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Certos jargões relativos à escrita literária não perdem a força com o passar do tempo.

Renovam-se, parecendo sempre conterem em si uma sabedoria que não nos deixa perceber a
repetição de suas palavras, evitando um desgaste que de outra maneira seria inevitável. Essa
renovação se dá, muitas vezes, por conta dos próprios escritores, que vemos emendar em seus
discursos sobre a criação literária, seja de forma mais corriqueira ou em raciocínios mais
finamente elaborados, esses mesmos jargões, essas frases feitas que se recusam a tornarem-se
banais, e que ganham nova credibilidade saídas da boca de um Evandro Affonso Ferreira, por
exemplo. Ouvir de um autor que "o próprio romance me pediu para seguir essa direção" é algo
que se ouve muitas vezes — mas é algo que sempre se ouve com interesse e, quando um autor
o diz, o faz com sinceridade, como quem alcançou uma compreensão fundamental.

Se certas frases ou certas ideias se repetem tanto, não há por que não considerar que
tenham o seu valor e o seu sentido. Em verdade, se prestarmos atenção na fala de muitos
escritores, veremos que os jargões literários podem acabar por resumir uma conclusão que só
se fez plenamente presente para eles passados muitos anos de dedicação profissional — mesmo
tendo ouvido a esses jargões desde o início de sua formação. É uma espécie de ciclo que se
forma em torno de certas maneiras de pensar, que os jargões incorporam: em uma das
extremidades do ciclo, a sensação de que essas perspectivas, há tanto tempo repetidas, são
banais; na outra, a percepção de que o que aparentemente é banal esconde algo de sutil, de
profundo. Como é difícil conceber que um ciclo tenha extremidades, a imagem de uma espiral
será melhor para ilustrar esse raciocínio, e com a vantagem de se poder adicionar um sentido
para onde a espiral se deslocaria na confecção de seus arcos, acrescentando à ideia um
movimento. Para acompanhar o giro da espiral, portanto, e acessar aos jargões literários com o
olhar da descoberta ao invés de recebê-los com a indiferença de uma informação banal, o que
importa deve ser a percepção de que cada um deles têm uma significação mais exata que sua
formulação modelar deixa transparecer à primeira vista.

Não foi sem motivo (ou por pura admiração) que finalizei o primeiro parágrafo deste
ensaio com a lembrança de Evandro Affonso Ferreira. Lembro de quando tive a oportunidade
de ouvi-lo falar sobre literatura, pessoalmente, e dizer que "o escritor precisa encontrar sua
própria voz". A frase só funcionou como devia, só me fez avançar no movimento da espiral,
porque antes de dizê-la Evandro havia lido trechos de livros seus, de livros de outras pessoas,
de crônicas, de poemas. Havia algo em sua entonação, quando falava, que era mais que uma
impostação da voz, mais que uma dramatização da leitura. Pelo contrário: a voz com que
Evandro lia os textos que selecionou surpreendia não por uma ruptura, mas por uma
continuidade relativamente à voz que era a sua quando não estava lendo. Evandro falava como
escrevia e lia como falava, e isso era poderoso. Era a voz. Evandro tinha encontrado a própria
voz, e voz não é somente metáfora para estilo, para um percurso em torno das próprias
preferências e referências, para as idiossincrasias mais ou menos conscientes que aparecem
sobre a páginas quando se escreve. Para minha surpresa, voz era exatamente isso: voz. A voz
física, a voz da leitura, a voz que deve ser a da leitura, se conseguirmos encontrá-la. A voz que
incorpora o ritmo, o ecoar das vogais, o tilintar e a aspereza das consoantes, os silêncios. E o
motivo dessa voz ser diferente das demais é difícil de explicar. É algo sutil. Mas o poder
especial que essa voz tem sobre as outras é a capacidade de transpor-se ao texto escrito e fazer
o caminho inverso: da leitura que reverbera a cada palavra com sua duração exata ao texto
consciente de sua própria vibração. É preciso encontrar a própria voz.

Mas esse exemplo, pessoal, veio somente a propósito de uma ilustração de como os
jargões têm um percurso a ser cumprido em sua assimilação. Não intenciono, aqui, tratar da
voz do escritor, mas de outra assimilação, igualmente pessoal, que é também refém de um
jargão literário. Sempre se ouve, especialmente a respeito de livros publicados, que são como
filhos para os seus autores. Seja em se tratando de livros ou de composições literárias menos
extensas, o paralelo traçado entre autoria e paternidade é com certeza um dos jargões mais
convencionais na abordagem da experiência literária. Não vejo problemas com essa
comparação. Como já disse, os jargões têm o seu sentido. Mas, passando pelo exercício da
paternidade, como passo agora, entendo esse jargão a partir de um outro ponto de sua espiral.

Em um momento inicial, a comparação é óbvia e trivial: um escritor trata seu livro como
uma filha porque viveu por ele. Porque pôs no mundo algo que é parte de si. Porque quer vê-
lo amado, evoluindo, admirado.

Se há, sim, muitas aproximações possíveis entre a criação de uma filha e a produção de
um romance, de um conto, de um poema; aquelas que guardam a potência maior do ato de
escrever não se deixam entrever por essas comparações mais imediatas. É preciso ir um nível
mais abaixo. É preciso ter uma filha — ou, pelo menos, para mim foi necessário.

Proponho-me a listar, então, algumas aproximações entre a autoria e a paternidade que


penso serem mais profícuas em sua significação. Ainda que não me pareçam exclusivas para
esse gênero, foram concebidas em uma tentativa de compreender a ilustrar a criação poética —
ao menos, na maneira como me ocorre. Não se pode, portanto, desvinculá-las dessa fonte
extremamente pessoal, tanto da minha paternidade quanto da minha autoria. Também por esse
motivo, as referências passarão a ser ao poema e à poesia, e não à literatura; mas isso não
deverá fazer grande diferença para a leitura.

Dando por finalizadas as apresentações, tratarei das maneiras pelas quais um poema
pode ser uma filha.

O começo é o melhor ponto se para iniciar. Ao que me parece, nesse caso, o começo
não poderia ser outra coisa que não aquilo que precede a escrita do poema ou, ainda, precede
mesmo a intuição criativa. O começo, evidentemente, deve ser a primeira etapa; portanto,
aquilo que separa alguém que escreve de alguém que não escreve poesia. De maneira grosseira,
acho que posso chamar a esse começo de fonte ou de propósito. A primeira pergunta deveria
ser, então: por que escrever? Em seu lugar, perguntarei: por que ter uma filha? Não é fácil
encontrar uma resposta; especialmente quando elas nascem — e é importante ressaltar que é
diferente responder a essa pergunta antes e depois do nascimento. A resposta que me interessa,
para termos de comparação, é aquela que vem de uma filha já nascida. A resposta que dou a
essa pergunta agora, como um pai ativo de uma filha de nove meses. Por que tenho uma filha?

Não foi por acidente. Mas, se tivesse sido, essa resposta não caberia aqui: não se trata
de perguntar por que, em um dado momento, sob certas circunstâncias, duas pessoas estiveram
juntas e aconteceu uma gestação. A pergunta verdadeira é: por que eu escolho, todo dia, ter
uma filha? Com certeza, não é porque o mundo precisa de pessoas que possam habitá-lo de
maneira mais inteligente, embora isso seja verdade. Não seria autêntico dizer que é esse o
motivo central da minha (da de alguém?) paternidade. Também não é porque quero que a Rosa
conheça o mundo em que nasceu e descubra nele sua liberdade, embora isso também seja
verdadeiro e se pareça um pouco mais com um motivo legítimo. Parece-me difícil de negar que
o verdadeiro motivo para se ter uma filha esteja em si, e não na criança; ainda que parte
importante desse motivo seja ser capaz de recebê-la.

O motivo verdadeiro para se ter uma filha é que não se pode deixar de tê-la. Essa frase
não pode ser entendida como medo da solidão, esperança de cuidado durante a velhice. "Não
poder deixar de ter uma filha" significa não poder escolher quando se é ou se deixa de ser um
pai. Não é algo que se possa fazer em dias contados da semana, não é algo que se possa fazer
somente nos momentos mais apropriados, não é algo que se possa deixar de fazer quando
contraria a todo o universo de atividades que se tem vontade de levar adiante. A paternidade
pode (deve) ter companhia, na sua execução e no seu planejamento, mas nunca deixa de ser
integral. Uma filha nunca exige menos de cem por cento. Nunca se deixa de estar disponível.
E esse é o motivo de se tornar um pai: a experiência de fazer alguma coisa completamente. Não
se pode ter a água no meio das canelas: ter uma filha é a imersão completa; é o afogamento; é
não morrer apesar disso.

Na minha lista de frustrações, que são de todo tipo, a tristeza por não ter tido coragem
de sustentar as escolhas que fiz no máximo de minhas capacidades é sempre presente.
Provavelmente, essa é uma frustração comum. Não se pode, mesmo, sustentar
incondicionalmente a todas as escolhas. Mas penso na poesia. Na poesia, é isso que quero fazer.
Há outro caminho, que não a entrega irrestrita, para produzir algo verdadeiro? Há outro
caminho, que não a entrega irrestrita, para me unir àqueles que fazem valer a pena viver pelas
palavras? Daí o desejo de afogamento; de experimentar, de pelo menos chegar perto, do estado
que se transforma a intuição em verso por uma criação obstinada. Não por transe: por
obstinação; por uma decisão que se repete feito um pêndulo de relógio. O desejo da poesia é
esse de ser completamente, tão completamente. Fazê-la acontecer à força. Como uma filha faz
com um pai.

Talvez não esteja perfeitamente explicada a relação entre propósitos que coloquei. Mas
a ideia, aqui, não é a de alcançar a precisão das máquinas de medir e calcular. Um pouco de
confusão pode até ser benéfico para penetrar a amplidão do tema.

Ultrapassando essa primeira aproximação entre a criação do verso e da vida, vou adiante
para perceber que filha e poema se unem, também, em sua impossibilidade. Talvez a
impossibilidade seja o único aspecto que irei listar que não é uma aproximação, nem um modo
comparativo ou ilustrativo. Há uma coisa na paternidade e na autoria que é exatamente a mesma
em uma e em outra; não duas coisas do mesmo tipo, mas a mesma coisa. É impossível escrever
um poema do mesmo modo que é impossível criar uma filha.

Não existem fórmulas na criação. Por qualquer ponto de vista que se queira olhar, não
será possível definir o método ou o caminho que levará ao grande poema, à poesia que faz
suspender as investigações e se resignar à constatação de que "escrever é isto". Não há em que
se agarrar para se erguer a esse patamar. Mas mesmo pensando com menos grandeza: se me
dissessem "escreva agora um poema", eu responderia "como?", ou talvez respondesse "não
consigo". Mas como criar uma filha? Como ser um pai? Como conseguir entender este ser que
não fala, mas que exige; que não sabe, mas que quer? Como superar um dia inteiro, uma semana
inteira, um mês inteiro em completa disponibilidade a essa vontade flutuante, à contradição dos
choros, ao que é sutil demais para perceber? Não é possível. Não há manual que seja suficiente
nem planejamento que dê conta. Criar é impossível.

Mas há exercícios poéticos, há leitura, há afinidades de estilo, há curiosidade e


experimentação, também há mães e avós, há orientação nos postos de saúde, há material
disponível na internet, há livros, há especialistas, há o olhar atento à criança. Pois continua, de
todo modo, impossível. Continua sendo um corredor sem luz e sem paredes aquele por onde se
tenta guiar uma intuição, ou um desejo, ou o medo e o desespero. Se há exercícios, é para que
se acostume com esse corredor vazio. Se há especialistas, é só para mostrar que o corredor é,
sim, vazio. Mas transponível. Acontece. Nunca se sabe por que, mas uma hora, talvez pelo
próprio cansado de um dos braços, que o fez amolecer, o choro passa. Então agarra-se a isso
que se fez sem saber, tentando repetir, tentando encontrar a imobilidade dentro do movimento,
tentando nem respirar, mas sem morrer sufocado. O choro volta uma outra vez. Braço para
cima, para baixo, devagar, bem devagar, uma rotação no pulso talvez, um shhh, os joelhos mais
flexionados, o choro diminuiu, os joelhos querendo se esticar só mais um pouquinho, mais um
pouquinho, mais um pouquinho, mais, o choro parou, estátua, aí, bem aí, estátua, mas não pare
de andar. A criação, de uma filha e de um poema, menos se explica que acontece. E quando
acontece parece surgir de um vácuo. Ainda que não seja o caso. E admito que não seja: ainda
assim, aquilo que fez que desse certo, é mais da ordem do impossível que do possível para o
meu entendimento.

Mas a impossibilidade é, na verdade, uma consequência do completo mistério a que


pertence a poesia e a infância. É completamente avesso à familiaridade aquilo que reserva uma
liberdade infinita; que pode ser qualquer coisa; que opera na ordem dos desejos, dos quereres
e das dores que nem chegam a ser desejos, quereres e dores — mas não se encontram palavras
que capturem aquelas manifestações místicas. Um poema pode ter uma única palavra, talvez
uma única letra; um poema pode ser escrito em papel ou sobre a pele; um poema pode ser
registrado somente pela vibração do ar durante a única vez em que foi dito. Uma filha pode
nascer sem vida. Uma filha pode ter medo do som que sai de minha garganta quando engulo
água. Uma filha pode ficar em silêncio, olhando para as próprias mãos, por mais de uma hora.
Uma filha pode dormir durante toda a noite de ano novo. Uma filha pode ter sua pior noite de
sono logo após o dia mais tranquilo que já teve. Uma filha pode subverter, exatamente, a todas
as expectativas que existem sobre ela.
Uma filha e a poesia são o outro. Não cabem nos nossos escaninhos. São elas que tem
a capacidade de se revelar, de se fazer observar, de manifestar um seu traço ao olhar atento e
atencioso. É mais importante escutar o que dizem sobre si que dizê-las. Uma filha, um poema,
se aprende observando. É um trabalho de recepção. O próprio verso que quer se formar na
página é o que deve ser observado, diante dos olhos, para saber se quer ou se não quer estar ali.

Por essa recepção que se constrói a paternidade, assim como a autoria. A espiral da
criação é essa passividade ativa de se habitar um espaço desconhecido. Há um trabalho intenso
de liberdade vigorosa e exigente, que chega a ser extenuante, e que não permite ser abandonada.
António Lobo Antunes escreveu uma frase abaixo do parapeito de sua janela que diz "do
rascunho a livro o caminho faz-se de joelhos", e a atribuiu a um "poeta do leste" sem nunca
dizer quem é. Mas é de fato um poeta, ou de fato um pai. O caminho à paternidade e à poesia
faz-se, de fato, de joelhos. E é a isso que se tem apego, o maior apego do mundo: à paternidade,
à autoria. Não à filha ou ao poema.

O percurso de se tornar pai ou de se tornar poeta é o da construção de uma relação


transformadora em todos os níveis. Um deslocamento da identidade. A grande conquista é ser-
se capaz de entrar nessa relação — que passa a ser uma relação constante, independente da
presença da filha ou do poema. Não é para si que existe um poema ou uma filha; mas a
paternidade, tornar-se um poeta, a relação, é uma conquista individual e inesgotável. Ser pai
torna-se maior que ter uma filha.

É pela paternidade e pela autoria, ou seja, pela relação, que passa a última aproximação
que quero tratar aqui. A sensação de extensão de si próprio através dessa mesma relação quando
a vemos acontecer, se formar, em outras pessoas a que somos próximos. A criação de elos entre
indivíduos é diversa e de toda intensidade, mas aquela em que se percebe integrante de uma
mesma relação — não do mesmo tipo, mas da mesma relação — tem a capacidade dos
sentimentos de união mais verdadeiros. Não é possível reduzir a palavras como solidariedade
ou cumplicidade a sensação de se tornar, um pouco, a mesma pessoa que uma pessoa diferente,
filhas de um poema ou de uma barriga.

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