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44 Whitman
44 Whitman
Whitman
Dias
tradução Bruno Gambarotto exemplares
A ordem de um momento feliz 13 Resposta a um amigo in-
sistente 15 Genealogia – Van Velsor e Whitman 15 Os
antigos cemitérios Whitman e Van Velsor 17 A fazenda ma-
terna 19 Dois antigos interiores familiares 20 Paumanok e
minha vida ali quando criança e jovem 22 Minha primeira
leitura – Lafayette 26 Oficina gráfica – Velho Brooklyn 27
Crescimento – Saúde – Trabalho 29 Minha paixão pelas
balsas 30 Imagens da Broadway 31 Passeios e cocheiros
de ônibus 32 As peças e as óperas também 34 Por oito
anos 36 Fontes do caráter – Resultados – 1860 36 O início
da Guerra de Secessão 37 Levante nacional e alistamento vo-
luntário 38 Sentimento de altivez 39 Batalha de Bull Run,
julho, 1861 40 Fim do estupor – Começo de outra coisa 44
No front 46 Depois da Primeira Fredericksburg 47 De
volta a Washington 48 Cinquenta horas abandonado e ferido
no campo de batalha 50 Cenas e pessoas nos hospitais 51
Hospital do Escritório de Patentes 53 A Casa Branca à luz
da Lua 54 Uma ala de hospital do exército 55 Um caso de
Connecticut 56 Dois garotos do Brooklyn 57 Um valente
secessionista 58 Os feridos de Chancellorsville 58 Uma
batalha noturna, uma semana atrás 59 Restos sem nome do
mais bravo soldado 63 Alguns casos exemplares 64 Meus
preparativos para as visitas 67 Préstitos de ambulâncias 68
Ferimentos graves – Os jovens 68 O mais animador de todos
os espetáculos de guerra 69 Batalha de Gettysburg 70 Um
acampamento da cavalaria 71 Um soldado de Nova York 73
Música feita em casa 74 Abraham Lincoln 75 Período de
calor 77 Soldados e conversas 78 A morte de um oficial de
Wisconsin 79 Conjunto dos hospitais 81 Uma silenciosa
errância noturna 83 Espiritualidade entre os soldados 84
Rebanhos de gado no entorno de Washington 84 Perple- Entrando numa longa alameda de fazenda 144 À nascente
xidade no hospital 85 No front 86 Pagando o soldo 87 e ao riacho 144 O verão ressoa sua alvorada 145 Pássaros
Rumores, mudanças etc. 88 Virginia 89 Verão de 1864 90 migrando à meia-noite 146 Zangões 147 Maçãs de ce-
Uma nova organização do exército adequada à América 91 dro 151 Vistas e preguiças do verão 151 Perfume do poente
A morte de um herói 92 Cenas de hospital – Incidentes 93 – Notas da codorniz – O tordo-eremita 152 Tarde de julho
Um soldado ianque 94 Prisioneiros da União no Sul 95 De- perto da lagoa 153 Grilos e gafanhotos 155 O ensinamento
sertores 96 Um vislumbre das cenas infernais da guerra 97 de uma árvore 156 Pequenas cenas de outono 159 O céu –
Presentes – Dinheiro – Discriminação 99 Itens do meu ca- Dias e noites – Felicidade 161 Cores – Um contraste 163
derno de anotações 101 Um caso da Segunda Batalha de 8 de novembro de 1876 163 Gralhas e gralhas 164 Um
Bull Run 101 Cirurgiões do exército – Deficiências nos so- dia de inverno na praia 164 Fantasias de praia 166 Em
corros 102 O azul por toda parte 103 Um hospital-mo- memória de Thomas Paine 167 Duas horas de navegação
delo 104 Garotos no exército 105 O enterro de uma en- no gelo 170 Aberturas da primavera – Divertimentos 171
fermeira 106 Enfermeiras para soldados 106 Fugitivos do Uma das dobras humanas 172 Uma cena vespertina 173
Sul 107 O Capitólio sob as luzes do gás 110 A posse 111 A abertura dos portões 173 A terra comum, o solo 174
Postura dos governos estrangeiros durante a guerra 112 Pássaros e pássaros e pássaros 175 Noites estreladas 176
O clima – Tem ele alguma ligação com estes tempos? 113 Verbascos e verbascos 178 Sons distantes 179 A nudez
Baile da posse 115 Cena no Capitólio 116 Uma antiguidade banhada de sol 180 Os carvalhos e eu 183 Uma quinti-
ianque 117 Ferimentos e doenças 118 A morte do presi- lha 184 Primeira geada – Lembrança 185 A morte de três
dente Lincoln 119 A alegria do exército de Sherman – Sua homens 185 Dias de fevereiro 190 Um pedro-ceroulo 192
súbita parada 120 Não existem bons retratos de Lincoln 121 Luzes do entardecer 193 Reflexões sob um carvalho – Um
Prisioneiros soltos da União vindos do Sul 121 Morte de um sonho 193 Perfume de trevo e feno 194 Um desconhe-
soldado da Pensilvânia 124 O retorno dos exércitos 126 cido 195 Assovio de pássaros 196 Hortelã-silvestre 196
A grande revista 128 Soldados do Oeste 128 Um sol- Nós três 197 A morte de William Cullen Bryant 198 Ex-
dado sobre Lincoln 129 Dois irmãos, um no Sul, outro no cursão pelo Hudson 200 Felicidade e framboesas 200
Norte 129 Ainda outros casos tristes 130 O verdadeiro Um exemplo de família andarilha 201 Manhattan vista da
monumento de Calhoun 132 Fechamento dos hospitais 132 baía 203 Humana e heroica Nova York 204 Horas para
Soldados típicos 134 “Convulsividade” 135 Três anos re- a alma 206 Psiquês cor de palha e outras 212 Uma lem-
sumidos 136 Um milhão de mortos também resumidos 137 brança noturna 214 Flores silvestres 214 Uma civilidade há
A verdadeira guerra nunca entrará nos livros 139 Um pa- muito negligenciada 216 Rio Delaware – Dias e noites 217
rágrafo de interregno 141 Novos temas abordados 142 Cenas na balsa e no rio – Últimas noites de inverno 218
Primeiro dia de primavera na Chestnut Street 224 Subindo o A importância de Edgar Poe 274 Um septeto de Beetho-
Hudson para o condado de Ulster 226 Dias diante das foguei ven 278 Um vislumbre da Natureza selvagem 279 Va-
ras de turfa de J. B. – Canções de primavera 227 Encontro com diando no bosque 279 Uma voz de contralto 280 Melhor
um eremita 229 Uma cachoeira do condado de Ulster 230 vista das cataratas do Niagara 281 Viagem a passeio ao Ca-
Walter Dumont e sua medalha 230 Quadros do rio Hud- nadá 282 Domingo com os loucos 283 Lembrança de Elias
son 231 Duas regiões urbanas, a certas horas 233 Cami- Hicks 285 Grande crescimento nativo 286 Um Zollverein
nhadas e conversas no Central Park 234 Uma bela tarde, das entre os Estados Unidos e o Canadá 286 O percurso do Saint
quatro às seis 236 A partida dos grandes navios a vapor 237 Lawrence 287 O Saguenay selvagem 288 Cabos Eterni-
Duas horas no Minnesota 239 Dias e noites do verão ma- dade e Trindade 289 Chicoutimi e a baía de Ha-Ha 290
duro 241 Prédio de exposições – Nova prefeitura – Viagem Os habitantes – O bom viver 290 Como bagos de cedro –
pelo rio 241 Andorinhas no rio 243 Começando um longo Nomes 291 A morte de Thomas Carlyle 295 Carlyle de
passeio para o Oeste 244 No vagão-dormitório 244 Es- um ponto de vista americano 300 Um casal de velhos ami-
tado do Missouri 245 Lawrence e Topeka, Kansas 246 As gos – Um trecho de Coleridge 312 Visita de uma semana
pradarias (e um discurso não pronunciado) 247 A caminho a Boston 314 A Boston atual 316 Meu tributo a quatro
de Denver – Um incidente de fronteira 249 Uma hora na poetas 317 Quadros de Millet – Últimos itens 319 Poderí-
cumeeira do Kenosha 250 Um “achado” egoísta 250 Novas amos desejar a humanidade diferente? 320 Pássaros – E um
sensações – Novas alegrias 251 Máquinas a vapor, telégra- aviso 320 Amostras de meu livro de lugares-comuns 321
fos etc. 252 A espinha dorsal da América 253 Os par- Mais uma vez, meu sal e areia natais 325 Calor em Nova
ques 254 Características artísticas 255 Impressões de Den- York 326 “O último reagrupamento de Custer” 328 Al-
ver 256 Seguindo para o sul e, por fim, de volta ao leste 258 guns velhos conhecidos – Memórias 330 Uma descoberta
Vontades irrealizadas – O rio Arkansas 259 Uma silenciosa da velhice 331 Uma visita, no fim, a R. W. Emerson 331
e pequena seguidora – A coreópsis 260 As pradarias e as Outras anotações de Concord 334 Boston Common – Mais
Grandes Planícies na poesia 261 Os Picos Espanhóis – A sobre Emerson 335 Uma noite ossiânica – Os mais caros
noite nas Planícies 262 A paisagem característica da Amé- amigos 336 Apenas uma nova balsa 338 A morte de Long-
rica 263 O rio mais importante da Terra 264 Analogias da fellow 339 Começando jornais 341 A grande inquietude
pradaria – A questão das árvores 265 Literatura do vale do de que somos parte 344 Diante do túmulo de Emerson 345
Mississippi 266 Um item de entrevistador 268 As mulhe- Escrevendo no presente – Pessoal 346 Depois de experimen-
res do Oeste 269 O general em silêncio 269 Os discur- tar um livro 347 Confissões finais – Testes literários 348
sos do presidente Hayes 271 Mementos de Saint Louis 272 Natureza e Democracia – Moralidade 350 posfácio A der-
Noites no rio Mississippi 273 Em nossa própria terra 273 radeira constelação de Whitman 355
Dias exemplares
A ordem de um momento feliz
13
Nota: As páginas 15-36 reproduzem quase palavra a palavra uma carta de
próprio punho de janeiro de 1882 a um amigo insistente. Em seguida, trago Resposta a um amigo insistente
algumas experiências sombrias. A guerra pela almejada secessão foi, é claro,
Você me pede itens, detalhes do começo da minha vida – de
o acontecimento maior do meu tempo. Comecei em fins de 1862, seguindo
com perseverança pelos anos de 1863, 1864 e 1865, a visitar os doentes minha ascendência e genealogia, em especial das mulheres
e feridos do exército, nos campos de batalha e nos hospitais da cidade de de minha ancestralidade, e de seu distante ramo holandês, da
Washington e região. Desde o início eu conservei comigo caderninhos para parte materna –, da região em que nasci e fui criado, e minha
anotações improvisadas a lápis para recobrar a memória de nomes e cir-
mãe e meu pai antes de mim, e os pais de ambos antes deles –
cunstâncias e do que especialmente queria etc. Nelas, resumi casos, pes-
soas, as coisas que via, situações de acampamento, à beira dos leitos, e não com palavras sobre as cidades do Brooklyn e de Nova York,
poucas vezes ao lado dos corpos dos mortos. Algumas eram esboçadas a sobre os tempos em que lá vivi, ainda menino e jovem rapaz.
partir de narrativas que ouvia e compilava enquanto velava ou esperava ou Você diz que deseja se debruçar sobre esses detalhes, princi-
atendia alguém em meio a essas cenas. Conservo dezenas desses caderni-
palmente como embriões e antecedentes de Folhas de relva.
nhos. Eles compõem uma história especial daqueles anos, exclusivamente
minha, repleta de associações que possivelmente nunca poderão ser conta- Pois bem; você terá ao menos algumas amostras de tudo. Mui-
das ou cantadas. Gostaria de poder transmitir ao leitor as associações pre- tas vezes refleti sobre o sentido dessas coisas – que só se pode
sas a esses fascículos enlameados e amassados, cada qual composto de uma abarcar e completar questões desse tipo explorando o que está
ou duas folhas de papel, dobradas para caber no bolso e presas com um
por trás de si mesmo, talvez muito por trás, diretamente, e
alfinete. Eu os conservei tal como os deixei depois da guerra, aqui e ali
manchados com não poucas gotas de sangue, escritos apressadamente, às assim chegar à sua gênese, aos seus antecedentes e estágios
vezes na clínica, não raro em meio à agitação da incerteza ou da derrota ou cumulativos. Assim, por acaso, acabei dando fim ao tédio da
da ação ou em meio a preparativos para ela ou durante a marcha. As pági- indisposição e do confinamento de uma semana organizando
nas 46-141 são, em sua grande maioria, cópias literais desses caderninhos
esses artigos pensando em outro propósito (ainda irrealizado,
apavorantes e sujos de sangue. ¶ De natureza completamente diferente é
a maioria dos apontamentos seguintes. Algum tempo depois da guerra sofri talvez abandonado); e se você ficar satisfeito com eles, autên-
um derrame paralisante que me prostrou por muitos anos. Em 1876 come- ticos e simples em sua data de ocorrência e fato, e contados à
cei a superar o pior momento. A partir daí, passei parte de muitas estações, minha maneira, meio prolixa, aqui estão. Não vou hesitar em
em especial os verões, em um refúgio no condado de Camden – Timber
citar trechos de outros textos e anotações porque faço tudo
Creek, um riachinho (tributário do grande Delaware, a 12 milhas de distân-
cia) – com lugares ermos e primitivos, córregos sinuosos, margens reclusas para poupar trabalho; mas eles serão as melhores versões do
e repletas de árvores, fontes de água doce, e os encantos que pássaros, mato, que desejo expressar.
flores silvestres, coelhos e esquilos, velhos carvalhos, nogueiras etc. podem
oferecer. Nesses momentos e nesses lugares, foi escrita a maior parte do
diário da página 144 em diante. Genealogia – Van Velsor e Whitman
14 15
Long Island, estado de Nova York, próximo aos limites a leste a Inglaterra e retornaram diversas vezes; tiveram famílias nu-
do condado do Queens, mais ou menos a 1 milha do porto.1 merosas, e muitos de seus filhos nasceram no país de origem.
A família do meu pai – provavelmente a quinta geração dos Escutamos falar do pai de Joseph e Zechariah, Abijah Whit-
primeiros ingleses que chegaram à Nova Inglaterra – era nessa man, que viveu nos idos de 1500, mas sabemos pouco sobre
época formada por gente do campo com terra própria (e era ele, exceto o fato de que por algum tempo esteve na América.
um belo território, de 500 acres, terra boa, com leves declives Essas reminiscências de origem vieram a mim muito vivi-
a leste e sul, cerca de um décimo dela constituído de bosques damente em uma visita que fiz há não muito tempo (em meu
cheio de árvores nobres e antigas), distante 2 ou 3 milhas, em 63º ano) a West Hills, e ao cemitério em que estão enterra-
West Hills, condado de Suffolk. O nome Whitman nos estados dos meus ancestrais de ambas as partes. Tirei das anotações
do Leste, e depois se ramificando pelo Oeste e pelo Sul, co- dessa visita, escritas naquele exato local:
meça, sem dúvida, em certo John Whitman, nascido em 1602
na Velha Inglaterra, onde cresceu e se casou, e onde seu filho
Os antigos cemitérios Whitman e Van Velsor
mais velho nasceu em 1629. Ele chegou à América a bordo do
True Love em 1640 e viveu em Weymouth, Massachusetts, lu- 29 de julho de 1881 – Depois de mais de quatro anos de au-
gar que se tornou a colmeia-mãe dos perpetuadores do nome sência (exceto por uma breve visita para levar meu pai uma
a partir da Nova Inglaterra; morreu em 1692. Seu irmão, o re- última vez ali, dois anos antes de sua morte), fui a Long Island
verendo Zechariah Whitman, também chegou a bordo do True a passeio por uma semana, no lugar onde nasci, a 30 milhas da
Love, naquela época ou algum tempo depois, e viveu em Mil- cidade de Nova York. Circulei pelos antigos lugares familiares,
ford, Connecticut. Um filho desse Zechariah, de nome Joseph, observando, refletindo, demorando-me neles, e recobrei a me-
migrou para Huntington, Long Island, e ali se estabeleceu mória de tudo. Fui à velha propriedade dos Whitman na parte
permanentemente. O Dicionário genealógico de Savage (vol. alta da ilha e tive a perspectiva a leste, com o declive a sul, das
IV, p. 524) assinala que a família Whitman já estava assentada amplas e belas terras cultivadas de meu avô (1780) e de meu
em Huntington antes de 1664, por obra desse Joseph. É quase pai. Lá estavam a casa nova (1810) e o velho carvalho, com
certo que foi desse início, e de Joseph, que derivaram os Whit- seus 150 ou 200 anos; lá estavam o poço, a horta em declive e,
man de West Hill, assim como os demais no condado de Su- um pouco mais distante, o que restou, em bom estado de con-
ffolk, eu entre eles. Joseph e Zechariah voltaram ambos para servação, da casa de meu bisavô (1750-1760), ainda de pé, com
suas madeiras rijas e o teto baixo. Perto dali, uma magnânima
1. Long Island foi primeiro ocupada a oeste por holandeses e, em seguida,
floresta de altas e vigorosas nogueiras negras com seu porte
a leste pelos ingleses – sendo que a fronteira que separava as duas nacio-
nalidades ficava um pouco a oeste de Huntington, onde a família de meu magnífico, sem dúvida as belas filhas ou netas das nogueiras
pai vivia e eu nasci. [Todas as notas são do autor.] negras dos idos de 1776 ou antes. Do outro lado da estrada
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se estendia o famoso pomar de macieiras, cerca de 20 acres, avô Cornelius, minha avó Amy (Naomi) e muitos parentes,
árvores plantadas por mãos que há muito se tornaram pó de- próximos ou distantes, da parte de minha mãe, estão enterra-
baixo da terra (as de meu tio Jesse), mas muitas delas eviden- dos aqui. O panorama que tinha diante de mim, de pé ou sen-
temente capazes de dar anualmente flores e frutos. tado – o perfume delicado e selvagem do bosque, uma garoa
Escrevo estas linhas sentado sobre um velho túmulo (cer- fria e leve, a atmosfera emocional do lugar e as reminiscências
tamente, no mínimo centenário), na colina do cemitério de inferidas –, fazia justiça ao lugar.
muitas gerações dos Whitman. Cinquenta túmulos ou mais
são facilmente identificáveis, e o mesmo número desprovido
A fazenda materna
de qualquer forma – montes de terra já afundados, lápides
quebradas ou em pedaços, cobertas de musgo –, a colina Saí desse lugar de túmulos ancestrais e caminhei uma dis-
cinza e estéril, os montes de nozes por cima, o silêncio, in- tância de 80 ou 90 varas até o local da fazenda dos Van Vel-
terrompido apenas pelo vento murmurante. Sempre há a sor, onde minha mãe nasceu (1795) e onde cada lugar me
mais profunda eloquência dos sermões ou dos poemas em fora familiar quando criança e jovem (1825-1840). Na época,
qualquer um desses antigos campos santos, que são tantos ali ficava uma casa de madeira, ampla e desconexa, cinza-es-
em Long Island; então o que este significa para mim? Toda cura, com oficina, granja, um celeiro grande e um caminho
a minha história familiar, em sua sucessão de elos, desde o largo. De tudo isso não resta um vestígio sequer; tudo foi de-
primeiro povoamento até hoje, contada aqui – três séculos molido, apagado, e o arado e o rastelo passaram por sobre
concentrados neste acre de terra estéril. suas fundações e caminhos e tudo o mais, por muitos verões;
O dia seguinte, 30 de julho, dediquei à localidade materna hoje cercada, com grãos e trevos crescendo como em qual-
e – se é possível – senti-me ainda mais envolvido e impressio- quer outro belo campo de cultivo. Apenas o grande buraco
nado. Escrevo este parágrafo na colina do cemitério dos Van do porão, com alguns pequenos montes de pedra rachada,
Velsor, próxima a Cold Spring, o mais significativo depositório esverdeada pela relva e pelo mato, identifica o lugar. Todo
de mortos que se pode imaginar, sem o menor toque de arte, o cenário, com o que ele desperta – memórias de meus dias
longe disso, com o solo estéril, uma elevação plana de meio de juventude já distantes meio século, a cozinha enorme e a
acre quase totalmente desprovida de vegetação, o topo de uma lareira e a sala de estar adjuntas, a mobília simples, as refei-
colina cercado de árvores altas e robustas e bosques densos, ções, a casa cheia de gente alegre, o rosto feliz da minha avó
muito primitivos, ermo, sem visitantes, sem estradas (aqui Amy com sua touca quacre, meu avô, “o Major”, vermelho,
não se chega a cavalo, é preciso trazer os mortos e acompa- jovial, forte, de voz sonora e fisionomia característica –, com
nhá-los a pé.) Há cerca de vinte a trinta túmulos, todos bem o próprio panorama presente, foi responsável pela metade
simples; e muitos mais quase inteiramente destruídos. Meu de dia mais importante de todo o meu passeio.
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Pois ali, naquele espaço cercado de colinas, bosques e café, e chá ou açúcar ficavam restritos às mulheres. O fogo
saúde, minha mãe tão querida, Louisa van Velsor, cresceu que subia da lenha dava luz e calor às noites de inverno. Ha-
(sua mãe, Amy Williams, de denominação quacre ou da So- via carne de porco, vaca ou frango e todos os vegetais e grãos
ciedade dos Amigos – a família Williams, sete irmãs e um ir- mais comuns em abundância. A sidra era a bebida que os
mão –, o pai e o irmão marinheiros que encontraram a morte homens costumavam beber e era servida nas refeições. As
no mar). Os Van Velsor eram conhecidos por seus bons cava- roupas eram em sua maioria costuradas em casa. As viagens
los, animais puro-sangue que os homens criavam e treinavam. eram feitas por homens e mulheres no lombo dos cavalos.
Minha mãe quando jovem foi uma amazona corajosa e con- Ambos os sexos trabalhavam com as próprias mãos – os ho-
tumaz. Quanto ao próprio cabeça da família, a velha raça da mens na fazenda, as mulheres na casa e ao redor dela. Os li-
Holanda, tão profundamente enxertada na ilha de Manhattan vros eram poucos. A cópia anual do almanaque era um regalo,
e nos condados de Kings e Queens, jamais gerou exemplar e era lida em voz alta durante as longas noites de inverno.
tão marcante e completamente americanizado do que o ma- Não posso me esquecer de mencionar que essas duas famílias
jor Cornelius van Velsor. estavam próximas do mar o bastante para avistá-lo dos pon-
tos altos e escutar em momentos de silêncio o quebrar das
ondas; estas, depois de uma tempestade, ofereciam à noite
Dois antigos interiores familiares
um som muito particular. Então todos, homens e mulheres,
Sobre a vida doméstica e interior do meio de Long Island, desciam frequentemente à praia e tomavam banho de mar, e
naquele tempo e antes, aqui estão duas amostras: os homens saíam a serviço em expedições para cortar capim-
“Os Whitman, no começo deste século, viviam em uma -marinho e para pescar mariscos e peixes.” – John Burroughs,
grande casa de fazenda, térrea e de água-furtada, feita de ma- Notes on Walt Whitman as Poet and Person.
deira forte, que ainda está de pé. Uma cozinha grande, onde a “Os ancestrais de Walt Whitman, de ambos os lados, ma-
fumaça se elevava como um véu, com chaminé e forno enor- terno e paterno, serviam mesa farta, preservavam a hospitali-
mes, formava uma ponta da casa. A existência da escravidão dade e o decoro, tinham uma excelente reputação no condado,
em Nova York na época, e a posse, da parte da família, de e muitas vezes eram de pronunciada individualidade. Se este
doze ou quinze escravos, de eito e domésticos, davam ao am- espaço permitisse, julgo que faria descrições pormenorizadas
biente uma aparência patriarcal. Perto do pôr do Sol, negros de alguns de seus homens, e ainda mais de algumas das mu-
bem jovens podiam ser vistos, em bando, nessa cozinha, em lheres. Sua bisavó da parte materna, por exemplo, era uma
roda, de cócoras, comendo seu jantar de leite e pamonha. Na mulher forte e de pele morena, que viveu até uma idade avan-
casa e na comida e na mobília, tudo era muito simples, mas çada. Fumava tabaco, cavalgava como um homem, controlava
substancioso. Não se conheciam carpetes e fogões, tampouco até mesmo o cavalo de mais difícil trato e, viúva no fim da
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vida, visitava diariamente suas terras, frequentemente sobre a através dos condados de Kings, Queens e Suffolk por 120
sela, conduzindo o trabalho dos escravos e valendo-se de lin- milhas – a norte o estuário de Long Island, uma série bela,
guajar no qual, em situações mais afervoradas, não eram pou- variada e pitoresca de enseadas, istmos e como que invasões
pados xingamentos. As duas avós imediatas eram, no melhor marítimas, por 100 milhas até o ponto oriental. Do lado do
sentido, mulheres de qualidade superior. A avó materna (Amy oceano, a grande baía do sul, pontuada de um sem-número de
Williams era seu nome de solteira) era uma amiga, ou qua- colinas, em sua maioria pequenas, algumas bem grandes, vez
cre, de temperamento doce e sensível, dada à vida doméstica e por outra longas barras de areia, a uma distância que varia de
profundamente intuitiva e espiritual. A outra (Hannah Brush) 200 varas a 1,5 milha da praia. Enquanto às vezes, como em
era igualmente nobre, talvez de personalidade mais forte; vi- Rockaway e no extremo leste, ao longo de Hamptons, a praia
veu até uma idade avançada, teve uma prole imensa, era uma corre direto pela ilha, com o mar quebrando sem obstáculos.
mulher natural, foi professora na juventude e tinha um pensa- Muitos faróis a leste; uma longa história de trágicos naufrá-
mento bastante sólido. W. W. dava muita importância às mu- gios, alguns até em anos mais recentes. Quando jovem, vivi a
lheres de sua ancestralidade.” Idem. atmosfera e as tradições de muitos desses naufrágios – de um
Dessa ascendência de pessoas e cenários, nasci em 31 de ou dois, praticamente uma testemunha. Na região da praia de
maio de 1819. E vivi por algum tempo na própria localidade – Hempstead, por exemplo, ocorreu o naufrágio do navio Mé-
uma vez que os sucessivos estágios de amadurecimento xico em 1840 (mencionado em “Os adormecidos”, de F. de R.).
de minha infância, juventude e início da vida adulta foram E em Hampton, alguns anos depois, a destruição do brigue
todos vividos em Long Island, que por vezes sinto como que Elizabeth, um caso terrível, em um dos piores vendavais de
parte de mim. Menino e homem, vaguei e vivi em pratica- inverno, quando Margaret Fuller faleceu com marido e filho.
mente todos os lugares da ilha, do Brooklyn a Montauk. No interior dessas barras ou praias, essa baía a sul é por
toda parte relativamente rasa; e, nos invernos frios, toda
gelo espesso na superfície. Quando menino, eu muitas vezes
Paumanok e minha vida ali quando criança e jovem
saía com um ou dois amiguinhos por esses campos conge-
É digna de total e particular investigação esta Paumanok (para lados, de trenó, machado e arpão em punho, em busca de
dar destaque a seu nome aborígene2), que se estende a leste
o solo da ilha geralmente duro, mas bom para acácias-meleiras, os pomares
2. “Paumanok (ou Paumanake, ou Paumanack, o nome indígena de Long de macieiras e as amoreiras, e com incontáveis fontes da mais deliciosa
Island), com a extensão de mais de 100 milhas; em formato de peixe – re- água do mundo. Há muitos anos, entre os habitantes do litoral – uma forte
pleta de praias marítimas, arenosa, tempestuosa, intratável, de infinitos ho- raça selvagem, hoje extinta, ou antes inteiramente transformada –, um
rizontes, ar forte demais para os inválidos, suas baías, um maravilhoso re- nativo de Long Island era chamado Paumanacker ou Creole-Paumanacker.”
fúgio para pássaros aquáticos, os campos ao sul cobertos de capim-marinho, – John Burroughs.
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cardumes de enguias. Abríamos buracos no gelo, às vezes pradaria, aberta, desabitada, um tanto estéril, coberta de
encontrando minas ricas de enguias e enchendo nossos ces- arbustos de mirtilo e mata-bezerro, embora repleta de bons
tos desses grandes, gordos e deliciosos camaradas de carne pastos para o gado, em grande parte vacas leiteiras, que se
branca. Os cenários, o gelo, o trenó que empurrávamos, os alimentavam ali às centenas, mesmo milhares, e à noite (as
buracos que abríamos, as enguias que abatíamos etc. – tudo planícies eram também propriedade dos vilarejos, e esse era
isso, é claro, era muito divertido, bem como gostam as crian- o uso comum da região) podiam ser vistas no caminho de
ças. As praias dessa baía, inverno e verão, e o que ali fazia volta para casa, distribuindo-se regularmente nos lugares
em meus primeiros anos – tudo aparece costurado por todos corretos. Muitas vezes estive no limite dessas planícies perto
os poemas de F. de R. Uma coisa que gostava muito de fazer do pôr do Sol, e ainda sou capaz de recuperar na fantasia
era sair em grupo no verão para caçar ovos de gaivota. (As esses intermináveis e coesos rebanhos de vacas e escutar a
gaivotas colocam dois ou três ovos, de mais da metade do música dos sinos de lata ou cobre, tinindo próximos ou dis-
tamanho dos ovos de galinha, bem na areia, e deixam que tantes, e respirar o frio do ar da noite, doce e levemente aro-
sejam chocados pelo calor do sol.) mático e observar o pôr do Sol.
O extremo leste de Long Island, a região de Peconic Bay, eu Na mesma região da ilha, um pouco mais a leste, esten-
conhecia muito bem também – velejei mais de uma vez ao re- diam-se porções de terra amplas e dominantes, cobertas de
dor da Shelter Island, ao sul, rumo a Montauk – passei muitas pinheiros e carvalhos-arbustivos (era ali, principalmente, que
horas em Turtle Hill, próximo ao velho farol, no ponto mais o carvão era produzido), monótonas e improdutivas. Apesar
extremo, observando o incessante rolar do Atlântico. Costu- disso, conheci ali muitos dias bons, inteiros ou não, cami-
mava ir lá e confraternizar com os pescadores de anchovas, ou nhando por aquelas encruzilhadas solitárias e inalando o
os grupos anuais de pescadores de robalo. Às vezes, pela pe- perfume selvagem e particular. Aqui, e por toda a ilha e suas
nínsula de Montauk (ela tem cerca de 15 milhas e bons pastos), praias, passei alguns períodos por muitos anos, às vezes caval-
encontrava os estranhos pastores, rudes, semibárbaros, que na- gando, às vezes de barco, mas geralmente a pé (era invaria-
quele tempo viviam ali inteiramente indiferentes à sociedade velmente um bom andarilho na época), absorvendo campos,
e à civilização, ocupados, naqueles ricos pastos, de grandes praias, incidentes marítimos, tipos, os homens das baías, os
bandos de cavalos, vacas ou ovelhas, propriedades de fazendei- agricultores, os pilotos – sempre tive bastante contato com
ros de vilarejos a leste. Às vezes, também, uns poucos índios estes últimos e com os pescadores – saía todo o verão em pas-
remanescentes, ou mestiços, que naquele período viviam em seios a vela – sempre gostei da praia deserta, a sul, e nela co-
Montauk, mas, creio eu, hoje estão todos extintos. nheci algumas das minhas horas mais felizes até hoje.
Mais para o meio da ilha se estendem as planícies de Enquanto escrevo, recobro a experiência inteira, ainda
Hempstead, naquele tempo (1830-1840) semelhantes a uma que passados quarenta anos ou mais – o marulhar relaxante
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das ondas e o cheiro do sal –, os tempos da meninice, desen- Deve ter sido entre 1829 e 1830 que fui com meu pai e minha
terrando ostras com os pés descalços e calças dobradas – ca- mãe assistir a um sermão de Elias Hicks em um salão de baile
minhando pelos riachos – o perfume do carriço – o bote de em Brooklyn Heights. Mais ou menos nessa época, arrumei
feno, o ensopado de peixe e ostras e as excursões de pesca – um emprego como aprendiz em um escritório de advogados,
ou, mais tarde, pequenas viagens descendo e saindo pela pai e dois filhos, da família Clarke, na Fulton Street, próximo
baía de Nova York, em barcos de pilotos. Nos anos seguintes, à Orange Street. Eu tinha uma boa escrivaninha e um nicho
também, quando vivia no Brooklyn (1836-1850), fui regu- de janela para mim; Edward C. gentilmente me ajudou com
larmente toda semana, durante as estações de clima ameno, caligrafia e redação e (o acontecimento central da minha vida
a Coney Island, naquele tempo uma longa faixa de litoral na época) me inscreveu em uma grande biblioteca circulante.
praticamente deserta, que tinha inteira para mim, e onde Por um tempo me diverti lendo toda sorte de narrativas; pri-
gostava, depois de tomar banho de mar, de correr pela areia meiro, As mil e uma noites, todos os volumes, uma delícia. De-
batida e declamar Homero ou Shakespeare para as ondas e pois, com incursões em muitas outras direções, experimentei
as gaivotas. Mas estou avançando rápido demais e não posso os romances de Walter Scott e toda a sua poesia (e continuo a
perder de vista o meu percurso. gostar de romances e poesia até hoje).
De 1824 a 1828, nossa família viveu no Brooklyn, nas ruas Cerca de dois anos depois fui trabalhar em um jornal sema-
Front, Cranberry e Johnson. Nesta última meu pai construiu nal e gráfica para aprender o ofício. O jornal era o Long Is-
uma boa casa para a família, e depois outra na Tillary Street. land Patriot, propriedade de S. E. Clemens, que também era
Vivemos nelas, uma após a outra, mas elas estavam hipoteca- agente dos correios. Um velho gráfico da oficina, William
das, e nós as perdemos. Ainda me recordo da visita de Lafayet- Hartshorne, personagem revolucionária que vira Washington,
te.3 Durante boa parte desses anos, frequentei escolas públicas. foi um bom amigo, e conversei muito com ele sobre os velhos
tempos. Os aprendizes, eu com eles, fazíamos as refeições,
3. “Na visita do general Lafayette a este país, em 1824, ele foi ao Brooklyn
e percorreu a cidade com pompa. As crianças foram dispensadas das esco- pagas, na casa de sua neta. Eu costumava de vez em quando
las para saudá-lo. Começava-se a construir um prédio para uma biblioteca sair a cavalo com o chefe, que era muito gentil com os me-
pública gratuita para jovens, e Lafayette aceitou interromper seu trajeto e ninos como eu; aos domingos ele nos levava a uma enorme
colocar a pedra de fundação. Com muitas crianças chegando ao local, onde
uma enorme escavação para o prédio já estava pronta, cercada de montes de também ajudando as crianças, pegou o pequeno Walt Whitman, com seus
pedra bruta, muitos cavalheiros auxiliaram as crianças erguendo-as em pon- 5 anos, apertou a criança por um instante contra o peito e deu-lhe um beijo,
tos seguros ou bons para assistir à cerimônia. No meio de todos, Lafayette, depositando-o em um ponto seguro na escavação.” – John Burroughs.
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