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CAPITULO A distingao entre cultura “erudita” e “niio-erudita” (on de massa e popular) “baseia-se em parte numa avaliagio da diferenca entre objetos sinicos ¢ objetos produzidos em massa. Na era da reproducéo tecnolégica em massa, a obra do artista tinha um valor especial simplesmente porque era tinica, porque trazia sua assinatura pessoal, individual. As obras da cultura popular (0 préprio cinema foi por muito tempo incluido nessa categoria) eram consideradas obras de pouco valor por serem objetos manufaturados, que nao traziam uma marca individual — feitos por um grupo para um priblico nao-diferenciado, Mas, a luz da prética contemporanea das artes, esta distingéo parece extremamente superficial. Muitas obras de arte das tiltimas décadas possuem um cardter decididamente impessoal. A obra de arte esté reafirmando sua existéncia como “objeto” (mesmo como objeto fabricado ou produzido em massa, inspirado nas artes populares) e nao como uma “expresso Introdugao O coneeito de belo, como jé dissemos no Capitulo 29 — Estética:introdugio conceitual, é eminentemente histérico. Cada época, cada cul- tura, tem o seu padrio de beleza préprio. Ja hou- ve até quem dissesse que “gordura é formosura”. Da mesma forma, as manifestag&es artisticas tém sido bastante diversas e, por vezes, até des- concertantes no curso da histéria. Essa diversida~ de se deve a varios fatores, que vio do politico, social e econdmico até os objetivos artisticos que cada época ou cultura tem se colocado. Ao longo dos séculos, surgiram varias cor remtes estéticas que vieram a determinar nao s6 as relagdes entre arte e realidade, porém, mais impor- tante ainda, o estatuto e a fungao da obra de arte. Discutiremos aqui algumas dessas correntes mais importantes que marcaram a produgio ar- tistica, sendo, por isso, fundamentais para a com- preensio da historia da arte. 1. O naturalismo grego ms Conceito de naturalismo O naturalismo constitui uma nogio funda~ mental que marcou profundamente grande parte pessoal individual”. ‘Susan Sontag da arte ocidental:a arte grega antiga ¢, ap6s uma interrupgio durante a Idade Média, da arte re- nascentista até o final do século XIX. O naturalismo,segundo Harold Osborne, pode ser definido como a ambi¢io de colocar diante do observador uma semelhanga convincente das apa- réncias reais das coisas. A admiragio pela obra de arte, nessa perspectiva,advém da habilidade do ar- tista em fazer a obra parecer ser 0 que nao é pare- cer ser a realidade e nio a representacio. De acordo com a atitude naturalista, pode mos distinguir algumas variagGes, dentre as quais as mais importantes sio o realismo ¢ o idealismo. O realismo mostra o mundo como ele é nem melhor nem pior. E caracteristico, por exemplo, da arte renascentista do século XV. ‘Ji 0 idealismo retrata 0 mundo nas suas con- digdes mais favordveis. Na verdade, mostra mundo como desejariamos que fosse, melho- rando e aperfeigoando o real. E 0 padrio da arte grega, que nio retrata pessoas reais, mas pessoas idealizadas. Foram os gregos que elaboraram a teoria das proporgdes do corpo humano. Depois da Idade Média, a ruptura com a atitude naturalista ocorre na segunda metade do século XIX com os impressionistas, que passam eh Dlee a dar primazia as variagdes da luz e no aos ob- jjetos representados. Essa mudanca de atitude se deve, em parte, a0 aparecimento do “bisav6” da maquina foto- grifica — o daguerreétipo —, que fixa as ima- gens do mundo de forma mais répida ¢ mais econémica do que a tela pintada, Por essa tazo, 08 artistas, principalmente os pintores, tiveram de repensar a fiun¢ao da arte e o espago especi- fico da pintura. «a O naturalismo na arte grega Na Grécia Antiga nfo havia a idéia de artista no sentido que hoje empregamos, uma vez. que a arte estava integrada a vida. As obras de arte dessa época eram utensilios (vasos, anforas, copos, tem- plos etc.) ow instrumentos educacionais. Assim, 0 artifice que os produzia era considerado um traba- Thador manual, do mesmo nivel do agricultor ou do ferramenteiro. Ele era um artesio numa socie- dade que considerava indigno o trabalho manual. Nese periodo (sécs.V ¢ IV a.C.) foram de- senvolvidas técnicas com a principal motivagio de produzir copias da aparéncia visivel das coisas. ‘A fiangio da arte era criar imagens de coisas reais, imagens que tivessem aparéncia de realidade. Hi varias anedotas que ilustram bem isso, embora poucos exemplares da pintura grega te nham chegado até nés. Dizem que Apeles pin- tou um cavalo com tanto realismo que cavalos vivos relincharam ao vé-lo. Outra hist6ria con- ta que Parrasio pintow vas tio reais que passa rinhos tentavam bicé-las. Na verdade, talvez essas pinturas s6 pos sam ser consideradas realistas em relagio 3 es- tilizagio da pintura que a precedeu ou a pin- tura egipcia, por exemplo. Por outro lado, temos de admirar a fideli- dade anatémica das escul- turas gregas, tais como a Vit6ria de Samotricia e 0 Discdbulo. Veja o Figura 11, 4 pagina 406. Essa atitude perante a arte est finndada so- bre 0 conceito de mimese. Embora mimese seja normalmente traduzi- da por “imitacio”, para os gregos ela significava muito mais que isso. Para Platio (séc.V a.C),no Critilo, as palavras “imitam” a realidade. Neste caso, a tradugio mais correta para mimese talvez fosse “representar”, ¢ nfo “imitar”. Para Aristételes (séc. IV a.C.),a arte “imita”a natureza. Arte, para ele, no entanto, englobava todos 0s oficios manuais, indo da agricultura a0 que hoje chamamos de belas-artes. Por isso,a arte, enquanto poiésis, ou seja,"*construgio”,“ctiagao a partir do nada”, “passagem do nao-ser ao ser”, imita a natureza no ato de criar. Por outro lado, também aqui poderiamos entender mimese com o sentido de “representar”. Para Aristételes, “to- dos 05 oficios manuais ¢ toda a educagio com- pletam 0 que a natureza nio terminou”.! ‘Ainda segundo Aristételes, a apreciagio da arte vem do prazer intelectual de reconhecer @ coisa representada por meio da imagem. Desse modo, ele resolve o problema do feio. © prazer, no caso, nao vem do reconhecimento da coisa feia, mas da habilidade que o artista demonstra ao representé-la. E no sentido de cdpia ou reprodugio exata e fiel que a palavra minese passa a ser adotada pela teoria naturalista. E as obras de arte, nessa perspectiva, sio avaliadas segundo 0 padrio de corregio colocado por Platio:*Agora suponha- mos que, neste caso, 0 homem também nao sou- besse o que eram os varios corpos representa dos. Ser-Ihe-ia possivel ajuizar da justeza da obra do artista? Poderia ele, por exemplo, dizer se el mostra os membros do corpo em seu niimero verdadeiro e natural e em suas situagdes reais, dispostos de tal forma em relago uns aos ou- tros que reproduzam o agrupamento natural — para ndo falarmos na cor e na forma — ou se tudo isso esti confuso na representacio? Pode ria 0 homem, ao vosso parecer, decidir a ques- tio se simplesmente nao soubesse 0 que era 2 criatura retratada?”? 2. A estética medieval ea estilizagéo Na Europa ocidental, durante a Idade Mé- dia, nio houve grande interesse pelas artes que. como coisas terrenas ligadas 4 cultura pagi, po- T. ARISTOTELES. A politica. Rio de Janeiro, Tecnoprint/Ediouro, 8.4. (Colecao Universidade) 2. PLATAO. As leis: incluindo Epinomis. Bauru, Edipro, 1999. 392. deriam prejudicar o fortalecimento da alma e do espirito. Entretanto, em virtude do analfabetismo generalizado das populagdes dos feudos, a Igre- ja utiliza-se da pintura e da escultura para fins didaticos, ou seja, para ensinar a religiio ¢ in- fundir o temor do julgamento final e das penas do inferno. As obras de arte assumem a condi- gio de simbolos que manifestam a natureza di- vina e canalizam a devogio do homem para 0 deus supremo. Por isso, postura naturalista é abandonada em prol da estilizagio, isto é, da simplificacio dos tragos, da esquematizagio das figuras e do abandono dos detalhes individualizadores.A es- tilizagio responde melhor & necessidade de uni- versalizacio dos principios da religio crista. A arte bizantina do mesmo periodo mostra extraordiniria homogeneidade a partir de sua codificacio, no século VI, até a queda de Cons- tantinopla em 1453. Preocupada com a expres sio religiosa e com a traducio da teologia em forma de arte, a Igreja Ortodoxa bizantina pa- droniza a expressio artistica, abolindo a repre- sentagio do volume em pinturas ¢ mosaicos, preferindo as figuras chapadas, cujas vestes eram representadas por linhas sinuosas (ver a repro- dugio do mosaico da Igreja de Sio Vital). Mantidas suas caracteristicas prOprias, tanto no Ocidente quanto no Império Bizantino prevalece a idéia de que a beleza nfo é um valor indepen dente dos outros, mas que é o refillgir da verdade no simbolo.A obra de arte, assim, permite-nos al- cangara visio direta da perfeigo da natureza divi- na, Desse ponto de vista, a beleza é uma qualidade mais bem apreendida pela razio do que pelos sen tidos,e corresponde ao pensamento religioso des- sa época,marcado pelo desejo de ascender do mun- do sensual das sombras, das aparéncias, & contem- plagio direta da perfeigio divina (ver Capitulo 10 —Teoria do conhecimento). Veja a Figura 12, 8 pagina 406 Unipabe VI — Estetica [ ma Santo Agostinho Santo Agostinho elabora “uma rigorosa teo- ria do belo como regularidade geométrica”? ‘Ao tratar da ordem e da miisica, considera 0 néimero como medida de comparagio que leva A ordenagio das partes iguais dentro de um todo integrado ¢ harménico. O gosto pela proporcio, o préprio concei- to de beleza como ordenagio dos objetos ao que deve ser, pressupde um conceito anterior da ordem ideal, dado por iluminagio divina. No podemos esquecer das origens plat6nicas de seu pensamento em que o ideal precede o real, mera cépia daquele. Esse conceito ideal de beleza fandamenta a objetividade do julgamento da beleza real, concreta, ¢ é fonte das normas para a producto do belo. w= Santo Tomas de Aquino Cabe a Santo Tomis de Aquino (séc. XIII) retomar 0 pensamento de Aristételes e recu- perar 0 mundo sensivel que havia sido consi- derado fonte de pecado durante quase toda a Idade Média. Se é cria¢io de Deus, 0 mundo tera as marcas de sua origem e sera a encarna- io simbélica do logos divino. Pode, assim, ser objeto de nossa atengio e interpretagio. Para Santo Tomis, a beleza € um dos aspectos do bem: “A beleza e a bondade de uma coisa sio fundamentalmente idénticas”.A beleza 6 0 as- pecto agradavel da bondade, pois o belo é agra- davel & cognigi EB \eio 0 Figua 13, Peememsme 6 pagina 407 Santo Tomés estabelece trés condigdes para a belezaz + integridade ou perfeigio, uma vez que os ob- jetos incompletos ou parcialmente destruidos sio feios; * devida proporsio ow harmonia entre as par- tes e entre 0 objeto e o espectador; 3. ECO, Umberto. Arte e beleza na estética medieval. Rio de Janeiro, Globo, 1989. p. 61. 393...

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