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27/12/2021 02:39 Chico Buarque e Georg Lukács: estudos sobre MPB e teoria acadêmica

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ANÁLISE

Chico Buarque e Georg


Lukács: estudos sobre MPB
e teoria acadêmica
Acervo Online
| Brasil
por Maurício Brugnaro Júnior
29 de setembro de 2020

Uma maior integração entre a cultura popular e a teoria


majoritariamente acadêmica é capaz de trazer maiores
benefícios para o debate público e político do que de forma
isolada. Aqui o objeto de estudo foi uma canção de Chico
Buarque, mas sem dúvida não se limita a ela, ao cantor ou
apenas a MPB, outros gêneros, outros agentes e outras esferas
têm muito a agregar ao debate

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“Assim, cada um a seu modo, os amigos tocam a vida, com ou sem reflexão;
tudo parece seguir o rumo natural, da mesma maneira que, como ocorre
nas situações excepcionais, quando tudo está em risco, continuamos a
viver, como se nada nos ameaçasse.” Goethe: Afinidades eletivas

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O propósito deste texto é estabelecer uma correlação entre a clássica


canção Construção (1971) de Chico Buarque e a teoria sociológica e
filosófica, mais especificamente a desenvolvida pelo filósofo húngaro
Georg Lukács (1885-1971). Em outras palavras, é uma análise teórica-social
sobre a letra da música em questão, uma união entre teoria
(majoritariamente acadêmica) e a música popular brasileira, ambas
representando de forma esplêndida o trabalho do subproletariado no
capitalismo moderno, é também uma breve análise do trabalho na
sociedade atual. Este estudo não busca se encerrar em si, mas serve como
esboço para um estudo futuro, algo próximo das congruências entre a
música popular brasileira (ou da América Latina) com uma análise óptica de
viés sociológico.

Não possuo conhecimento se Chico Buarque leu ou teve algum contato


com Lukács ou outra vertente sociológica ou filosófica desta orientação,
mas sua obra dialoga de forma incrível com a crítica social proposta pelo
marxista em partes de seu livro História e consciência de classe, com
ênfase na seção sobre reificação das relações sociais. Chico Buarque e sua
carreira na cultura e ativismo político dispensam apresentações, mas
pode-se destacar obras como Cálice, Roda viva ou Apesar de você como
obras de resistência e ativismo político contra a repressão ditatorial
brasileira. Lukács também escusa apresentações, embora mais conhecido
no meio acadêmico, ganha destaque na análise e realiza uma crítica
contundente sobre o capitalismo moderno e também sobre determinados
aspectos do “socialismo” stalinista; o autor, entre muito escritos e feitos,
desenvolveu a teoria da reificação e é considerado um dos fundadores do
marxismo ocidental.
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Primeiramente é necessário estabelecer um breve arcabouço conceitual –


a teoria –, algo obviamente limitado e, de certa forma, simplificado pelo
espaço e pelo gênero de escrita a que aqui me proponho, para então ser
possível construir o caminho de análise ao redor da obra brasileira. Sendo
assim, estabeleço quatro noções prévias, primeira: compreender o que Max
Weber – sociólogo de orientação liberal – propõe ao elaborar a teoria da
dominação, com ênfase na dominação racional típica da modernidade que
“é, segundo toda a experiência, a forma formalmente mais racional de
exercício de dominação em todos esses sentidos: em termos de precisão,
continuidade, disciplina, rigor e confiabilidade – portanto: calculabilidade
tanto para o senhor quanto para os demais interessados, intensidade e
extensibilidade do desempenho, aplicabilidade formalmente universal a
todas as espécies de tarefas, realizável em grau máximo de desempenho de
maneira puramente técnica. (WEBER, 1991, p. 144-146, grifos meus).

Aqui se nota o caráter racional da era capitalista moderna, este visa, como
dito acima, a calculabilidade e desempenho nas relações sociais de tal
sociedade, o que atinge sem dúvidas – e com diferentes intensidades – a
esfera de produção e do trabalho. Segunda: compreender o que Lukács
elabora por reificação. Para isto, retomo um trecho de Karl Marx na seção
sobre o fetichismo da mercadoria no primeiro capítulo de O Capital, o qual
diz que “é apenas uma relação social determinada entre os próprios
homens que aqui assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma
relação entre coisas” (MARX, 2011, p. 206). Ou seja, o fetichismo da
mercadoria oculta as relações sociais do processo de produção e de
valoração da mercadoria, refletindo, na forma-mercadoria, os aspectos
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sociais do próprio trabalho do homem como próprios dos produtos do


trabalho. Terceira: Marx esclarece a perda do caráter qualitativo das
relações sociais e de produção, como pode-se verificar com “a
subordinação do homem à máquina, os homens acabam sendo apagados
pelo trabalho, o pêndulo do relógio torna-se a medida exata da atividade
relativa de dois operários, tal como a medida da velocidade de duas
locomotivas […] O tempo é tudo, o homem não é mais nada; quando muito,
é a personificação do tempo” (MARX MEW 4, Elend der philosophie, p.85
apud LUKÁCS, 2003, p. 204-205).

Além disso, Lukács diz que perseguir “o caminho percorrido pelo


desenvolvimento do processo de trabalho […] descobriremos uma
racionalização continuamente crescente, uma eliminação cada vez maior
das propriedades qualitativas, humanas e individuais do trabalhador” (Ibid,
p.201, grifo meu). Quarta: a obra Construção, em um jogo de repetições
semelhantes a cada conjunto de estrofes e versos que terminam em
palavras proparoxítonas, possui um ritmo propositalmente cadenciado que
objetiva passar a ideia, ou a sensação, de uma máquina, de uma construção,
de uma perda do caráter de humanidade em relação ao maquinário.

A atualidade e importância da análise consistem justamente na crítica


realidade atual do trabalhador, pois desde Marx, passando por Weber,
Lukács, pela América Latina com Chico Buarque e ainda hoje, houve um
agravamento da situação na esfera do trabalho concomitante – não por
coincidência – com o avanço do [neo]liberalismo. De forma contraditória,
mas não sem sentido, o capital proporcionou um avanço da técnica e uma
especialização de parte da classe trabalhadora em detrimento de uma
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desespecialização de outra, que, hoje mais que nunca até o momento, faz
com que a massa de trabalhadores oscile entre “os temporários (que não
têm nenhuma garantia de emprego), os parciais (integrados precariamente
às empresas), os subcontratados, terceirizados (há, não obstante,
terceirização em setores ultraqualificados)” e “os trabalhadores da
“economia informal”” (ANTUNES, 2001, p. 65, tradução minha).

Essa massa “desespecializada” ganha espaço e representatividade pela


figura do trabalhador da canção de Chico Buarque, o mesmo trabalhador
que assume as características da “forma fantasmagórica de uma relação
entre coisas” e que “não é mais nada; quando muito, é a personificação do
tempo” com relação ao seu trabalho, o que, para o sistema do capital,
resume-se em calculabilidade prévia. Percebe-se a harmonia entre a
canção, a concepção da relação de trabalho oriunda do marxismo e o
entendimento da redução a calculabilidade técnica das relações sociais
entre autores tão distintos, mas ambos analistas e críticos da realidade
social.

Partindo à análise de alguns versos de Chico Buarque, destaco o caráter


qualitativo de amar do sujeito, que se transfigura como uma tarefa de
maquinaria do primeiro ao décimo oitavo verso, respectivamente: “amou
daquela vez como se fosse a última” / “amou daquela vez como de fosse
máquina”. Outros versos de ênfase no conceito de reificação – no qual as
relações humanas assumem características de coisas e vice-versa – que
aqui se debate se encontram do sexto ao trigésimo sétimo verso,
respectivamente: “ergueu no patamar quatro paredes sólidas” / “ergueu no
patamar quatro paredes flácidas”; e também nos versos décimo primeiro e
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vigésimo oitavo, respectivamente: “bebeu e soluçou como se fosse um


náufrago” / “bebeu e soluçou como se fosse máquina”, este último de forma
explícita. Isto é, o processo de reificação corresponde “como consequência
do processo de racionalização do trabalho, as propriedades e
particularidades humanas do trabalhador aparecem cada vez mais como
simples fontes do erro quando comparadas com o funcionamento dessas
leis parciais abstratas, calculado previamente” (LUKÁCS, 2003, p. 203), ou
seja, o aspecto humano aparece como erro na construção do processo de
relações reificadas e previamente passíveis de cálculo.

Próximo ao final de cada ciclo da canção, Chico canta: “morreu na


contramão atrapalhando o público”, “morreu na contramão atrapalhando o
sábado” e “pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair”, algo como
a morte certeira, além do aparente fato de que morrer apenas atrapalharia
o fluxo do cotidiano, o que Lukács bem poderia responder com que “a
metamorfose da relação mercantil num objeto dotado de uma “objetivação
fantasmática” não pode, portanto, limitar-se à transformação em
mercadoria de todos os objetos destinados à satisfação das necessidades.
Ela imprime sua estrutura em toda a consciência do homem; as
propriedades e as faculdades dessa consciência não se ligam mais somente
à unidade orgânica da pessoa, mas aparecem como “coisas” que o homem
pode “possuir” ou “vender”, assim como os diversos objetos do mundo
exterior” (Ibid, p. 222-223, grifo meu) e ainda “o mundo reificado aparece
doravante de maneira definitivamente – e se exprime filosoficamente,
elevado à segunda potência, num exame “crítico” – como o único mundo
possível, conceitualmente acessível e compreensível, que é dado a nós, os
homens” (Ibid, p. 239). Além disso, trechos como “a certidão pra nascer e a
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concessão pra sorrir” correspondem a dominação racional burocrática


típica do Estado moderno capitalista, tão presente em Weber e,
posteriormente, no marxista húngaro.

Como bem se sabe o trabalho consiste na exploração de trabalho humano


vivo, isto é, é preciso a força de trabalho apreendida como mercadoria de
troca concomitante ao processo de reificação das relações sociais
presentes no processo de produção, o que Ricardo Antunes muito bem
explica como “o capital não pode eliminar o trabalho vivo do processo de
criação, deve aumentar a utilização e a produtividade do trabalho de modo
que intensifique as formas de extração do sobretrabalho em tempo cada
vez mais reduzido” (ANTUNES, 2001, p. 15, tradução minha). Resultando de
que a morte faz parte da calculabilidade do capital, permitindo concluir
que, para o funcionamento deste sistema, o proletariado não desaparecerá
tão rapidamente e que não é possível projetar “nenhuma possibilidade de
eliminação da classe-que-vive-do-trabalho” (Ibid, p. 67, tradução minha).
De acordo com Lukács, foi o capitalismo o primeiro a produzir uma
estrutura de consciência unitária para toda sociedade, que garante sua
normalização ao passo que realiza o estranhamento – alienação – no
âmago das relações sociais. O capital e sua expressão mais contemporânea
representada pelo neoliberalismo não visam uma melhora econômica ou
social na esfera do trabalho, pois para ele é interessante e útil contribuir à
produção de trabalhadores como o da canção, como trabalhadores de
terceiro mundo, caso contrário tenderia a destruição da economia de
mercado devido a incapacidade do processo de acumulação desigual entre
a sociedade.

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Concluímos que uma maior integração entre a cultura popular e a teoria


majoritariamente acadêmica é capaz de trazer maiores benefícios para o
debate público e político do que de forma isolada. Aqui o objeto de estudo
foi uma canção de Chico Buarque, mas sem dúvida não se limita a ela, ao
cantor ou apenas a MPB, outros gêneros, outros agentes e outras esferas
têm muito a agregar ao debate. A atualidade brasileira mostra reflexos
desses processos que há muito vem se instalando na estrutura da
sociedade, principalmente após os avanços liberais e neoliberais de finais
do século XX, segundo Antunes: “a classe-que-vive-do-trabalho sofreu a
mais aguda crise deste século, que afetou não somente sua materialidade,
senão que teve profundas repercussões em sua subjetividade e na íntima
interrelação destes níveis, afetou sua forma de ser” (Ibid, p. 25, tradução
minha), para essa situação, a crítica do capital não deve se limitar, também,
nas relações capital-trabalho, mas deve abarcar a dimensão de opressão
nas relações de gênero, raça, como também outras camadas do debate
social contemporâneo. Pela conjuntura da situação política e social
brasileira – e tudo que englobam –, e não sendo de pensamento weberiano,
isto é, um fatalista resignado – “o capitalismo é o nosso destino” –, mas sim
apostando numa alternativa emancipadora, retomo Chico Buarque na
canção Apesar de você:

“Apesar de você/ Amanhã há de ser outro dia/ Inda pago pra ver/ O jardim
florescer/ Qual você não queria/ Você vai se amargar/ Vendo o dia raiar /
Sem lhe pedir licença/ E eu vou morrer de rir/ Que esse dia há de vir/
Antes do que você pensa”.

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Referências

ANTUNES, Ricardo. ¿Adiós al trabajo? Ensayo sobre las metamorfosis y la


centralidad del mundo del trabajo. São Paulo: Cortez editora, 2001.

LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética


marxista. São Paulo: Martins Fontes, 20003.

MARX, Karl. O capital: Livro 1. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011.

SCHLUCHTER, Wolfgang. O desencantamento do mundo: seis estudos


sobre Max Weber. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2014.

WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo:


Companhia das Letras, 2004.

____________. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia


compreensiva. Brasília/DF: Editora Universidade de Brasília, 1991.

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