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J.-K. HUYSMANS
A Caminho
Título original
En Route
Coordenação editorial
José Narciso Soares
Tradução
B. da Costa Pereira
Revisão
Luís Abel Ferreira
Diogo Morais Barbosa
Ilustração da capa
En Pays Chartrain
Óleo sobre tela de Alexandre Sége (1816-1885).
Museu de Belas-Artes de Chartres. (França)
ISBN 978-972-26-2650-7
geral@civilizacaoeditora.pt
www.civilizacao.pt
PRÓLOGO
* Lá-Bas foi traduzido por Aníbal Fernandes com o título: Além (Lisboa,
2006), e esse romance, com A C am inho, A Catedral (ed. Civilização Editora,
2007) e VOblat [O Oblato], constituem um ciclo na obra de Huysmans, com a
progressão da mesma personagem, Durtal. [N.R.J
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É ela, com efeito, que, depois de ter sido fundada em 1127 por
São Bernardo, teve à sua frente verdadeiros santos, tais como os
Veneráveis Humbert, e Guerric, cujas relíquias são conservadas num
relicário debaixo do altar-mor, o extraordinário Monoculus que Luís
VII venerava.
Ela definhou, como todas as suas irmãs, sob o regime da
Comenda; morreu durante a Revolução e ressuscitou em 1875. Pelos
cuidados do Cardeal-Arcebispo de Reims, uma pequena colônia de
Cistercienses veio, nesta época, de Santa Maria do Deserto, para
repovoar a antiga abadia de São Bernardo e tornar a atar os laços
de orações rompidos pela tormenta.
Quanto ao irmão Simeão, tirei dele um retrato nítido mas
tosco, sem atavios, uma fotografia sem retoques. Não o exaltei
nem engrandeci, com o parece insinuar-se, no interesse de uma
causa. Pintei-o, segundo o método naturalista, tal com o é este bom
santo!
E eu penso constantemente neste piedoso homem que ainda
há bem poucos dias tornei a ver. Agora está tão velho que já não
pode cuidar dos seus suínos. Ocupa-se em escolher e limpar os
legumes na cozinha, mas o Padre Abade autoriza-o a ir visitar de vez
em quando os seus antigos alunos; e eles não são ingratos para com
ele, porque se levantam em alegres clamores quando o vêem apro
ximar-se das cortes.
Ele sorri-lhes no seu sorriso tranqüilo, grunhe um pouco com
eles, depois volta a enterrar-se no mutismo benéfico do claustro;
mas, quando os seus superiores o desligam por alguns momentos
da regra do silêncio, são verdadeiros ensinamentos tudo o que este
eleito nos dá.
Cito um ao acaso:
Um dia que o Padre Abade lhe recomendou de orar por um
doente, ele diz-lhe:
- Tendo as orações feitas por obediência mais virtude que as
outras, suplico-lhe, meu Reverendíssimo Padre, que me indique as
que devo rezar.
- Pois bem, meu irmão, há-de recitar três Pa ter e três Ave,
O velho sacode a cabeça e como o Abade, um pouco sur
preendido, o interroga, ele confessa o seu escrúpulo.
- IJm só Pater e uma só Ave - disse ele - bem proferidos e com
fervor, creio que são suficientes; é mostrar falta de confiança o dizer
mais.
E este cenobiia não é, como se poderia julgar, uma excepção.
Há-os semelhantes a ele em todas as Trapas e também nas outras
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nho, o nome de Jesus passava, e era como que uma aberta nesta
tromba marítima; o universo anelante pedia perdão, relembrava, por
todas as vozes do chantre, as misericórdias infinitas do Salvador e a
sua graça, conjurava-o a absolvê-lo como outrora perdoou ao ladrão
penitente e a Madalena.
Mas, na mesma melodia desolada e tenaz, a tempestade redo
brou de fúria, inundava com as suas vagas plagas entrevistas do céu,
e os solos continuavam exânimes, cortados pelas entradas lacrimo
sas do coro, encarnando na diversidade das vozes alternadas, as
condições especiais das vergonhas, os estados particulares dos tran
ses, as idades diferentes das lágrimas.
No final, quando misturadas e confundidas, estas vozes tinham
levado por sobre as grandes águas do órgão todos os fragmentos
perdidos das dores humanas, todas as bóias das orações e das lágri
mas, elas tornavam a cair extenuadas, paralisadas pelo espanto,
gemiam em suspiros de criança que esconde a face, balbuciavam o
Dona eis requiem e terminavam esgotadas por um amen tão
gemente que expirava, semelhante a um leve resfolegar, por cima
dos soluços do órgão.
Que homem tinha podido imaginar tais desesperos, sonhar tais
desastres? E Durtal respondia a si mesmo: - Ninguém.
O caso é que tinha em vão tentado por todos os meios desco
brir o autor desta música e desta prosa. Tinham-nas atribuído a
Frangipani, a Tomás de Celano, a São Bernardo e a muitos outros,
e elas permaneciam anônimas, simplesmente formadas pelas alu-
viões dolorosas dos tempos. O Dies irae parecia a princípio ter
caído, como uma semente de desolação, nas almas desvairadas do
século xi; havia germinado, depois lentamente desabrochado,
nutrido pela seiva das angústias, e regado pela chuva das lágrimas.
Tinha sido enfim ceifado, quando aparecera maduro, e tinha sido,
talvez, muito mutilado, porque num dos primeiros textos que se
conhecem, uma estrofe, depois desaparecida, evocava a magnífica e
bárbara imagem da terra que girava, vomitando chamas, enquanto
que as constelações voavam em chispas, e o céu se desdobrava em
duas partes, como um livro aberto!
Tudo isto não impede - concluiu Durtal - que estes tercetos,
tecidos de sombra e frio, eriçados de rimas, repercutindo-se em
duros ecos, e que esta música de trama rude, que veste as frases
assim como uma mortalha e desenha os contornos rígidos da obra,
não sejam verdadeiramente admiráveis! E no entanto, este canto que
compunge, que presta tanta energia à amplidão desta prosa, este
período melódico, que consegue, ou variando, ou permanecendo o
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milagres e torna-os inermes. Há, pois, falta de arte, a qual tiraria este
livro da categoria das obras apagadas, das obras mortas!
O que desanimava completamente Durtal era o exemplo des
tes dois homens, opostos como jamais escritores alguns o foram, e
não tendo podido atingir a perfeição, um na lenda de São Julião
porque a Fé lhe faltava, e o outro porque possuía uma inextensível
indigência de arte. Tornava-se necessário ser simultaneamente os
dois, e ficar ainda em si - dizia - , senão para quê lançar-se a tais
tarefas? Mais vale ficar calado -- e ele, desesperado, mergulhava-se
cada vez mais no seu sofá.
Então o desprezo por esta existência deserta, que arrastava,
cada vez mais se acelerava nele, e mais de uma vez perguntara a si
mesmo que interesse a Providência podia ter em torturar assim os
descendentes dos seus primeiros degredados? E se não obtinha res
posta, era portanto obrigado a dizer que ao menos a Igreja recolhia,
nestes desastres, os salvados, abrigava os náufragos, repatriava-os, e
assegurava-lhes enfim uma pousada.
Não como Schopenhauer, por quem outrora se apaixonara,
mas de quem a especialidade de inventários antes da morte e os
seus herbários de plantas secas tinham cansado, a Igreja não enga
nava o homem nem tentava burlá-lo, exaltando-lhe a clemência de
uma vida que bem sabia ser ignóbil.
Por todos os seus livros inspirados, ela clamava o horror do
destino, chorava a tarefa imposta ao viver. O Eclesiástico, o
Eclesiastes, o Livro de Joh, as Lamentações de Jeremias, atestavam
essa dor em cada linha, e a Idade Média tinha também na Imitação
de Cristo amaldiçoado a existência e chamado em grandes gritos
pela morte.
Mais claramente que Schopenhauer, a Igreja declarava que
nada havia a desejar neste mundo e nada a esperar; mas lá onde
param os processos verbais do filósofo, ela avançava sempre, trans
punha os limites dos sentidos, divulgava a meta, precisava os fins.
Depois - dizia consigo - tudo bem considerado, o argumento
de Schopenhauer, tão exaltado contra o Criador e tirado da miséria
e da injustiça do mundo, não é irresistível, quando nele se reflecte,
porque o mundo já não é o que foi feito por Deus, mas sim o que
o homem fez.
Antes de se acusar o céu pelos nossos males, conviria sem
dúvida investigar por que fases consentidas, por que quedas volun
tárias a criatura passou, antes de se despenhar na sinistra estrumeira
que deplora. Era preciso amaldiçoar os vícios dos seus antepassados
e as suas próprias paixões, que originaram a maior parte dos flage-
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los de que se sofre; era preciso dizer que se Deus nos infligiu o
excremento, o homem pelos seus excessos juntou-lhe o pus; era
necessário expelir a civilização que tornou a existência intolerável
às almas límpidas, e não o Senhor, que talvez não nos criasse para
sermos despedaçados a tiros de canhão em tempo de guerra, nem
para sermos explorados, roubados e espoliados em tempo de paz
pelos negreiros do comércio e pelos salteadores dos bancos.
O que resta incompreensível, por exemplo, é o horror inicial,
o horror imposto a cada um de nós, de viver; mas isso é um misté
rio que nenhuma filosofia explica.
Ah! - continuava. - Quando penso neste horror, neste desgosto
da existência que de ano para ano se exagerou em mim, como com
preendo que eu tenha constrangidamente singrado para o único
porto onde poderia encontrar um abrigo, para a Igreja!
Outrora, desprezava-a, porque tinha um cajado que me sus
tentava quando sopravam os grandes ventos do tédio e do desgosto;
eu cria nos meus romances, trabalhava nos meus livros de história,
cultivava a arte. Reconheci afinal a sua perfeita insuficiência, a sua
inaptidão absoluta em tornar feliz. Então compreendi que o
Pessimismo era tudo o que havia para reconfortar aquelas pessoas
que não têm uma real carência de ser confortadas; compreendi que
as suas teorias, fagueiras quando se é rico e se está cheio de vida e
saúde, tornam-se singularmente débeis e lamentavelmente falsas
quando a idade avança e as enfermidades se anunciam, quando
enfim tudo se esboroa!
E eu cheguei ao hospital das almas, à Igreja. Recebem-nos
aqui, deitam-nos, e tratam de nós; não se limitam a dizer-nos, vol
tando-nos as costas como na clínica do Pessimismo, o nome do mal
que se sofre!
Enfim, Durtal tinha voltado de novo à religião pela arte. Ainda
mais que o seu desgosto pela própria vida, a arte fora o irresistível
íman que o atraíra a ir para Deus.
No dia em que por curiosidade, para matar o tempo, tinha
entrado numa Igreja, depois de tantos anos de esquecimento, ouvira
aí as Vésperas dos mortos cair pesadamente, uma a uma, enquanto
que os chantres se alternavam e lançavam, um atrás do outro, como
coveiros, pazadas de versículos, e então tinha-se-lhe perturbado a
alma e comovido até ao mais íntimo do seu ser. Nas noites em que
ouvira os admiráveis cantos da oitava dos defuntos, em Saint-
-Sulpice, tinha-se sentido para sempre cativado; mas o que o tinha
empolgado, o que melhor ainda o tinha arrebatado foram as ceri
monias, os cânticos da semana santa.
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arte, que ele mesmo concedeu ao homem e que lhe permite mirar-
-se na restiaiição abreviada da sua obra, de se rejubilar diante do
desabrochar dessa flora cujos gérmenes ele semeou nas almas que
apartou com cuidado, nas almas que, depois das dos seus santos,
ele tem verdadeiramente elegido.
Ah!, as caridosas igrejas da Idade Média, as capelas húmidas e
defumadas, cheias de cantos antigos, de pinturas esquisitas, e este
odor dos círios que se apagam e este perfume dos incensos que se
queimam!
Em Paris, restavam apenas alguns espécimes desta arte de anta-
nho, alguns santuários cujas pedras ressumbravam realmente a Fé;
dentre estas, Saint-Séverin aparecia a Durtal como a mais estranha e
a mais segura. Só aí é que se sentia como em sua casa; acreditava que
se quisesse rezar alguma coisa de bom, era nesta igreja que o devia
fazer; e dizia consigo mesmo: aqui a alma das abóbadas existe.
É impossível que as ardentes preces, que os soluços desesperados da
Idade Média não tenham para sempre impregnado estes pilares e cur
tido estas paredes; é impossível que esta vinha de dores, onde outrora
os Santos vindimaram os cachos quentes das lágrimas, não tenha con
servado desses admiráveis tempos emanações que sustentem, eflúvios
que solicitem ainda a vergonha dos pecados, a confissão das lágrimas!
Do mesmo modo que Santa Ines ficando imaculada nos bor
déis, esta igreja permanecia intacta num meio infame, então, quando
tudo ao redor dela, nas ruas, no Chateau Rouge, no restaurante
Alexander, ali, a dois passos, a turba moderna dos sacripantas com
binavam os seus crimes, coziam a embriaguez com prostitutas, de
bebidas de crimes, de absintos cúpricos e de trois-six*
Neste território reservado cio Satanismo, ela emergia delicada e
breve, friamente enroupada nos farrapos das tabernas e bodegas; e
de longe, ela se levantava ainda por sobre os tectos, com o seu cam
panário delgado, semelhante a uma agulha esguia, com a ponta para
baixo e descobrindo no ar o seu fundo através do qual se via, pen
durando-se numa como que bigorna, um minúsculo sino. Assim lhe
parecia da praça de Saint-André-des-Arts. Simbolicamente, dir-se-ia
um misericordioso apelo, sempre repelido por almas endurecidas e
marteladas pelos vícios, o desta bigorna, que não era senão uma ilu
são de óptica deste sino muito real.
E dizer - pensava Durtal - que ignaros arquitectos e ineptos
arqueólogos queriam despojar Saint-Séverin dos seus anclrajos e
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quando o sacristão lhe veio tirar a vela. Durtal esteve quase a dar
um grito, quando lhe foi preciso pôr-se a pé; os seus joelhos entor
pecidos rangiam e os seus eixos já não manobravam.
Pôde com muito custo retomar enfim o seu lugar; depois de
deixar escoar-se a multidão, dirigiu-se ao servo, perguntando-lhe o
nome deste convento e a ordem a que pertenciam estas religiosas.
- São Franciscanas Missionárias de Maria - respondeu - , mas
este santuário não é propriedade sua, com o julga; é uma capela
de socorro que depende da paróquia de Saint-Marcel; está apenas
ligada por um corredor à casa que estas irmãs ocupam, ali, por
detrás de nós, na rua do Èbre. Em suma, assistem aos ofícios,
assim com o nós, e sustentam uma escola para as crianças deste
quarteirão.
É enternecedora esta capelinha - disse consigo Durtal, quando
ficou só. - Está verdadeiramente em relação com o lugar que abriga,
com a miserável ribeira dos curtidores que corre para cá da rua da
Glacière, por entre alamedas. Fez-me o efeito de ser para Notre-
-Dame de Paris o que a sua vizinha, a Bièvre, é para o Sena. Ela é
o regato da Igreja, o lodo piedoso, o arrabalde do culto!
E na verdade são indigentes e esquisitas as vozes de sexo inde
ciso ou fundido destas pobres monjas! E Deus sabe, porém, quanto
eu execro a voz da mulher no lugar santo, porque ela permanece
sempre impura. Parece-me que a mulher traz sempre consigo os
miasmas permanentes de seus incômodos e que faz rodopiar os sal
mos. Depois ainda, a vaidade, a concupiscência, surdem da voz
mundana e os seus gritos de adoração ao pé do órgão não são mais
do que os gritos de instância carnal, os seus gemidos, ainda mesmo
nos hinos litúrgicos mais melancólicos, não se elevam senão dos
lábios até Deus, porque, no fundo, a mulher não chora senão o
medíocre ideal do prazer terrestre que ela não pode atingir. E como
eu compreendo que a Igreja a tenha repelido dos seus ofícios, e
emprega, para não contaminar a estola musical das suas prosas, a
voz da criança e a do homem, e até mesmo a do eunuco.
E contudo nos conventos de mulheres isto muda muito; é bem
certo que a oração, a comunhão, as abstinências e os votos depu
ram o corpo e a alma e o odor vocal que daí se evola. Os seus eflú
vios dão à voz das religiosas, por mais crua e mal cuidada que possa
ser, as suas castas inflexões, as suas singelas carícias de amor puro;
eles reconduzem-na aos sons ingênuos da infância.
Em certas ordens parecem mesmo moldá-la da maior parte dos
seus ramos, a concentrar os filetes de seiva que restam ainda em
algumas hastes; e ele pensava então num mosteiro de Carmelitas
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cia é dura o bastante para que também possam compensar por suas
orações e por suas obras os excessos da cidade que elas protegem.
E ele exaltava-se ao pensar nos mosteiros. - Ah! Ser enterrado
neles, ao abrigo da escumalha das ruas, sem mais saber se os livros
saem dos prelos, e se os jornais se imprimem. Ignorar para sempre
o que se passa, fora da sua cela, entre os homens! - e completar o
benéfico silêncio desta vida murada, nutrindo-se de acções de gra
ças, desalterando-se de cantochão, saturando-se com as inesgotáveis
delícias das liturgias!
Depois, quem sabe? À força de boa-vontade, de súplicas arden
tes, conseguir aproximar-se-Lhe, conversar com Ele, senti-lO bem
junto a si, quase contente da sua criatura, talvez! E ele evocava os
júbilos destas abadias onde Jesus vivia. Lembrava-se desse maravi
lhoso convento de Unterlinden, perto de Colmar, onde no século xm
não era uma ou duas monjas, mas sim o mosteiro todo inteiro que
surgia, arroubado, diante do Cristo, em gritos de alegria; umas des
sas religiosas elevavam-se da terra, outras ouviam os cantos seráfi
cos ou segregavam bálsamos de seus corpos esgotados; outras ainda
tornavam-se diáfanas ou nimbavam-se de estrelas; todos os fenô
menos da vida contemplativa eram visíveis na alta escola de Mística
que foi esse claustro.
Embalado como estava, achou-se diante da sua porta, sem
mesmo se recordar do caminho que tinha tomado, e uma vez den
tro da sua alcova, teve uma distensão da alma que se lhe estalara
num clarão de chispas. Tinha ímpetos de agradecer, de pedir per
dão, de chamar não sabia o quê, de buscar não sabia o quê. E de
repente esta necessidade de expandir-se, de sair de si mesmo, tor-
nou-se mais precisa, e ele caiu de joelhos, dizendo à Virgem:
- Tende piedade de mim e ouvi-me: antes queria suportar tudo
do que ficar assim, e continuar esta existência dúbia e sem alvo,
estas etapas vãs! Perdoai, Santa Virgem, ao conspurcado que eu sou,
porque não tenho a coragem necessária para começar as hostilida
des, para me combater! Ah! Se vós o quisésseis! Bem sei que é
grande a ousadia de vos suplicar, quando não se está resolvido a
virar a sua alma, a esvaziá-la como um balde de lixo, a sacudir o seu
fundo para deixar-lhe escorrer as fezes, para destacar-lhe o tártaro,
mas... mas... sinto-me tão débil, tão pouco seguro de mim, que na
verdade eu hesito!
Oh! Quanto eu queria ir-me, estar fora daqui, a mil léguas de
Paris, não sei onde, num claustro! Meu Deus! É uma loucura o que
digo, porque não permaneceria dois dias num convento e nem
sequer me receberiam aí!
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* Salmo 142, 10: «Ensinai-me a cumprir a Vossa vontade, porque sois meu
Deus». [N.R.]
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escorrer-lhe por debaixo do chapéu, não saiu mais de sua casa; mas
então, na solidão, as imundices invadiram-no.
Não foi mais que a obsessão pelo pensamento, pela imagem,
por tudo, e a frequência tanto mais terrível quanto ela se especiali
zava, quanto ela não se perdia, quanto ela se concentrava sempre
sobre o mesmo ponto; a figura de Florence, o corpo, a própria
morada dos gozos confessados apagavam-se; já nada mais restava
diante dele do que a obscura região para onde esta criatura transfe
ria a sede dos seus sentidos.
Durtal resistia; depois, desvairado, tomava a fuga, tentava que-
brantar-se por longas caminhadas, distrair-se em passeios, mas o
ignóbil festim seguia-o até nas suas correrias, instalava-se diante
dele no café, interpunha-se ante os seus olhos e o jornal que que
ria ler, acompanhava-o à mesa, fixava-se nas nódoas da toalha e nas
frutas. Acabava, após horas e horas de luta, por naufragar, vencido,
em casa desta mulher, e partia daí, acabrunhado, morrendo de des
gosto e de vergonha, soluçando quase.
E não experimentava refrigério algum nestas fadigas; dava-se
mesmo o contrário; longe de o evitar, a fascinação execrada impu-
nha-se mais violenta ainda e mais tenaz. Então Durtal chegava a pro
por a si mesmo e a aceitar singulares compromissos. - Se eu fosse
visitar - dizia consigo - uma outra mulher que conheço e a quem
as carícias regulam ainda, talvez conseguisse quebrar os meus ner
vos, expulsar esta possessão, saciar-me, sem estes enfados e estes
remorsos - e fê-lo, tratando persuadir-se de que seria mais perdoá-
vel, de que pecaria menos, agindo assim.
O resultado mais claro desta tentativa foi tornar a trazer-lhe
pela comparação forçada das lides, a lembrança de Florence, e pro
clamar-lhe a excelência dos seus vícios.
Continuou então a chafurdar em casa dela, depois teve,
durante alguns dias, uma tal revolta desta escravidão que pôde
enfim sair desse esgoto e tomar pé fora dela.
Então logrou recuperar-se, reunir-se, e como que se vomitou.
Tinha esquecido, durante toda esta crise, o abade Gévresin, a quem
não ousava confessar as suas torpezas; mas, pressagiando por cer
tos indícios novos ataques, teve medo e foi vê-lo.
Explicou-lhe as suas crises com circunlóquios; e sentia-se tão
desarmado, tão triste, que as lágrimas vinham-lhe aos olhos.
- Então está seguro agora de ter esse arrependimento que me
assegurava não ter experimentado até agora?
- Estou, mas de que me vale? Quando se é tão fraco que apesar
de todos os esforços se está certo de ser derrubado ao primeiro assalto!
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dicas esta voz interior e estas palavras distintas, que se não ouvem
com os ouvidos corporais e que são apercebidas pela alma de um
modo muito mais claro, muito mais nítido do que se elas lhe che
gassem pelos condutos dos sentidos? Como assegurar-se de que elas
emanam de Deus e não da nossa imaginação ou do diabo até?
Sei muito bem que Santa Teresa trata extensamente desta maté
ria nos seus Castelos Interiores e que nos indica os sinais pelos quais
se pode reconhecer a origem destas palavras; mas as suas provas
não me parecem sempre tão fáceis de discernir como ela o crê.
Se estas frases vêm de Deus, diz ela, são sempre acompanha
das de efeito, e trazem consigo uma autoridade à qual nada resiste;
assim uma alma está na dor e o Senhor dirige-lhe estas palavras:
«não estejas a afligir-te» e imediatamente a borrasca se dissipa e a
alegria renasce. Em segundo lugar, estas palavras deixam a alma
numa indissolúvel paz; enfim, elas gravam-se na memória e as mais
das vezes não se apagam.
No caso contrário, continua ela, se estas palavras provêm da
imaginação ou do demônio, nenhum destes efeitos se produz; mas
uma espécie de mal estar, de agonia, e de dúvida nos tortura; de
mais a mais, estas frases evaporam-se em parte, fatigam a alma que
se esforça debalde por reconstituí-las na sua íntegra.
Apesar destes pontos de reparo, como que se está sobre um
terreno movediço onde nos podemos atolar a cada passo; mas São
João da Cruz intervém por sua vez, e ordena-nos que não nos
movamos. Que fazer então?
Não se deve, diz, aspirar a estas comunicações sobrenaturais e
quedar-se aí, e isto por dois motivos: a princípio, porque há humil
dade, abnegação perfeita em recusar-se a crer nisso; em seguida,
porque, operando desta sorte, liberta-se do trabalho necessário para
se assegurar se estas visões vocais são verdadeiras ou falsas; dis
pensa-se assim de um exame que não tem outro proveito para a
alma senão perda de tempo e inquietações.
Bem - mas se estas palavras são realmente pronunciadas por
Deus, rebelamo-nos contra a Sua vontade, permanecendo surdos!
E depois, assim como o afirma Santa Teresa, não está na nossa mão
o não escutá-las, e a alma não pode pensar senão no que ouve,
quando Jesus lhe fala! Além disso, todos os raciocínios sobre esta
questão vacilam, porque não se entra, por sua própria vontade, na
via estreita, como a Igreja lhe chama; é-se levado, projectado,
mesmo contra vontade às vezes, e toda a resistência é impossível;
os fenômenos sucedem-se uns após outros e nada no mundo seria
capaz de reprimi-los, por exemplo Santa Teresa, que não obstante
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tadas, mais doentes que dantes. Dois minutos são suficientes para
urna religiosa enunciar os seus pecadilhos!
Depois... temos que reconhecer que o confessor é um perigo
para o mosteiro, não porque eu suspeite da sua honestidade, não
é isso o que quero dizer, mas, com o é geralmente escolhido entre
os nomeados pelo prelado, pode dar-se o caso de que seja um
homem que saiba pouco disso, e que, ignorando o manejo de tais
almas, acabe por desnorteá-las, consolando-as. Além de que, se os
ataques demoníacos, muito freqüentes no claustro, se produzem, o
desgraçado fica de boca aberta, aconselha a torto e a direito, em ba
raça a energia da abadessa, que é muito mais forte que ele nestas
matérias.
- Creio, pois - disse Durtal, procurando as suas palavras que
são inexactas as histórias no gênero das que Diderot conta no seu
tolo livro A Religiosa?
- A menos que a comunidade não seja corrompida por uma
superiora votada ao Satanismo, o que, graças a Deus, é raro, os dis
parates narrados por esse escritor são falsos, e há, além disso, uma
boa razão para que assim seja, e é que existe um pecado que é o
antídoto daquele, o pecado do zelo,
- O quê?
- O pecado do zelo, que faz denunciar a sua vizinha, que satis
faz os ciúmes, que cria a espionagem para contentar os seus ódios;
é aí que está o verdadeiro pecado do claustro. Pois bem, asseguro-
-Ihe que se duas irmãs se encontrassem numa má acção, seriam ime
diatamente denunciadas,
- Mas julgava, senhor abade, que a denúncia não era permitida
pela maior parte das regras de ordens.
- Sim, mas talvez se chegasse a abusar um pouco dela, sobre
tudo nos conventos de mulheres, porque é de supor que se os
claustros contêm puras místicas, verdadeiras santas, têm também
religiosas menos avançadas nas vias da Perfeição e que ainda con
servam alguns defeitos...
- E já que estamos nesse capítulo dos detalhes íntimos, atrever-
-me-ia a perguntar se a higiene não é algum tanto desprezada por
estas mulheres?
- Ignoro-o; sei todavia que nas abadias de Beneditinas que
conheço, as monjas tinham toda a liberdade para procederem como
lhes aprouvesse; em certas constituições de Augustinianas, o caso é
bem previsto; obrigam-nas a lavar o corpo, pelo menos todos os
meses. Em compensação, entre as Carmelitas, a limpeza é exigida.
Santa Teresa odiava a sujidade e gostava da roupa branca; as suas
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VIII
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Vestido de branco, de longas mangas com borla de ouro no
capuz, a cruz abacial pendente sobre o peito, a cabeça coberta com
uma mitra merovíngia de forma baixa, Dom Estêvão, com as suas
largas espáduas, a sua barba de um grisalho incipiente, e a alegria
da sua tez, fez-lhe a princípio o efeito de um velho borgonhês, tis-
nado pelo sol nos trabalhos das vinhas; de mais a mais, pareceu-lhe
ser um bom homem, pouco à vontade sob a mitra, intimidado por
todas estas honras.
Um perfume acre, que queimava o olfacto assim como um
pimento queima a boca, o perfume da mirra, flutuava no ar. Houve
um movimento na multidão. Por detrás da grade, cujas cortinas
negras foram tiradas, todo o convento, de pé, entoou o hino de
Santo Ambrósio, o Iesu corona Virginum, enquanto que os sinos da
abadia dançavam nos campanários; no curto corredor que vai do
átrio ao coro, e bordado por uma ala inclinada de mulheres, um cru-
cífero e homens com tochas acesas entraram, depois atrás deles, a
noviça, em traje de noiva, apareceu.
Era morena e delicada, muito pequena, e avançava confusa,
com os olhos baixos, no meio de sua mãe e irmã. Ao primeiro
relance, Durtal julgou-a insignificante, de uma beleza trivial; e ins
tintivamente procurou o seu par, vexado nos seus hábitos, por esta
ausência de homem num casamento.
Reagindo contra a sua emoção, a postulante passou além da
nave, penetrou no coro, ajoelhou-se à esquerda, num genuflexório,
diante de um grande tocheiro, acompanhada ainda de mãe e irmã,
que lhe serviam de paraninfos.
Dom Estêvão saudou o altar, subiu os degraus e sentou-se
numa poltrona de veludo vermelho, colocada no degrau mais ele
vado.
Então, um dos padres veio buscar a donzela que se ajoelhou,
sozinha, diante do monge.
Dom Estêvão guardava a imobilidade de um Buda e dele
tinha a postura; depois levantou um dedo e, meigamente, disse à
noviça:
- Que peclis?
Ela falou-lhe tão baixo que apenas se ouviu, com custo:
- Meu pai, sentindo-me impelida por um ardente desejo de me
sacrificar a Deus, na qualidade de vítima em união com Nosso
Senhor Jesus Cristo imolado sobre os nossos altares, e de gastar a
minha vida na Adoração perpétua do seu divino Sacramento, sob a
observância da regra do nosso glorioso Padre São Bento, peço-vos
humildemente a graça do santo hábito.
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logo que ela voltou ao seu lugar, ele pediu ao Senhor, com os olhos
pregados no céu, que aceitasse esta virgem que se oferecia, como
hóstia, pelos pecados do mundo, e depois entoou de pé o Te~
-Deum.
Todos se levantaram e, precedido pela cruz e os círios, o cor
tejo saiu da igreja, e aglomerou-se no adro.
Então Durtal pôde julgar-se transportado para longe de Paris,
lançado de repente para o fundo das idades.
O átrio, rodeado de construções, estava fechado, em frente do
portal, por uma alta muralha no meio da qual se abria uma porta de
dois batentes; de cada lado, seis pinheiros esguios varriam o ar; e
ouviam-se cantos por detrás do muro.
A postulante, à frente, sozinha, perto da porta fechada, tinha,
de cabeça baixa, a vela na mão. O abade da Trapa, apoiado ao
báculo, estava imóvel a alguns passos dela,
Durtal examinava todos os rostos; a jovem, tão banal no seu
traje de noiva, tornava-se encantadora, agora o corpo afilava-se
numa graça tímida, as linhas, muito loquazes sob o vestido mun
dano, tinham-se calado; sob o sudário religioso, os contornos não
eram mais que um simples esboço; havia aí como que um recuo
de anos, como que um retrocesso às formas adivinhadas da
infância.
Aproximou-se para a observar melhor; tentou sondar esta
figura, mas na mortalha gelada da sua touca, ela permanecia muda,
parecia ausente da vida, com os olhos fechados, já não vivia senão
para o sorriso dos lábios felizes.
E, visto de perto, o monge, maciço e rubicundo, estava tam
bém mudado; a ossatura permanecia robusta e a tez ardia; mas os
olhos de um azul de água, saída do calcário, da água sem reflexos
e sem rugas, os olhos incrivelmente puros, mudavam a vulgar
expressão dos traços, tiravam-lhe esse porte aldeão que ele tinha
ao longe.
E mais uma vez me convenço - pensou Durtal - que esta gente
é toda alma e as suas fisionomias são modeladas por ela. Há clari-
dades santas nestas pupilas, nestas bocas, nestas únicas aberturas,
até cujos bordos a alma avança, olha para fora do corpo, e mostra-
-se quase.
Subitamente, por detrás dos muros, os cantos cessaram; a
jovem deu um passo, bateu com os dedos dobrados na porta, e com
uma voz sumida, cantou:
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* Salmo 117, 19-20: «Abri-me as portas da justiça, entrarei para dar graças
ao Senhor. / Esta é a poita do Senhor: os justos entrarão por ela.»; Salmo 41, 5:
«Passarei ao lugar do tabernáculo admirável, até à casa do Senhor»; e Antífona
(cf. Ecli 26, 24): «Esta é a casa do Senhor, firmemente edificada: Está bem fun
dada sobre uma pedra firme.» [N.R.]
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E a postulante murmurou:
*
A templo sancto tuo quod est in Jerusalem.
* Salmo 131, 14: «Este será para sempre o lugar do meu repouso, aqui habi
tarei, porque o escolhi»; e Salmo 67, 29-30: «Confirmai, ó Deus, aquilo que fizeste
em nós. / No teu templo em Jerusálem». [N.R.]
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- Poderá dizer o que muito bem lhe aprouver, mas esta porta,
que se fechou sobre ela, é bem trágica!
- Nas Beneditinas da rua Tournefort, a cena efectua-se no inte
rior do convento e sem que a família assista a ela. A mãe é poupada,
mas, assim moderada, esta cerimonia não passa de uma etiqueta
banal, de uma fórmula quase vergonhosa adentro dessas portas cer
radas onde a Fé se oculta.
- E essas freiras são igualmente Beneditinas da Adoração per
pétua?
- São; conhece o seu mosteiro?
E, fazendo Durtal sinal que não, o abade continuou:
- Ele é mais antigo mas menos interessante que o da rua
Monsieur. A capela é mesquinha, cheia de estatuetas de gesso, de
flores de tafetá, de cachos de uvas e espigas de papel dourado; mas
a antiga construção que abriga o claustro é curiosa. Tem ressaibos -
como direi! - tem ressaibos de refeitório de colégio e também de
um salão de casa de retiro; ela respira ao mesmo tempo a velhice e
a infância...
- Conheço esse gênero de conventos - disse Durtal - ; outrora
freqüentei muito um deles, quando ia visitar uma velha tia a
Versalhes. Para mim, evocava sobretudo a ideia de uma casa
Vauquer,* caída na devoção, e rescendia a mesa de hóspede da rua
da Clef e a sacristia de província.
- É bem isso - e o abade continuou, sorrindo. - Tive, na rua
Tournefort, várias entrevistas com a prioresa; adivinhamo-la antes
que a vejamos, porque separa-nos dela uma grade de pau preto, por
detrás da qual se estende um cortinado que ela abre.
Vejo-a muito bem - pensou Durtal, que, recordando-se do traje
das Beneditinas, avistou, num segundo, um pequeno rosto envolto,
depois, mais abaixo, no alto do vestido, o brilho de uma custódia
de prata dourada, esmaltada de branco.
Ele pôs-se a rir e disse ao abade:
- Eu rio-me, porque, não tendo negócios a regular com esta tia
religiosa de que lhe falei, e que eu só distinguia, assim como a sua
monja, através dessa grade, cheguei a descobrir o modo de ler um
pouco nos seus pensamentos..
- Ah! E como?
- Deste modo. Não podendo observar a sua fisionomia que se
afastava por detrás do gradeado e desaparecia sob o véu, não
podendo mais, se me respondesse, guiar-me pelas inflexões da sua
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jar tê-lo, e por ter pena de não o ter; ama Nosso Senhor só por
desejar amá-lOi
- Oh! É singular - murmurou Durtal. - Mas então - conti
nuou - , se na Trapa, o monge, revoltado pelo ultraje prolongado
das minhas culpas, me recusa a absolvição e me impede de
comungar?
De chofre, o abade pôs-se a rir.
- Está louco! Ah, mas então que ideia faz de Cristo?
- De Cristo não, mas do seu Medianeiro, do ser humano que
o substitui...
- Não pode caber por sorte senão ao homem designado de ante
mão, lá no alto, para julgá-lo; além disso, tem todas as probabilidades
de se ajoelhar aos pés de um santo em Nossa Senhora do Lar; desde
então será aí que Deus o inspirará; não tem, pois, nada a recear.
Quanto à comunhão, a perspectiva de ser desviado dela
inquieta-o, mas não é isso ainda mais uma prova de que, contraria
mente à sua opinião, Deus não o deixa insensível?
- Sim, mas a ideia de comungar não me preocupa menos!
- Repito-lhe mais uma vez ainda: se Jesus lhe fosse indiferente,
far-lhe-ia o mesmo efeito o consumir ou deixar de consumir as
Santas Espécies!
- Tudo isso pouco ou nada me convence - suspirou Durtal. -
Já não sei onde estou; tenho medo do confessor, dos outros, de mim
mesmo; bem conheço que é uma insensatez, mas ela é mais forte
do que eu próprio; não consigo enfim subjugar-me.
- Se a água o assusta, imitai Gribouille* e lance-se resoluta
mente dentro dela; e se eu escrevesse à Trapa, hoje mesmo, dizendo
quando chega; quando então?
- Oh! - exclamou Durtal - , espere ainda.
- O tempo de ter uma resposta, contemos duas vezes vinte e
quatro horas; quer partir para aí ao fim de cinco dias?
E como Durtal, atordoado, se calava:
- Então estamos entendidos?
Nesta ocasião Durtal experimentou uma coisa estranha; e isso
foi, como várias vezes em Saint-Séverin, uma espécie de toque cari
nhoso, de impulsão doce; sentiu uma vontade insinuar-se na sua, e
recuou, inquieto de ver-se assim geminado, de não mais se encon
trar só no seu próprio ser. Depois que ficou inexplicavelmente tran
qüilo deixou-se abandonar, e desde que pronunciou esse «sim», um
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Jesus para quem a Virgem sorri, baixando longos cílios, sob uma
fronte arqueada.
E, quando ele desceu os degraus e deu a comunhão a duas
mulheres, Durtal estremeceu, e voltou-se num arroubo para o
cibório.
Pareceu-lhe que, se ele se alimentasse com este Pão, tudo se
acabaria, a sua algidez e os seus temores; pareceu-lhe que esse
muro de pecados, que tinha subido, de ano para ano, e que lhe bar
rava a vista, se esboroava, e que enfim já via! E teve desejos de
apressar a sua partida para a Trapa, e de receber também o Corpo
sagrado das mãos de um monge.
Esta missa fortificou-o como um tônico; saiu desta capela, ale
gre e mais firme, e quando a impressão se apagou um pouco com
as horas, ele ficou menos enternecido talvez, mas mais resoluto,
deleitando-se numa doce melancolia, à noite, com a sua situação,
dizendo consigo: há muita gente que vai a Barèges ou a Vichy curar
o seu corpo, porque não hei-de ir também curar a minha alma numa
Trapa?
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Roger Van der Weiden e dos Bouts,* pelo seu cuidado no detalhe
exacto, pela sua notação precisa dos meios.
Tinha reunido em si as duas correntes saídas, uma da
Alemanha, e outra de Flandres; e esta pintura, pincelada com san
gue e polida com lágrimas, ela transportava-a para uma prosa que
não tinha relação alguma com a literatura conhecida, uma prosa de
que não se podia, por analogia, encontrar os antecedentes senão
nos painéis do século xv.
E sobretudo, ela era completamente iletrada, não tinha lido
livro algum, nem visto nenhuma tela; contava singelamente, des
pretensiosamente, tudo o que distinguia nos seus êxtases.
Os quadros da Paixão desenrolavam-se à sua vista, enquanto
que, deitada num leito, triturada pelos sofrimentos, sangrando pelos
buracos dos seus estigmas, gemia e chorava, aniquilada de amor e
de piedade, diante das torturas de Cristo.
À sua palavra, que um copista consignava,* o Calvário elevava-
-se, e toda uma turbamulta de soldadesca ignóbil se precipitava
sobre o Salvador e o enlameava; surgiam pavorosos episódios de
Jesus encadeado a urna coluna, contorcendo-se como um réptil, sob
os estalidos dos látegos, depois caindo, olhando com os seus olhos
desfeitos para hetairas que se davam as mãos entre si e recuavam,
desgostosas, do seu corpo torturado, da sua face coberta, como de
uma rede vermelha, por filetes de sangue.
E, lentamente, pacientemente, não parando senão para soluçar,
ou pedir misericórdia, ela pintava os soldados arrancando as vestes
coladas às chagas, a Virgem chorando, o rosto lívido e a boca arro-
xeada; relatava ainda a agonia do carregar da cruz, as quedas sobre
os joelhos, e ficava prostrada, extenuada, quando chegava à morte.
Era um espantoso espectáculo, narrado com minúcia e for
mando um conjunto sublime e horrível. O Redentor estava esten
dido sobre a cruz deitada por terra; um dos algozes enterrava-lhe
um joelho nas costelas, enquanto que outro alargava os dedos, e um
terceiro martelava sobre um cravo, de cabeça achatada, da largura
de uma moeda, e tão longo que a ponta trespassava do outro lado
do madeiro. E quando a mão direita já estava pregada, os verdugos
viram que a esquerda não chegava ao buraco que tinham perfurado;
então ataram uma corda ao braço e puxaram por ele com todas as
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SEGUNDA PARTE
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- Não.
- Então fica? - e o campónio olhou-o estupefacto, depois vol
tou as rédeas e tornou a subir a encosta.
Durtal estava aniquilado, com a mala a seus pés, diante desta
porta; o coração batia-lhe violentamente; toda a sua segurança e
toda a sua expansão fogosa lhe desaparecia; e balbuciava com
custo: - O que me espera lá dentro?
Num galope de pânico, passava-lhe ante os olhos toda a terrí
vel vida das Trapas: o corpo mal alimentado, extenuado de sono,
prostrado horas e horas sobre o lajedo, com a alma tremente, opri
mida, conduzida militarmente, sondada, folheada nas suas menores
pregas; e, considerando este desbarato da sua existência malograda,
semelhante aos salvados de um naufrágio, via a extensão desta
ribanceira feroz, o mutismo desta prisão, o silêncio pavoroso dos
túmulos!
- Meu Deus, meu Deus, tende piedade de mim - disse, enxu
gando a fronte.
Maquinalmente lançou uma vista de olhos ao redor de si, como
se esperasse uma assistência, mas os atalhos estavam desertos e os
bosques vazios, e nem o menor ruído se ouvia no campo ou na
Trapa.
- É preciso que me resolva a tocar a sineta - e com as pernas
a fraquejarem puxou pelo cadeado.
Um som metálico, pesado, enferrujado, quase rabugento, reti
niu do outro lado do muro.
- Alto, não sejamos ridículos - murmurava, escutando o ruído
de matraca que um par de tamancos fazia por detrás da porta.
Esta abriu-se e um monge muito velho, vestido com o burel
escuro dos capuchinhos, interrogou-o com o olhar.
- Eu vinha para um retiro, e queria ver o Padre Estêvão...
O monge inclinou-se, pegou na mala e fez sinal a Durtal que
o seguisse.
Caminhava, curvado, com passo miúdo, através de um pomar.
Chegaram depois a uma grade de ferro e dirigiram-se à direita de
uma vasta construção, uma espécie de grande casa arruinada, flan-
queada de duas alas, avançando por uma cerca adentro.
O irmão entrou na ala que chegava até à gradaria. Durtal
enfiou atrás dele por um corredor, furado de portas pintadas de cin
zento; por cima de uma delas leu esta palavra: «Auditório».
O trapista parou diante dela, levantou uma tranqueta de pau,
levou Durtal a um salão, e ouviram-se, ao cabo de alguns minutos,
repetidas chamadas de sineta.
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pelos musgos; depois, fora do mosteiro, por cima dos muros, trepa
vam campos de luzerna cortados por um grande caminho esbran
quiçado que desaparecia no horizonte recortado pelas folhagens das
árvores.
- Veja bem, senhor - continuou o padre Estêvão - , o que lhe
falta nesta cela, e diga-mo francamente, sim? Porque de outro modo
dará a nós ambos um desgosto, a si por não ter ousado reclamar o
que lhe era útil, a mim, porque o perceberia mais tarde e me cau
saria pena o meu esquecimento.
Durtal contemplava-o, tranqüilizado pelos seus modos francos.
Era um padre ainda novo, de trinta anos pouco mais ou menos.
O rosto vivo, delicado, era estriado nas faces por fibrilas cor-de-rosa;
este monge usava a barba comprida, e à volta da cabeça rapada cor
ria um círculo de cabelos negros. Falava um pouco depressa, e sor
ria sempre com as mãos metidas no largo cinto de couro que lhe
apertava a cintura.
- Voltarei dentro em pouco, porque tenho agora um trabalho
urgente - disse. - Daqui até lá trate de instalar-se o melhor possível;
se tiver tempo lance também uma vista de olhos sobre a regra que
tem de seguir neste mosteiro... ela está inscrita num destes cartões...
ali, sobre a mesa; depois, se o quiser, conversaremos a esse respeito,
quando já tiver conhecimento dela.
E deixou Durtal sozinho.
Este fez imediatamente o inventário do aposento. Era muito
alto de tecto, e muito pouco largo. Tinha a forma de um cano de
espingarda, a entrada era uma das suas extremidades e a janela a
outra.
Ao fundo, num canto, perto da janela, estava um pequeno leito
de ferro e uma mesa de noite redonda, de nogueira. Ao pé do leito,
encostado à parede, havia um genuflexório estofado de seda, já
coçado, e terminado por uma cruz e um ramo de pinheiro seco; cor
rendo sempre ao longo da mesma parede, encontrou uma mesa de
pau, coberta com uma toalha, sobre a qual estavam colocados uma
bilha de água, uma pequena bacia e um copo.
O tabique oposto a esta parede era ocupado por um armário,
depois por um fogão em cujo caixilho estava aberto um crucifixo e
depois por uma mesa colocada defronte do leito, perto da janela;
completavam a mobília deste quarto três cadeiras de palha.
- Nunca terei água suficiente para o banho - disse consigo
Durtal, medindo com a vista a minúscula bilha, que levaria coisa de
um litro de água. - Já que o padre Estêvão se mostra tão obse-
quioso, vou pedir-lhe uma ração mais pesada.
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Levantar às 2 horas.
Prima e Missa às 5hl5.
Trabalho depois do capítulo.
Fim do trabalho às 9 horas e intervalo.
Sexta às 11 horas.
Angelus e jantar às llh 3 0 .
Sesta depois de jantar.
Fim da sesta à 13h30.
Noa e trabalho, 5 minutos após o despertar.
Fim do trabalho às I6h30 e intervalo.
Vésperas seguidas da oração às 17h lS .
Ceia às 18 horas e intervalo.
Completas às 19h25.
Retirada às 20 horas.
EXERCÍCIOS DE INVERNO
DA CRUZ DE SETEMBRO À PÁSCOA
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MANHÃ TARDE
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NOTA
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II
Passou então a mais espantosa das noites; foi tão estranha, tão
horrível que ele não se recordava de ter jamais sofrido, durante toda
a sua vida, tais angústias, semelhantes transes. Foi uma sucessão
ininterrupta de sobressaltos e de pesadelos.
E estes pesadelos ultrapassaram os limites das abominações
que as demências mais perigosas sonham. Eles desenrolavam-se
pelos territórios da Luxúria e eram tão particulares, tão novos para
ele, que, ao despertar, Durtal ficava tremente, retinha um grito.
E não era de todo um acto involuntário e conhecido, a visão
que cessa no momento mesmo em que o homem dormitando estreita
a forma amorosa e se funde nela; era ainda e mais que na natureza,
longo, completo, acompanhado de todos os prelúdios, de todos os
detalhes, de todas as sensações; e então se desligava, com uma acui
dade dolorosa extraordinária, num espasmo súbito inaudito.
E, facto estranho e que parecia marcar a diferença entre este
estado e o estupro inconsciente das noites, era, além de certos epi
sódios em que as carícias, que não podiam suceder senão na reali
dade, se reuniam, no mesmo instante, no sonho, a sensação nítida,
precisa, de um ser, de uma forma fluídica, desaparecendo com o
ruído seco de uma cápsula ou de uma chicotada, perto de nós, ao
acordar. Este ser, sentiu-o distintamente perto de si, tão perto, que
a roupa da cama, desarranjada pelo sopro da sua fuga, ondulava, e
via-se, com desvairamento, o lugar vazio.
Ah! Mas isto... - dizia consigo Durtal quando acendeu a luz - ,
isto transporta-me ao tempo em que eu freqüentava a casa da
Chantelouve, isto sugere-me as histórias do Sucubato.
E aturdido, sentado na cama, tentava perscrutar com um ver
dadeiro mal-estar esta cela afogada em sombra. Consultou o seu
relógio: eram onze horas da noite. - Meu Deus - disse - se todas as
noites nos claustros são assim como estas!
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* «Que recuem para iá dos sonhos e dos pesadelos, sejam repelidos os nos
sos inimigos, não poluam o nosso corpo.» [N.R.]
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sobre esta cabeça, que envolvia todo este pobre corpo, curvado
num montão de farrapos.
Neste velho a alma não se dava ao trabalho de reformar a fisio
nomia e de enobrecê-la; contentava-se em aniquilá-la, irradiando-se;
era, de algum modo, o nimbo dos santos antigos, não ficando ao
redor da cabeça, mas estendendo-se por todos os seus traços,
banhando, com uma luz pálida, quase invisível, todo o seu ser.
E ele nada via e nada ouvia; os monges arrastavam-se de joe
lhos, vinham para se reaquecerem, para se abrigarem à sua beira, e
ele não se bulia, mudo e surdo, suficientemente rígido para que se
pudesse julgá-lo morto, se então o lábio inferior não se tivesse agi
tado, levantando neste movimento a sua longa barba.
A aurora começava a branquear os vidros das janelas, e na obs
curidade que a pouco e pouco se dissipava, os outros frades apare
ciam por sua vez a Durtal; todos estes feridos do amor divino reza
vam ardentemente, como que saíam para fora de si, sem ruído,
diante do altar. Havia-os, ainda moços, de joelhos, com o busto
direito, outros com as pupilas em êxtase, dobrados para trás e sen
tados sobre os calcanhares; outros ainda faziam o caminho da cruz,
e por vezes punharn-se uns diante dos outros, face a face, e olha
vam-se sem se verem, com olhos de cegos.
E entre estes conversos, alguns, amortalhados nos seus grandes
hábitos, jaziam, prostrados, beijando o chão.
- Oh! Orar, orar como estes monges! - exclamou Durtal.
Sentia o seu desgraçado ser desafogar-se enfim; nesta atmos
fera de santidade, como que se desprendeu de prisões ocultas, e
deixou-se cair sobre o lajedo, pedindo perdão a Cristo de manchar
com a sua presença a pureza deste lugar.
E rezou por muito tempo, abrindo-se pela primeira vez, e reco
nhecendo-se tão indigno, tão vil, que não podia compreender
como, apesar da Sua misericórdia, o Senhor o tolerava no pequeno
círculo dos Seus eleitos; examinou-se, palpou-se, confessou que era
inferior ao último destes conversos que talvez não soubesse mesmo
soletrar num livro, compreendeu que a cultura do espírito nada
valia, e que a cultura da alma valia tudo, e, pouco a pouco, sem se
aperceber, pensando só em balbuciar actos de gratidão, desapare
ceu da capela, com a alma levada pelas dos outros, para fora do
mundo, longe da sua cripta, longe do seu corpo.
Nesta capela, o arroubo era enfim consentido, a projecção, até
aí recusada, era enfim permitida; e então pensava no tempo em que
com custo conseguia evadir-se do seu cárcere para Notre-Dame-des-
-Victoires e Saint-Séverin.
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altura de um quinto andar, bem que não tivesse realmente mais que
um rés-do-chão e um primeiro; mas a julgar pela elevação desme
dida das janelas, as salas deviam levantar os seus tectos até alturas
desmesuradas de igrejas; em suma, este edifício era enfático e frio,
mais apto, pois que o tinham convertido em convento, para abrigar
adeptos de Jansenius do que discípulos de São Bernardo.
O tempo estava tépido nessa manhã; o sol coava-se através do
crivo movediço da folhagem; e a luz do dia, assim joeirada, mudava-
-se ao contacto do branco em uma cor rósea. Durtal, que se prepa
rava para ler o seu livro de horas, viu as páginas rosarem-se e, pela
lei das complementares, todas as letras, impressas a tinta negra, tin
girem-se de verde.
E entretinha-se com estes detalhes, desanuviava-se, ao calor do
sol, com esta brisa carregada de aromas, repousava, neste banho de
luz, das fadigas da noite, quando, num extremo da álea, avistou
alguns frades. Caminhavam, silenciosos, uns levando debaixo do
braço grandes pães redondos, outros carregando cântaros de leite
ou canastras cheias de hortaliça e ovos; desfilaram por diante dele
e saudaram-no respeitosamente.
Todos tinham um rosto alegre e grave. - Ah! - disse consigo. -
Quanto estes bons homens não me ajudaram esta manhã, porque é
a eles a quem eu devo o não me calar, o poder rezar, o ter enfim
conhecido as alegrias da oração que, para mim, em Paris, não pas
sava de um engano! É a eles, e sobretudo a Nossa Senhora do Lar,
que teve piedade do meu pobre ser!
Ele pulou do banco num jacto de íntimo júbilo, perdeu-se nas
áleas laterais, e chegou ao pé do tanque que tinha entrevisto na vés
pera; à sua frente levantava-se a formidável cruz que havia distin-
guido, ao longe, do alto da carruagem, por entre os bosques, antes
de chegar à Trapa.
Estava erecta em frente do próprio mosteiro, e voltava as cos
tas para o lago; suportava um Cristo do século xvm, de mármore
branco, em tamanho natural; e o próprio tanque afectava a forma
de uma cruz, tal com o figura na maior parte dos planos das basí
licas.
E esta cruz escura e líquida estava matizada de pistácias cheias
de bolhas de água que o cisne deslocava ao nadar.
Este veio ao encontro de Durtal e estendeu-lhe o bico, espe
rando sem dúvida um bocado de pão.
E nem sequer o menor ruído se escapava deste lugar deserto,
apenas o estalido das folhas secas que Durtal esmagava ao andar.
O relógio bateu as sete horas.
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trou um olhar tão comovido, tão piedoso, tão doce, que ele parou;
mas o olhar desapareceu com a saudação do converso que conti
nuou o seu caminho.
Ele leu em mim - disse Durtal consigo mesmo. - Oh! O cari
doso monge tem razão em lastimar-me, porque verdadeiramente
quanto não sofro eu! Ah! Senhor, quem me dera ser como este
humilde frade! - gritou, recordando-se de ter notado, nessa manhã,
este jovem, orando na capela com um tal fervor que parecia fundir-
-se no solo, diante da Virgem.
Chegou ao auditório num estado terrível, e deixou-se cair
numa cadeira; depois, como um animal perseguido que se julga des
coberto, levantou-se, e, perturbado pelo terror, como que levado
por um vento de derrota, pensou em fugir, em ir buscar a sua mala,
e lançar-se num comboio.
Mas conteve-se, indeciso, tremente, acabrunhado; o coração
batia-lhe violentamente, quando ouviu ruídos longínquos de passos.
- Meu Deus! - disse, espiando esses passos que se aproximavam. —
Qual é o monge que vai entrar?
Os passos calaram-se e a porta abriu-se; Durtal estarrecido não
se atreveu a fixar o confessor, em quem reconheceu o grande tra-
pista, de perfil imperioso, justamente aquele que lhe parecia ser o
abade do mosteiro.
Sufocado, recuou, sem proferir uma só palavra.
Surpreendido por este silêncio, o prior disse:
- Pediu para se confessar?
E, a um gesto de Durtal, designou-lhe o genuflexório, encos
tado à parede, e ele mesmo se ajoelhou, voltando-lhe as costas.
Durtal sentiu calafrios, caiu sobre o genuflexório e perdeu
completamente a cabeça. Havia muito vagamente preparado a sua
entrada na matéria, notado apenas os pontos de reparo, e classifi
cado mal as suas faltas; não se recordava de mais nada,
O monge levantou-se, depois sentou-se numa cadeira de palha,
e inclinou-se para o penitente, com uma orelha amplificada pela
mão para ouvir melhor.
E esperou.
Durtal desejava morrer para não ter de falar; conseguiu por fim
vencer-se, e refrear a sua vergonha; descerrou então os lábios, mas
nada daí saiu, e ficou oprimido, com a cabeça entre as mãos,
retendo as lágrimas que sentia subir.
O monge não se mexia.
Enfim fez um esforço desesperado e gaguejou o com eço do
Confiteor, dizendo:
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* São João Clímaco (c. 579-649). Sobre os Padres do Deserto, cf. em por
tuguês, Os P adres do Deserto, Mareei Driot (Lisboa, 2006) e Ditos e Feitos dos
P adres do Deserto (Lisboa, 2004). [N.R.]
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cedesse para que ele pudesse, durante esta hora pelo menos, orar
em paz, sem se extraviar.
E assim que terminou a sua oração, levantou os olhos e teve
um sobressalto; viu, estupefacto, o padre que avançava, precedido
do converso, para celebrar a missa.
E não era o vigário que já conhecia, mas sim um outro, muito
alto, de rosto pálido e barbeado, e a cabeça calva.
Durtal olhava para ele, que caminhava então solenemente e de
olhos baixos, para o altar, e viu, de súbito, uma chama violácea a
arder nos seus dedos.
Ah! Ele tem o anel episcopal? É, pois, um bispo - dizia consigo
Durtal que se inclinou para ver se distinguia por debaixo da casula
e da alva a cor do vestido. Era branco.
Então é um monge - continuou, desvairado; e maquinalmente
voltou-se para o lado da imagem da Virgem e chamou com um
olhar precipitado o oblato que veio sentar-se à sua beira.
- Quem é?
- É Dom Anselmo, o abade do mosteiro.
- O que estava doente?
- Sim, é ele que nos vai dar a comunhão.
Durtal caiu de joelhos, sufocado, quase a tremer: ele não estava
a sonhar? O céu respondia-lhe pelo sinal que tinha fixado!
Devia agora abismar-se diante de Deus, despedaçar-se a seus
pés, expandir-se num transporte de gratidão; e bem o sabia e bem
o queria, mas, sem que soubesse como, engenhava procurar causas
naturais que pudessem justificar esta substituição de um monge ao
padre.
É sem dúvida muito simples, porque enfim, antes de admitir
mos uma espécie de milagre... de resto, eu hei-de ter a certeza, por
que depois da cerimonia vou tirar o caso a limpo.
E revoltou-se contra as insinuações que deslizavam nele. Que
interesse podia apresentar o motivo desta troca? Evidentemente
devia haver um; mas este não era mais que uma conseqüência, que
um acessório; o principal era a vontade sobrenatural que o tinha
feito nascer. - Em todo o caso obtiveste mais do que tinhas pedido
- continuava - tens coisa melhor do que o simples monge que dese-
javas, tens o próprio abade da Trapa! - e exclamou: - Oh! Crer, crer
como estes pobres conversos, não estar possuído de uma alma que
voa assim a todos os ventos; ter a Fé infantil, a Fé imóvel, a desen-
raizável Fé! Ah!, meu Pai, enterrai-a então profundamente em mim!
E teve um tal arroubo que se projectou para fora de si; tudo
lhe desapareceu em derredor, e disse, a balbuciar, a Cristo: «Senhor,
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uma grande estátua da Virgem, que foi erecta num dos corredores
da abadia; e subsistem ainda dois anjos muito bem conservados que
estão agora, acolá em baixo, no extremo da clausura, numa capeli-
nha escondida atrás de uma cortina de árvores.
- Esta Virgem, em cuja frente talvez São Bernardo se tivesse
ajoelhado, devia pôr-se na própria igreja, sobre o mesmo altar votado
a Maria, porque a imagem colorida que lá existe é de uma fealdade
importuna, assim como aquela também - disse Durtal, designando
ao longe a Madona, que se elevava no ar, diante do tanque.
O oblato baixou a cabeça e não respondeu.
- Ora, não quer saber - exclamou Durtal, que ante este silên
cio não insistiu mais e mudou de conversa - , que tenho inveja da
sua vida aqui!
- Não mereço de modo algum esse favor, porque, em suma, o
claustro é bem menos uma expiação do que uma recompensa; é ele
o único lugar onde se está longe da terra e perto do céu, o único
onde o homem pode entregar-se a esta vida mística que não se
desenvolve senão na solidão e no silêncio.
- Sim, e se é possível, invejo-o mais ainda de ter tido a cora
gem de aventurar-se em regiões que, confesso-lhe, verdadeiramente
me apavoram. Sei muito bem, de resto, que apesar da fieira das ora
ções e dos jejuns, apesar da própria temperatura da estufa claustral,
onde a orquídea do Misticismo rebenta do chão, eu me estiolaria e
murcharia nestas paragens, sem nunca chegar a desabrochar.
O oblato sorriu-se. - Sabe que mais? - continuou. - Isto não se
faz numa hora; a orquídea de que me fala não floresce apenas num
dia; avança-se tão lentamente, que as mortificações se espaçam e as
fadigas se repartem pelos anos, tolerando-se facilmente.
Em regra geral, é preciso, para transpor a distância, que nos
separa do Criador, passar-se pelos três graus desta ciência da
Perfeição cristã que é a Mística; é preciso sucessivamente viver a
vida Purgativa, a vida Iluminativa, e a vida Unitiva, para poder ajun-
tar-se ao Bem increado e fundir-se nele.
Que estas três grandes fases da existência ascética se subdivi
dam em uma infinidade de etapas, e que estas etapas sejam degraus
para São Boaventura, ou passos para Santa Ângela, pouco nos
importa; podem variar em extensão e em número, consoante a von
tade do Senhor e o temperamento de quem os percorre. Não fica
menos adquirido que o itinerário da alma até Deus contém a prin
cípio, no seu percurso, caminhos a pique e resvaladouros, são os
caminhos da vida purgativa, depois ínvios atalhos, ainda emaranha
dos, são os atalhos da vida iluminativa, enfim, uma estrada longa,
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- Esta lei é de tal modo iníqua que parece até que o Criador
teve vergonha dela e que para se punir da sua ferocidade e não
fazer-se para sempre execrar da sua criatura, quis sofrer na cruz,
expiar o seu crime na pessoa de seu próprio Filho!
- Mas - exclamou Durtal exasperado - Deus não podia come
ter um crime e castigar-se; se isso assim fosse, Jesus seria o Redentor
de Seu pai e não o nosso; é boa!
A pouco e pouco ia-se equilibrando; lentamente recitou o
Símbolo dos Apóstolos, enquanto que as objecções, que o derriba-
vam, se aglomeravam, umas sobre as outras, dentro dele,
Há todavia um facto certo agora - disse consigo, porque afinal
achava-se, neste tumultuar, muito lúcido é que actualmente
somos dois em mim. Posso seguir os meus raciocínios, mas ouço,
por outro lado, os sofismas que o meu duplo me expira. Nunca esta
dualidade me aparecera assim tão nítida.
E a esta reflexão o ataque enfraqueceu; parecia que o inimigo
descoberto batia em retirada.
Mas não foi nada disso; após uma curta trégua, o assalto reco
meçou sobre um outro ponto.
- Estás bem seguro de não teres sido sugestionado, de não
teres preparado o golpe para ti mesmo? À força de quereres crer,
acabaste por produzir e por implantar em ti, mascarando-a sob o
nome de graça, uma ideia fixa em torno da qual tudo agora se dese
nha, Queixas-te de não teres experimentado alegrias sensíveis
depois da tua comunhão, mas isso demonstra simplesmente que tu
não estavas enternecido o bastante, ou que, cansada dos excessos
da véspera, a tua imaginação se revelou incapaz de te exibir a lou
cura feérica que lhe reclamavas após a missa.
De resto, devias saber que tudo depende, nestas questões, da
actividade mais ou menos febril do cérebro e dos sentidos; vê o que
acontece com as mulheres; elas enganam-se mais facilmente que o
homem, porque aí ainda se revela a diferença das conformações, a
variedade dos sexos; Cristo dá-se carnalmente sob as aparências de
um pão; é o casamento místico, a união divina consumada pela via
dos lábios; Ele é bem o Esposo das mulheres, ao passo que, nós
outros, sem o querer, pelo próprio íman da nossa natureza, nós
somos mais atraídos para a Virgem. Mas Ela não se entrega a nós,
assim como o seu Filho; ela não reside no Sacramento; a sua posse
é impossível; Ela é a nossa Mãe, mas não é nossa Esposa, como Ele,
que é o Esposo das Virgens.
Concebe-se desde então que as mulheres se deixem embalar
mais violentamente, que adorem melhor, e que se imaginem mais
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EXERCÍCIOS DA COMUNIDADE
PARA TODOS OS DOMINGOS ORDINÁRIOS
MANHÃ TARDE
horavS horas
1 Levantar, pequeno ofício e 2 Fim do descanso, Noa
oração ã 1 lA 4 Vésperas e Bênção
2 Grande ofício canônico cantado 5 V, Um quarto de hora de oração
5 x/i Prima, missa matutina, 6 horas 6 Ceia
6 V, Capítulo, instruções, grande 7 Leitura antes de Completas
silêncio 7 '/, Completas
9 'A Aspersão, Terço, procissão 7 A Salve, Angehis
10 Missa cantada 7 Vi Exame e retirada
11 Sexta e exame particular 8 Deitar, grande silêncio
11 'A Angehis, jantar
12 '/, Sesta, grande silêncio
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m oderno era o interior desta capela tão exígua que os pés quase
tocavam a parede de entrada, quando a gente se ajoelhava diante
do altar.
Em um nicho esfumado por uma gaze branca, uma Virgem,
que exibia uns olhos num fundo azul e duas maçãs coradas no lugar
das faces, sorria, estendendo as mãos. Era de uma insignificância
verdadeiramente lamentável, mas o seu santuário, que conservava a
mornidão dos aposentos sempre fechados, era bem íntimo. As suas
paredes, forradas de um pano vermelho, estavam limpas do pó, o
pavimento estava varrido e as pias de água benta cheias; soberbas
rosas-chá desabrochavam em vasos, por entre os candelabros.
Durtal compreendeu então a razão, porque tinha tantas vezes avis
tado Bruno a encaminhar-se com flores nas mãos para este lado;
vinha orar neste lugar que ele amava sem dúvida, porque se achava
assim isolado na solidão profunda desta Trapa.
- Oh! O bom homem! - exclamou Durtal, tornando a pensar
nos serviços afectuosos, nas atenções fraternais que o oblato tinha
tido para com ele. E acrescentou: - E feliz homem também, porque
ele tem a posse de si mesmo e vive muito tranqüilo aqui!
E efectivamente - prosseguiu - para que serve lutar se isso não
é senão contra si próprio? Para quê? Agitar-se por causa do dinheiro,
por causa da glória, inquietar-se para oprimir os outros e ser adu
lado por eles, que tarefa vã!
Só a Igreja, erigindo os altares portáteis do ano litúrgico, for
çando as estações a seguir, passo a passo, a vida de Cristo, soube
traçar o plano das ocupações necessárias e dos fins úteis. For
neceu-nos o meio de caminhar sempre lado a lado com Jesus, de
viver do pão quotidiano dos Evangelhos; para os cristãos, fez do
tempo o mensageiro das dores e o arauto das alegrias; confiou ao
ano o papel de servo do Novo Testamento, de emissário zeloso do
culto.
E Durtal reflectia então nesse ciclo da liturgia que começa no
primeiro dia do ano religioso, no Advento, depois gira num movi
mento insensível sobre si mesmo até chegar ao seu ponto de par
tida, à época em que a Igreja se prepara pela penitência e oração
para celebrar o Natal.
E, folheando o seu eucológio, vendo este círculo inaudito de
ofícios, pensava nessa prodigiosa jóia, na coroa do rei Recceswinthe*
que o museu de Cluny guarda preciosamente.
* Rei dos Visigodos (653-672), cuja coroa está exposta no museu de Cluny.
[N.R.]
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Era bem evidente que esta lontra vivia no estado de lenda neste
lago. Nestas existências monótonas, nestes dias semelhantes do
claustro, ela tomava as proporções de uma coisa fabulosa, de uma
aventura cujo mistério devia ocupar os intervalos aproveitados entre
as orações das horas.
- É preciso indicar ao senhor Bruno o sítio exacto onde a avis
tou, porque ele vai recomeçar a caçada - disse o padre Estêvão,
após um silêncio.
- Mas, enfim, que tem que ela coma os peixes, se não os
pescam?
- Perdão, nós pescamo-los a fim de os remetermos para o arce-
bispado - respondeu o monge, que continuou - é mesmo bem
estranho o facto de ter visto esse animal!
Decididamente, ao partir daqui dir-se-á de mim: é aquele
senhor que viu a lontra! - pensou Durtal.
Sempre a conversar, chegaram ao pé do tanque em cruz.
- Olhe - disse o padre, designando-lhe o cisne que se punha
em pé, furioso, e batia as asas, silvando.
- Que é o que tem?
- É a cor branca do meu vestido que o exaspera.
- Ah! E porquê?
- Não sei; talvez que só ele queira ser o único branco aqui;
poupa os conversos, mas assim que um padre... Ora espere que já
vai ver.
E o hospedeiro dirigiu-se tranquilamente para o cisne.
- Vem cá - disse ao animal irritado, que o esparrinhou de água;
e estendeu-lhe a mão que o cisne abocou.
- Vê - fez o monge, mostrando a marca de uma pinça verme
lha, impressa na sua carne.
E sorriu-se, disfarçando ocupar-se da mão, depois deixou
Durtal, que perguntou a si mesmo se, procedendo desta sorte, o tra
pista não quisera infligir a si próprio uma punição corporal para
expiar uma distracção qualquer, uma insignificância?!
Esta bicada devia tê-lo torturado atrozmente, porque as lágri
mas subiram-lhe aos olhos. Como é que se expôs tão alegremente
a esta mordedura?
E lembrava-se de que um dia, ao ofício de Noa, um dos jovens
monges havia-se enganado no tom de uma antífona. No momento
em que terminava o ofício, tinha-se ajoelhado diante do altar, depois
estendera-se ao comprido sobre as lajes de granito, com o ventre de
rastos, a boca colada ao chão, até que a matraca do prior lhe inti
masse a ordem de levantar-se.
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Logo depois da missa, Durtal quis ir visitar pela última vez estes
bosques que tinha batido, umas vezes tâo lânguido e outras tão vio
lentamente. A princípio, passeou pela velha álea das tílias, cujas
pálidas emanações eram verdadeiramente para o seu espírito o que
as suas folhas de infusão são para o corpo, uma espécie de pana-
ceia muito frouxa, de sedativo benigno, muito suave.
Depois, sentou-se à sua sombra num banco de pedra.
Inclinando-se um pouco, entrevia pelos interstícios agitados das
folhagens a fachada solene da abadia, e defronte dela, separada pela
horta, a gigantesca cruz erecta, diante do plano líquido de uma basí
lica como o lago simulava.
Levantou-se, e aproximou-se desta cruz fluida, cuja água ama-
relenta e escura o céu azulava com as suas nuances cerúleas, e pôs-
-se a contemplar o grande Cristo de mármore branco, que dominava
toda a Trapa e parecia levantar-se em frente dela como uma recor
dação permanente dos votos de sofrimentos que tinha aceitado, e
que tencionava mudar com o tempo em alegrias.
O caso é - disse consigo Durtal que pensava mais uma vez nas
confissões contraditórias dos monges, afirmando que levavam ao
mesmo tempo a vida mais atraente e a mais atroz - o caso é que o
bom Deus engana-os. Alcançam neste mundo o paraíso, procurando
nele o inferno; e que estranha existência eu mesmo passei neste claus
tro! - continuou porque aqui fui simultaneamente muito desgraçado
e muito feliz, e agora já pressinto a miragem começar a formar-se;
antes de dois dias, a lembrança das misérias, que foram contudo, se as
recensear com cuidado, muito superiores às alegrias, terá desaparecido
e não mais me recordarei senão das temulências interiores na capela,
senão dos arroubos deliciosos pela madrugada nos atalhos do parque.
O que eu terei de saudades da prisão em pleno ar livre, deste
convento! É curioso o julgar-me preso a ele por obscuros laços;
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As horas apertavam, mas ele ainda foi rezar pela última vez à
capela e daí dirigiu-se para a cela a fim de preparar a sua mala.
Enquanto arranjava as suas coisas, ia pensando na inutilidade
dos aposentos que é costume prepararem-se. Gastara em Paris todo
o seu dinheiro em comprar estatuetas, gravuras e livros, porque
havia até então detestado a nudeza das paredes.
E hoje, ao considerar as paredes desertas desta sala, confessava
que estava mais em sua casa dentro destes quatro tabiques do que
no seu quarto forrado de estofos, em Paris.
Subitamente, discernia que a Trapa tinha-o desprendido das
suas preferências, tinha-o em alguns dias voltado do avesso. - A
potência de um tal meio! - disse consigo, um pouco inquieto por
sentir-se assim transformado. E continuou, afivelando a sua mala: É-
-me preciso ir ter com o padre Estêvão, porque quero enfim satisfa
zer a minha despesa; não quero de modo algum prejudicar estes
bons homens.
Visitou os corredores e cruzou-se afinal com o padre no cerrado.
Tinha um certo acanhamento em abordar esta questão; às pri
meiras palavras o hospedeiro sorriu-se.
- A regra de São Bento é formal - disse - , nós devemos rece
ber os nossos hóspedes, como receberíamos Nosso Senhor Jesus
Cristo em pessoa; isto quer dizer que não podemos receber dinheiro
algum em troca dos nossos pobres serviços.
E como Durtal insistisse embaraçado:
- Se tem feito o propósito de não partilhar da nossa magra
ração sem a pagar, nesse caso faça como lhe aprouver; só que a
soma que nos der terá de ser distribuída em moedas de dez e de
vinte soidos pelos pobres que todas as manhãs vêm, de bem longe
às vezes, bater à portaria do mosteiro.
Durtal inclinou-se e deitou o dinheiro que trazia reservado na
algibeira do padre; depois perguntou se não poderia conversar com
o padre Maximino antes da sua partida.
- Ora porque não? O padre prior não vos deixaria partir sem
vir apertar-lhe a mão à despedida. Vou saber se está livre; espere
por mim no refeitório - e o monge desapareceu e tornou a entrar
alguns minutos depois, precedido pelo prior.
- Então - disse este - sempre vai tornar a mergulhar no bulí-
cio do mundo?
. - Oh! E sem alegria alguma, meu padre.
- Eu compreendo isso. É tão bom, não é assim, nada mais
ouvir, e nós mesmos calarmo-nos também? Enfim, ganhe coragem,
que nós havemos de rezar muito por si.
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áleas onde um dia, depois de uma comunhão, Deus lhe tinha dila
tado a alma de tal sorte que já não a sentia como sua, tanto o Cristo
a havia mergulhado no mar da sua divina Infinidade, e imergido no
celeste firmamento da sua Pessoa!
Como reintegrar este estado de graça sem a comunhão e fora
de um claustro? Não, está tudo acabado - concluiu.
E apoderou-se dele um tal acesso de tristeza, um tal impulso
de desespero, que pensou em descer na primeira estação e voltar
para a Trapa; mas teve que sacudir os ombros, porque ele não tinha
o carácter assaz paciente, nem a vontade assaz firme, nem o corpo
assaz resistente para suportar as terríveis provas de um noviciado.
Demais, a perspectiva de não ter uma cela só para si, de se deitar
vestido, promiscuamente, num dormitório, espantava-o.
Mas que fazer então? E dolorosamente, resumia-se.
- Ah! - dizia consigo - , vivi vinte anos em dez dias neste con
vento, e saio dele com o cérebro desfeito e o coração aos farrapos:
estou para sempre perdido. Paris e Nossa Senhora do Lar repeliram-
-me alternadamente como um salvado de naufrágio, e eis me con
denado a viver como desemparelhado, porque eu sou ainda muito
homem de letras para me fazer monge, e sou contudo muito monge
para ficar entre os homens de letras.
De chofre, sobressaltou-se e calou-se, deslumbrado pelos jac
tos de luz eléctrica que o inundaram, ao mesmo tempo que parava
o comboio.
Estava de volta em Paris.
- Se eles - continuou, pensando nos escritores que lhe seria
sem dúvida difícil não tornar a ver - , se eles soubessem quanto são
inferiores ao último dos conversos! Se pudessem imaginar quanto a
ebriedade divina de um guardador de porcos da Trapa me interessa
mais que todas as suas palestras e que todos os seus livros! Ah!
Viver, viver à sombra das orações do humilde Simeão, Senhor!
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Rom ance autobi.ográfico, em que Huysmans
projecta a sua própria vida, a de um escritor
parisiense com uma atormentada vida interior.