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A desenhar o cosmos há 4000 anos

José Carlos Fernandes


Texto

"Cosmigraphics" é uma coleção de representações do cosmos que


cobre 4000 anos de história e cujo engenho, beleza e poder
revelador deixam qualquer um atordoado.

25 set 2015, 20:00 1





A peça mais antiga reproduzida em Cosmigraphics, de Michael


Benson, é um disco de cobre de 30 centímetros de diâmetro com
aplicações de ouro representado os astros – data de 2000-1600 aC e
foi descoberto perto de Nebra, na Alemanha.
Uma das imagens mais recentes, datada de 2013, é um disco com
1,3 mil milhões de anos-luz de diâmetro, retirado da apresentação
Dark Universe do Hayden Planetarium. Cada ponto luminoso é um
aglomerado de milhões de galáxias, o que quer dizer que mesmo
esforçando a vista não se descortinará a Grande Muralha da China
nem o Estádio da Luz.
Ao contrário dos livros anteriores de Benson, Far Out (2009) e
Planetfall (2012), que assentam em fotografias, as imagens de
Cosmigraphics são criações da mão humana ou são visualizações
geradas por super-computadores a partir de quantidades colossais
de informação recolhida por telescópios e radiotelescópios. As
únicas fotos que surgem no livro datam da segunda metade do
século XIX e mostram meticulosas maquetas da lua em gesso,
fotografadas em estúdio – uma forma de tornear o facto de a baixa
sensibilidade das películas da época não permitir obter fotos
nítidas através do telescópio.
É uma recolha dominada por imagens provenientes da civilização
ocidental, mas há também amostras de cosmovisões coreanas,
aztecas e persas. A ordenação é cronológica, o que torna patente
que nas imagens mais antigas as concepções artísticas e as
fantasias dos autores tendem a sobrepor-se ao rigor científico,
enquanto as imagens recentes estão inteiramente subordinadas ao
rigor científico e à transmissão do máximo de informação com
máxima economia.

Mas as fronteiras entre arte e ciência nem sempre são claras – está
aí um dos maiores triunfos do livro – e Benson logra criar um
estimulante diálogo entre elas. Veja-se o caso de Noite Estrelada
(1889), que poderia julgar-se ser um objecto 100% artístico,
nascido inteiramente da criatividade febril de Van Gogh,
mas que poderá, sugere Benson, ter sido sido inspirado pelos
desenhos realizados em 1845 pelo astrónomo William Parsons
(Lord Rosse), graças ao seu telescópio gigante de seis toneladas:
aqueles foram os primeiros a pôr em evidência a estrutura
espiralada de algumas galáxias e a conheceram grande difusão sob
a forma de estampas.
Nas imagens de pendor artístico, a Noite Estrelada tem a
companhia das ilustrações de Giovanni di Paolo para a Divina
Comédia (1440-1450), da Alegoria dos Planetas e Continentes de
Tiepolo (1752) e das pinturas do lisboeta Francisco de Holanda
(1517-1585), homem de múltiplos interesses e talentos, que foi
aluno de Michelangelo em Roma, mas que, por estas amostras de
De Aetatibus Mundi Imagines (Imagens das Eras do Mundo),
elaborado entre 1543 e 1573, mais parece um precursor do
misticismo de William Blake.

Se algumas representações mais antigas do cosmos podem


parecer-nos ingénuas, outras são de uma sofisticação inesperada,
como é o caso do diagrama “VII planetarum”, extraído do Liber
Floridus, uma enciclopédia compilada em França entre 1090 e
1120. O diagrama, que representa as trajectórias do sol, lua e
planetas através do zodíaco, enferma da falta de rigor, dos
equívocos e das fantasias típicos da época, mas do ponto de vista
conceptual é um prodígio da apresentação gráfica de informação,
que desafia os infografistas do séc. XXI.

Tal como o Liber Floridus era uma síntese do conhecimento


medieval, a Harmonia Macrocosmica (1660), de Andreas Celarius,
funciona como uma súmula dos modelos do universo conhecidos
até à data, de Ptolomeu a Copérnico. Quem fique seduzido pela
dezena de imagens de Harmonia Macrocosmica reproduzidas em
Cosmigraphics poderá desfrutar dele em todo o esplendor numa
sumptuosa edição da Taschen.
No catálogo da mesma editora podem também encontrar-se as
edições integrais de duas outras obras espectaculares amostradas
em Cosmigraphics. Um é o Augsburger Wunderzeichenbuch (Livro
dos Milagres), um manuscrito de 169 páginas elaborado em
Augsburgo por volta de 1550, representando eclipses, cometas,
chuvas de estrelas e outros portentos celestes, quase sempre
associados a infortúnios como pragas de gafanhotos, terramotos e
epidemias.
O outro é o Schedelsche Weltchronik (Crónica do Mundo de
Schedel), também conhecido por Liber Chronicarum (Livro das
Crónicas) ou Crónica de Nuremberga (1493), uma obra de
Hartmann Schedel que cobre diversos ramos do conhecimento,
onde se inclui a astronomia.
As ilustrações do Liber Chronicarum provêm da oficina do pintor e
gravador Michael Wolgemut, em Nuremberga, onde, por essa
altura era aprendiz um certo Albrecht Dürer, pelo que é possível
que haja mão sua nestas imagens.

Em contraponto a estas venerandas colecções de imagens, a


Taschen acaba de editar Expanding Universe, que, no 25.º
aniversário do lançamento do Hubble, oferece um caleidoscópio
de fotos de beleza e grandiosidade avassaladoras, tiradas pelo
telescópio espacial.

As imagens mais antigas de Cosmigraphics só recuam até aos


séculos XII-XIII, uma vez que das obras sobre astronomia da
Antiguidade Clássica pouco restou. Mas mesmo nas iluminuras
medievais são frequentes as representações da Terra com forma
esférica – a mais antiga nesta amostra provém do Liber Divinorum
Operum (Livro das Obras Divinas), de Hildegard von Bingen,
elaborado postumamente, em 1210-30, a partir de esquemas
desenhados pela polifacetada abadessa.
Ora, isto contraria a ideia firmemente implantada, mesmo entre a
elite culta, de que Cristovão Colombo foi dos primeiros a defender
que a Terra não era plana – ainda há uns meses, em entrevista ao
Público (17.04.15), o escritor Leonardo Padura afirmava: “Dizia-se
que o mundo era plano e um herege que se chamava Cristovão
Colombo veio provar que era redondo.”

Não só na Idade Média as pessoas informadas estavam conscientes


da esfericidade da Terra, como tal já era aceite entre os gregos –
incluindo Ptolomeu. Na verdade, a circunferência da Terra já
tinha sido calculada, com admirável precisão e engenho, pelo
grego Eratóstenes, no séc. II aC, em 39.690 Km (a medida real é
40.075 Km), e valores próximos deste seriam estimados nos
séculos seguintes por cartógrafos árabes e pelo persa Biruni.

Eram muitos os estudiosos europeus contemporâneos de Colombo


que apoiavam estes cálculos, ainda que outros se apegassem à
estimativa de Ptolomeu de 29.000 Km. Colombo, cuja estimativa
era 25.000 Km, não só não foi pioneiro como era dos que estava
mais afastado da realidade, pelo que terá sido talvez com
fundamento que D. João II recusou o projecto do genovês de
alcançar as riquezas de Catai e Cipango por uma rota ocidental.

Em contraste com as imagens que registam o progresso da ciência


e que incluem intuições fulgurantes com séculos de avanço sobre
o estado dos conhecimentos, também há lugar em Cosmigraphics
para o reaccionarismo intelectual e o fundamentalismo religioso,
como é o caso de Two Systems of Astronomy (1846), livro que
confronta o “Sistema Newtioniano” e o “Sistema de acordo com as
Sagradas Escrituras”, que regressa ao geocentrismo e que é o que
merece o favor do autor, Isaac Frost, um seguidor do “profeta”
Lodowicke Muggleton (1609-1698), que defendia a interpretação
literal das Sagradas Escrituras e afirmava que “não há outro Diabo
senão a Razão impura do homem”.

Mas o universo neo-ptolomaico de Frost até é progressista quando


comparado com a visão do professor Orlando Ferguson, de Hot
Springs, exposta num mapa de 1893.

A crer nesta “Terra quadrada e estacionária”, a frase atribuída a


Einstein de que “Deus não joga aos dados” está correcta: Deus
prefere jogar na roleta e até concebeu o universo à imagem desta.
O Prof. Ferguson não só poderia invocar em seu favor
conhecimentos de topografia, pois era promotor imobiliário no
Dakota do Sul (o “Prof.” era só bazófia), como estribava este
Universo Las Vegas em “400 passagens da Bíblia que condenam a
teoria do globo e da Terra suspensa”. O rodapé do mapa inclui
alguns desses 400 trechos e a argumentação completa era
explanada num livro que “arrumava de vez com a teoria do globo”
e “ensinava a prever eclipses”, bastando a quem quisesse obter
esta obra – que “valia o seu peso em ouro” – o envio de 25
cêntimos ao autor.

Se o extravante modelo do Prof. Ferguson não suscitou adesões e a


Sociedade da Terra Plana de Samuel Shenton (1903-71) nunca
passou do devaneio de um excêntrico solitário, estas mundivisões
sustentadas no literalismo bíblico acabam por ter inquietantes
continuadores nos fundamentalistas cristãos do século XXI, que
exigem que as teorias criacionistas e de design inteligente sejam
ensinadas nas escolas em pé de igualdade com a teoria de Darwin.
Não por acaso, a sua implantação é mais forte nos estado do Sul e
do interior dos EUA, como é o caso do Dakota do Sul que viu
nascer o Prof. Ferguson.

Curiosamente, a Igreja, que impôs durante séculos e, se necessário,


recorrendo à tortura e à fogueira, a teoria geocêntrica de
Ptolomeu e uma mundivisão alicerçada nas Sagradas Escrituras, e
se empenhou no policiamento minucioso e opressivo de todas as
áreas do saber e da vida quotidiana, deixou que a nomenclatura e
o imaginário associado aos céus continuassem a ser dominados
pela mitologia greco-romana (Andrómeda, Cassiopeia, Castor e
Pollux, Orion, Pégaso, Perseu…) e por um bestiário que remonta,
nalguns casos, aos sumérios e aos babilónios.

Por desleixo, inércia ou falta de visão, a Igreja


permitiu que as suas ovelhas contemplassem
todas as noites um cortejo de deuses, semi-deuses,
heróis e monstros pagãos. A persistência de um
céu pagão sobre uma Europa fervorosamente
cristã não deixa de ser  intrigante.

Por desleixo, inércia ou falta de visão, a Santa Madre Igreja


permitiu que as suas ovelhas, rigorosamente doutrinadas durante
o dia na mundivisão cristã, contemplassem todas as noites um
cortejo de deuses, semi-deuses, heróis e monstros pagãos. É certo
que as constelações são, como escreve Benson, “uma espécie de
teste de Rorschach estelar em que as narrativas e as mais
profundas preocupações da Humanidade têm sido projectadas”,
pelo que se compreende a manutenção de arquétipos imemoriais,
mas a persistência de um céu pagão sobre uma Europa
fervorosamente cristã não deixa de ser  intrigante.

As tentativas de cristianizar o firmamento surgiram tardiamente,


com o atlas Coelum Stellatum Christianum (1627) de Julius Schiller,
um advogado de Augsburgo que propôs uma reforma profunda
dos céus, substituindo as figuras do Zodíaco pelos 12 Apóstolos e
atribuindo os nomes e imagens de figuras do Novo Testamento às
constelações do Hemisfério Norte e de figuras do Velho
Testamento às constelações do Hemisfério Sul. Assim, Hércules
daria lugar aos Três Reis Magos, a Ursa Menor a S. Miguel Arcanjo,
Pégaso a S. Gabriel Arcanjo, o Boieiro a São Silvestre.
Tivesse um enérgico papa medieval tomado tal iniciativa e
provavelmente outro imaginário pairaria sobre as nossas cabeças
– quem sabe, dilatado, nos nossos tempos, pelo quasar João Paulo
II, pelo asteróide Madre Teresa, pelo buraco negro Escrivá de
Baleguer e pela estrela tripla Pastorinhos de Fátima. Mas em 1627,
o mundo já estava a libertar-se do jugo da religião e a proposta de
Schiller não teve seguidores, ainda que Andreas Celarius a tenha
reproduzido na Harmonia Macrocosmica.
Em 1645, o astrónomo holandês Michel Florent van Langren
publicou um mapa da Lua com toponímia de sua lavra e elevada
proporção de personagens bíblicas e santos, mas não teve muito
mais sorte do que Schiller (um dos três nomes que sobreviveu foi o
do autor: ainda hoje há na Lua uma cratera Langrenus).

À medida que as descobertas astronómicas se foram sucedendo, a


ritmo cada vez mais veloz, a mitologia greco-romana continuou a
ser usada na nomenclatura mas rapidamente esta se alargou (por
esgotamento do panteão clássico) aos próprios astrónomos
(Cassini, Copérnico, Galileu, Huyghens, Kepler, Newton…) e a
instrumentos científicos. Desde 1919 que a nomenclatura
astronómica (a “astronímia”?) é regulada pela União Astronómica
Internacional (IAU, na sigla inglesa), que impõe, entre outras
regras, que não sejam usados “nomes com significado político,
militar ou religioso”, abrindo excepções para figuras políticas
anteriores ao séc. XIX (o Marquês de Pombal ainda tem hipóteses,
Durão Barroso não).

Desde 1919 que a nomenclatura dos astros é


regulada pela União Astronómica Internacional,
que impõe que não sejam usados “nomes com
significado político, militar ou religioso”, abrindo
excepções para figuras políticas anteriores ao séc.
XIX (o Marquês de Pombal ainda tem hipóteses,
Durão Barroso não).

Para já, têm dominado os nomes de cientistas (a que se somam


alguns pensadores), mas se a atribuição se subordinasse ao voto
popular certamente que teríamos no céu plantéis completos dos
principais clubes de futebol (a começar pelos “galácticos” do Real
Madrid) e muitos wrestlers. Seja como for, o que salta à vista é que
a astronímia é completamente dominada por dead white males:
quase não há lugar para mulheres e não-ocidentais (se contarmos
os russos como europeus). Quanto ao estado de “dead”, decorre
das regras da IAU, que impõe que as personalidades estejam
mortas há pelo menos três anos (é, pois, lícito – e provavelmente
alguém já o fez – submeter proposta para uma galáxia Elvis).

O facto de os céus não serem hoje o campo de batalha de ferozes


culture wars, envolvendo grupos feministas, representantes de
tribos índias, grupos de pressão hispânicos e afro-americanos,
associações de crentes muçulmanos, budistas e New Age, apenas
reflecte o desinteresse geral pela abóbada celeste entre os não-
especialistas: vivemos cada vez mais dentro de casa ou dentro de
automóveis e outros meios de transporte, rodeados pelos nossos
ecrãs, encerrados na nossa bolha tecnológica, e mesmo quando
assomamos à janela ou à varanda, a iluminação das cidades ofusca
completamente o firmamento. E com GPS no smartphone, quem
precisa de guiar-se pelas constelações?

Serve este magnífico repositório de representações do céu para


recordar-nos do espectáculo que se desenrola ininterruptamente
sobre as nossas cabeças alheadas e do caminho longo, tortuoso e
perigoso (que o digam Giordano Bruno ou Galileu) que a “razão
impura do homem” teve de trilhar na descoberta do nosso lugar
no cosmos.

Título: Cosmigraphics: Picturing space through time

Autor: Michael Benson

Editora: Abrams

Páginas: 320

Preço: 43,93€ (na Amazon espanhola)


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