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Quimera

Sonhei com um Brasil maravilhoso, um Brasil de justiça social, de cultura


do povo, pelo povo e para o povo. Não precisava de reformas tributárias, todos
os impostos eram pagos sem sonegação, até porque eram justos e bem
empregados: a saúde pública era maravilhosa; as escolas do Estado eram as
melhores do país; as estradas pareciam tapetes novos; a segurança era de
causar inveja aos outros países do mundo; as obras visavam ao bem-estar da
população e não ao enriquecimento ilícito.
Nosso povo não era esperto, nem malandro. Não existia jeitinho
brasileiro. Eram felizes, gostavam de carnaval, de cerveja, de futebol e de
namorar, mas não paravam de trabalhar para nada disso. Eram todos honestos
e dignos e não aceitavam o menor desvio, não queriam favores ou facilidades,
mas merecer aquilo que suavam para ganhar.
Ninguém aspirava aos cargos públicos para “se dar bem”, mas por
acreditar que este era o caminho para construir um país. Era um trabalho feito
por vocação, não por cobiça ou ganância. Nossos políticos votavam por
ideologia, por acreditar em algo e por lutar por isso, não por troca de favores.
Acreditavam que o que faziam era para o bem público, não para o privado.
Eram figuras exemplares que trabalhavam em prol de uma nação maior e
melhor, com rendimentos justos e com gastos adequados. Prestavam conta de
tudo e devolviam os recursos não utilizados ao erário.
A sede do governo era acessível ao povo, não ficava isolada no meio do
país, cercada de gente comprometida com a corrupção, gente que, se não
peca pela ação, peca pela omissão. As pessoas participavam do governo,
cobravam de seus representantes aquilo que lhes fora prometido, sem
necessidade de protestos, uma vez que eram, de fato, ouvidas.
Fiquei curioso com esse país das maravilhas. Não era o Brasil que eu
lembrava. Comecei, então, a indagar meus compatriotas sobre como
chegamos a isso. Passado o momento de surpresa com a minha falta de
conhecimento histórico, meus compatriotas tentaram explicar-me o que eu
absurdamente desconhecia.
Em algum momento aparecera uma pessoa que se preocupava com o
rumo que a nação estava tomando e que queria o melhor para o futuro. Não se
sabe como, tendo em vista o desapego ideológico à época, ele conseguira
convencer outros políticos a seguirem um ideal real, de construção, de ordem,
de progresso, de crescimento e de desenvolvimento.
Eles não queriam fazer demagogia, não queriam aparecer com projetos
de curto prazo que só serviam para garantir reeleição. A idéia não era distribuir
licenças de táxi, legalizar vans, criar vales disso ou daquilo, bolsas ou cotas,
essas coisas que não resolvem os problemas sociais, mas que garantem votos.
Não, a idéia era reconstruir o país, um trabalho de longo prazo, feito nas bases
da sociedade brasileira. Tinha a ver com alicerce e não com benfeitorias
desnecessárias. Algo como não distribuir peixes, mas ensinar a pescar.
Era um trabalho ingrato em se falando de política, pois levaria anos para
aparecer algum resultado. Árduo e de difícil implementação, exigia sacrifício e
coragem de todos os envolvidos. A palavra da vez era: educação. Residia aí
toda a dificuldade do projeto, mas também todo o futuro de uma nação.
O Educador, como veio a ser conhecido o homem que originou este
novo Brasil, entendia que a falta de conhecimento e de cultura eram as
principais causas das mazelas do país, senão todas. As dificuldades eram
enormes e não se resumiam a dificuldades políticas. O próprio povo precisava
acreditar em si, acreditar que faltava conhecimento, não inteligência; acreditar
que faltava especialização, não capacidade; acreditar que faltava vontade, não
esperança. Acreditar em si, não no estrangeiro. Não residia nisso nenhum
xenofobismo, apenas a crença que o que vinha de fora não era
necessariamente melhor, apenas diferente. Este foi, talvez, o maior obstáculo a
ser superado.
Em paralelo à conscientização popular, veio a melhoria das escolas.
Professores passaram por reciclagens, avaliações e atualizações; aboliram a
praga da aprovação automática, optando por ensinar a quem quisesse
aprender, em vez de mostrar um percentual enorme de crianças dentro da
unidade de ensino, que, por si só, apenas aumentava as estatísticas, sem
representar qualquer progresso na qualidade; as crianças terminavam o pré-
escolar alfabetizadas de fato. Incentivaram os pais a participarem da vida
escolar dos filhos, em casa e na escola, com eventos culturais e festivos, o que
levou cultura às casas dos alunos, às suas famílias.
À medida que o tempo foi passando, contado em anos, não em dias, o
Brasil começou a mudar. O povo começou a ser mais crítico, mais consciente,
não só dos seus direitos, mas, principalmente, dos seus deveres. A reforma
educacional fez que as outras reformas, sociais, penais, tributárias, etc.,
viessem naturalmente, sem muitas discussões, porque se tornaram
imprescindíveis, visto que óbvias já eram há muito tempo, mas não foram feitas
antes porque esbarravam nas disputas de interesses daqueles que detinham o
poder em suas leves mãos.
O desenvolvimento social progrediu exponencialmente, as diferenças
diminuíram vertiginosamente. Não eram necessários programas contra a fome,
campanhas em favor das crianças, auxílios ou esmolas de quaisquer tipos. O
Estado cumpria seu papel social e as riquezas tinham uma boa distribuição.
Claro que ainda havia ricos e pobres, mas não com a distância que habitava
minha memória, com ricos muito ricos e pobres cada vez mais miseráveis.
Dava para ver no rosto dos meus compatriotas a alegria com que
contavam tudo, o orgulho que sentiam da história que relatavam. Falavam
destes acontecimentos como os “patriotas” falam do Brasil campeão do mundo
no futebol, no vôlei ou na fórmula 1. A diferença é que estavam falando da
Pátria. Foi nesse momento que senti vergonha. Aqueles homens estavam
dando-me uma lição de patriotismo sem nem perceberem. Eles eram
entusiastas de seu país e eu era apenas um torcedor, daqueles que torcem
apenas quando o time está numa boa fase. Anuviei-me então e eles
começaram a sumir, suas vozes ficaram distantes e tudo se foi.
Acordei confuso, sem saber em qual Brasil estava. Uma tristeza
dominou meu peito ao perceber que tudo era uma quimera, uma nova utopia,
tal qual a criação de Thomas Morus. Que sonho real, que sonho irreal. Estava
ainda maravilhado com tudo que havia visto, ouvido e sentido. Desejava que
meu Brasil fosse aquele e então percebi: ainda poderia ser. Oxalá meu sonho
fosse uma manifestação do inconsciente coletivo de Jung ou, ainda, do
inconsciente social de Fromm, que cada um dos meus compatriotas estivesse
sonhando o mesmo, que o Educador não fosse apenas uma pessoa, mas a
manifestação deste inconsciente. Que cada um de nós apreendesse o que há
de bom nesse sonho e fizesse o possível para torná-lo realidade.
Por onde começar? Transformando o inconsciente em expressão
consciente. Acreditando que podemos mudar o país, mas que temos que
mudar a nós mesmos primeiro. Buscando a inteligência em vez da esperteza; a
integridade em vez da parcialidade; a dignidade em vez da desonestidade; a
diligência em vez da passividade; a retidão em vez da corrupção; a verdade em
vez da hipocrisia.
O Brasil somos nós, se ele é ruim é porque nós não somos tão bons
quanto pensamos ou quanto podemos ser. Mudemos então e criemos, não um
país imaginário, mas um país organizado da melhor maneira, que proporcione
ótimas condições de vida a um povo equilibrado e feliz. Não um gigante
adormecido, mas um verdadeiro e desperto Brasil.

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