo eram superiores aos da alma, sendo
indispensável que as experiências dos prazeres fossem mantidas sob o controle da razão.
O hedonismo, por sua vez, entende que os prazeres naturais e necessários são os úni-
cos indispensáveis e que devem ser saciados por serem uma via para o prazer supremo
– que é o de não sentir desejo, não sentir falta de alguma coisa. Considerando-se que o
desejo é uma dor, a satisfação do desejo é a ausência da dor. Quando a dor é ausente
no corpo, tem-se que o homem atingiu a aponía, quando a dor é ausente na alma, crê-
-se que o homem atingiu a ataraxía. A conquista da aponía e da ataraxía leva o homem
ao sumo bem, que é o estado em que não se sente nenhuma dor e, portanto, em que
não existe nenhum mal.
Conhecer como alcançar o sumo bem é uma tarefa do filósofo. Porém, a prática da vida
moderada em relação aos prazeres pode ser realizada por todo e qualquer homem. E
ninguém depende dos governos das cidades para que possa alcançar a felicidade, pois
ela pode, pelos exercícios de aponía e ataraxía, ser conquistada por todos.
130
Para ainda constituir a sua ética e, com isso, estabelecer as regras de conduta na vida
prática que devem guiar todos os homens, Epicuro faz referências ao mal e à morte.
Para ele, existem males que atingem o corpo e que são plenamente suportáveis, são
considerados males leves, de curta duração, e a compreensão de que são passageiros
ajuda a aliviar a sensação de dor. Logo, o prazer poderá ser rapidamente alcançado.
4
Para as dores persistentes e fortes, há o conforto de saber que a morte as aliviará, já
que a morte é o estado de insensibilidade e não é um mal em si, posto que é cessação
da dor do corpo. Posto de outra forma, “[...] a morte nada é para nós, pois o que se
decompõe é insensível, e o que é insensível nada é para nós” (DIÔGENES LAÊRTIOS,
2008, p. 315). Os males que atingem a alma podem ser curados pela filosofia, pela
capacidade reflexiva, que é capaz de distinguir o verdadeiro do falso e atingir, assim, a
pacificação das angústias pelo uso da razão.
Epicuro teorizou que todos os homens poderiam alcançar o sumo bem fazendo uso do
seu tetraphármakon, ou seja, do seu remédio quádruplo, constituído por quatro máxi-
mas que caracterizam a sua teoria filosófica:
Figura 04. Máximas de teoria filosófica de Epicuro
O mal, seja físico, seja da alma, tem curta duração e pode ser
IV suportável a todos.
Esses quatro remédios serão necessários a todos aqueles que desejarem alcançar o
sumo bem, e são o caminho para o alcance da aponía e da ataraxía. Sobretudo, eles
são comuns a todos os homens que, a despeito da nova e conturbada vida nas cidades,
podem viver de forma feliz, de acordo com a ética hedonista epicurista.
artificum_%28serietitel%29%2C_RP-P-1907-4495.jpg.
em Atenas. O termo estoicismo tem a sua origem
4 em stoa poikilé (MARCONDES, 1997), que se tra-
duz por “pórtico pintado” e corresponde à caracte-
Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/
commons/c/cb/Portretbuste_van_Zeno_van_
rística do lugar em que os adeptos dessa escola se
Elea_Paradigmata_graphices_variorum_
encontravam e realizavam as suas discussões e
estudos. Zenão foi o fundador da escola estoica de
pensamento, mas, por não ser cidadão ateniense,
` A média escola estoica: marcada, sobretudo, pelos estudos ecléticos, que se aproxima-
vam das doutrinas platônica e aristotélica, e era representada por Panécio e Possidônio.
Desenvolve-se entre os séculos I e II a. C.
` Nova escola estoica: marcada, justamente, pelos estudos da ética, com ênfase em me-
ditação moral e representada por Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio. Situa-se na era cristã
e registra-se uma produção de obras completas e numerosas.
IMPORTANTE
A palavra “escola” é, em geral, compreendida como uma instituição criada e regrada pelo Es-
tado, com a função de educar a partir do aprendizado de disciplinas e de conteúdos específi-
cos. Diferentemente disso, a palavra “escola”, entre os antigos e os helenistas, tem um outro
sentido. Como explica Chauí (2010), para os antigos, a “escola filosófica” (em grego, hairésis)
pode ser definida como um modo de vida orientado pela escolha de uma opinião entre várias
outras, como uma doutrina que orienta a vida prática de seu fundador e de seus membros. O
lugar em que essa doutrina é discutida é uma “escola” (em grego, scholé).
132
Essas escolas eram abertas ao público, seus mestres não eram remunerados, e eram man-
tidas pelos recursos pessoais do seu fundador e por doações. A palavra scholé, literalmente,
traduz-se por “[...] repouso, lazer, ócio, ocupação do homem livre, que dispõe de lazer e ócio”
(CHAUÍ, 2010, p. 352) e guarda o sentido de lazer próprio ao homem livre, que não recebe
remuneração para exercer um ofício – nota-se que tal sentido se contrapõe à prática dos 4
sofistas, que eram pagos para ensinar as técnicas discursivas.
A doutrina estoica assume que a filosofia pode ser dividida em três campos de conheci-
mento: física, lógica e ética. E a metáfora do ser vivo é utilizada para explicar a relação en-
tre essas partes que aparecem divididas em áreas de estudos, mas que são consideradas
intimamente relacionadas. A física corresponderia à parte interna do ser vivo, aquela
que lhe confere a origem, o fundamento da existência. A lógica corresponderia à parte
externa, à forma como ele se articula no mundo e, no caso do homem, isso se dá por
meio da linguagem. Por fim, a ética corresponderia às produções desse ser vivo.
Assim, a ética aparece como o fruto, como o produto desse sistema que precisa de uma
estrutura (tal qual a física) e de um suporte (tal qual a lógica) para poder existir e se mani-
festar (como o homem que se manifesta no mundo por meio de suas ações). Os conheci-
mentos da ética fundamentam as ações práticas tanto na vida privada quanto na pública e
dizem respeito a todos os homens. Sabendo disso, Diôgenes Laêrtios (2008) aponta que
[o]s estoicos compararam a filosofia a um ser vivo, onde os ossos e os nervos
correspondem à lógica, as partes carnosas à ética e a alma à física. Ou então
compararam-na a um ovo: a casca à lógica, a parte seguinte (a clara) à ética
e a parte central (a gema) à física. Ou a comparam ainda a um campo fértil:
a cerca externa é a lógica, os frutos são a ética, e o solo ou as árvores são
a física. Ou compararam-na a uma cidade bem amuralhada e racionalmente
administrada. E nenhuma parte é separada das outras, como dizem os estoi-
cos, mas, ao contrário todas, estão estreitamente unidas entre si. (DIÔGENES
LAÊRTIOS, 2008, p. 190)
IMPORTANTE
De acordo com Chauí (2002), silogismo se origina do grego syllogismós e significa reunir,
juntar, pelo pensamento. O silogismo surge na lógica aristotélica e origina o pensamento
demonstrativo, pois fornece o método a partir do qual é possível estabelecer se uma propo-
sição é verdadeira ou falsa. Em outras palavras, é o método que permite determinar se as
premissas que desencadearam a conclusão são as suas causas.
Tão importante quanto à lógica, a física estoica permitiu conhecer o mundo e a nature-
za (physis) aos quais o homem pertence. Segundo os estoicos, a compreensão desse
mundo forneceria subsídios para que os homens pudessem se guiar na vida, pois as
ações praticadas estariam em função do uso da razão. Nota-se que os estoicos admi-
tem que a ação possa ser controlada pelo uso da razão, que elas não são totalmente
incontroláveis, daí a importância da filosofia e da reflexão sobre como agir.
134
Aqui, o lógos é o divino, é deus. Por outro lado, o lógos é também a physis, a natureza.
Isso porque
[...] o termo ‘cosmo’ tem para os estoicos uma significação tríplice: primeiro,
o próprio deus, cuja qualidade é idêntica àquela de toda a substância do
cosmo; ele é, por isso, incorruptível e incriado, autor da ordem universal,
que em períodos de tempo predeterminados absorve em si toda a substân-
4
cia do cosmo, e, por seu turno, a gera de si. Segundo, a ordem cósmica das
estrelas; terceiro, o conjunto resultante de ambas essas partes. (DIÔEGE-
NES LAÊRTIOS, 2008, p. 212)
Disso se torna possível concluir que deus é imanente a tudo o que há no mundo, inclusi-
ve é imanente à matéria, sendo o seu princípio ativo. Deus é, então, a razão universal,
é o princípio ativo de toda a matéria e de toda a natureza. Exatamente por serem
dotados de racionalidade, tal qual o homem também o é, torna-se possível ao homem
conhecer a matéria e a natureza.
Deus, para os estoicos, possui várias modalidades de potência, ou seja, de modos pos-
síveis de vir a ser que se apresentam em diversas composições da matéria que, assim
como o cosmo, são dotadas de alma, ou seja, daquele princípio ativo acima menciona-
do que anima a matéria, o cosmo e a natureza. Aos ouvidos contemporâneos, isso pode
soar estranho, pois não é comum a compreensão de que a divindade seja imanente à
matéria. No entanto, para os estoicos da escola do Pórtico, a natureza, os homens e
o cosmo possuem alma, a mesma alma que pertence a deus. Assim, tudo é dotado de
alma é, também, um princípio racional. Grosso modo, tudo é dotado de razão.
Observe que a palavra razão, aqui, significa um princípio de inteligibilidade, um princípio que
tanto justifica a existência de algo quanto torna a existência desse algo compreensível.
Ressalta-se que, embora seja assim para a natureza e o cosmo, somente o homem é capaz
de fazer uso dessa razão por meio da fala e produzir teorias a seu respeito. Uma definição
do deus estoico produzida por Diôgenes Laêrtios (2008, p. 214) pode ajudar a compreender:
Deus é um ser imortal, racional, perfeito e inteligente, feliz, insusceptível de
qualquer mal, solícito em sua providência, em relação ao cosmo e a tudo que
está no mesmo, mas não tem forma humana. É o demiurgo do universo, e,
como se fosse o pai de todas as coisas, é aquilo que penetra em toda parte,
total ou parcialmente, e recebe muitos nomes de acordo com as várias moda-
lidades de sua potência. Chama-se Dia [...] porque tudo acontece graças a ele
[...]; Zeus [...] porque é causa da vida ou porque permeia toda a vida; Atena [...]
porque a sua hegemonia se estende ao éter [...]; Hera [...] porque domina o
ar [...]; Héfaistos porque é senhor do fogo criador; Poseidon porque domina o
elemento líquido, e Dêmetra porque domina toda a terra. Os homens lhes de-
ram ainda outros nomes para salientar outras propriedades particulares suas.
Com isso, pode-se compreender que deus (como visto, o lógos) tanto confere forma aos
seres (pois “deus é aquilo que penetra em toda parte, total ou parcialmente”) quanto
os move e os dispõe racionalmente. Disso resulta, segundo Reale e Antiseri (2003), a
primeira sistematização de uma teoria monista-panteísta. Monista porque deus é
o único criador de todas as coisas e panteísta porque todo o cosmo está identificado
com deus. Com a finalidade de explicar como deus está – enquanto princípio racional
– presente em todas as coisas, os estoicos desenvolveram a tese das razões seminais.
Como o estoicismo forma um sistema em que deus perpassa a tudo o que existe, a
doutrina estoica de simpatia universal, que nasce na física, estende-se aos estudos
da ética, preconizando que a vida do sábio deverá estar em harmonia em si mesma e
com o todo. Essa harmonia é regida pelo princípio ético fundamental, que é o de viver
conforme a natureza. Esse princípio remonta à compreensão helenística de vida polí-
tica: diferentemente daquele homem platônico da pólis, que estava preocupado com a
organização da vida pública, o homem estoico está preocupado com a vida do cosmo,
pois compreendê-lo é o mesmo que compreender a si mesmo como homem.
Inteligência
Coragem Justiça
136
E qual a função dessas virtudes para a fundação da ética? A inteligência deve ser cultiva-
da para que o bem e o mal possam ser conhecidos e distinguidos um do outro; a co-
ragem deve ser, igualmente, cultivada para que seja possível distinguir o que se deve
temer e o que se deve enfrentar. Por fim, a justiça deve ser seriamente investigada, a
fim de que se possa distinguir o que pertence e é devido a cada um dos homens.
4
Por ser a ética estoica alinhada à ordem natural, ela ganha traços acentuados de
determinismo, de fatalismo. Isso porque as leis da natureza são imutáveis, são inexo-
ráveis, uma vez que é essa a caracterização das leis naturais: elas são produzidas pela
natureza e obedecem somente às suas ordens, nenhum homem é capaz de lhes causar
interferências, de mudar os seus cursos e determinações. As mesmas imutabilidade e
inexorabilidade das leis naturais irão se estender ao destino dos homens e, já que os
seus destinos assim o são, cabe aos homens a resignação diante dos acontecimentos,
pois tudo é predeterminado por uma ordem natural, que não aceita a interferência hu-
mana. No entanto, o reconhecimento dessa predeterminação não implica a inação, ou
seja, o não agir e se manter na vida aguardando os acontecimentos. Pelo contrário, é o
reconhecimento dessa predeterminação que deve fazer com que os homens guiem as
suas ações da forma mais correta possível, por meio dos preceitos éticos fundados pela
inteligência, coragem e justiça.
Por sua vez, o destino repete e espelha a racionalidade da natureza e deve ser aceito,
mesmo que não seja compreendido. Também, em acordo com a doutrina epicurista,
a doutrina estoica compreende que a felicidade (eudaimonia) equivale à tranquilidade
(ataraxía) que se caracteriza como a ausência de perturbação. A imagem grega, ence-
nada nas tragédias de um destino transcendente, ordenado por forças extramundanas,
como os deuses, por exemplo, que submetem os homens às fortunas e punições, é
afastada pelos estoicos. O destino estoico é concebido como uma realidade natural.
Aqui, o termo natural é adotado como algo que é dado pela natureza, que obedece às
leis naturais e que, por isso mesmo, não pode receber interferências do arbítrio humano.
IMPORTANTE
Por vezes, na linguagem cotidiana, usa-se a palavra “natural” como sinônimo de comum.
Como quando se diz: “Ele cresceu ouvindo a sua mãe cantando, logo, é natural que cante
também”. Nessa sentença, a palavra “natural” é sinônimo de comum, de hábito, de algo ad-
quirido de forma irrefletida. Porém, atente-se: não é nesse sentido de natural como algo co-
mum que os estoicos fazem uso dessa palavra. Para os estoicos, natural tem a força de uma
lei que não pode ser alterada pelos homens – o que é fundamental para que se compreenda
a noção estoica de destino.
O destino estoico dos homens possui uma realidade natural que está inscrita no uni-
verso inteiro e faz parte de uma ordem causal presente em tudo o que há no mundo.
Qual a implicação dessa afirmação? A de que no mundo não existe nem o acaso e nem
contingência, ou seja, os acontecimentos são necessários, uma vez que obedecem às
ordens naturais. Se fossem contingentes, poderiam ser dessa ou daquela forma, pode-
riam ser dados de uma maneira, mas também poderiam ser dados de outra. Como são
necessários, os acontecimentos não podem não ser e, para a escola estoica, a palavra
destino é tomada em seu sentido literal, expressando aquilo que é necessário.
Em grego, destino é “eimarméne”, que deriva do verbo “meíromai” cuja raiz “mer” aparece na
palavra “meros”, que se traduz por “parte”. Segundo Chauí (2010), do verbo “meíromai” tam-
bém se origina “Moirai”, que resulta em Moîras, as filhas de Anánke (a deusa da necessida-
de). Segundo Brandão (1986), as Moîras são divindades da mitologia grega que personificam
o destino individual, a parte ou parcela, o quinhão de felicidade ou desgraça que cabe a cada
4
um no mundo. Existem três Moîras: Clôto é a que fia, a fiandeira, é ela que puxa o fio da vida;
Láquesis, aquela que enrola o fio da vida e sorteia o nome de quem deve morrer; e, por fim,
Átropos, a inflexível, a que não volta atrás, sua função é a de cortar o fio da vida.
Brandão (1986) observa que a concepção de vida e de morte está ligada à função de
fiar e associada à figura da mulher, aquela que fia o destino, o qual é, simbolicamente,
fiado para todos. Assim, recorrer à origem grega da palavra “destino” e ao seu caráter de
necessidade e inexorabilidade, a partir da mitologia não compromete os estoicos com
as divindades, com as forças extramundanas. Pelo contrário, o que eles irão afirmar da
mitologia é somente a simbologia de que o destino está tramado, fiado, que recebe uma
determinação. Sobretudo, e de forma diferente da mitologia, essa determinação não se
dá fora do mundo, mas, como visto, é imanente a ele.
138
O destino também é o lógos, uma força cósmica e divina que organiza o mundo e é
capaz de dar ânimo à simpatia universal entrelaçando tudo o que tem existência. Jus-
tamente por ser cósmico e divino, tudo é racional, tudo é submetido à razão e tudo se
dá, rigorosamente, como a razão quer que seja. A razão divina é boa, não conhece e
não faz o que é mau, e, porque somente conhece o que é bom, tudo o que ela deseja e
4
executa é bom. E se algo do ponto de vista particular parece ruim, em uma visão geral,
é bom. Por exemplo, a morte de um indivíduo pode ser ruim para os seus entes queri-
dos, mas para o mundo é boa, pois contribui para conferir equilíbrio entre o número de
nascidos e de mortos.
Como os homens não são oniscientes, aquilo que lhes parece mau, pode ser bom
aos olhos de deus. Isso implica que não existe o mal na natureza. Se algum mal pode
ser apontado, ele é a própria insensatez do homem, que se rebela à lei divina e insiste
em não viver segunda a lei natural. Nas palavras de Sêneca, deve:
[...] ter a consciência de que tudo que acontece não pode deixar de acontecer,
em vez de se atrever a censurar a natureza. A melhor atitude a tomar é de não
censurar o que não podemos alterar. E conformamo-nos sem resmungar com
os desígnios da divindade que rege o curso do universo. Mau soldado é aquele
que segue seu general sempre a se queixar. Por conseguinte, aceitemos pres-
surosos e animados as suas ordens, não queiramos fugir do curso desta má-
quina deslumbrante na qual estão entretecidos todos os nossos sofrimentos.
(SÊNECA, Cartas a Lucíolo: 107, 9)*.
* Forma de leitura da referência bibliográfica: (SÊNECA, Cartas a Lucíolo: 107, 9): trata-se de
uma obra de Sêneca intitulada Cartas a Lucíolo. A citação encontra na Carta de número 107,
no parágrafo 9. Essa forma de fazer referência bibliográfica é distinta da utilizada pela ABNT
para referências bibliográficas, por tratar-se de uma padronização exigida aos textos antigos.
medo) o destino que, por sua vez, é, também, pura racionalidade. Como o destino é
o lógos, querer aquilo que quer e que é determinado pelo destino é o mesmo que querer
o lógos. Uma vida humana que deseja e aceita o lógos é uma vida em plena harmonia
com deus, enquanto que a que rejeita o que foi fiado para ela, está em desarmonia
com o lógos, vive em perturbação e vê seus esforços de rejeição fracassarem, pois, o
4
destino é implacável e submete a todos o seu querer. Ser feliz, então, é ser resignado.
Quando o homem reconhece que não pode intervir nos desígnios de destino e se con-
forma, racionalmente, a ele, consegue estabelecer diretrizes para agir adequadamente
no mundo. Aos mais desatentos, o mundo pode parecer caótico, repleto de guerras,
conflitos, desordem, sofrimento, prazeres exagerados, mas essa desordem é somente
aparente, pois o mundo é ordenado e racional. Assim, agir adequadamente no mun-
do, na vida pública e privada, implica agir segundo os preceitos racionais da na-
tureza. Aquele que assim o fizer, será virtuoso.
Para viver de acordo com a natureza, é preciso reconhecer o instinto, comum a todos os seres
vivos, que é o da preservação. Por isso, os seres vivos repelem o que é nocivo e são atraídos
ao que lhes é útil ou benéfico. Os animais, por exemplo, quando recém-nascidos, são atraídos
às tetas das suas mães; diante do predador, fogem; durante o cio, acasalam. Ao agirem as-
sim, são guiados pela natureza, buscam para si o que há de bom e se afastam do que é mau.
Como os homens são dotados de razão, seguir a natureza é o mesmo que seguir o que de-
termina a razão. Quando vivem sob esse preceito, vivem de forma virtuosa e, consequente-
mente, de forma feliz, pois a felicidade consiste na virtude, o que implica dizer que a virtude
é a própria felicidade. Por isso, Diôgenes Laêrtios (2008, p. 201) afirma que “[...] Zênon foi
o primeiro [...] a definir o bem supremo como viver de acordo com a natureza, ou seja, viver
segundo a excelência, porque a excelência é o fim para o qual a natureza nos guia”.
140
Figura 08. Virtude e vício
4
Bem Mal Indiferença
O protoceticismo
I
Corresponde à filosofia dos pré-socráticos (século VI a. C.);
Ceticismo acadêmico
Ficheiro:Pyrrho_in_Thomas_Stanley_History_of_Philosophy.jpg. Acesso
mo tempo, recusar as doutrinas anteriores,
o que implica assumir um pressuposto forte:
Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Pirro_de_%C3%89lis#/media/
142
Em um momento histórico de intensas mudanças na vida política, econômica e cultural, rico
em opiniões variadas sobre o sentido da vida pública que tanto geravam a perturbação do es-
pírito, o método cético aparece como uma forma de promoção do conforto intelectual. Mesmo
após a morte de Pirro, seu método permaneceu sendo praticado pelo dialético Enesidemo –
que se opunha ao dogmatismo platônico – e, também, pelos próprios membros da Academia,
4
Arcesilau e Carnéades.
Veja-se, pela citação acima, que Sexto Empírico faz uma divisão da filosofia em dogmá-
tica, acadêmica e cética. A filosofia dogmática corresponde àquela que formou cânones,
dogmas, que postulou parâmetros para que o conhecimento se estabelecesse, elabo-
rou verdades e seus representantes seriam, por exemplo, Aristóteles, Epicuro e os es-
toicos. Por sua vez, os acadêmicos (no sentido de que pertenciam à Academia, a escola
fundada por Platão) Clitômaco e Carnéades, consideravam-se céticos, mas, segundo
Sexto Empírico (1997), suas compreensões acerca do ceticismo não eram autênticas
como as de Pirro, visto que os acadêmicos elaboravam um ceticismo negativo ao
afirmarem que era impossível encontrar a verdade.
Repare-se que ao apontar que “é impossível encontrar a verdade”, afima-se uma ver-
dade e se estabelece uma conclusão, ainda que se trate de uma afirmação negativa.
Sexto Empírico (1997) ressalta que aquilo que faz os céticos autênticos, aqueles que
seguem a tradição de Pirro, faz a skepsis, ou seja, a busca. E o que eles buscam? Bus-
cam conhecer, e, como estão em busca da verdade e não a encontram, suspendem o
juízo, fazem a époké. Assim, os céticos demonstram que não há nenhuma base sólida
em que se possa constituir um conhecimento seguro e confiável a partir dela.
Dessa forma, pode-se afirmar que Pirro e os pirrônicos eram céticos, visto que eram
4
inquiridores, examinadores meticulosos, e, também, zetéticos, pois buscavam conhecer
e examinar. Posto de outra forma,
[c]hamam-se zetéticos os que buscam sempre e sobretudo a verdade, cé-
ticos os que indagam e nunca chegam a uma conclusão; os eféticos têm
esse nome por causa do estado mental subsequente à sua indagação, ou
seja, a suspensão do juízo; finalmente, os aporéticos recebem tal nome por-
que não somente eles, mas os próprios filósofos dogmáticos, estão frequen-
temente perplexos. Os pirrônicos tiram obviamente o seu nome de Pirro.
(DIÔGENES LAÊRTIOS, 2008, p. 270)
I. Zétesis (investigação)
144
Note-se que a époké não implica ausência de reflexão, já que, diante de alguma
verdade ou evidência supostamente obtida pela razão, o cético, por deliberação de
sua vontade, evoca a ideia contrária à apresentada anteriormente, com o objetivo de
constatar que ambas se equivalem e que nenhuma é mais merecedora de crédito
do que a outra. E isso é uma reflexão. Sendo assim, cabe somente a suspensão
4
do juízo, pois ela que impede que uma opinião prevaleça em relação à outra, e que,
portanto, se cristalize como verdade.
Diante desse impedimento, a atitude cética inclui a indiferença, dado que, seja essa ou
aquela opinião, ambas são equivalentes e não se deve decidir por nenhuma, daí a adia-
foria. A aphasia deve ser compreendida, por sua vez, como o silêncio característico da
suspensão de juízo (afirmativo ou negativo). Calar-se é uma forma de recusa à ade-
são das teses contrárias, é uma forma de se tornar afásico, demonstrando que não é
possível conferir assentimento às teorias que são, em suas origens, equivalentes, pois
ambas provêm do princípio de que, para a razão, é suficiente conhecer, pois, segundo
os céticos, não é possível afirmar.
Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Timon_of_Phlius#/
da não se havia alcançado a verdade, como queria
media/File:Timon_in_Thomas_Stanley_History_of_
Platão, e que era impossível alcançá-la. A dialéti-
ca, antes utilizada pela Academia como forma de
alcance da verdade, passa a ser defendida como
IMPORTANTE
Tropos ou modos que justificam a suspensão do juízo
04. As circunstâncias;
06. As misturas;
10. A relação.
Observe que os cinco primeiros modos fazem referência ao sujeito, enquanto os quatro pos-
teriores referem-se ao objeto. E, por sua vez, o décimo modo (a relação) refere-se tanto ao
sujeito como ao objeto do conhecimento. Assim, a listagem dos modos pretende referendar
as afirmações de Enesidemo de que os objetos podem assumir aparências variadas – seja
em função do estado e da natureza do sujeito que os conhece ou em conformidade com as
circunstâncias e as situações pelas quais os objetos são conhecidos. Consequentemente, é
possível afirmar somente como o objeto aparece ao sujeito nessa ou naquela circunstância e
situação, contudo, nada se pode afirmar acerca da natureza do objeto em si mesmo.
146
Dessa forma, os céticos não negam as aparências das coisas, mas negam que se possa
produzir algum conhecimento verdadeiro sobre as coisas. Sequer negam os fenômenos sub-
jetivos, como aqueles experimentados pelo aparato sensorial, ou seja, a audição, olfato, pa-
ladar, audição e tato. O que se recusam a fazer é afirmar se as aparências dos objetos
correspondem às qualidades que, efetivamente, são inerentes ao próprio objeto. Certa-
4
mente, um cético admitirá que sente a impressão do calor ao se aproximar de uma fogueira,
entretanto, suspenderá seu juízo, ou ainda, irá se abster de se pronunciar, se lhe perguntarem
se o fogo é quente em sua própria natureza. Nas palavras de Sexto Empírico (1997, p. 5):
[o]s que afirmam que os céticos negam as aparências parecem não entender o
que dizemos. Não desconsideramos as impressões que a representação recebe
passivamente e que nos conduzem involuntariamente ao assentimento, ou seja,
às aparências. Toda vez que investigamos se o objeto é tal qual ele aparece,
aceitamos sua aparência. Não colocamos em questão a aparência. Mas o que
se diz da aparência; isto é diferente de colocar em questão a própria aparência.
No século III da Era Cristã, o médico grego Sexto Empírico elabora as obras Hipotiposes
pirronicas e Adversus mathematicus, que compreendem o conhecimento sistematizado
da filosofia cética e do método pirrônico. Segundo Sexto Empírico, o conhecimento dog-
mático dos estoicos, de Aristóteles e de Epicuro, afirmava ter encontrado a verdade; os
acadêmicos que concordavam com Clitômaco e Carnéades negavam os dogmáticos e
afirmavam, portanto, que não era possível encontrar a verdade. Diferentemente deles,
os céticos afirmavam que era necessário continuar investigando (EMPÍRICO, 1997).
Sexto Empírico também discute as três divisões tradicionais da filosofia, que são a
lógica, a metafísica e a ética. Sua crítica à lógica refere-se ao critério de verdade comu-
mente por ela utilizado, que, segundo ele, é parcial e subjetivo. Para que seja possível
distinguir o verdadeiro do falso é necessário que tal distinção estabeleça antes de
seu juízo um critério prévio para tal distinção. No entanto, se o que irá distinguir o
verdadeiro do falso é algo que antecede o pronunciamento do juízo, como, então, esta-
belecer que o critério eleito é, ele mesmo, verdadeiro ou falso? Essa eleição do critério
prévio gera um ciclo vicioso, o que impossibilita a própria lógica como ciência confiável.
Quanto à ética, Sexto Empírico dirige uma crítica à sua dupla finalidade – que é a de dis-
tinguir o bem do mal para que se possa ensinar aos homens como devem se comportar
a fim de encontrarem a felicidade. Para ele, esse ensinamento seria impossível, visto que
as opiniões sobre o bem e o mal são relativas – não são objeto de fácil concordância nem
entre os homens comuns e nem entre os filósofos. E, ainda que fosse possível o estabele-
cimento do que seja o bem e o mal, nem assim os homens conseguiriam alcançar a felici-
dade, pois estariam sofrendo as perturbações na tentativa de separar as coisas boas das
más. O que fazer, então? Para os céticos, é preciso suspender o juízo e aderir à mo-
ral e aos costumes vigentes, a fim de que se possa, com isso, alcançar a ataraxía.
Sexto Empírico também se dedicou a responder a uma crítica clássica que o ceticismo
recebia: se os céticos afirmam que nenhum juízo confiável possa ser expresso sobre
qualquer coisa que seja, como é possível que os céticos afirmem a ataraxía? Ou seja,
como é possível afirmar que a ataraxía possa ser atingida, uma vez que os próprios
céticos defendem que nada pode ser afirmado? Pois se a ataraxía pode ser afirmada,
4
então o princípio cético de que não pode ser afirmado está sendo negado. Em outras
palavras, “[...] quem não determina algo sobre os bens ou males de acordo com a na-
tureza, nem foge nem persegue algo intensamente, por isso está sem perturbações”
(EMPÍRICO, 2018, p. 19). Para responder, Sexto Empírico (1993) lança mão à imagem
do pintor Apeles, que tentou reproduzir o suor (escuma) do cavalo em sua pintura. Ao
perceber que não conseguia fazê-lo, irrita-se e joga a sua esponja sobre a tela. O cho-
que entre a esponja e a tela cria o efeito de suor desejado pelo pintor, o que significa
dizer que ele alcançou o que desejava por acaso. De mesmo modo, os céticos também
alcançam a serenidade de espírito analisando os fenômenos e fazendo as suas con-
siderações teóricas, e, ao final dessas avaliações, suspendem seus juízos e atingem,
como que espontaneamente, a serenidade de espírito.
SAIBA MAIS
A revista O que nos faz pensar, do Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), publicou, em 1997, um número especial dedicado ao
ceticismo incluindo a tradução do professor Danilo Marcondes da obra Hipotipose Pirrônica.
Esse número especial – assim como os demais números da revista – encontra-se disponível
em: http://oquenosfazpensar.fil.puc-rio.br/index.php/oqnfp. Acesso em: 25 mar. 2021.
Os céticos entenderam que a ataraxía não é um fim em si mesmo, por isso que a espon-
taneidade com a qual o pintor Apeles conseguiu o seu objetivo pode ser utilizada como
exemplo disso. A ataraxía é uma consequência obtida espontaneamente, a partir da
atividade prática do ceticismo de suspender o juízo diante das questões indecidíveis,
que levam à perturbação do espírito diante das opiniões conflituosas. Assim, o ceticis-
mo assume caráter terapêutico, pois serve, ao mesmo tempo, de remédio contra o
dogmatismo platônico e contra as perturbações originadas pela filosofia.
148
Uma das formas de se abordar o que seja a filosofia é analisar o significado da pala-
vra. Esse recurso é uma tentativa de fazer vigorar o que foi pensado quando a palavra
se enunciou pela primeira vez – ainda que não seja uma primeira vez com cronologia
precisa, mas, ao menos, uma primeira vez em seu início de formulação e uso. Em sua
origem grega, a palavra “filosofia” se deriva das raízes gregas “philía” e “sophía”. Philía
4
se traduz por “amor” e sophía por “amigo”/”amante”. Logo, “filosofia” significa “amigo do
saber”/”amante do saber”. Esse amor guarda uma relação com a ideia de ausência, de
falta e de desejo. Por conseguinte, o filósofo é alguém que deseja o saber e esse amor
desejante representa ainda mais, pois aponta que o objeto amado lhe falta.
Fazer filosofia é, nesse sentido, uma tentativa fadada ao permanente recomeço, dado
que esse amor desejante sabe da sua condição de insatisfeito, sabe, de alguma forma,
que o objeto amado estará eternamente em falta, pois é da condição desse objeto não
se entregar completamente, assim como é da condição desse amante não se satisfazer
nunca. Junito de Souza Brandão (1986), professor de mitologia grega e latina, apresen-
ta o surgimento de Eros, deus do amor, da seguinte maneira:
Para Platão, no Banquete, pelos lábios da sacerdotisa Diotima, Eros é um de-
mônio*, quer dizer, um intermediário entre os deuses e os homens e, como o
deus do Amor está a meia distância entre uns e outros, ele preenche o vazio,
tornando-se, assim, o elo que une o Todo a si mesmo. Foi contra a tendência
generalizada de considerar Eros como um grande deus que o filósofo da Aca-
demia lhe atribuiu nova genealogia. Consoante Diotima, Eros foi concebido
da união de Póros (Expediente) e de Penía (Pobreza), no Jardim dos Deuses,
após um grande banquete, em que se celebrava o nascimento de Afrodite.
Em face desse parentesco tão díspar, Eros tem caracteres bem definidos e
significativos: sempre em busca de seu objeto, como Pobreza e “carência”,
sabe, todavia, arquitetar um plano, como Expediente, para atingir o objetivo,
“a plenitude”. Assim, longe de ser um deus todo-poderoso, Eros é uma força,
uma [...] (enérgueia), uma “energia”, perpetuamente insatisfeito e inquieto: uma
carência sempre em busca de uma plenitude. Um sujeito em busca do objeto.
(BRANDÃO, 1986, p. 187)
No caso da filosofia, esse objeto que não se entrega são as questões irrespondíveis
da própria filosofia, tais como: o que é a coragem? O que é a beleza? O que é a justiça?
O que é a morte? O que é...?. O objeto não se entrega por si só e, por isso, não se permite
uma resposta única e definitiva. Não se entrega completamente, dado que ele é vigoroso
e se mostra cada vez mais exigente, requerendo novas respostas. Por outro lado, o seu
amante, além de insaciável, é, também, vigoroso, pois quer saber sempre um pouco mais
e tem fôlego para continuar perguntando, refletindo, sistematizando respostas, teorias e
novas interrogações. Tem fôlego para ouvir o que o outro amante do mesmo objeto tem
a dizer, para pensar o que o outro pensou e para repensar o seu pensamento anterior a
partir daquilo que o seu interlocutor lhe disse e que se encontrava impensado.
IMPORTANTE
Note-se que, na frase acima: “o impensado é uma oportunidade para que o pensamento se
exercite...”, a palavra “pensamento” refere-se à atividade em si, ao exercício de pensar. Não
se refere nem a um sujeito e nem a um conjunto de sujeitos autores do que foi pensado.
CURIOSIDADE
A canção “Metamorfose ambulante”, composta por Raul Seixas, foi lançada em 1973, e sua
letra faz alusões às utopias políticas e ideológicas pregada, por volta dos anos 60 para criticar
a “mesmice” de seu tempo, censuras etc.
A história da filosofia está repleta de exemplos de contradição entre os seus corpos te-
óricos, como o caso de Aristóteles que foi discípulo de Platão e elaborou a sua filosofia
em sentido oposto àquela de seu mestre. No entanto, ao fazê-lo, recebeu de filósofos
posteriores a ele várias críticas e foi contrariado por outras teorias que contrariam Pla-
tão, Aristóteles, como também a possível crítica de Aristóteles a Platão. E se Platão e
Aristóteles são citados aqui é somente por uma questão de referências, pois a história
da filosofia é plena de exemplos como esses.
A despeito das críticas que um filósofo remete ao outro e a despeito das críticas que
os seus intérpretes continuam a lhes remeter, Platão, Aristóteles – assim como vários
outros filósofos – seguem sendo lidos no mundo inteiro, seja no interior dos cursos de
graduação e de pós-graduação em filosofia, como também nos cursos de formação
correlata, nos locais de educação não formal – como revistas não especializadas, pro-
150
gramas de televisão e de internet. Pode mesmo causar espanto que uma ciência tão
imprecisa quanto a filosofia encontre solo ao lado de tecnologias tão sofisticadas e tão
precisas como as relativas à robótica e à inteligência artificial – apenas para citar alguns
exemplos de tecnologias contemporâneas que primam pela exatidão. Questiona-se,
ainda, que, dadas as críticas aos sistemas filosóficos, por que os seus estudos continu-
4
am recebendo interessados?
Talvez a resposta possa ser dada pelo vigor que se encontra na palavra “filosofia”, que
marca a relação entre um objeto que reclama por compreensão e um sujeito que está
disposto a compreender. Esse estudante interessado em filosofia – seja ele um estu-
dante de curso formal ou não –, ao ouvir uma resposta – seja ela ouvida literalmente ou
ouvida ao soar das páginas dos livros –, suscita o vigor de fazer uma interrogação nova,
que pode não ser nova no sentido de inédita na história da humanidade – e, provavel-
mente não o é. Todavia, pode ser um pensar de novo, pensar mais uma vez, vivificar um
pensamento que está ali, ressoando nas páginas do livro. Esse estudante/ouvinte/leitor
aberto à escuta, é o animador do vigor filosófico, o animador que faz o pensamento
percorrer mais uma volta no círculo que o caracteriza.
Pensamento
E o que pode esse tipo de pensamento que parece continuamente exaustivo, sempre
com coisas a fazer, perguntas a responder, fatigado por tantas interrogações, por tantos
anseios de respostas e, provavelmente, com os cabelos em desalinho? O que ele pode
frente às doenças, às mudanças climáticas, às desigualdades sociais, à necessidade
de alimentos? O que esse tipo de pensamento pode frente às questões urgentes que
4
desafiam, inclusive, a sobrevivência da humanidade. Qual a sua contribuição? Para que
ele serve? Uma resposta possível pode ser a de que ele sirva para trazer novas interro-
gações, como: por que a serventia e a utilidade têm de ser critérios para que se julgue
o valor de uma ciência? Por que a filosofia deve ser medida pelo critério da utilidade?
Parece que, frente às questões práticas e urgentes da vida, a filosofia pode muito pouco
ou mesmo nada. No entanto, uma vida sem filosofia também parece impossível de ser
vivida. E como isso se explica?
Se uma compreensão do que seja e para que serve a filosofia se deu até aqui, como
é possível compreender uma “história da filosofia”? Como é possível supor que o ali-
nhamento de diferentes filosofias de diferentes períodos históricos possa contar uma
história? Por outra: qual história se conta quando se conta uma história da filosofia? O
que está em operação quando se opera uma história da filosofia? O que é capaz de unir
uma história à outra quando se faz um relato histórico da filosofia?
Uma história da filosofia parece supor um lugar comum, um pano de fundo, no qual as
diferentes filosofias possam ser dispostas, colocadas. Pode-se, inclusive, traçar uma
“linha do tempo”, em que os diferentes períodos históricos da filosofia apareçam discri-
minados, trazendo seus respectivos conteúdos. Mas como entender, então, esse pano
de fundo que reúne todas essas diferentes filosofias?
O que auxilia para se pensar acerca do pano de fundo é que Foucault (1987), inter-
pretando Borges, estabelece que o desafio de compreensão do conto não se dá por
se pensar em animais reais e imaginários, mas, antes, dá-se por se supor um lugar
comum que seja capaz de unir as particularidades e semelhanças desses animais.
No conto de Borges, esse lugar é a ordem alfabética: “[...] o que transgride toda a ima-
ginação, todo o pensamento possível, é simplesmente a série alfabética (a, b, c, d) que
liga a todas as outras, cada uma das categorias” (FOUCAULT, 1987, p. 6)
152
No momento em que as categorias – às quais se refere Foucault (1987) – ou as filoso-
fias, como se refere uma história da filosofia, são dispostas sobre um pano de fundo, o
que ganha relevância é o próprio pano de fundo. Mas se o pano de fundo é o que reúne
as filosofias e se cada membro dele está contido nele, ele mesmo está contido em que
lugar? Formulando de outra maneira: se cada membro possui uma natureza que se
4
adequa à natureza do pano de fundo – posto que ele é capaz de reuni-los –, qual a na-
tureza desse pano de fundo? O que torna possível a sua existência para que ele possa
acolher a existência das coisas que aparecem como “seus membros”?
Se cada filosofia reunida em uma história possui seu contexto próprio e, assim, perten-
ce a uma época histórica, onde se encontra o contexto e também a época histórica ca-
racterísticos de uma história da filosofia? Ou, ainda, se cada filosofia possui seu próprio
contexto típico de uma época, onde estão o contexto e a época histórica capazes de
reunir os demais contextos e épocas históricas e contar deles uma história?
O que forja tanto um contexto particular quanto um contexto geral é o próprio pensamen-
to, à medida que se ocupa com os eventos, os acontecimentos, que aparecem no mundo.
Ao compor esse contexto, o pensamento reúne os eventos, com suas particularidades,
em uma regularidade, em uma ordem somente possível de ser estabelecida pelo próprio
pensamento. Essa ordem se flagra no pano de fundo. É somente ali que ela está e é so-
4
mente ali que ela pode ser.
Foucault (1987, p. 7), ao ler Borges, expõe que o escritor, ao mencionar a enciclopédia chine-
sa que lista os animais em série alfabética, “[...] esquiva apenas a mais discreta, mas a mais
insistente das necessidades; subtrai o chão, o solo mudo onde os seres podem se justapor”.
Similarmente, isso pode equivaler para a história da filosofia, para o pano de fundo em que as
filosofias se justapõem. Essa equivalência pode ser pensada em dois sentidos.
Um dos sentidos possíveis é o de que essa “subtração do solo mudo” seja uma oportunidade
para que o pensamento se surpreenda e, a partir daí, ocupe-se com essa surpresa. Quer
dizer, é uma oportunidade para que o pensamento se ocupe com o que está envolvido na-
quela compreensão. Em outros termos, é uma oportunidade para que o pensamento se
ocupe com o que aparece pensado naquela compreensão. Um outro sentido possível
pode ser dado pelo reconhecimento da “subtração de solo mudo”. Se é possível reconhecer
a “existência” desse solo e, em algum momento, subtraí-lo, é porque essa capacidade de
subtração pode apontar em direção a uma outra forma de pensamento que não aquela dada
pela justaposição anterior.
Isso posto, eis aqui, então, a questão: uma história da filosofia não deve se restringir a perdu-
rar diferenças em uma linha do tempo. Ela deve, sim, reconhecer a importância da marcação
sequencial de diferenças que uma linha do tempo oferece, mas, sobretudo, discernir que essa
linha, esse pano de fundo, não apaga o valor de cada filosofia ali pendurada, que precisa ser
conhecida nela mesma e em um jogo de relações que sirva para fazer sobressair o que cada
uma tem de peculiar, de próprio, de diferente, de único, de seu. Fora dessas singularidades,
somente resta o apagamento, a diluição, que mais faz sobressair o contador da história e o
modo pelo qual a história é contada e não o evento, a singularidade.
Como, então, é possível realizar um relacionamento sadio com a história da filosofia, de tal
forma que o apagamento das diferenças entre as filosofias não ocorra em nome de uma linha
reta que se pretenda traçar? A resposta pode ser: mantendo o esforço para se fazer filosofia,
para se pensar o que há de vigoroso em cada dogma, em cada método, em cada escola;
tentando manter vivo na memória que cada pensamento é singular, tem muitas questões a
serem pensadas e, que, também há o pensamento de cada estudante/leitor/ouvinte para ser
exercitado a partir do exercício de pensamento do filósofo que se elegeu para estudo.
154
características apresentadas nas reflexões do início deste texto. Retoma-se aqui, então, mais
uma volta no caminho circular do pensamento.
Como recurso didático à história da filosofia, serão apresentados a seguir quadros comenta-
dos, na tentativa de delimitar a presença no tempo das diferentes filosofias e suas linhas de
pensamento correspondentes. Para isso, o primeiro passo é fazer uma análise do lugar em
que se registra o surgimento histórico da filosofia. Observe, no mapa, a proximidade entre
a Grécia e o Oriente, notadamente entre Mileto – uma cidade comercial em função da sua
fronteira marítima – e a Ásia Menor. Essa proximidade física permitiu as trocas comerciais,
como também o intercâmbio cultural entre gregos e egípcios, assírios, persas, caldeus e ba-
bilônicos, por exemplo. Isso, aliado à inteligência do povo grego, constituiu um solo fértil para
o surgimento da filosofia na Grécia.
Figura 12. Mapa do mundo grego
Fonte: Marcondes (1988, p. 23).
O registro dos períodos históricos da filosofia antiga pode ser delimitado da seguinte forma:
` Período pré-socrático ou cosmológico: final do século VII até o final do século V a.C.
` Período helenístico ou greco-romano: final do século III a.C. até o século VI d.C.
Escola jônica: trata-se da escola naturalista, pois se ocupou com os problemas da physis
(natureza), do cosmo. A escola Jônica foi formada pelos milésios Tales, Anaximandro e Ana-
xímenes. Repare no “Mapa do mundo grego” (Fig. 12) a região da Jônia, onde se situa a
cidade de Mileto, que dá nome à essa escola.
Também pertencendo à escola jônica, encontra-se Heráclito de Éfeso, com a sua teoria mobilis-
ta, que compreende que a realidade natural é dotada de movimento e está em fluxo perpétuo.
Repare, no “Mapa do mundo grego” (Fig. 12), a cidade de Éfeso, à qual pertenceu Heráclito.
Ainda pertencendo à escola jônica, encontra-se Xenófanes de Colofon, que irá influenciar os
pitagóricos. Note no “Mapa do mundo grego” a proximidade física entre Mileto e Colofon, o
que teria contribuindo para o intercâmbio entre os milésicos e Xenófanes.
Escolas italianas: a escola pitagórica é formada por Pitágoras e seus seguidores, que se
ocuparam, marcadamente, com a matemática. Pitágoras nasceu em Samos, a cidade italiana
que rivalizava com a cidade comercial de Mileto. Observe no “Mapa do mundo grego” (Fig.
12) a proximidade física entre essas cidades, o que contribuiu tanto para o intercâmbio co-
mercial quanto para o cultural e filosófico.
Escola atomista: formada por Leucipo de Eléia e Demócrito (de origem incerta: ou
Abdera ou Mileto).
156
Fonte: elaborada pela autora.
coincide com a última fase e desvanecimento da filosofia naturalista. Enquanto os sofistas se
preocupavam com a técnica retórica, a fim de produzir discursos convincentes, Sócrates se
preocupava em compreender a essência do homem por meio do método maiêutico e dialético.
4
Por outro lado, tem-se também as escolas de Platão – a Academia – e a de Aristóteles, o Liceu.
A Academia foi fundada por Platão em 387 a. C., no jardim do herói Akademos. Era frequentada
pelos discípulos estudiosos da filosofia platônica, incluindo, entre eles, Aristóteles. O Liceu foi
fundado em 335 a. C., por Aristóteles, e possuía um edifício e um jardim com caminho para
passeios. Passeio em grego se diz “perípatos”. Estima-se que o fato de Aristóteles estudar pas-
seando com os seus discípulos nesse jardim tenha originado a expressão “peripatética”.
Por sua vez, para descrever o período helenístico ou greco-romano, concebe-se a es-
cola epicurista, denominada Jardim, que defende que a ação ética se dá quando o homem
age, moderadamente, segundo os seus desejos e necessidades naturais. Há também a
escola estoica denominada Pórtico, defendendo que a felicidade é alcançada quando é
experimentada a ataraxía, a qual é atingida por meio do autocontrole e pela aceitação do
curso dos acontecimentos. A noção de destino (determinação) é fundamental a essa es-
cola. Tem-se ainda o ceticismo, que não se constituiu em uma escola física, mas sim em
um método de condução da vida prática, que se caracteriza pela busca da verdade e pela
quietude, pela suspensão do juízo (époké) diante da impossibilidade de seu alcance.
Após essa descrição dos períodos históricos da filosofia antiga, é possível traçar uma linha cro-
nológica e sinótica da produção filosófica desse período, mas considerando-se que a sua leitura
deva ser feita guardando-se na memória as particularidades de cada compreensão, de cada
esforço de pensamento realizado por cada um dos filósofos inseridos nessas classificações.
Figura 13. Linha cronológica e sinótica da filosofia antiga e as suas escolas
Academia e Liceu
Sócrates e os sofistas
4 Período helenístico ou greco-
romano: final do século III a.C. até o
século VI d.C.
CONCLUSÃO
Ao final da Unidade 4 do Componente Curricular História da Filosofia Antiga, foi possível
analisar o impacto que as conquistas macedônicas, iniciadas por Alexandre, teve sobre
a produção filosófica desse período, nomeado helenístico. Mais do que receber uma
filosofia dogmática, esse período histórico recebeu uma filosofia prática, cujos funda-
mentos tiveram respaldo na física e na lógica.
Para os estoicos, o princípio ético de viver segundo a natureza, segundo as leis natu-
rais, as quais são imutáveis. Essas mesmas leis se estenderam ao destino dos homens,
cabendo-lhes, portanto, a resignação diante dos acontecimentos, já que tudo o que
acontece obedece a leis naturais predeterminadas. Reconhecer isso não implica ina-
ção. Ao contrário, sabendo disso, o homem deve guiar as suas ações pela inteligência,
coragem e justiça.
O método cético se divide em etapas e tem por função levar à imperturbabilidade e à fe-
licidade, e, diante da dificuldade de julgar, deve-se suspender o juízo. Essa suspensão
de juízo cumpre a mesma função do método pirrônico: leva à ataraxía.
Foi visto que, mesmo que os diferentes períodos históricos e as suas diferentes filo-
sofias possam ser listados e descritos, nunca se pode perder o que há de singular
em cada uma das filosofias, e o que os possíveis mapeamentos no tempo não podem
158
ofuscar o que há de original na atividade de pensar de cada um dos homens que com-
puseram a história da filosofia antiga.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
4
1. BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. ponível em: http://www.oquenosfazpensar.fil.puc-rio.
Petrópolis: Vozes, 1986. v. 1. br/index.php/oqnfp/article/view/130. Acesso em: 19
2. CHAUI, Marilena. Introdução à História da Fi- dez. 2020.
losofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: 7. FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas.
Companhia das Letras, 2002. v.1. São Paulo: Martins Fontes. 1987.
3. CHAUI, Marilena. Introdução à História da Filo- 8. FUNARI, Pedro Paulo. Grécia e Roma. São Pau-
sofia: as escolas helenísticas. São Paulo: Compa- lo: Contexto, 2002.
nhia das Letras, 2010. v.2. 9. KRAUSE, Gustavo Bernardo. O nominalismo me-
4. EMPÍRICO, Sexto. Esboços Pirrônicos I, 1-30. dieval na base da fenomenologia moderna. In: MA-
Bilíngue grego/português e espelhada. Tradução LEVAL, Maria do Amparo T. (Org.). Atualizações da
de Rodrigo Pinto de Brito. Revista Sképsis, [S. l], Idade Média. Rio de Janeiro: Ágora da Ilha, 2000.
v. 1, [s. d.]. Disponível em: https://docplayer.com. p. 133-166.
br/182037365-Traducao-de-sexto-empirico-esbo- 10. LAÊRTIOS, Diôgenes. Vidas e Doutrinas dos
cos-pirronicos-i-1-30-bilingue-grego-portugues-e-es- Filósofos Ilustres. Brasília: UNB, 2008.
pelhada.html. Acesso em: 23 mar. 2021.
11. MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da
5. EMPÍRICO, Sexto e os animais: tradução es- Filosofia: Dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de
pelhada do primeiro tropo de Enesidemo (Esboços Janeiro: Zahaar, 1998.
Pirrônicos I, 36-79.1). Bilíngue grego/português e
espelhada. Tradução de Rodrigo Pinto de Brito. RÓ- 12. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da
NAI: Revista de Estudos Clássicos e Tradutórios. filosofia: Filosofia pagã antiga. São Paulo: Paulus,
Juiz de Fora, vol. 6, n. 2, p. 80-92, 2018. Disponível 2003.
em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/ronai/article/ 13. SÊNECA, Lucio Aneo. Cartas a Lucíolo. Lisboa:
view/23282. Acesso em: 23 mar. 2021. Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.
6. EMPIRICO, Sexto. Hipotiposes Pirrônicas Livro 14. VERDAN, André. O ceticismo filosófico. Floria-
I. Tradução de Danilo Marcondes). O que nos faz nópolis: Ed. UFSC, 1998.
pensar. [S.l.], v. 9, n. 12, p. 115-122, jun. 1997. Dis-