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A CAMINHO

J.-K. HUYSMANS
A Caminho
Título original
En Route

Copyright desta edição © 2007


Américo Fraga Lamares & C.* L:ln/
Livraria Civilização Editora

Todos os direitos reservados

Coordenação editorial
José Narciso Soares

Tradução
B. da Costa Pereira

Revisão
Luís Abel Ferreira
Diogo Morais Barbosa

Concepção gráfica da capa


Lúcia Alves

Ilustração da capa
En Pays Chartrain
Óleo sobre tela de Alexandre Sége (1816-1885).
Museu de Belas-Artes de Chartres. (França)

Pré-impressão, impressão e acabamento


CEM Artes Gráficas, Barcelos para
Livraria Civilização Editora
em Dezembro de 2007

ISBN 978-972-26-2650-7

Depósito Legal 267745/07

Livraria Civilização Editora


Américo Fraga Lamares & C.a L.<
!s

Rua Alberto Aires de Gouveia, 27


4050-023 Porto
Tel.: 226 050 900

geral@civilizacaoeditora.pt
www.civilizacao.pt
PRÓLOGO

Não gosto de prólogos, nem de prefácios e, tanto quanto possí­


vel, abstenho-me de fazer preceder os meus livros por inúteis frases.
Foi-me preciso então um motivo sério, alguma coisa como um
caso de legítima defesa, para me resolver a escrever algumas linhas
que servissem de prólogo a esta nova edição de A Caminho.
Eis o motivo:
Depois que este volume se pôs à venda, a minha correspon­
dência, jã muito desenvolvida pelas discussões de que o Lã-Bas* foi
causa, cresceu de tal sorte que me vi na necessidade ou de deixar de
responder às cartas que recebia, ou de renunciar a todo o trabalho.
Não podendo sacrificar-me, contudo, para satisfazer as exigên­
cias de pessoas desconhecidas cuja vida é, sem dúvida, menos ocu­
pada do que a minha, tinha tomado o partido de não fazer caso dos
pedidos de informações suscitados pela leitura do Lá-Bas\ mas não
pude perseverar nesta doce atitude, porque ela ameaçava tornar-se
odiosa em certos casos.
Efecti vãmente, podem dividir-se em duas categorias estas
remessas de cartas.
A primeira procede de simples curiosos; sob pretexto de que
se interessam pela minha humilde pessoa, querem saber um acervo
de coisas que não lhes diz respeito, pretendem imiscuir-se no meu
interior, flanar, como em lugar público, na minha alma.
Aqui, não há que hesitar, queimo estas epístolas e está tudo
dito. Mas já não acontece o mesmo com a segunda categoria destas
cartas.

* Lá-Bas foi traduzido por Aníbal Fernandes com o título: Além (Lisboa,
2006), e esse romance, com A C am inho, A Catedral (ed. Civilização Editora,
2007) e VOblat [O Oblato], constituem um ciclo na obra de Huysmans, com a
progressão da mesma personagem, Durtal. [N.R.J

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J.-K. HUYSMANS

Esta, muito mais abundante, provém de pessoas atormentadas


pela graça, debatendo-se consigo mesmas, buscando e repelindo
simultaneamente uma conversão; procede às vezes de mães aflitas,
reclamando para a doença ou para a má conduta de seus filhos o
socorro de orações de um claustro.
E todas me pedem que lhes diga francamente se a abadia que
descrevi neste livro existe na realidade, e suplicam-me, neste caso,
que as ponha em relações com ela; todas me requerem que obte­
nha do irmão Simeão - admitindo que eu não o tenha inventado ou
que seja, assim como o descrevi, um verdadeiro santo - a graça de
vir em seu auxilio pela virtude das suas potentes orações.
Neste caso perco a partida. Não tendo a coragem precisa para
descartar-me de tais súplicas, acabo sempre por escrever dois bilhe­
tes, um ao signatário da missiva que se me dirigiu e outro ao con­
vento; mas, algumas vezes, há muitos mais pontos a precisar e tan­
tas informações mais extensas são necessárias. E, repito-o, este
papel de intérprete assíduo entre leigos e monges absorve-me todo,
impede~me absolutamente de trabalhar.
Como, pois, contentar a todos e a não desagradar a ninguém?
Não descobri senão este meio: responder por atacado aqui, uma vez
por todas, a estas boas pessoas.
Em suma, as questões que me são ordinariamente propostas
resumem-se nestas:
- Temos debalde procurado, na nomenclatura das Trapas, a
Nossa Senhora do Lar; ela não se encontra em nenhum dos anuá­
rios monásticos; é então imaginada?
Depois: - O irmão Simeão é um personagem fictício, ou antes,
se o desenhou do natural, não o exaltou, não o canonizou, de
algum modo, para as necessidades do seu livro?
Hoje que o ruído levantado pelo A Caminho já se*apagou,
creio poder deixar a reserva que sempre observei a propósito do
ascetério onde viveu Durtal. Declaro-o então agora:
A Trapa de Nossa Senhora do Lar [Notre-Dame de TÂtre]
chama-se, pelo seu verdadeiro nome, a Trapa de Notre-Dame
d ígny, e está situada perto de Fismes, no Marne.
As descrições que fiz são exactas, as informações, que relato a
respeito do gênero de vida que se leva nesse mosteiro são autênti­
cas, e os retratos dos monges que pintei são reais. Limitei-me sim­
plesmente, por conveniência, a mudar-lhes os nomes.
Acrescento ainda que a historia de Nossa Senhora do Lar, que
figura mais adiante nesta obra, aplica-se em todos os pontos a
Ig n v.
A CAMINHO

É ela, com efeito, que, depois de ter sido fundada em 1127 por
São Bernardo, teve à sua frente verdadeiros santos, tais como os
Veneráveis Humbert, e Guerric, cujas relíquias são conservadas num
relicário debaixo do altar-mor, o extraordinário Monoculus que Luís
VII venerava.
Ela definhou, como todas as suas irmãs, sob o regime da
Comenda; morreu durante a Revolução e ressuscitou em 1875. Pelos
cuidados do Cardeal-Arcebispo de Reims, uma pequena colônia de
Cistercienses veio, nesta época, de Santa Maria do Deserto, para
repovoar a antiga abadia de São Bernardo e tornar a atar os laços
de orações rompidos pela tormenta.
Quanto ao irmão Simeão, tirei dele um retrato nítido mas
tosco, sem atavios, uma fotografia sem retoques. Não o exaltei
nem engrandeci, com o parece insinuar-se, no interesse de uma
causa. Pintei-o, segundo o método naturalista, tal com o é este bom
santo!
E eu penso constantemente neste piedoso homem que ainda
há bem poucos dias tornei a ver. Agora está tão velho que já não
pode cuidar dos seus suínos. Ocupa-se em escolher e limpar os
legumes na cozinha, mas o Padre Abade autoriza-o a ir visitar de vez
em quando os seus antigos alunos; e eles não são ingratos para com
ele, porque se levantam em alegres clamores quando o vêem apro­
ximar-se das cortes.
Ele sorri-lhes no seu sorriso tranqüilo, grunhe um pouco com
eles, depois volta a enterrar-se no mutismo benéfico do claustro;
mas, quando os seus superiores o desligam por alguns momentos
da regra do silêncio, são verdadeiros ensinamentos tudo o que este
eleito nos dá.
Cito um ao acaso:
Um dia que o Padre Abade lhe recomendou de orar por um
doente, ele diz-lhe:
- Tendo as orações feitas por obediência mais virtude que as
outras, suplico-lhe, meu Reverendíssimo Padre, que me indique as
que devo rezar.
- Pois bem, meu irmão, há-de recitar três Pa ter e três Ave,
O velho sacode a cabeça e como o Abade, um pouco sur­
preendido, o interroga, ele confessa o seu escrúpulo.
- IJm só Pater e uma só Ave - disse ele - bem proferidos e com
fervor, creio que são suficientes; é mostrar falta de confiança o dizer
mais.
E este cenobiia não é, como se poderia julgar, uma excepção.
Há-os semelhantes a ele em todas as Trapas e também nas outras

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J.-K. HUYSMANS

ordens. Conheço pessoalmente um outro que me transporta,


quando tenho a ventura de estar com ele, ao tempo de São
Francisco de Assis. Vive sempre em êxtase, com a cabeça cingida
como de uma auréola, por um nimbo de avezinhas.
As andorinhas vão fazer ninho por cima do seu grabato, no
cubículo do irmão porteiro, que ele habita; elas volteiam alegre­
mente em redor dele, e os seus filhinhos fazem os seus primeiros
ensaios de voo, pousando-lhe na cabeça, nos braços e nas mãos,
enquanto que ele continua a sorrir, orando.
Estes animais pressentiram evidentemente esta santidade que
os ama e protege, esta candura que nós, os homens, não concebe­
mos; é bem certo que neste século de estudiosa ignorância e de
idéias baixas, o irmão Simeão e este frade porteiro parecem inve-
rosímeis; para uns são uns idiotas, para outros não passam de uns
loucos. A grandeza destes conversos admiráveis, tão verdadeira­
mente humildes, tão verdadeiramente simples, escapa-lhes por
completo!
Eles transportam-nos à Idade Média, e isso é uma felicidade
para nós, porque é indispensável que tais almas existam para com ­
pensar as nossas; eles são os oásis divinos deste mundo, os bons
albergues onde Deus vem residir, quando debalde tem percorrido o
deserto dos outros seres,
Ainda que pese aos homens de letras, estas personagens são
tão verídicas como as que destilam nos meus precedentes livros;
vivem num mundo que os escritores profanos não conhecem, e eis
tudo. Não exagerei, pois, quando falei neste volume da inaudita efi­
cácia das orações de que dispõem os monges.
Espero que os meus correspondentes fiquem satisfeitos com a
nitidez destas respostas; em todo o caso, o meu papel de interme­
diário pode, sem lesar a caridade, ter fim, pois que agora o nome e
a direcção da minha Trapa são conhecidos.
Resta-me pois pedir mil desculpas a Dom Agostinho, o
Reverendíssimo Abade da Trapa de Notre-Dame d’Igny, por ter
assim levantado o pseudônimo sob o qual eu apresentava o seu
mosteiro, no ano passado, ao público.
Sei muito bem que ele detesta o ruído e que não deseja que
ponham em cena nem a ele, nem aos seus: mas sei também que me
estima muito e que me perdoará, pensando que esta indiscrição
pode ser útil a muitas pobres almas e assegurar-me ao mesmo
tempo o meio de trabalhar um pouco, em paz, nesta Paris.

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A CAMINHO

Convolate ad urbes refugii, ad loca videlicet reli­


giosa, ubi possilis de prceteritis agere poeniten-
tiam, in prcesenti oblinere gratiam et fiducialiter
futuram gloriam prcestolari.

(Acorrei às cidades de refúgio, aos asilos religio­


sos, onde podeis fazer penitência pelo passado,
obter a graça do presente e esperar com con­
fiança a gloria futura. )

SAo B o a v k n t ijr a , D o desprezo do m undo.


PRIMEIRA PARTE
I

Estava-se na primeira semana de Novembro, na semana em


que se celebra a oitava dos defuntos. Durtal entrou, à noite, pelas
oito horas, em Saint-Sulpice. Freqüentava com gosto esta Igreja,
porque o seu mestre de capela era magnífico, e também porque aí
podia, longe das multidões, apartar-se em paz. O horror desta nave,
abobadada de pesados arcos, desaparecia com a noite; as naves
laterais estavam às vezes desertas; as lâmpadas, pouco numerosas,
alumiavam a custo; poder-se-ia, pois, examinar a alma, sem ser
visto, como que em sua casa.
Durtal sentou-se atrás do altar-mor, à esquerda, por debaixo da
balaustrada que corre ao longo da rua de Saint-Sulpice; daí a pouco
os candeeiros do órgão do coro acenderam-se. Ao longe, na nave
quase vazia, um eclesiástico falava do púlpito. Reconheceu pela
vaselina da sua elocução, pela untuosidade do seu acento, um
padre solidamente nutrido, que entornava, de costume, sobre os
seus ouvintes, as menos omissas banalidades.
Porque são eles tão despidos de eloqüência? - dizia consigo
Durtal. - Já tive a curiosidade de ouvir um grande número deles e
é tudo a mesma coisa. Apenas o som das suas vozes difere. Segundo
o seu temperamento, uns maceraram-no em vinagre e os outros
demolharam-no em azeite. Nunca aparece uma mistura hábil - e
recordava-se dos oradores celebrados como tenores, Monsabré,
Didon, esses Coquelins de Igreja, e mais abaixo ainda que estes pro­
dutos do conservatório católico, o belicoso rocim que é o abade de
Hulst!*

* Monsabré (1827-1907) e Didon (1840-1900), padres dominicanos, orado­


res célebres. Coquelins, dois actores, os irmãos Constant (1841-1909) e Ernest
(1848-1909), reputados pelos papéis cômicos. Hulst (1841-1896), prelado e ora­
dor. [N.T.]

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J.-K. HUYSMANS

Depois disto - continuou - são estes os medíocres reclamados


pelo punhado de devotos que os escuta. Se estes taberneiros de
almas tivessem talento, se servissem aos seus pensionistas manjares
finos, essências de teologia, súmulas de orações, sucos concretos de
ideias, eles vegetariam incompreendidos pelas suas ovelhas. Então
tudo se adequa, em suma. É preciso um clero cuja baixa-mar con­
corde com o nível dos fiéis; e, com certeza, a Providência velava por
isso.
Um patinar de sapatos, e depois o ruído de cadeiras arrastadas,
que rangiam sobre o lajedo, interromperam-no. O sermão tinha aca­
bado.
No meio de um grande silêncio, o órgão preludiou, depois apa­
gou-se a pouco e pouco, ouvindo-se apenas a revoada das vozes.
Um canto lento e desolado subia aos ares: era o De profundis.
Feixes de vozes desfilavam por debaixo das abóbadas, e fundiam-
-se com os sons pouco firmes das harmônicas e com os timbres agu­
dos dos cristais que se quebram.
Apoiadas ao ruído surdo do órgão, sustentadas por violoncelos
tão cavos que pareciam subterrâneos, elas perpassavam, medindo o
versículo «De profundis ad te clamavi, Do-», depois paravam exte­
nuadas, e deixavam cair a sílaba final, como uma lágrima pesada,
«-mine»-, e estas vozes de crianças quase homens retomavam o
segundo versículo do salmo «Domine exaudi vocem meam»* e a
segunda metade da derradeira palavra ficava ainda suspensa, mas
em vez de se destacar, de cair por terra, de aí se quebrar semelhante
a uma gota líquida, parecia erguer-se num supremo esforço e dar­
dejar até ao céu o grito de angústia da alma desencarnada, lançada
nua, em lágrimas, para diante do seu Deus.
E, depois de uma pausa, o órgão, acompanhado por dois con­
trabaixos, rugia, arrebatando na sua torrente todas as vozes, os barí­
tonos, os tenores e os baixos, não servindo já de bainhas às lâmi­
nas agudas das vozes infantis, mas soando descobertas e soltas, e
o esforço entusiástico dos pequenos sopranos atravessava-as
mesmo, trespassava-as num arremesso, como se fosse uma flecha
de cristal.
Depois, sucedia-se uma nova pausa; e no silêncio da igreja, as
estrofes gemiam de novo, lançadas do órgão como por cima de uma
ladeira. Escutando-as com atenção e tentando decom pô-las
fechando os olhos, Durtal via-as a princípio quase horizontais, ele­

* De Profundis, Salmo 129: «Do fundo do abismo clamo a Vós, Senhor /


Senhor, ouvi a minha voz».

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A CAMINHO

vando-se pouco a pouco e erigindo-se por fim todas direitas, e


depois vacilar chorando e quebrar-se afinal.
E de repente, no final do salmo, quando chegava o responso
da antífona «Et lux perpetua luceat eis* as vozes infantis despedaça­
ram-se num grito doloroso como de seda, num soluço agudo, tre­
mendo sobre a palavra «eis» que permanecia suspensa, no vácuo.
Estas vozes de crianças tensas até estalar, estas vozes claras e
aceradas punham na treva do canto alvores de aurora; aliando os
seus sons de pura musselina ao timbre metálico dos bronzes,
furando com o jacto das suas águas, como na prata viva, as catara­
tas sombrias dos chantres, atiçavam os lamentos, reforçavam, até à
amargura, o sal ardente das lágrimas; mas insinuavam uma espécie
de carícia tutelar, de frescura balsâmica, e de socorro lustrai; alu-
miavam nas sombras estas breves claridades que repicavam à luz do
dia, os Angelus-, evocavam, mesmo ultrapassando as profecias do
texto, a compassiva imagem da Virgem que passa, aos pálidos cla­
rões dos seus sons, na noite desta prosa.
Assim cantado, o De profufidis era incomparavelmente belo.
Esta súplica sublime, acabando em soluços no momento em que a
alma das vozes ia transpor as fronteiras humanas, torcia os nervos
de Durtal, agitava-lhe o coração. Depois ele quis abstrair-se, apli­
car-se sobretudo ao sentido do sombrio queixume em que o ser
caído, lamentavelmente, implora gemendo o seu Deus. E estes gri­
tos da terceira estrofe voltavam-lhe de novo, aqueles em que, supli­
cando desesperado do fundo do abismo ao seu Salvador, o homem,
agora que se sente escutado, hesita vergonhoso, não sabendo o
que dizer. As escusas que preparou parecem-lhe vãs, os argumen­
tos que ajustou julga-os nulos e então balbucia: «se tendes tornado
conta de todas as nossas iniquidades, Senhor, Senhor, quem é que
obterá perdão?»
Que infelicidade - dizia consigo Durtal - que este salmo que
canta tão magnificamente, nos seus primeiros versículos, o deses­
pero da humanidade toda inteira, se torne, nos que se seguem,
mais particular ao Rei David. Sei muito bem - continuou - que
temos de aceitar o sentido simbólico destas queixas, e de admitir
que este monarca confunde a sua causa com a de Deus, que os
seus adversários são os infiéis e os ímpios, e que ele mesmo pre-
figura, na opinião dos doutores da Igreja, a fisionomia de Cristo,
mas também a recordação dos seus furores carnais e os presunço­
sos elogios que ele dedica ao seu incorrigível povo diminuem um

* «E a luz perpétua os ilumine». [N.R.]

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J.-K. HUYSMANS

pouco a magnitude do poema. Felizmente que a melodia vive fora


do texto, da sua própria vida, não se confinando nos debates da
tribo, mas estendendo-se por toda a terra, cantando a angústia dos
tempos vindouros, tão bem como a das épocas presentes e das
idades mortas.
O De profundis tinha cessado; depois de um curto silêncio, a
capela entoou um motete do século xvm, mas Durtal não se inte­
ressava senão vagamente pela música humana nas igrejas. O que lhe
parecia superior às obras mais aplaudidas da música teatral ou mun­
dana, era o velho cantochão, esta melodia chã e nua, simultanea­
mente aérea e sepulcral; era este grito solene das tristuras e orgu­
lhoso das alegrias, eram estes hinos grandiosos da fé do homem que
parecem irromper nas catedrais, como irresistíveis geysers, dos pró­
prios pedestais dos pilares românicos. Que música, por mais ampla
ou mais dolorosa e terna que seja, vale o De profundis cantado em
fabordão, as solenidades do Magnificat, os entusiasmos do Salve
Regina, o calor augusto do Lauda Sion, as angústias do Miserere e
do Stabat, as omnipotentes majestades do Te-Deum? Artistas de
génio tinham-se esforçado por traduzir os textos sagrados. Victoria,
Josquin Desprès, Palestrina, Orlando Lassus, Haendel, Bach, Haydn,
tinham escrito maravilhosas páginas; às vezes mesmo tinham sido
empolgados pela influência mística e pela própria emanação da
Idade Média para sempre perdida; e as suas obras guardavam por­
tanto um certo aparato, permaneciam apesar de tudo orgulhosas em
face da humilde magnificência, do sóbrio esplendor do canto gre­
goriano, que havia muito tinha acabado, porque os compositores já
não eram crentes.
Na música moderna poderiam citar-se alguns trechos religiosos
de Lesueur, de Wagner, de Berlioz, e de César Franck, mas sentia-se
ainda, entre estes, o artista escondido sob a sua obra, o artista exi­
bindo a sua ciência, pensando em exaltar a sua gloria e por conse­
guinte omitindo Deus. Encontrava-se em face de homens superio­
res, mas de homens com as suas fraquezas e com a sua inalienável
vaidade, a própria tara dos seus sentidos. O canto litúrgico, criado
quase sempre anonimamente no fundo dos claustros, era uma fonte
extraterrestre, sem filão de pecados, sem traço de arte. Era uma res­
surreição de almas já libertadas da servidão das carnes, uma explo­
são de ternuras sublimadas, e de puros júbilos, era também o idioma
da Igreja e o Evangelho musical acessível, como o próprio Evange­
lho, aos mais exigentes e aos mais humildes!
Ah!, a verdadeira prova do Catolicismo era esta arte que ele
tinha fundado, esta arte que ninguém ainda ultrapassou! Era, na pin­

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A CAMINHO

tura e na escultura, os Primitivos; a mística na poesia e na prosa; na


música era o cantochão; na arquitectura era o românico e o gótico.
E tudo isto se mantinha erecto, flamejava numa só gerba, sobre o
mesmo altar; tudo isto se condensava num feixe único de pensa­
mentos: reverenciar, adorar e servir o Dispensador, mostrando-lhe,
reverberado na alma da sua criatura, assim como num espelho fiel,
a soma ainda imaculada dos seus dons.
Então, nesta admirável Idade Média, em que a arte, alimentada
pela Igreja, se antecipou à morte, avançou até ao limiar da eterni­
dade, até Deus, a concepção divina e a forma celeste foram adivi­
nhadas, entrevistas pela vez primeira e talvez última pelo homem. E
elas se correspondiam e se repercutiam de arte em arte.
As Virgens tinham faces em amêndoa, rostos alongados como
essas ogivas que o gótico adelgaçou para distribuir uma luz ascética,
um dia virginal no cofre misterioso das suas naves. Nos quadros dos
Primitivos,* a tez das santas mulheres torna-se transparente como o
círio pascal, e os seus cabelos são pálidos como as migalhas já não
douradas dos verdadeiros incensos; o seu seio infantil dilata-se com
custo, as suas frontes arqueiam-se como o vidro das custódias, os
seus dedos afilam-se em fuso, os seus corpos alçam-se como pila­
res esguios. A sua beleza torna-se de algum modo litúrgica. Parecem
viver no fogo dos vitrais, tirando dos turbilhões em chamas das
rosáceas o círculo das suas auréolas, as brasas azuladas dos seus
olhos, as labaredas moribundas dos seus lábios, guardando para os
seus atavios as cores desdenhadas das suas carnes, despojando-as
dos seus clarões, mudando-as, quando as transportam sobre o
estofo, em tons opacos que ajudam ainda pelo seu contraste a ates­
tar a claridade seráfica do olhar, a dolente candura da boca que per­
fuma, segundo o Próprio do Tempo, o aroma dos lírios dos cânti­
cos, ou o penitencial odor da mirra dos salmos.
Houve então entre artistas uma aliança de cérebros, uma amál­
gama de almas. Os pintores associaram-se num mesmo ideal de
beleza com os arquitectos; afiliaram em um indestrutível acordo as
catedrais e os Santos; somente, ao contrário dos usos conhecidos,
esmaltaram a jóia conforme o escrínio, modelaram as relíquias
segundo o relicário.
Pelo seu lado, as prosas cantadas da Igreja tiveram subtis afi­
nidades com as telas dos Primitivos.
Os responsos de Trevas de Victoria não são de uma inspiração
similar, de uma elevação igual às da obra-prima de Quentin Metsys,

* Pintores flamengos do século xv. [N.R.]

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J.-K. HUYSMANS

o Amortalhamento de Cristo? O Regina Coeli do músico flamengo


Lassus não tem a boa-fé, o porte cândido e bizarro de certas ima­
gens dos retábulos ou dos quadros religiosos do velho Baieghel?
Enfim, o Miserere do mestre de capela de Luís XII, de Josquin
Desprès, não tem, do mesmo modo que os painéis dos Primitivos
da Borgonha e da Flandres, um arrojo de espírito um pouco
paciente, uma simplicidade filiforme um pouco hirta, mas não exala,
como esses também, um sabor, verdadeiramente místico, não se
contorna numa indolência verdadeiramente tocante?
O ideal de todas estas obras é o mesmo e é atingido por meios
diferentes.
Quanto ao cantochão, a conformidade da sua melodia com a
arquitectura é certa também; por vezes curva-se assim como as
sombrias arcadas romanas, surge, tenebroso e pensativo, seme­
lhante às arcadas em semicírculo. O De profundis, por exemplo,
curva-se tal como estes grandes arcos que formam a ossatura defu­
mada das abóbadas; é lento e nocturno como elas, não se estende
senão na obscuridade, não se move senão na penumbra pavorosa
das criptas.
Por vezes, ao contrário, o canto gregoriano parece ter ido bus­
car ao gótico os seus lóbulos floridos, as suas flechas recortadas, as
suas rosáceas de gaze, os seus tufos de bordados, as suas rendas
leves e tênues como vozes de crianças. Então, passa de um extremo
ao outro, da amplidão das angústias até ao infinito das alegrias.
Outras vezes ainda, a música singela e a música cristã, que ele deu
à luz, se moldam, do mesmo modo que a escultura, ao júbilo do
povo; associam-se aos regozijos ingênuos, aos risos esculpidos nos
velhos pórticos; apoderam-se, como no canto do Natal Adeste fide-
les e no hino pascal O filii etfiliae , do ritmo plebeu das multidões;
elas fazem-se pequenas e familiares, tais como os Evangelhos, sub­
metem-se aos humildes desejos dos pobres, dando-lhes um ar de
festa fácil de reter, um veículo melódico que os arrebata para
regiões puras, onde essas almas simples se abatem aos pés indul­
gentes de Cristo.
Criado pela Igreja, educado por ela, nas escolas da Idade
Média, o cantochão é a paráfrase aérea e movediça da imóvel estru­
tura das catedrais; é a interpretação imaterial e fluida das telas dos
Primitivos; é a tradução alada e é também a estrita e flexível estola
destas prosas latinas que os monges edificaram, elevados outrora,
fora dos tempos, nos claustros.
E é agora alterado e desconexo, futilmente dominado pelo fra­
casso dos órgãos, e é cantado sabe Deus como!

20
A CAMINHO

A maior parte dos mestres de capela, quando o entoam, com-


prazem-se em simular os burburinhos que gorgolejam nas condutas
das águas, outros deleitam-se em imitar o estridor das matracas, a
chiada das roldanas, o grito das gruas; não obstante, a sua imper­
meável beleza subsiste surda, apesar desses mugidos desconcerta­
dos dos chantres,
O silencio súbito da igreja despertou Durtal. Levantou-se então
e olhou ao redor de si; no seu recanto não estava mais ninguém
senão duas mendigas adormecidas com os pés sobre os varões das
bancadas e a cabeça metida entre os joelhos. Inclinando-se um
pouco, ele entreviu no ar o rubi de uma lâmpada, ardendo num
vidro vermelho; nem o mínimo ruído se ouvia, salvo o passo mili­
tar de um suíço, fazendo a sua ronda, ao longe.
Durtal acalmou-se então; a doçura desta solidão, aromatizada
pelo perfume da cera, misturado com as lembranças, já longínquas
nessa hora, do fumo dos incensos, dissipou-se num momento. Aos
primeiros acordes, aplicados sobre o teclado dos órgãos, Durtal
reconheceu o Dies irae, o hino desesperado da Idade Média; instin­
tivamente baixou a fronte e escutou.
Ele não é, como o De profundis, uma súplica humilde, uma dor
que se julga ouvida, que distingue, para caminhar na sua noite, um
atalho de clarões; não é a oração cheia de esperança para não tre­
mer; é o grito da desolação absoluta e do terror.
E com efeito a cólera divina soprava como a tempestade nes­
tas estrofes. Elas pareciam dirigir-se menos ao Deus de misericórdia,
ao exorável Filho, do que ao inflexível Pai, Aquele que o Antigo
Testamento nos mostra turvo de furor, mal apaziguado pelas fumi-
gações das fogueiras, pelos incompreensíveis atractivos dos holo-
caustos. Neste cântico, Ele se levanta, mais feroz ainda, porque
ameaçava revolver as águas, esboroar os montes, fender a golpes de
raios os oceanos do céu. E a terra espavorida gritava de medo,
Era uma voz cristalina, uma voz clara de criança que clamava
no silêncio da nave o anúncio dos cataclismos; e após ela, o chan­
tre cantava novas estrofes onde o implacável Juiz vinha entre os
estampidos pungentes das trombetas purificar pelo fogo a sânie do
mundo.
Depois, por sua vez, um violoncelo profundo, abobadado,
como saído dos subterrâneos da igreja, sublinhava o horror destas
profecias, agravava o espanto destas ameaças, e, após uma curta
repetição do coro, um violino as repetia, particularizava-as ainda, e
então quando o terrível poema tinha esgotado a narração dos casti­
gos e das penas, no timbre agudo, na voz de falsete de um rapazi­

21
J.-K. HUYSMANS

nho, o nome de Jesus passava, e era como que uma aberta nesta
tromba marítima; o universo anelante pedia perdão, relembrava, por
todas as vozes do chantre, as misericórdias infinitas do Salvador e a
sua graça, conjurava-o a absolvê-lo como outrora perdoou ao ladrão
penitente e a Madalena.
Mas, na mesma melodia desolada e tenaz, a tempestade redo­
brou de fúria, inundava com as suas vagas plagas entrevistas do céu,
e os solos continuavam exânimes, cortados pelas entradas lacrimo­
sas do coro, encarnando na diversidade das vozes alternadas, as
condições especiais das vergonhas, os estados particulares dos tran­
ses, as idades diferentes das lágrimas.
No final, quando misturadas e confundidas, estas vozes tinham
levado por sobre as grandes águas do órgão todos os fragmentos
perdidos das dores humanas, todas as bóias das orações e das lágri­
mas, elas tornavam a cair extenuadas, paralisadas pelo espanto,
gemiam em suspiros de criança que esconde a face, balbuciavam o
Dona eis requiem e terminavam esgotadas por um amen tão
gemente que expirava, semelhante a um leve resfolegar, por cima
dos soluços do órgão.
Que homem tinha podido imaginar tais desesperos, sonhar tais
desastres? E Durtal respondia a si mesmo: - Ninguém.
O caso é que tinha em vão tentado por todos os meios desco­
brir o autor desta música e desta prosa. Tinham-nas atribuído a
Frangipani, a Tomás de Celano, a São Bernardo e a muitos outros,
e elas permaneciam anônimas, simplesmente formadas pelas alu-
viões dolorosas dos tempos. O Dies irae parecia a princípio ter
caído, como uma semente de desolação, nas almas desvairadas do
século xi; havia germinado, depois lentamente desabrochado,
nutrido pela seiva das angústias, e regado pela chuva das lágrimas.
Tinha sido enfim ceifado, quando aparecera maduro, e tinha sido,
talvez, muito mutilado, porque num dos primeiros textos que se
conhecem, uma estrofe, depois desaparecida, evocava a magnífica e
bárbara imagem da terra que girava, vomitando chamas, enquanto
que as constelações voavam em chispas, e o céu se desdobrava em
duas partes, como um livro aberto!
Tudo isto não impede - concluiu Durtal - que estes tercetos,
tecidos de sombra e frio, eriçados de rimas, repercutindo-se em
duros ecos, e que esta música de trama rude, que veste as frases
assim como uma mortalha e desenha os contornos rígidos da obra,
não sejam verdadeiramente admiráveis! E no entanto, este canto que
compunge, que presta tanta energia à amplidão desta prosa, este
período melódico, que consegue, ou variando, ou permanecendo o

22
A CAMINHO

mesmo, exprimir alternativamente a prece e o terror, empolga-me e


comove-me menos que o De profundis que não tem nem esta gran­
diosa envergadura, nem este grito pungente de arte.
Mas, cantado em fabordão, este salmo é terreno e sufocante.
Ele sai do próprio fundo dos sepulcros, enquanto que o Dies irae
não irrompe senão do limiar dos túmulos. IJm é a própria voz do
morto, o outro a dos vivos que o enterram; e o morto chora, mas
toma alguma coragem, quando já os que o inumam desesperam.
No fim de contas, eu prefiro o texto do Dies irae ao do De pro­
fundis , e a melodia do De profundis à do Dies irae. É verdade tam­
bém dizer-se que esta última prosa está modernizada, e é agora can­
tada teatralmente, sem a imponente e a necessária marcha de um
uníssono - concluiu Durtal.
Desta vez, por exemplo, é completamente despida de interesse
- prosseguiu, saindo das suas reflexões para escutar por um
segundo o trecho de música moderna que agora a música da capela
desenrolava. - Ah! Quem se decidirá a proscrever de vez esta mís­
tica jovial, que Gounod* inventou? Devia realmente haver penalida­
des espantosas para os mestres de capela que admitem aberrações
musicais nas igrejas! E como esta manhã, na Madeleine, onde assisti
aos intermináveis funerais de um velho banqueiro; tocaram ali uma
marcha guerreira com acompanhamento de violoncelos, violinos e
tubos, uma marcha heróica e mundana, para saudar a partida em
decomposição de um financeiro! E realmente absurdo! - e, sem mais
escutar a música de Saint-Sulpice, Durtal transferiu-se em pensa­
mento para a Madeleine e deixou-se mergulhar de novo nos seus
devaneios.
Na verdade - disse consigo - o clero compara Jesus com um
turista quando o convida quotidianamente a descer a esta igreja,
cujo exterior não é sequer coroado por uma cruz e cujo interior se
assemelha ao salão nobre de um Continental ou de um Louvre. Mas
como havemos de fazer compreender a alguns padres que a feal­
dade é sacrílega e nada há que se equipare ao hórrido pecado desta
mistura desgraciosa de romano e grego, destas pinturas de octoge­
nários, deste tecto achatado e esburacado de clarabóias por onde
escorrem com todo o tempo os clarões incertos dos dias de chuva,
e deste fútil altar, terminado por uma roda de anjos, que, com razão
atônitos, dançam em honra da Virgem uma sarabanda de mármore?

* Charles Gounod (1818-1893), que consagrou o fim da sua vida a com­


posições religiosas, caracterizava-se por um estilo ‘expressivo’. É muito conhe­
cida a sua Ave Maria. [N.R.]

23
J.-K. HUYSMANS

E no entanto, na Madeleine, em ocasiões de enterros, quando a


porta se abre e o morto avança numa nesga de dia, tudo muda.
Como um anti-séptico supra-terrestre, como um timol extra-humano,
a liturgia purifica e desinfecta a fealdade ímpia destes lugares.
E, passando em revista as suas recordações da manhã, Durtal
reviu, fechando os olhos, no fundo da abside em hemiciclo, o des­
filar dos vestidos vermelhos e negros, das sobrepelizes brancas, que
se amontoavam diante do altar, desciam juntas os degraus, encami­
nhavam-se confusamente para o catafalco, depois, aí, dividiam-se de
novo, costeando-o, e se ajuntavam, confundindo~se na grande álea
bordada de cadeiras.
Esta procissão lenta e muda, precedida por inumeráveis suíços,
vestidos de luto, com a espada embainhada e umas dragonas de
general em azeviche, avançava com a cruz à frente, por diante do
cadáver, estirado sobre cavaletes, e de longe, neste tumultuar de cla­
rões caídos do tecto e de lumes acesos ao redor do catafalco e sobre
o altar, a alvura dos círios desaparecia e os padres que os levavam
pareciam caminhar com a mão vazia e alçada como para designar as
estrelas que os acompanhavam, cintilando por sobre as suas cabeças.
Depois, quando o caixão foi cercado pelo clero, o De profun­
dis rompeu, do fundo do santuário, entoado por invisíveis chantres.
Muito bem - dizia consigo Durtal. - Na Madeleine, as vozes
infantis são ásperas e frágeis e os hassos são mal decantados e
maduros de mais; evidentemente, estamos bem longe da capela de
Saint-Sulpice, que é soberba, depois, que incomparável momento o
da comunhão do padre, quando, saindo de repente dos bramidos
do coro, a voz do tenor lança por cima do cadáver a magnífica antí­
fona do cantochão:
«.Requiem aeiernam donci eis, Domine, et lux perpetua luceat
eis».*
Parece que, depois de todas as lamentações do De profundis e
do Dies irae, a presença de Deus, que vem aí, sobre o altar, traz um
refrigério e legitima a confiante e a solene altivez desta frase meló­
dica que invoca então o Cristo sem alarmes e sem lágrimas.
A missa acaba, o celebrante desaparece, e do mesmo modo,
como no momento em que o morto entrou, o clero, precedido pelos
suíços, avança para o cadáver e, no círculo inflamado das tochas,
um padre de pluvial profere as potentes orações das absolvições
solenes.

* Início da Missa do R equiem : «Repouso eterno dá-lhes, Senhor, e luz per­


pétua os ilumine». [N.R.]

24
A CAMINHO

Então a liturgia se ergue, torna-se mais admirável ainda.


Medianeira entre o culpado e o Juiz, a Igreja, pela boca do seu
padre, adjura o Senhor para que perdoe à pobre alma: - «Non intres
in judicium cum servo tuo, Domine»* - em seguida, após o amen,
lançado pelo órgão e toda a capela, uma voz se eleva no silêncio e
fala em nome do morto:
«Libera me...»
E o coro continua o velho canto do século x. Assim como no
Dies irae que se apropriou dos fragmentos destes gemidos, o Juízo
Final rutila feroz e os implacáveis responsos atestam ao defunto a
veracidade dos seus transes, confirmam-lhe que, após a queda dos
tempos, o Juiz virá, por entre o bramido dos raios, castigar o
mundo.
E o padre dá a volta ao catafalco em largos passos, borda-o de
pérolas de água benta, incensa-o, abriga a pobre alma que chora,
consola-a, chega-a a si, cobre-a de algum modo com a sua capa e
intervém ainda para que, depois de tantas fadigas e dores, o Senhor
permita à infeliz dormir, longe dos ruídos e bulícios da terra, num
repouso sem fim.
Ah!, nunca em religião alguma, um papel mais caridoso e dul-
cificante, uma missão mais augusta foi reservada a um homem.
Elevado acima da humanidade toda inteira pela consagração, quase
deificado pelo sacerdócio, o padre então, quando a terra gemia ou
se calava, podia avançar até às bordas do abismo e interceder pelo
ente a quem a Igreja tinha baptizado, sendo criança, e que a tinha
sem dúvida olvidado depois, e talvez mesmo perseguido até à hora
da sua morte.
E a Igreja não esmorecia nesta tarefa. Ante este lodo de carnes,
amontoado num caixão, ela pensava na impureza da alma e excla­
mava: «Senhor, Senhor, das portas do inferno arrancai-a»; mas, no
fim da absolvição solene, no momento em que o cortejo voltava as
costas, e se encaminhava para a sacristia, ela também parecia
inquieta. Passando em revista talvez, em um segundo, os delitos
cometidos em vida por este cadáver, ela parecia duvidar de que as
suas súplicas fossem admitidas, e esta dúvida, que as suas palavras
não confessavam, perpassava na entoação do derradeiro amen,
murmurado na Madeleine, por vozes de crianças.
Tímido e longínquo, doce e plangente, este amen dizia: fize­
mos tudo o que podíamos, mas... mas... E no fúnebre silêncio, que
deixava esta partida do padre, abandonando a nave, só restava a

* Salmo 142: «Não entreis em juízo com o Vosso servo». [N.R.]

25
J.-K. HUYSMANS

ignóbil realidade deste invólucro vazio, tirado a braços de homem,


lançado num carro, semelhante a esses refugos de açougue que são
levados pela manhã cedo para os saponificarem nas sebarias.
Quando se evoca, em face destas dolorosas orações, destas
absolvições eloqüentes, uma missa de casamento, como tudo isto
muda! - continuou Durtal. - Aí, a Igreja está desarmada e a sua litur­
gia musical é quase nula. É preciso então que ela exiba as marchas
nupciais de Mendelssohn, que vá buscar aos autores profanos a ale­
gria dos seus cantos para celebrar a breve e vã alegria dos corpos.
Suponha-se - e isto faz-se - o cântico da Virgem, servindo para exal­
tar a impaciente alegria de uma moça que espera que um homem a
prove, nessa mesma tarde, após um lauto jantar! Imagine-se o Te
Deum cantando a beatitude de um homem que vai forçar sobre um
leito uma mulher que ele desposa, porque não descobriu outros
meios de lhe violar o seu dote?
Longe deste arrendamento infamante da carne, o cantochão
permanece confinado nos seus antifonários, qual monge no seu
claustro; e quando sai daí, é para jorrar diante de Cristo a gavela das
dores e das misérias. Ele condensa-as e resume-as em admiráveis
queixas, e se, cansado de implorar, ele adora, então os seus arrou­
bos glorificam os Eventos eternos, os Ramos, as Páscoas, os
Pentecostes, as Ascensões, as Epifanias, os Natais; então transborda
de uma alegria tão magnífica que ele pula fora dos mundos, exu­
bera, em êxtase, aos pés de um Deus!
Quanto às próprias cerimônias do enterramento, elas não são
hoje mais que uma rotina oficial, que um cabrestante de orações
que se faz girar maquinalmente, sem pensar.
O organista sonha com a sua família e rumina os seus dissa­
bores enquanto interpreta; o homem que enche o fole de ar e o
impele para os tubos, pensa na gorjeta que estancará os seus suo­
res; os tenores e os baixos cuidam nas impressões que causarão,
remiram-se na água mais ou menos engelhada das suas vozes; os
meninos do coro impacientam-se para irem folgar depois da missa;
e assim, nem uns nem outros compreendem uma palavra do latim
que cantam e que abreviam do resto, como no Dies irae, donde
suprimem uma parte das estrofes.
Por seu lado, os servos da Igreja computam os fundos que o
defunto rende e até o padre, fatigado por estas orações que tanto
leu e apertado pela hora da refeição, acelera o ofício, reza mecani­
camente na ponta dos lábios, enquanto que a maior parte dos assis­
tentes está impaciente para que a missa se acabe para ir cumpri­
mentar os parentes e deixar o morto.

26
A CAMINHO

É uma desatenção absoluta, uma náusea profunda. E contudo


é pavoroso o que está ali, sobre cavaletes, o que espera ali, na
igreja; porque afinal é o redil vazio e para sempre abandonado do
corpo, e é este mesmo redil que se esfacela. Da putrefacção que
empeçonha o ar, dos gazes que emigram, da carne que se trans­
forma, é tudo o que resta!
E que é da alma, agora que a vida desapareceu e tudo começa?
Ninguém pensa nisso; nem mesmo a família, enervada pela exten­
são do ofício, absorvida, na sua dor, e que não chora, em suma,
senão a presença visível do ser que acaba de perder, ninguém,
excepto eu - dizia consigo Durtal - e alguns curiosos que se unis­
sem terrificados ao Dies irae e ao Libera cuja língua e sentido eles
compreendem!
Então, pelo som exterior das palavras, sem a ajuda do recolhi­
mento, sem o apoio mesmo da reflexão, a Igreja impõe-se.
E é aí que está o milagre da sua liturgia, o poder do seu verbo,
o prodígio sempre renascente das palavras criadas pelos tempos
idos, das orações preparadas pelos séculos mortos! Tudo passou;
nada do que foi exaltado nas idades abolidas subsiste. E estas pro­
sas, que permaneceram sempre intactas, gritadas por vozes indife­
rentes e projectadas por corações nulos, intercedem, gemem, implo­
ram eficazmente, pela sua força virtual, pela sua virtude talismânica,
pela sua inalienável beleza, pela certeza omnipotente da sua fé.
E foi a Idade Média que no-las legou para nos ajudar a salvar, se é
possível, a alma moderna, a alma morta!
Na hora actual - concluiu Durtal - não resta de próprio em
Paris senão as cerimonias quase similares das tomadas de hábito e
dos enterros. Por infelicidade, quando se trata de um sumptuoso
cadáver, as Pompas Fúnebres fazem-se sentir mais vivamente.
Elas exibem então todo um mobiliário de fazer arrepiar, está­
tuas argentadas de virgens de um gosto atroz, curvetas de zinco
onde arde um puncb verde, candelabros de metal branco, supor­
tando na ponta de uma haste, que faz lembrar um canhão erecto
com a fauce para o ar, aranhas voltadas de costas e cujas patas
cravadas em velas ardem, toda uma quinquilharia funerária do
tempo do primeiro Império, gravada em relevo nas placas, folhas
de acanto, ampulhetas aladas, losangos e ornatos arquitectónicos!
A infelicidade está também em que, para se realçar o miserável apa­
rato destas festas, tocam-se partituras de Massenet e de Dubois, de
Benjamim Godard, e de Widor, ou pior ainda, cantos de sacristia,
mística de quem mais grita, como cantam as mulheres das confra­
rias do mês de Maio!

27
J.-K. HUYSMANS

E depois, ai!, já não se ouvem as tempestades dos grandes


órgãos e as majestades dolorosas do cantochão senão nos funerais
dos ricos; para os pobres, nada - nem música de capela, nem órgão
- alguns punhados de orações apenas; três arremessos de hissope
molhado numa caldeirinha de água benta e é um morto a mais
sobre quem ele chove e que se vai levar daí! A Igreja sabe, portanto,
que o cadáver do rico é tão purulento como o do pobre, e que a
sua alma é mais fétida ainda; mas ela troca as indulgências e põe
em almoeda as missas; ela é também devorada pelo engodo do
lucro!
Não convém, pois, que se pense que eu queira muito mal aos
mortos opulentos - disse Durtal depois de um silêncio de reflexões
- porque afinal é graças a eles que posso escutar a admirável litur­
gia dos funerais; estes, que talvez não fizessem bem algum durante
a sua vida, fazem ao menos, sem o saber, esta caridade a alguém
depois da sua morte.
Um longo sussurro fê-lo voltar a Saint-Sulpice; o capelão par­
tia, e a igreja ia fechar-se. - Devia fazer esforços por rezar - disse
então consigo - , seria bem melhor do que sonhar no vácuo, sentado
numa cadeira; mas orar? Não tenho muita vontade disso; e contudo
sou visitado familiarmente e freqüentado pelo Catolicismo, mas,
aturdido pela sua atmosfera de incenso e de cera, vagueio em der-
redor, tocado até às lágrimas pelas suas preces, comprimido até à
medula pelas suas salmodias e pelos seus cantos. Estou bem des-
gostoso da minha vida, bem cansado de mim mesmo, mas daí a
levar uma outra existência vai muito longe! E depois... depois... se
estou perturbado dentro das capelas, torno-me indiferente e árido
assim que daí saio. Afinal de contas - concluiu consigo mesmo,
levantando-se e seguindo as poucas pessoas, que se dirigiam para
uma porta, ao fundo, guiadas pelo suíço - tenho o coração endure­
cido e defumado pelo fogo dos festins, e já não sirvo para nada.

28
II

Como se tornara católico, como havia chegado até aí?


E Durtal respondia a si mesmo: - Ignoro-o, mas tudo o que sei
é que, depois de ter sido incrédulo durante anos, agora, de súbito,
eu creio.
Ora vamos, pois - dizia ele consigo - tratar de raciocinar um
pouco para ver se, na obscuridade de um tal assunto, o bom senso
subsiste.
Em suma, a minha surpresa provém de ideias preconcebidas a
respeito das conversões. Já ouvi falar do desmoronamento súbito e
violento da alma, impulsivo, ou antes da Fé, explodindo afinal num
terreno lentamente e sabiamente minado. E bem evidente que as
conversões podem efectuar-se de ambos os modos, porque Deus
opera como muito bem lhe parece; mas também deve haver um ter­
ceiro meio, que é sem dúvida o mais comum, aquele de que o
vSalvador se serviu para comigo. E esse consiste em não sei que; é
alguma causa análoga à digestão de um estômago que trabalha, sem
que se sinta. Não houve, pois, caminho de Damasco, nem os suces­
sos determinados por uma crise; não é nada de admirar que desper­
temos uma bela manhã sem que saibamos como nem porquê.
Sim, mas esta acção assemelha-se muito, em suma, à dessa
mina que só rebenta depois de ter sido profundamente cavada. Ah!
É porque nesse caso as operações são sensíveis e as objecções que
obstruíam o caminho são firmes. Eu poderia raciocinar, seguir em
marcha da faísca ao longo do fio, mas aqui não houve nada disso.
Saltei de improviso, sem ter sido prevenido, sem mesmo ter duvi­
dado de que havia sido estudadamente minado. Demais, isto não foi
um golpe de raio, se se não admitir que haja um golpe de raio
oculto e taciturno, estranho e suave. E tudo isto enfim seria falso,
porque este desmoronar brusco da alma vem quase sempre atrás de
uma desgraça ou de um crime, de um acto que se conhece.

29
J.-K. HUYSMANS

Mas não, a única coisa que me parece segura é que houve, no


meu caso, premonição divina, a graça, enfim.
Mas - pensou - então a psicologia da conversão seria nula? -
e ele respondeu a si mesmo:
- Parece-o, porque debalde procuro traçar de novo as etapas
por onde passei; sem dúvida alguma, posso levantar pelo caminho
percorrido, aqui e ali, alguns marcos indicadores: o amor da arte, a
hereditariedade, o tédio de viver; posso ainda relembrar sensações
esquecidas da infância, marchas subterrâneas de ideias suscitadas
pelas minhas paragens nas igrejas; mas o que não posso fazer é rea­
tar estes fios, agrupá-los num feixe, o que não posso compreender
é a repentina e silenciosa explosão de luz que se fez dentro em
mim. Quando procuro explicar-me, como, sendo incrédulo na vés­
pera, me tornei crente, sem o saber, numa noite, nada descubro,
porque a acção celeste desapareceu sem deixar vestígios.
É bem certo - continuou, depois de um silêncio de reflexão -
que é a Virgem quem actua nestes casos, sobre nós; é Ela quem nos
amolga e coloca nas mãos do Filho, mas os Seus dedos são tão
tênues, tão fluidos e carinhosos que a alma, que eles têm empol­
gado, nada sente.
Pelo contrário, se ignora a marcha e as mudas da minha con­
versão, possa pelo menos adivinhar quais foram os motivos que
depois de uma vida de indiferença me reconduziram às paragens da
Igreja, me fizeram vaguear pelas suas vizinhanças, e por fim me
obrigaram a todo o transe a lá entrar.
E - dizia sem rodeios - há três causas:
Em primeiro lugar, um atavismo de antiga família piedosa,
esparsa pelas mosteiros; e recordações de infância lhe voltavam de
novo, de primas, tias entrevistas nos locutórios, mulheres meigas e
graves, brancas como a cera, que o intimidavam, falando baixo, e
que o inquietavam todas as vezes que olhavam para ele e lhe per­
guntavam se era meigo.
Sentia uma espécie de temor, refugiava-se por detrás das saias
de sua mãe, tremendo quando ao ir embora lhe era preciso alçar a
fronte por diante de lábios descorados para sofrer o sopro de um
beijo frio.
De longe, quando nisso pensava agora, estas entrevistas, que o
tinham tanto afligido na sua infância, pareciam-lhe singulares.
Punha-lhes toda uma poesia de claustro, envolvia estes locutórios
tão nus de um odor apagado de talhas e cera; e revia também os
jardins que tinha percorrido nesses conventos, jardins que embalsa-
mavam, rescendendo ao perfume acre e picante dos buxos, planta­

30
A CAMINHO

dos de renques, semeados de latadas, cujas uvas sempre verdes não


amadureciam, e com bancos cuja pedra, de onde em onde carco­
mida, conservava antigos restos de jactos de água. Mil detalhes lhe
ocorriam destas ruas de tílias tão tranqüilas, destes caminhos por
onde ele corria sobre a renda negra, que a sombra caída dos ramos
das árvores desenhava no solo. Conservava desses jardins, que lhe
parecia tornarem-se maiores à medida que ele avançava em idade,
uma lembrança um pouco confusa, onde tremia a imagem velada
de um velho parque áulico e de um pomar de presbitério, situado
ao Norte, e que ficava um pouco húmido, mesmo quando o solo
aquecia.
E não era de surpreender que estas sensações disformadas pelo
tempo tivessem deixado nele infiltrações de ideias piedosas que se
aprofundavam à medida que as embelezava, pensando nelas; tudo
isto podia ter surdamente fermentado durante trinta anos, e levedar-
-se agora.
Mas as outras duas causas que conhecia deveriam ser ainda
mais activas.
Era o seu desgosto pela existência e a sua paixão pela arte; e
este desgosto agravava-se certamente pela sua solidão e ociosidade.
Depois de ter outrora recolhido as suas amizades ao acaso, e
tirado o molde a almas que não tinham relação alguma com a sua,
ele, depois de uma tão inútil vagabundagem, tinha-se enfim fixado;
fora amigo íntimo de um Dr. Des Hermies, um médico entusiasta
pela demonomania e pela mística, e do sineiro das torres de Saint-
-Sulpice, o bretão Carhaix.*
Estas afeições não eram como as que já tinha conhecido, super­
ficiais e algum tanto fictícias; eram espaçosas e profundas, baseadas
sobre semelhanças de pensamentos e sobre ligas indissolúveis de
almas, e não obstante tinham sido bruscamente rompidas; com dois
meses de intervalo, Des Hermies e Carhaix sucumbiam, mortos, um
por uma febre tifóide, e o outro por um resfriamento, que o aca-
mou, depois de ter tocado o Angelus da tarde, na sua torre.
Estes dois factos foram terríveis golpes para Durtal. A sua exis­
tência, que já nenhum laço amarrava, decorria sem norte, vagueava
como que dispersa, apenas tomando conta de que este abandono
era definitivo, e que para ele o seu tempo já não era aquele em que
se está ainda.
E assim, vivia só com os seus livros, mas a solidão, que ele
suportava heroicamente quando estava ocupado, quando preparava

* Personagens do seu romance La-Bás (ver nota da p. 7). [N.R.]

31
J.-K. HUYSMANS

um livro, tornava-se-lhe intolerável quando estava ocioso. Enterrava-


-se tardes inteiras num cadeirâo e deixava-se embalar em sonhos;
era então sobretudo que ideias fixas passeavam nele, acabando por
desenrolar, por detrás do pano caído de seus olhos, devaneios cujos
actos não variavam. Dançavam-lhe sempre no cérebro nudezas ao
canto dos salmos; e ele saía dos seus devaneios, anelante, enervado,
capaz, se um padre aí se encontrasse, de se lançar a seus pés, cho­
rando, do mesmo modo que se lançaria às mais baixas torpezas, se
uma mulher estivesse perto dele, na sua alcova.
Expulsemos pelo trabalho todos estes fantasmas - exclamava -
mas trabalhar em quê? Depois de ter feito aparecer uma história de
Gilles de Rais, que teria podido interessar alguns artistas, ele estava
sem assunto e portanto na expectativa. Como era na arte um homem
de excessos, saltava imediatamente de um extremo ao outro, e,
depois de ter vasculhado o Satanismo da Idade Média, na sua narra­
ção do marechal de Rais, nada mais via de interessante do que lan-
çar-se a uma vida de santa, e algumas linhas descobertas nos estu­
dos sobre a Mística de Goerres e de Ribet tinham-no lançado na pista
de uma Bem-aventurada Liclvina, em busca de documentos novos.*
Mas, admitindo mesmo que os desencantasse, podia ele traba­
lhar numa vida de santa? Não o cria, e os argumentos em que
apoiava a sua opinião pareciam plausíveis.
A hagiografia era um ramo agora perdido da arte; acontecia-lhe
o mesmo que com a escultura em madeira e com as miniaturas dos
velhos missais. Ela não era tratada hoje em dia senão por fabriquei-
ros e padres, por comissários de estilo que parecem sempre, quando
escrevem, carregar as bagatelas das suas ideias sobre carroças, e
estava agora nas suas mãos, tornada uma das trivialidades da bea­
tice, uma transposição para livro das estatuetas dos Froc-Robert, e
das imagens em crômio dos Bouasse.*
A via, pois, estava livre e parecia à primeira vista fácil de per­
correr; mas para extrair o encanto das lendas era preciso a língua
ingênua dos séculos idos, o verbo singelo das idades mortas. Como
conseguir hoje exprimir o suco dolente e o branco perfume das
antiquíssimas traduções da Legenda Áurea* de Voragine? Como atar

* Mais uma ‘coincidência’ da personagem Durtal com a própria vida de


Huysmans, que efectivamente escreveu mais tarde uma vida de Santa Lidvina de
Schiedam. O estudo sobre Gilles de Rais, antes mencionado, é o livro em que
trabalha Durtal em Lã-Bas. [N.R.l
* Fabricantes de artefactos religiosos de cariz popular. [N.R.]
* Ed. portuguesa: Legenda Á urea, de Tiago Voragine (Porto, Civilização,
2004). [N.R.]

32
A CAMINHO

numa cândida paveia estas flores gementes que os monges cultiva­


ram no âmbito dos claustros, quando a hagiografia era a irmã da arte
bárbara e encantadora dos iluminadores e dos vidreiros da ardente
e casta pintura dos Primitivos?
Não podia, contudo, pensar em entregar-se a estudiosos pasti-
cbes, em esforçar-se por imitar friamente tais obras. Restava ainda a
questão de saber se com os recursos da arte contemporânea se con­
seguiria afinal levantar e erigir a humilde e a alta figura de uma
santa; e inclinava-se para o menos duvidoso, porque a falta de real
singeleza, o demasiado engenhoso do estilo, as astúcias de um dese­
nho atento, e o semblante de uma cor astuciosa transformariam a
eleita numa comediante de feira. Tudo isto não seria uma santa mas
sim uma actriz, que representaria mais ou menos mal o seu papel;
e então o encanto destruir-se-ia, os milagres pareceriam maquina­
dos, os episódios seriam absurdos!... depois... ainda seria preciso ter
uma fé que fosse verdadeiramente viva e crer na santidade da sua
heroína, se se quisesse tentar exumá-la e faze-la reviver numa obra.
Isto é tão exacto que aí temos a prova em Gustave Flaubert,
que escreveu páginas admiráveis sobre a Lenda de São Juliào-
-Hospitaleiro.* Elas caminham num tumulto deslumbrante mas bem
regulado, evolucionam numa linguagem soberba, cuja aparente sim­
plicidade não é devida senão à astúcia complicada de uma arte inau­
dita. Tudo há aí, tudo, excepto o cunho que teria feito desta novela
uma verdadeira obra-prima. Considerando-se o assunto, falta, com
efeito, a chama que devia circular por debaixo destas magníficas fra­
ses; falta-lhe o grito de amor que fenece, o dom do exílio sobre­
humano, a alma mística!
Por outro lado, as Fisionomias de Santos de Ernest Iiello* valem
bem a pena lê-las. A Fé jorra de cada um dos seus retratos, o entu­
siasmo transborda dos capítulos, e comparações inesperadas cavam
inesgotáveis cisternas de reflexões nas entrelinhas; mas o quê! Hello
era tão pouco artista que muitas lendas adoráveis afrouxam sob os
seus dedos quando as toca; a pobreza do seu estilo depaupera os

* É o segundo dos Trois Contes de Flaubert, e teve várias traduções: José


Osório de Oliveira (Lisboa, 1943), Telma Costa (Lisboa, 1991.) e Maria Jorge Vilar
de Figueiredo (Lisboa, 2006, com o texto original ilustrado por Amadeo de
Souza-Cardoso). [N.R.]
* Escritor francês (1828-1885), pensador católico, dedica a sua vida ao
estudo das Escrituras e à reflexão sobre os Santos. Deixa ensaios filosóficos e
críticos, traduções de textos místicos e contos. Muito elogiado pelo Cura d’Ars,
mais tarde ganhará o apodo de «Chesterton francês». Apesar de hoje ignorado,
teve influência no simbolismo francês. Não há traduções portuguesas. [N.R.J

33
J.-K. HUYSMANS

milagres e torna-os inermes. Há, pois, falta de arte, a qual tiraria este
livro da categoria das obras apagadas, das obras mortas!
O que desanimava completamente Durtal era o exemplo des­
tes dois homens, opostos como jamais escritores alguns o foram, e
não tendo podido atingir a perfeição, um na lenda de São Julião
porque a Fé lhe faltava, e o outro porque possuía uma inextensível
indigência de arte. Tornava-se necessário ser simultaneamente os
dois, e ficar ainda em si - dizia - , senão para quê lançar-se a tais
tarefas? Mais vale ficar calado -- e ele, desesperado, mergulhava-se
cada vez mais no seu sofá.
Então o desprezo por esta existência deserta, que arrastava,
cada vez mais se acelerava nele, e mais de uma vez perguntara a si
mesmo que interesse a Providência podia ter em torturar assim os
descendentes dos seus primeiros degredados? E se não obtinha res­
posta, era portanto obrigado a dizer que ao menos a Igreja recolhia,
nestes desastres, os salvados, abrigava os náufragos, repatriava-os, e
assegurava-lhes enfim uma pousada.
Não como Schopenhauer, por quem outrora se apaixonara,
mas de quem a especialidade de inventários antes da morte e os
seus herbários de plantas secas tinham cansado, a Igreja não enga­
nava o homem nem tentava burlá-lo, exaltando-lhe a clemência de
uma vida que bem sabia ser ignóbil.
Por todos os seus livros inspirados, ela clamava o horror do
destino, chorava a tarefa imposta ao viver. O Eclesiástico, o
Eclesiastes, o Livro de Joh, as Lamentações de Jeremias, atestavam
essa dor em cada linha, e a Idade Média tinha também na Imitação
de Cristo amaldiçoado a existência e chamado em grandes gritos
pela morte.
Mais claramente que Schopenhauer, a Igreja declarava que
nada havia a desejar neste mundo e nada a esperar; mas lá onde
param os processos verbais do filósofo, ela avançava sempre, trans­
punha os limites dos sentidos, divulgava a meta, precisava os fins.
Depois - dizia consigo - tudo bem considerado, o argumento
de Schopenhauer, tão exaltado contra o Criador e tirado da miséria
e da injustiça do mundo, não é irresistível, quando nele se reflecte,
porque o mundo já não é o que foi feito por Deus, mas sim o que
o homem fez.
Antes de se acusar o céu pelos nossos males, conviria sem
dúvida investigar por que fases consentidas, por que quedas volun­
tárias a criatura passou, antes de se despenhar na sinistra estrumeira
que deplora. Era preciso amaldiçoar os vícios dos seus antepassados
e as suas próprias paixões, que originaram a maior parte dos flage-

34
A CAMINHO

los de que se sofre; era preciso dizer que se Deus nos infligiu o
excremento, o homem pelos seus excessos juntou-lhe o pus; era
necessário expelir a civilização que tornou a existência intolerável
às almas límpidas, e não o Senhor, que talvez não nos criasse para
sermos despedaçados a tiros de canhão em tempo de guerra, nem
para sermos explorados, roubados e espoliados em tempo de paz
pelos negreiros do comércio e pelos salteadores dos bancos.
O que resta incompreensível, por exemplo, é o horror inicial,
o horror imposto a cada um de nós, de viver; mas isso é um misté­
rio que nenhuma filosofia explica.
Ah! - continuava. - Quando penso neste horror, neste desgosto
da existência que de ano para ano se exagerou em mim, como com­
preendo que eu tenha constrangidamente singrado para o único
porto onde poderia encontrar um abrigo, para a Igreja!
Outrora, desprezava-a, porque tinha um cajado que me sus­
tentava quando sopravam os grandes ventos do tédio e do desgosto;
eu cria nos meus romances, trabalhava nos meus livros de história,
cultivava a arte. Reconheci afinal a sua perfeita insuficiência, a sua
inaptidão absoluta em tornar feliz. Então compreendi que o
Pessimismo era tudo o que havia para reconfortar aquelas pessoas
que não têm uma real carência de ser confortadas; compreendi que
as suas teorias, fagueiras quando se é rico e se está cheio de vida e
saúde, tornam-se singularmente débeis e lamentavelmente falsas
quando a idade avança e as enfermidades se anunciam, quando
enfim tudo se esboroa!
E eu cheguei ao hospital das almas, à Igreja. Recebem-nos
aqui, deitam-nos, e tratam de nós; não se limitam a dizer-nos, vol­
tando-nos as costas como na clínica do Pessimismo, o nome do mal
que se sofre!
Enfim, Durtal tinha voltado de novo à religião pela arte. Ainda
mais que o seu desgosto pela própria vida, a arte fora o irresistível
íman que o atraíra a ir para Deus.
No dia em que por curiosidade, para matar o tempo, tinha
entrado numa Igreja, depois de tantos anos de esquecimento, ouvira
aí as Vésperas dos mortos cair pesadamente, uma a uma, enquanto
que os chantres se alternavam e lançavam, um atrás do outro, como
coveiros, pazadas de versículos, e então tinha-se-lhe perturbado a
alma e comovido até ao mais íntimo do seu ser. Nas noites em que
ouvira os admiráveis cantos da oitava dos defuntos, em Saint-
-Sulpice, tinha-se sentido para sempre cativado; mas o que o tinha
empolgado, o que melhor ainda o tinha arrebatado foram as ceri­
monias, os cânticos da semana santa.

35
J.-K. HUYSMANS

Visitara as Igrejas durante toda uma semana! Elas abriam-se


semelhantes a palácios devastados, ou a cemitérios assolados de
Deus. Estavam sinistras com as suas imagens veladas, com os seus
crucifixos envoltos num losango cor de violeta, os seus órgãos taci­
turnos e os sinos mudos. A multidão desfilava, azafamada, sem
ruído, e caminhava por sobre a imensa cruz que a grande álea e os
dois braços do transepto desenham, e, entrando pelas chagas,
como semelhavam as portas, subia até ao altar, aí onde devia pou­
sar-se a cabeça ensangüentada de Cristo, e beijava avidamente, de
joelhos, o crucifixo que lhe barrava o lugar do queixo, sobre os
degraus.
E esta turbamulta tornava-se, ao escoar-se neste mundo crucial
da Igreja, uma enorme cruz viva e movediça, silenciosa e sombria.
Em Saint-Sulpice, onde todo o seminário reunido chorava a
ignomínia da justiça humana e a morte resoluta de um Deus, Durtal
tinha seguido os incomparáveis ofícios destes dias lutuosos, destes
minutos negros, escutando a dor infinita da Paixão, tão nobremente,
tão profundamente exprimida nas Trevas pelas lentas salmodias,
pelo canto das Lamentações e dos Salmos; mas quando nisso pen­
sava, o que o fazia estremecer era a lembrança da Virgem, chegando
na quinta-feira, quando a noite começava a cair.
A Igreja, até então absorvida na sua amargura e debruçada
diante da cruz, levantava-se e punha-se a soluçar ao ver a sua Mãe.
Por todas as vozes da capela, ela acotovelava-se ao redor de
Maria, esforçava-se por consolá-la, misturando as lágrimas do Stabat
com as suas, gemendo esta música de queixas doloridas, apertando-
-se sobre a ferida desta prosa de onde brotava água e sangue como
da chaga de Cristo.
Durtal saía, acabrunhado, destas longas sessões, mas as suas
tentações contra a Fé dissipavam-se; já não duvidava mais; parecia-
-lhe que, em Saint-Sulpice, a Graça se misturava com os eloqüentes
esplendores das liturgias e que muitos apelos para ele perpassavam
na obscura aflição das vozes; e assim, experimentava um reconhe­
cimento todo filial para com esta igreja, onde tinha vivido tão sua­
ves e dolentes horas!
E, contudo, nas semanas ordinárias, ele não a freqüentava;
parecia-lhe muito grande e muito fria, e sobretudo ela era tão feia!
Preferia-lhe santuários mais simples e mais pequenos, santuários
que tivessem ressaibos da Idade Média.
Então, nos dias de ócio, ao sair do Louvre, por onde se perdia
distraído diante das telas dos Primitivos, refugiava-se na velha Igreja
de Saint-Séverin, metida num canto da Paris pobre.

36
A CAMINHO

Aí, entrevia as visões das telas que tinha admirado no Louvre,


e contemplava-as de novo neste meio em que elas se encontravam
verdadeiramente como em sua casa.
Depois, eram momentos deliciosos todos os que aí lhe decor­
riam, arrebatado nestas nuvens de harmonia que riscavam o relâm­
pago branco da voz infantil, brotada do trovão retumbante dos
órgãos.
Aí, sem mesmo rezar, sentia correr por todo o seu ser uma lan-
guiclez queixosa, uma discreta indisposição; Saint-Séverin encan­
tava-o, ajudava-o melhor do que as outras a sugerir a si mesmo, em
certos dias, uma indefinível impressão de alegria e de piedade, e
algumas vezes até, quando pensava no desvario dos seus sentidos,
a entretecer a alma de saudades e penas.
Muitas vezes, ele ia aí, sobretudo aos domingos de manhã,
pelas dez horas, à missa cantada.
Instalava-se por detrás do altar-mor, nessa melancólica e deli­
cada abside, plantada de espécies raras e um pouco exóticas, assim
como um jardim de Inverno. Dir-se-ia uma trama petrificada de
árvores seculares todas em flor mas desfolhadas, com esses bosques
de pilares quadrados ou talhados em longos panos, cavados de
entalhes regulares perto das suas bases, nodosos em todo o seu per­
curso como pés de ruibarbo, e canelados como o aipo.
Nenhuma vegetação desabrochava nos cimos destes troncos
que arqueavam os seus ramos desnudados ao longo das abóbadas,
os ligavam e uniam, formando com os seus pontos de sutura, com
os seus nós de enxerto, extravagantes ramos de rosas heráldicas e
flores de armarias, abertas à luz, e já havia mais de quatrocentos
anos que estas árvores imobilizavam a sua seiva e não lançavam
rebentos. As hastes para sempre curvadas ainda estavam intactas, a
branca casca dos pilares esterilizava-se com custo, mas a maior parte
das flores estavam fanadas; já lhes faltavam pétalas heráldicas, e cer­
tas chaves das abóbadas já não sustinham senão cálices estratifica-
dos, abertos como ninhos, esburacados como esponjas, recortados
como tufos de rendas desbotadas.
E no meio desta flora mística, entre estas árvores lapidificadas,
havia uma, bizarra e encantadora, que sugeria a quimérica ideia de
que o fumo evolado dos incensos se tinha condensado e coagulado,
empalidecendo com a idade, e havia formado, torcendo-se, a espi­
ral desta colunas que girava sobre si mesma e acabava por se afu­
nilar numa gavela, cujas hastes quebradas caíam do alto dos arcos.
Este recanto, onde Durtal se refugiava, era apenas alumiado
por vitrais em ogiva, por losangos de malhas negras, tecidos de

37
J.-K. HUYSMANS

minúsculos vidros, obscurecidos pela poeira acumulada dos tempos,


tornados mais sombrios ainda pela talha das capelas que os cercava
até meio corpo.
Esta abside era bem semelhante a um m aciço gelado de
esqueletos de árvores, a uma estufa de plantas mortas, que hou­
vessem pertencido à família das palmíferas, evocando ainda a lem­
brança de uma inverosímil fénix e de inexactas palmeiras, mas
recordava também, com a sua forma em meia lua e a sua luz baça,
a imagem de uma proa de navio, mergulhada nas ondas. Deixava
efectivamente coar-se através das suas portinholas, de vidros gra-
deados de uma rede negra, o murmúrio abafado - que simulava o
rodar das carruagens, abalando a rua - de um ribeiro que espe­
lhasse no curso esverdeado das suas águas a claridade esbatida da
luz do dia.
Ao domingo, à hora da missa cantada, esta abside estava
deserta, Todo o público enchia a nave diante do altar-mor, ou espa­
lhava-se mais longe numa capela dedicada a Nossa Senhora. Durtal
então estava quase só, e as pessoas que atravessavam o seu refúgio,
nem eram aparvoadas nem hostis, assim como os fiéis das outras
igrejas. Era, neste bairro de mendigos, gente paupérrima, regateiras,
irmãos de caridade, vendedores ambulantes e rapazes de rua, eram
sobretudo mulheres cobertas de andrajos, caminhando nas pontas
dos pés, ajoelhando-se sem olhar em volta, humildes, embaraçadas
pelo luxo dolorido dos altares, arriscando um olhar submisso e abai-
xando-se todas as vezes que passava o suíço.
Chocado pela timidez destas misérias mudas, Durtal ouvia a
missa, cantada por uma capela pouco numerosa mas pacientemente
ensaiada. Melhor do que em Saint-Sulpice, onde os ofícios eram de
outro modo solenes e exactos, a música da capela de Saint-Séverin
entoava esta maravilha do cantochão, o Credo. Ela guindava-o até
ao cume do coro e fazia-o pairar, com as grandes asas abertas, quase
imóveis, por de cima das ovelhas prostradas, quando o versículo «et
homo factus est» tomava o seu lento e respeitoso voo na voz baixa
do chantre. Era ao mesmo tempo lapidária e fluida, indestrutível
como os próprios artigos do Símbolo, inspirada como o texto que o
Espírito Santo ditou na sua última assembleia, aos apóstolos reuni­
dos de Cristo.
Em Saint-Séverin, uma voz de vitelo clamava a sós um versí­
culo, depois todas as crianças, sustentadas pela reserva dos chan­
tres, lançavam os outros, e as inalteráveis verdades afirmavam-se a
pouco e pouco, mais atentas, mais graves, mais acentuadas, algo las-
timosas na voz isolada do homem, mais tímidas talvez, mas também

38
A CAMINHO

mais familiares, mais alacres no arrojo altivo e algo contido dos


meninos do coro.
Nesse momento, Durtal sentia-se arrebatado e exclamava:
- Mas é impossível que as aluviões da Fé, que criaram esta estabili­
dade musical, sejam falsas! O acento destas confissões é tal que
parece sobre-humano e muito longe da música profana, que nunca
atingiu a impermeável grandeza deste canto nu!
Toda a missa dita em Saint-Séverin tinha um não sei que de
esquisito. O Kyrie-eleison surdo e sumptuoso; o Gloria in excelsis,
dividido, entre o grande e o pequeno órgão, um cantando só, o
outro dirigindo e sustentando o coro, exultava de júbilo; o Sanctus
alterado, quase feroz, quando o chantre gritava o «hossana in excel­
sis», pulava até às abóbadas; e o Agnus Dei elevava-se com custo
numa clara melodia suplicante, tão humilde que nem sequer ousava
subir aos ares.
Em suma, à parte os Salutaris de contrabando,* particulariza-
clos ali, como em todas as igrejas, Saint-Séverin conservava, nos
domingos ordinários, a liturgia musical, cantava-a quase respeitosa­
mente com vozes frágeis mas bem timbradas de crianças, com vio­
loncelos solidamente argamassados, içando dos seus poços vigoro­
sos sons.
E era uma alegria para Durtal o demorar-se neste adorável
meio da Idade Média, nesta sombra deserta, entre estes cantos que
se elevavam por detrás dele sem que fosse perturbado pelas mani-
gâncias de bocas que não podia ver.
E acabava por estremecer até à medula, sufocado por lágrimas
nervosas, e todos os rancores da sua vida subiam por ele acima;
cheio de receios indecisos, de postulações confusas que o abafavam
sem encontrar saídas, ele amaldiçoava a ignomínia da sua existên­
cia, jurava abafar as suas em oções carnais.
Depois, quando a missa acabava, punha-se a errar pela igreja,
exaltava-se diante do arrojo desta nave que quatro séculos edifica-
ram e selaram com as suas armas, apondo-lhe aí esses extraordiná­
rios sinetes, esses fabulosos sigilos que se expandem em relevo sob
a arcaria voltada das abóbadas. Estes séculos tinham-se reunido para
levar aos pés de Cristo o esforço sobre-humano da sua arte, e os
dons de cada um deles eram bem visíveis ainda. O século xiii tinha
talhado estes pilares baixos e troncudos cujos capitéis se coroam de
nenúfares, de trevos aquáticos, de folhagens de grandes bordos,
voluteadas em gancho e reviradas em croça. O século xiv tinha ele­

* Crítica às influências jansenistas nas cerimonias católicas. [N.R.]

39
J.-K. HUYSMANS

vado as colunas, limitando os espaços compreendidos entre as


vigas, em cujos flancos profetas, monges e santos sustentam com os
seus corpos erectos a base dos arcos. Os séculos xv e xvi tinham
criado a abside, o santuário e alguns dos vitrais, abertos no tecto do
coro, e, ainda que eles tivessem sido reparados por verdadeiros
vândalos, não obstante tinham guardado uma graça bárbara, uma
ingenuidade verdadeiramente tocante.
Pareciam ter sido desenhados pelos antepassados dos santeiros
de Épinal* e sarapintados por eles com tons crus. Os doadores e os
santos, que desfilavam nestes claros quadros emoldurados em cai­
xilhos de pedra, eram todos mal jeitosos e pensativos, vestidos com
roupagens como de goma-guta, verde garrafa, azul da Prússia, ver­
melho de groselha, violeta de beringela e borra de vinho que se car­
regavam ainda ao contacto das suas carnações, omitidas ou perdi­
das, ficando incolores como a sua epiderme de vidro. Numa destas
janelas, o Cristo na cruz, parecia diáfano, todo em luz, no meio das
manchas azulinas do céu e das placas vermelhas e verdes que for­
mavam as asas de dois anjos cujo rosto parecia também talhado no
cristal e cheio de dia.
E estes vitrais, diferentes nisto dos das outras Igrejas, absorviam
os raios do sol, sem os refractar. Tinham sido sem dúvida privados
voluntariamente de reflexos, a fim de não insultar, por uma inso­
lente alegria de pedrarias em fogo, a melancólica miséria desta
igreja, que se elevava no covil atroz de um quarteirão povoado de
mendigos e bandidos.
Então as reflexões assaltaram Durtal. Em Paris, as basílicas
modernas eram inertes; permaneciam surdas às preces que se que­
bravam contra a indiferença gelada dos seus muros. Como recolher-
-se nestas naves onde as almas nada deixaram de si, onde, quando
iam talvez libertar-se, elas deviam prosseguir, e depois retroceder,
repelidas pela indiscrição de uma iluminação de fotógrafo, ofusca­
das até pelo abandono destes altares onde nenhum Santo jamais
celebrou a missa? Parecia que Deus estava sempre saído, e que não
tornava a entrar senão para cumprir a sua promessa de aparecer no
momento da consagração e que, logo depois, se retirava, desde­
nhoso, destes edifícios que não tinham sido criados expressamente
para ele, pois que, pela baixeza das suas formas, podiam servir para
os usos mais profanos, pois que não lhe davam, sobretudo, por falta
de santidade, o único dom que lhe poderia agradar, esse dom da

* Pequena cidade, conhecida pela sua produção em larga escala de estam­


pas religiosas e outras imagens de vários gêneros, ao gosto popular. [N.R.]

40
A CAMINHO

arte, que ele mesmo concedeu ao homem e que lhe permite mirar-
-se na restiaiição abreviada da sua obra, de se rejubilar diante do
desabrochar dessa flora cujos gérmenes ele semeou nas almas que
apartou com cuidado, nas almas que, depois das dos seus santos,
ele tem verdadeiramente elegido.
Ah!, as caridosas igrejas da Idade Média, as capelas húmidas e
defumadas, cheias de cantos antigos, de pinturas esquisitas, e este
odor dos círios que se apagam e este perfume dos incensos que se
queimam!
Em Paris, restavam apenas alguns espécimes desta arte de anta-
nho, alguns santuários cujas pedras ressumbravam realmente a Fé;
dentre estas, Saint-Séverin aparecia a Durtal como a mais estranha e
a mais segura. Só aí é que se sentia como em sua casa; acreditava que
se quisesse rezar alguma coisa de bom, era nesta igreja que o devia
fazer; e dizia consigo mesmo: aqui a alma das abóbadas existe.
É impossível que as ardentes preces, que os soluços desesperados da
Idade Média não tenham para sempre impregnado estes pilares e cur­
tido estas paredes; é impossível que esta vinha de dores, onde outrora
os Santos vindimaram os cachos quentes das lágrimas, não tenha con­
servado desses admiráveis tempos emanações que sustentem, eflúvios
que solicitem ainda a vergonha dos pecados, a confissão das lágrimas!
Do mesmo modo que Santa Ines ficando imaculada nos bor­
déis, esta igreja permanecia intacta num meio infame, então, quando
tudo ao redor dela, nas ruas, no Chateau Rouge, no restaurante
Alexander, ali, a dois passos, a turba moderna dos sacripantas com­
binavam os seus crimes, coziam a embriaguez com prostitutas, de
bebidas de crimes, de absintos cúpricos e de trois-six*
Neste território reservado cio Satanismo, ela emergia delicada e
breve, friamente enroupada nos farrapos das tabernas e bodegas; e
de longe, ela se levantava ainda por sobre os tectos, com o seu cam­
panário delgado, semelhante a uma agulha esguia, com a ponta para
baixo e descobrindo no ar o seu fundo através do qual se via, pen­
durando-se numa como que bigorna, um minúsculo sino. Assim lhe
parecia da praça de Saint-André-des-Arts. Simbolicamente, dir-se-ia
um misericordioso apelo, sempre repelido por almas endurecidas e
marteladas pelos vícios, o desta bigorna, que não era senão uma ilu­
são de óptica deste sino muito real.
E dizer - pensava Durtal - que ignaros arquitectos e ineptos
arqueólogos queriam despojar Saint-Séverin dos seus anclrajos e

* Chateau Rouge, casa de baile pública, de má reputação. A lexander,


pequeno restaurante-leitaria em Paris. Trois-six, aguardente forte. [N.R.]

41
J.-K. HIJYSMANS

cercá-la com árvores na prisão de um squarel Mas ela sempre viveu


no seu dédalo de ruas negras! Ela é voluntariamente humilde, em
relação com o miserável bairro onde assiste. Na Idade Média, era
um monumento de interior e não uma dessas impetuosas basílicas
que se levantam em evidência sobre as grandes praças.
Era um oratório para os pobres, uma igreja ajoelhada e não de
pé; também seria o contra-senso mais absoluto o fazê-la sair do seu
meio, e tirar-lhe este dia de eterno crepúsculo, estas horas todas em
sombra, que avivam a sua dolente beleza de noviça em oração por
detrás da sebe ímpia dos casebres imundos.
Ah!, se se pudesse retemperá-la na atmosfera abrasada de
Notre-Dame-des-Victoires, e acrescentar ao magro coro o poderoso
chantre de Saint-Sulpice, isso seria perfeito! - exclamava Durtal.
- Mas, neste mundo nada de inteiro, nada de perfeito existe!
Enfim, sob o ponto de vista da arte, ela era ainda a única que
o arrebatava, porque Notre-Dame de Paris era muito grande e muito
freqüentada pelos turistas: além clisso as cerimonias eram raras; aí
debitava-se apenas o peso das orações exigidas e a maior parte das
capelas permaneciam fechadas; enfim, as vozes das suas crianças
eram de algodão em rama; a todos os golpes elas quebravam-se,
enquanto que se esfacelava a idade avançada dos contrabaixos. Em
Saint-Étienne-du-Mont era pior ainda; o invólucro da igreja era
encantador, mas o coro era uma sucursal da casa Sanfourche; julgar-
-se-ia num canil onde grunhisse uma matilha variada de animais
doentes; quanto aos outros santuários da margem esquerda, eram
umas perfeitas nulidacles; além disso suprimia-se tanto quanto pos­
sível o cantochão, e por toda a parte encobriam com trinados liber­
tinos a pobreza das vozes.
E contudo era ainda nesta margem que as igrejas melhor se
faziam respeitar, porque o distrito religioso de Paris pára neste lado
do Sena, cessa depois que se transpõem as pontes.
Em suma, recapitulando-se, ele podia crer que Saint-Séverin,
pelos seus eflúvios e pela arte deliciosa da sua velha nave, e que
Saint-Sulpice, pelas suas cerimonias e pelos seus cantos, o tinham
encaminhado para a arte cristã, que a seu turno o havia dirigido
para Deus.
Depois, uma vez impelido para esta via, ele tinha-a percorrido,
havia saído da arquitectura e da música, tinha errado pelos territó­
rios místicos das outras artes, e as suas longas estadas no Louvre, as
suas incursões nos breviários, nos livros de Ruysbroeck, de Ângela
de Foligno, de Santa Teresa, de Santa Catarina de Gênova, de
Madalena de Pazzi, tinham-no confirmado nas suas crenças.
A CAMINHO

Mas o desabar de ideias, que havia sofrido, era muito recente


para que a sua alma, ainda desequilibrada, se sustivesse. Por ins­
tantes, ela parecia querer retroceder, e Durtal debatia-se então para
a apaziguar. Passava, pois, o tempo em disputas e chegava a duvi­
dar da sinceridade da sua conversão, e dizia consigo: - No fim de
contas, eu não sou embalado na Igreja senão pela arte; não vou aí
senão para ver e para ouvir e não para rezar; não procuro o Senhor,
mas sim o meu prazer. Isto não é digno! Do mesmo modo que num
banho tépido, eu não sinto o frio se permanecer imóvel, e se me
movo, gelo, assim também, na Igreja, os meus arrojos de imagina­
ção soçobram desde que me mexa; estou quase inflamado na nave,
menos quente já sob o átrio, e torno-me absolutamente gelado,
quando estou fora. São postulações literárias, vibrações de nervos,
temericlades de pensamentos, tumultos de espírito, é tudo o que se
quiser, menos a Fé.
Mas, o que o inquietava ainda mais do que a carência de adju-
vantes para se enternecer, era que os seus sentidos licenciosos se
exasperavam ao contacto das ideias piedosas. Flutuava, como um
salvado de naufrágio, entre a Luxúria e a Igreja, e elas o reenvia­
vam alienadamente uma à outra, forçando-o, assim que se aproxi­
mava de uma, a voltar imediatamente para junto daquela que tinha
deixado! E para aí vinha, perguntando a si mesmo se não era vítima
de uma mistificação dos seus baixos instintos, procurando reani­
mar-se, sem mesmo ter consciência, pelo cordial de uma piedade
falsa.
Com efeito, quantas e quantas vezes não tinha visto realizar-se
o imundo milagre, quando saía quase em lágrimas de Saint-Séverin?
Sorrateiramente, sem filiação de ideias, sem gradação, sem amál­
gama de sensações, sem mesmo que uma faísca crepitasse, os seus
sentidos tomavam fogo e ele estava sem força para os deixar con­
sumir-se sós e para lhes resistir.
Ele expelia o vomitivo, e já não era sem tempo! Depois um
movimento inverso se produzia; tinha desejos de correr direito a
uma capela, e de aí se lavar, mas vivia tão desgostoso de si mesmo
que, se fosse algumas vezes até à sua porta, não ousaria entrar.
Outras vezes, pelo contrário, revoltava-se e gritava furioso:
é uma estupidez tudo isto, pois que corrompeu-se-me o único prazer
que. me restava, a carne. Dantes, divertia-me e nada me repugnava;
agora, pago as minhas estéreis pândegas com tormentos. Ajuntei um
dissabor a mais na minha existência; ah! se pudesse resgatá-lo!
E debalde mentia a si mesmo, tentava justificar-se, sugerindo-
-se dúvidas.

43
J.-K. HUYSMANS

E se tudo isto não fosse verdadeiro? Se não havia nada? Se me


enganasse? Se os livres-pensadores tivessem razão?
Mas era obrigado a suspender-se, porque sentia muito distinta­
mente, no fundo do seu ser, que possuía a inabalável certeza da
verdadeira Fé.
Estas discussões são miseráveis e estas desculpas que procuro
para as minhas imundícies são odiosas - dizia a si mesmo; e um cla­
rão de entusiasmo irrompeu nele.
Como duvidar da veracidade dos dogmas, como negar a potên­
cia divina da Igreja, se ela se impõe por si mesma!
A princípio, ela tem a sua arte sobre-humana e a sua mística,
depois não é extraordinário a persistente insanidade das heresias
vencidas? Todas, desde que o mundo é mundo, tiveram por tram­
polim a carne. Logicamente, humanamente, elas deviam triunfar,
porque prometiam ao homem e à mulher a satisfação de todas as
suas paixões, dizendo a si mesmos que não pecavam, que se santi-
ficavam mesmo com o gnósticos que rendiam homenagem a Deus
por meio das mais altas torpezas.
Que foi feito delas? Todas soçobraram. A Igreja, tão inflexível
nesta questão, ficou intacta e de pé. Ela ordena ao corpo que se
cale, à alma que sofra, e contra toda a expectativa a humanidade
escuta-a e varre, qual um charco imundo, os sedutores regozijos que
lhe propõem.
Não é também decisiva esta vitalidade que conserva a Igreja,
apesar da insondável estupidez dos seus? Ela resistiu à inquietadora
insanidade do seu clero, nem mesmo vacilou pela inépcia, pela falta
de talento dos seus defensores! Isto é que é esmagador!
Sim, quanto mais penso nisto - exclamava - mais a acho pro­
digiosa, única! Mais estou convencido de que é ela a única que
guarda a verdade, que fora dela não há mais que luxações de espí­
rito, imposturas e escândalos! A Igreja! Ela é o alfobre divino e o dis­
pensário celeste das almas; é ela quem as amamenta, quem as
educa, quem as pensa; é ela quem lhes notifica, logo que chega o
tempo das dores, que a vida real não começa no nascimento mas
sim na morte. A Igreja! Ela é indefectível, ela é supra-admirável, ela
é imensa...
Sim, mas então, convir-me-ia seguir as suas prescrições e pra­
ticar os sacramentos que ela exige!
E Durtal, sacudindo a cabeça, não achava uma resposta para si
mesmo.

44
III

Como todos os incrédulos, dissera antes da sua conversão: se


cresse firmemente que Jesus é Deus, e que a vida eterna não é um
simulacro, não hesitaria um só instante em abandonar os meus
hábitos e a seguir, tanto quanto me fosse possível, as regras reli­
giosas e a tornar-me casto. E admirava-se de que certas pessoas,
que tinha conhecido e que se encontravam nestas mesmas condi­
ções, não tivessem uma atitude superior à sua. Ele, que tinha con­
cedido a si mesmo indulgentes perdões, desde tanto tempo, tor­
nava-se de uma singular intolerância assim que se tratasse de um
católico.
Compreendia agora a iniqüidade dos seus juízos, e via bem
que entre crer e praticar existia o abismo mais difícil de transpor.
Não gostava de disputar consigo mesmo sobre este assunto,
mas ele voltava de novo e obsidiava-o mesmo, e via-se obrigado a
confessar então a mesquinhez dos seus argumentos e as desprezí­
veis razões das suas resistências.
Era ainda sincero o suficiente para dizer: eu já não sou uma
criança; se tenho Fé, se admito o Catolicismo, não o posso conceber,
tíbio e flutuante, continuamente, requentado ao banho-maria de um
falso zelo. Não quero compromissos nem tréguas, alternâncias de
deboches e de comunhões, mudas libertinas e piedosas, não, ou tudo
ou nada; uma mudança completa e radical ou então nada mudar!
E imediatamente, recuava espantado, tentava fugir diante deste
partido que acabava de tomar, engenhava desculpar-se, altercando
horas e horas, invocava os mais mesquinhos motivos para ficar tal
qual estava, para não se mover.
E que fazer? Se não obedeço a ordens, que sinto afirmarem-se
cada vez mais imperiosas dentro em mim, preparo uma vida de mal-
-estar e de remorsos, porque sei muito bem que não devo eternizar-
-me assim ao limiar, mas subir ao santuário e lá descansar então.

45
J.-K. HUYSMANS

E se eu me decido... Oh! Não... Porque então seria preciso


sujeitar-me a um amontoado de observâncias, dobrar-me a séries de
exercícios, ouvir missa ao domingo, guardar abstinência às sextas-
-feiras; será preciso viver como um sacristão, assemelhar-me a um
imbecil!
E de súbito, para ajudar a sua revolta, recordava-se do des-
plante, da falta de garbo das pessoas assíduas nas igrejas; para se
achar dois homens que tivessem o aspecto de seres inteligentes, de
homens asseados, quantos sem dúvida se nos deparariam hipócritas
e farisaicos!
Quase todos tinham um ar equívoco, a voz oleosa, os olhos
quase sinistros, as lunetas inamovíveis, as vestes de pau-preto dos
sacristães; quase todos engrolavam ostensivos rosários e, mais estra­
tégicos, mais velhacos ainda que os ímpios, exploravam o seu pró­
ximo, abandonando a Deus.
E as devotas eram ainda mais desanimadoras; elas invadiam as
igrejas, e passeavam nelas como em sua casa, incomodavam a
todos, empurravam as cadeiras, calcavam-nos sem ao menos pedir
desculpa; depois ajoelhavam-se com fasto, tomavam atitudes de
anjos contritos, murmuravam inesgotáveis Padre-Nossos, e saíam da
igreja ainda mais arrogantes e desabridas.
Como é que hei-de ir buscar a coragem às cabalas destes ani-
malejos piedosos! - gritava irritado.
Mas logo, sem mesmo o querer, ele respondia: - Tu não tens
nada com os outros; se fosses mais humilde, toda essa gente te pare­
ceria sem dúvida menos hostil, e no entanto toda ela tem a coragem
que te falta; esses homens e mulheres não têm vergonha da sua fé
e não se arreceiam de ajoelhar em público diante do seu Deus.
E Durtal ficava embaraçado, porque ele devia bem confessar
que esta resposta era justa. A humildade faltava-lhe, isto era seguro,
mas, o que era pior ainda, não podia subtrair-se ao respeito humano.
Tinha receio de passar por um louco; a perspectiva de ser visto,
de joelhos, numa igreja, horripilava-o; a ideia de se levantar, de
afrontar todos os olhares para se encaminhar para o altar, quando
tivesse de comungar, era-lhe intolerável.
Oh! Como será suportar esse momento! - dizia consigo. - E no
entanto tudo isto é uma loucura, porque afinal nada tenho com a
opinião de pessoas que nem sequer conheço! - mas, por mais que
repetisse que os seus alarmes eram absurdos, ele não conseguia
recalcá-los e dissuadir-se do receio do ridículo.
Enfim - continuava - ainda mesmo que me decidisse a saltar o
fosso, a confessar-me e a comungar, ficava sempre por resolver a

46
A CAMINHO

terrível questão dos sentidos; era preciso determinar-se a fugir das


empresas da carne, a renunciar às mulheres, e a aceitar um eterno
jejum. A isto nunca chegarei!
Sem contar que em todo o caso o momento seria mal escolhido
se tentasse desde já este esforço, porque nunca fui tão atormentado
como depois da minha conversão. Ah!, o que o Catolicismo suscita
de imundos rumores quando se vagueia pelas suas vizinhanças, sem
nele entrar!
E a esta exclamação uma outra replicava imediatamente: - Pois
bem, mas então é preciso entrar!
E irritava-se por estar assim a girar sobre si mesmo, sem mudar
de lugar, e tentava desviar-se desta conversação como se estivesse
em colóquio com uma outra pessoa cujas perguntas o embaraças­
sem; mas para aí voltava de novo e, agastaclo, reunia toda a sua
razão e chamava-a em sua ajuda.
Vejamos, é preciso marcarmos um ponto de referência! E evi­
dente que, desde que me aproximei da Igreja, as minhas persuasões
de baixezas terrenas se tornaram mais freqüentes e mais tenazes; um
outro facto é certo ainda, e é que estou suficientemente gasto por
vinte anos de vida mundana para não ter mais necessidades carnais.
Poderia então perfeitamente, se o quisesse, ficar casto; mas tinha que
ordenar ao meu miserável cérebro que se calasse e não tenho forças
para isso! É, pois, espantoso dizer que estou mais fogoso do que na
minha mocidade, porque agora os meus desejos andam peregri­
nando, e, lassos do abrigo costumeiro, eles partem à descoberta da
má pousada! Como explicar isto? Não se trataria então de uma espé­
cie de dispepsia de alma, não digerindo já os assuntos do costume,
procurando para nutrir-se acepipes de sonhos e iguarias de ideias; isto
seria então essa inapetência dos repastos sãos que teria engendrado
esta concupiscência de bocados estranhos e exóticos, este ideal fosco,
este desejo de me escapar para fora de mim, de transpor, ao menos
por espaço de um segundo, as fronteiras toleradas dos sentidos.
Neste caso, o Catolicismo desempenharia ao mesmo tempo o
papel de um revulsivo e de um deprimente. Ele estimularia estes
anelos doentios e me debilitaria juntamente, entregar-me-ia, sem
vigor para lhe resistir, à agitação dos meus nervos.
À força de se auscultar, vagabundeando assim, acabava por
encurralar-se num beco sem saída e desembocava nesta conclusão:
eu não pratico a minha religião porque cedo aos meus ignóbeis ins­
tintos e cedo a estes instintos porque não pratico a religião.
Posto assim neste círculo vicioso, ele debatia-se, perguntando
a si mesmo se esta última observação era justa; porque enfim nada

47
J.-K. HUYSMANS

provava que, depois de ter-se aproximado dos sacramentos, não


seria atacado mais violentamente ainda. Isso até era mesmo mais
provável, porque o demônio encarniçava-se de preferência contra
as pessoas piedosas.
Depois revoltava-se contra a cobardia destas advertências, e
exclamava: - Estou a mentir a mim mesmo, porque, sei muito bem,
se fizesse por me defender, seria poderosamente ajudado lá do alto.
Hábil em atormentar-se, ele continuava a tripudiar a alma, sem­
pre sobre a mesma pista. - Admitamos - dizia - que, por impossí­
vel, eu tenha domado o meu orgulho e subjugado o meu corpo;
admitamos que nada mais me resta agora do que ir para diante; pois
bem, eu estou ainda parado, porque o derradeiro obstáculo a trans­
por me perturba.
Até aqui pude caminhar sozinho, sem auxílio terrestre algum,
sem um conselho; pude converter-me sem o apoio de ninguém, mas
agora não posso dar um passo mais sem ter um guia. Não posso
aproximar-me do altar sem o socorro de um intérprete, sem o recon-
forto de um padre.
E uma vez a mais, ele recuava, porque tinha outrora freqüen­
tado um certo número de eclesiásticos e tinha-os achado tão medío­
cres, tão tíbios, e sobretudo tão hostis à Mística, que revoltava-se
com a ideia de lhes expor o balanço das suas postulações e das suas
penas.
Eles não me compreenderão - dizia - responder-me-ão que a
Mística fora muito interessante na Idade Média, mas que agora seria
obsoleta, e estaria finalmente em perfeito desacordo com o moder­
nismo. Julgarão que estou doido, assegurar-me-ão que Deus não
pede tanto, empenhar-se-ão, sorrincio-se, em não me singularizar, a
fazer como os outros, a pensar como eles.
Não tenho certamente a pretensão de abordar a via mística,
mas enfim que ao menos me deixem anelá-la, e que não me infli-
jam o seu ideal burguês de um Deus!
Porque, não há que duvidar, o Catolicismo não é somente esta
religião temperada que se nos propõe; ele não se compõe somente
de pequenos casos e fórmulas; ele não reside na íntegra em estrei­
tas práticas, em distracções de solteirona, em toda esta santimónia
que se expande ao longo da rua de Saint-Sulpice; ele é de outro
modo supra-elevado, de outro modo puro; mas então é preciso
penetrar na sua zona tórrida, é preciso procurá-lo na Mística que é
a arte, que é a essência, que é a própria alma da Igreja enfim.
Usando dos potentes meios de que ela dispõe, é necessário
então fazer o vácuo dentro em si mesmo, desnudar a alma, de tal

48
A CAMINHO

modo que, se o quisesse, Cristo aí pudesse descer; é, pois, necessá­


rio desinfectar o aposento, passá-lo pelo cloro das orações, pelo
sublimado dos sacramentos; é necessário, numa palavra, estarmos
prontos para quando o Hóspede vier e nos ordenar que nos trans-
vazemos n’Ele, enquanto que Ele mesmo se derramará em nós.
Sei muito bem que esta alquimia divina, esta transmutação da
criatura humana em Deus é na maior parte das vezes impossível,
porque o Salvador reserva por hábito estes extraordinários favores
aos seus eleitos, mas enfim, por mais indignos que sejamos, cada
um de nós presume atingir este fim grandioso, pois que é só Deus
quem decide e não o homem, cujo humilde concurso é apenas
requisitado.
E vou contar isto a padres! Eles me dirão que não tenho que
preocupar-me com ideias místicas, e me presentearão em troca com
uma religiãozinha de mulher rica; eles quererão imiscuir-se na
minha vida, comprimir-me sobre a minha alma, insinuar-me os seus
gostos; tentarão convencer-me de que a arte é um perigo; eles me
encomiarão leituras imbecis; eles me deitarão em tigelas cheias o
caldo de vaca piedoso!
E eu conheço-me, ao cabo de duas conversas com eles,
revolto-me, torno-me um ímpio!
E Durtal sacudia a cabeça, e ficava pensativo, depois continuava:
Mas no entanto devemos ser justos; o clero secular não pode
deixar de estar desacreditado, porque as ordens contemplativas e o
exército de missionários arrebatam cada ano a fina flor das almas;
os místicos, os padres esfaimados de dores, ébrios de sacrifícios,
internam-se nos claustros ou exilam-se para o meio dos selvagens
que vão catequizar. Assim desnatado, o resto do clero não é evi­
dentemente mais que um leite aguado, e que a lavagem dos semi­
nários...
Sim, mas a questão não é de saber se eles são inteligentes ou
medíocres; não tenho que despedaçar o padre para procurar des­
cobrir por detrás do invólucro consagrado o nada do homem; não
tenho que maldizer a sua insuficiência, pois que ela se ajusta per­
feitamente à compreensão das multidões. Não seria portanto mais
corajoso e mais humilde ajoelharmo-nos diante de um ser cuja misé­
ria de cérebro nos fosse conhecida?
E depois... depois... ainda não cheguei a esses pontos; porque
enfim sei de um em Paris, que é um verdadeiro místico. E se eu
fosse vê-lo?
E ele pensava e tornava a pensar num abade Gévresin com
quem se tinha outrora dado; tinha-o encontrado várias vezes numa

49
J.-K. HUYSMANS

livraria da rua Servandoni, o velho Tocane, que possuía raríssimos


livros sobre liturgia e vidas de Santos.
Sabendo que Durtal andava à procura de obras sobre a Bem-
-aventurada Lidvina, este padre tinha-se imediatamente interessado
por ele e ao sair daí tinham conversado largamente por muito
tempo. Este abade era já muito velho e caminhava com custo; e
assim tinha-se voluntariamente apoiado ao braço de Durtal, que o
acompanhou até à sua porta.
- É um assunto magnífico, o da existência desta vítima dos
pecados do seu tempo - disse - , recorda-se dela? - e, enquanto
andava, desenhou em. largos traços as suas linhas.
Lidvina nascera pelos fins do século xiv em Schiedam, na
Holanda. A sua beleza era extraordinária, mas ficou doente aos
quinze anos e tornou-se feia. Depois entra em convalescença, res­
tabelece-se, e um dia em que patina com as suas companheiras
sobre os canais gelados da cidade, dá uma queda e quebra uma cos­
tela. A partir deste acidente, fica estendida sobre um leito até à sua
morte; os males mais terríveis precipitam-se sobre ela, a gangrena
corre nas suas chagas e das suas carnes em putrefacção nascem
bichos. A terrível moléstia da Idade Média, o fogo sagrado, devora-
-a. O seu braço direito é roído, não lhe fica senão um tendão que
impede este braço de separar-se do corpo; a fronte fende-se-lhe de
cima abaixo, um dos olhos se apaga e o outro torna-se tão sensível
que não pode suportar o menor clarão.
Neste entrementes, a peste assola a Holanda e dizima a cidade
onde habita; ela é a primeira atacada: duas pústulas se formam, uma
debaixo de um braço e a outra na região do coração. - Duas pús­
tulas, está bem - diz ela ao Senhor - , mas três seriam melhor, em
honra da Santíssima Trindade; e imediatamente uma terceira se lhe
rebenta no rosto.
Por espaço de trinta e cinco anos viveu num quarto sem luz,
não tomando alimento algum sólido, orando e chorando sempre.
Tão tolhida de frio no Inverno que pela manhã as suas lágrimas for­
mavam dois regos de água gelada ao longo das suas faces.
Ela julgava-se ainda muito feliz, e suplicava ao Senhor que não
a poupasse; obtinha dele o poder de expiar por meio das suas dores
os pecados dos outros; e o Cristo escutava-a, vinha vê-la com os
seus anjos, comungava-a pelas suas próprias mãos, arrebatava-a em
celestes êxtases, fazia-a exalar da podridão das suas carnes perfu­
mados eflúvios.
Ele assiste aos seus últimos momentos e restabelece na sua
integridade o seu pobre corpo. A sua beleza, há tanto tempo desa­

50
A CAMINHO

parecida, resplandece; a cidade comove-se, os enfermos chegam e


todos aqueles que se lhe aproximam curam-se.
- Ela é o verdadeiro arquétipo dos doentes - concluiu o abade;
e, após um pequeno silêncio, continuou:
- Sob o ponto de vista da alta mística, Lidvina foi prodigiosa,
porque pôde verificar-se nela o método de substituição, que foi e
ainda é a gloriosa razão de ser dos claustros.
E como, sem responder, Durtal o tivesse interrogado com o
olhar, ele prosseguiu:
- Não ignora, o senhor, que em todos os tempos houve reli­
giosas que se ofereceram para servirem de vítimas de expiação ao
Céu. Abundam vidas de Santos e de Santas que cobiçaram estes
sacrifícios e repararam por meio de sofrimentos, ardentemente recla­
mados e pacientemente suportados, os pecados dos outros. Mas
ainda há uma tarefa mais árdua e mais dolorosa que estas almas
abraçam. Consiste, não em purgar as culpas dos outros, mas em pre­
veni-las, em impedir de cometê-las, suplantando as pessoas dema­
siado débeis para lhes suportar o choque.
Leia a este propósito Santa Teresa; verá que ela obteve o tomar
a seu cargo as tentações de um padre que não podia suportá-las sem
entibiar-se. Esta substituição de uma alma forte, desembaraçando a
que o não é, dos seus perigos e dos seus temores, é uma das gran­
des regras da Mística.
Ora, esta substituição é puramente espiritual e, pelo contrário,
não se dirige senão às doenças do corpo; Santa Teresa sub-rogava-
-se às almas na dor, a soror Catarina Emmerich sucedia-se aos
débeis, revezava-se aos mais doentes; é assim, por exemplo, que ela
pôde sofrer as torturas de uma mulher atacada de tísica e de uma
hidrópica para permitir-lhes o poderem preparar-se para a morte em
paz.
Pois bem! Lidvina açambarcou todas as doenças do corpo; ela
teve a concupiscência das dores físicas, a glutonaria das chagas; foi
de algum modo a ceifeira dos suplícios, e foi também o lamentável
vaso onde cada um vinha verter o excesso dos seus males.
Se quer falar dela, de um modo diferente dos pobres hagió-
grafos do nosso tempo, estude a princípio esta lei da substituição,
esta maravilha da caridade absoluta, esta Vitória sobre-humana da
Mística; ela será a haste do seu livro e, naturalmente, sem esforço,
todos os actos de Lidvina se enxertarão nela.
- Mas - perguntou Durtal - esta lei subsiste ainda?
- Sim, conheço conventos que a aplicam. De resto, nessas
ordens, como as Carmelitas e as Clarissas, aceita-se muito bem que
J.-K. HUYSMANS

se lhes transfiram as tentações de que se sofre; então estes mostei­


ros transferem, por assim dizer, os vencimentos diabólicos impos­
tos às almas insolúveis cujas dívidas pagam deste modo integral­
mente.
- Mas - disse Durtal, abanando a cabeça - para consentir em
atrair assim sobre si os ataques destinados ao próximo, não é pre­
ciso estar bem certo de não soçobrar?
- As religiosas escolhidas por Nosso Senhor como vítimas
expiatórias, como holocaustos, são realmente muito raras - prosse­
guiu o abade - , são geralmente, neste século sobretudo, obrigadas
a reunir-se, a coligar-se a fim de suportar sem tibieza o peso dos
delitos que as tentam, porque, para que uma alma possa sofrer, a
sós, os assaltos satânicos, que são por vezes atrozes, é preciso que
seja verdadeiramente assistida pelos anjos e eleita por Deus...
E, depois de um silêncio, o velho padre acrescentou:
- Creio poder falar com uma certa experiência sobre estas
questões, porque sou um dos directores das religiosas reparadoras
nos conventos.
- E quando se pensa que o mundo ainda pergunta para que
servem as ordens contemplativas! - exclamou Durtal.
- Elas são os pára-raios da sociedade - disse o abade com uma
singular energia. - Atraem a si o fluido demoníaco, reabsorvem as
seduções dos vícios, preservam pelas suas orações aqueles que
vivem no pecado, como nós; elas aplacam a cólera do Altíssimo e
impedem-no de lançar o interdito sobre a terra. Ah! Certamente as
irmãs que se votam à guarda dos doentes e inválidos são admirá­
veis, mas quanto a sua tarefa é fácil em comparação com a que assu­
mem para si as ordens clausuradas, as ordens em que as penitên­
cias não se interrompem jamais, onde mesmo de noite os leitos
soluçam!
Na verdade, este padre é mais extraordinário que os seus con­
frades - disse Durtal no momento em que se separaram; e, como o
abade o tinha convidado a ir vê-lo a sua casa, fora lá várias vezes.
Era sempre cordialmente recebido. Em diversas ocasiões tinha
habilmente tacteaclo este velho sobre algumas questões. Ele res­
pondia evasivamente quando se tratava dos seus confrades. Não
parecia contudo fazer grande caso disso, se se julgasse pelo que
tinha replicado um dia a Durtal, que lhe falava mais uma vez a res­
peito desse íman de dores como foi Lidvina.
- Veja bem; uma alma fraca mas proba tem toda a vantagem
em escolher para si um confessor, não no clero que perdeu toda
noção da Mística, mas entre os monges. Só eles conhecem os efei­

52
A CAMINHO

tos da lei de substituição e, se vêem que apesar dos seus esforços o


penitente sucumbe, acabam por libertá-lo, tomando à sua conta as
suas tentações ou expedindo-as para um convento longínquo, onde
pessoas resolutas as gastam.
De uma outra vez, a questão das nacionalidades era discutida
num jornal que lhe mostrava Durtal; o abade tinha sacudido os
ombros e repelido as bravatas do chauvinismo. - Para mim - afir­
mou placidamente - , para mim a pátria é onde posso orar bem.
Quem era este padre? Não sabia ao certo. Pelo livreiro soubera
que o abade Gévresin estava impossibilitado por causa da sua muita
idade e enfermidades de exercer regularmente o sacerdócio. - Sei
que, quando o pode, celebra ainda a missa, pela manhã, num con­
vento; creio também que confessa em sua casa alguns confrades -
e Tocane tinha desdenhosamente acrescentado: - Apenas tem com
que viver e não deve ser bem visto no arcebispado por causa das
suas idéias místicas.
Chegavam até aí as suas informações. - Evidentemente é um
óptimo padre - repetia consigo Durtal. - A sua própria fisionomia o
revela, e é uma contradição da boca e dos olhos o que demonstra
esta certeza de uma bondade perfeita; os seus lábios um pouco
grossos e arroxeados, sempre húmidos, sorriam com um sorriso
afectuoso mas quase triste, desmentido pelos seus olhos azuis de
criança, olhos que riem, espantados, por debaixo de sobrancelhas
brancas, no seu rosto um pouco vermelho, picado nas faces, seme­
lhante a um damasco maduro, de pontos de sangue.
Em todo o caso - concluiu Durtal, saindo dos seus devaneios
- não teria razão em deixar de continuar as relações que com ele
travei.
Sim, mas nada há mais difícil do que entrar na real intimidade
de um padre; a princípio, pela própria educação que recebeu no
seminário, o eclesiástico julga-se obrigado a disseminar-se, a não
concentrar-se em afeições particulares; depois, assim como o
médico, é um homem cheio de ocupações e que não se pode achar
quando se quer. Vemo-los, quando nos encontramos, um ou outro,
entre duas confissões ou duas visitas. Com isto não se está bem
certo do bom quilate do acolhimento apressado do padre, porque
ele é sempre o mesmo para todos os que se lhe aproximam. Enfim,
não visitando o abade Gévresin para reclamar socorros ou cuidados,
tive receio de embaraçá-lo, de fazer-lhe perder o seu tempo e por
discrição abstive-me de ir vê-lo.
Mas agora sinto pesar por isso; e se eu lhe escrevesse ou se
voltasse lá uma manhã? Mas como hei-de desculpar-me? Ainda seria

53
J.-K. HUYSMANS

preciso saber o que se quer para se poder importuná-lo. Se aí vou


.somente para me lamuriar, responder-me-á que não tenho a menor
razao para não comungar; e que lhe replicarei? Não, o que devia
lazer era cruzar-me com ele, como por acaso, pelos cais onde às
vezes rebusca alfarrábios, ou em casa de Tocane, porque então
podia conversar com ele, de uma maneira mais íntima e, de alguma
maneira, menos oficial, a respeito das minhas oscilações e dos meus
pesares.
E Durtal pôs-se a percorrer os cais e não encontrou uma só vez
o abade. Dirigiu-se a casa do livreiro, a pretexto de consultar os seus
livros, mas assim que pronunciou o nome de Gévresin, Tocane
exclamou: - Estou sem notícias dele; há dois meses que não vem
aqui!
Não há que tergiversar, tenho que ir procurá-lo a casa - disse
Durtal consigo - mas ele perguntar-me-á porque volto depois de
uma tão longa ausência. Além da vexação que experimento em vol­
tar a casa de pessoas que abandonei, há ainda este desprazer de pen­
sar que, ao avistar-me, o abade suspeitará imediatamente na minha
visita um fim interessado. Isto não é verdadeiramente confortável; e
se ao menos tivesse um bom pretexto... encontrá-lo-ia nessa vida de
Lidvina que tanto o interessa; poderia consultá-lo sobre diversos
pontos. Sim, mas quais? Já não me ocupo desta santa há muito tempo
e ser-me-ia necessário reler os indigentes alfarrábios dos seus bió­
grafos. Afinal, seria muito mais simples e mais digno obrar franca­
mente e dizer-lhe: - Eis o motivo da minha vinda; vou pedir-lhe con­
selhos que não estou resolvido a seguir, mas tenho tanta necessidade
de conversar, de desafogar a alma, que venho suplicar-lhe que me
faça a caridade de perder uma hora por minha causa.
E ele certamente me fará isso de muito bom grado.
Então está entendido? E se eu fosse amanhã? - e imediatamente
se conteve. Nada o apressava; seria sempre tempo; era melhor
reflectir ainda. - Ah! Mas agora me lembro que estamos à beira do
Natal; não devo realmente importunar este padre, que tem de con­
fessar os seus fregueses, porque por estes dias comunga-se muito.
Deixemos passar este tempo e veremos depois.
A princípio ficou contente por ter inventado esta evasiva;
depois teve interiormente que confessar que ela não era muito
válida, porque enfim não tinha prova de que este padre, que não
estava preso a paróquia alguma, estivesse então ocupado em con­
fessar fiéis.
Isso era até muito pouco provável, mas tentou convencer-se de
que ao menos podia ser assim, e as suas hesitações começaram de

54
A CAMINHO

novo. Afinal, exasperado por estes debates, adoptou um meio


termo. Não iria, para mais segurança, a casa do abade senão depois
do Natal, somente não ultrapassaria a data que acabava de fixar e,
pegando num almanaque, jurou cumprir a sua promessa três dias
depois desta festa.

55
IV

Ah! Esta missa da meia-noite! Tivera a infeliz ideia de se diri­


gir à festa do Natal. Entrara em Saint-Séverin, e aí encontrara insta­
lado, no lugar da música da capela, um externato de donzelas que
teciam com vozes de agulhas a lã fatigada dos cânticos. Tinha
fugido até Saint-Sulpice, e caíra no meio de uma multidão que pas­
seava e conversava como ao ar livre; havia escutado marchas de
orfeões, valsas de cafés, árias de fogos de artifício, e, indignado, daí
saíra.
Parecera-lhe supérfluo fazer escala por Saint-Germain-des-Prés,
porque tinha horror a esta igreja. Além do tédio, que desprende o
seu pesado invólucro tão mal restaurado e as sombrias pinturas de
que a carregou Flandrin, aí o clero era de uma disformidade espe­
cial, quase inquietante e a música da capela era verdadeiramente
infame. Era um amontoado de iguarias estragadas, de crianças que
tresandavam a cozinha e de velhos chantres que coziam no forno
das suas gargantas uma espécie de açorda vocal, um verdadeiro
refogado de sons.
Já não pensava sequer em refugiar-se em Saint-Thomas, cujos
latidos e estribilhos o terrificavam; restava ainda Sainte-Clotilde onde
o coro ao menos se mantém de pé, e não tem, como o de Saint-
-Thomas, perdido todo o pejo. Entrou, pois, aí, mas esbarrou com
um baile de árias profanas, com um stabat mundano.
Finalmente fora deitar-se, furioso, dizendo consigo: - Que sin­
gular baptismo musical em Paris se reserva ao Recém-nascido!
No dia seguinte, ao despertar, sentiu-se com coragem para
afrontar de novo as igrejas. - Os sacrilégios desta noite vão conti­
nuar - pensou; e, como o tempo estava sofrível, saiu de casa, vaga-
bundeou pelo Luxembourg, alcançou a encruzilhada do
Observatório e o boulevard de Port-Royal e maquinalmente enfiou
pela interminável ma de la Santé.

56
A CAMINHO

Já conhecia esta rua desde longa data; por aí dava às vezes


melancólicos passeios, atraído pela sua miséria caseira de província
pobre; depois, era dada ao devanear, porque bordavam-na, à direita,
os muros da prisão de la Santé e os do asilo dos alienados de Sainte-
-Anne, e à esquerda, alguns conventos. O ar, a luz do dia, corriam
às ondas pelo interior desta rua, mas parecia que por detrás dela
tudo se tornava negro; era de algum modo como um corredor de
prisão, ladeado por células onde uns sofriam, à força, temporárias
condenações, e outros suportavam, por sua vontade, eternas penas.
Eu figuro-a muito bem, pintada por um Primitivo da Flandres -
dizia Durtal. Ao longo da calçada que pacientes pincéis pavimenta­
ram, vêem-se andares de casas abertas, de cima a baixo, semelhan­
tes a armários; e de um lado, enxovias maciças com camilhas de
ferro, bilha de barro e postiguinho aberto em portas seladas com
potentes ferrolhos; lá dentro, maus ladrões, rangendo os dentes,
sempre inquietos, com os cabelos em pé, ululando como feras enca­
deadas nas jaulas; do outro lado, células mobiladas com trapeiras,
com um cântaro de grés, um crucifixo, cerradas também por portas
reforçadas por ferros, e no meio, religiosas ou monges, de joelhos
sobre o lajedo, o rosto recortado sobre o fogo de um nimbo, os
olhos pregados, no céu, as mãos erguidas, arrebatados no êxtase,
perto de um vaso onde desabrocha um lírio.
Enfim, no fundo da tela, entre estas duas sebes de casas, sobe
um grande corredor, no fim do qual, num céu de nuvens enovela-
das, Deus Padre está assentado, com o Cristo à sua mão direita e,
ao redor d’Eies, coros de serafins tangendo violetas; e o Pai imóvel
sob a sua alta tiara, o peito coberto com a sua longa barba, tem na
mão uma balança, cujos pratos se equilibram, e os santos cativos,
expiando a pouco e pouco, pelas suas penitências e pelas suas ora­
ções, as blasfêmias dos celerados e dos loucos.
Devo confessar - dizia Durtal consigo mesmo - que esta rua é
bem singular, e que mesmo provavelmente é única em Paris, por­
que reúne em todo o seu percurso as virtudes e os vícios que nos
outros distritos se disseminam, por hábito, apesar dos esforços da
Igreja, para o mais longe possível uns dos outros.
Tinha chegado, entretido consigo mesmo, até Sainte-Anne;
então a ma arejava-se e as casas baixavam-se; não tinham mais que
um ou dois andares, depois, pouco a pouco, espaçaram-se, e já não
estavam pegadas umas às outras senão pelas extremidades dos
muros dos quintais.
E - dizia Durtal - , se este canto de ma é despido de todo o
prestígio, ele é em compensação bem íntimo; pelo menos aqui dis­

57
J.-K. HUYSMANS

pensa-se de admirar a decoração ridícula dessas modernas agências


que expõe nas suas vitrines, como preciosos víveres, pilhas escolhi­
das de bocados de madeira e, em compoteiras de cristal, doces de
antracite e amêndoas de carvão.
E depois, eis uma viela verdadeiramente divertida - e ele
olhava para um caminho estreito que descia em declive difícil para
uma grande rua onde se distinguia a bandeira tricolor de zinco de
uma lavandaria; e leu este nome: rua de 1’Èbre.
Para aí se encaminhou; ela media alguns metros apenas, e era
limitada em todo o seu comprimento, à direita, por um muro por
trás do qual se entreviam uns pardieiros estropeaclos, terminados
por um sino. Uma porta de cocheira, guarnecida de um postigo qua­
drado, cravava-se neste muro, que se elevava à medida que ele des­
cia todo esburacado de janelas redondas, e servindo de suporte a
uma pequena construção que ultrapassava uma sineira tão baixa
que a sua agulha nem sequer atingia a altura da casa de dois anda­
res, situada em frente.
Do outro lado, estavam três casinhotas, encostadas umas às
outras, em ladeira; tubos de zinco trepavam, subindo com o cepas,
ramificavam-se com o as hastes de uma vinha oca, ao longo dos
muros; e janelas bocejavam com sono em caixilhos enferrujados.
Distinguiam-se em vagos recantos medonhos casebres; num deles
estava um curral onde dormiam vacas, nos outros dois abria-se
uma cocheira de carruagens e uma chafarica, de modo que por
detrás das suas vidraças apareciam os gargalos capsulados de gar­
rafas de litro.
- Ah! É uma igreja? - disse Durtal, olhando para o pequeno
campanário e para as três ou quatro aberturas que pareciam recor­
tadas no papel de esmeril com que se parecia a argamassa negra e
rugosa do muro. - Onde está a entrada?
Descobriu-a, voltando-se para esse atalho que ia ter à rua de la
Glacière. Um pórtico minúsculo dava acesso à construção.
Ele empurrou a porta, penetrou num grande átrio, uma espé­
cie de alpendre fechado e pintado de amarelo, de tecto achatado,
atravessado por travessas de ferro, caiadas de cinzento, orladas de
filetes azuis e ornadas de bicos de gaze como de um negociante de
vinhos. No fundo, um altar de mármore, seis círios acesos, flores de
papel e ninharias douradas, candelabros cheios de velas e debaixo
do tabernáculo uma pequena custódia que cintilava, reverberando
o fogo das tochas.
Estava imersa numa semi-obscuridade por causa dos vidros das
janelas terem sido riscados com bandas de índigo e de amarelo

58
A CAMINHO

canário; gelava-se aí, o fogão não fora aceso, e a igreja, pavimen­


tada de tijolos de cozinha, não possuía nenhuma esteira ou capa­
cho, nenhum tapete enfim.
Durtal abafou-se o melhor que pôde e sentou-se. Os seus olhos
habituaram-se afinal à obscuridade desta sala; o que avistava diante
de si parecia-lhe estranho; em filas de cadeiras, em frente do coro,
afogadas em ondas de musselina branca estavam postadas formas
humanas. Nenhuma se movia.
De repente, por uma porta do lado, uma religiosa, igualmente
envolta da cabeça aos pés num véu, entrou. Passou por diante do
altar, parou ao meio, caiu por terra, beijou o chão e por um esforço
do corpo, sem se ajudar com os braços, pôs-se de pé; avançou,
muda, pela igreja, roçou levemente por Durtal, que lobrigou por
debaixo da musselina um magnífico vestido de um branco creme,
uma cruz de marfim pendente do pescoço, uma corda nodosa e um
rosário à cinta.
Ela foi até à porta da entrada, e aí subiu por uma pequena
escada para uma tribuna que dominava a igreja.
- Que ordem é esta tão sumptuosamente vestida, instalada na
miserável capela deste bairro? - perguntava a si mesmo.
Pouco a pouco, agora, a sala enchia-se; meninos do coro, ves­
tidos de vermelho com romeiras bordadas de pelos de coelho,
acenderam os lustres, saíram depois; e trouxeram um padre, reves­
tido de pluvial com grandes flores, um padre magro e jovem, que
se sentou e num tom grave cantou a primeira antífona das vésperas,
E subitamente, Durtal voltou-se. Na tribuna, um harmónio sus­
tentava os responsos de inolvidáveis vozes. Não era, pois, uma voz
de mulher, mas um misto de voz de criança, adoçada, mondada,
purificada, e de voz de homem, mais esburgada, mais delicada e
mais ténue, uma voz assexuada, filtrada pelas litanias, coada pelas
orações; passada pelos crivos das orações e das lágrimas.
O padre, sempre sentado, cantou o primeiro versículo do imu­
tável salmo «Dixit Dominus Domino meo».*
E Durtal viu, no ar, na tribuna, longas estátuas brancas, tendo
livros negros nas mãos, cantando lentamente, com os olhos prega­
dos no céu. Uma lâmpada iluminou cie chapa uma destas figuras,
que durante um minuto se inclinou um pouco, e ele entreviu, por
debaixo do véu levantado, um rosto atento e doloroso, muito
pálido.

* Salmo 109: «Palavra do Senhor ao meu Senhor». Imutável, porque é sem­


pre esse o primeiro salmo das Vésperas de Domingo e das festas. [N.R.]

59
J.-K. HUYSMANS

As vésperas alternavam agora as suas estrofes, cantadas, umas


pelas religiosas em cima, as outras pelas educandas em baixo.
A capela estava quase cheia; um colégio de meninas vestidas de
branco enchia um lado; burguesinhas tristemente vestidas, crianças
que brincavam com as suas bonecas ocupavam o outro. Apenas
algumas mulheres do povo de tamancos e nenhum homem.
A atmosfera tornava-se pesadíssima. Positivamente o braseiro
das almas aquecia o gelo desta sala. Não eram umas vésperas opu­
lentas como as que se celebram em Saint-Sulpice, eram vésperas de
pobres, vésperas íntimas, em cantochão de aldeia, seguidas pelos
fiéis com um fervor prodigioso, num recolhimento de silêncio inau­
dito.
Durtal julgou-se transportado para fora de barreiras, para o
fundo de uma aldeia, para um claustro; sentia-se amolecido, a alma
embalada pela monótona amplidão destes cantos, não distinguindo
o fim dos salmos senão pela repetição da doxologia, «Gloria Patri
et Filio» que os separava uns dos outros.
Veio-lhe um arroubo verdadeiro, um surdo desejo de também
suplicar ao Incompreensível; imerso em dilúvios, penetrado até à
medula por este meio, pareceu-lhe que se dissolvia um pouco, que
participava, mesmo de longe, das ternuras reunidas destas almas
límpidas. Procurou uma oração, recordou-se da que São Panúncio
ensinou à cortesã Thais, quando lhe clamou: - Tu não és digna de
chamar Deus, tu só deves pedir assim: qui plasmati me, miserere
mei, «tu que me criaste, tem piedade de mim» - ele balbuciou a
humilde frase, rezou não por amor ou contrição, mas por desgosto
da própria vida, por impotência de se abandonar, por pena de não
poder amar. Depois pensou em recitar o Pater, mas conteve-se pela
ideia de que esta frase era a mais difícil de todas a pronunciar,
quando se pesam na balança. Não se declara aí a Deus que se per­
doam as ofensas do próximo? Ora, quantos e quantos de entre os
que proferem estas palavras perdoam aos outros? Quantos são os
católicos que não mentem, quando afirmam Àquele que sabe tudo
que então estão sem ódio?
O silêncio súbito da sala tirou-o das suas reflexões. Tinham
acabado as vésperas; o harmónio preludiou ainda, e todas as vozes
das monjas se elevaram em baixo, no coro, em cima, na tribuna,
cantando o velho cântico do Natal: «Nasceu o divino Infante».
Ele escutava, comovido pela ingenuidade deste cântico, e de
repente, num minuto, brutalmente, sem o compreender, a postura
das meninas de joelhos na sua frente suscitou-lhe infames lem­
branças.

60
A CAMINHO

Reagiu, desgostoso, quivS repelir o assalto destas vergonhas e


elas persistiram. Uma mulher, cujas perversões o enlouqueciam, vol­
tava de novo ao seu encontro.
Tornou a ver, sob a camisa de rendas e seda, o arfar das suas
carnes; as suas mãos tremeram e febrilmente abriram as abjectas e
as deliciosas corsoletas desta mulher.
De repente, esta alucinação cessou; maquinalmente a sua vista
foi atraída para o padre que olhava para ele, falando baixo a um
servo.
Então perdeu a cabeça, imaginou que este padre tinha adivi­
nhado os seus pensamentos e o expulsava, mas esta ideia era tão
louca que ele sacudiu os ombros, e mais prudentemente disse con­
sigo que sem dúvida não entravam homens neste convento de
mulheres, e que o abade acabava de o perceber e então mandava-
-lhe o bedel para lhe pedir que saísse.
Vinha efectivamente direito a ele; Durtal preparava-se para
pegar no seu chapéu, quando num tom ao mesmo tempo persuasivo
e dócil este empregado lhe disse: - A procissão vai já começar, é cos­
tume que os senhores caminhem atrás do Santíssimo Sacramento, e,
visto que sois o único homem que está aqui, o senhor abade confia
que não recusareis seguir o cortejo que se vai formar.
Aturdido com este pedido, Durtal fez um gesto vago no qual o
servo julgou discernir uma adesão.
Mas não - disse consigo, quando ficou só - , não quero de
modo nenhum tomar parte na cerimonia; em primeiro lugar, não
tenho prática disso e parecerei boçal, em segundo não quero cobrir-
-me de ridículo - preparava-se, pois, para se retirar sem dar nas vis­
tas, mas não teve tempo de executar o seu projecto, o servo trouxe-
-lhe uma tocha acesa e convidou-o a acompanhá-lo. Ele pôs então
o coração à larga, repetindo consigo mesmo: - Como devo parecer
comprometido! - e lá se foi atrás desse indivíduo até ao altar.

Aí parou então; e o servente pediu-lhe para ficar nesse lugar.


Toda a capela estava de pé; o colégio de meninas dividia-se em
duas filas, precedidas por uma senhora levando um pendão. Durtal
avançou para diante da primeira fila das religiosas.
Tendo sempre os véus caídos, diante dos profanos, agora aí, na
própria igreja, diante de Deus, estavam levantados. Durtal teve
ensejo de examinar todas estas irmãs no rápido espaço de um
minuto; mas a sua desilusão foi desde logo completa. Afiguravam-
-se-lhe todas pálidas e graves como a monja que tinha entrevisto na
tribuna, e quase todas eram rosadas, mosqueadas de manchas, e

61
J.-K. HUYSMANS

cruzavam uns nos outros os seus pobres dedos torcidos e reben­


tados pelas frieiras. Tinham uns rostos opados e pareciam todos
estar no com eço ou no fim de uma fluxão. Evidentemente eram
filhas do campo, e as noviças, reconhecíveis pelos seus vestidos
cinzentos, por debaixo do véu branco, ainda eram mais vulgares;
tinham certamente trabalhado nas quintas, e, ao vê-las assim incli­
nadas para o altar, a indigência das suas faces, o horror das suas
mãos azuladas pelo frio, das suas unhas creneladas, com o cozidas,
pelas lixívias, tudo isso desaparecia. Os olhos humildes e castos,
sempre prontos para as lágrimas da adoração, por debaixo dos
longos cílios, transformavam numa piedosa simplicidade a rudeza
dos traços. Imersas na oração, elas nem sequer viam as seus olha­
res curiosos, nem mesmo suspeitavam que estava ali um homem a
espiá-las.
E Durtal invejava a admirável sabedoria destas pobres rapa­
rigas que sozinhas tinham compreendido que era uma demência
o querer viver. E dizia: - A ignorância leva ao mesmo resultado
que a ciência. Entre as Carmelitas, havia mulheres ricas e formo­
sas que viveram no grande mundo, e que o deixaram, convenci­
das para sempre do nada das suas alegrias, e estas religiosas, que
nada disso conheceram tiveram a intuição desta vacuidade, a que
foi preciso anos de experiência às outras para adquiri-la. Por vias
diferentes, chegaram ao mesmo fim. Depois, que lucidez revela
esta entrada numa ordem! Porque, enfim, se não tivessem sido
recolhidas por Cristo, o que seria destas desventuradas? Casadas
com vilões e maltratadas de pancadas; ou antes serviçais nos
albergues, violadas pelos seus patrões, brutalizadas pelos outros
domésticos, condenadas aos tálamos clandestinos, votadas aos
desprezo das encruzilhadas! E sem nada saber, tudo evitaram; per­
maneceram inocentes, longe destes perigos e longe destas imun­
dices, submetidas a uma obediência que não é ignóbil, dispostas
para um gênero de vida que, se elas forem dignas, podem expe­
rimentar as mais poderosas alegrias que a alma humana pode
fruir.
Ficam ainda como que animais de carga, mas agora só do bom
Deus.
Estava, pois, nestas reflexões quando o sacristão lhe fez um
sinal. O padre, descendo do altar, trazia a pequena custódia. A pro­
cissão das meninas começava agora a mover-se diante dele. Durtal
passou por diante da fiada das religiosas que não tomaram parte no
cortejo, e com a tocha na mão seguiu o servo, que levava aberto por
detrás do padre um guarda-sol de seda branca.

62
A CAMINHO

Então, com a sua voz lânguida de acordeão ampliado, o har-


mónio, do alto da tribuna, encheu a igreja, e as monjas, de pé nos
seus lugares, entoaram o velho cântico ritmado, como num com­
passo de marcha, o Adeste fideles, enquanto que em baixo as novi­
ças e as fiéis mediam, depois de cada estrofe, o doce e comovente
estribilho « Venite adoremus».
A procissão desfilou varias vezes ao redor da capela, domi­
nando as cabeças curvadas na fumaracla dos turíbulos, que as meni­
nas da coro brandiam, rodeando o padre, a cada estação.
Está bem, parece-me que não me saí muito mal desta - disse
consigo Durtal, quando chegou ao altar e julgou que o seu papel
estava acabado, mas sem lhe perguntar desta vez a sua vontade, a
servo pediu-lhe que se ajoelhasse no degrau da comunhão, diante
do altar.
Sentia-se agora pouca à vontade, vexado por saber que atrás
de si estava todo o colégio e todo o Convento; demais a mais, não
tinha o hábito desta postura. Pareceu-lhe que lhe enterravam cunhas
nos joelhos e nas pernas, que o submetiam, como na idade Média,
à tortura.
Embaraçado pela vela que escorria e ameaçava crivá-lo de
nódoas, mexia-se frouxamente na sua posição, tentava amortecer o
gume cortante das degraus, colocando por baixo dos joelhos a aba do
sobretudo. Mas ao mover-se não fazia senão agravar o seu mal, as
suas carnes recalcadas inseriam-se entre os ossos e a epiderme pisada
como que ardia. Afinal começou a suar de angústia, receando distrair
o fervor da comunidade com uma queda, e no entanto a cerimonia
eternizava-se! Na tribuna, as religiosas cantavam, mas ele já não as
escutava e deplorava a longa extensão deste ofício.
Enfim chegou o momento da Bênção.
Então, vendo-se ali tão perto de Deus, Durtal esqueceu os seus
sofrimentos e baixou a fronte, vergonhoso de estar assim colocado,
semelhante a um capitão à frente da sua companhia, na primeira fila
deste bando de virgens.
E quando, no meio de um grande silêncio, a campainha tocou
e o padre, voltando-se, fendeu lentamente o ar em forma de cruz e
lançou a bênção com o Santíssimo Sacramento, abatida toda a
capela a seus pés, Durtal ficou com o corpo inclinado, os olhos
fechados, procurando dissimular-se, fazer-se pequeno, e passar des­
percebido, lá em cima, no meio desta multidão piedosa.
O salmo «Laudaíe Dominum omnes gentes»* retinia ainda,

* Salmo 106: «Louvai, ao Senhor, todos os povos». [N.R.]

63
J.-K. HUYSMANS

quando o sacristão lhe veio tirar a vela. Durtal esteve quase a dar
um grito, quando lhe foi preciso pôr-se a pé; os seus joelhos entor­
pecidos rangiam e os seus eixos já não manobravam.
Pôde com muito custo retomar enfim o seu lugar; depois de
deixar escoar-se a multidão, dirigiu-se ao servo, perguntando-lhe o
nome deste convento e a ordem a que pertenciam estas religiosas.
- São Franciscanas Missionárias de Maria - respondeu - , mas
este santuário não é propriedade sua, com o julga; é uma capela
de socorro que depende da paróquia de Saint-Marcel; está apenas
ligada por um corredor à casa que estas irmãs ocupam, ali, por
detrás de nós, na rua do Èbre. Em suma, assistem aos ofícios,
assim com o nós, e sustentam uma escola para as crianças deste
quarteirão.
É enternecedora esta capelinha - disse consigo Durtal, quando
ficou só. - Está verdadeiramente em relação com o lugar que abriga,
com a miserável ribeira dos curtidores que corre para cá da rua da
Glacière, por entre alamedas. Fez-me o efeito de ser para Notre-
-Dame de Paris o que a sua vizinha, a Bièvre, é para o Sena. Ela é
o regato da Igreja, o lodo piedoso, o arrabalde do culto!
E na verdade são indigentes e esquisitas as vozes de sexo inde­
ciso ou fundido destas pobres monjas! E Deus sabe, porém, quanto
eu execro a voz da mulher no lugar santo, porque ela permanece
sempre impura. Parece-me que a mulher traz sempre consigo os
miasmas permanentes de seus incômodos e que faz rodopiar os sal­
mos. Depois ainda, a vaidade, a concupiscência, surdem da voz
mundana e os seus gritos de adoração ao pé do órgão não são mais
do que os gritos de instância carnal, os seus gemidos, ainda mesmo
nos hinos litúrgicos mais melancólicos, não se elevam senão dos
lábios até Deus, porque, no fundo, a mulher não chora senão o
medíocre ideal do prazer terrestre que ela não pode atingir. E como
eu compreendo que a Igreja a tenha repelido dos seus ofícios, e
emprega, para não contaminar a estola musical das suas prosas, a
voz da criança e a do homem, e até mesmo a do eunuco.
E contudo nos conventos de mulheres isto muda muito; é bem
certo que a oração, a comunhão, as abstinências e os votos depu­
ram o corpo e a alma e o odor vocal que daí se evola. Os seus eflú­
vios dão à voz das religiosas, por mais crua e mal cuidada que possa
ser, as suas castas inflexões, as suas singelas carícias de amor puro;
eles reconduzem-na aos sons ingênuos da infância.
Em certas ordens parecem mesmo moldá-la da maior parte dos
seus ramos, a concentrar os filetes de seiva que restam ainda em
algumas hastes; e ele pensava então num mosteiro de Carmelitas

64
A CAMINHO

onde às vezes tinha ido, e recordava-se das suas vozes desfaleci­


das, quase mortas, cuja pouca saúde se tinha refugiado em três
notas, vozes tendo perdido os tons musicais da vida, as cores do ar
livre, não conservando mais, no claustro, senão as dos seus hábitos
que pareciam espelhar sons brancos e escuros, sons castos e
melancólicos.
Ah! Estas Carmelitas! - e tornava a pensar nelas, enquanto que
descia a rua da Glacière; e evocava uma tomada de véu cuja recor­
dação o embalava, todas as vezes que sonhava em conventos. E jul­
gava-se por uma manhã na capelinha da avenida de Saxe, uma
capela de estilo ogival, espanhol, furada de janelas esguias, fecha­
das de vitrais tão carregados que a luz se detinha nas suas cores sem
alumiar.
Ao fundo, elevava-se na sombra o altar-mor, servindo-lhe de
pedestal seis degraus; à sua esquerda, uma grande gradaria de ferro
em forma de ogiva estava velada com um cortinado negro, e do
mesmo lado, mas quase no sopé do altar, uma pequena ogiva tra­
çada numa parede alongava-se em lanceta, esburacada ao meio por
uma abertura, simulando uma espécie de postigo quadrado, uma
moldura sem painel, vazia.
Nessa manhã, esta capela, fria e obscura, rutilava, incendiada
por uma floresta de lumes, e o odor de um incenso não alterado,
como o das outras igrejas, por benjoins e gomas, enchia-a de um
fumo surdo; ela regurgitava de povo. Escondido num canto, Durtal
tinha-se voltado, e, assim como os seus vizinhos, seguira com o
olhar as costas dos turiferários e dos padres que se dirigiam para a
entrada. E a porta tinha-se aberto de repelão e ele olhara, numa
explosão de dia, a visão rubra do Cardeal-Arcebispo de Paris, atra­
vessando a nave, movendo a cabeça, precedida de um nariz aqui-
lino onde cavalgavam umas lunetas, curvando a sua alta estatura,
inclinando-a para um lado, e abençoando os assistentes com uma
longa mão torcida, semelhante a uma pata de caranguejo.
Ele subira com o seu séquito até ao alto e ajoelhara-se num
genuflexório; depois tiraram-lhe o mantelete, vestiram-lhe uma
casula de seda com uma cruz faiscante, tecida de prata, e a missa
começara em seguida. Um pouco antes da comunhão, o véu negro
fora mansamente corrido por detrás da elevada grade, e, num cla­
rão de dia lívido semelhante a uma noite de luar, Durtal tinha entre­
visto uns fantasmas brancos que se esvaiam como sombras e umas
estrelas que borboleteavam no ar, e, encostada à gradaria, uma
forma de mulher, de joelhos, imóvel sobre o solo, tendo também
uma estrela na ponta de um círio. A mulher estava hirta como um

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J.-K. HUYSMANS

mármore, mas a estrela tremeluzia sempre; depois, quando o


momento da comunhão estava próximo, a mulher tinha-se levan­
tado e desaparecera, mas a sua cabeça como decapitada viera
encher o caixilho do postigo aberto na lanceta.
Debruçado para diante, ele tinha divisado, no espaço de um
segundo, uma figura morta, de pálpebras caídas; branca, sem olhos,
do mesmo modo que as marmóreas estátuas antigas. E tudo se tinha
prostrado com o Cardeal, curvado, com o santo cibório na mão, na
abertura.
E isto foi tão rápido que ele perguntou a si mesmo se não o
teria sonhado; a missa, pois, tinha acabado. Ouviam-se ainda, por
trás da grade de ferro, salmodias gemebundas, cantos lentos, arras­
tados, chorados sempre sobre as mesmas notas; e clarões vagabun­
dos, e formas brancas passavam no azul fluído dos incensos. O
Cardeal Richard estava então assentado, com a mitra na cabeça, e
interrogava a postulante, que voltara ao seu lugar, ajoelhada diante
dele, por detrás da grade.
Ele falava-lhe baixinho; não se podia ouvi-lo. Todos os assis­
tentes se inclinaram para ouvirem a noviça pronunciar os seus
votos, mas apenas se percebia um leve murmúrio. Durtal recordava-
-se de que tinha acotovelado a multidão e que tinha alcançado o
coro e que aí através dos varões entrecruzados da grade distinguira
a mulher de branco, estendida de costas numa moldura de flores; e
todo o convento desfilava, curvando-se diante dela, e entoava o
canto dos defuntos, e aspergia-a de água benta como a uma morta.
É admirável! - exclamou, empolgado na rua pela lembrança
desta cena, e dizia consigo: - A vida! A vida destas mulheres! Dormir
sobre uma enxerga de palha, sem travesseiro nem lençóis; jejuar
sete meses no ano, excepto aos domingos e dias de festa; comer,
sempre de pé, legumes e alimentos magros; passar sem lume no
Inverno; salmodiar horas e horas sobre um lajedo glacial; mortificar
o corpo, ser humilde, para, no caso de ter sido delicadamente edu­
cada, aceitar com alegria o encargo de lavar a louça, e se ocupar nos
trabalhos mais baixos; orar, desde manhã, todo o dia até à meia-
-noite, até cair de cansaço, e orar assim até à morte! É preciso que
elas tenham muita piedade de nós para expiarem assim a imbecili­
dade deste mundo que as apoda de histéricas e de loucas, porque
é inapto para compreender as alegrias supliciadas destas almas!
Não nos sentimos muito altivos de nós quando pensamos nas
Carmelitas e mesmo nestas humildes Franciscanas que são todavia
mais vulgares. É verdade que aquelas não pertencem a uma ordem
contemplativa, mas de resto as suas regras são rígidas, a sua existên­

66
A CAMINHO

cia é dura o bastante para que também possam compensar por suas
orações e por suas obras os excessos da cidade que elas protegem.
E ele exaltava-se ao pensar nos mosteiros. - Ah! Ser enterrado
neles, ao abrigo da escumalha das ruas, sem mais saber se os livros
saem dos prelos, e se os jornais se imprimem. Ignorar para sempre
o que se passa, fora da sua cela, entre os homens! - e completar o
benéfico silêncio desta vida murada, nutrindo-se de acções de gra­
ças, desalterando-se de cantochão, saturando-se com as inesgotáveis
delícias das liturgias!
Depois, quem sabe? À força de boa-vontade, de súplicas arden­
tes, conseguir aproximar-se-Lhe, conversar com Ele, senti-lO bem
junto a si, quase contente da sua criatura, talvez! E ele evocava os
júbilos destas abadias onde Jesus vivia. Lembrava-se desse maravi­
lhoso convento de Unterlinden, perto de Colmar, onde no século xm
não era uma ou duas monjas, mas sim o mosteiro todo inteiro que
surgia, arroubado, diante do Cristo, em gritos de alegria; umas des­
sas religiosas elevavam-se da terra, outras ouviam os cantos seráfi­
cos ou segregavam bálsamos de seus corpos esgotados; outras ainda
tornavam-se diáfanas ou nimbavam-se de estrelas; todos os fenô­
menos da vida contemplativa eram visíveis na alta escola de Mística
que foi esse claustro.
Embalado como estava, achou-se diante da sua porta, sem
mesmo se recordar do caminho que tinha tomado, e uma vez den­
tro da sua alcova, teve uma distensão da alma que se lhe estalara
num clarão de chispas. Tinha ímpetos de agradecer, de pedir per­
dão, de chamar não sabia o quê, de buscar não sabia o quê. E de
repente esta necessidade de expandir-se, de sair de si mesmo, tor-
nou-se mais precisa, e ele caiu de joelhos, dizendo à Virgem:
- Tende piedade de mim e ouvi-me: antes queria suportar tudo
do que ficar assim, e continuar esta existência dúbia e sem alvo,
estas etapas vãs! Perdoai, Santa Virgem, ao conspurcado que eu sou,
porque não tenho a coragem necessária para começar as hostilida­
des, para me combater! Ah! Se vós o quisésseis! Bem sei que é
grande a ousadia de vos suplicar, quando não se está resolvido a
virar a sua alma, a esvaziá-la como um balde de lixo, a sacudir o seu
fundo para deixar-lhe escorrer as fezes, para destacar-lhe o tártaro,
mas... mas... sinto-me tão débil, tão pouco seguro de mim, que na
verdade eu hesito!
Oh! Quanto eu queria ir-me, estar fora daqui, a mil léguas de
Paris, não sei onde, num claustro! Meu Deus! É uma loucura o que
digo, porque não permaneceria dois dias num convento e nem
sequer me receberiam aí!

67
J.-K. HUYSMANS

E fez esta reflexão:


- Por uma vez que me julgo menos árido, menos imundo que
de costume, não acho que dizer à Virgem senão insanidades e
ninharias, então quando me seria tão simples solicitar o seu perdão,
implorar-lhe para que tenha piedade da minha vida deserta, para
que me ajude a resistir às intimações dos meus vícios, e a não mais
pagar, assim como o faço, as dívidas dos nervos e o imposto dos
sentidos!
Sim - continuou, levantando-se isso era demasiado. Farei
pela minha parte o pouco que puder; e sem mais tardar, irei a casa
do abade amanhã e explicar-lhe-ei os meus litígios de alma e depois
veremos!

68
V

Experimentou uma verdadeira consolação quando a criada lhe


respondeu: - O senhor abade está em casa - entrou então para um
pequeno salão, esperando que o padre, que ele ouvia estar a falar
com uma pessoa, ficasse totalmente só.
Pôs-se a olhar em redor e concluíra que depois da sua última
visita nada tinha mudado. Ainda estava mobilado com esse divã
de veludo cujo vermelho, outrora de um vivo encarnado, tinha-se
tornado nessa cor-de-rosa desbotada, parecida com doce de fram­
boesa em bebido em pão. Havia, além disso, duas poltronas
Voltaire, colocadas ao lado de um fogão, ornado de um relógio
Império, e vasos de porcelana cheios de areia onde estavam espe­
tadas hastes de bambus. A um canto, encostado à parede, por
baixo de um velho crucifixo de madeira, via-se um genuflexório
onde o lugar dos joelhos estava bem marcado; uma mesa oval,
ao meio; algumas gravuras piedosas ao longo das paredes, e eis
tudo.
Parece que respira a hotel ou a casa de solteirona - disse con­
sigo Durtal. - A vulgaridade dos móveis, os cortinados de damasco
descorado, os tabiques ferrados de um papel de armação,
semeado de ramos de papoilas e flores dos campos, de tintas ine-
xactas, recordava efectivamente os quartos guarnecidos ao mês;
mas certas particularidades, e sobretudo a meticulosa limpeza do
aposento, as almofadas de tapeçaria colocadas no divã, os capa­
chos redondos debaixo das cadeiras, uma hortênsia, semelhante a
uma couve-flor pintada, colocada num vaso, coberto de uma
renda, evocavam por outra parte o interior fútil e glacial de uma
devota.
Só lhe faltava então para completar o quadro uma gaiola de
canários, fotografias em molduras de pelúcia, conchas e almofadi­
nhas de alfinetes.

69
J.-K. HUYSMANS

Durtal estava ainda imerso nestas reflexões quando o abade


apareceu, e, estendendo-lhe a mão, censurou-lhe ternamente o seu
abandono.
Durtal desculpou-se o melhor que pôde, pretextando ocupa­
ções imprevistas e longos dissabores.
- E a nossa Bem-aventurada Lidvina, em que ponto vai?
- Ah! Nem mesmo comecei ainda a sua vida; não estou verda­
deiramente num estado de alma que me permita abordá-la.
O tom desanimado de Durtal surpreendeu o padre.
- Vejamos, que é o que tem? Posso eu ser-lhe útil?
- Não sei, vSenhor abade; tenho alguma vergonha de falar-lhe
em semelhantes misérias - e de chofre ele se expandiu, espalhando,
ao acaso das palavras, os seus queixumes, confessando a incons­
ciência da sua conversão, os seus debates com a carne, o seu res­
peito humano, o seu afastamento das práticas da Igreja, a sua aver­
são a todos os ritos exigidos, a todos os jugos.
O abade escutava-o, imóvel, com o queixo apoiado na mão.
- Já tem mais de quarenta anos - disse o abade, depois que
Durtal se calou já transpôs a idade em que, antes de toda a impul-
são de .idéias, é o rebate da carne que suscita as tentações; agora
está nesse período em que são os pensamentos lúbricos que se
apresentam primeiro à imaginação, antes que os sentidos estreme­
çam. Não se deve, pois, combater o seu corpo adormecido mais do
que a vossa alma que o estimula e perturba. Por outra parte, tem
capitais atrasados de ternuras por colocar; nada de mulheres, nada
de crianças que podem tomá-los, de modo que, repelindo as afei­
ções pelo celibato, acaba por tornar a levá-las para de onde elas
deviam sair; a vossa fome de alma, tenta contentá-la pelas capelas,
e, como está hesitante, como não tem a coragem de se fixar numa
decisão, de romper de uma vez para sempre com os seus vícios,
chega enfim a este estranho compromisso: reservar a sua ternura
para a Igreja e as manifestações dessa ternura para as mulheres. Eis,
pois, se não me engano, o seu balanço exacto. Mas, oh! meu Deus,
não há muito de que se lastimar, porque, veja bem, o essencial é
não amar a mulher apenas corporalmente. Quando o Céu lhe con­
ceder a graça de não ser empolgado pelos sentimentos, com um
pouco de boa vontade tudo se arranjará.
É indulgente este padre - pensou Durtal.
- Sim - continuou o abade - mas não pode permanecer sem­
pre entre duas selas; está próximo o momento em que é preciso
tomar uma e repelir a outra...
E olhando para Durtal, que abaixava a cabeça sem responder:

70
A CAMINHO

- Reza ao menos? Não lhe pergunto se faz as orações da manhã,


porque todos aqueles que acabam por se perder na via divina, depois
de terem vagabundeado anos e anos sem norte, não invocam o
Senhor ao seu despeitar. A alma julga-se mais válida, ao nascer do
dia, considera-se mais sólida, e aproveita-se logo desta passageira
energia para esquecer Deus. Mas já não acontece o mesmo com o
corpo quando está doente. Assim que a noite cai, os afectos aumen­
tam, as dores entorpecidas despertam, a febre que dormitava rea-
nima-se, as imundices ressuscitam, e as feridas sangram de novo, e
então ela pensa no divino Taumaturgo, pensa no Cristo. Reza-lhe à
noite?
- Às vezes... mas custa tanto! À tarde ainda isso é possível, mas,
como muito bem o diz, quando o dia desaparece, os males desen-
cadeiam-se. É toda uma cavalgada de ideias obscenas que me per­
passa pelo cérebro! E ir, então, recolher-se nesses momentos!...
- Se não se sente com força de resistir-lhes, na rua ou em casa,
porque não se refugia nas igrejas?
- Mas elas estão fechadas quando temos mais urgência delas,
o clero deita Jesus mal a noite cai!
- Sei isso; mas se as igrejas pela maior parte estão fechadas, há-
-de haver algumas que fiquem abertas até tarde, por exemplo, Saint-
-Sulpice. Depois, há ainda uma que está aberta de noite e em todo
o tempo, aceitando as orações dos seus visitantes: Notre-Dame-des-
-Victoires; deve conhecê-la.
- Conheço, senhor abade. E por sinal é excessivamente feia,
pretensiosa e estranha, e os seus chantres exibem aí uma margarina
de sons verdadeiramente rançosos! Não freqüento esta igreja, assim
como freqüento Saint-Séverin e Saint-Sulpice para admirar aí a arte
dos antigos «Logeurs du bon Dieu»* ou escutar as simples e familia­
res melodias do cantochão. Notre-Dame-des-Victoires é, sob o
ponto de vista da estética, uma perfeita nulidade, e eu visito-a algu­
mas vezes, porque só ela em Paris possui o irresistível atractivo de
uma piedade segura, porque só ela conserva intacta a alma perdida
dos Tempos, A qualquer hora que aí se vá, vêem-se, imersas num
silêncio absoluto, silhuetas prostradas, orando; ela está cheia
quando se abre, e está ainda cheia quando se fecha; é um vaivém
contínuo de peregrinos, oriundos de todos os quarteirões de Paris,
desembarcados de todos os recônditos da província, e parece que
cada um deles alimenta, com as orações que traz, o imenso braseiro
da Fé, cujas chamas se renovam debaixo das suas arcarias deforma­

* Confraria medieval. [N.R.j

71
J.-K. HUYSMANS

das, assim como esses milhares de círios que se sucedem, ardendo,


desde manhã até noite, diante da Virgem.
Pois bem, eu, que costumo procurar nas igrejas os recantos
mais desertos, os lagares mais sombrios, eu que abomino o bulício,
misturo-me quase voluntariamente ao seu. É que aí cada qual se
isola e se ajuda reciprocamente; não se vêem sequer os corpos
humanos que nos cercam, mas sente-se o anelo das almas que nos
rodeiam. Por mais refractário e humilde que se possa ser acabamos
por nos incendiar ao seu contacto e admiramo-nos de nos achar de
súbito menos vis; parece-me que as orações que, noutra parte,
quando me saem dos lábios, caiem, esgotadas e quase frias, no
chão, se levantam deste lugar, são arrebatadas, apoiadas nas outras,
e aquecem-se, evolam-se, alçam-se, vivem!
Em Saint-Séverin já experimentei esta sensação de uma assis­
tência ignota, manando dos pilares e gotejando das abóbadas; mas
considerando-se bem, esses socorros eram bem mais fracos. Talvez
que, desde a Idade Média, esta igreja gasta, à força de não os reno­
var, os celestes eflúvios de que está carregada, ao passo que em
Notre-Dame este apoio, que brota do lajedo, é continuamente vivi-
ficado pela presença ininterrupta de uma multidão ardente. Numa,
é a pedra impregnada, é a própria igreja que o reconforta; na outra,
é sobretudo o fervor das multidões que a enchem.
E depois, eu tenho esta impressão estranha de que a Virgem,
atraída, retida por tanta fé, faz por se demorar o menos possível nas
outras igrejas, indo aí como que de visita, enquanto que nesta está
instalada, como em sua casa, e reside realmente em Notre-Dame.
O abade sorria.
- Vejo bem que a conhece e a ama, e no entanto esta igreja
não está situada na nossa margem esquerda, além da qual não há
um santuário digno, creio que me disse isto um dia.
- Disse, e isto causa-me admiração, tanto mais que ela está
situada em pleno bairro comercial, a dois passos da Bolsa, cujos gri­
tos ignóbeis ainda pode ouvir!
- E ela mesma já foi uma Bolsa - replicou o abade.
- Como?
- Depois de ter sido baptizada pelos monges e ter servido de
capela aos Agostinhos descalços, sofreu durante a Revolução os
maiores ultrajes; a Bolsa foi instalada dentro de seus muros.
- Não conhecia essa particularidade - exclamou Durtal.
- Mas - continuou o abade - deu-se com ela o mesmo que
com essas Santas que, se dermos crédito aos seus biógrafos, reco­
braram numa vida de orações a virgindade que antes tinham per­

72
A CAMINHO

dido. A catedral de Notre-Dame lavou-se da sua impureza e, posto


que seja relativamente jovem, está hoje saturada de emanações,
injectada de efluências angélicas, penetrada de sais divinos; ela é
para as almas enfermas o que certas estâncias termais são para o
corpo. Fazem-se aí estações, cumprem-se novenas e obtêm-se curas.
Pois bem, voltemos ao nosso assunto; dizia-lhe então para agir
com prudência, indo, nas suas noites más, assistir à Bênção nesta
igreja; ficarei surpreendido se não sair daí depurado e verdadeira­
mente calmo.
Se nada mais há a oferecer-se-me, é bem pouco isso - pensou
Durtal. E, após um silêncio de desalento, continuou.
- Mas, senhor abade, ainda mesmo que freqüentasse esse san­
tuário e seguisse os ofícios das outras igrejas quando as tentações
me assaltassem, ainda mesmo que me confessasse e me aproxi­
masse dos sacramentos, de que me valeria isso? Encontraria à saída
uma mulher cuja vista me atiçaria os sentidos como após as minhas
partidas desanimadas de Saint-Sulpice; o próprio enternecimento
que teria tido na capela perder-me-ia, porque seguiria a mulher.
- Sabe que mais? - e subitamente o padre levantou-se e mediu
a saleta a largos passos. - Não tem o menor direito de falar assim,
porque a virtude do sacramento é formal; o homem que acaba de
comungar não está só. Desde então está armado contra os outros e
defendido contra si mesmo - e cruzando os braços diante de Durtal,
exclamou:
- Perder a sua alma pelo prazer de expelir um pouco de lodo
imundo para fora de si, porque é isto o seu amor humano! Que
demência! E depois o tempo que se lastima, isso não o desgosta?
- Se eu me desgosto... sim, mas depois das baixezas serem
satisfeitas. E se ao menos pudesse alcançar o verdadeiro arrependi­
mento...
- Fique tranqüilo - disse o abade que se sentara de novo - , já
o tem...
E vendo que Durtal sacudia a cabeça.
- Lembre-se do que disse Santa Teresa: «um pesar dos princi­
piantes é não poderem reconhecer se têm um verdadeiro arrepen­
dimento das suas culpas; e eles têm-no portanto, e a prova disso é
a sua resolução tão sincera de bem servir a Deus». Medite nesta
frase, ela pode aplicar-se perfeitamente a si, porque esta repulsão
dos seus pecados, que o fatiga, testemunha os seus desgostos; e
ainda tem o desejo de servir o Senhor, pois que se debate intima­
mente para ir ao encontro d’Ele.
Flouve um instante de silêncio.

73
J.-K. HUYSMANS

- Enfim, senhor abade, o que me aconselha?


- Peço-lhe encarecidamente que reze, em sua casa, na igreja, o
mais que puder, em toda a parte. Não lhe prescrevo remédio reli­
gioso algum, mas convido-o a utilizar de alguns preceitos de higiene
piedosa, e depois veremos.
Durtal permanecia indeciso, descontente como esses doentes o
estão para com os médicos quando para os contentar não lhes recei­
tam senão paliativos.
O padre pôs-se a rir.
- Confesse - disse, olhando-o bem de frente - , confesse que
disse consigo: não vale a pena incomodar-me, porque não estou
mais adiantado que dantes; este bom padre pratica a medicina
expectante; em vez de golpear as minhas crises com medicamentos
enérgicos, importuna-me com motivos frívolos, recomenda-me que
me deite cedo e não apanhe frio...
- Oh! Senhor abade - protestou Durtal.
- Não quero contudo tratá-lo como a uma criança ou falar-lhe
como a uma mulher; ouvi-me então: o modo como se operou a sua
conversão não pode deixar-me a menor dúvida. Houve nela o que
a Mística chama um toque divino; somente, e isto é para notar-se,
Deus serviu-se da intervenção humana, pela própria Mediação de
um padre, para reconduzi-lo a um caminho que há mais de vinte
anos tinha abandonado.
Ora, não podemos razoavelmente supor que o Senhor tenha
obrado ao de leve e queira agora deixar em meio a sua obra.
Completá-la-á, pois, se não lhe opuser obstáculo algum.
Em suma, é na hora actual uma pedra de esperança nas suas
mãos; e o que fará Ele dela? ígnoro-o, mas já que reservou para Si
a conduta da sua alma, deixai-o operar; tenha paciência e Ele se
explicará; tenha confiança e Ele o ajudará. Contente-se apenas em
proferir com o Salmista estas palavras: «Doce me fcicere voluntatem
tuam, quia Deus meus es tu».*
Repito-lhe ainda, eu creio na virtude preventiva, na potência
formal dos sacramentos. Compreendo muito bem o sistema do
Padre Milleriot, que forçava a comungar aquelas pessoas que
receava ver cair depois nos mesmos pecados. Por única penitência
obrigava-as a tornarem a comungar ainda e acabava por depurá-las
com as Santas Espécies, tomadas em altas doses. É uma doutrina ao
mesmo tempo realista e elevada...

* Salmo 142, 10: «Ensinai-me a cumprir a Vossa vontade, porque sois meu
Deus». [N.R.]

74
A CAMINHO

Mas, tranquilize-se - continuou o abade, olhando para Durtal


que parecia constrangido a minha intenção não é experimentar
em si este método; pelo contrário, a minha opinião é que no estado
de ignorância em que estamos das vontades de Deus seria melhor
abster-se dos Sacramentos.
Porque é preciso que o deseje, é preciso que isso venha de si,
ou antes d’Ele; esta sede da Penitência, esta fome da Eucaristia tê-
-la-á num tempo mais ou menos próximo, esteja seguro disso. Pois
bem, quando, não podendo mais, reclamar o perdão e suplicar que
se o deixe aproximar da Santa Mesa, então nós Lhe pediremos que
nos mostre qual a conduta que nos convirá tomar para salvá-lo.
- Mas não há, presumo-o, várias maneiras de confessar e
comungar...
- Evidentemente, também não é isso o que eu quero dizer;
não... mas....
E o padre hesitou, procurou as suas palavras.
- K bem certo - continuou - que a arte foi o principal veículo
de que o Salvador se serviu para o fazer absorver a Fé. Tomou-o
pelo seu lado fraco... ou forte, se preferir. Impregnou-o de obras-
-primas da arte mística; persuadiu-o e converteu-o menos pela via
da razão do que pela via dos sentidos; e por certo que são condi­
ções muito especiais que importa ter em conta.
Por outra parte, não tem uma alma humilde, uma alma simples;
é uma espécie de sensitivo a quem a menor imprudência e o menor
descuido de um confessor fará enroscar-se sobre si mesmo.
Paia que não esteja à mercê cie uma impressão dolorosa, deve
então tomar certas precauções. No estado de fraqueza e de desfale­
ci mento em que está, bastaria, para pô-lo em debandada, bem
pouca coisa, um rosto desagradável, uma palavra infeliz, um meio
antipático, um nada enfim, não é verdade?
- Ah! - suspirou Durtal. - Vejo-me obrigado a responder-lhe
que é assim; mas, senhor abade, parece-me que não haveria tais
desilusões a recear, se, quando chegar o momento que me anuncia,
se dignasse confessar-me.
O padre ficou silencioso.
- Sem dúvida - disse - , se eu o encontrei é porque provavel­
mente devo ser-lhe útil, mas tenho o pressentimento de que o meu
papel se limitará só a designar-lhe o caminho; serei apenas um traço
de união e nada mais: acabará como começou, sem ajuda, sozinho
- o abade ficou pensativo e sonhador por um pouco, depois sacu­
diu a cabeça. - Sim, continuou, deixemos isso, porque não pode­
mos conjecturar os desígnios de Deus; vou portanto resumir-me:

75
J.-K. HUYSMANS

esforce—se por abafar as suas crises carnais na oração; trata-se


menos neste instante de não ser vencido do que de concentrar
todos os seus esforços para o não ser,
E docemente, a fim de exaltar Durtal que ele via abatido, o
padre acrescentou:
- Se sucumbir, não desespere, não se julgue perdido, sem
esperança. Pense bem, antes de tudo, que a obscenidade não é a
mais imperdoável das faltas, e que ela figura no número dos dois
delitos que a criatura humana paga de contado e que são por con­
seguinte expiados, pelo menos em parte, antes da morte. Pense que
a Luxúria e a Cupidez recusam todo o crédito e não esperam; e
aquele que comete indevidamente o acto da carne é quase sempre
punido em vida. Para uns, são os bastardos para educar, mulheres
enfermas, baixas concubinagens, carreiras quebradas, e abominá­
veis enganos por parte daquelas que amam. Por qualquer lado que
se encare a mulher, sofre-se sempre, porque ela é o mais poderoso
engenho de dores que Deus deu ao homem!
E dá-se o mesmo com a paixão do Lucro. Todo o ser que se
deixa invadir por este odioso pecado, repara-o geralmente antes de
morrer. Aí tem, por exemplo, o Panamá. Cozinheiros, porteiros,
pequenos rendeiros que até então viviam tranqüilos e não procura­
vam ganhos desmesurados, ganâncias demasiado ilícitas, precipita­
ram-se como loucos sobre este negócio. Só tinham uma única mira,
ganhar dinheiro; o castigo da sua avidez foi brusco, vós o sabeis!
- Sei ~ disse Durtal sorrindo-se os Lesseps foram os agentes
da Providência quando roubaram as economias dos papalvos que as
tinham adquirido por meio de prováveis ladroeiras!*
- Enfim - continuou o abade - , insisto nesta derradeira reco­
mendação: não desanime, se por acaso se sente soçobrar. Não se
despreze demasiadamente; tenha a coragem precisa para em
seguida entrar numa igreja, porque é pela tibieza que o demônio se
impele. A falsa vergonha, a falsa humildade que ele lhe insinua, são
elas que nutrem, que conservam e solidificam de algum modo a sua
luxúria,
Agora, sem lhe dizer adeus, venha presto ver-me.
Durtal achou-se um pouco aturdido, na rua. - É evidente -
murmurou ele, caminhando a largos passos - que o abade Gévresin
é um hábil relojoeiro da alma, Ele desaparafusou destramente o

* Referência a um célebre escândalo de corrupção política envolvendo a


Companhia do Panamá, dedicada a explorar esse canal, fundada por Ferdinand
de Lesseps em 1881. [N.R.]

76
A CAMINHO

movimento das minhas paixões e fez soar as minhas horas de lassi


dão e enojo; mas enfim todos os seus conselhos se reduzem a este.
faça a devoção no seu próprio suco e espere.
De facto, ele tem razão, porque se eu estivesse em ponto, não
teria ido a sua casa para tagarelar em vez de me confessar. O que me
causa estranheza é que ele não dá mostras de acreditar que é quem
me passará pela barrela; e a quem quer ele então que eu vá? Ao pri­
meiro que topar, que me dobará o seu novelo de lugares comuns,
que me maçará com mãos grosseiras, sem me compreender!
Tudo isso... tudo isso... mas, que horas são? Ele olhou para o
seu relógio: seis horas!, não estou com muito vontade de ir já para
casa, mas o que hei-de fazer até à hora do jantar?
Estava perto de Saint-Sulpice. Dirigiu-se então para aí a fim de
pôr um pouco em ordem as suas ideias; instalou-se na capela da
Virgem, que a essa hora estava quase vazia.
Não sentia o menor desejo de rezar. Quedou-se aí a olhar
para essa grande rotunda de mármore e ouro, para esse cenário de
teatro, onde, só ela iluminada, a Virgem avança ao encontro dos
fiéis, como do fundo de uma decoração de gruta, sobre nuvens de
gesso.
Neste entrementes, duas irmãzinhas dos pobres vieram ajoe­
lhar-se não longe dele, e puseram-se em recolhimento, escondendo
a cabeça entre as mãos.
Ao vê-las assim pôs-se a devanear.
Oh! Quão invejáveis são estas almas que podem abstrair-se
assim na oração - dizia consigo, - O que fazem elas, porque enfim
isso não é fácil quando se pensa nas misérias deste mundo, para
adular a misericórdia tão celebrada de um Deus? É belo crer-se que
Ele existe, estar bem certo de que Ele é bom, mas não o conhece­
mos o suficiente, e ignoramo-lO até; Ele é inacessível e com efeito
Ele não pode ser senão imanente e permanente. Ele é não se sabe
o quê e sabe-se tudo o que não é. Tentai imaginá-lO e imediata­
mente o bom senso soçobra, porque Ele está por cima, por fora e
por dentro de cada um de nós. Ele é três e é um, Ele é cada e é
tudo; Ele é sem com eço e será sem fim; Ele é sobretudo e para sem­
pre incompreensível. Se se tenta figurá-lO, atribuir-lhe um envoltó­
rio humano, chega-se afinal à concepção ingênua das primeiras ida­
des; é costume representá-lo sob os traços de um ancião, de um
velho modelo italiano, de uma espécie de avô Turguenev* de longa

* Escritor russo (1818-1883), célebre em França nesta altura também


devido à sua amizade com Flaubert e Maupassant. [N.R.]

77
J.-K. HUYSMANS

barba, e então não se pode deixar de sorrir, tanto esta pintura de


Deus Pai é pueril!
Em suma, Ele está tanto acima da imaginação, tão superior aos
sentidos que permanece quase no estado vocal nas orações, de
modo que os arroubos da humanidade vão sobretudo ao Filho, que
é o único invocável, porque se fez homem, porque tem para con-
nosco alguma coisa de um irmão mais velho, porque, tendo cho­
rado sob a forma humana, nós pensamos que será mais exorável e
se compadecerá melhor dos nossos males.
Quanto à terceira Pessoa, ela é ainda mais desconcertante que
a primeira. Ela é por excelência o Incognoscível. Como imaginar
este Deus amorfo, esta Hipóstase igual às outras duas que a exalam,
que a expiram de algum modo? Representam-na como uma clari­
dade, como um fluido, como um sopro, e nem mesmo lhe conce­
dem, assim como ao Pai, uma face viril, porque nas duas vezes que
revestiu um corpo, mostrou-se sob as formas de uma pomba e de
línguas de fogo, e estes dois aspectos tão diferentes não ajudam a
sugerir-nos a ideia da nova aparência que poderia tomar!
Decididamente, a Trindade é assustadora, ela é a própria verti­
gem. Ruysbroeck* o Admirável escreveu dela:
«Todos aqueles que quiserem saber o que é Deus e profundá-
-ÍO, saibam que isso lhes é defeso; tornar-se-iam loucos se tal
ousassem».
E assim —continuou, olhando para as duas irmãzinhas que des­
fiavam agora o seu rosário - como têm razão as boas das raparigas
em não procurarem compreender, em se limitarem apenas a rezar
de todo o seu coração à Mãe e ao Filho!
Além disso, em todas as vidas dos Santos, que elas têm podido
ler, têm verificado que era sempre Jesus e Maria quem aparecia a
estes eleitos para os consolar e fortificar.
E de facto, como eu sou imbecil!, implorar ao Filho é o mesmo
que implorar aos outros dois, porque, orando a um d’Eles, ora-se ao
mesmo tempo aos três, porque Eles não perfazem mais que um! E
contudo as Hipóstases são algum tanto especiais, pois que se a
Essência divina é una e simples, ela o é na tríplice distinção das
Pessoas; mas, ainda uma vez, para que serve sondar o Impenetrável?
No entanto - prosseguiu, rememorando esta entrevista que
acabava de ter com este padre - como terminará tudo isto? Se o
abade tem vista aguda já não pertenço mais a mim mesmo; vou,

* Jan van Ruysbroeck, escritor de tratados místicos, do século xiv, em lín­


gua flamenga, de invulgar qualidade poética. [N.R.]

78
A CAMINHO

pois, entrar numa incógnita que me assusta. E se ao menos os rumo­


res dos meus vícios consentissem em se calar! Mas, sinto-os subir
furiosamente por mim acima. Ah! esta Florence - e ele pensava
nessa mulher cujas aberrações o tinham desvairado ela continua
a passear no meu cérebro; ela despe-se por detrás da cortina cor­
rida de meus olhos, e sinto-me invadido por uma indigna vileza
quando ainda penso nisso.
Tentou mais uma vez repeli-la, mas ela ria, estendida, de bra­
ços abertos para ele, e a sua vontade só se apagava ao vê-la.
Ele desprezava-a, execrava-a mesmo, mas a demência dos seus
feitiços tornava-o louco; e deixava-a enojado dela e de si; jurava não
mais voltar aí, e voltava dentro em pouco, com a obsessão de que
em comparação dela todas as outras seriam monótonas. Recordava-
-se melancolicamente de mulheres de uma colheita mais procurada,
bem superior à de Florence, mulheres também amorosas e que­
rendo tudo, mas em comparação desta mulher, cujo «terroir» era
realmente inconfessável, todas as outras eram, ao provar, de «bou-
quet» insulso e aroma amortecido!
Não, quanto mais nisso pensava, mais devia confessar que
nenhuma delas saberia preparar tão deliciosas torpezas, acondi-
mentar tão terríveis pratos.
E ele via-a agora alongar-lhe a sua boca e estender-lhe a mão
para o prender.
Então recuou. - Que infâmia! - exclamou, mas o seu louco
devanear continuou ainda; somente se desviou para uma das irmã-
zinhas cujo meigo perfil via agora.
Então desnudou-a lentamente, aos poucos, deleitando-se nisso,
fechando os olhos, sentindo por baixo do pobre hábito as próprias
formas de Florence.
De súbito estremeceu e voltou à realidade, vendo-se em Saint-
-Sulpice, na capela. Ah! É uma infâmia vir manchar a igreja com
monstruosas visões! Não, mais vale ir embora.
E saiu, desvairado, - Já há algum tempo que me tornei casto,
e é talvez por isso que eu cieliro - disse consigo - , mas se fosse a
casa de Florence exaurir todas as fraudes do meu cérebro e todos
os delitos dos meus nervos, se esvaziasse assim o desejo, se matasse
enfim a obsessão do corpo, saciando-me por completo?
E via-se obrigado a responder a si mesmo que se tornava
idiota, porque sabia, por experiência, que a obscenidade não se
estanca e que a luxúria se esfaima à medida que se alimenta, - Sim,
o abade tem razão, é necessário tornar-me e permanecer casto, Mas
o que hei-de fazer? Rezar? Não posso, porque até mesmo nas igre­

79
J.-K. HIJYSMANS

jas as nudezas me assaltam! As torpezas já me tinham seguido até à


Glacière; aqui, ainda me aparecem e me subjugam mais. Como hei-
-de defender-me? Porque afinal é horrível o estar assim só, de nada
saber, de não ter nenhuma prova, de sentir as orações que se
ensaiam caírem no silêncio, no vácuo, sem um gesto que responda,
sem uma palavra de alento, sem um sinal! Não se sabe verdadeira­
mente se Ele está aí e se nos escuta! E o abade que quer que espere,
de lá do alto, uma indicação, uma ordem! Mas é de baixo que elas
me vêm!

80
VI

Passaram-se meses; Durtal continuou o seu arrastar de ideias


libertinas e de ideias piedosas. Sem força para reagir, via-se afundar
a pouco e pouco, - Tudo isto é muito obscuro - exclamou raivosa­
mente um dia em que, menos apático, se esforçava por apurar as
suas contas. - Então, senhor abade, o que significa isto? Todas as
vezes que as minhas obsessões sensuais se curvam, as minhas
obsessões religiosas debilitam-se.
- Isso quer dizer - respondeu o padre - que o sen adversário
lhe estende a mais sorrateira das suas armadilhas. Ele esfalfa-se por
persuadi-lo de que nada alcançará enquanto não lhe entregar aos
mais repugnantes deboches. Ele faz por convencê-lo de que só a
saciedade e o tédio destes actos o lançará aos pés de Deus; incita-
-o a cometê-los para apressar a sua pretensa libertação; indu-lo ao
pecado sob pretexto de o preservar dele. Tenha então um pouco de
energia, despreze esses sofismas e rejeite-o.
Ele ia ver o abade Gévresin todas as semanas. Gostava
imenso da paciente discrição deste velho padre que o deixava ir
a sua casa, quando estava em humor de confidência, escutava-o
com com placência, não testemunhava a menor surpresa às suas
reduplicações carnais e às suas quedas. Somente o abade repisava
sempre os seus primeiros conselhos, insistia em que Durtal orasse
regularmente e se dirigisse tanto quanto possível todos os dias às
igrejas. Ele mesmo acrescentava: «a hora não é indiferente para o
bom êxito desses exercícios de devoção. Se quer que as igrejas
lhe sejam propícias, levante-se a tempo de assistir, ao despontar
da alva, à hora da missa primeira, a missa dos servos, e não se
descuide de freqüentar os santuários quando a noite com eça a
cair.»
Este padre tinha evidentemente traçado um plano. Durtal não
o penetrava ainda na sua integralidade, mas podia verificar que este

81
J.-K. HUYSMANS

regime de temporização e este alerta de pensamentos, sempre


orientados para Deus por meio das visitas quotidianas às igrejas,
actuavam sobre ele com o tempo, e como que lhe comprimiam a
pouco e pouco a alma. Um facto o provava: ele, que não tinha
podido durante tanto tempo recolher-se, rezava agora pela manhã
ao seu despertar. Mesmo à tarde, em certos dias, sentia-se invadido
pela necessidade insistente de conversar humildemente com. Deus,
por um irresistível desejo de pedir-lhe perdão, e de implorar-lhe o
seu auxílio.
Parecia então que o Senhor lhe feriu a alma com pequenos
toques e que quis atrair a sua atenção e fazer-se lembrar; mas,
quando, enternecido, vexado, Durtal quis descer em si mesmo para
o procurar, ele errava, vagabundeando, não sabia o que dizer, pen­
sava noutra coisa, ao falar-lhe.
E queixava-se destes desvarios, destas distracções ao padre,
que lhe respondia:
- Está no ádito da vida purgativa; ainda não pode fruir a doce
e familiar amizade das orações; mas não se contriste por não
poder ainda fechar a porta dos seus sentidos; vele, esperando;
reze, ainda que mal, se não o pode fazer de outro modo, mas reze
sempre.
Tenha sempre na ideia também que esses alvoroços que o afli­
gem, todos nós os temos conhecido; pode crê-lo; sobretudo, que
nós não caminhamos às cegas, e que a Mística é uma ciência abso­
lutamente exacta. Ela pode anunciar com antecipação a maior parte
dos fenômenos que se produzem numa alma que o Senhor destina
à vida perfeita; ela segue tão nitidamente as operações espirituais
como a fisiologia observa os estados diferentes do corpo.
De séculos em séculos, ela divulgou a marcha da Graça e os
seus efeitos, ora impetuosos, ora lentos; até chegou a precisar as
modificações dos órgãos materiais que se transformam quando a
alma toda inteira se funde em Deus.
São Dionísio o Areopagita, São Boa ventura, Hugo e Ricardo de
São Victor, São Tomás de Aquino, São Bernardo, Ruysbroeck,
Ângela de Foligno, os dois Eckhart, Tauler, Suso, Dionísio o
Cartuxo, Santa Hildegarda, Santa Catarina de Gênova, Santa Catarina
de Sena, Santa Madalena de Pazzi, Santa Gertrudes, e outros ainda
expuseram magistralmente os princípios e as teorias da Mística; ela
enfim encontrou, para resumir as suas excepções e as suas regras,
uma psicóloga admirável, uma Santa que verificou em si mesma as
fases sobrenaturais que descreveu, uma mulher cuja lucidez foi mais
que humana, Santa Teresa de Ávila.

82
A CAMINHO

- Já leu a sua vida e o seu Castelo Interior?*


Durtal fez sinal que sim.
- Entào irá ser de novo ensinado; deve saber que antes de
abordar as plagas da Beatitude, antes de chegar à quinta morada do
castelo interior, a esta oração de união em que a alma está desper­
tada na vista do seu Deus e completamente adormecida a todas as
coisas da terra e a si mesma, ela deve passar pela mais lamentável
aridez, pelos mais dolorosos esforços; console-se então; pense tam­
bém que as asperezas devem ser uma fonte de humildade e não
uma causa de inquietação; faça enfim como o quer Santa Teresa,
carregue a sua cruz aos ombros e não a leve de rastos!
- Na verdade, espanta-me esta magnífica e terrível Santa - sus­
pirou Durtal já li as suas obras, pois bem, quer saber que ela fez-
-me o eíéito de um lírio imaculado, mas de um lírio metálico, de um
lírio forjado de ferro; reconheça, pois, que aqueles que sofrem, pou­
cas consolações têm a esperar dela!
- Sim, no sentido de que ela não se ocupa da criatura fora da
via mística! Ela supõe os campos já arroteados, a alma já liberta das
mais fortes tentações e ao abrigo das crises; o seu ponto de partida
está ainda muito alto e muito afastado para si, porque ela dirige-se,
a religiosas, a mulheres clausuradas, a seres que vivem fora do
mundo e que estão, por conseguinte, já adiantadas nas rotas ascéti­
cas por onde Deus as leva.
Mas salte em espírito por cima do seu lodaçal; deve repelir por
alguns instantes a lembrança das suas imperfeições e das suas
penas, e segui-a. Veja então como no domínio do sobrenatural ela
está bem experimentada! Como, apesar das suas repetições e das
suas longas insistências, explica sabiamente, claramente, o meca­
nismo da alma, evolucionando desde que Deus a toca. Em assuntos
em que as palavras se esboroam, em que as expressões se esmiga-
Iham, ela consegue fazer-se compreender, mostrar, e fazer sentir,
quase fazer ver este inconcebível espectáculo de um Deus escon­
dido numa alma e comprazendo-se aí!
E ela vai mais longe ainda no mistério, vai até ao fim, e alça-se
num derradeiro voo até à entrada do céu, mas então aí desfalece de
adoração, e não podendo exprimir-se mais, ela volteia, descreve cír­
culos semelhante a uma ave louca, paira fora de si, em gritos de
amor!

* Ver Obras C om pletas d e Santa Teresa d e Jesus, Paço de Arcos, Edições


Carmelo, 1994; e M oradas d o Castelo In terior, trad. de Manuel de Lucena,
Lisboa, 1988. [N.R.]

83
J.-K. HUYSMANS

- Sim, senhor abade, reconheço-o; Santa Teresa explorou mais


a fundo que qualquer outra as regiões ignotas da alma; é de algum
modo o seu geógrafo. Ela traçou sobretudo o mapa dos seus pólos,
marcou as latitudes contemplativas, as terras interiores do céu
humano; já outros Santos as tinham percorrido antes dela, mas não
nos tinham deixado uma topografia tão metódica e tão exacta.
Isso não impede que eu lhe prefira místicos que não se anali­
sam assim e não discreteiam menos, mas que fazem, em todo o
tempo, nas suas obras, o que Santa Teresa faz no fim das suas, isto
é, que flamejam da primeira à última página e se consomem, perdi­
dos, aos pés de Cristo; Ruysbroeck é um desses; que braseiro não é
o pequeno volume que Hello traduziu! E para se citar uma mulher,
tomemos Santa Ângela de Foligno, menos no livro das suas Visões,
que queda por vezes inerte, nessa maravilhosa vida que ela ditou ao
frade Armando, seu confessor. Ela também explica, e bem antes de
Santa Teresa, os princípios e os efeitos da Mística, mas se é menos
profunda, menos hábil em fixar as nuances, em compensação, que
efusòes e que ternuras! Que acariciadora felina da alma! Que
Bacante do amor divino, que Ménade* de pureza! Cristo ama-a, con­
versa com ela longamente, e as suas palavras, que ela reteve, exce­
dem toda a literatura, afirmam-se como as mais belas que se têm
escrito. Não é o Cristo furibundo, o Cristo espanhol que começa por
calcar a sua criatura para a amolecer, é o Cristo tão misericordioso
dos Evangelhos, é o Cristo tão doce de São Francisco, e eu gosto
mais do Cristo dos Franciscanos que do dos Carmelitas.
- Que diria então - continuou sorrindo o abade - a respeito de
São João da Cruz? Comparou ainda há pouco Santa Teresa a uma
flor forjada de ferro; ele também o é, mas é a flor-de-lis das tortu­
ras, a flor realenga que outrora os carrascos imprimiam nas carnes
heráldicas dos forçados. Do mesmo modo que o ferro em brasa, ele
é simultaneamente ardente e sombrio. Em certas dobras das suas
páginas, Santa Teresa inclina-se sobre as nossas misérias e lastima-
-nos; enquanto que ele permanece impermeável, enterrado no seu
abismo interno, ocupado sobretudo em descrever as penas da alma
que, depois de ter crucificado todos os seus apetites, passa pela
«Noite Escura»,* isto é pela renúncia de tudo o que vem do sensível
e do criado.

* As Ménades, figuras mitológicas, eram as Bacantes, acólitas de Dioniso.


* O bras Com pletas d o D outor M ístico Sào Jo ã o d a C ruz, Paço de Arcos,
Edições Carmelo, 1986. Há várias traduções literárias da N oite E scura, por ex.,
José Bento (P oesias C om pletas, Lisboa, 1990) e Jorge de Sena CP oesia d e 2 6
Séculos, Coimbra, 1993). [N.R.]

84
A CAMINHO

Ele quer que se apague a imaginação, que se adormente de tal


modo que ela não possa mais formar imagens, que se encarcerem
os sentidos, e que se aniquilem as faculdades. Ele quer que aquele
que deseja ardentemente unir-se a Deus se ponha como que
debaixo de uma campa, numa campânula fleumática, e faça o vácuo
em si mesmo, a fim de que, se assim o desejar, o Peregrino possa aí
descer e acabar Ele mesmo de depurá-lo, arrancando-lhe os restos
dos pecados, extirpando-lhe os derradeiros resíduos dos vícios!
E então os sofrimentos, que a alma suporta, ultrapassam os
limites do possível; ela jaz perdida em plenas trevas, tomba de desâ­
nimo e de fadiga, julga-se para sempre abandonada por Aquele que
implora e que se esconde e não lhe responde; bem feliz ainda
quando a esta agonia não vêm juntar-se os pavores carnais, e este
espírito abominável, que Isaías chama o espírito de Vertigem, e que
não é outra coisa senão a doença do escrúpulo, guindada ao estado
agudo!
São João faz-nos arrepiar quando exclama que esta noite da
alma é amarga e terrível, e que o ser que a sofre é como se fosse
mergulhado vivo nos infernos! Mas quando o velho homem está
expurgado, quando está mondado em todas as faces, a luz brota e
Deus surge enfim. Então a alma lança-se, assim como uma criança,
em seus braços, e a incompreensível fusão opera-se.
Bem o vê, São João trespassa, mais profundamente que os
outros, os recônditos dos ensaios místicos, lam bem trata como
Santa Teresa, como Ruysbroeck, das bodas espirituais, do influxo da
graça e dos seus dons, mas é o primeiro que ousa descrever minu­
ciosamente as fases dolorosas que não se tinham até então assina­
lado senão a tremer.
Depois, se ele é um teólogo admirável, é também um santo
rigoroso e claro, Ele não tem a fraqueza natural da mulher, não se
perde em digressões, não volta continuamente atrás para repisar as
mesmas ideias; caminha sempre a direito para a frente, mas às vezes
vemo-lo, ao cabo do caminho, terrível e sangrento, e com olhos
enxutos!
- Mas - exclamou Durtal - todas as almas que Cristo quer con­
duzir para as vias místicas não passam por estas provações?
- Sim, passam, mais ou menos, quase sempre.
- Confessar-lhe-ei que julgava a vida espiritual menos árida e
menos complexa; imaginava que, levando uma existência casta,
orando o melhor possível e comungando, se chegaria, sem muito
trabalho, não a fruir as alegrias infinitas reservadas aos Santos, mas
enfim a possuir o Senhor, a viver ao menos perto d’Ele, sem custo.

85
J.-K. HUYSMANS

E contentar-me-ia muito bem com este júbilo burguês; o preço


por que sâo pagas adiantaclamente as exultações que São João nos
descreve, desorienta-me...
O abade, que sorria, não respondeu.
- Mas se é assim - continuou Durtal - estamos bem longe do
Catolicismo tal como no-lo ensinam! Este é tão prático, tão benigno,
tão doce em comparação com a Mística!
- Sim, é feito para as almas tíbias, isto é, para quase todas as
almas piedosas que nos cercam; ele vive numa atmosfera mediana,
sem muitos sofrimentos e sem muitas alegrias; só ele é assimilável às
multidões, e os padres têm razão em apresentá-lo assim, porque sem
isto, os fiéis não o compreenderiam ou tomariam a fuga, estarrecidos.
Mas se Deus julga que a religião temperada basta amplamente
para as massas, creia bem que Ele exige os mais árduos esforços da
parte daqueles a quem se digna iniciar nos tão adoráveis mistérios
da sua Pessoa; é necessário e justo que os mortifique antes de fazer-
-Ihes saborear a embriaguez essencial da sua união.
- Em suma, o fim da Mística é tornar visível, sensível, quase
palpável, esse Deus que permanece mudo e escondido para todos?
- E também precipitar-nos no fundo da sua Pessoa, no abismo
silencioso das alegrias! Mas, para se falar propriamente sobre isso,
era preciso olviclar-se o uso secular das expressões maculadas.
Estamos reduzidos, para qualificar este misterioso amor, a procurar
as nossas comparações nos actos humanos, e a infligir ao Senhor a
vergonha das nossas palavras. É-nos preciso recorrer aos termos de
«união», «casamento», «bodas», a vocábulos esquisitos enfim! Mas tam­
bém como enunciar a inexprimível, como designar, na baixeza da
nossa linguagem, a inefável imersão de uma alma em Deus?
- De acordo, murmurou Durtal... mas para voltarmos a Santa
Teresa...
- Também ela - interrompeu o abade - tratou desta «Noite
Escura» que o amedronta; apenas falou a respeito dela em algumas
linhas; qualificou-a de agonia da alma, de tristeza tão amarga que
em vão tentaria pintá-la.
- Sem dúvida, mas eu gosto mais dela do que de São João
da Cruz, porque ela não nos desalenta como este inflexível Santo.
É verdadeiramente impossível tudo o que nos vem do país dos gran­
des Cristos que sangram nos subterrâneos escuros!
- E Santa Teresa de que nação é então?
- Sim, sei muito bem que é espanhola, mas mostra-se-nos tão
complicada, tão estranha, que a sua raça, nela, oblitera-se, parece
menos nítida.

«6
A CAMINHO

Que ela seja uma admirável psicologista é mais que seguro;


mas que singular misto ela nos mostra também de uma mística
ardente e de uma fria mulher de negócios! Porque afinal ela é de
duplo fundo; é contemplativa fora do mundo e é igualmente um
homem de Estado; é o Colbert feminino dos claustros. Em suma,
jamais houve mulher alguma que fosse assim como esta, não só uma
obreira de uma precisão tão perfeita como também uma organiza­
dora tão poderosa. Quando se pensa que apesar de inverosímeis
dificuldades, ela fundou trinta e dois mosteiros, que colocou sob a
obediência de uma regra que é um modelo de sabedoria, de uma
regra que prevê e rectifica os menosprezos mais ignorados do cora­
ção, fica-se confundido ao ouvi-la apodada pelos espíritos fortes de
histérica e de louca!
- Um dos sinais distintivos dos místicos - respondeu sorrindo
o abade - é justamente o equilíbrio absoluto, o integral bom senso.
Estas conversações empolgavam Durtal, depunham nele se­
mentes de reflexões, que desabrochavam quando estava só; incita­
vam-no a confiar nas advertências deste padre, e a seguir os seus
conselhos, e dava-se tão bem com esta sua conduta que essas idas
repetidas às capelas, e essas orações e leituras ocupavam a sua vida
desocupada e não o aborreciam.
E com isso sempre terei ganho tardes pacíficas e noites calmas
- dizia consigo.
Conhecia agora os enternecedores júbilos das tardes piedosas.
Costumava visitar Saint-Sulpice, nessas horas em que, à mortiça
claridade das lâmpadas, os pilares se desdobram e estendem, pelo
chão, longas faixas de noite. As capelas, que ficavam abertas, esta-
vam negras então, e, diante do altar-mor, na nave, um único bou-
qnet de lumes desabrochava para o ar, nas trevas, semelhante a um
tufo luminoso de rosas vermelhas.
Ouvia-se apenas, no silêncio, o ruído surdo de uma porta, o
ranger de uma cadeira, o passo leve e curto de uma mulher, e o
andar acelerado de um homem.
Durtal estava quase isolado na obscura capela que tinha esco­
lhido; e assim punha-se muito longe de tudo, muito longe desta
cidade que pulsava, ali, a dois passos dele. E ajoelhava-se e ficava
quieto; queria falar, mas não sabia o quê; sentia-se arrebatado e
nada de novo daí lhe vinha. Caiu afinal num langor vago, experi­
mentando esta alegria indolente, este bem estar confuso do corpo
que se distende na água carbonatada de um banho.
E pensava então na sorte dessas mulheres esparsas, à sua volta,
aqui e ali, pelas cadeiras. Ah! Os pobres xailezinhos negros, as mise­

87
J.-K. HUYSMANS

ráveis toucas em pregas, as tristes pelerines e as mesquinhas contas


dos rosários que elas na sombra desfiam uma a uma!
Algumas, de luto, gemiam, inconsoladas ainda; outras, abati­
das, dobravam as costas e pendiam para um lado o pescoço; outras
ainda, rezavam, com os ombros a tremer, e a cabeça entre as mãos.
A tarefa do dia estava terminada. Os fatigados da vida vinham
implorar perdão. Por toda a igreja, a desgraça ajoelhada; porque os
ricos, os com saúde, os felizes não pedem nada; por toda a igreja,
mulheres viúvas ou velhas, sem afeição alguma, ou mulheres aban­
donadas ou torturadas na sua vida doméstica, pedindo que a exis­
tência lhes seja mais clemente, que os desvarios dos seus maridos
se acalmem, que os vícios dos seus filhos se emendem, que a saúde
dos seres amados se afirme.
Era uma verdadeira gavela de dores cujo lamentável perfume
incensava a Virgem.
Poucos homens vinham a este lugar escondido das dores; e
ainda m enos os novos, porque estes ainda não sofreram o bas­
tante; somente alguns velhos, alguns enfermos que se arrastavam,
apoiando-se sobre as costas das cadeiras, e um pequeno cor­
cunda, que Durtal via chegar todas as tardes, um desamparado
que não podia ser amado senão por Aquele que não vê as formas
dos corpos.
E uma ardente piedade erguia Durtal à vista destes infortuna-
dos que vinham reclamar ao Céu um pouco desse amor que lhe
recusavam os homens: ele, que não podia pedir para si, acabava por
juntar-se às suas exortações, por pedir por eles!
Tão indiferentes à tarde, as igrejas eram, à noitinha, verdadei­
ramente persuasivas, verdadeiramente ternas, pareciam comover-se
com a noite, condoer-se na sua solidão pelos sofrimentos destes
seres doentes, cujas queixas ouviam.
E pela manhã, à sua missa primeira, a missa dos operários e
dos criados, era não menos tocante; não havia aí, nem beatas, nem
curiosas, mas pobres mulheres que vinham procurar na comunhão
a força para viverem as suas horas de trabalhos penosos, e de exi­
gências servis. Ao deixar a igreja, sabiam que eram a custódia viva
de um Deus, que Aquele que foi sobre esta terra o invariável
Indigente, só se comprazia nas almas abandonadas; sabiam que
eram suas eleitas, não duvidavam que, confiando-lhes sob a forma
do pão, o memorial dos seus sofrimentos, Ele exigia, em troca, que
continuassem dolorosas e humildes. E o que lhe podiam então fazer
os cuidados de todo um dia decorrido na vergonha das mais baixas
e servis ocupações?

88
A CAMINHO

Agora, eu compreendo muito bem porque razão o abade tinha


tanto empenho em que visitasse as igrejas nestas horas matinais ou
tardias - dizia consigo Durtal são, pois, essas as únicas em que as
almas se abrem.
Mas era muito preguiçoso para poder assistir muitas vezes à
missa da alba; contentou-se pois com fazer escala, após o jantar,
pelas capelas. Saía delas, mesmo rezando mal, ou não rezando até,
mas acalmado, em suma. Outras tardes, pelo contrário, sentia-se
cansado de solidão, cansado de silêncio, cansado de trevas, e então
deixava Saint-Sulpice e ia até Notre-Dame-des-Victoires.
Não havia neste santuário, todo cheio de luz, este abatimento,
este desespero de pobres párias que se arrastam até à igreja mais
próxima e aí se prostram na sombra. Os peregrinos traziam a Notre-
-Dame uma confiança mais segura, e esta fé adoçava-lhes as misé­
rias, cujo amargor se dissipava nas explosões de esperanças, nas
balbuciações de adoração que brotam à sua volta. Duas correntes
atravessavam este refúgio, a das pessoas que solicitavam graças e a
daquelas que, tendo-as obtido, se expandiam em agradecimentos, e
em actos de gratidão. Assim, esta igreja tinha uma fisionomia espe­
cial, mais jovial que triste, menos melancólica, mais ardente, em
todo o caso, que a das outras igrejas,
Ela apresentava esta particularidade de ser muito freqüentada
pelos homens; mas abrigava menos hipócritas de olhares em fuga
ou de olhos em alvo, do que gente de todas as categorias a quem
uma falsa piedade não tinha ainda aviltado os traços; apenas se viam
rostos límpidos e faces puras; não se via sobretudo o horrível esgar
do freqüentador dos círculos católicos, e os pavorosos operários
cujo hálito desmente a unção mal alinhavada dos traços.
Nesta igreja, coberta de ex-votos, chapeada, até ao alto das
suas abóbadas, de inscrições de mármore, celebrando a alegria das
preces acolhidas e dos benefícios recebidos, diante deste altar da
Virgem, onde centenas de velas dardejavam no ar azul dos incen-
sos os ferros dourados das suas lanças, a oração em comum efec-
tuava-se, às oito horas, todas as noites, Um padre debitava do púl­
pito o rosário, depois, algumas vezes, as litanias de Maria eram
cantadas numa ária bizarra, numa espécie de manta de retalhos
musical, fabricado com não se sabia o quê, muito ritmado e
mudando continuamente de tom; alternadamente presto e grave,
mostrando, durante um segundo, uma vaga reminiscência das
velhas árias do século xvn, depois, voltando-se bruscamente com o
num cotovelo, numa melodia de órgão bárbaro, numa melodia
moderna, quase licenciosa.

89
J.-K. HUYSMANS

E era mesmo algo cativante este mal feito guisado de sons!


Depois do Kyrie eleison e das invocações do com eço, a Virgem
entrava em cena, como uma bailarina num compasso de dança,
mas, quando desfilavam algumas das suas qualidades, quando se
anunciavam alguns dos seus símbolos, a música tornava-se singu­
larmente respeitosa; ela afrouxava, retardava-se, solene, repetindo
por três vezes, sobre o mesmo motivo, alguns dos seus atributos, o
Refugium Peccatorum entre outros, depois retomava a sua marcha,
começava de novo as suas graças, a saltitar.
Mas quando por acaso não havia sermão, a Bênção dava-se
logo em seguida.
Celebravam-se aí, com restos de cantochão, com um contra­
baixo encatarrado e uma ou duas crianças de vozes esganiçadas, os
cantos litúrgicos: o Inviolata, esta prosa lânguida e gemente, de uma
melodia diáfana e arrastada, tão convalescente e tão débil que pare­
cia não dever ser cantada senão por vozes dos hospícios, depois o
Parce Domine, essa antífona tão suplicante e tão triste, e enfim esse
trecho destacado do Pange lingua, o Tantum ergo, humilde e pon­
derado, admirativo e lento.
Quando o órgão soltava os seus primeiros acordes, quando
esta melodia de cantochão começava, a capela não tinha mais do
que cruzar os braços e calar-se. Assim que estes círios se acendiam
como por meio de fios fulminantes, ligados entre si, os fiéis infla­
mavam-se também, e, levados pelo órgão, entoavam o humilde e o
glorioso cântico. Eles estavam então ajoelhados sobre os degraus,
prostrados sobre o lajedo e quando, após a troca das antífonas e dos
responsos, depois do oremus, o padre subia ao altar, com os ombros
e as mãos envolvidas num pedaço de seda branca, para empunhar
a custódia, então um vento perpassava aos sons agudos e precipi­
tados das campainhas, ceifando as cabeças de um só golpe.
E havia nestes grupos abrasados de almas uma plenitude de
recolhimento, uma repleção de silêncio inaudito, até que as cam­
painhas, retinindo, convidavam ainda a vida humana interrompida a
envolver-se num grande sinal da cruz e a retomar o seu curso,
O Laudate não tinha ainda terminado, quando Durtal saía da
igreja, antes que a multidão a desocupasse.
Na verdade - dizia consigo ao entrar em casa - o fervor destes
fiéis, que não são, como nas outras paróquias, fregueses do bairro,
mas romeiros vindos de toda a parte e de não se sabe de onde, des­
toa da grosseria destes loucos tempos.
Depois escutam-se, pelo menos em Notre-Dame, cantos curio­
sos; e ele pensava de novo nessas estranhas litanias que nunca tinha

90
A CAMINHO

ouvido senão aí; e tinha-as suportado de todos os gostos, nas outras


igrejas! Em Saint-Sulpice, por exemplo, elas recitavam-se no intervalo
de duas árias. Quando a música de capela funcionava, desenrola-
vam-se numa melodia de cantochão, mugida pelo rufar de um violi-
nito, ao qual respondia a fífia pontiaguda das crianças; mas, durante
o mês do Rosário, todos os dias, excepto às quintas-feiras, entregava-
-se a raparigas o cuidado de as desfiar, uma a uma, às noites, e havia
então à volta de um harmónio roufenho um rancho de jovens e
velhas presumidas que, numa música de feira, faziam voltear a
Virgem sobre as suas litanias como se estas fossem cavalos de pau.
Nas outras igrejas, em Saint-Thomas, por exemplo, onde eram
igualmente exibidas por mulheres, as litanias eram polvilhadas de
granizo e perfumadas de bergamota e âmbar. Estavam efectivamente
adaptadas a uma ária de minuete e não desalinhavavam assim a
arquitectura de ópera desta igreja, apresentando uma Virgem que
caminhava como aos saltinhos, pinçando com dois dedos a sua sala,
parecendo inclinar-se em belas mesuras, e recuar em grandes sau­
dações. Evidentemente isto nada tinha que ver com a música reli­
giosa, mas ao menos não era desagradável ao ouvido; teria sido pre­
ciso somente, para que o acordo fosse completo, substituir um cravo
ao órgão.
Mas o que sobretudo era mais interessante, do que estes gar-
ganteios laicos, era o cantochão que se cantava mais ou menos mal,
como em geral, mas enfim cantava-se, quando não havia cerimonia
de gala, em Notre-Dame.
Não o exibiam aí, como em Saint-Sulpice e noutras igrejas,
onde quase sempre vestem o Tantum ergo de estribilhos imbecis,
de melodias de fanfarra militar e de banquete.
A Igreja não permitia tocar no próprio texto de São Tomás de
Aquino, mas deixava que o primeiro mestre da capela que apare­
cesse, suprimisse esse canto medieval que a tinha envolvido desde
o seu nascimento, que a tinha penetrado profundamente, que ade­
ria a cada uma das suas frases, e que fazia corpo e alma com ela.
Era uma monstruosidade; e no entanto era preciso realmente
que os curas tivessem perdido, não o sentimento da arte - pois que
nunca o tiveram - , mas o sentimento mais elementar da liturgia,
para aceitarem semelhantes heresias, para suportarem tais atentados
nas suas igrejas!
Estas recordações exasperavam Durtal; mas ele voltava de novo,
a pouco e pouco, a Notre-Dame-des-Victoires, e acalmava-se afinal.
Esta, ao menos, tinha-a podido examinar bem em todas as suas faces,
e ela não ficava menos misteriosa, nem menos única, em Paris.

91
J.-K. HUYSMANS

Em La Salette, e em Lourdes tinha havido aparições. Que elas


fossem autênticas ou fingidas pouco me importa - dizia consigo -
porque, supondo mesmo que a Virgem não estivesse aí no
momento em que se proclamava a sua vinda, ela para aí foi atraída
certamente e aí habita agora, ligada pelo afluxo das orações, pelas
afluências brotadas de fé, das multidões. Deram-se aí milagres; não
é, pois, de admirar que as massas piedosas se dirijam para lá; mas
aqui, em Notre-Dame-des-Victoires, não houve aparição alguma;
nenhuma Melanie, nenhuma Bernadette viu e descreveu a aparên­
cia luminosa de uma «bela Senhora». Aqui não há piscinas, nem ser­
viços médicos, nem curas públicas, nem cimos de montanhas, nem
grutas; não há nada disso. Em 1856, num belo dia, o cura desta
paróquia, o abade Dufriche Des Genettes afirma que, quando cele­
brava a missa, a Virgem lhe manifestou o desejo de que este san­
tuário Lhe fosse especialmente consagrado, e isto só bastou. Esta
igreja, que era nesse tempo deserta, não se despejou desde então e
milhares de ex-votos atestam as graças que desde essa época a
Madona tem concedido aos seus visitantes!
Sim, mas afinal de contas - concluiu Durtal - todos estes pedin­
tes não são almas bem extraordinárias, porque enfim a maior parte
deles é bem semelhante a mim; eles vão aí por seu próprio inte­
resse, por sua causa e não por causa d’Ela.
E recordou-se da réplica do abade Gévresin, a quem já tinha
feito esta reflexão:
- Avançará singularmente na via da Perfeição se nela for
guiado pela Sua mão.
De súbito, após tantas horas passadas pelas igrejas, deu-se uma
explosão; a carne, apagada sob as cinzas das orações, reacendeu-se,
e o incêndio, irrompendo dos recônditos, tornou-se terrível.
Elorence voltou a encontrar-se com Durtal, em sua casa, nas
igrejas, na rua, por toda a parte; e ele ficou constantemente em vigia
diante dos encantos reaparecidos desta mulher.
O tempo embrulhou-se; os firmamentos putrefaziam-se; um
estio tempestuoso ateava-se com fúria, carreando todos os enerva-
mentos, amortecendo todas as vontades, desencadeando em fulvas
névoas a matilha assolada dos vícios. Durtal empalideceu diante do
horror dos serões longos, diante da abominável melancolia dos dias
que não morrem; às oito horas da noite o sol não estava ainda posto,
e às três horas da madrugada parecia velar ainda; a semana prolon­
gava-se como um dia ininterrupto e a vida caminhava sempre.
Oprimido pela ignomínia dos sóis em raiva e dos céus azuis,
desgostado de se banhar em Nilos de suor, lasso de sentir Niagáras

92
A CAMINHO

escorrer-lhe por debaixo do chapéu, não saiu mais de sua casa; mas
então, na solidão, as imundices invadiram-no.
Não foi mais que a obsessão pelo pensamento, pela imagem,
por tudo, e a frequência tanto mais terrível quanto ela se especiali­
zava, quanto ela não se perdia, quanto ela se concentrava sempre
sobre o mesmo ponto; a figura de Florence, o corpo, a própria
morada dos gozos confessados apagavam-se; já nada mais restava
diante dele do que a obscura região para onde esta criatura transfe­
ria a sede dos seus sentidos.
Durtal resistia; depois, desvairado, tomava a fuga, tentava que-
brantar-se por longas caminhadas, distrair-se em passeios, mas o
ignóbil festim seguia-o até nas suas correrias, instalava-se diante
dele no café, interpunha-se ante os seus olhos e o jornal que que­
ria ler, acompanhava-o à mesa, fixava-se nas nódoas da toalha e nas
frutas. Acabava, após horas e horas de luta, por naufragar, vencido,
em casa desta mulher, e partia daí, acabrunhado, morrendo de des­
gosto e de vergonha, soluçando quase.
E não experimentava refrigério algum nestas fadigas; dava-se
mesmo o contrário; longe de o evitar, a fascinação execrada impu-
nha-se mais violenta ainda e mais tenaz. Então Durtal chegava a pro­
por a si mesmo e a aceitar singulares compromissos. - Se eu fosse
visitar - dizia consigo - uma outra mulher que conheço e a quem
as carícias regulam ainda, talvez conseguisse quebrar os meus ner­
vos, expulsar esta possessão, saciar-me, sem estes enfados e estes
remorsos - e fê-lo, tratando persuadir-se de que seria mais perdoá-
vel, de que pecaria menos, agindo assim.
O resultado mais claro desta tentativa foi tornar a trazer-lhe
pela comparação forçada das lides, a lembrança de Florence, e pro­
clamar-lhe a excelência dos seus vícios.
Continuou então a chafurdar em casa dela, depois teve,
durante alguns dias, uma tal revolta desta escravidão que pôde
enfim sair desse esgoto e tomar pé fora dela.
Então logrou recuperar-se, reunir-se, e como que se vomitou.
Tinha esquecido, durante toda esta crise, o abade Gévresin, a quem
não ousava confessar as suas torpezas; mas, pressagiando por cer­
tos indícios novos ataques, teve medo e foi vê-lo.
Explicou-lhe as suas crises com circunlóquios; e sentia-se tão
desarmado, tão triste, que as lágrimas vinham-lhe aos olhos.
- Então está seguro agora de ter esse arrependimento que me
assegurava não ter experimentado até agora?
- Estou, mas de que me vale? Quando se é tão fraco que apesar
de todos os esforços se está certo de ser derrubado ao primeiro assalto!

93
J.-K. HUYSMANS

- Isso é uma outra questão. Vejo que ao menos se tem defen­


dido e que agora se encontra efectivamente nesse estado de fadiga
que exige uma ajuda.
Tranquilize-se então; vá em paz e peque menos; a maior parte
das suas tentações vai ser-lhe perdoada; pode, se lhe aprouver,
suportar o resto: apenas, preste-me atenção, se sucumbir doravante,
não terá nenhuma desculpa a dar e eu não respondo então que em
lugar de melhorar, a sua situação não se agrave...
E como Durtal, estupefacto, balbuciava: - Então crê...
- Creio - disse o padre - na substituição mística de que já lhe
falei; há-de experimentá-la em si mesmo; para o socorrer vão entrar
santas na liça; elas tomarão o excesso dos assaltos que não puder
vencer; sem mesmo conhecerem o seu nome, os mosteiros de
Carmelitas e de Clarissas vão, por meio de uma carta minha, pedir
por si.
E o facto é que, a partir desse dia, os ataques mais lancinantes
cessaram. Esta calmaria, esta trégua deveu-a à intercessâo das
ordens clausuradas ou à mudança de tempo que se produziu, ao
desmaio do sol que se submergiu sob ondas de chuva? Não o soube,
no entanto uma coisa era certa, e era que as tentações se espaçaram
e pôde enfim sofreá-las.
Esta ideia de conventos, tirando-o por compaixão do lodo que
o liava, levando-o por caridade a uma fraga, exaltou-o. Quis ir à ave­
nida de Saxe orar com as irmãs daquelas que sofriam por ele.
Nenhum desses lumes, nem essa turbamulta, como na manhã
em que tinha assistido a uma tomada de véu, aí se via então; nem
sequer o odor da cera e dos incensos, nem a desfilada de vestidos
de púrpura e pluviais de ouro; era o deserto e a noite.
E deixava-se estar aí, a sós, nesta capela sombria e húmida, sen­
tindo a água que dorme; e sem desfiar as contas dos rosários ou
repetir as orações aprendidas, ele sonhava acordado, procurando ver
um pouco mais claro na sua vida, e tomar conta em si. E enquanto
que se coligia, umas vozes longínquas surgiam por detrás da grade
e aproximavam-se a pouco e pouco, passavam pelo negro tamis do
véu, e caíam esfaceladas ao redor do altar, cuja massa confusa se ele­
vava na sombra.
Estas vozes das Carmelitas ajudavam Durtal a mergulhar-se no
desespero.
Sentado numa cadeira, dizia consigo: - Quando se está, assim
como eu, incapaz de desinteresse quando se Lhe fala, é quase ver­
gonhoso atrever-se a rezar, porque enfim, quando penso n’Ele, é
para pedir um pouco de felicidade. E isto não tem sentido algum.

94
A CAMINHO

No imediato naufrágio da razão humana, querendo explicar o terrí­


vel enigma do porquê da vida, só uma ideia flutua, no meio dos des­
troços dos pensamentos que soçobram, a ideia de uma expiação
que se sente e cuja causa não se compreende, a ideia de que o
único fim consignado à vida é a Dor.
Cada um de nós teria uma conta de sofrimentos físicos e morais
a expiar, e ninguém, aqui, lhe poderia regular o soldo após a morte;
a felicidade não passaria de um empréstimo que é preciso restituir;
os seus próprios simulacros assemelhar-se-iam a adiantamentos de
herança sobre uma futura sucessão de dores.
Quem sabe, neste caso, se os anestésicos que suprimem a dor
corporal não endividam mais aqueles que deles se servem? Quem
sabe se o clorofórmio não é um agente de revolta e se esta covardia
da criatura em sofrer não é uma sedição, quase um atentado contra
as vontades do céu? Se assim é, estes endividados de torturas, estes
alcançados de misérias, estas fianças de penas evitadas devem pro­
duzir terríveis interesses, lá no alto; isto justifica o grito de armas de
Santa Teresa: «Senhor, sempre sofrer ou morrer!», isto explica por que
razão nas suas provações, os Santos rejubilam e suplicam ao Senhor
que não os poupe, porque sabem que é necessário pagar a soma
purificadora dos males para se ficar indemne após a morte.
Depois, sejamos justos, sem a dor a humanidade seria dema­
siado ignóbil, porque só ela pode, depurando-as, exaltar as almas!
Mas tudo isto é bem pouco consolador - continuou. - E que acom­
panhamento para estas tristes meditações como as vozes em luto
destas monjas! Ah! É verdadeiramente horrível.
E acabava por fugir, por encalhar, por dissipar o seu pungir no
mosteiro vizinho situado ao fundo de uma rua sem saída, a rua de
Saxe, numa álea de arrabalde, cheia de retiros à frente de jardins.
Era aí que moravam as pobres Clarissas humilhadas da Ave-
-Maria, uma ordem ainda mais rígida do que a das Carmelitas, e até
mais indigente e mais humilde.
Penetrava-se neste claustro por uma portinha de dois batentes;
subia-se sem encontrar vivalma até ao segundo andar e descobria-
-se então uma capela cujas janelas deixavam ver árvores que balou-
çavam com as chilreadas de pardais loucos.
E era tal qual uma sepultura; mas não era como na aparência,
à primeira vista, um túmulo no fundo de uma cripta negra; era antes
um cemitério com ninhos cantantes, ao sol, pelas ramarias; julgar-
-se-ia a mais de vinte léguas de Paris, em pleno campo.
A decoração desta airosa capela esforçava-se por torná-la som­
bria; parecia-se com a dessas lojas de vinhos cujas divisões simulam

95
J.-K. HUYSMANS

muros de adegas, com quiméricas pedras pintadas com as riscas imi­


tadas de um falso cimento. Apenas a amplidão da sua nave salvava
a puerilidade deste embuste, relevava a vulgaridade da sua ilusão de
óptica.
Ao fundo, elevava-se sobre um estrado encerado um altar flan-
queado, de ambos os lados, por uma grade de ferro velada de
negro. Assim como o prescreve São Francisco, todos os ornamen­
tos, o crucifixo, os candelabros, o tabernáculo eram de madeira; não
havia aí objecto algum de metal, e nenhuma flor; o único luxo desta
capela consistia em vitrais modernos, um que representava São
Francisco de Assis e o outro Santa Clara.
Este santuário parecia a Durtal arejado e encantador, mas não
se demorava aí senão alguns minutos, porque não lhe encontrava
como no Carmelo um isolamento absoluto, uma paz negra; ali, sem­
pre, duas ou três clarissas saltitavam pela capela, olhavam-no ao
arrumar as cadeiras, pareciam espantadas com a sua presença.
Elas constrangiam-no e ele também tinha receio de contrariá-
-las, tanto que se retirava então; mas esta curta paragem bastava
para apagar ou pelo menos para minorar a fúnebre impressão do
convento vizinho.
E Durtal aí voltava de novo, muito sossegado e muito inquieto
ao mesmo tempo; muito sossegado, sob o ponto de vista lúbrico, e
muito inquieto pelo partido que devia tomar.
Ele sentia subir, avolumar-se, cada vez mais, em si, o desejo de
acabar com estes litígios e com estes transes, e empalidecia assim
que pensava que tinha de revolver a sua vida, e de renunciar para
sempre às mulheres.
Mas se tinha ainda hesitações e receios, já não tinha a firme
intenção de resistir; agora aceitava em princípio a ideia de uma
mudança de existência, somente esforçava-se por retardar o dia, de
recuar a hora, tentava ganhar tempo enfim.
Depois, assim como as pessoas que se exasperam na expecta-
ção, desejava em certos dias não mais diferir o inevitável instante e
exclamava: - Que isto termine de vez! Antes tudo do que ficar assim!
E, não sendo este desejo atendido, ele desanimava logo, já não
queria pensar em nada, tinha saudades do tempo passado, deplo­
rava o sentir-se arrebatado numa tal corrente!
E quando se reanimava um pouco, tentava ainda auscultar-se.
- Afinal já não sei onde estou - dizia consigo - , este fluxo e refluxo
de votos diferentes desorienta-me; mas, como é que cheguei até
aqui e que é o que tenho? - o que sentia, desde que a sua carne o
deixava mais lúcido, era tão insensível, tão indefinível, tão contínuo

96
A CAMINHO

que tinha que renunciar a compreendê-lo. Em suma, todas as vezes


que queria descer em si mesmo, um véu de brumas se levantava,
mascarando-lhe a marcha invisível e silenciosa de não sabia o quê.
A única impressão, que levava ao subir de novo, era a de que não
seria bem ele que avançava no desconhecido, e que este incógnito
que o invadia, penetrava-o, e apoderava-se a pouco e pouco dele.
Quando falara ao abade neste estado simultaneamente tíbio e
resignado, implorante e medroso, o padre limitara-se a sorrir.
- Mergulhe na oração e humilhe-se - disse-lhe um dia.
- Mas eu já estou lasso de curvar o corpo, tripudiando-me sem­
pre no mesmo lugar - exclamou Durtal. - Sinto-me muitas vezes
empunhado pelos ombros e conduzido não sei onde; de um ou de
outro modo, já é tempo que isto acabe.
- E claro - e envolvendo-o num olhar, o abade, de pé, disse-
-lhe num tom grave:
- Esta rota para Deus que acha tão obscura e tão lenta, é pelo
contrário tão luminosa e tão rápida que me espanta; somente, como
não se move, não pode tomar conta da velocidade que o arrebata.
Deixe-se ir, que, sem tardar muito, estará como uma fruta
madura, e, sem que haja precisão de sacudir a árvore, destacar-se-á
dela. A questão que resta agora é a de se saber em que receptáculo
deve ser recolhido, quando cair enfim da sua vida.

97
VII

- Mas... mas... - exclamou Durtal - torna-se necessário uma


explicação. Afinal, com os seus subentendidos tranqüilos, o abade
já me aborrece! O receptáculo onde me há-de pôr, diz ele! Creio que
não tem a ideia de fazer de mim um seminarista ou um monge; na
minha idade o seminário já não tem interesse algum, e quanto ao
convento, ele é sedutor sob o ponto de vista da arte, mas também
não tenho as aptidões físicas e ainda menos as predisposições espi­
rituais para me internar para sempre num claustro; deixemo-nos
disso, pois; mas o que quereria ele dizer?
Por outro lado, diz que me há-de emprestar as obras de São
João da Cruz para que eu as leia. Tem então um fim em vista, por­
que não é homem para caminhar às apalpadelas e sabe o que quer
e para onde vai; pensará que estou destinado para a vida perfeita,
e quererá pôr-me de sobreaviso contra as desilusões que na sua opi­
nião os principiantes experimentam? Mas parece-me que o seu faro
se transvia quando chega aí. Tenho horror ao beatério e às mani-
gâncias piedosas, mas não me sinto atraído, posto que os admire,
para os fenômenos da Mística. Não, mas gosto de vê-la nos outros;
desejo vê-la da minha janela, porém recuso-me descer à rua. Não
tenho a pretensão de me tornar um santo; todo o meu desejo é atin­
gir o estado intermediário entre a devoção e a santidade. É um ideal
extremamente humilde, mas na prática é o único para o qual me
sinto com forças.
Depois, vamo-nos lá maçar com estas questões! Se nos enga­
narmos , se obedecermos a falsas impulsões, caminhamos a par da
demência à medida que avançamos. Como saber, a menos que não
haja uma graça toda particular, se vamos bem por esse caminho, ou
se nisto nos dirigimos, imersos na noite, para os abismos? Eis, pois,
os colóquios de Deus com a alma, que tão freqüentes são na vida
mística; mas então como estar seguro de que são perfeitamente verí­

98
A CAMINHO

dicas esta voz interior e estas palavras distintas, que se não ouvem
com os ouvidos corporais e que são apercebidas pela alma de um
modo muito mais claro, muito mais nítido do que se elas lhe che­
gassem pelos condutos dos sentidos? Como assegurar-se de que elas
emanam de Deus e não da nossa imaginação ou do diabo até?
Sei muito bem que Santa Teresa trata extensamente desta maté­
ria nos seus Castelos Interiores e que nos indica os sinais pelos quais
se pode reconhecer a origem destas palavras; mas as suas provas
não me parecem sempre tão fáceis de discernir como ela o crê.
Se estas frases vêm de Deus, diz ela, são sempre acompanha­
das de efeito, e trazem consigo uma autoridade à qual nada resiste;
assim uma alma está na dor e o Senhor dirige-lhe estas palavras:
«não estejas a afligir-te» e imediatamente a borrasca se dissipa e a
alegria renasce. Em segundo lugar, estas palavras deixam a alma
numa indissolúvel paz; enfim, elas gravam-se na memória e as mais
das vezes não se apagam.
No caso contrário, continua ela, se estas palavras provêm da
imaginação ou do demônio, nenhum destes efeitos se produz; mas
uma espécie de mal estar, de agonia, e de dúvida nos tortura; de
mais a mais, estas frases evaporam-se em parte, fatigam a alma que
se esforça debalde por reconstituí-las na sua íntegra.
Apesar destes pontos de reparo, como que se está sobre um
terreno movediço onde nos podemos atolar a cada passo; mas São
João da Cruz intervém por sua vez, e ordena-nos que não nos
movamos. Que fazer então?
Não se deve, diz, aspirar a estas comunicações sobrenaturais e
quedar-se aí, e isto por dois motivos: a princípio, porque há humil­
dade, abnegação perfeita em recusar-se a crer nisso; em seguida,
porque, operando desta sorte, liberta-se do trabalho necessário para
se assegurar se estas visões vocais são verdadeiras ou falsas; dis­
pensa-se assim de um exame que não tem outro proveito para a
alma senão perda de tempo e inquietações.
Bem - mas se estas palavras são realmente pronunciadas por
Deus, rebelamo-nos contra a Sua vontade, permanecendo surdos!
E depois, assim como o afirma Santa Teresa, não está na nossa mão
o não escutá-las, e a alma não pode pensar senão no que ouve,
quando Jesus lhe fala! Além disso, todos os raciocínios sobre esta
questão vacilam, porque não se entra, por sua própria vontade, na
via estreita, como a Igreja lhe chama; é-se levado, projectado,
mesmo contra vontade às vezes, e toda a resistência é impossível;
os fenômenos sucedem-se uns após outros e nada no mundo seria
capaz de reprimi-los, por exemplo Santa Teresa, que não obstante

99
J.-K. HUYSMANS

defender-se por humildade, caía em êxtase ao sopro divino e


alçava-se do solo.
Não, estes estados sobre-humanos amedrontam-me e eu não
tenho podido, por experiência, conhecê-los. Quanto a São João da
Cruz, o abade tinha razão em considerá-lo único, mas, posto que
perfure as camadas mais profundas da alma e chegue onde nunca
o trado humano tenha penetrado, ele empana um pouco a minha
imaginação, porque a sua obra está eriçada de pesadelos que me
interditam; não quero dizer com isto que as suas geenas não sejam
exactas; enfim, algumas das suas afirmações não me convencem.
O que ele chama a «Noite Escura» é incompreensível; os sofrimentos
desta treva ultrapassam todo o possível, exclama ele, em cada
página. Aqui, perco o pé. Imagino muito bem, por tê-las sentido,
dores morais, atrozes, mortes de parentes ou de amigos, amores mal
correspondidos, esperanças frustradas, misérias espirituais de toda a
sorte, mas esse mártir que ele declara superior aos outros, escapa-
-me por completo, porque está fora dos nossos interesses humanos,
fora das nossas afeições; move-se numa esfera inacessível, num
mundo desconhecido e bem longe de nós!
Decididamente tenho receio de que não haja abuso de metá­
foras e gongorismo de homem meridional, neste terrível santo!
De resto, eis ainda um ponto em que o abade me espanta. Ele,
que é tão brando, testemunha uma certa propensão para o pão seco
da Mística: as efusões de Ruysbroeck, de Santa Ângela, e de Santa
Catarina de Gênova comovem-no menos que os raciocínios dos
Santos altercadores e severos; e no entanto, a par destes, recomen­
dou-me a leitura de Maria de Agreda, que não devia ter escolhido,
porque ela não tem nenhuma das qualidades que nas obras de Santa
Teresa e de São Jo ão da Cruz se apreciam.
Ah! Pode lisonjear-se de ter-me infligido uma incomparável
desilusão, ao emprestar-me a sua Cidade Mística\
Pelo renome desta espanhola, esperava que nos mostrasse
sopros proféticos, formidáveis cômputos, extraordinárias visões, e
nada disso nos exibe; é apenas um misto estranho e pomposo, tor­
turante e frio. Depois, a fraseologia do seu livro é intolerável. Todas
estas frases que enxameiam por estes tomos enormes: «minha divina
Princesa», «minha grande Rainha», «minha grande Senhora», quando
se dirige à Virgem, que a trata a seu turno por «minha caríssima», esta
maneira que Cristo tem de a chamar a «minha esposa», a «minha bem
amada», de citá-la continuamente como o «objecto das suas compla­
cência e das suas delícias»; e este modo que ela adopta de chamar
aos Anjos «os cortesãos do grande Rei», enfadam-me e cansam-me.

100
A CAMINHO

Isto rescende a cabeleiras empoadas e a folhos e rendas, a


mesuras e requebros, isto parece passar-se em Versalhes; é uma mís­
tica de Corte em que Cristo pontifica, em trajo de Luís XIV.
Sem contar ainda - continuou - que Maria de Agreda se
expande em bem extravagantes detalhes. Ela fala-nos do leite da
Virgem que não podia corromper-se, das misérias femininas de que
foi isenta; explica o mistério da Concepção por três gotas de sangue
que brotaram do coração de Maria para o seu seio, de onde o
Espírito Santo se serviu delas para formar o Infante; e declara enfim
que São Miguel e São Gabriel exerceram as funções de parteiras e
assistiram, como se estivessem vivos, sob uma forma humana, ao
parto da Virgem!
Devemos confessar que isto é realmente um pouco forte! Sei
muito bem o que responderá o abade, que deve dar-se o devido
desconto a estas extravagâncias e a estes erros, e ler-se a Cidade
Mística, sob o ponto de vista da vida interior da Santa Virgem. - Sim,
mas então o livro de Olier que trata do mesmo assunto parece-me
diversamente curioso, diversamente seguro!
Este padre não estaria a representar um papel? - Durtal per­
guntava-o a si mesmo, vendo a sua tenacidade em não desviar-se
um só passo das mesmas questões. Algumas vezes, para o tactear,
tentava mudar de conversa, mas docemente o abade sorria-se e
levava-a ao ponto onde justamente queria que fosse.
Quando julgou que tinha saturado Durtal de obras místicas,
falou-lhe menos a seu respeito, e pareceu-lhe conveniente não se
mostrar entusiasta senão pelas ordens religiosas, sobretudo pela
ordem de São Bento. Muito habilmente, incitou Durtal a interessar-
-se por este instituto, a interrogá-lo a seu respeito, e, uma vez ins­
talado neste terreno, não saiu mais daí.
Isto começou num dia em que Durtal falava com ele sobre
canto gregoriano.
- Tem muito razão em gostar dele - disse o abade - porque
mesmo fora da liturgia e da arte, esse canto, se dermos crédito a São
Justino, aplaca os atractivos e as concupiscências da carne, affectio-
nes et concupiscentias carnis sedat\ mas deixe-me assegurar-lhe de
que não o conhece senão por ouvir dele falar, actualmente já não
existe o verdadeiro cantochão nas igrejas; o que aí há, como nos
produtos da terapêutica, são falsificações mais ou menos audaciosas
que se nos apresentam.
Nenhum dos cantos respeitados pelos mestres de capela - o
Tantum ergo por exemplo - é exacto. Conserva-se algum tanto fiel
até ao versículo «Praestet fides» e aí descarrila; ele não deixa ver

101
J.-K. HUYSMANS

senão umas nuances, muito perceptíveis no entanto, da melodia gre­


goriana, imposta a esse momento em que o texto confessa a impo­
tência da razão e o auxílio omnipotente da Fé; estas adulterações são
mais sensíveis ainda, se escutar, após o ofício das Completas, o Salve
Regina. Este, abreviam-no mais de metade, enervam-no, descoram-
no, amputam-no dos seus neumas, fazem dele uma sobra de música
ignóbil; se já tem ouvido este canto magnífico nas Trapas, chorará de
desgosto, ao escutá-lo, gritado em Paris, nas igrejas.
Mas mesmo não fora a alteração do texto melódico que se
adquiriu agora, o modo como em geral berram o cantochão é ver­
dadeiramente absurdo! Uma das primeiras condições para o expor
bem, é que as vozes caminhem juntas, que cantem todas ao mesmo
tempo, sílaba por sílaba e nota por nota; é necessário o uníssono,
numa palavra.
Ora, como pode verificá-lo, a melodia gregoriana não é assim
tratada: cada voz faz a sua parte e isola-se; em seguida, a música chã
não admite acompanhamento: deve cantar-se a sós e sem órgão;
quando muito, ela pode tolerar que o instrumento dê a entonação
e acompanhe em surdina, ou mais ainda, se houver necessidade
disso, para manter a linha traçada das vozes; e é assim como a admi­
tem nas igrejas?
- Não, bem o sei - respondeu Durtal. - Quando escuto em Saint-
Sulpice, em Saint-Séverin e em Notre-Dame-des-Victoires, não ignoro
que ela é sofismada, mas há-de confessar que ainda assim é soberba!
Não quero com isto defender o embuste, a adjunção dos floreados, a
falsidade das cesuras musicais, o acompanhamento delituoso, o tom
de conceito profano que lhe infligem em Saint-Sulpice mas que que-
reis que faça? Na falta do original, tenho que contentar-me com uma
cópia mais ou menos vil e, repito-o, mesmo executada deste modo,
esta mística é ainda tão admirável que me encanta!
- Mas - disse tranquilamente o abade - nada o obriga a escu­
tar falso cantochão, quando pode ouvir o verdadeiro; porque
mesmo em Paris há uma capela onde ele está intacto e é servido
segundo as regras de que já falei.
- Oh! Onde?
- Nas Beneditinas do Santíssimo Sacramento, na rua Monsieur.
- E todos podem entrar nesse convento e assistir aos ofícios?
- Podem; durante a semana cantam-se as Vésperas, às três
horas, todos os dias, e a missa cantada celebra-se ao domingo, pelas
nove horas.
Oh! Se tivesse conhecido esta capela mais cedo - exclamou
Durtal, a primeira vez que daí saía.

102
A CAMINHO

O facto é que ela reunia todas as condições que podia desejar;


situada numa ma solitária, era de uma intimidade penetrante; o
arquitecto, que a construíra, não tinha nada inovado e nada tentado;
edificara-a no estilo gótico, sem lhe ajuntar nenhuma fantasia de sua
invenção.
Assemelhava-se a uma cruz, mas um dos braços parecia enco­
lhido por falta de lugar, ao passo que o outro se alongava por uma
sala, separada do coro por uma grade de ferro, por cima da qual
uma custódia era adorada por dois anjos, cujas asas de uma cor lilás
caíam sobre um dorso cor-de-rosa. Exceptuando estas duas estátuas,
de uma execução verdadeiramente criminosa, o restante estava
algum tanto imerso na sombra e não feria demasiado a vista.
A capela era sombria, e, sempre, às horas do ofício, uma jovem
sacristã, esguia e pálida, um pouco arqueada, entrava qual uma
sombra, e todas as vezes que passava por diante do altar caía com
um joelho em terra, e inclinava a cabeça.
Ela era estranha, mal parecia um ser humano, e deslizava pelas
lajes, sem ruído, de fronte baixa, com o bando descido até às
sobrancelhas, e como que voava semelhante a um grande morcego,
quando, voltando-nos as costas, alçava os braços e agitava as suas
largas mangas negras para acender as velas. Durtal tinha um dia
entrevisto, perto do coro, os seus traços doentios e atraentes, por
debaixo do véu, as suas pálpebras esfumadas, os seus olhos de um
azul esbatido, e adivinhado também um corpo aguçado pelas ora­
ções, sob o seu vestido negro, apertado por um cinto de couro, e
ornado de uma pequena custódia de metal dourado.
A grade da clausura, situada à esquerda do altar, era ampla,
muito iluminada por detrás, de sorte que, mesmo com as cortinas
corridas, podia facilmente entrever-se todo o capítulo, abancado
pelos assentos movediços de carvalho, coroados, lá ao fundo, por
uma cadeira mais alta onde se sentava a abadessa. Uma tocha acesa
estava erecta no meio da sala e, dias e noites, uma religiosa rezava
diante dela, com a corda ao pescoço, para reparar os insultos que,
sob a forma Eucarística, Jesus sofre.
Na primeira vez que fora visitar esta capela, Durtal tinha-se
para aí dirigido, ao domingo, um pouco antes da hora da missa, e
pôde assistir assim à entrada das Beneditinas, por detrás da grade
de ferro. Elas avançavam duas a duas, voltavam-se para o altar e
saudavam-no, depois olhavam-se entre si, inclinavam-se uma diante
da outra; e esta desfilada de mulheres, todas de negro, onde nada
mais brilhava senão a alvura do bando e da gola e a mácula dou­
rada da pequena custódia colocada sobre o peito, parecia não aca­

103
J.-K. HUYSMANS

bar, aparecendo depois então as noviças por sua vez, reconhecíveis


pelo véu branco que lhes cobria a cabeça.
E quando um velho padre, acompanhado de um sacristão,
começava a missa, docemente, ao fundo do capítulo, um pequeno
órgão dava a entonação às vozes.
Durtal pôde enfim admirar-se porque não tinha ainda ouvido
uma só e única voz, feita de uma trintena talvez, de um diapasão
tão estranho, uma voz supra-terrestre, que se consumia sobre si
mesma, no ar, e contorcia-se, arrulhando.
E isto não se parecia nada com o lamento gelado e tenaz das
Carmelitas, e não se assemelham sequer ao timbre assexuado, à voz
de criança, amolgada, arredondada das Franciscanas; era uma outra
coisa.
Na Glacière, com efeito, estas vozes cruas, posto que suaviza­
das e ondeadas pelas orações, participavam um pouco da inflexão
roçagante, quase comum, do povo, de onde tinham saído; elas eram
bem depuradas, mas nem por isso ficavam menos humanas. Aqui,
era como uma ternura seráfica de sons; esta voz sem origem defi­
nida, longamente passada pelo tamis divino, pacientemente mode­
lada para o canto litúrgico, desenrolava-se abrasando-se, flamejava
em tufos virginais de sons brancos, apagava-se, desfolhava-se em
queixumes pálidos, longínquos, verdadeiramente angélicos, ao fim
de certos cânticos.
Assim interpretada, a missa acentuava singularmente o sentido
destas prosas.
De pé, por detrás da gradaria, o mosteiro respondia ao padre.
Durtal tinha então ouvido, após um Kyrie eleison dolente e
surdo, áspero, quase trágico, o grito decidido, tão amoroso e tão
grave do Gloria in excelsis do verdadeiro cantochão; tinha escutado
o Credo, lento e nu, solene e pensativo, e poderia então afirmar que
estes cantos diferiam absolutamente dos que se entoavam por toda
a parte, nas igrejas. Saint-Séverin e Saint-Sulpice pareciam-lhe pro­
fanos; em lugar destes frouxos ardores, destes eriçados e destas
volutas, destes ângulos de melodias limadas, destas terminações
todas modernas, destes acompanhamentos incoerentes redigidos
para o órgão... encontrava-se em face de um canto da magreza afi­
lada e nervosa de um Primitivo; via a rigidez ascética das suas
linhas, a ressonância do seu colorido, o brilho do seu metal burilado
segundo a arte bárbara e fascinante das jóias góticas; ouvia, sob o
vestido plissado dos sons, palpitar a alma simples, o amor ingênuo
das idades, e observava enfim esta nuance curiosa entre as
Beneditinas: acabavam sempre os gritos de adoração, os arrulhos de

104
A CAMINHO

ternura, em um murmúrio tímido, muito ténue, muito curto, como


recuando por humildade, com o apagando-se por modéstia, como
pedindo perdão a Deus por ousar amá-lO.
- Ah! teve muita razão em me enviar lá - disse Durtal ao abade
quando o viu.
- Não tinha onde escolher - respondeu o padre porque não
se respeita o cantochão senão nas abadias submetidas à regra
Beneditina. Esta grande ordem de São Bento restaurou-o. Dom
Potier fez por ele o que Dom Guéranger fez pela liturgia.*
De resto, além da autenticidade do texto vocal e do modo de
traduzi-lo, existem ainda duas condições essenciais, que não se
encontram senão nos claustros, para restituir a vida especial destas
melodias, e é, em primeiro lugar, ter Fé, e em seguida, conhecer o
sentido das palavras que se cantam.
- Mas - interrompeu Durtal - , não presumo que as Beneditinas
saibam bem o latim,
- Perdão, entre as monjas de São Bento, e entre as freiras clau­
suradas das outras ordens há um certo número delas que estudam
bastante esta língua para podem compreender o breviário e os sal­
mos, É uma séria vantagem que têm sobre as músicas de capela que
não são compostas na maior parte senão por artistas sem instrução
e sem piedade, por simples obreiros da voz.
Agora, sem querer diminuir o seu entusiasmo pela probidade
musical destas religiosas, devo dizer-lhe que para bem compreender
em toda a sua altitude, em toda a sua amplidão, este magnífico
canto, era preciso ouvi-lo não joeirado por bocas dessexuadas de
virgens, mas saído sem atavios, nu e cru, dos lábios de homens.
Infelizmente, se existem em Paris, nas ruas Monsieur e Tournefort,
duas comunidades de Beneditinas, não se encontra em compensa­
ção aí um convento de Beneditinos.,.
- E, na rua Monsieur, seguem a regra integral de São Bento?
- Seguem, mas além dos votos habituais de pobreza, de casti­
dade, de estabilidade na clausura e de obediência, elas pronunciam
ainda os da reparação e da adoração do Santíssimo Sacramento, tal
como os formulou Santa Mechtilde.*

* Joseph Potier (1835-1923), beneditino do convento de Solesmes, escre­


veu M élodies grégorien n es (1880), por sugestão do seu abade, Dom Guéranger
(1805-1875), que restaurou a ordem de São Bento em França, e o canto grego­
riano. [N.R.]
* Madre Mechtilde do Santíssimo Sacramento, ou Catherine de Bar (1694-
-1698). Neste passo, Huysmans atribui-lhe, erradamente, a canonização. [N.R.]

105
J.-K. HUYSMANS

São também elas as que suportam a existência mais austera que


existe entre as monjas. Quase nunca comem carne; levantam-se às
duas horas da manhã para cantar o ofício de Ma tinas e de Laudes,
e, dias e noites, estios e Invernos, revezam-se diante do círio da
reparação e do altar. Não resta a menor dúvida - continuou o abade
após um silêncio - , a mulher é mais corajosa e mais forte que o
homem; nenhum ascetério masculino poderia suportar uma tal vida,
no ar debilitante de Paris sobretudo, sem se definhar.
- O que ainda mais me espanta - disse Durtal - é quando
penso na qualidade de obediência que se deve exigir delas. Como
é que uma criatura dotada de vontade pode aniquilar-se a tal ponto?
- Oh! - disse o abade. - A obediência é a mesma em todas as
grandes ordens; ela é absoluta e sem reticências; a fórmula foi exce­
lentemente traduzida por Santo Agostinho. Escute esta frase de que
me recordo ter lido num comentário da sua regra:
«Deve entrar-se nos sentimentos de um animal de carga e dei-
xar-se conduzir como um cavalo ou uma mula que não tem enten­
dimento, ou antes, a fim de que a obediência seja ainda mais per­
feita, porque estes animais reagem às esporas, é preciso ser, nas
mãos dos superiores, como que um cajado ou um tronco de árvore
que não tem nem vida, nem movimento, nem acção, nem vontade,
nem juízo». É isto claro?
- E é sobretudo assombroso! Admito muito bem - continuou
Durtal —que em troca de tanta abnegação, as religiosas sejam pode­
rosamente ajudadas lá do alto, mas não há momentos de fraqueza,
acesos de desespero, instantes em que têm saudades da existência
natural ao ar livre, em que choram esta vida de mortas que a si pre­
pararam; não haverá dias, enfim, em que os sentidos despertados
gritem?
- Sem dúvida; na vida em clausura, a idade dos vinte e nove
anos é, para a maior parte, terrível de passar; porque é então que a
crise das paixões surge feroz; se a mulher dobra este cabo - e quase
sempre o dobra - ela está salva.
Mas a sedição carnal não é ainda, propriamente falando, o
assalto mais doloroso que elas suportam. O verdadeiro suplício que
sofrem, nestas horas de turvação, é a saudade ardente, louca, desta
maternidade que ignoram; as entranhas abandonadas da mulher
revoltam-se e, por mais repleta que esteja de Deus, o seu coração
estala. O Menino Jesus, que tanto amaram, aparece-lhes então tão
inacessível e tão longe delas! Depois a própria vista dele mal as con­
solaria, porque almejariam tê-lo em seus braços, enfaixá-lo, embalá-
-lo, dar-lhe o seio, e fazer, numa palavra, o papel de mães.

106
A CAMINHO

Outras monjas não sofrem ataque algum preciso, nenhum assé­


dio que se conheça; somente, sem causa definida, enlanguescem,
morrem de súbito, como uma tocha que se sopra. É a acedia* dos
claustros que as extingue.
- Mas não sabe, porventura, senhor abade, que estas particula­
ridades são bem pouco animadoras...
O padre sacudiu os ombros. - É o medíocre reverso de um
anverso sublime - disse as recompensas que são concedidas,
mesmo sobre esta terra, às almas conventuais são muito superiores!
- Enfim, não suponho que, quando uma religiosa cai ferida na
sua carne, se a abandone. O que faz então a madre abadessa?
- Opera segundo o temperamento corporal e conforme a com ­
pleição da alma da doente. Note ainda que ela pôde segui-la
durante os anos da provação e que forçosamente tomou um ascen­
dente sobre ela; deve, pois, nestes momentos, vigiar de muito perto
a sua filha, esforçar-se por desviar o curso das suas ideias, alque-
brando-a por meio de penosos trabalhos e ocupando-lhe o espírito;
não a deve deixar nunca só, mas sim diminuir-lhe as suas orações,
restringir as suas horas de ofício, suprimir-lhe os jejuns, nutri-la
melhor, se o julgar necessário. Em outros casos, pelo contrário,
pode recorrer a mais freqüentes comunhões, praticar a «mimiiion »*
ou a sangria, fazer-lhe ingerir alimentos misturados com sementes
frias; mas sobretudo deve rezar, assim como toda a comunidade,
por ela.
Uma velha abadessa de Beneditinas, que conheci em Santo
Audemaro e que era uma incomparável directora de almas, limitava
sobretudo então a duração das confissões. Aos menores sintomas
que via despontar, apenas concedia dois minutos, de relógio na
mão, à penitente, e quando este tempo se esgotava, tirava-a do con­
fessionário e mandava-a para o meio das suas companheiras.
- E por que razão fazia isso?
- Porque nos claustros, mesmo para as almas saudáveis, a con­
fissão é o amolecimento mais perigoso; é, de algum modo, como
um banho muito prolongado e muito quente. Aí, as monjas vertem
e desenrolam inutilmente o coração, pesam sobre os seus males,
exasperam-nos com a sua complacência; elas saem daí mais debili­

* Desgosto, indiferença, tristeza, tibieza, preguiça espiritual, que assalta os


monges na sua solidão, no que respeita ao culto e à comunicação com Deus.
[N.R.]
* Termo francês antigo para «sangria», sobretudo referindo-se a monges.
[N.R.]

107
J.-K. HUYSMANS

tadas, mais doentes que dantes. Dois minutos são suficientes para
urna religiosa enunciar os seus pecadilhos!
Depois... temos que reconhecer que o confessor é um perigo
para o mosteiro, não porque eu suspeite da sua honestidade, não
é isso o que quero dizer, mas, com o é geralmente escolhido entre
os nomeados pelo prelado, pode dar-se o caso de que seja um
homem que saiba pouco disso, e que, ignorando o manejo de tais
almas, acabe por desnorteá-las, consolando-as. Além de que, se os
ataques demoníacos, muito freqüentes no claustro, se produzem, o
desgraçado fica de boca aberta, aconselha a torto e a direito, em ba­
raça a energia da abadessa, que é muito mais forte que ele nestas
matérias.
- Creio, pois - disse Durtal, procurando as suas palavras que
são inexactas as histórias no gênero das que Diderot conta no seu
tolo livro A Religiosa?
- A menos que a comunidade não seja corrompida por uma
superiora votada ao Satanismo, o que, graças a Deus, é raro, os dis­
parates narrados por esse escritor são falsos, e há, além disso, uma
boa razão para que assim seja, e é que existe um pecado que é o
antídoto daquele, o pecado do zelo,
- O quê?
- O pecado do zelo, que faz denunciar a sua vizinha, que satis­
faz os ciúmes, que cria a espionagem para contentar os seus ódios;
é aí que está o verdadeiro pecado do claustro. Pois bem, asseguro-
-Ihe que se duas irmãs se encontrassem numa má acção, seriam ime­
diatamente denunciadas,
- Mas julgava, senhor abade, que a denúncia não era permitida
pela maior parte das regras de ordens.
- Sim, mas talvez se chegasse a abusar um pouco dela, sobre­
tudo nos conventos de mulheres, porque é de supor que se os
claustros contêm puras místicas, verdadeiras santas, têm também
religiosas menos avançadas nas vias da Perfeição e que ainda con­
servam alguns defeitos...
- E já que estamos nesse capítulo dos detalhes íntimos, atrever-
-me-ia a perguntar se a higiene não é algum tanto desprezada por
estas mulheres?
- Ignoro-o; sei todavia que nas abadias de Beneditinas que
conheço, as monjas tinham toda a liberdade para procederem como
lhes aprouvesse; em certas constituições de Augustinianas, o caso é
bem previsto; obrigam-nas a lavar o corpo, pelo menos todos os
meses. Em compensação, entre as Carmelitas, a limpeza é exigida.
Santa Teresa odiava a sujidade e gostava da roupa branca; as suas

108
A CAMINHO

filhas têm mesmo, segundo penso, o direito a um frasquinho de


água de Colônia nas suas celas. Como vê, isso depende das ordens
e provavelmente também, quando as regras não fazem expressa
mente menção disso, das ideias que a superiora professa a esse res­
peito. Esta questão não deve ser somente encarada sob o ponto de
vista mundano; porque a pouca higiene corporal é para certas almas
um sofrimento, uma mortificação a mais que elas impõem a si. Veja
Bento Labre!*
- Aquele que apanhava os parasitas que o deixavam, colo-
cando-os piedosamente na sua manga! Prefiro mortificações de
outro gênero.
- E há-as ainda mais duras, acredite, e duvido que estas lhe
convenham. Quererá porventura imitar Suso, que para castigar os
seus sentidos, arrastou, durante dezoito anos, sobre os seus ombros
nus, uma enorme cruz, cravada de pregos, cujas pontas lhe furavam
as carnes? Além disso, envolvia as mãos em manoplas também eri-
çadas de pregos, com receio de ser tentado a curar as suas chagas.
Santa Rosa de Lima não se tratava melhor; cingia o corpo com uma
cadeia tão apertada que lhe entrava afinal pela pele dentro, desa­
parecendo sob a bainha sangrenta das carnes; trazia também um
cilício de crinas guarnecido de alfinetes e deitava-se por cima de
fragmentos de vidros; mas todas estas provas não são nada em com­
paração das que infligiu a si mesma uma capuchinha, a venerável
Madre Passidea de Sena.
Esta fustigava-se com varas de zimbro e de azevinho, depois
banhava as suas feridas com vinagre e polvilhava-as de sal; no
Inverno, dormia sobre a neve; no estio, sobre tufos de ortigas;
punha grãos de chumbo no calçado, ajoelhava-se sobre carclos e
espinhos. Em Janeiro, rompia o gelo de um tonel e mergulhava-se
dentro, ou antes quase que se asfixiava, fazendo-se pendurar, com
a cabeça para baixo, no cano de uma chaminé, na qual se acendia
palha húmida; pois bem - disse o abade, rindo-se - , creio que se
tem de escolher, sem dúvida gostará mais das mortificações que a si
impunha Bento Labre.
- Gostaria muito mais de nada disso suportar - respondeu
Durtal.
Houve um instante de silêncio.
Durtal tornou a pensar nas Beneditinas. - Mas - continuou -
porque fazem inserir na Semaine Religieuse, depois da menção das

* Benoít Labre (1748-1783), penitente célebre, mas de quem a falta de


higiene era também notória. [N.RJ

109
J.-K. HUYSMANS

Beneditinas do Santíssimo Sacramento, esta nota: «Mosteiro de São


Luís do Templo.»
- Porque - replicou o abade - o seu primeiro convento foi fun­
dado sobre as próprias ruínas da prisão do Templo, que lhe foram
concedidas por beneficência régia, quando Luís XVIII voltou para
França.
A sua fundadora e superiora foi Luísa Adelaide de Bourbon
Condé, uma desventurada e nômada princesa cuja vida quase toda
decorreu no exílio. Expulsa da França pela Revolução e pelo
Império, foragida em quase todos os países da Europa, ela errou
pelos mosteiros, procurando abrigo, ora nas Anunciadas de Turim e
nas Capuchinhas do Piemonte, ora nas Trapistinas da Suíça e nas
irmãs da Visitação de Viena, ora ainda nas Beneditinas da Lituânia
e da Polônia. Tinha ido parar às Beneditinas do condado de
Norfolk, quando pôde enfim entrar em França.
Era uma mulher singularmente aguerrida na ciência monástica
e muito experimentada na direcção de almas.
Quis que na sua abadia todas as irmãs se oferecessem ao
céu, em reparação dos crimes cometidos, e que aceitassem as
mais penosas privações para resgatarem aqueles que poderiam
com eter-se; instalou aí a Adoração perpétua e introduziu igual­
mente em toda a sua pureza o cantochão, com exclusão de qual­
quer outro.
E como o ou vistes, ele pôde conservar-se intacto; é verdade
que por ordem dela as suas religiosas receberam lições de Dom
Schmidt, um dos monges mais doutos nesta matéria.
Enfim, depois da morte da princesa, que teve lugar em 1824,
segundo creio, reconheceu-se que o seu cadáver exalava o odor de
santidade e, posto que não tenha ainda sido canonizada, a sua
intercessão é invocada pelas suas filhas em certos casos. É assim,
por exemplo, que as Beneditinas da rua Monsieur se lhe dirigem
quando perdem um objecto qualquer, e a experiência demonstra
que a sua prece não é inútil, porque, quase logo depois esse
objecto se encontra.
Mas - continuou o abade - já que gosta tanto deste mosteiro,
vá aí, sobretudo quando ele brilha.
E o padre levantou-se e pegou numa Semaine Religieuse que
estava sobre a mesa.
Folheou-a. - Aqui tem - disse, e leu: - «Domingo, às três horas,
vésperas cantadas; cerimonia de tomada de hábito, presidida pelo
Reverendíssimo Padre Dom Estêvão, abade da Grande Trapa, e
Bênção».

110
A CAMINHO

- O caso é que está aqui uma cerimônia que me interessa!


- Provavelmente também irei.
- Então poderemos juntar-nos na capela.
- Perfeitamente.
- As tomadas de hábito já não têm hoje a graça que tinham no
século x v iii , em certos institutos de Beneditinas, entre outros na aba­
dia de Bourbourg, na Flandres - continuou o abade, sorrindo, após
um silêncio.
E como Durtal o interrogasse com o olhar:
- Sim, não havia tristeza, ou antes, era de uma tristeza bem
especial, como pode fazer ideia. Na véspera do dia em que a pos­
tulante devia tomar o hábito, era apresentada à abadessa de
Bourbourg pelo governador da cidade. Oferecia-se-lhe pão e vinho,
e ela provava-o mesmo na igreja. No dia seguinte, dirigia-se, vestida
de hábitos magníficos, a um baile onde se achava toda a comuni­
dade das religiosas e aí ela dançava, depois pedia a seus pais que a
abençoassem e era conduzida, ao som dos violinos, até à capela,
onde a abadessa tomava posse dela. Tinha visto pela última vez,
neste baile, as alegrias do mundo, porque era em seguida encerrada
num claustro, para o resto dos seus dias.
- Isso é de uma alegria macabra - disse Durtal - , devia haver
outrora usos monacais e congregações extravagantes - continuou.
- Sem dúvida, mas isto perde-se na noite dos tempos. Vem-me
à memória, no entanto, que no século xv existia sob a obediência
de Santo Agostinho uma ordem estranha, que se chamava a ordem
das filhas de São Maglório e habitava na rua de São Dinis em Paris.
As condições de admissão eram ao avesso das das outras prisões.
A postulante devia jurar sobre os Santos Evangelhos que tinha per­
dido a sua virgindade, e não se importavam muito com o seu jura­
mento; examinavam-na, e se ela era casta, declaravam-na indigna de
ser recebida. Asseguravam-se também de que não se tivesse desflo-
rado de propósito para poder entrar no convento, mas de que se
tinha entregado com todo o furor à luxúria, antes de vir solicitar o
abrigo do claustro.
Era, em suma, uma multidão de raparigas arrependidas, e a
regra que as sujeitava era feroz. Eram flageladas, lançadas ao cár­
cere, submetidas aos jejuns mais duros; de ordinário, praticava-se a
«culpa» três vezes por semana; levantavam-se à meia noite; eram
vigiadas sem descanso e acompanhadas mesmo aos sítios mais
secretos; as mortificações eram incessantes e a clausura absoluta.
Não tenho necessidade de acrescentar que esta congregação morreu
de todo.

111
J.-K. HUYSMANS

- E que não renascerá jamais - exclamou Durtal. - Enfim,


senhor abade, domingo, na rua Monsieur, não é assim?
E, à afirmação do padre, Durtal partiu, ruminando, a propósito
das ordens religiosas, ideias estranhas. Seria preciso - dizia consigo
- fundar uma abadia, onde se pudesse trabalhar numa boa biblio­
teca, à vontade; aí ajuntar-nos-íamos uns poucos, com uma alimen­
tação possível, tabaco à vontade, e com a permissão de se dar uma
volta pelos cais, de longe a longe. E pôs-se a rir; mas isto então não
seria um convento! Seria, pelo menos, um convento de
Dominicanos, com jantares na cidade e o flirt da pregação!

112
VIII

Dirigindo-se no domingo, logo pela manhã, para a rua


Monsieur, Durtal remoía ainda uns restos de reflexões sobre os mos­
teiros. - Não há que dizer - pensava - , de entre a imundice acu­
mulada dos tempos só eles ficaram limpos, e não só estão verda­
deiramente em relações com o céu, mas também servem de intér­
pretes à terra para lhe falarem. Sim, mas ainda é preciso entender-
-se e especificar que se trata aqui somente das ordens em clausura
e que ficaram tanto quanto possível pobres...
E, tornando a pensar nas comunidades de mulheres, murmu­
rou, apertando o passo: - Eis ainda um facto surpreendente que
prova uma vez mais o inigualável génio de que é dotada a Igreja;
ela chegou a fazer viver, lado a lado, sem que se assassinassem,
enxames de mulheres que obedecem sem resistirem à vontade de
uma outra mulher; e isto é inaudito!
Enfim, eis-me aqui - e Durtal, que sabia estar atrasado, preci­
pitou-se para a cerca das Beneditinas, subiu quatro a quatro os
degraus da escada externa da igreja e empurrou a porta. Ficou hesi­
tante sobre o limiar, deslumbrado pelo braseiro desta capela em
fogo. Por todos os lados viam-se lâmpadas acesas, e por cima das
cabeças o altar flamejava no seu bosque incendiado de círios, no
fundo do qual se destacava, como sobre o ouro de um iconostase,
o rosto purpureado de um bispo todo de branco.
Durtal deslizou por entre a multidão, acotovelou por onde pas­
sava e em seguida avistou o abade Gévresin, que lhe fazia sinais;
alcançou-o por fim, instalou-se logo numa cadeira que o padre lhe
tinha reservado e pôs-se a examinar o abade da Grande Trapa, cer­
cado de padres com casula, e de meninos de coro, vestidos, uns de
vermelho e outros de azul, e seguido por um trapista de crânio
rapado, cercado de uma coroa de cabelos, tendo um báculo de pau,
em cuja croça estava esculpido um pequeno monge.

113
Vestido de branco, de longas mangas com borla de ouro no
capuz, a cruz abacial pendente sobre o peito, a cabeça coberta com
uma mitra merovíngia de forma baixa, Dom Estêvão, com as suas
largas espáduas, a sua barba de um grisalho incipiente, e a alegria
da sua tez, fez-lhe a princípio o efeito de um velho borgonhês, tis-
nado pelo sol nos trabalhos das vinhas; de mais a mais, pareceu-lhe
ser um bom homem, pouco à vontade sob a mitra, intimidado por
todas estas honras.
Um perfume acre, que queimava o olfacto assim como um
pimento queima a boca, o perfume da mirra, flutuava no ar. Houve
um movimento na multidão. Por detrás da grade, cujas cortinas
negras foram tiradas, todo o convento, de pé, entoou o hino de
Santo Ambrósio, o Iesu corona Virginum, enquanto que os sinos da
abadia dançavam nos campanários; no curto corredor que vai do
átrio ao coro, e bordado por uma ala inclinada de mulheres, um cru-
cífero e homens com tochas acesas entraram, depois atrás deles, a
noviça, em traje de noiva, apareceu.
Era morena e delicada, muito pequena, e avançava confusa,
com os olhos baixos, no meio de sua mãe e irmã. Ao primeiro
relance, Durtal julgou-a insignificante, de uma beleza trivial; e ins­
tintivamente procurou o seu par, vexado nos seus hábitos, por esta
ausência de homem num casamento.
Reagindo contra a sua emoção, a postulante passou além da
nave, penetrou no coro, ajoelhou-se à esquerda, num genuflexório,
diante de um grande tocheiro, acompanhada ainda de mãe e irmã,
que lhe serviam de paraninfos.
Dom Estêvão saudou o altar, subiu os degraus e sentou-se
numa poltrona de veludo vermelho, colocada no degrau mais ele­
vado.
Então, um dos padres veio buscar a donzela que se ajoelhou,
sozinha, diante do monge.
Dom Estêvão guardava a imobilidade de um Buda e dele
tinha a postura; depois levantou um dedo e, meigamente, disse à
noviça:
- Que peclis?
Ela falou-lhe tão baixo que apenas se ouviu, com custo:
- Meu pai, sentindo-me impelida por um ardente desejo de me
sacrificar a Deus, na qualidade de vítima em união com Nosso
Senhor Jesus Cristo imolado sobre os nossos altares, e de gastar a
minha vida na Adoração perpétua do seu divino Sacramento, sob a
observância da regra do nosso glorioso Padre São Bento, peço-vos
humildemente a graça do santo hábito.

114
A CAMINHO

- Dou-vo-lo de muito boa vontade, se vos julgais poder confor­


mar a vossa vida à de uma vítima votada ao Santíssimo Sacramento.
E ela respondeu num tom mais firme:
- Eu o espero, apoiada pelas infinitas bondades do meu
Salvador Jesus Cristo.
- Deus vos dê a perseverança, minha filha - disse o prelado;
este levantou-se, voltou-se para o altar, ajoelhou-se com a cabeça
descoberta e começou o cântico do Veni creator que continuaram,
por detrás da grade de ferro, todas as vozes das monjas.
Depois colocou a mitra e pôs-se a orar, enquanto que o canto
dos salmos surgia por debaixo das abóbadas. A noviça, a quem
durante esse tempo tinham reconduzido ao seu lugar, sobre o genu-
flexório, levantou-se, fez vénia ao altar, e veio ajoelhar-se entre os
seus dois paraninfos, aos pés do abade da Trapa, que se tinha sen­
tado de novo.
E as suas duas companheiras arrancaram-lhe o véu de noiva,
tiraram-lhe a coroa de flores de laranjeira, desataram as tranças dos
cabelos, enquanto que um padre estendia uma toalha sobre os joe­
lhos do prelado e o diácono lhe apresentava uma longa tesoura
numa salva.
Então diante dos gestos deste monge a preparar-se, como um
algoz, para tonsurar a condenada, cuja hora de expiação estava pró­
xima, a terrível beleza da inocência assimilando-se ao crime, substi­
tuindo-se às conseqüências de faltas que ignorava, que mesmo não
podia compreender, apareceu a este público vindo por curiosidade
à capela; e, consternado pela aparente negação desta justiça mais
que humana, ele tremeu quando o bispo apertou com as mãos a
cabeleira, juntou-a na fronte, e puxou-a para si.
Foi como um relâmpago de aço numa chuva negra.
Ouviu-se no silêncio de morte da igreja o grito das tesouras,
penalizando-se neste velo que fugia por debaixo das suas lágrimas,
depois tudo se calou. Dom Estêvão abriu a mão e sobre os joelhos
caiu-lhe esta chuva em longos fios negros,
Houve um suspiro de alívio quando os padres e os paraninfos
levaram a noiva, estranha no seu vestido roçagante, com a cabeça
em desalinho e a nuca desnuda.
E pouco depois o cortejo voltou de novo. Desta vez já não era
uma noiva toda de branco, mas sim uma religiosa vestida de negro.
Ela inclinou-se diante do trapista e pôs-se de joelhos no meio
da sua mãe e irmã.
Então, enquanto que o abade pedia ao Senhor que abençoasse
a sua serva, o mestre de cerimonias e o diácono tomaram de cima

115
J.-K. HUYSMANS

de uma credência, perto do altar, uma corbelha onde, por debaixo


das pétalas de rosas desfolhadas, estava dobrado um cinto de couro,
símbolo do termo desta luxúria e com que os Padres da Igreja cin-
giam os rins, um escapulário que alegoriza a vida crucificada do
mundo, um véu que significa a solidão da vida escondida em Deus;
e o prelado enunciava o sentido destas imagens à noviça, tirava o
círio aceso do tocheiro colocado diante dela e lho estendia, divul­
gando numa palavra a acepção deste emblema: accipe, charissima
soror, lumen Christi...
Depois Dom Estêvão recebeu o hissope que lhe apresentava,
inclinando-se, um padre, e, assim como na absolvição solene dos
defuntos, desenhou uma cruz de água benta sobre a jovem; em
seguida, sentou-se e, docemente, tranquilamente, sem fazer um
gesto sequer, começou a falar.
Dirigia-se só à postulante e glorificava diante dela a augusta e
a humilde vida dos claustros. - Não olheis para trás - disse - e nada
lamenteis, porque, pela minha voz, Jesus vos repete a promessa que
fez outrora à Madalena, «a tua parte é a melhor e ela não te será
tirada»,* Digo-vos também, minha filha, que subtraída doravante da
eterna puerilidade dos labores vãos, ireis cumprir, sobre esta terra,
uma obra útil; praticareis a caridade no que ela tem de mais elevado
e sublime, expiareis pelos outros, pedireis pelos que nada pedem,
ajudareis na medida das vossas forças a compensar o ódio que o
mundo tem ao Salvador.
Sofrei e sereis feliz; amai o vosso Esposo e vereis quanto Ele é
brando para os seus eleitos! Crede-me, o Seu amor é de tal modo
singular que não esperará que sejais purificada pela morte para vos
recompensar das vossas miseráveis mortificações, das vossas mes­
quinhas penas. Ele vos acumulará, antes do tempo, com as suas gra­
ças e então lhe suplicareis que vos deixe morrer, tanto o excesso
destas alegrias ultrapassará as vossas forças!
E, pouco a pouco, o velho monge inflamava-se, voltava de
novo às palavras de Cristo a Madalena, mostrava que, a propósito
dela, Jesus tinha promulgado a excelência das ordens contemplati­
vas sobre as outras ordens, e sucintamente dava conselhos,
apoiava-se sobre a necessidade da humildade e da pobreza que
são, como o enuncia Santa Clara, as duas grandes muralhas da vida
claustral. Enfim, abençoou a noviça, que lhe veio beijar a mão, e

* É tradicional associar em uma só as três personagens bíblicas: Maria, irmà


de Marta e Lázaro, a que esta passagem se refere (Lc, 10, 42); Maria Madalena;
e a pecadora de Betânia que ungiu os pés de Jesus. ÍN.R.j

116
A CAMINHO

logo que ela voltou ao seu lugar, ele pediu ao Senhor, com os olhos
pregados no céu, que aceitasse esta virgem que se oferecia, como
hóstia, pelos pecados do mundo, e depois entoou de pé o Te~
-Deum.
Todos se levantaram e, precedido pela cruz e os círios, o cor­
tejo saiu da igreja, e aglomerou-se no adro.
Então Durtal pôde julgar-se transportado para longe de Paris,
lançado de repente para o fundo das idades.
O átrio, rodeado de construções, estava fechado, em frente do
portal, por uma alta muralha no meio da qual se abria uma porta de
dois batentes; de cada lado, seis pinheiros esguios varriam o ar; e
ouviam-se cantos por detrás do muro.
A postulante, à frente, sozinha, perto da porta fechada, tinha,
de cabeça baixa, a vela na mão. O abade da Trapa, apoiado ao
báculo, estava imóvel a alguns passos dela,
Durtal examinava todos os rostos; a jovem, tão banal no seu
traje de noiva, tornava-se encantadora, agora o corpo afilava-se
numa graça tímida, as linhas, muito loquazes sob o vestido mun­
dano, tinham-se calado; sob o sudário religioso, os contornos não
eram mais que um simples esboço; havia aí como que um recuo
de anos, como que um retrocesso às formas adivinhadas da
infância.
Aproximou-se para a observar melhor; tentou sondar esta
figura, mas na mortalha gelada da sua touca, ela permanecia muda,
parecia ausente da vida, com os olhos fechados, já não vivia senão
para o sorriso dos lábios felizes.
E, visto de perto, o monge, maciço e rubicundo, estava tam­
bém mudado; a ossatura permanecia robusta e a tez ardia; mas os
olhos de um azul de água, saída do calcário, da água sem reflexos
e sem rugas, os olhos incrivelmente puros, mudavam a vulgar
expressão dos traços, tiravam-lhe esse porte aldeão que ele tinha
ao longe.
E mais uma vez me convenço - pensou Durtal - que esta gente
é toda alma e as suas fisionomias são modeladas por ela. Há clari-
dades santas nestas pupilas, nestas bocas, nestas únicas aberturas,
até cujos bordos a alma avança, olha para fora do corpo, e mostra-
-se quase.
Subitamente, por detrás dos muros, os cantos cessaram; a
jovem deu um passo, bateu com os dedos dobrados na porta, e com
uma voz sumida, cantou:

117
J.-K. HUYSMANS

Aperite mihi portas Justitiae: Ingressa in eas, confitebor


Domino.

E a porta abriu-se. Um outro grande átrio, pavimentado de sei­


xos do rio apareceu, limitado ao fundo por um casario; e toda a
comunidade, formando uma espécie de semicírculo, com livros
negros na mão, clamou:

Haec porta Domini: Justi intrabunt in eam.

A noviça deu mais um passo ainda até ao limiar e continuou


com a sua voz longínqua:

Ingrediar in locum tabernaculi admirabilis usque ad domum


Dei.

E o coro impassível das monjas respondeu:

Haec est domus Domini, firmiter aedificata: Bene fundata est


supra firmam petram!

Durtal contemplava com afã estas figuras que só podiam ser


vistas por espaço de alguns minutos e por ocasião de uma cerimo­
nia igual. Era uma fileira de cadáveres, de pé, envoltos em sudários
negros. Todas estavam exangues, tinham as faces brancas, as pál­
pebras lilás e as bocas lívidas; todas tinham vozes esgotadas e como
que passadas pela fieira das privações e das preces, e a maior parte
delas arqueava-se para diante, mesmo as mais novas. Oh! Que aus­
tera fadiga a destes pobres corpos! - gritou sufocadamente Durtal.
Mas teve de interromper as suas reflexões; a noiva, agora ajoe­
lhada sobre a soleira, voltava-se para Dom Estevão e cantava baixinho:

Haec requies mea in saeculum saeculi:* Hic habitabo quoniam


elegi eam.
O monge depôs a mitra e o báculo e disse:

Confirma boc, Deus, quod operatus es in nobis.

* Salmo 117, 19-20: «Abri-me as portas da justiça, entrarei para dar graças
ao Senhor. / Esta é a poita do Senhor: os justos entrarão por ela.»; Salmo 41, 5:
«Passarei ao lugar do tabernáculo admirável, até à casa do Senhor»; e Antífona
(cf. Ecli 26, 24): «Esta é a casa do Senhor, firmemente edificada: Está bem fun­
dada sobre uma pedra firme.» [N.R.]

118
A CAMINHO

E a postulante murmurou:

*
A templo sancto tuo quod est in Jerusalem.

Então, antes de se cobrir com a mitra e tomar de novo o


báculo, o prelado pediu ao Deus omnipotente que derramasse o
orvalho da sua bênção sobre a sua serva, depois, designando a rapa­
riga a uma monja que se destacou do grupo das irmãs e avançou
até ao limiar, ele disse-lhe:
«Entregamos nas vossas mãos, Senhora, esta nova noiva do
Senhor, conservai-a na santa resolução que acaba de testemunhar
solenemente, pedindo para se sacrificar a Deus, em qualidade de
vítima, e consumir a sua vida em honra de Nosso Senhor Jesus
Cristo, imolado sobre os nossos altares. Conduzi-a pela voz dos divi­
nos mandamentos, na prática dos conselhos do Santo Evangelho e
nas observâncias da regra monástica. Preparai-a para a união eterna,
para a qual o celeste Esposo a convida e, neste feliz crescimento do
rebanho confiado aos vossos cuidados, esgotai um novo motivo de
solicitude maternal. Que a paz do Senhor esteja convosco!»
E acabou-se tudo. As religiosas, uma a uma, se voltaram e
desapareceram por detrás do muro, enquanto que a donzela as
seguia como um pobre cão, que acompanha, de cabeça caída, a dis­
tancia, um novo dono:
A porta rodou nos gonzos.
Durtal estava aturdido, olhava para a silhueta do bispo de
branco, para as costas dos padres que subiram para celebrarem a
Bênção na igreja; e atrás deles vinham, chorando, com o rosto
escondido no lenço, a mãe e a irmã da noviça.
- E então? - disse o abade, metendo-lhe o braço por debaixo
do seu.
- E então, esta cena é com certeza o mais comovente álibi da
morte que se possa ver; esta viva que se enterra a si própria no mais
terrível dos túmulos, porque neste a carne sofre ainda, é simples­
mente admirável!
Recordo-me bem do que me contou sobre o rigor desta obser­
vância, e sinto calafrios ao pensar na Adoração perpétua, nessas noi­
tes de Inverno em que uma criança como esta é despertada no m eio
do seu sono primeiro, e atirada para as trevas de uma capela onde

* Salmo 131, 14: «Este será para sempre o lugar do meu repouso, aqui habi­
tarei, porque o escolhi»; e Salmo 67, 29-30: «Confirmai, ó Deus, aquilo que fizeste
em nós. / No teu templo em Jerusálem». [N.R.]

119
J.-K. HUYSMANS

deve, sem desfalecer de fraqueza e de medo, rezar sozinha, durante


horas geladas, de joelhos sobre o lajedo.
Que é o que se passa nesta conversa com o ignoto, neste coló-
quio com a sombra? Conseguirá ela desprender-se, evadir-se da terra,
alcançar no limiar da Eternidade o inconcebível Esposo, ou antes,
impotente em tomar o seu voo, permanecerá a alma presa ao solo?
Evidentemente, nós prefiguramo-la com o rosto estendido, as
mãos erguidas, chamando-se, concentrando-se no fundo de si
mesma, reunindo-se para melhor se manifestar, e imaginamo-la tam­
bém doente, sem forças, tentando inflamar a alma num corpo que
treme. Mas quem sabe se, em algumas noites, consegue isso?
Ah!, estas pobres lâmpadas sem óleo, de chamas quase mortas
que tremem na obscuridade do santuário, que é que o bom Deus
lhes faz?
Enfim, há ainda a família que assistia a esta tomada de hábito,
e se esta criança me entusiasma não posso porém deixar de lastimar
a mãe. Pense-se então que se a filha lhe morresse, ela a abraçaria,
e lhe falaria talvez, ou antes, se não mais a reconhecesse não seria
por sua própria vontade, e aqui não é o corpo, é a própria alma da
sua filha que morre diante dela. Manifestamente, a sua filha deixava
de a reconhecer: é o fim desdenhoso de uma afeição. Diga-me, pois,
que para uma mãe é o que há de mais duro!
- Sim, mas esta pretensa ingratidão, adquirida ao preço sabe
Deus de que lutas, não é (aparte a vocação divina) senão uma mais
equitativa repartição do amor humano. Lembre-se que esta eleita se
torna um bode emissário dos pecados cometidos; semelhante a uma
lamentável Danaide, inesgotavelmente verterá a oferenda das suas
mortificações e das suas preces, das vigílias e dos jejuns no túnel sem
fundo das ofensas e das faltas! Ah! Se soubesse o que é reparar os
pecados do mundo? Mas espere; recorda-me a propósito de que um
dia a prioresa das Beneditinas da rua Tournefort me dizia: como as
nossas lágrimas não são ainda santas, como as nossas almas não são
ainda bastante puras, Deus prova-nos no nosso corpo. Há aqui doen­
ças longas e que não se curam, doenças que os médicos renunciam
a compreender; assim nós espiamos muito pelos outros.
Mas, se considera num momento a cerimonia de agora há
pouco, não convém enternecer-se excessivamente por ela, e com­
pará-la ao espectáculo conhecido dos funerais; a postulante que vis­
tes ainda não pronunciou os votos da sua profissão; ela pode, se
muito bem o desejar, retirar-se do convento e entrar de novo em sua
casa. Na hora presente, para a mãe, é uma filha exilada, uma filha
no colégio, mas não é uma filha morta!

120
A CAMINHO

- Poderá dizer o que muito bem lhe aprouver, mas esta porta,
que se fechou sobre ela, é bem trágica!
- Nas Beneditinas da rua Tournefort, a cena efectua-se no inte­
rior do convento e sem que a família assista a ela. A mãe é poupada,
mas, assim moderada, esta cerimonia não passa de uma etiqueta
banal, de uma fórmula quase vergonhosa adentro dessas portas cer­
radas onde a Fé se oculta.
- E essas freiras são igualmente Beneditinas da Adoração per­
pétua?
- São; conhece o seu mosteiro?
E, fazendo Durtal sinal que não, o abade continuou:
- Ele é mais antigo mas menos interessante que o da rua
Monsieur. A capela é mesquinha, cheia de estatuetas de gesso, de
flores de tafetá, de cachos de uvas e espigas de papel dourado; mas
a antiga construção que abriga o claustro é curiosa. Tem ressaibos -
como direi! - tem ressaibos de refeitório de colégio e também de
um salão de casa de retiro; ela respira ao mesmo tempo a velhice e
a infância...
- Conheço esse gênero de conventos - disse Durtal - ; outrora
freqüentei muito um deles, quando ia visitar uma velha tia a
Versalhes. Para mim, evocava sobretudo a ideia de uma casa
Vauquer,* caída na devoção, e rescendia a mesa de hóspede da rua
da Clef e a sacristia de província.
- É bem isso - e o abade continuou, sorrindo. - Tive, na rua
Tournefort, várias entrevistas com a prioresa; adivinhamo-la antes
que a vejamos, porque separa-nos dela uma grade de pau preto, por
detrás da qual se estende um cortinado que ela abre.
Vejo-a muito bem - pensou Durtal, que, recordando-se do traje
das Beneditinas, avistou, num segundo, um pequeno rosto envolto,
depois, mais abaixo, no alto do vestido, o brilho de uma custódia
de prata dourada, esmaltada de branco.
Ele pôs-se a rir e disse ao abade:
- Eu rio-me, porque, não tendo negócios a regular com esta tia
religiosa de que lhe falei, e que eu só distinguia, assim como a sua
monja, através dessa grade, cheguei a descobrir o modo de ler um
pouco nos seus pensamentos..
- Ah! E como?
- Deste modo. Não podendo observar a sua fisionomia que se
afastava por detrás do gradeado e desaparecia sob o véu, não
podendo mais, se me respondesse, guiar-me pelas inflexões da sua

* Referência ao Père Goriot de Balzac. [N.R.]

121
J.-K. HUYSMANS

voz, sempre circunspecta e sempre calma, acabaria por não me fiar


senão nesses grancles óculos, redondos e com aros de búfalo, que
quase todas as monjas usam. Pois bem, a vivacidade oprimida da
mulher brilhava aí; de súbito, num canto dos vidros uma centelha
faiscava; compreendia então que os olhos acesos desmentiam a
indiferença da voz, a quietação voluntariosa do tom.
O abade também se pôs a rir.
- E a superiora que dirige as Beneditinas da rua Monsieur,
conhece-la? - continuou Durtal.
- Já conversei com ela uma ou duas vezes; aí o locutório é ver­
dadeiramente monástico, e não tem o aspecto provincial e burguês
do da rua Tournefort; compõe-se de um aposento sombrio, ocupado
em toda a sua largura, ao fundo, por uma gradaria de ferro, e atrás
desta grade levantam-se ainda varões de pau e um postigo pintado
de negro. Está-se aí como em plena noite, e a prioresa, alumiada de
um ténue clarão, aparece-nos, semelhante a um fantasma...
- A prioresa é essa religiosa, envelhecida, muito débil, muito
baixa, a quem Dom Estêvão entregou a noviça?
- E, sim. Ela é uma notável pastora de almas, e, o que é mais,
uma mulher muito instruída e de uma rara distinção de maneiras.
Oh! - pensou Durtal. - Faço ideia de como são esquisitas mas
também terríveis mulheres estas governantas! Santa Teresa era a pró­
pria bondade, mas quando no seu Caminho de Perfeição* fala das
freiras que se coligam para discutirem as vontades da sua Mãe,
revela-se-nos inexorável, porque declara que se lhes deve infligir a
prisão perpétua no mais breve possível e sem afrouxar: e, no fundo,
ela tem razão, porque toda a irmã díscola contaminaria o rebanho,
inocularia de lepra as almas.
Sempre a conversar, tinham chegado ao fim da rua de Sévres;
o abade parou um pouco para descansar as pernas.
- Ah! - disse, como falando consigo mesmo. - Se eu não
tivesse tido, durante toda a minha existência, tão graves encargos, a
princípio um irmão, depois sobrinhos a sustentar, já há muitos anos
que faria parte da família de São Bento. Sempre me causou atractivo
esta grande ordem que, em suma, é a ordem intelectual da Igreja.
Assim, se eu estivesse mais válido e mais novo, era num dos seus
mosteiros que iria fazer os meus retiros, ou nos monges negros de
Solesmes ou de Ligugé, que conservaram as sábias tradições de São
Mauro, ou ainda nos Cistercienses, nos monges brancos da Trapa.

* Ver Obras Completas de Santa Teresa de Jesu s, Paço de Arcos, Edições


Carmelo, 1994.

122
A CAMINHO

- É verdade - disse Durtal a Trapa é um dos grandes ramos


da árvore de São Bento; mas é porque as suas observâncias diferem
das que deixou o Patriarca?
- Os Trapistas interpretam a regra de São Bento, que é muito
suave e muito larga, menos no seu espírito que na sua letra, ao
passo que os Beneditinos fazem justamente o contrário.
Resumindo, a Trapa é um ramo de Cister e é bem mais a filha
de São Bernardo, que foi durante anos a sua própria seiva, do que
é a descendente de São Bento.
- Mas, se bem me recordo, as Trapas estãodivididas e não
vivem sob uma disciplina uniforme.
- Agora sim; depois de um breve pontificai datado de 17 de
Março de 1893, que sancionou as decisões do capítulo geral dos
Trapistas reunidos em Paris, e promulgou a fusão das três observân­
cias de Trapas, que eram efectivamente regidas por constituições em
desacordo, em uma só ordem e sob a direcção de um só superior.
E vendo que Durtal o escutava, atento, o abade prosseguiu:
- De entre estas três observâncias, só uma, a dos Trapistas
Cistercienses, à qual pertencia a abadia onde eu era hóspede,
seguia integralmente as prescrições do século xu, levava a existên­
cia monástica do tempo de São Bernardo. Esta não reconhecia
senão a regra de São Bento, tomada na acepção mais estrita e com­
pletada pela Carta de Caridade e os usos e costumes de Cister; as
outras duas tinham adoptado a mesma regra, mas revista e modifi­
cada no século xvii pelo abade de Rancé; e ainda, uma delas, a con­
gregação da Bélgica, tinha desnaturado os estatutos impostos por
este abade.
Actualmente todas as Trapas não formam, com o acabo de
dizer-lhe, mais do que um só e mesmo instituto colocado sob o
nome de «ordem dos Cistercienses reformados da Beata Virgem
Maria da Trapa», e todas adoptam os regulamentos de Cister, e revi­
vem a vida dos cenobitas da Idade Média.
- Mas, se tem freqüentado estes ascetérios - disse Durtal - deve
então conhecer Dom Estêvão?
- Não, nunca fui à Grande Trapa; sempre preferi os pobres e
pequenos conventos, onde se pode conviver com os monges, aos
imponentes mosteiros que nos isolam numa hospedaria e nos têm
de parte.
Uma das que me refiro é aquela onde me encerrei, Nossa
Senhora do Lar,* uma pequena Trapa, a algumas léguas de Paris,

* Ver prefácio do Autor, p. 8. [N.R.]

123
J.-K. HUYSMANS

que é o mais sedutor dos refúgios. Além de aí residir verdadeira­


mente o Senhor, porque ela tem no seu seio verdadeiros santos, é
ainda encantadora com os seus lagos, as suas árvores seculares, a
sua longínqua solidão, no fundo dos bosques.
- Sim, mas não obstante - observou Durtal - a existência aí
deve ser implacável, porque a Trapa é a ordem mais rígida que tem
sido imposta aos homens.
Por única resposta, o abade largou o braço de Durtal e tomou-
-!he as mãos.
- Quer saber - disse-lhe, olhando-o bem de frente - , quer
saber? Era para aí que devia ir para converter-se.
- Fala a sério, senhor abade?
E, como cada vez mais, o padre lhe apertava fortemente as
mãos, Durtal exclamou:
- Ah! Não; em primeiro lugar, não tenho a robustez de alma,
nem a saúde corporal que exigiria semelhante regime; cairia logo
doente, e depois... e depois...
- E depois quê? Eu não lhe proponho que se interne para sem­
pre num claustro...
- Acredito-o - disse Durtal, num tom quase ofendido.
- Mas sim que permaneça aí uns oito dias, o necessário para o
curar de todo. Ora, oito dias, passam num instante; em seguida, julga
que, se tomar uma semelhante resolução, Deus não o ajudará?...
- Isso é bom de se dizer, mas...
- Falemos do regime, então... - e o abade teve um sorriso de
piedade um pouco desdenhoso. - Posso atestar-lhe desde já que
não será obrigado, pela sua qualidade de solitário, a levar a vida de
Trapista no que ela tem de mais austero. Pode não levantar-se às
duas horas da manhã para o ofício de matinas, mas às três ou
mesmo às quatro horas, conforme os dias.
E sorrindo-se diante do trejeito de Durtal, o abade prosseguiu:
- Quanto à alimentação, ela será melhor que a dos monges; não terá
naturalmente peixe ou carne, mas conceder-lhe-ão certamente um
ovo a cada refeição, se os legumes não forem suficientes!
- E os legumes são cozidos em água e sal, sem tempero?...
- Não, isso é só no tempo de jejum; nos outros dias cozem-nos
em leite e água ou com um fio de azeite.
- Está bem - exclamou Durtal.
- Mas tudo isto é excelente para a saúde - continuou o padre.
- Queixa-se de gastralgias, de enxaquecas, de dores de ventre! Pois
bem, esse regime no campo, ao ar livre, curá-lo-á melhor que as
drogas que já lhe deram a tomar.

124
A CAMINHO

Mas ponhamos, se assim o permite, o seu corpo de parte, por­


que em semelhantes casos é a Deus que pertence o reagir contra os
seus desfalecimentos; digo-lhe mais uma vez, não adoecerá na
Trapa, porque isso seria absurdo; isso seria a não acolhida do peca­
dor penitente e Jesus deixaria de ser o Cristo!... Mas falemos da sua
alma. Tenha então a coragem de a examinar, de a olhar bem de
frente; vê-a? - continuou o abade, após um curto silêncio.
Durtal não respondeu.
- Confesse então - exclamou o padre - que ela lhe causa horror!
Ambos deram alguns passos na rua, e o abade continuou:
- Afirma estar empolgado pelas multidões de Notre-Dame-des-
-Victoires, e pelos eflúvios de Saint-Séverin. O que não será então
na humilde capela, onde estará confundido, por terra, no meio de
santos? Garanto-lhe, em nome do Senhor, uma protecção como
nunca a teve, e - prosseguiu, rindo-se, — acrescento ainda que a
igreja tornar-se-á bela para vos receber; ela toda se ataviará com as
suas louçanias agora esquecidas: as autênticas liturgias da Idade
Média, o verdadeiro cantochão, sem solos nem órgãos.
- Ouça-me, pois; as suas propostas atordoam-me - disse peno­
samente Durtal. - Posso assegurar-lhe que eu não estou preparado
para me encerrar em semelhante lugar. Sei muito bem que em Paris
não conseguirei nada; posso jurar-lhe ainda que não estou altivo da
minha vida, nem contente com a minha alma; mas daí a... ou
então... eu não sei... convinha-me um asilo moderado, um convento
suave. Haverá então lazaretos de almas nestas condições?
- Não devo enviá-lo para os Jesuítas que têm a especialidade
dos retiros de homens; porque, conhecendo-o como creio conhece-
-lo, tenho a certeza de que não permaneceria aí dois dias sequer.
Encontraria amáveis e muito hábeis padres, mas enchê-lo-iam de
sermões, quereriam misturar-se na sua vida, imiscuir-se na sua arte,
observariam os seus pensamentos à lupa, e depois estaria em trato
com bons homens cuja ininteligente piedade lhe faria horror: fugi­
ria daí, exasperado!
Mas na Trapa é o contrário. Será lá sem dúvida alguma o único
solitário, e não virá à ideia de ninguém o ocupar-se de si; será livre;
poderá, quando lhe aprouver, partir desse mosteiro tal qual nele
entrou; sem se ter confessado, sem mesmo se ter aproximado dos
sacramentos; a sua vontade será aí respeitada e nenhum monge ten­
tará sondá-la sem a vossa permissão. É só a si que pertence o deci­
dir se, sim ou não, quer deveras converter-se...
E serei franco até ao final, não é assim? É, como já lhe disse,
um homem sensitivo e cioso; pois bem, o padre, tal como se apre­

125
J.-K. HUYSMANS

senta em Paris, mesmo o religioso não clausurado, parecem-lhe...


como me hei-de exprimir? Parecem-lhe almas subalternas... para não
dizer mais...
Durtal protestou vagamente, num gesto.
— Dá-me licença que prossiga. Um segundo pensamento lhe
viria sobre o eclesiástico a quem coubesse o cuidado de o limpar:
já teria a certeza de que ele não é um santo, e isto é pouco teoló­
gico, porque talvez fosse o último dos padres, mas cuja absolvição
não seria de menor valor, se a merecesse, mas enfim há aí uma
questão de sentimentos que eu respeito; pensará dele pouco mais
ou menos isto: ele vive como eu vivo, não se priva mais do que eu
me privo, nada me prova que a sua consciência seja bem superior
à minha; e daí a perder toda a confiança e a deixar tudo só vai um
passo. Na Trapa, desafio-o a raciocinar assim, e a não se tornar
humilde. Quando vir homens que, depois de ter tudo abandonado
para servirem a Deus, passam uma vida de privações e de penitên­
cia, como nenhum governo ousaria infligir aos seus forçados, será
obrigado a confessar que não passa de um pigmeu ao lado deles!
Durtal calava-se. Após a estupefacção que tinha experimentado
ao ouvir propor-lhe semelhante saída, estava surdamente irritado
contra este amigo, que, tão discreto até então, se tinha de súbito
precipitado sobre o seu ser, abrindo-o violentamente. Tinha saído
da fastidiosa visão de uma existência esparsa; gasta, reduzida ao
estado de poeira; ao estado de trapo! E Durtal como que se recuava
e convinha mesmo que o abade tinha razão, que era preciso por­
tanto estancar-lhe o pus dos seus sentidos e expiar os seus apetites
inexigíveis, os seus desejos abomináveis, os seus gostos cariados; e
era então presa de um terror desvairado, intenso. Tinha a vertigem
do claustro, o transe sedutor deste abismo sobre o qual Gévresin o
fazia pender.
Enervado por essa cerimonia de uma tomada de hábito, atur­
dido pelo golpe que, ao sair, lhe tinha vibrado o padre, ele sentia
agora uma angústia quase física na qual tudo acabava por confun-
dir-se. Não sabia que reflexões devia ouvir, nem via flutuar nestes
cachoes de ideias turvas senão um pensamento nítido: que o
momento tão temido de tomar uma resolução tinha chegado afinal.
O abade olhou-o, percebeu que ele sofria realmente e a sua
piedade cresceu para com esta alma tão pouco hábil em suportar as
lutas.
Apoderou-se do braço de Durtal, e disse-lhe ternamente:
- Acredite-me, meu filho, que no dia em que for a casa de
Deus, no dia em que bater à sua porta, ela abrir-se-á logo para trás

126
A CAMINHO

e os anjos afastar-se-ão para dar-lhe passagem. O Evangelho não


mente quando afirma que há mais alegria no céu por um só peca­
dor que se arrepende, do que por noventa e nove justos que não
fazem mais do que penitência. Será tanto melhor acolhido quanto
mais o esperarem; enfim, meu amigo, pense que o velho padre, que
aqui deixa, não ficará inactivo e que ele e os conventos de que dis­
põe pedirão muito por si.
- Verei - respondeu Durtal, verdadeiramente comovido pelo
assento dolorido do abade - , verei... não posso decidir-me assim, de
improviso, eu vou pensar... Ah! Isto não é assim tão simples!
- Reze, sobretudo - disse o padre, que tinha chegado diante da
sua porta. - Pela minha parte tenho suplicado muito ao Senhor para
que me ilumine, e afianço-lhe que esta solução da Trapa é a única
que Ele me deu. Implore-o humildemente pela sua parte e Ele o
guiará. Até breve, não é assim?
E apertou a mão de Durtal que, ficando só, voltou a si. Então,
recordou-se dos sorrisos estratégicos, das frases ambíguas, dos silên­
cios sonhadores do abade Gévresin, compreendeu a mansidão dos
seus conselhos, a paciência das suas atenções, e um pouco enfa­
dado de ter sido, sem o querer, tão sabiamente dirigido, exclamou,
quase mal humorado: - Eis o desígnio que este padre amadurecia
com o seu ar de não lhe querer tocar!
IX

Ele experimentava esse despertar doloroso do doente a quem


um médico receita paliativos durante meses e que uma bela manhã
chega a saber que não há outro remédio senão fazer-se transportar
a uma casa de saúde para aí sofrer uma operação de cirurgia que se
tornara urgente. - Mas não se trata disso agora - exclamou Durtal.
- A pouco e pouco a gente se precata e se acostuma por meio de
precauções retóricas à ideia de que será preciso como que deixar-
-se cortar aos bocados para não ser assim ferido de improviso!
Sim, mas que importa isso, se sinto muito bem, no meu íntimo,
que este eclesiástico tem razão; devo, pois, deixar Paris se desejo
emendar-me; o tratamento, que ele me inflige, é verdadeiramente
duro a seguir, mas que fazer?
E desde esse momento pensava constantemente nas Trapas.
Ruminou o pensamento de uma partida, revolveu-a sobre todas as
suas faces, repisou os prós e os contras e acabou por dizer consigo
mesmo: classifiquemos as nossas reflexões e abramos uma conta cor­
rente; estabeleçamos, para nos reconhecermos, um Deve e um Haver.
O Deve é terrível. - Oh! Amontoar toda a nossa vida e lançá-la
na estufa de um claustro! Mas ainda é preciso saber se o corpo está
em estado de suportar um tal remédio; o meu actualmente é bem
frágil e melindroso, habituado a levantar-se tarde. Ele cai em fra­
queza apenas cleixa de ser reconfortado pelo sangue das carnes, e
sobrevêm-lhe nevralgias quando se lhe mudam as horas das refei­
ções. Nunca conseguirei sustentar-me apenas com legumes cozidos
em azeite ou leite; além disso, eu detesto o azeite na cozinha e abo­
mino tanto mais o leite quanto eu o digiro mal.
Em seguida, parece-me que estou já a ver-me de joelhos no
chão, durante horas inteiras, eu que tanto tenho sofrido na Glacière
por ter ficado nesta postura, por espaço de um quarto de hora ape­
nas, sobre um degrau!

128
A CAMINHO

Enfim, adquiri um tal hábito do cigarro que ser-me-ia absoluta­


mente impossível renunciar a ele; ora, é mais que certo que não me
deixarão fumar num convento.
Sim, certamente, sob o ponto de vista corporal esta partida é
uma loucura; no estado de saúde em que estou não há um médico
sequer que não me clissuada de tentar dar um semelhante passo.
Se me coloco agora no ponto de vista espiritual, devo reco­
nhecer também que é terrível uma entrada na Trapa.
É para temer, efectivamente, que a minha aridez da alma e a
minha falta de amor persistam; depois, que farei num tal meio? De
mais a mais, é igualmente provável que nesta solidão, neste silêncio
absoluto, morreria de tédio; e se assim for, que existência seria essa
que consistiria apenas em medir detrás para diante uma cela, con­
tado as horas! Não, para isso ser-me-ia preciso estar certo de ser for­
talecido por Deus, de ser habitado todo inteiro por Ele.
Enfim há duas formidáveis questões que pesam constante­
mente sobre mim e que não tinha ainda pensado nelas, porque isso
me era custoso; mas agora, que elas surgem diante de mim e me
barram o caminho, devo então encará-las: são as questões da con­
fissão e da Santa Missa.
Confessar-me? Sim, consinto nisso; estou tão cansado de mim,
tão desgostoso da minha miserável vida que esta expiação me
parece corno merecida, como necessária até; desejo humilhar-me,
quero muito pedir sinceramente perdão, mas ainda seria preciso que
esta penitência me fosse imposta em condições possíveis! Na Trapa,
se se der crédito ao abade, ninguém se ocupará de mim; ou,
dizendo de outro modo, ninguém me dará coragem, nem me aju­
dará a suportar a dolorosa extracção das vergonhas; serei quase
como um doente que se opera no hospital, longe dos amigos, longe
dos seus!
A confissão - continuou - é um achado admirável, porque é a
pedra de toque mais sensível que pode haver para as almas, o acto
mais intolerável que a Igreja impôs à vaidade do homem.
Coisa estranha! Falamos facilmente das nossas travessuras, das
nossas torpezas a amigos, e até mesmo, na conversação, a um
padre; isto não parece ter conseqüências graves e talvez que um
pouco de jactância se misture nas confissões dos pecados fáceis;
mas contar a mesma coisa de joelhos, acusando-nos, depois de ter­
mos orado, isso difere muito; o que não passava de um divertimento
torna-se numa humilhação verdadeiramente penosa, porque a alma
não pode ser joguete desses falsos semblantes; ela sabe muito bem,
no seu foro interior, que tudo mudou, sente tão bem a potência ter­

129
J.-K. HUYSMANS

rível do Sacramento, que ela, que ainda há pouco sorria, treme


agora, desde que pensa nisso.
Pois bem, quando me achar em frente de um velho monge que
terá de sair de uma eternidade de silêncio para escutar-me, de um
monge que não me ajudará, que não me compreenderá talvez,
como isso há-de ser horrível! Nunca chegarei ao cabo do meu penar,
se ele não me estender a percha, se me deixa abafar sem dar-me um
pouco de ar à alma, sem me levar socorro!
A Eucaristia parece-me terrível também. Ousar avançar, ousar
oferecer-Lhe como um tabernáculo o seu receptáculo imundo ape­
nas clarificado pelo arrependimento, apenas drenado pela absolvi­
ção, mas ainda pouco enxuto, é monstruoso! Não tenho, pois, a
coragem precisa para impor a Cristo este derradeiro insulto; então
para quê refugiar-me num mosteiro?
Não, quanto mais nisto reflicto, mais sou forçado a concluir
que estou louco se me aventuro a ir para uma Trapa!
Agora vamos ao Haver. - A única obra límpida da minha vida
seria justamente fazer uma trouxa do meu passado e trazê-la para a
desinfectar num claustro; e se tudo isto não me custasse, onde esta­
ria o mérito?
Nada me demonstra, por outro lado, que o meu corpo, por
mais debilitado que esteja, não suporte o regime das Trapas. Sem
crer ou fingir crer, com o abade Gévresin, que este gênero de ali­
mentação possa ser-me propício, devo contar com um refrigério
sobre-humano, admitir em princípio que se sou enviado para aí, não
é para me meter na cama ou para ser obrigado, logo à minha che­
gada, a vir-me embora. A menos, portanto, que não fosse isto o cas­
tigo preparado, a expiação exigida; mas não, porque seria atribuir a
Deus implacáveis ardis, o que é absurdo!
Quanto à cozinha, pouco me importa que seja inumana, se o
meu estômago a digerir; passar mal, levantar-se de noite, isso não é
nada conquanto que o corpo o suporte; acharei também meios de
fumar o meu cigarro, a ocultas, no fundo dos bosques.
Enfim, oito dias passam depressa, e eu não sou mesmo for­
çado, se me sentir fraquejar, a residir aí até ao fim dos oito dias!
No ponto de vista espiritual, devo ainda contar com a miseri­
córdia divina, crer que ela não me abandonará, que me desligará as
chagas, que me lubrificará a alma. Sim, sei muito bem que isto são
argumentos que não repousam sobre nenhuma certeza terrestre;
mas, se já tenho provas de que a Providência se imiscuiu nos meus
negócios, não tenho razões para julgar que estes argumentos são
mais débeis que os motivos puramente físicos que servem para

130
A CAMINHO

apoiar a minha outra tese. Ora, é preciso recordar-se esta conversão,


tão fora da minha vontade, é preciso enfim tomar conta de um facto
que devia alentar-me, a fraqueza das tentações que agora eu provo.
É difícil ter-se sido mais rapidamente e mais completamente
atendido. Que eu deva esta graça às minhas próprias orações ou às
dos conventos que me defenderam, sem me conhecerem, sempre é
certo; porque, desde algum tempo para cá, o meu cérebro se cala e
a minha carne está calma. Esse monstro de Florence aparece-me
ainda, em certas horas, mas já não se aproxima de mim, permanece
na penumbra, e o fim do Pater, o «Ne nos inducas in tentationem»,*
põe-na em fuga.
Eis, pois um facto insólito e preciso; porque duvidar então de
que possa ser melhor amparado na Trapa do que o seria, mesmo
em Paris?
Restam ainda a confissão e a comunhão.
A confissão? - Ela será o que o Senhor quiser que seja; é Ele
quem me escolherá o monge; eu nada mais tenho a fazer do que
deixar-me servir; e depois, quanto mais duro isto for, mais valor terá;
se sofrer bastante, menos indigno me julgarei de comungar.
O ponto mais doloroso - continuava - é este: comungar! -
Raciocinemos, pois; é certo que agirei torpemente, propondo a
Cristo que desça, assim como um poceiro, à minha fossa; mas se
fico à espera de que ela esteja vazia, nunca estarei em condições de
recebê-lO, porque os meus septos não estão vedados e sempre a
cada passo infiltram-se pecados através as fissuras.
Considerando bem tudo isto, vejo que o abade tinha razão
quando me respondeu um dia: também eu não sou digno de me
aproximar d’Ele; não tenho, graças a Deus, dessas máculas de que
me fala, mas quando pela manhã vou dizer a minha missa, e que
penso nas poeiras da véspera, julga então que não tenho vergonha
disso?
Convém, pois, reportarmo-nos sempre aos Evangelhos, repetir­
mos que Ele veio para os enfermos e para os doentes, e que quer
visitar os cobradores de impostos* e os leprosos; enfim, devemos
convencer-nos de que a Eucaristia é uma vigia e um socorro, e que
é concedida, como está escrita no ordinário da Missa, «ad tutamen-
tum mentis et corporis et ad medelam percipiendam*\ ela é, largue­

* Em port., «não nos deixais cair em tentação». [N.R.]


* Publicanos. [N.T.]
* Na preparação para a comunhão: «sirva de protecção e defesa à minha
alma e ao meu corpo, e de remédio aos meus males». [N.R.]

131
J.-K. HUYSMANS

mos o termo, um medicamento espiritual; vamos ao Salvador do


mesmo modo que nos dirigimos a casa de um médico; levamos-lhe
a alma para que a trate e Ele cuida dela.
Estou em face do incógnito — prosseguia Durtal. - Lamento
muito a minha aridez e os meus delírios, mas quem me diz a mim
que se me resolver a comungar continuarei ainda a ficar assim?
Porque, de resto, se tenho Fé, devo crer no trabalho oculto de Cristo
no sacramento! Enfim, receio ainda aborrecer-me na solidão, e o
que eu me divirto assim! Ao menos na Trapa não teria estas tergi­
versações a cada minuto, estes contínuos transes; teria o benefício
de estar como assentado em mim mesmo; e depois... depois,, a soli­
dão, mas eu já a conheço muito bem! É o que faço desde a morte
de Des Hermies e de Carhaix, porque desde então tenho vivido
sempre retirado; e com quem convivo eu? Apenas com alguns edi­
tores, com alguns homens de letras, e as relações com estas pessoas
não têm a menor sombra de atractivo para mim. Quanto ao silên­
cio, é um benefício; numa Trapa, não tornarei mais a ouvir o des­
fiar de intermináveis parvoíces, já não tornarei a escutar pulveru-
lentas homilias e indigentes sermões. E eu deveria exultar de júbilo
por ver-me enfim isolado, longe de Paris, longe dos homens!
Calou-se então e fez-se ainda uma espécie de reviramento den­
tro em si; e melancolicamente disse consigo: - Oh! Quanto estes lití­
gios são inúteis, quanto estas reflexões são vãs! Nada mais há a ten­
tar do que fazer o contado da minha alma, estabelecer o Deve e o
Haver, tratar de fazer o balanço às minhas contas; sei, sem saber
como, que é preciso partir; -sinto-me impelido para fora de mim por
uma impulsão que sobe do íntimo do meu ser e à qual estou per­
feitamente certo de que tenho que ceder.
Nesse momento, Durtal estava decidido, mas, dez minutos
depois, este ensaio de resolução desmanchava-se; sentia-se empol­
gado pela sua moleza, e tornava a repisar, uma vez mais, novos
argumentos para não se mudar, e concluía que as suas provas para
ficar em Paris eram palpáveis, humanas, seguras, ao passo que as
outras eram intangíveis, extranaturais, e por conseqüência sujeitas a
ilusões, talvez falsas.
E chegava a inventar o receio de não obter uma coisa de que
receava, dizia consigo que a Trapa não o acolheria ou que lhe recu­
saria a comunhão, e então propunha a si mesmo um meio termo:
confessar-se em Paris e comungar na Trapa.
Mas então passava-se nele um facto incompreensível; toda a
sua alma se insurgia a esta ideia e a ordem formal era-lhe verdadei­
ramente insuflada para não se iludir. E dizia consigo: - Não, o fel

132
A CAMINHO

deve ser bebido até à derradeira gota, ou tudo ou nada; se eu me


confessasse ao abade seria uma desobediência a prescrições abso­
lutas e secretas; seria então capaz de não ir depois a Nossa Senhora
do Lar!
- E que fazer? - e acusava-se de suspeito, chamava em sua
ajuda, uma vez a mais, a recordação dos benefícios recebidos, este
descerrar dos olhos, esta marcha insensível para a Fé, o encontro
deste padre, o único que podia compreendê-lo e tratá-lo de uma
maneira tão benigna e tão suave; mas debalde tentava reconfortar-
-se. Então suscitava em si mesmo o sonho da vida monástica, a
soberana beleza do claustro; imaginava o júbilo da abnegação e da
renúncia, a paz das loucas orações, a embriaguez interior do espí­
rito, a alegria de não estar mais em si, no seu próprio corpo!
Algumas palavras do abade sobre a Trapa serviam de trampolim aos
seus devaneios e então parecia-lhe entrever longinquamente uma
velha abadia, sombria e tépida, de imensas filas cie árvores, de céus
desfilando mansamente por sobre o cantar das águas, e passeios
silenciosos e mudos pelos bosques ao cair do dia; evocava as sole­
nes liturgias do tempo de São Bento, via a medula branca dos can­
tos monásticos subir sob a casca apenas talhada dos sons! E conse­
guia embalar-se e exclamava então: - Tu sonhaste durante anos e
anos com claustros, alegra-te, pois, porque vais enfim conhecê-los!
- e queria partir logo, e aí ficar, mas bruscamente, de chofre, ele
descambava na realidade e dizia consigo: - É fácil encantar-se com
viver num mosteiro, e contar a Deus que se deseja ardentemente
abrigar-se n’Ele, quando a existência de Paris nos pesa, mas, quando
se trata de emigrar efectivamente para aí, isso é outra coisa!
E ruminava estes pensamentos, por toda a parte, na rua, em
casa, nas capelas. Fazia o trajecto de uma igreja a outra, esperando
mitigar os seus transes, mudando-os de lugar; mas eles persistiam,
exibindo-lhe todos os pontos insuportáveis.
Depois, tinha sempre, ainda mesmo nos lugares consagrados,
esta recusa da alma, esta mola quebrada dos arroubos, este silêncio
que de súbito se fazia nele, todas as vezes que queria consolar-se,
falando-Lhe. Os seus melhores momentos, as suas altas nestes alvo­
roços eram certos minutos de torpor absoluto; tinha então como que
neve na alma, e nada ouvia.
Mas este letargo de pensamentos não durava muito, a borrasca
soprava de novo, e as orações, que poderiam apaziguá-lo, recusa­
vam-se ainda a sair; procurava a música religiosa, as prosas desola­
das dos salmos, as crucificações dos Primitivos, para se excitar, mas
as orações corriam, embaraçando-se nos seus lábios; elas despoja­

133
J.-K. HUYSMANS

vam-se de todo o sentido, tornavam-se palavras sem nexo, invólu­


cros vazios.
Em Notre-Dame-des-Victoires, para onde se arrastava na espe­
rança de que se desgelaria ao fogo das orações vizinhas, desentor-
pecia-se efectivamente um pouco; parecia-lhe então que se fendia,
fugindo gota a gota em dores não formuladas que se resumiam num
queixume de criança doente em que dizia baixinho à Virgem: -
Como me dói a alma!
Depois, daí, voltava de novo a Saint-Séverin, deixava-se estar
por baixo desta abóbada cansada pelo constante murmurar das ora­
ções, e, obcecado pela sua ideia fixa, advogava as circunstâncias
atenuantes, exagerava as austeridades da Trapa, esforçava-se quase
por exasperar o seu temor para escusar os seus esmorecimentos
num vago apelo à Madona.
- Preciso, portanto, de ir ver o abade Gévresin - murmurava,
mas faltava-lhe a coragem para ir pronunciar o fatal «sim» que segu­
ramente lhe pediria o padre. Afinal descobriu um pretexto para
visitá-lo sem se ver obrigado a comprometer-se ainda.
Apesar de tudo - pensou - não tenho ainda dados precisos a
respeito desta Trapa; não sei mesmo se me será necessário fazer
uma viagem custosa e longa para aí chegar; o abade tem-me dito
que ela não está muito afastada de Paris, mas enfim não posso deci­
dir-me a isso com esta simples informação; seria também muito util
conhecer os costumes desses cenobitas, antes de ir viver entre eles.
O abade sorriu-se, quando Durtal lhe submeteu estas objec-
ções.
- A viagem é pequena - respondeu toma na gare do Norte,
às oito horas da manhã, um bilhete para Saint-Landry; o comboio
põe-o aí, um quarto para o meio-dia; almoça depois numa estala-
gem perto da gare, e, enquanto bebe o café, preparam-lhe um carro,
e, depois de quatro horas de corrida, chega a Nossa Senhora do Lar
a tempo de jantar! É então difícil?
Quanto ao preço, é muito módico. Se não me engano, o cami­
nho de ferro custa uns quinze francos, junte-lhe dois ou três francos
para a refeição, e seis ou sete para a carruagem...
E, Durtal calando-se, o abade continuou: - E então?
-A h ! Tudo isso, tudo isso... se soubesse... eu estou num estado
de causar dó; quero e não quero; sei muito bem que devo refugiar-
-me aí, mas contra minha vontade, queria ganhar tempo, retardar a
hora da partida.
E continuou: - Tenho a alma desconcertada; todas as vezes que
quero rezar, os meus sentidos evolam-se para fora de mim, não

134
A CAMINHO

posso recolher-me, e afinal, se consigo congregar-me, cinco minu­


tos não se escoam sem que eu não me desagregue. Não, eu não
tenho nem o fervor, nem a contrição verdadeira; certamente lá não
O amarei suficientemente, se quer que lhe diga.
Finalmente, ao cabo de dois dias, uma terrível certeza se
implantou em mim; estou seguro de que, apesar da minha calmaria
carnal, se me encontrasse em face de certa mulher cuja vista me
enlouquece, eu não cedesse afinal; mandaria, pois, a pouca religião
que tenho de presente ao diabo e tornaria a beber o meu vomitivo
a grandes tragos, e só não o faço porque não sou tentado a isso. Em
conclusão, não valho certamente mais do que quando pecava.
Devemos reconhecer que me acho num bem miserável estado para
me retirar para uma Trapa.
- As suas razões são um tanto frágeis - respondeu o abade.
Disse-me a princípio que se distraí muito nas suas orações, e
que elas são inaptas em não dispersar os seus sentidos; mas então
está como toda a gente afinal! Santa Teresa declara mesmo que mui­
tas vezes não podia recitar o Credo sem nele se perder; é isso uma
fraqueza de que convém humildemente tomar o seu partido; deve­
mos sobretudo não nos deixar acabrunhar por estes males, porque
o receio de vê-los voltar assegura-lhes a assiduidade; distraímo-nos
das nossas orações pelo próprio temor destas distracções, e pelo
pesar de tê-las tido; vá mais para a frente, alcance o largo, reze o
melhor que puder e não se inquiete!
Afirmou-me, por outra parte, que se encontrasse uma pessoa
cujos atractivos o perturbam, sucumbiria finalmente; sabe que mais?
Porque havemos de nos preocupar com seduções que Deus não nos
inflige ainda e que nos poupará talvez? Porque havemos de duvidar
da sua misericórdia? Porque não havemos de acreditar, pelo contrá­
rio, que, se Ele julgasse a tentação útil, nos ajudaria o suficiente para
impedir-nos de soçobrar?
Em todo o caso, não tem que apreender antecipadamente o
desgosto da sua fraqueza; a Imitação o atesta: «que coisa há de
mais insensato e de mais vão do que afligirmo-nos com coisas futu­
ras que nunca chegarão talvez»!* Não, já é muito ocuparmo-nos do
presente, porque cada dia enche a sua medida, sujficit diei malitia
sua*
Julga enfim que não tem o amor de Deus, e respondo-lhe
ainda que está enganado. Já tem esse amor, só pelo facto de dese­

* Im itação d e Cristo, livro in, cap. 30, § 2. [N.R.]


* Mat. 6, 34: «Que a cada dia baste o seu próprio mal». [N.R.]

135
J.-K. HUYSMANS

jar tê-lo, e por ter pena de não o ter; ama Nosso Senhor só por
desejar amá-lOi
- Oh! É singular - murmurou Durtal. - Mas então - conti­
nuou - , se na Trapa, o monge, revoltado pelo ultraje prolongado
das minhas culpas, me recusa a absolvição e me impede de
comungar?
De chofre, o abade pôs-se a rir.
- Está louco! Ah, mas então que ideia faz de Cristo?
- De Cristo não, mas do seu Medianeiro, do ser humano que
o substitui...
- Não pode caber por sorte senão ao homem designado de ante­
mão, lá no alto, para julgá-lo; além disso, tem todas as probabilidades
de se ajoelhar aos pés de um santo em Nossa Senhora do Lar; desde
então será aí que Deus o inspirará; não tem, pois, nada a recear.
Quanto à comunhão, a perspectiva de ser desviado dela
inquieta-o, mas não é isso ainda mais uma prova de que, contraria­
mente à sua opinião, Deus não o deixa insensível?
- Sim, mas a ideia de comungar não me preocupa menos!
- Repito-lhe mais uma vez ainda: se Jesus lhe fosse indiferente,
far-lhe-ia o mesmo efeito o consumir ou deixar de consumir as
Santas Espécies!
- Tudo isso pouco ou nada me convence - suspirou Durtal. -
Já não sei onde estou; tenho medo do confessor, dos outros, de mim
mesmo; bem conheço que é uma insensatez, mas ela é mais forte
do que eu próprio; não consigo enfim subjugar-me.
- Se a água o assusta, imitai Gribouille* e lance-se resoluta­
mente dentro dela; e se eu escrevesse à Trapa, hoje mesmo, dizendo
quando chega; quando então?
- Oh! - exclamou Durtal - , espere ainda.
- O tempo de ter uma resposta, contemos duas vezes vinte e
quatro horas; quer partir para aí ao fim de cinco dias?
E como Durtal, atordoado, se calava:
- Então estamos entendidos?
Nesta ocasião Durtal experimentou uma coisa estranha; e isso
foi, como várias vezes em Saint-Séverin, uma espécie de toque cari­
nhoso, de impulsão doce; sentiu uma vontade insinuar-se na sua, e
recuou, inquieto de ver-se assim geminado, de não mais se encon­
trar só no seu próprio ser. Depois que ficou inexplicavelmente tran­
qüilo deixou-se abandonar, e desde que pronunciou esse «sim», um

* Tipo de tolo, em expressões populares como «fazer como Gribouille, que


se atira para a água para fugir da chuva». [N.R.]

136
A CAMINHO

imenso alívio o invadiu, e, saltando então de um extremo ao outro,


revoltou-se com a ideia de que essa partida não se efectuaria logo
em seguida e sentiu muito ter de passar ainda em Paris cinco dias.
O abade pôs-se a rir. - Mas é preciso que os Trapistas estejam
prevenidos; é uma simples formalidade, porque, com uma palavra
minha, será imediatamente recebido, mas espere ao menos que eu
envie essa palavra! Deitá-la-ei ao correio esta tarde, não fique
inquieto e durma em paz.
Durtal riu-se por sua vez da sua impaciência. - Confesse - disse
- que eu vou tornando-me bem ridículo!
O padre sacudiu os ombros. - Já que me interrogou a respeito
da minha pequena Trapa, vou, pois, esforçar-me hoje por satisfazê-
-lo. Ela é minúscula se a compararmos à grande Trapa de Soligny,
011 aos estabelecimentos de Sept-Fons, de Meilleray, ou de
Aiguebelle, porque não se com põe senão de uma dezena de padres
de coro e de uma trintena de frades leigos ou conversos. Estão tam­
bém com eles um certo número de aldeãos que trabalham a seu
lado e os ajudam a cultivar a terra ou a fabricar o seu chocolate.
- Então eles fazem chocolate!
- E isso espanta-o? E de que quer que eles vivam? Ora essa;
desde já o previno de que não é para um sumptuoso mosteiro que
há-de ir!
- Melhor ainda. Mas, a propósito das lendas sobre os Trapas,
suponho que os monges não se saúdam com um: «irmão, é preciso
morrer» e que não cavam todas as manhãs a sua própria sepultura?
~ Isso são histórias para fazer dormir de pé. Eles não se ocu­
pam de modo nenhum do seu túmulo e saúdam-se silenciosamente,
pois que lhes é interdito falar.
- Mas então, o que hei-de fazer, quando tiver necessidade de
alguma coisa?
- O abade, o confessor, o padre hospedeiro, têm o direito de
falar com os hóspedes; só o poderá fazer a eles; os outros inclinar-
-se-ão apenas diante de si quando o encontrarem; porém, se os
interrogar, não lhe responderão!
- É sempre bom saber-se isso. E como andam vestidos?
- Antes da fundação de Cister, os Beneditinos envergavam,
segundo se crê, o hábito negro de São Bento; os Beneditinos pro­
priamente ditos vestem-no ainda; mas em Cister a cor foi mudada e
as Trapas, que são um rebento deste ramo, adoptaram o vestido
branco de São Bernardo.
- Perdoe-me todas estas perguntas, que devem parecer-lhe
pueris, não é assim? Mas, já que tenho de ir viver com esses reli­

137
J.-K. HUYSMANS

giosos deve ser-me preciso estar um pouco ao corrente dos costu­


mes da sua ordem.
- Estou sempre à sua inteira disposição - replicou o abade.
E Durtal, interrogando-o sobre a situação da própria abadia, ele
continuou:
- O mosteiro actual data do século xvm, mas há-de ver nos seus
jardins as ruínas do antigo claustro que foi erigido no tempo de São
Bernardo. Houve na Idade Média uma sucessão de bem-aventura­
dos neste convento; é uma terra verdadeiramente abençoada e
muito apta para as meditações e para os lamentos.
A abadia, segundo as prescrições de São Bernardo, está situada
no fundo de um vale, porque, como sabe, se São Bento amava as
colinas, São Bernardo procurava as planícies baixas e húmidas para
aí fundar os seus cenóbios. Um velho verso latino conservou-nos os
gostos diferentes destes dois santos:

Benedictus coles, valles Bernardus amabat *

- Era por atractivo pessoal ou com um fim piedoso que São


Bernardo construía os seus eremitérios nos lugares insalubres e
planos?
- Era para que os seus monges, cuja saúde se debilitava nas
brumas, tivessem constantemente diante dos olhos a salutar imagem
da morte.
- Oh!,..
- E digo mais, que o vale onde se eleva Nossa Senhora do
Lar está actualmente livre dos pântanos que o rodeavam, e que os
ares são aí muito puros; pode passear ao longo de deliciosos
lagos, e recom endo-lhe em especial, na extrema ourela da clau­
sura, um renque de nogueiras seculares por onde poderá passear
ao pôr-do-sol.
E após um silêncio, o abade Gévresin continuou:
- Caminhe lá muito, percorra os bosques em todos os sentidos;
as florestas instrui-lo-ão melhor alma do que os livros, «aliquid
amplius invenies in sylvis quam in libris»,* escreveu São Bernardo;
reze e os dias tornar-se-ão curtos.

* Citação (inexacta) de um célebre dístico medieval: B ern ardu s valles,


montes Benedictus am abat, / Oppida Franciscus, celebres Dominicus urbes
(Bernardo amava os vales, Bento os montes, / Francisco as vilas, e Domingos
as cidades). [N.R.]
* Epístola 106: «encontrarás mais coisas nas florestas que nos livros». [N.R.]

138
A CAMINHO

Durtal partiu; reconfortado, quase jubiloso, de casa deste


padre; sentia dentro em si o alívio de uma situação definida, de uma
resolução tomada. - Não se trata agora senão de preparar-me o
melhor possível para este retiro - dizia consigo; e então orou e dei­
tou-se, pela primeira vez desde meses, com o espírito tranqüilo.
Mas, no dia seguinte, desde o seu despertar, as suas fraquezas
requintaram, todas as suas preocupações, todos os seus transes vol­
taram de novo; perguntou a si mesmo se a sua conversão estava
suficientemente madura para a apartar e levá-la a uma Trapa; o
medo do confessor, a apreensão do desconhecido assaltaram-no
então de novo. Não devia dar uma resposta assim tão precipitada, e
ele quedou-se.
- Porque fui dizer que sim? - a recordação desta palavra, pro­
nunciada pela sua boca, pensada por uma vontade que era ainda a
sua e que era contudo bem outra, voltou-lhe de novo à memória.
- Já não é a primeira vez que tal facto me sucede - ruminou -
já sofri, a sós, nas igrejas, conselhos imprevistos, ordens mudas, e
devo confessar que é verdadeiramente aterrador o sentir esta infu­
são de um ser invisível em nós mesmos, e saber que pode quase
expropriar-nos, se lhe aprouver, do domínio da nossa pessoa.
Mas aqui não se dá isso; não há substituição de uma vontade
exterior à sua, porque se conserva absolutamente intacto o livre-
-arbítrio; não é, de mais a mais, uma dessas impulsões irresistíveis
que sofrem certos doentes, pois que nada há mais fácil do que resis-
tir-lhe, e não é muito menos ainda uma sugestão, porque não se
trata, neste caso, de passes magnéticos, nem de sonambulismo pro­
vocado, nem de hipnose; não, é a irresistível entrada de uma velei­
dade estranha em si; é a súbita intrusão de um desejo nítido e dis­
creto, e é um ímpeto da alma simultaneamente firme e suave. Ah!
Eu sou ainda inexacto, eu divago, mas então nada pode restituir esta
cuidadosa pressão que um movimento de impaciência faria esvae-
cer; sente-se e é inexprimível!
Sempre se escuta com surpresa, quase com angústia esta indu­
ção, que não vai buscar para se fazer ouvir nenhuma voz interior, e
que se formula sem a resistência das palavras - e tudo se apaga; o
sopro que nos há-de penetrar desaparece. Talvez se quisesse que
esta incitação nos fosse confirmada, que o fenômeno se renovasse
para observá-lo mais de perto, para tentar analisá-lo, compreendê-
-lo, e assim ficar tudo acabado; mas fica-se a sós consigo, somos
livres para não obedecer, a nossa vontade está salva, nós o sabemos,
mas sabemos também que, se repelirmos estes convites, assumimos
para o futuro indiscutíveis riscos.

139
J.-K. HUYSMANS

Em suma - prosseguiu Durtal - há nisto o influxo angélico, o


toque divino; há nisto qualquer coisa de análogo à voz interna tão
conhecida dos místicos, mas esta é menos completa, menos precisa,
e no entanto é mais que segura.
E, sonhador, ele concluiu: - Oh! Quanto eu me pungiria,
quanto me torturaria, antes que pudesse dar uma resposta a este
padre, cujos argumentos nada me persuadiriam, se eu não tivesse
este socorro inopinado, esta ajuda!
Mas então, se sou levado pela mão, o que é que tenho a recear?
Mas receava sempre, não conseguia pacificar-se; depois, se
gozava do bem-estar de uma decisão, minava-o nesse instante a
expectação de uma partida.
Tentava matar o tempo na leitura, mas ainda mais uma vez se
convencia de que não tinha consolações a esperar de livro algum.
Nenhum se aproximava, ao menos de longe, do seu estado de
alma. A alta Mística era tão pouco humana, pairava em tais altitu­
des, tão longe do nosso lodaçal, que não se poderia esperar dela
um soberano apoio. Acabava por precipitar-se sobre a Imitação,
cuja Mística, posta ao alcance das multidões, era uma tremente e
queixosa amiga, que nos pensava nas celas dos seus capítulos, que
orava e chorava connosco, com padecendo-se sempre da viuvez
lacrimosa das almas.
Infelizmente Durtal tinha-a lido tanto e estava tão saturado dos
Evangelhos, que tinha temporariamente esgotado as virtudes pane­
gíricas e os calmantes. Cansado de leituras, começou novamente as
suas corridas pelas igrejas. - E se os Trapistas não me aceitam? -
dizia consigo. - O que será de mim?
- Mas então não vos disse já que eles o acolherão? - replicava-
-Ihe o abade, que ele tinha ido ver. Não ficou tranqüilo senão no dia
em que o padre lhe entregou a resposta da Trapa.
Ele leu-a:

Receberemos com muito gosto, por oito dias, na


nossa hospedaria, a pessoa que fez o favor de nos reco­
mendar; neste momento não vejo inconveniente algum
para que esse retiro não comece já na terça-feira próxima.
Na esperança, Senhor Abade, de que teremos igual­
mente o prazer de torná-lo a ver dentro em breve na nossa
solidão, peço-lhe que aceite os protestos dos meus mais
respeitosos sentimentos.
FM. Estêvão, hospedeiro.

140
A CAMINHO

Ele leu-a e releu-a, encantado e aterrado ao mesmo tempo.


Já não há mais que duvidar, é irrevogável - disse, e dirigiu-se a toda
a pressa a Saint-Séverin, tendo menos talvez necessidade de rezar
do que ir ter com a Virgem, mostrar-se-Lhe, fazer-Lhe uma espécie
de visita de agradecimento, exprimir-Lhe, só pela presença, a sua
gratidão.
E aí empolgara-o o encanto desta igreja, o seu silêncio, a som­
bra que caía na abside, do alto das suas palmeiras, e acabou por se
aniquilar, por deixar-se cair numa cadeira, por não ter senão um
desejo, o de não tornar a entrar na ida da rua, de não sair do seu
refúgio, de não mais se mexer.
E no dia seguinte, que era um domingo, dirigiu-se às
Beneditinas para ouvir a missa cantada. IJm monge negro estava a
celebrá-la; reconheceu nele um Beneditino, quando este padre can­
tou: «Dominous vobiscoum», porque o abade Gévresin tinha-lhe dito
que os Beneditinos pronunciavam o latim à italiana.
Se bem que não gostasse muito desta pronúncia, que tirava ao
latim a sonoridade das suas palavras e que fazia de algum modo,
das frases desta língua, carrilhões de sinos, cujos badalos se tives­
sem envolvido em lã, ou cujas campanas estivessem calafetadas, ele
deixava-se ir, arrebatado pela unção, pela humilde piedade deste
monge, que quase tremia de respeito e de alegria, quando beijava
o altar. E à sua voz carregada respondiam, por detrás das grades, as
claras revoadas das monjas.
Durtal estava ansioso, ao escutar estes quadros fluidos de
Primitivos desenharem-se, formarem-se, e pintarem-se no ar; sentia-
-se trespassado até à medula, assim como o tinha sido dantes,
quando assistia à missa cantada de Saint-Séverin. Perdida nesta
igreja, onde a flor das melodias fenecia para ele, desde que conhe­
ceu o cantochão das Beneditinas, encontrava ainda esta emoção, ou
antes levava-a consigo, de Saint-Séverin a esta igreja.
E pela primeira vez, veio-lhe um desejo louco, um desejo tão
violento que lhe fundiu o coração.
Foi no momento da Comunhão. O monge, elevando a hóstia,
proferia o «Domine, non sum dignus».* Pálido e transfigurado, os
traços iluminados por urna luz ignota, os olhos dolentes, a boca
grave, parecia como fugido de um mosteiro da Idade Média, recor­
tado num destes quadros flamengos em que os religiosos se mos­
tram de pé, ao fundo, enquanto que, diante deles, monges ajoe­
lhados oram de mãos erguidas, perto dos doadores, ao menino

* «Senhor, eu não sou digno [que entreis em minha morada]...». [N.R.]

141
J.-K. HUYSMANS

Jesus para quem a Virgem sorri, baixando longos cílios, sob uma
fronte arqueada.
E, quando ele desceu os degraus e deu a comunhão a duas
mulheres, Durtal estremeceu, e voltou-se num arroubo para o
cibório.
Pareceu-lhe que, se ele se alimentasse com este Pão, tudo se
acabaria, a sua algidez e os seus temores; pareceu-lhe que esse
muro de pecados, que tinha subido, de ano para ano, e que lhe bar­
rava a vista, se esboroava, e que enfim já via! E teve desejos de
apressar a sua partida para a Trapa, e de receber também o Corpo
sagrado das mãos de um monge.
Esta missa fortificou-o como um tônico; saiu desta capela, ale­
gre e mais firme, e quando a impressão se apagou um pouco com
as horas, ele ficou menos enternecido talvez, mas mais resoluto,
deleitando-se numa doce melancolia, à noite, com a sua situação,
dizendo consigo: há muita gente que vai a Barèges ou a Vichy curar
o seu corpo, porque não hei-de ir também curar a minha alma numa
Trapa?

142
X

Vou considerar-me prisioneiro por espaço de dois dias - suspi­


rou Durtal. - Terei assim tempo de pensar nos preparativos de via­
gem. Que livros hei-de levar comigo para lá me ajudarem a viver?
E vasculhava toda a sua biblioteca, folheava as obras místicas
que haviam pouco a pouco substituído as obras profanas, nas
estantes.
A respeito de Santa Teresa nem sequer falemos nisso - dizia
consigo nem ela, nem São Jo ão da Cruz me seriam muito conso­
ladores no retiro; realmente tenho muita necessidade de perdão e
de reconforto.
E São Dionísio o Areopagita ou o apócrifo designado com este
nome? É o primeiro dos Místicos, este que nas suas considerações
teológicas talvez fosse mais longe. Ele vive no ar irrespirável dos
píncaros, por cima dos sorvedouros, no limiar do outro mundo que
entrevia através os relâmpagos da graça; e não obstante permanece
lúcido, não deslumbrado, no meio desses raios de luz que o cercam.
Parece que nas suas Hierarquias Celestes, onde faz desfilar os
exércitos do céu, e demonstra o sentido dos atributos angélicos e
dos símbolos, terá já transposto a fronteira onde pára o homem, e
assim no seu opúsculo dos Nomes Divinos arrisca um passo mais à
frente, e então guinda-se à supra-essência de uma metafísica simul­
taneamente plácida e rude.
Ele aquece o verbo humano até dele fazer voar chispas de
lume; mas, quando ao fim dos seus esforços quer definir o
Infigurável, precisar as imiscíveis pessoas da Trindade que se plura-
liza e não sai da sua unidade, as palavras desmaiam nos seus lábios
e a língua paralisa-se sob a sua pena. Então, tranquilamente, sem se
assombrar, faz-se criança, torna a descer das suas culminâncias para
entre nós, e para tentar elucidar-nos o que compreendeu, recorre às
comparações da vida íntima; e, a fim de explicar esta Tríade única,

143
J.-K. HUYSMANS

chega a citar vários candelabros acesos numa sala e cujos clarões,


posto que distintos, fundem-se num só, não são mais do que um.
São Dionísio - pensava Durtal - é um dos mais ousados explo­
radores das regiões eternas... Sim, mas que árida leitura ele não me
forneceria lá na Trapa!
Ruysbroeck? - continuou. - Talvez sirva, mas vamos a ver;
posso meter na minha bagagem, assim como um cordial, o pequeno
resumo que dele destilou Hello. Quanto às Bodas Espirituais, tão
bem traduzidas por Maeterlinck, são desconexas e sem clareza;
fazem abafar os leitores. Enfim, este Ruysbroeck não me seduz
muito. Não obstante, é curioso este eremita, porque não se encerra
dentro de nós, mas antes percorre os contornos exteriores. Ele
esforça-se, como São Dionísio, por atingir Deus, mais no céu do que
na alma; mas ao querer voar tão alto, as asas fraquejam-lhe, e então
balbucia não se sabe o quê, quando desce.
Deixemo-lo então. Vejamos agora. Santa Catarina de Gênova? As
suas disputas entre a alma, o corpo e o amor-próprio são anódinas e
confusas, e quando, nos seus Diálogos, trata das operações da vida
interna, está tanto abaixo de Santa Teresa e de Santa Ângela! Em com­
pensação, o seu Tratado do Purgatório é muito decisivo e peremptó­
rio. Ele demonstra-nos que só ela penetrou nos espaços das dores
desconhecidas, e que aí desprendeu e se apoderou das alegrias;
chega mesmo a conciliar estes dois sentimentos contrários que pare­
cem para sempre insociáveis: o sofrimento da alma purificando-se dos
seus pecados e a alegria desta mesma alma que, no momento em que
suporta terríveis castigos, experimenta uma imensa felicidade, porque
ela se aproxima a pouco e pouco de Deus, e sente os seus raios atraí-
-la cada vez mais a si, e o seu amor inundá-la com tais excessos, que
parece que o Salvador não quer senão ocupar-se dela.
Santa Catarina expõe também que Jesus não interdita o Céu a
ninguém, que é a própria alma que, julgando-se indigna de aí
entrar, se precipita, por um movimento próprio, no Purgatório, para
aí depurar-se, porque ela não tem senão um fim, restabelecer-se na
sua pureza primitiva; e um desejo, atingir os seus fins derradeiros
aniquilando-se, destruindo-se, reduzindo-se a nada, escoando-se
em Deus.
É uma leitura de provação - resmungou Durtal - mas não é
disto que eu preciso na Trapa; passemos então adiante.
E pegou em outros livros das estantes.
Eis aqui um, por exemplo, cujo uso está bem à vista - prosse­
guiu, tomando a Teologia Seráfica de São Boaventura - porque este
condensa numa espécie de epítome, modos de estudos para se son­

144
A CAMINHO

dar a si mesmo, para meditar sobre a comunhão, e para perscrutar


a morte; depois, há, nesta selecta, um tratado sobre o Desprezo do
Mundo cujas frases comprimidas são admiráveis; é a verdadeira
essência do Espírito Santo e é também uma súmula de unção ver­
dadeiramente firme. Ponhamo-lo à parte.
Não encontrarei melhor adjuvante para remediar as prováveis
angústias das solidões - murmurava Durtal, rebuscando novas filei­
ras de volumes. E olhava para os títulos: Vida da Santa Virgem, por
Jean-Jacques Olier.
Hesitava, dizendo consigo: - Há todavia sob a água pouco
tépida do estilo interessantes observações e saborosas glosas; Olier
atravessou, de alguma forma, os misteriosos territórios dos desígnios
escondidos, e exaltou estas imagináveis verdades, que por vezes o
Senhor se compraz em revelar aos Santos. Ele constituiu-se o pala­
dino da Virgem, e, vivendo à sua beira, fez-se o arauto dos seus atri­
butos, o legado das suas graças. A sua vida de Maria, é, com toda a
certeza, a única que parece realmente inspirada, e que se pode ler.
Nos pontos em que a Abadessa de Ágreda divaga, ele permanece
rigoroso e claro. Mostra-nos a Virgem como existindo desde toda a
eternidade em Deus, não deixando sem cessar de ser imaculada
«como o cristal que recebe e reenvia para fora de si os raios do sol,
sem nada perder do seu brilho e que não refulge pelo contrário
senão com mais lustre», dando à luz sem dores, mas sofrendo, na
morte de seu Filho, a dor que devia suportar no seu nascimento.
Expande-se enfim em doutas análises sobre Aquela a quem ele
chama a «Tesoureira de todo o bem», a «Medianeira do amor e da
impetração». Sim, mas para conversarmos com Ela, nada há melhor
do que o Oficiumparvum beatae Virgiis, que hei-de pôr com o meu
devocionário na minha mala - concluiu Durtal, - Não nos separe­
mos então do livro de Olier.
A minha reserva começa a esgotar-se - continuou, - Ângela de
Foligno? Ah! Certamente, porque ela é uma verdadeira pira, ao redor
da qual pode aquecer-se a alma. Eu levo-a comigo; e que mais ainda
temos? Os Sermões de Tauler? São tentadores, porque ainda nin­
guém tratou melhor do que este monge os assuntos mais abstrusos
com um espírito mais lúcido. Com a ajuda de imagens familiares, de
humildes aproximações, consegue tornar acessíveis as mais altas
especulações da Mística. Ele é simultaneamente bom e profundo;
depois, propende um pouco para o quietismo e não seria mau tal­
vez absorver lá algumas gotas deste looch* Mas, talvez não, teria

* Preparado farmacêutico com propriedades emulsionantes. [N.R.]

145
J.-K. HUYSMANS

antes mais falta de tetânicos.* Quanto a Suso, ele é um sucedâneo


bem inferior a um São Boaventura ou a uma Santa Ângela, e eu dis­
penso-as, assim como a Santa Brígida da Suécia, porque esta, nas
suas conversações com o céu, parece-me assistida por um Deus
moroso e fatigado, que não lhe revela nada de imprevisto e nada de
novo.
Há ainda Santa Madalena de Pazzi, essa Carmelita volúvel que
lança apóstrofes em toda a sua obra. É uma exclamativa, hábil nas
analogias, prática em concordâncias, uma santa apaixonada de
metáforas e de hipérboles. Ela conversa directamente com o Pai e
balbucia, no êxtase, as explicações dos mistérios que lhe revelou o
Ancião dos dias. Os seus livros contêm uma página soberana sobre
a Circuncisão, uma outra magnífica, construída toda em antíteses,
sobre o Espírito Santo, outras estranhas sobre a deificação da alma
humana, sobre a sua união com o céu, sobre a função atribuída,
nesta operação, às chagas do Verbo.
Elas são ninhos habitados; a águia que representa a Fé jaz no
vão do pé esquerdo; na buraco do pé direito reside a gemente
doçura das rolas; na ferida da mão esquerda aninha-se a pomba,
símbolo de abandono; na cavidade da mão direita repousa o
emblema do amor, o pelicano.
E estas aves saem dos seus ninhos, vêm buscar a alma para
conduzi-la à câmara nupcial da chaga que sangra do lado de Cristo.
Não é também esta Carmelita que, encantada pela potência da
graça, despreza a certeza adquirida pela via dos sentidos, para dizer
ao Senhor: «Se eu vos visse com os meus olhos, deixava de ter a
Fé, porque a Fé cessa justamente no ponto onde se encontra a evi­
dência».
- Tudo bem considerado - disse com os seus diálogos e as
suas contemplações, Madalena de Pazzi abre eloqüentes horizontes;
mas a alma, barrada pela cera das pecados, não pode segui-la. Não,
não é esta santa quem me incutiria alento num claustro!
- Alto - prosseguiu, sacudindo o pó que cobria um volume de
capa escura - , cá está o Precioso Sangue do padre Faber* - e pôs-
-se a vê-lo, folheando, mesmo de pé, as páginas.
E relembrava a impressão olvidada desta leitura. A obra deste
oratoriano era algo estranha. As páginas borbulhavam, corriam em

* No sentido de «excitantes». [N.R.]


* Frederic William Faber (1814-1863), anglicano convertido ao Catolicismo,
depois padre oratoriano, considerado grande mestre espiritual, escreveu tam­
bém poemas influenciados por Wordsworth, seu amigo.

146
A CAMINHO

tumulto, carreando grandiosas visões tais como as concebeu Hugo,


desenrolando perspectivas de épocas tais como Michelet as quere­
ria pintar. Neste volume, avançava para a frente a solene procissão
do Precioso Sangue, partida dos confins da humanidade, da própria
origem das idades, e ela transpunha os mundos, transbordava sobre
os povos, e submergia a história.
O padre Faber era menos um místico, propriamente dito, do
que um visionário e um poeta. Apesar do abuso dos processos ora­
tórios, transferidos do púlpito para o livro, ele desraigava as almas,
levava-as à nascente das suas águas; mas quando se tomava pé,
quando se procurava recordar-se do que se tinha ouvido e visto, já
se não lembrava de nada. Afinal só se percebia, reflectindo-se nisso,
que a ideia melódica da obra era bem filiforme, bem ténue para ser
executada por uma tão estrondosa orquestra; depois, apenas restava
desta leitura algum traço de intemperança e de coisa febril, que nos
punha pouco à vontade e fazia reflectir que este gênero de obras
não tinha senão relações bem longínquas com a celeste plenitude
dos grandes místicos!
- Este não me serve - disse Durtal. - Vejamos agora os predi-
lectos: eu tenho o pequeno resumo de Ruysbroeck, a Vida de
Ângela de Foligno e São Boaventura; é o melhor que há para o meu
estado de alma - continuava, batendo na testa. Revolveu então toda
a sua biblioteca e lançou a mão a um pequeno livro que jazia só, a
um canto.
Ele sentou-se e percorreu-o com os olhos, dizendo: - Eis aqui
o tônico, o estimulante das fraquezas, a estricnina dos desfaleci-
mentos da Fé, o golpe de aguilhão que nos lançará em lágrimas aos
pés de Cristo, Ah! A Dolorosa Paixão da soror Emmerich!*
Esta não é uma analista do ser espiritual, como Santa Teresa, e
pouco se importa da nossa vida interior; no seu livro, esquece-se de
si mesma para deixar impresso nas suas páginas, assim como no véu
da Verônica, o Sudário da Santa Face, porque ela nada mais via
senão a Jesus crucificado e queria somente mostrar as fases da Sua
agonia.
Ainda que moderna - porque Catarina Emmerich morrera em
1824 - esta maravilha datava da Idade Média. Era uma pintura que
parecia remontar às escolas primitivas da Francónia e da Suábia.
Esta mulher era a irmã dos Zeitblom e dos Grünewalcl; ela tinha as
suas acerbas visões, as suas cores coléricas, o seu odor fulvo; mas
parecia também destacar-se dos velhos mestres flamengos, dos

* Trad. port: A P aixão d e Jesus Cristo (Paulus, 2004). [N.R.]

147
J.-K. HUYSMANS

Roger Van der Weiden e dos Bouts,* pelo seu cuidado no detalhe
exacto, pela sua notação precisa dos meios.
Tinha reunido em si as duas correntes saídas, uma da
Alemanha, e outra de Flandres; e esta pintura, pincelada com san­
gue e polida com lágrimas, ela transportava-a para uma prosa que
não tinha relação alguma com a literatura conhecida, uma prosa de
que não se podia, por analogia, encontrar os antecedentes senão
nos painéis do século xv.
E sobretudo, ela era completamente iletrada, não tinha lido
livro algum, nem visto nenhuma tela; contava singelamente, des­
pretensiosamente, tudo o que distinguia nos seus êxtases.
Os quadros da Paixão desenrolavam-se à sua vista, enquanto
que, deitada num leito, triturada pelos sofrimentos, sangrando pelos
buracos dos seus estigmas, gemia e chorava, aniquilada de amor e
de piedade, diante das torturas de Cristo.
À sua palavra, que um copista consignava,* o Calvário elevava-
-se, e toda uma turbamulta de soldadesca ignóbil se precipitava
sobre o Salvador e o enlameava; surgiam pavorosos episódios de
Jesus encadeado a urna coluna, contorcendo-se como um réptil, sob
os estalidos dos látegos, depois caindo, olhando com os seus olhos
desfeitos para hetairas que se davam as mãos entre si e recuavam,
desgostosas, do seu corpo torturado, da sua face coberta, como de
uma rede vermelha, por filetes de sangue.
E, lentamente, pacientemente, não parando senão para soluçar,
ou pedir misericórdia, ela pintava os soldados arrancando as vestes
coladas às chagas, a Virgem chorando, o rosto lívido e a boca arro-
xeada; relatava ainda a agonia do carregar da cruz, as quedas sobre
os joelhos, e ficava prostrada, extenuada, quando chegava à morte.
Era um espantoso espectáculo, narrado com minúcia e for­
mando um conjunto sublime e horrível. O Redentor estava esten­
dido sobre a cruz deitada por terra; um dos algozes enterrava-lhe
um joelho nas costelas, enquanto que outro alargava os dedos, e um
terceiro martelava sobre um cravo, de cabeça achatada, da largura
de uma moeda, e tão longo que a ponta trespassava do outro lado
do madeiro. E quando a mão direita já estava pregada, os verdugos
viram que a esquerda não chegava ao buraco que tinham perfurado;
então ataram uma corda ao braço e puxaram por ele com todas as

* Zeitblom (1455-1518); Grünewald (1460-1528); Roger Van der Weiden (?-


-1464): Dirk Bouts (1415-1475). [N.R.]
* Referência ao poeta Clemens Brentano, que registou as visões de
Catarina Emmerich. [N.R.]

148
A CAMINHO

suas forças, e deslocaram-lhe a espádua; ouviam-se os gemidos do


Senhor entrecortando as marteladas, via-se-lhe o tórax que arfava,
elevando um ventre sulcado por horrorosas contorções.
E a mesma cena se reproduzia para conter os pés. Também
eles não chegavam ao lugar que os executores tinham marcado. Foi
preciso ligar o tronco, atar os braços para que as mãos não se des-
pegassem do madeiro, estender depois as pernas, alongá-las até à
travessa sobre a qual deviam pousar; de repente, o corpo inteiro
estoirou, as costelas correram por debaixo da pele, e o abalo foi tão
atroz que os verdugos recearam que os ossos se deslocassem, lace-
rando as carnes, e então apressaram-se a pôr o pé esquerdo sobre
o pé direito; mas agora as dificuldades recomeçaram, os pés enrija-
ram-se, e tiveram que furá-los com um trado para os fixar.
E isto continuava assim até Jesus morrer, e então a soror
Emmerich, terrificada, perdia o conhecimento e desmaiava; os seus
estigmas reabriam-se e sangravam, e da sua cabeça crucificada tam­
bém chovia sangue.
Neste livro via-se formigar a matilha dos Judeus, escutavam-se
as imprecações e os apupos da multidão, contemplava-se uma
Virgem que tremia com febre, uma Madalena, fora de si, tornada ter­
rível com os seus gritos, e, dominando o lamentável grupo, um
Cristo macilento e inflado, enredando as pernas na sua túnica
quando subia ao Gólgota, e crispando as suas unhas quebradas na
cruz que lhe escorrega das mãos.
Vidente extraordinária, Catarina Emmerich descrevera também
as cercanias destas cenas, as paisagens da Judeia, que nunca tinha
visto, e que depois se reconheceram ser exactas; sem o saber, sem
mesmo o querer, esta iletrada tornou-se uma solitária, uma poderosa
artista!
Ah! Que admirável visionária e que admirável pintor! - excla­
mou Durtal. - E também que admirável santa! - dizia, percorrendo
a vida desta religiosa, que figurava no prefácio do livro.
Nascera em 1774, no Bispado de Munster, de aldeões pobres.
Desde a sua infância, tem colóquios com a Virgem e possui o dom
que tiveram igualmente Santa Sibilina de Pavia, Ida de Lovaina, e
mais recentemente, Louise Lateau, de discernir, considerando-os,
tocando-os, os objectos bentos dos que o não foram. Entra como
noviça nas Augustinianas de Dulmen, pronuncia aos vinte e nove
anos os seus votos; e a sua saúde arruina-se, incessantes dores tor-
turam-na; ela ainda as agrava, porque, do mesmo modo que a Bem­
-aventurada Lidvina, obtém do Céu a permissão de sofrer pelos
outros, e de aliviar os enfermos, apoderando-se dos seus males. Em

149
J.-K. HUYSMANS

1811, sob o governo de Jerónimo Bonaparte, rei da Westfália, o con­


vento é suprimido e as monjas dispersas. Enferma, sem recursos; é
transportada para um quarto de um albergue, onde sofre todas as
curiosidades e todos os insultos. Cristo aumenta-lhe ainda o seu
martírio, concedendo-lhe os estigmas que ela implora; depois não
pode mais, nem levantar-se, nem andar, nem sentar-se; não se nutre
com mais do que o sumo de uma cereja, mas deleita-se em longos
êxtases. Ela viaja assim pela Palestina, segue, passo a passo, o
Salvador, dita, gemendo, esta obra apaixonada, depois diz, em ago­
nia: «Deixai-me morrer na ignomínia com Jesus sobre a cruz», e
morre, arroubada de alegria, agradecendo ao céu esta vida de suplí­
cios que tinha sofrido!
- Ah! Sim, eu levo comigo a Dolorosa Paixãol - exclamou
Durtal.
- Leve também os Evangelhos - disse o abade que chegou
neste entrementes - , serão as celestes ampolas de onde tirará o óleo
necessário para pensar as suas chagas.
- O que seria igualmente bem útil e de acordo com a atmos­
fera de uma Trapa, seria poder ler, na própria abadia, as obras de
São Bernardo; mas elas compõe-se de pesadíssimos e inimagináveis
in-fólios, e as reduções e os extractos, que se inseriram em tomos
de formato cômodo, são tão mal escolhidos que nunca tive a cora­
gem de adquiri-los.
- Na Trapa há todas as obras de São Bernardo, e emprestar-lhe-
-ão os seus volumes se os pedir; mas como está sob o ponto de vista
da alma? Como vai isso?
- Estou cheio de melancolia; e pouco enternecido, mas enfim
resignado. Ignoro se a lassidão me sobreveio por estar sempre a
girar, assim como um cavalo de manejo, sobre a mesma pista; mas
agora já não sofro. Estou persuadido de que este deslocamento é
necessário e que seria inútil teimar... É o mesmo - continuou após
um silêncio - , é tudo quanto há de mais engraçado para mim
quando penso que vou encarcerar-me num claustro; e, verdade, ver­
dade, isto espanta-me!
- Confesso-lhe também - disse o abade rindo-se - que nem
sequer suspeitei, quando o vi pela primeira vez em casa de
Tocane, que estava indicado para o guiar para um convento; ora
aqui está com o eu devo pertencer à categoria desses a quem eu
chamaria de bom grado as pessoas-passagens; são de algum
modo intermediários involuntários de almas que lhes são envia­
das com um fim que nem sequer se suspeita e que elas mesmas
ignoram.

150
A CAMINHO

- Nesse caso, se alguém serviu de passagem, esse alguém foi


Tocane - respondeu Durtal - porque foi ele quem nos reuniu e a
quem nós repelimos com o pé, logo que acabou de cumprir o seu
inconsciente papel; nós estávamos evidentemente designados para
nos conhecermos.
- Justamente - disse o abade que sorriu —; agora não sei se o
tornarei a ver antes da sua partida, porque tenho de estar amanhã
em Mâcon onde ficarei uns cinco dias, o tempo necessário para ver
os meus sobrinhos e prestar a minha assinatura a umas exigências
de notário; em todo o caso, tenha sempre coragem, e não se des­
cuide de me mandar notícias suas, sim? Escreva-me sem demora
para que logo ao entrar em Paris eu receba a sua carta.
E como Durtal lhe agradecia a sua diligente afeição, ele pegou-
-lhe na mão e reteve-a entre as suas.
- Deixemos isso - disse - ; não deve agradecer senão Àquele
cuja paternal impaciência interrompeu o sono tenaz da sua Fé; não
deve reconhecimento senão a Deus só! Renda-lhe graças, renun­
ciando o mais cedo possível à sua natureza, deixando-Lhe vazio o
aposento da sua consciência. Quanto mais morrer para si mesmo,
mais bem Ele viverá em si. A oração é o meio ascético mais potente
para desprender-se, esvaziar-se, para tornar-se humilde até a esse
ponto; reze então, na Trapa, sem descanso. Implore sobretudo a
Nossa Senhora, porque Ela, semelhante à mirra que consome a
podridão das chagas, cura as úlceras da alma; pelo meu lado, rezar-
-Lhe-ei o melhor que puder por sua intenção. Poderá, assim na fra­
queza, apoiar-se, para não cair, a esta firme e tutelar coluna da ora­
ção de que Santa Teresa fala. Avante, pois, e ainda mais uma vez,
boa viagem e até breve, meu filho, adeus!
Durtal ficou inquieto. - É pouco oportuno - disse consigo - que
este padre se vá de Paris, antes de mim, porque, se eu tiver ânsia de
um subsídio espiritual e de uma assistência, a quem me hei-de diri­
gir? Decididamente está escrito que acabarei tal qual comecei, sozi­
nho; mas... mas... a solidão nestas condições é consternadora! Ah! Eu
não estou de todo corrupto! Ainda que o abade o diga.
Na manhã seguinte, Durtal acordou adoentado; uma nevralgia
furiosa perfurava-lhe as fontes; tentou reduzi-la com um analgésico,
mas o medicamento alterou-lhe o estômago, sem amortecer as vol­
tas do trado que lhe varava o crânio. Ele correu toda a casa, pas­
sando de uma cadeira à outra, enterrando-se numa poltrona, e
levantando-se para se deitar na cama; depois saltava do leito com o
coração em sobressalto, cambaleando por momentos à roda dos
móveis.

151
J.-K. HUYSMANS

Não podia assinalar causa alguma precisa; tinha dormido bem


o seu sono, e não se tinha entregado na véspera a excessos.
Com a cabeça entre as mãos, dizia consigo mesmo: - A dois
dias de deixar Paris! Pois bem, se não estou em condições agora,
quando o estarei? E como é que, com a alimentação da Trapa, pode­
rei estar seguro da minha empresa?
Por espaço de um minuto veio-lhe um refrigério à ideia de que,
sem cometer uma falta, poderia talvez evitar a penosa oblação, e
ficar em sua casa; mas a reacção foi imediata; compreendeu que se
não se decidisse estava perdido. Era, num estado permanente, o
balouçar da alma, a crise do desgosto de si mesmo, o pesar lanci­
nante de um esforço penosamente consentido e de repente errado;
era enfim a certeza de que era preciso tornar a passar por estas
alternâncias de revolta e de terror, recomeçar a bater-se consigo
mesmo para se convencer!
Admitindo mesmo que eu não esteja em condições de viajar,
terei sempre o recurso de me confessar ao abade quando ele voltar,
e de comungar em Paris - pensou; mas sacudia a cabeça, afirmava
ainda e sempre que sentia que não era isto o que devia fazer. - Mas
então - dizia ele a Deus - já que enterrais esta ideia tão violenta­
mente em mim, que não posso mesmo discuti-la, não obstante o seu
perfeito bom senso (porque apesar de tudo, não é indispensável,
para que nos reconciliemos emparedarmo-nos numa Trapa!), então
deixai-me partir!
E, docemente, ele falou-Lhe:
A minha alma é como um mau lugar; ela é sórdida e má; não
tem amado até aqui senão as perversões; exigiu cio meu desgraçado
corpo o dízimo das delícias ilícitas e das alegrias indevidas; ela
pouco vaie ou não vale nada; e contudo, aí ao Vosso lado, se me
socorrerd.es, creio bem que a humilharei; mas se o meu corpo está
doente, não posso forçá-lo a obedecer-me! Isto é pior que tudo! Fico
desarmado se Vós não vindes em minha ajuda!
Atendei-me, Senhor! Eu sei por experiência, que desde que me
alimente mal, sobrevêm-me as nevralgias; humanamente, logica­
mente, estou certo de que hei-de sofrer horrores em Nossa Senhora
do Lar, todavia, se me puder pôr de pé depois de amanhã eu sem­
pre irei.
À falta de amor, a única prova que posso dar-Vos, é que ver­
dadeiramente eu desejo~Vos, e que verdadeiramente tenho espe­
rança e creio em Vós; mas então, Senhor, não me abandoneis!
E melancolicamente acrescentou: - Mas, que loucura! Eu não
sou Lidvina ou Catarina Emmerich que, quando as ferieis, gritavam:

152
A CAMINHO

- mais! - Vós apenas me tocais, e já eu reclamo; mas que quereis.


e sabei-lo melhor que eu, a dor física abate-me, desespera-me!
Acabou por deitar-se, por matar o dia no seu leito, ciormitando
e despertando-o em sobressalto terríveis pesadelos.
No dia seguinte tinha a cabeça estonteada, o coração palpi­
tante, mas as nevralgias eram menos fortes. Levantou-se então, e
disse de si para consigo que, posto que não tivesse fome, era pre­
ciso a todo o preço comer, com receio de ver os seus males reavi­
varem-se. Depois saiu, vagueou pelo Luxembourg, dizendo consigo:
- Convém regular o emprego do meu tempo; visitarei Saint-Séverin
depois do almoço, entrarei em seguida em casa para preparar as
minhas malas; depois acabarei o meu dia em Notre-Dame-des-
-Victoires.
O passeio fez-lhe bem; tinha a cabeça mais aliviada, e o cora­
ção desopresso. Entrou num restaurante onde, por causa da hora
matinal, nada havia pronto; depois sentou-se num banco, diante de
um jornal. Quantas vezes tinha estado assim em frente de jornais
sem nunca os ler! Quantas noites se demorava pelos cafés, pen­
sando em outras coisas, debruçado sobre um artigo! Era no tempo
sobretudo em que ele se emaranhava nos seus vícios. Florence sur­
gia então, e ele sobressaltava-se, porque apesar do tumulto ininter­
rupto da sua vida, brincava agora nos lábios dela o claro sorriso de
uma gaiata que se vai, de olhos baixos, as mãos nas algibeiras do
seu avental, a caminho da escola.
E de súbito a criança metamorfoseava-se num vampiro que vol­
teava furiosamente em torno de si, mordia-o, fazia-lhe silenciosa­
mente compreender, contorcendo-se, o horror dos seus desejos...
E eles corriam~lhe por todo o corpo, nesta languidez terrível da
tentação, nesta dissolução da vontade que se traduzia por uma espé­
cie de mal-estar das extremidades do corpo; e ele cedia então,
seguia a imagem de Florence, e ia juntar-se a ela em sua casa.
Quanto tudo isto estava longe! Ao raiar do dia seguinte, o
encanto desmanchava-se, e sem lutas reais, sem esforços verdadei­
ros, sem rixas interiores, tinha-se abstido de tornar a vê-la, e agora,
quando ela voltava à sua memória, não era mais que uma recorda­
ção odiosa e doce.
Desejava saber - murmurou Durtal, cortando o seu bife - o que
ela pensará a respeito de mim; julga-me evidentemente morto ou
perdido; felizmente que nunca tive correspondência com ela, como
também desconhece a minha morada!
Vamos lá - continuou - é inútil estar a revolver o meu lodo;
terei tempo disso quando estiver na Trapa - e estremeceu, porque

153
J.-K. HUYSMANS

a ideia do confessor implantava-se de novo nele; tinha que repetir


a si mesmo, pela vigésima vez, que não seria como o julgava, e afir­
mar que aí se lhe depararia um bom monge para ouvi-lo, e ele per­
turbou-se, olhando as coisas pelo pior, vendo-se repelido, lançado
fora, assim como um cão sarnento.
Depois deu fim ao seu almoço e dirigiu-se até Saint-Séverin; aí,
a crise desencadeou-se. Foi o fim de tudo. A alma cansada desmo­
ronou-se, abalada por uma congestão de tristeza.
Jazia sobre uma cadeira, num tal estado de aniquilamento que
nem sequer dava acordo de si; permanecia inerte, sem forças para
sofrer; depois, pouco a pouco, a alma, anestesiada, voltou a si e as
lágrimas correram.
Estas lágrimas aliviaram-no; então chorou a sua sorte, julgou-a
tão desgraçada, tão digna de piedade, que esperou desde então uma
ajuda, e não ousava contudo dirigir-se a Cristo que julgava menos
acessível, mas falava, baixinho, à Virgem, pedindo-lhe para interce­
der por ele, murmurando esta oração em que São Bernardo recorda
à Mãe de Cristo que, de memória humana, nunca se ouviu dizer que
Ela abandona nenhum daqueles que imploram a sua assistência.
Deixou Saint-Séverin, consolado, mais resoluto, e, ao entrar em
casa distraiu-se com os preparativos da partida. Receando lá faltar-
-lhe de tudo, estava resolvido a abarrotar a sua mala; amontoava em
cada canto: açúcar, pacotes de chocolate para tentar enganar, se
tivesse necessidade disso, as angústias do estômago em jejum;
levava guardanapos, pensando que na Trapa seriam raros; prepa­
rava provisões de tabaco, de fósforos; e por cima dos livros ia papel,
lápis, tinta, pacotes de antipirina, um vidro de láudano que ele
escondeu por debaixo dos lenços, e entre as peúgas.
Quando afivelou a sua mala, disse consigo olhando para o reló­
gio: - A esta hora, amanhã, eu abalarei numa carruagem, e o meu
internamento está próximo; no entanto, farei bem, na previsão de
um desfalecimento corporal, em chamar o confessor, logo à minha
chegada; supondo mesmo que isto se anuncie mal, terei ainda tempo
de preparar o necessário, e tomarei imediatamente o comboio.
Não quer mesmo dizer que haja algum mau momento a pas­
sar - murmurava, ao entrar em Notre-Dame-des-Victoires, à noite;
mas os seus cuidados, as suas em oções apagaram-se quando che­
gou a hora da Bênção. Arrebatara-o a vertigem desta igreja e ele
rolou-se, imergiu-se, perdeu-se na oração, que subia de todas as
almas nos cânticos que se elevavam de todas as bocas; e quando a
custódia avançou, persignando o ar, sentiu então uma imensa paz
descer sobre ele.

154
A CAMINHO

E à noite, ao despir-se, suspirou: - Amanhã, já dormirei numa


cela; e é algum tanto para admirar quando se pensa nisso! Como
teria apodado de louco todo aquele que me tivesse predito, há
alguns anos, que eu me refugiaria numa Trapa! E se ainda me diri­
gisse para aí, por minha própria vontade! Mas não, eu vou, impe­
lido por uma força ignorada, vou assim como um cão que se enxota
e fustiga!
No fundo, que sintoma dos tempos! - continuou. - É necessá­
rio que a sociedade esteja bem imunda para que Deus já não tenha
o direito de se mostrar difícil, para que se veja obrigado a recolher
tudo o que encontra, a contentar-Se, por levar a Si, gente seme­
lhante a mim.

155
SEGUNDA PARTE
I

Durtal despertou, alegre, expedito, espantando-se de não ouvir


os seus gemidos, agora que tinha chegado o momento de partir para
a Trapa; estava, pois, incrivelmente tranqüilo. Tentou recolher-se e
orar, porém sentiu-se mais disperso, mais nómacla ainda que de cos­
tume; permanecia indiferente e imóvel Surpreendido por este resul­
tado, quis auscultar-se e palpou o vácuo; tudo o que pôde averiguar
foi que nessa manhã estava numa dessas súbitas disposições em que
o homem se torna criança, incapaz de atenção, num desses momen­
tos em que o avesso das coisas desaparece, em que tudo nos deleita.
Vestiu-se à pressa, subiu a uma carruagem, e desceu na gare
muito antes da hora; aí, apoderara-se dele um acesso de vaidade
verdadeiramente pueril. Ao ver toda essa gente que percorria as
salas, que sapateava diante dos guichets, ou acompanhava, resig­
nada, as bagagens, quase que se admirou. - Se estes viajantes, que
não se interessam senão pelos seus prazeres ou pelos seus negócios,
soubessem para onde eu vou! - pensou então.
Depois censurou-se da estupidez destas reflexões, e uma vez
instalado no seu compartimento, onde teve a felicidade de ficar só,
acendeu em seguida um cigarro, dizendo consigo: - Aproveitemos
este pouco tempo que nos resta para fumar - e pôs-se a vagabun­
dear, a cismar nas paragens dos claustros, a rodar pelas cercanias da
Trapa.
Recordava-se de que uma revista tinha já avaliado em duzen­
tos mil o número de religiosos e monges em França.
Duzentas mil pessoas que numa semelhante época compreende­
ram a perversidade da luta pela vida, a imundice dos coitos, o horror
das parturições, é, em suma, a honra de um país salvo - disse consigo.
Depois, saltando das almas conventuais aos alfarrábios que
havia enfileirado na sua mala, continuou: - É mesmo muito curioso
ver-se quanto o temperamento da arte francesa é rebelde à Mística!

159
J,-K. HUYSMANS

Todos os escritores supra-elevados são estrangeiros. São


Dionísio Areopagita é grego; Eckhart, Tauler, Suso, a soror Emmerich
são alemães; Ruysbroeck é originário de Flandres; Santa Teresa, São
João da Cruz, Maria de Ágreda, são espanhóis; o padre Faber é
inglês; São Boaventura, Ângela de Foligno, Madalena de Pazzi,
Catarina de Gênova, Tiago de Voragine são italianos...
Ah! - exclamou surpreendido com este último nome que aca­
bava de citar eu devia levar a sua Legenda Áurea na minha baga­
gem; como é que não me lembrei disso, porque afinal esta obra era
o livro de cabeceira da Idade Média, o estimulante das horas enlan-
guescidas pelo mal-estar prolongado dos jejuns, o ajudante ingênuo
das vigílias piedosas. Para as almas mais suspeitosas da nossa época,
a Legenda Áurea aparece, pelo menos ainda, tal como um desses
pergaminhos em que cândidos iluminadores pintaram figuras de
santos a água de goma ou a clara de ovo, em fundos de ouro. Tiago
de Voragine é o Jehan Fouquet, o André Beauneveu* da miniatura
literária, da prosa mística!
É decididamente absurdo o ter-me esquecido este volume, por­
que só ele teria o condão de fazer-me passar e relembrar antigos e
preciosos dias, na Trapa!
Sim, isso é estranho - prosseguiu, tornando atrás, voltando à
sua primeira ideia - , a França conta autores religiosos mais ou
menos célebres, mas muito poucos escritores místicos propriamente
ditos; e dá-se o mesmo com a pintura. Os verdadeiros Primitivos são
flamengos, alemães ou italianos; nenhum deles é francês, porque a
nossa escola borgonhesa é originária da Flandres.
Não, não se pode negar; a compleição da nossa raça não é evi­
dentemente dúctil em seguir, em explicar as obras de Deus laborando
no centro profundo da alma, aí, onde está o ovário dos pensamentos,
a própria nascente das concepções; ela é refractária em restituir pela
força expressiva das palavras o ruído ou o silêncio da graça rutilando
no domínio arruinado das faltas, é inapta em extrair deste mundo
secreto obras de psicologia, como as de Santa Teresa e de São João
da Cruz, e de arte, como as de Voragine ou da soror Emmerich.
Além de o nosso campo ser pouco arável e de o solo ser
ingrato, onde encontrar agora o lavrador que a semeie, que a grade,
que prepare, não uma seara mística, mas somente uma colheita
espiritual, capaz de alimentar a fome dos que erram, perdidos, e
caem de inanição no deserto gelado destes tempos?

* Fouquet (c. 1420-1480), pintor de miniaturas, e Beauneveau (séc. xiv),


escultor e miniaturista. [N.R.]

160
A CAMINHO

Aquele que deve ser o cultivador do além, o rendeiro das


almas, o padre, está sem forças para arrotear as charnecas e os mata­
gais.
No seminário fizera-se autoritário e pueril, e a vida exterior tor-
nou-o tíbio. E assim, parece que Deus se desviou dele, e a prova é
que retirou quase todo o talento ao sacerdócio. São os leigos os
herdeiros desta graça tão espalhada pela Igreja na Idade Média. Um
outro exemplo é a prova: os eclesiásticos só muito raramente ope­
ram conversões. Hoje, o ser que agrada ao Céu passa por entre eles
despercebido, e é o Salvador quem o percute, quem o manipula,
quem manobra directamente nele.
A quase geral ignorância do clero em França, a sua educação
acanhada, a sua ininteligência dos meios, o seu desprezo pela
Mística, a sua incompreensão da arte tiraram-lhe toda a influência
sobre o patriciado das almas; já não influencia mais do que os cére­
bros infantis de beatos e santanários; é sem dúvida providencial, é
sem dúvida melhor assim, porque se se tornasse o mestre, se ele
chegasse a içar, a vivifícar a desoladora tribo que ele governa, seria
a tromba do disparate clerical a abater-se sobre um país, seria o fim
de toda a literatura, o fim da arte em França!
Para salvar a Igreja resta o monge, que o padre aborrece, por­
que a vida do claustro é para a sua existência uma constante acu­
sação - continuou Durtal - ; contanto que eu não perca estas ilusões,
ao ver de perto um mosteiro! Mas não, eu pareço protegido pela
sorte; descobri, em Paris, um dos únicos abades que não foi um
indiferente, nem um pedante; por que razão não hei-de estar em
contacto com autênticos monges numa abadia?
Depois acendeu um cigarro, examinou o lugar pela portinhola
da carruagem. O comboio descia pelas campinas, por diante das
quais dançavam, entre volutas de fumo, os fios do telégrafo; a pai­
sagem era chã, sem interesse algum. Durtal atirou-se para o seu
canto.
A chegada ao convento inquieta-me — murmurou - , mas não
tenho que proferir inúteis palavras, limitar-me-ei apenas a apresen­
tar ao padre hospedeiro a minha carta de introdução; oh!, sim,
depois tudo se arranjará!
E assim sentia dentro em si uma placidez perfeita, admirava-se
de não experimentar sobressalto algum, nenhum receio de estar
pouco cheio de alegria viva. - Sim, o meu excelente padre tinha
razão em sustentar que eu forjava monstros com antecipação... - e
tornou a pensar no abade Gévresin, ficando surpreendido, desde
que começou a relacionar-se com ele, de nada saber dos seus ante­

161
J.-K. HUYSMANS

cedentes, de não ter mais penetrado na sua intimidade do que no pri­


meiro dia; de facto, ninguém senão eu, poderia interrogá-lo discreta­
mente, mas não me tinha vindo essa ideia. É verdade que a nossa
ligação se confinou exclusivamente a questões de religião e arte. Esta
perpétua reserva não cria amizades vibrantes, mas institui uma espé­
cie de jansenismo de afeição que não é despida de encantos.
Em todo o caso, este eclesiástico é um santo homem; nem
mesmo tem o porte reservado dos outros padres. Exceptuando
alguns gestos seus, o seu modo de fazer surgir os braços da cintura,
de introduzir as mãos nas mangas, de andar naturalmente às recuas
quando se conversa, e salvo a sua inocente mania de entremear
latim nas suas frases, ele não recorda nem a atitude nem o falar dos
seus confrades. Ele adora a mística e o canto gregoriano. É um
homem excepcionai. E como ele me foi tão cuidadosamente esco­
lhido lá no alto!
- Ah!, parece-me que estamos a chegar - suspirou consultando
o relógio - e eu começo já a ter fome; mas, no entanto, dentro de
um quarto de hora estaremos em Saint-Landry.
Depois pôs-se a tamborilar nos vidros, olhou para a corrida
vertiginosa dos campos, para o voo fugaz dos bosques, em seguida
fumou alguns cigarros, até que chegou à estação, pegou na sua mala
e desceu.
No mesmo local onde se elevava a minúscula gare, reconheceu
a estalagem que lhe tinha indicado o abade. Foi ter à cozinha onde
uma boa mulher lhe disse: - Queira sentar-se, senhor, estará pronto
o carro enquanto janta.
E aí viu-se obrigado a comer de coisas incomestíveis.
Trouxeram-lhe uma cabeça de vitela perdida numa celha, costeletas
mortificadas, legumes enegrecidos pelo molho das sertãs. Nas dis­
posições em que estava, divertiu-se com este jejum infame, provou
de um detestável vinho, espécie de água-pé, que arranhava a gar­
ganta, e bebeu resignado um café que depositava terra no fundo das
chávenas.
Depois escalou uma carripana que um rapaz guiava e, com o
ventre pelo chão, o cavalo correu à desfilada através da aldeia e
enveredou pela campina.
Pelo caminho, perguntou ao condutor alguns esclarecimentos
a respeito da Trapa, mas este aldeão nada sabia: - Vou aí às vezes
- disse - mas não entro lá; o carro fica sempre à porta, por isso nada
posso saber.
Galoparam, por espaço de uma hora pelos caminhos; depois o
aldeão saudou com o chicote um cantoneiro e dirigindo-se a Durtal:

162
A CAMINHO

- Diz-se por aí que as formigas lhes roem o ventre.


E como Durtal reclamava explicações.
- Sim, é o que acontece aos preguiçosos. Eles estão sempre
deitados, no verão, com a barriga à sombra.
E calou-se.
Durtal não pensava em coisa alguma; fazia a digestão, sempre
fumando, atordoado pelos balouços da carruagem.
Ao cabo de outra hora, desembocaram em pleno bosque.
- Estamos próximos?
- Ainda não.
- Vê-se de longe a Trapa?
- Oh! Não. É quase impossível, porque está num vale pro­
fundo, ao sair de uma álea. Ora veja, parece-me aquela - disse o
campónio, indicando um caminho cheio de arvoredo que iam
tomar.
- E acolá vem um deles - disse, designando uma espécie de
vagabundo, que atravessava a mata a grandes passos.
E ele explicou a Durtal que todo o mendigo tinha o direito de
comer e mesmo de dormir na Trapa; serviam-lhe o ordinário da
comunidade num salão ao lado do cubículo do irmão porteiro, mas
não penetrava no convento.
E Durtal, interrogando-o sobre a opinião das aldeias vizinhas a
respeito dos monges, o campónio teve sem dúvida receio de com­
prometer-se, porque respondeu:
- Não dizem nada.
Durtal começava a aborrecer-se, quando enfim, ao virar de
uma álea, avistou uma imensa construção, ao fundo.
- Lá está a Trapa! - disse o aldeão, que preparou as rédeas para
a descida.
Da altura em que estava, Durtal mergulhou a vista por sobre os
tectos, e entreviu um grande jardim e bosques, e na sua frente uma
formidável cruz sobre a qual se contorcia um Cristo.
Depois a visão desapareceu; a tipóia corria sempre através das
matas, descia por caminhos entrelaçados cuja folhagem interceptava
a vista.
Desembocaram enfim, depois de lentos circuitos, numa encru­
zilhada em cuja extremidade se levantava um alto muro, furado de
uma larga porta. A traquitana parou.
- Agora tem que tocar a campainha - disse o aldeão, indicando
a Durtal uma cadeia de ferro pendente ao longo do muro, e acres­
centou:
- Será necessário voltar aqui, amanhã?

163
J.-K. HUYSMANS

- Não.
- Então fica? - e o campónio olhou-o estupefacto, depois vol­
tou as rédeas e tornou a subir a encosta.
Durtal estava aniquilado, com a mala a seus pés, diante desta
porta; o coração batia-lhe violentamente; toda a sua segurança e
toda a sua expansão fogosa lhe desaparecia; e balbuciava com
custo: - O que me espera lá dentro?
Num galope de pânico, passava-lhe ante os olhos toda a terrí­
vel vida das Trapas: o corpo mal alimentado, extenuado de sono,
prostrado horas e horas sobre o lajedo, com a alma tremente, opri­
mida, conduzida militarmente, sondada, folheada nas suas menores
pregas; e, considerando este desbarato da sua existência malograda,
semelhante aos salvados de um naufrágio, via a extensão desta
ribanceira feroz, o mutismo desta prisão, o silêncio pavoroso dos
túmulos!
- Meu Deus, meu Deus, tende piedade de mim - disse, enxu­
gando a fronte.
Maquinalmente lançou uma vista de olhos ao redor de si, como
se esperasse uma assistência, mas os atalhos estavam desertos e os
bosques vazios, e nem o menor ruído se ouvia no campo ou na
Trapa.
- É preciso que me resolva a tocar a sineta - e com as pernas
a fraquejarem puxou pelo cadeado.
Um som metálico, pesado, enferrujado, quase rabugento, reti­
niu do outro lado do muro.
- Alto, não sejamos ridículos - murmurava, escutando o ruído
de matraca que um par de tamancos fazia por detrás da porta.
Esta abriu-se e um monge muito velho, vestido com o burel
escuro dos capuchinhos, interrogou-o com o olhar.
- Eu vinha para um retiro, e queria ver o Padre Estêvão...
O monge inclinou-se, pegou na mala e fez sinal a Durtal que
o seguisse.
Caminhava, curvado, com passo miúdo, através de um pomar.
Chegaram depois a uma grade de ferro e dirigiram-se à direita de
uma vasta construção, uma espécie de grande casa arruinada, flan-
queada de duas alas, avançando por uma cerca adentro.
O irmão entrou na ala que chegava até à gradaria. Durtal
enfiou atrás dele por um corredor, furado de portas pintadas de cin­
zento; por cima de uma delas leu esta palavra: «Auditório».
O trapista parou diante dela, levantou uma tranqueta de pau,
levou Durtal a um salão, e ouviram-se, ao cabo de alguns minutos,
repetidas chamadas de sineta.

164
A CAMINHO

Durtal sentou-se, e pôs-se a examinar este gabinete muito som­


brio, porque a janela estava meia tapada por portadas. Havia aí por
único mobiliário: ao meio, uma mesa de sala de jantar coberta de
um velho tapete; num canto um genuflexório, por cima do qual
estava pregada uma imagem de Santo Antônio, embalando o
Menino Jesus nos braços; um grande Cristo pendia da outra parede;
e aqui e ali estavam enfileiradas duas poltronas e quatro cadeiras.
Durtal tirou da carteira a carta de introdução destinada ao
padre. - Que tal me receberá? - perguntava de si para consigo. - Ele
ao menos poderá falar-me; enfim vamos a ver - continuou, ouvindo
passos,
E um monge, vestido de branco com um escapulário negro,
cujos panos caíam, um sobre as costas e outro sobre o peito, apa­
receu então; era ainda novo e sorria.
Leu a carta; depois tomou Durtal pela mão, que, espantado, o
seguia através do cerrado para a outra ala da edificação, em seguida
empurrou uma porta, molhou a ponta de um dedo numa pia de
água benta e apresentou-lho.
Estavam, pois, numa capela. O monge convidou Durtal por um
sinal a ajoelhar-se sobre um degrau diante do altar, e pôs-se a rezar
em voz baixa; depois levantou-se, voltou lentamente até ao limiar
da porta, ofereceu ainda água benta a Durtal e, sempre sem des-
cerrar os lábios e tendo-o pela mão, levou-o de novo até donde
tinham vindo, ao auditório.
Aí, perguntou então pela saúde do abade Gévresin, pegou na
mala e subiram ambos uma imensa escadaria que ameaçava ruir. No
alto desta escada, que não tinha senão um andar, estendia-se, esbu­
racado por uma janela ao centro, um vasto patamar, limitado em
cada uma das suas extremidades por uma porta.
O padre Estêvão penetrou na da direita, transpôs um espaçoso
vestíbulo, introduziu Durtal numa pequena sala que um letreiro,
impresso em grandes caracteres, colocava sob o nome de São
Bento, e disse:
- Estou envergonhado, senhor, de não poder pôr à sua dispo­
sição senão este alojamento tão pouco confortável.
- É muito bom - exclamou Durtal. - E as vistas são encanta­
doras - continuou, aproximando-se da janela.
- Pelo menos terá bons ares - disse o monge que abriu a
vidraça.
Por debaixo estendia-se esse vergel que Durtal tinha atraves­
sado quando era guiado pelo irmão porteiro, uma cerca cheia de
maqueiras enfezadas e anãs, prateadas pelos líquenes e douradas

165
J.-K. HUYSMANS

pelos musgos; depois, fora do mosteiro, por cima dos muros, trepa­
vam campos de luzerna cortados por um grande caminho esbran­
quiçado que desaparecia no horizonte recortado pelas folhagens das
árvores.
- Veja bem, senhor - continuou o padre Estêvão - , o que lhe
falta nesta cela, e diga-mo francamente, sim? Porque de outro modo
dará a nós ambos um desgosto, a si por não ter ousado reclamar o
que lhe era útil, a mim, porque o perceberia mais tarde e me cau­
saria pena o meu esquecimento.
Durtal contemplava-o, tranqüilizado pelos seus modos francos.
Era um padre ainda novo, de trinta anos pouco mais ou menos.
O rosto vivo, delicado, era estriado nas faces por fibrilas cor-de-rosa;
este monge usava a barba comprida, e à volta da cabeça rapada cor­
ria um círculo de cabelos negros. Falava um pouco depressa, e sor­
ria sempre com as mãos metidas no largo cinto de couro que lhe
apertava a cintura.
- Voltarei dentro em pouco, porque tenho agora um trabalho
urgente - disse. - Daqui até lá trate de instalar-se o melhor possível;
se tiver tempo lance também uma vista de olhos sobre a regra que
tem de seguir neste mosteiro... ela está inscrita num destes cartões...
ali, sobre a mesa; depois, se o quiser, conversaremos a esse respeito,
quando já tiver conhecimento dela.
E deixou Durtal sozinho.
Este fez imediatamente o inventário do aposento. Era muito
alto de tecto, e muito pouco largo. Tinha a forma de um cano de
espingarda, a entrada era uma das suas extremidades e a janela a
outra.
Ao fundo, num canto, perto da janela, estava um pequeno leito
de ferro e uma mesa de noite redonda, de nogueira. Ao pé do leito,
encostado à parede, havia um genuflexório estofado de seda, já
coçado, e terminado por uma cruz e um ramo de pinheiro seco; cor­
rendo sempre ao longo da mesma parede, encontrou uma mesa de
pau, coberta com uma toalha, sobre a qual estavam colocados uma
bilha de água, uma pequena bacia e um copo.
O tabique oposto a esta parede era ocupado por um armário,
depois por um fogão em cujo caixilho estava aberto um crucifixo e
depois por uma mesa colocada defronte do leito, perto da janela;
completavam a mobília deste quarto três cadeiras de palha.
- Nunca terei água suficiente para o banho - disse consigo
Durtal, medindo com a vista a minúscula bilha, que levaria coisa de
um litro de água. - Já que o padre Estêvão se mostra tão obse-
quioso, vou pedir-lhe uma ração mais pesada.

166
A CAMINHO

Depois esvaziou a mala, despiu-se, substituiu a sua camisa


engomada por outra de flanela, alinhou os utensílios de toilleic
sobre o lavabo, e dobrou a sua roupa branca no armário; em
seguida, sentou-se, abraçou a cela com um olhar, e julgou-a sufi­
cientemente confortável e muito limpa sobretudo.
Dirigiu-se em seguida para a mesa, sobre a qual estavam dis­
persos uma resma de papel escolar, um tinteiro e penas. Devia esta
atenção ao monge que sabia sem dúvida pela carta do abade
Gévresin que ele era um homem de letras. Depois abriu dois volu­
mes encadernados em carneira e tornou-os a fechar. IJm era a
Introdução à Vida Devota de São Francisco de Sales, e o out.ro era
intitulado Manresa ou os Exercícios Espirituais de Inácio de Loyola,
e depois colocou os seus livros sobre a mesa.
Fm seguida, tomou ao acaso, uma das papeletas impressas que
estavam espalhadas pela mesa e leu:

.EXERCÍCIOS DA COMUNIDADE PARA OS DIAS ORDINÁRIOS


DA PÁSCOA ATÉ À CRUZ Dl- SETEMBRO

Levantar às 2 horas.
Prima e Missa às 5hl5.
Trabalho depois do capítulo.
Fim do trabalho às 9 horas e intervalo.
Sexta às 11 horas.
Angelus e jantar às llh 3 0 .
Sesta depois de jantar.
Fim da sesta à 13h30.
Noa e trabalho, 5 minutos após o despertar.
Fim do trabalho às I6h30 e intervalo.
Vésperas seguidas da oração às 17h lS .
Ceia às 18 horas e intervalo.
Completas às 19h25.
Retirada às 20 horas.

Voltou em seguida a papeleta; ela continha na outra face, um


novo horário, intitulado:

EXERCÍCIOS DE INVERNO
DA CRUZ DE SETEMBRO À PÁSCOA

O levantar era o mesmo, mas o deitar antecipava-se uma hora;


o jantar passava das llh 3 0 para as I4h; a sesta e a ceia das 18h eram

167
J.-K. HUYSMANS

suprimidas; as horas canônicas recuadas, excepto as Vésperas e as


Completas, que passavam das 17hl5 e das 19h25 para as l6h 30 e
para as 18hl5.
Não é nada agradável sair-se do leito em plena noite - suspi­
rou Durtal - mas quero crer que quem vem para retiro não é sub­
metido a este regime vigilante - e pegou noutro cartaz. - Este deve
ser-me destinado - disse, percorrendo o cabeçalho deste cartão:

REGULAMENTO DOS RETIROS


DA PÁSCOA ATÉ À CRUZ DE SETEMBRO

Vejamos de perto esta ordenança.


Examinou os seus dois quadros reunidos, o da manhã e o da
tarde.

MANHÃ TARDE

4 Levantar ao som do Angelus. 1 'A Fim do repouso, Rosário


4 A Prece e Meditação 2 Vésperas e Completas
5 'A Prima, Missa 3 3.a Meditação
6 às 7 Exame 3 '/, Leitura espiritual
7 Almoço (não se espera) 4 *A Matinas e Laudes
7 A Caminho da Cruz 5 'A Reflexões, Vésperas do coro
8 Sexta e Noa 5 'A Exame e oração
8 'A 2.a Meditação 6 Ceia e recreio
9 Leitura Espiritual 7 Litanias, grande silêncio
11 Adoração e Exame, Terço 7 ‘A Assistir a Completas
11 JA Angelus, jantar, recreio 7 '/* Canto do Salve Regina, Angelus
12 'A Sesta, grande silencio 7 V, Exame particular, retirada

É pelo menos mais prático - quatro horas da manhã, é quase


possível! Mas parece-me que não compreendo isto - as horas canô­
nicas não concordam neste quadro com as dos monges e depois por
que razão estão estas Vésperas e estas Completas dobradas?
Estes quadrozinhos de papel que nos incitam a meditar durante
tantos minutos, a ler durante tantos outros, não me elucidam muito!
Não tenho o espírito suficiente maleável para o aplicar nestas frio-
leiras! É verdade que apesar de tudo tenho a liberdade de fazer o
que me aprouver, porque ninguém poderá verificar o que se trama
dentro em mim, por exemplo, saber se medito...
Alto, está aqui por detrás um regulamento - prosseguiu, vol­
tando o cartão - , é o regulamento de Setembro. Não tenho de que
me inquietar. De resto, ele pouco difere do outro, mas está aqui um
post-scriptum que diz respeito aos dois horários.

168
A CAMINHO

NOTA

1.° As pessoas que não são obrigadas ao Breviário rezarão o


Pequeno Ofício da Santa Virgem.
2.° Todos os Senhores Retirantes são convidados a fazer a sua
confissão logo aos primeiros dias, a fim de ter o espírito mais livre
nas meditações.
3.° Depois de cada meditação convém ler um capítulo análogo
da Imitação.
4.° O tempo propício para as confissões e caminho da cruz é
das 6 horas até às 9 da manhã - 2 horas às 5 da tarde no verão, e
das 9 horas da manhã às 2 da tarde no resto.
5.° Ler o quadro das advertências.
6.° É bom ser pontual às horas das refeições para não fazer
esperar.
7.° O Padre Hospedeiro é o único encarregado de prover às
necessidades dos Senhores Hóspedes.
8.° Podem reclamar livros de retiro as pessoas que não os
tiverem.

A confissão! Ele não via mais do que essa palavra na série de


artigos. Afinal era-lhe necessário recorrer a ela! E então sentia cala­
frios ao longo da medula. - Hei-de falar nisso ao padre Estêvão
quando ele vier - disse consigo. Não teve que debater-se por
muito tempo, porque pouco depois entrava o monge, que lhe
disse:
- Notou alguma coisa que lhe falte, e que lhe seja útil?
- Não, meu padre; mas se me pudesse obter um pouco mais
de água...
- Nada mais simples; mandar-lhe-ei trazer todas as manhãs
uma grande bilha cheia dela.
- Agradeço-lhe muito. A propósito, acabo de estudar o regula­
mento...
- Vou já pô-lo ao corrente disso tudo. Só é obrigado à mais
estrita exactidão, e deve praticar os ofícios canônicos à letra. Quanto
ao exercícios marcados no cartaz, eles não são obrigatórios; assim
como estão organizados, podem ser úteis a indivíduos muito novos
ou desprovidos de toda a iniciativa, mas molestariam, a meu ver, os
outros; além disso, regra geral, nós não nos ocupamos dos retiran­
tes : deixamos actuar a solidão. É a si que pertence discernir e dis­
tinguir o melhor modo de empregar santamente o tempo. Assim, eu
não lhe imporei nenhuma das leituras designadas neste quadro;

169
J.-K. HUYSMANS

permitir-me-ei somente obrigá-lo a ler o Pequeno Ofício da Santa


Virgem; tem-no?
- Ei-lo - disse Durtal, que lhe estendeu um livrinho.
- É encantador o seu volume - disse o padre Estêvão, que se
pôs a folhear as suas páginas luxuosamente impressas a vermelho e
negro. Parou numa delas e leu em voz alta a terceira lição de Matinas.
- É belo! - exclamou; a alegria irradiava do seu rosto, os olhos
iluminaram-se, os dedos tremiam-lhe sobre o livro. - Sim - disse,
fechando-o leia este ofício, aqui sobretudo, porque, como sabe,
o verdadeiro abade da Trapa é a Santíssima Virgem!
Após um pequeno silêncio, continuou: - Fixei em oito dias a
duração do seu retiro na carta que enviei ao abade Gévresin, mas
se lhe não desgostar de estar aqui, poderá ficar até quando quiser.
- Desejo muito poder prolongar a minha estada entre vós, mas
isso dependerá do modo como o meu corpo suporte a luta; tenho
o estômago muito doente, e causa-me muita apreensão; assim, para
evitar qualquer eventualidade, pedir-lhe-ia o favor de me mandar no
mais breve possível o confessor.
- Bem, ele virá amanhã; dir-lhe-ei a hora, logo à tarde,
depois das Completas. A respeito da alimentação, se a julga insu­
ficiente, mandarei acrescentar-lhe o suplemento de um ovo; mas
aí pára a discrição que eu posso usar, porque a regra é formal:
nem peixe nem carne: só legumes, e devo confessá-lo, eles não
são lá dos melhores!
Vai, pois, apreciá-lo, porque a hora da ceia está a cair; se assim
o quiser, vou mostrar-lhe a sala onde comerá em companhia do
senhor Bruno.
E, descendo a escada, o monge prosseguiu: - O senhor Bruno
é um homem que renunciou ao mundo e que, sem ter pronunciado
os votos, vive em clausura. É o que a nossa regra chama um oblato;
é um santo e um sábio que lhe agradará certamente; poderá con­
versar com ele durante a refeição.
- Ah! - disse Durtal. - E antes e depois tenho de guardar
silêncio?
- Sim, salvo se tiver alguma coisa a pedir; em tal caso, eu esta­
rei sempre à sua disposição, pronto a responder-lhe.
Para esta questão do silêncio, como para a das horas do levan­
tar, do deitar, e dos ofícios, a regra não tolera alívio algum; ela deve
ser observada à letra.
- Bem - disse Durtal, um pouco embaraçado com o tom firme
do padre mas eu vi na minha papeleta um artigo que me convida
a consultar um quadro de advertências, eu ainda não o tenho!

170
A CAMINHO

- Está pendurado no patamar da escada, perto do seu quarto;


há-de lê-lo com mais detença, amanhã. Tenha o incomodo de entrar
- disse, empurrando uma porta situada no corredor de baixo, em
frente da do auditório.
Durtal saudou-se com um homem já velho que veio ao seu
encontro; o monge fez as apresentações e desapareceu em seguida.
Já estavam sobre a mesa todos os pratos: num estavam dois
ovos, e à beira uma tigela de arroz, um prato de feijões, e um copo
com mel.
O senhor Bruno recitou o Benedicite e quis ele mesmo servir
Durtal.
Ofereceu-lhe um ovo.
- É uma triste ceia para um parisiense - disse, sorrindo-se.
- Oh! Logo que haja um ovo e vinho, é isso o bastante; re­
ceava, confesso-o, só ter água pura por única bebida!
E puseram-se a conversar amistosamente.
Este homem era amável e distinto, de figura ascética, mas com
um belo sorriso que lhe iluminava a face amarelenta e grave, sul­
cada de rugas.
Prestou-se da melhor vontade às perguntas de Durtal e contou
que, depois de uma existência tempestuosa, sentiu-se tocado pela
graça, e retirou-se então da vida para expiar, por anos de austeri­
dade e silêncio, as suas próprias faltas e as dos outros.
- E nunca se sentiu cansado de aqui estar?
- Nunca, e já vai em cinco anos que cá habito, neste claustro;
o tempo, tal como está dividido na Trapa, torna-se muito curto.
- E assiste a todos os exercícios da comunidade?
- Assisto; apenas substituo o trabalho manual pela meditação
na cela. A minha qualidade de oblato me dispensaria, contudo, se
eu o desejasse, de me levantar às duas horas da madrugada para
seguir o ofício da noite, mas é uma grande alegria para mim recitar
o magnífico saltério Beneditino antes do romper do dia; vejo,
porém, que está a escutar-me e não come. Permite-me então que
lhe ofereça um pouco de arroz?
- Não, obrigado; aceitaria antes uma colher de mel.
Este alimento não é mau - continuou Durtal - , mas o que me
desconcerta um pouco é este gosto idêntico e extravagante que
todos os pratos têm; parece-me que cheiram, como hei-de dizer!, a
bafio ou a sebo.
- Não, não; cheiram ao azeite fervido que deitam nestes legu­
mes. Oh! Acostumar-se-á a isso dentro em pouco; em dois dias já
não dará por nada.

171
J.-K. HUYSMANS

- Mas em que consiste exactamente o papel do oblato?


- Vive uma existência menos austera e mais contemplativa que
a do monge, pode viajar, se quiser, e, posto que não esteja ligado
por votos, participa dos bens espirituais da ordem.
Outrora a regra admitia o que ela chamava «familiares».
Eram oblatos que recebiam a tonsura, usavam um traje dife­
rente e pronunciavam os três grandes votos; em suma, tinham uma
vida semi-leiga e semi-monástica, Este regime, que subsiste ainda
nos Beneditinos, desapareceu das Trapas desde o ano de 1293,
época em que o Capítulo Geral o suprimiu.
Hoje em dia não restam nas abadias Cistercienses senão os
padres, os frades leigos ou conversos, os oblatos, quando os há, e
os aldeãos empregados nos trabalhos dos campos.
- Os conversos são os que têm a cabeça completamente rapada
e andam vestidos de hábitos castanho escuros?
- São; eles não cantam aos ofícios e entregam-se somente a tra­
balhos manuais.
- A propósito, o regulamento dos retiros, que acabo de ler no
meu quarto, não me parece claro. Segundo creio, ele duplica certos
ofícios, põe as Matinas às quatro horas da tarde, as Vésperas às duas
horas; em todo o caso, o horário não é o mesmo que o dos trapis-
tas; o que devo fazer para os conciliar?
- Nada terá com esses exercícios especificados no cartão; o
padre Estêvão deveria ter-lhe dito; esse modelo foi feito expressa­
mente para aqueles que são incapazes de se ocuparem e de se guia-
rem a si próprios. Isto lhe explica como, para os impedir de per­
manecerem ociosos, copiaram de algum modo o breviário do padre,
e imaginaram clistribuir-lhes o tempo como que em pequenas tiras,
fazendo-lhes recitar, por exemplo, os salmos das Matinas em horas
que não têm salmo algum.
Tendo acabado o jantar, Bruno recitou as graças e disse a Durtal:
- Daqui até às Completas, tem uns vinte minutos; aproveite-os
para conhecer o jardim e as matas.
E, saudando-o polidamente, saiu.
Como eu fumaria bem um cigarro - pensou Durtal quando
ficou só. Pegou então no chapéu e abandonou a sala. A noite caía.
Atravessou o grande cerrado, depois voltou para a direita, passou
pela beira de uma casinha coroada por um longo tubo, e adivinhou
logo, pelo cheiro que exalava, que era uma fábrica de chocolate, e
enveredou por um renque de árvores.
O céu estava tão pouco claro que ele não podia distinguir bem
o maciço do bosque por onde entrava; não vendo ninguém, enro­

172
A CAMINHO

lou alguns cigarros, fumou-os lentamente, deliciosamente, consul­


tando, ao clarão dos fósforos, de tempos a tempos, o seu relógio.
Estava admirado com o silêncio que se levantava desta Trapa;
nem sequer um rumor, mesmo apagado, mesmo longínquo; só em
certos momentos se ouvia um ruído muito suave de remos.
Encaminhou-se para o lado de onde vinha este sussurro e encon­
trou um tanque de água, onde vogava um cisne, que veio logo
direito a ele.
Via-o oscilar na sua brancura por entre as trevas que ele des­
locava, agitando-as, quando um sino começou a tocar em lentos
dobres. - Vejamos - disse, interrogando de novo o seu relógio a
hora das Completas aproxima-se.
Dirigiu-se então para a capela. Estava ainda deserta. Aproveitou
esta solidão para a examinar à sua vontade.
Ela tinha a forma de uma cruz mutilada, de uma cruz sem pé,
arredondada no seu cimo, e estendendo os dois braços quadrados,
furados de uma porta em cada extremo.
A parte superior da cruz figurava, por debaixo de uma cúpula
pintada de azul, uma pequena rotunda, ao redor da qual se via um
círculo de assentos com dobradiças, encostados à parede; ao meio,
elevava-se um grande altar de mármore branco, terminado por
tocheiros de pau, ladeado à esquerda e à direita por candelabros
igualmente de madeira, colocados sobre os fustes de mármore.
A parte inferior do altar era cavada e fechada adiante por um
vidro, por detrás do qual aparecia um relicário de estilo gótico,
que reflectia, no espelho dourado dos seus metais, os fogos das
lâmpadas.
Esta rotunda abria-se num largo pórtico, precedido de três
degraus, sobre os braços da cruz, que se alongavam numa espécie
de vestíbulo, servindo ao mesmo tempo de nave principal e de
naves laterais neste troço de igreja.
Estes braços chanfrados nas suas extremidades, perto das por­
tas, encobriam cluas minúsculas capelas, enterradas em nichos pin­
tados de azul, como a cúpula. Continham sobre altares de pedra,
sem ornamentos, duas imagens medíocres, uma de São José, e outra
de Cristo.
Enfim, um quarto altar, dedicado à Virgem, estava situado neste
vestíbulo, defronte dos degraus que davam acesso à rotunda, por
conseqüência, em face do altar-mor. Recortava-se sobre uma janela
cujos vitrais representavam, um, São Bernardo, de branco, e o outro,
São Bento, de negro, parecendo recuar na igreja por causa das duas
fileiras de bancos que avançavam à sua esquerda e à sua direita, por

173
J.-K. HUYSMANS

diante das outras duas capelinhas, não deixando senão o lugar


necessário para se caminhar ao longo do vestíbulo, ou para ir, em
linha recta, deste altar da Virgem na rotunda até ao altar-mor.
Este santuário é de uma fealdade alarmante - disse consigo
Durtal, que foi sentar-se num banco, diante da imagem de São José - ,
e a julgar por alguns assuntos que se vêem pelas paredes, este monu­
mento data do tempo de Luís XVI. Ridícula época para uma igreja!
Foi distraído das suas reflexões pelos sons dos sinos, e ao
mesmo tempo todas as portas se abriram; uma, à esquerda do altar,
deu passagem a uma dúzia de monges, envoltos em longos mantos
brancos; eles espalharam-se pelo coro e ocuparam de cada lado os
seus assentos.
Pelas duas portas do vestíbulo penetrou por sua vez uma mul­
tidão de monges de hábito castanho escuro, ajoelhando-se diante
dos bancos, de ambos os lados do altar da Virgem.
Durtal tinha alguns perto de si, mas eles abaixavam a cabeça,
de mãos erguidas, e assim não se atreveu a observá-los; além disso,
o vestíbulo tinha-se tornado quase negro; a luz concentrava-se no
coro, onde estavam acesas as lâmpadas.
Encarou então os monges brancos, instalados na parte da
rotunda que ele podia ver, e reconheceu entre eles o padre Estêvão,
de joelhos, perto de um monge baixo; mas um outro, que estava na
extremidade das cadeiras, perto do pórtico, quase em frente do altar
e em plena claridade, o reteve.
Este era esbelto e nervoso e assemelhava-se no seu albornoz
branco a um árabe. Durtal não o via senão de perfil e distinguia per­
feitamente uma longa barba grisalha, um crânio rapado, cingido
com a coroa monástica, uma fronte espaçosa e um nariz em bico de
águia. Tinha um ar distinto com o seu rosto imperioso e o seu corpo
elegante que ondulava por debaixo do hábito.
É provavelmente o abade da Trapa - pensou Durtal, e não lhe
ficou dúvida alguma quando o viu agitar uma espécie de matraca,
que estava debaixo da sua estante, e principiou a dirigir o ofício.
Todos os monges saudaram o altar; o abade recitou as orações
do prelúdio, depois houve uma pausa - e, do outro lado da rotunda,
num sítio que Durtal não podia ver, uma frágil voz de velho, uma voz
voltada ao cristal da infância, mas com alguma coisa de docemente
fendido, elevou-se, subindo à medida que se desenrolava a antífona:
«Deus in acíjutorium meum intende.»
E o outro lado do coro, onde estavam o padre Estêvão e o
abade, respondeu, medindo muito lentamente as sílabas com vozes
de baixo-barítono:

174
A CAMINHO

«.Domine ad adjuvandum me festina.»*


E todos curvaram a cabeça sobre os in-fólios postos diante
deles e continuaram:
«Gloria Patri et Filio et Spiritui Sancto».
E ergueram-se, enquanto que a outra parte dos padres pro­
nunciava o responso: «Sicut erat in principio , etc.»
E o ofício começou.
Não era cantado, mas sim salmodiado, ora rápido, ora lento.
O lado do coro, visível para Durtal, fazia de todas as vogais letras
agudas e breves; o outro, ao contrário, mudava-as em longas,
parecia cobrir com um acento circunflexo todos os «O». Dir-se-ia,
de uma parte, a pronúncia do Sul, e da outra, a do Norte. Assim
salmodiado, o ofício tornava-se estranho; acabava por embalar,
semelhante a um encantamento, por afagar a alma que se ador-
mentava neste rolar de versículos, interrompido apenas pela doxo-
logia que voltava, em ritornello, após a última estrofe de cada um
dos salmos.
Ah! Eu não compreendo nada disto - disse consigo Durtal, que
sabia as Completas de cor não é, pois, o ofício romano que estão
a cantar.
O facto é que um dos salmos faltava. Achou bem, num
momento, o hino de Santo Ambrósio, o Te lucis ante terminum, cla­
mado então num tom amplo e rugoso de velho gregoriano, mas
ainda a derradeira estrofe não era a mesma! E ele perdia-se de novo
em conjecturas, esperava as Lições breves, o Nunc dimitis, que não
vieram afinal.
As Completas não são de modo nenhum variáveis como as
Vésperas - disse consigo mesmo - ; tenho que pedir amanhã expli­
cações ao padre Estêvão.
Depois foi perturbado no meio das suas reflexões por um
jovem monge branco que passou, ajoelhando-se, diante do altar, e
acendeu duas velas.
E de súbito todos se levantaram, e num imenso grito o Salve
Regina abalou as abóbadas.
Durtal escutava, empolgado, este admirável cântico que nada
tinha de comum com o que se berra em Paris, pelas igrejas. Este era
ao mesmo tempo flébil e ardente, erguido por tão suplicantes ado­
rações, que parecia concentrar, nele só, a imemorial esperança da
humanidade e a sua eterna lamentação.

* Salmo 69, 2: «Deus, vinde em meu auxílio, / Senhor socorrei-me e sal


vai-me.»

175
J.-K. HUYSMANS

Cantado sem acompanhamento, sem o apoio dos órgãos, por


vozes indiferentes a si mesmas e fundidas numa só, máscula e pro­
funda, subia numa tranqüila audácia, lançava-se num irresistível voo
para a Virgem, depois fazia como que uma volta sobre si mesmo e
a sua afoiteza diminuía; ele avançava mais tremente, mas tão defe-
rente, tão humilde que sentia-se perdoado, e ousava então, em ape­
los perdidos, reclamar as delícias imerecidas de um céu.
Era o triunfo evidente dos neumas, dessas repetições de notas
sobre a mesma sílaba, sobre a mesma palavra, que a Igreja inven­
tou para pintar o excesso dessa alegria interior ou dessa angústia
interna que as palavras não podem exprimir; e era um ímpeto, uma
saída da alma, escapando-se nas vozes apaixonadas que exalavam
estes corpos erectos e frementes de monges.
Durtal seguia no seu livro de horas esta obra de um texto tão
curto e de um canto tão longo; ao escutá-la, ao lê-la com recolhi­
mento, esta magnífica exoração parecia decompor-se no seu con­
junto, representar os três estados diferentes da alma, significar a trí­
plice fase da humanidade, durante a sua juventude, a sua maturi­
dade e o seu declinar; ela era, em uma palavra, o essencial resumo
da oração, em todas as idades.
Era, a princípio, o cântico de exultaçâo, a saudação jubilosa do
ser ainda pequeno, balbuciando carícias respeitosas, acariciando
com palavras de doçura, com meiguices de criança que procura
amimar a sua mãe; era a - «Salve Regina, Mater misericordiae, wta,
dulcedo et spes nostra, salve» - depois esta alma, tão cândida, tão
simplesmente feliz, tinha crescido e, conhecendo as derrotas volun­
tárias do pensamento, as perdas repetidas das faltas, ela juntava as
mãos e pedia, soluçando, uma ajuda. Ela já não adorava sorrindo,
mas chorando; era o - «Ad te clamamus exsidesfilii Hevae; ad te sus-
piramus gementes etflentes in bac lacrymarum vale». Enfim chegava
a velhice; a alma jazia, atormentada pela saudade dos avisos desde­
nhados, pelo pesar das graças perdidas; e, tornando-se mais lamen­
tosa, mais fraca, ela espantava-se diante da sua libertação, diante da
destruição da sua prisão carnal que sentia próxima; então pensava
na eterna inanição daqueles a quem o Juiz condena, e implorava de
joelhos a Advogada da terra, a Protectora no céu; era o - «Eia ergo
Advocata nostra, illos tuos misericordes oculos ad nos convete et
Jesum henedictum fructum ventris tui nobis post boc exsilium
ostende».
E a esta quinta essência de oração que Pedro de Compostela
ou Hermann Contract compôs, São Bernardo, num acesso de hiper-
dulia ajuntava as três invocações do fim: «O clemens, o pia, o dulcis

176
A CAMINHO

Virgo Maria»,* selava a inimitável prosa, com o com um tríplice


sinete, por estes três gritos de amor que reconduziam o hino à ado­
ração acariciadora do seu começo.
Isto é extraordinário - disse consigo Durtal, quando os trapis­
tas cantaram estes doces e solícitos apelos; os neumas prolongavam-
-se sobre os «O» que passavam por todas as cores da alma, por todo
o registro dos sons; e estas interjeições resumiam ainda, nesta série
de notas que as arrebatava, o recenseamento da alma humana que
recapitulava já o corpo inteiro do hino.
E bruscamente, à palavra Maria , ao grito glorioso deste nome,
o canto apagou-se, os círios extinguiram-se e os monges caíram de
joelhos; um silêncio de morte pairou sobre a capela. E lentamente
os sinos tocaram e o Angelus desfolhou, por debaixo das abóbadas,
as pétalas espaçadas dos seus sons brancos.
Todos, agora prostrados, com o rosto entre as mãos, oravam, e
isto durou por muito tempo; mas o ruído da matraca retiniu enfim,
e todos se levantaram, saudaram o altar, e, numa muda deputação,
os monges desapareceram pela porta aberta na rotunda.
- Ah! O verdadeiro criador desta música, o autor anônimo e
incógnito, que lançou no cérebro do homem a semente do canto­
chão, foi sem dúvida alguma o Espírito Santo - disse consigo Durtal,
alterado, deslumbrado, com os olhos rasos de lágrimas.
Bruno, que não o tinha visto na capela, veio ao seu encontro.
Atravessaram, sem falar, o cerrado, e quando entraram na hospeda­
ria do convento, Bruno acendeu dois castiçais, entregou um a
Durtal, e gravemente disse-lhe:
~ Desejo-lhe uma muito boa noite.
Durtal subiu a escada atrás dele. Saudaram-se de novo no pata­
mar e Durtal entrou na sua cela.
O vento assobiava por debaixo da porta, e o aposento, apenas
alumiado pela chama sonolenta da vela, pareceu-lhe sinistro. O tecto
muito alto desaparecia na sombra e assemelhava-se à própria noite.
Durtal sentou-se, desanimado, perto da cama.
E, contudo, ele estava projectado por uma destas impulsões
que se não podem traduzir, por uma destes frêmitos em que o cora­
ção parece dilatar-se e prestes a abrir-se; e diante da sua impotên­

* Versão port. do Salve-Regina: «Salve R ain ha, m ãe misericordiosa, vida


d oçu ra, esperan ça nossa, salve. A vós clam am os os degredados filh os d e Eva, a
vós suspiramos gem en do e choran do neste vale d e lágrimas. H ei-a, pois.
A dvogada nossa, os vossos olhos misericordiosos a nós volvei, e depois deste des
terro, nos mostrai Jesus, bendito fru to do vosso ventre. Ó clemente, ó piedosa, <>
doce Virgem Maria.» [N.R.j
J.-K. HUYSMANS

cia em se mover e em fugir de si, Durtal acabou por tornar-se


criança, por chorar sem causa definida, simplesmente pela necessi­
dade de derramar lágrimas.
E abaixou-se para o genuflexório, esperando não sabia o quê,
que não lhe vinha; depois, diante do crucifixo que estendia por
cima dele os seus braços, pôs-se a falar-Lhe, a dizer-Lhe baixinho:
- Pai, acabei de expulsar os porcos do meu próprio ser, mas
eles escoicearam-me e cobriram-me de imundice, e até o próprio
estábulo ficou em ruínas. Tende piedade de mim, eu venho de tão
longe! Tende misericórdia, Senhor, para com o guardador de porcos
sem lugar! Entrei em vossa casa, não me mandeis embora, sede bom
hospedeiro, lavai-me!
Ah! - exclamou de repente isto fez-me lembrar que não vi o
padre Estêvão que me havia de indicar a hora em que o confessor
me receberia amanhã. Esqueceu-se sem dúvida; tanto melhor, é
mais um dia de delonga. Tenho a alma tão cansada que me é neces­
sário repousá-la.
Começou a despir-se enfim, e suspirou: - É preciso estar a pé
às três horas e meia, para comparecer na capela às quatro; por isso
não há tempo a perder se quiser dormir. Contanto que não me
venham as nevralgias amanhã, e que desperte antes do romper da
aurora!

178
II

Passou então a mais espantosa das noites; foi tão estranha, tão
horrível que ele não se recordava de ter jamais sofrido, durante toda
a sua vida, tais angústias, semelhantes transes. Foi uma sucessão
ininterrupta de sobressaltos e de pesadelos.
E estes pesadelos ultrapassaram os limites das abominações
que as demências mais perigosas sonham. Eles desenrolavam-se
pelos territórios da Luxúria e eram tão particulares, tão novos para
ele, que, ao despertar, Durtal ficava tremente, retinha um grito.
E não era de todo um acto involuntário e conhecido, a visão
que cessa no momento mesmo em que o homem dormitando estreita
a forma amorosa e se funde nela; era ainda e mais que na natureza,
longo, completo, acompanhado de todos os prelúdios, de todos os
detalhes, de todas as sensações; e então se desligava, com uma acui­
dade dolorosa extraordinária, num espasmo súbito inaudito.
E, facto estranho e que parecia marcar a diferença entre este
estado e o estupro inconsciente das noites, era, além de certos epi­
sódios em que as carícias, que não podiam suceder senão na reali­
dade, se reuniam, no mesmo instante, no sonho, a sensação nítida,
precisa, de um ser, de uma forma fluídica, desaparecendo com o
ruído seco de uma cápsula ou de uma chicotada, perto de nós, ao
acordar. Este ser, sentiu-o distintamente perto de si, tão perto, que
a roupa da cama, desarranjada pelo sopro da sua fuga, ondulava, e
via-se, com desvairamento, o lugar vazio.
Ah! Mas isto... - dizia consigo Durtal quando acendeu a luz - ,
isto transporta-me ao tempo em que eu freqüentava a casa da
Chantelouve, isto sugere-me as histórias do Sucubato.
E aturdido, sentado na cama, tentava perscrutar com um ver­
dadeiro mal-estar esta cela afogada em sombra. Consultou o seu
relógio: eram onze horas da noite. - Meu Deus - disse - se todas as
noites nos claustros são assim como estas!

179
J.-K. HUYSMANS

Recorreu, para se acalmar, às afusões de água fria, abriu a


janela para renovar o ar, e, gelado, tornou a deitar-se.
Hesitava em apagar a vela, inquieto com estas trevas que lhe
pareciam habitadas, cheias de ciladas e de ameaças. Decidiu-se
enfim a soprá-la e repetiu a estrofe das Completas que se tinha can­
tado nessa mesma tarde, na capela:

Prociil receda?it somnia


Et noctium phantasmata,
Hostemque nostrum comprime,
Ne polluantur corpora *

Depois caiu numa modorra, sonhou ainda imundices, mas


veio a si a tempo de romper esse encanto; experimentou ainda a
impressão de uma sombra evaporando-se a tempo, para que se não
possa agarrá-la nas roupas, e interrogou o seu relógio. Eram duas
horas.
- Se isto continua assim, estarei, amanhã, mais morto que vivo
- mas conseguiu, aos poucos, ora dormitando, ora virando-se de um
lado para o outro, chegar enfim às três horas.
Se torno a adormecer, não acordarei a tempo - pensou. - E se
eu me levantasse?
E saltou abaixo do leito, depois vestiu-se, rezou e pôs em
ordem as suas coisas.
Autênticos excessos tinham-no abatido menos que esta falsa
temeridade, mas o que lhe parecia sobretudo odioso era a não
saciedacle em que o deixava o estupro terminado destas larvas.
Comparados às suas ávidas artimanhas, as carícias da mulher não
produziam senão uma volúpia temperada, não conseguindo mais
do que uma débil impressão; somente no Sucubato ficava-se rai­
voso por não se ter estreitado senão o vácuo, de ter sido o títere
de uma mentira, o ludibrio de uma aparência de que já não se
recordava nem dos contornos, nem dos traços. Chega-se a desejar
forçosamente a carne, a procurar premir contra si um verdadeiro
corpo e Durtal encontrou-se a sonhar com Florence; ela saciava-o
ao menos, e não o deixava, palpitante e febril, em busca de não
sabe o quê, numa atmosfera que o cercava, o observava, por um
desconhecido que não se podia discernir, por um simulacro a que
não se podia fugir.

* «Que recuem para iá dos sonhos e dos pesadelos, sejam repelidos os nos­
sos inimigos, não poluam o nosso corpo.» [N.R.]

180
A CAMINHO

Depois Durtal sacudiu-se e quis repelir o assalto destas lem­


branças. - Sempre vou - disse consigo - Respirar um pouco de ar
fresco e fumar um cigarro, e depois veremos.
Desceu a escada, cujas paredes pareciam não estar quietas e
dançar com o clarão da vela; depois enfiou pelos corredores dentro,
soprou o castiçal, pousando-o perto do auditório, e lançou-se para
fora.
Estava uma noite negra como carvão; à altura de um primeiro
andar, uma fresta aberta nas paredes da igreja trespassava as trevas
como uma lua rubra.
Durtal puxou algumas fumaças de um cigarro, depois enca­
minhou-se para a capela. Tirou mansamente a tranqueta da porta.
O vestíbulo, onde penetrava, estava sombrio, mas a rotunda,
posto que estivesse vazia, achava-se iluminada por numerosas
lâmpadas.
Ele deu um passo, persignando-se; em seguida recuou, porque
acabava de tropeçar num corpo. Então olhou para os seus pés.
Acabava de entrar num campo de batalha!
Formas humanas estavam deitadas por terra em atitudes de
combatentes ceifados pela metralha; uns com o ventre de rastos,
outros de joelhos; estes, abaixados com as mãos no chão como feri­
dos nas costas, aqueles, estendidos com os dedos crispados sobre o
peito, ou ainda como a segurar a cabeça ou estendendo os braços.
E deste grupo de agonizantes não se elevava nenhum gemido,
nenhuma queixa.
Durtal contemplava, estupefacto, este massacre de monges e
ficou de repente boquiaberto. Um feixe de luz caía de uma lâmpada,
que o padre sacristão acabava de deslocar na rotunda, e, atraves­
sando o pórtico, ia iluminar um monge de joelhos diante do altar
dedicado à Virgem.
Era um velho de mais de oitenta anos; estava imóvel seme­
lhante a uma estatua, com os olhos fixos, inclinado num tal arroubo
de adoração que todas as figuras extasiadas dos Primitivos pareciam,
perto da sua, forçadas e frias,
A máscara era vulgar; o crânio rapado, sem coroa, crestado por
todos os sóis e por todas as chuvas, tinha a cor dos tijolos; os olhos
estavam velados, e cobertos de belidas pela Idade; o rosto, plissado,
encarquilhado, enegrecido como um buxo velho, enterrava-se numa
mata de pêlos brancos, e o nariz, um pouco achatado, acabava de
tornar singularmente comum o conjunto desta face.
E saía, não dos olhos, nem da boca, mas de toda a parte e de
nenhuma parte, uma espécie de angelidade que se difundia por

181
J.-K. HUYSMANS

sobre esta cabeça, que envolvia todo este pobre corpo, curvado
num montão de farrapos.
Neste velho a alma não se dava ao trabalho de reformar a fisio­
nomia e de enobrecê-la; contentava-se em aniquilá-la, irradiando-se;
era, de algum modo, o nimbo dos santos antigos, não ficando ao
redor da cabeça, mas estendendo-se por todos os seus traços,
banhando, com uma luz pálida, quase invisível, todo o seu ser.
E ele nada via e nada ouvia; os monges arrastavam-se de joe­
lhos, vinham para se reaquecerem, para se abrigarem à sua beira, e
ele não se bulia, mudo e surdo, suficientemente rígido para que se
pudesse julgá-lo morto, se então o lábio inferior não se tivesse agi­
tado, levantando neste movimento a sua longa barba.
A aurora começava a branquear os vidros das janelas, e na obs­
curidade que a pouco e pouco se dissipava, os outros frades apare­
ciam por sua vez a Durtal; todos estes feridos do amor divino reza­
vam ardentemente, como que saíam para fora de si, sem ruído,
diante do altar. Havia-os, ainda moços, de joelhos, com o busto
direito, outros com as pupilas em êxtase, dobrados para trás e sen­
tados sobre os calcanhares; outros ainda faziam o caminho da cruz,
e por vezes punharn-se uns diante dos outros, face a face, e olha­
vam-se sem se verem, com olhos de cegos.
E entre estes conversos, alguns, amortalhados nos seus grandes
hábitos, jaziam, prostrados, beijando o chão.
- Oh! Orar, orar como estes monges! - exclamou Durtal.
Sentia o seu desgraçado ser desafogar-se enfim; nesta atmos­
fera de santidade, como que se desprendeu de prisões ocultas, e
deixou-se cair sobre o lajedo, pedindo perdão a Cristo de manchar
com a sua presença a pureza deste lugar.
E rezou por muito tempo, abrindo-se pela primeira vez, e reco­
nhecendo-se tão indigno, tão vil, que não podia compreender
como, apesar da Sua misericórdia, o Senhor o tolerava no pequeno
círculo dos Seus eleitos; examinou-se, palpou-se, confessou que era
inferior ao último destes conversos que talvez não soubesse mesmo
soletrar num livro, compreendeu que a cultura do espírito nada
valia, e que a cultura da alma valia tudo, e, pouco a pouco, sem se
aperceber, pensando só em balbuciar actos de gratidão, desapare­
ceu da capela, com a alma levada pelas dos outros, para fora do
mundo, longe da sua cripta, longe do seu corpo.
Nesta capela, o arroubo era enfim consentido, a projecção, até
aí recusada, era enfim permitida; e então pensava no tempo em que
com custo conseguia evadir-se do seu cárcere para Notre-Dame-des-
-Victoires e Saint-Séverin.

182
A CAMINHO

Depois tomou a entrar na capela, onde a sua animalic.hu..Ir


havia ficado só, e olhou espantado à sua volta; quase todos os ira
des tinham partido; um padre ficara prostrado diante do altar da
Virgem; depois abandonou-o por sua vez e dirigiu-se para a
rotunda, onde os outros padres se achavam.
Durtal pôs-se a observá-los; havia-os de todas as estaturas e de
todas as formas; aqui, um corpulento e calvo, de longa barba negra
e de óculos; ali, baixos e louros, cheios, e ainda velhos eriçados de
pelos de javali, outros muito novos ainda, tendo uns ares vagos de
sonhadores alemães, com os seus olhos azuis, por debaixo das lune-
tas, e quase todos, excepto os muito jovens, tinham este traço
comum: o ventre dilatado e as faces sulcadas de fios cor-de-rosa.
E de súbito, pela porta aberta na própria rotunda, apareceu o
monge que na véspera dirigira o ofício. Deitou por cima da casula
um capuz de tela que lhe cobria a cabeça e, acompanhado por dois
monges brancos, subiu ao altar-mor para celebrar a missa.
Foi uma missa lenta e meditada, profunda, uma missa em que
o padre consagra por longo espaço, abismado diante do altar; con­
tudo, quando elevou a hóstia, nenhuma campainha retiniu, mas os
sinos do mosteiro soltaram umas revoadas espaçadas, breves sons,
surdos, quase plangentes, enquanto que os Trapistas desapareciam,
por terra, com a cabeça oculta.
Quando a missa acabou, eram quase seis horas; Durtal tomou
de novo o caminho da véspera à noitinha, passou por diante da
fábrica de chocolate que tinha contornado, avistou através dos
vidros alguns padres que embrulhavam os pauzinhos em papel de
chumbo, depois, num outro salão, uma pequena máquina a vapor,
dirigida por um converso.
Chegou a essa álea onde tinha fumado alguns cigarros à sua
sombra. Tão triste, à noite, estava agora encantadora com as suas
longas filas de velhíssimas tílias que estremeciam docemente, e o
vento lançava sobre Durtal o seu lânguido odor.
Sentado num banco, ele abraçava num simples relance a
fachada da abadia.
Precedida de uma grande horta, onde, aqui e ali, inúmeras
roseiras trepavam por cima das bacias azuladas e das bolas estriadas
das couves, esta antiga casa, construída no gosto monumental do
século xvn, estendia-se, solene e imensa, com as suas dezoito jane­
las seguidas e o seu frontão em cujo tímpano estava alojado um
poderoso relógio.
Era coberta de ardósias, e coroada por um jogo de pequenos
sinos a que dava acesso uma escadaria de muitos degraus. Atingia a

183
J.-K. HUYSMANS

altura de um quinto andar, bem que não tivesse realmente mais que
um rés-do-chão e um primeiro; mas a julgar pela elevação desme­
dida das janelas, as salas deviam levantar os seus tectos até alturas
desmesuradas de igrejas; em suma, este edifício era enfático e frio,
mais apto, pois que o tinham convertido em convento, para abrigar
adeptos de Jansenius do que discípulos de São Bernardo.
O tempo estava tépido nessa manhã; o sol coava-se através do
crivo movediço da folhagem; e a luz do dia, assim joeirada, mudava-
-se ao contacto do branco em uma cor rósea. Durtal, que se prepa­
rava para ler o seu livro de horas, viu as páginas rosarem-se e, pela
lei das complementares, todas as letras, impressas a tinta negra, tin­
girem-se de verde.
E entretinha-se com estes detalhes, desanuviava-se, ao calor do
sol, com esta brisa carregada de aromas, repousava, neste banho de
luz, das fadigas da noite, quando, num extremo da álea, avistou
alguns frades. Caminhavam, silenciosos, uns levando debaixo do
braço grandes pães redondos, outros carregando cântaros de leite
ou canastras cheias de hortaliça e ovos; desfilaram por diante dele
e saudaram-no respeitosamente.
Todos tinham um rosto alegre e grave. - Ah! - disse consigo. -
Quanto estes bons homens não me ajudaram esta manhã, porque é
a eles a quem eu devo o não me calar, o poder rezar, o ter enfim
conhecido as alegrias da oração que, para mim, em Paris, não pas­
sava de um engano! É a eles, e sobretudo a Nossa Senhora do Lar,
que teve piedade do meu pobre ser!
Ele pulou do banco num jacto de íntimo júbilo, perdeu-se nas
áleas laterais, e chegou ao pé do tanque que tinha entrevisto na vés­
pera; à sua frente levantava-se a formidável cruz que havia distin-
guido, ao longe, do alto da carruagem, por entre os bosques, antes
de chegar à Trapa.
Estava erecta em frente do próprio mosteiro, e voltava as cos­
tas para o lago; suportava um Cristo do século xvm, de mármore
branco, em tamanho natural; e o próprio tanque afectava a forma
de uma cruz, tal com o figura na maior parte dos planos das basí­
licas.
E esta cruz escura e líquida estava matizada de pistácias cheias
de bolhas de água que o cisne deslocava ao nadar.
Este veio ao encontro de Durtal e estendeu-lhe o bico, espe­
rando sem dúvida um bocado de pão.
E nem sequer o menor ruído se escapava deste lugar deserto,
apenas o estalido das folhas secas que Durtal esmagava ao andar.
O relógio bateu as sete horas.

184
A CAMINHO

Então recordou-se de que o almoço ia ser servido, e dirigiu-se


a grandes passos para a abadia. O padre Estêvão esperava-o; aper­
tou-lhe a mão, perguntou-lhe se tinha dormido bem, e depois:
- E o que vai comer? Só tenho leite e mel para lhe oferecer;
hei-de mandar, hoje mesmo, à aldeia mais próxima buscar um
pouco de queijo; mas, tem de se contentar esta manhã com uma
bem triste repasto.
Durtal propôs substituir por vinho o leite, e declarou que isto
seria bem melhor: - Teria, em todo o caso, um muito mau gosto ao
lastimar-me - disse porque o senhor padre afinal, agora mesmo,
está em jejum.
O monge sorriu-se. - Nesta altura, fazemos penitência por
causa de certas festas da nossa ordem - e explicou que não tomava
alimento senão uma vez por dia, às duas horas da tarde, depois de
Noa.
- E não tem mesmo por alimento vinho e ovos sequer?
O padre Estêvão sorria sempre. - A gente habitua-se - disse.
- E o que é este regime em comparação do que adoptaram São
Bernardo e os seus companheiros, quando vieram arrotear o vale de
Ciaraval? A sua refeição consistia unicamente em folhas de carvalho,
salgadas, e cozidas em água salobra.
E, após um pequeno silêncio, o padre continuou: - Sem dúvida
a regra das Trapas é dura, mas quanto ela não é suave se nós nos
transportarmos ao que foi outrora, no Oriente, a regra de São
Pacómio? Todo aquele cjue queria entrar nesta ordem permanecia
dez dias e dez noites à porta do convento e aí enxugava todas as
imundices e todas as afrontas; se persistia em entrar, cumpria três
anos de noviciado, habitava uma choça onde não podia ter-se de pé
e deitar-se ao comprido; não comia senão azeitonas e couves,
rezava doze vezes pela manhã, doze vezes à tarde, e doze vezes de
noite; o silêncio era perpétuo e as mortificações nunca cessavam.
Para se prepararem para este noviciado e aprenderem a domar a
fome, São Macário tinha imaginado introduzir o pão num recipiente
de gargalo muito apertado, e só se alimentava com as migalhas que
podia retirar com os dedos; quando foi admitido no mosteiro, con-
tentou-se apenas com comer folhas de couve cruas, ao Domingo.
Eles eram bem mais resistentes do que nós! Não temos agora a alma
e o corpo assaz fortes para suportar tais jejuns. Mas que isto não vá
impedi-lo de comer. Vamos, haja bom apetite. Ah! Lembrou-me
agora dizer-lhe que há-de estar às dez horas em ponto no auditório;
é aí que o padre prior o há-de confessar.
E saiu.

185
J.-K. HUYSMANS

Se Durtal tivesse recebido um golpe de malho na cabeça não


teria ficado menos aniquilado. Todo o castelo tão rapidamente ele­
vado das suas alegrias desabou. Dava-se este facto estranho: emba­
lado neste arroubo de alegria, que o havia empolgado desde a
madrugada, esquecera-se completamente de que tinha que confes­
sar-se. E teve um momento de aberração. - Mas eu já estou per­
doado! - disse consigo. - E a prova é este estado de felicidade que
nunca conheci, esta expansão verdadeiramente maravilhosa da alma
que tenho sentido na capela e nos bosques!
A ideia de que ainda nada estava começado, de que tudo
estava por cumprir, sobressaltou-o; já não teve a coragem de engo­
lir o seu pão; bebeu uma gota de vinho, e, como que tomado de
pânico, lançou-se para fora da sala.
E partiu, desvairado, a grandes passos. - Confessar-se! O prior?
Quem era o prior? - e em vão procurava de entre os padres de cujos
rostos se recordava aquele que ia ouvi-lo.
- Meu Deus - disse de repente. - Mas eu não sei mesmo corno
me confessar!
Procurou um canto deserto onde pudesse recolher-se.
Caminhou então velozmente ao acaso por debaixo da fila de
nogueiras que corria ao longo de um muro. Havia aí árvores enor­
mes; ocultou-se por detrás de uma delas, e, sentado sobre o
musgo, folheou o seu livro de horas, e leu: «Ao chegar junto con­
fessionário, ponde-vos de joelhos, fazei o sinal da cruz, e pedi a
benção ao padre, dizendo-lhe: - Lançai-me a vossa bênção, meu
padre, porque eu pequei. Recitai em seguida o Confiteor até ao
mea culpa... e...»
Quedou-se então, e sem mesmo a sondar, a sua vida rebentou
em jactos de imundice.
Ele recuou; tinha tantos pecados, e de tantas espécies que se
abismou no desespero.
Depois fez um esforço de vontade, e veio a si; quis então como
que canalizar as suas fontes, pôr-lhes diques, reparti-las para se
reconhecer, mas um afluente repelia os outros, acabava por tudo
absorver, transformando-se num rio.
E este pecado mostrava-se agora simiesco e dissimulado, no
colégio, onde cada um se ocupava em cariar os outros; era toda uma
juventude ávida, arrastada pelos cafés, rolada pelos alcoices, atolada
em vícios; era enfim uma ignóbil idade madura. Às ocupações regu-
lares haviam sucedido as avarias dos sentidos, e vergonhosas recor­
dações assaltaram-no então impetuosamente; lembrava-se da pro­
cura de monstruosas fraudes, a busca de artifícios para agravar a

186
A CAMINHO

malícia do acto; e os cúmplices, os agentes cias suas quedas desfila­


ram diante dele.
Havia, entre todos, uma senhora Chantelouve, uma adúltera
demoníaca que o havia precipitado em hediondos transportes, que
o havia ligado aos crimes sem nome dos atentados divinos, aos
sacrilégios.
E como havia de contar isto ao monge? - dizia consigo Durtal,
terrificado por esta recordação. - Como se exprimiria para fazer-se
compreender, sem se tornar imundo?
As lágrimas saltaram-lhe dos olhos. Meu Deus, meu Deus, sus­
pirou, é demasiado!
E, por sua vez, Florence apareceu também com o seu sorriso
duvidoso e as suas ancas de gaiata. - Não sou capaz de narrar ao
confessor o que se urdia na sombra perfumada dos seus vícios -
exclamou Durtal. - Não tenho coragem de lhe desdobrar em rosto
estes fios de gangrena!
E dizer-se que tenho de fazer isto! - e ele deixava-se cair
sobre as torpezas desta mulher embebida desde a sua infância nos
incestos, barateada desde a sua puberdade por paixões de velhos
libertinos.
Que vergonha de tê-la encontrado, que desgosto de ter satis­
feito as abomináveis exigências dos seus desejos!
E por detrás desta sentina, elevavam-se outras. Todos os distri­
tos dos pecados, que pacientemente enumerava o devocionário,
havia-os atravessado e percorrido! Desde a sua primeira comunhão,
nunca se tinha confessado, e com a aglomeração dos anos tinha
agora sucessivas aluviões de faltas; e empalidecia ã ideia de que ia
particularizar a outro homem todas as suas ignomínias, confessar-lhe
os seus pensamentos mais secretos, dizer-lhe o que se não ousa
repetir a si mesmo, com medo cie se desprezar demasiado.
E alagou-se em suores de angústia; depois, uma náusea do seu
ser, o remorso da sua vida apoderou-se dele, rendendo-o enfim; o
pesar de ter por tão longo tempo vivido nesta estrumeira torturou-
-o; e pôs-se a chorar copiosamente, duvidando do perdão, não
ousando mesmo solicitá-lo mais, tão vil se sentia.
Enfim teve um sobressalto; a hora da expiação devia estar pró­
xima; o seu relógio marcava efectivamente quinze minutos antes das
dez. Deste modo tinha agonizado por mais de duas horas.
Dirigiu-se precipitadamente para a grande álea que ia ter ao mos­
teiro. Caminhava, de cabeça baixa, reprimindo a custo as lágrimas.
Afrouxou um pouco o passo, quando chegou ao pé do tanque;
levantou uns olhos suplicantes para a cruz, e, ao abaixá-los, encon­

187
J.-K. HUYSMANS

trou um olhar tão comovido, tão piedoso, tão doce, que ele parou;
mas o olhar desapareceu com a saudação do converso que conti­
nuou o seu caminho.
Ele leu em mim - disse Durtal consigo mesmo. - Oh! O cari­
doso monge tem razão em lastimar-me, porque verdadeiramente
quanto não sofro eu! Ah! Senhor, quem me dera ser como este
humilde frade! - gritou, recordando-se de ter notado, nessa manhã,
este jovem, orando na capela com um tal fervor que parecia fundir-
-se no solo, diante da Virgem.
Chegou ao auditório num estado terrível, e deixou-se cair
numa cadeira; depois, como um animal perseguido que se julga des­
coberto, levantou-se, e, perturbado pelo terror, como que levado
por um vento de derrota, pensou em fugir, em ir buscar a sua mala,
e lançar-se num comboio.
Mas conteve-se, indeciso, tremente, acabrunhado; o coração
batia-lhe violentamente, quando ouviu ruídos longínquos de passos.
- Meu Deus! - disse, espiando esses passos que se aproximavam. —
Qual é o monge que vai entrar?
Os passos calaram-se e a porta abriu-se; Durtal estarrecido não
se atreveu a fixar o confessor, em quem reconheceu o grande tra-
pista, de perfil imperioso, justamente aquele que lhe parecia ser o
abade do mosteiro.
Sufocado, recuou, sem proferir uma só palavra.
Surpreendido por este silêncio, o prior disse:
- Pediu para se confessar?
E, a um gesto de Durtal, designou-lhe o genuflexório, encos­
tado à parede, e ele mesmo se ajoelhou, voltando-lhe as costas.
Durtal sentiu calafrios, caiu sobre o genuflexório e perdeu
completamente a cabeça. Havia muito vagamente preparado a sua
entrada na matéria, notado apenas os pontos de reparo, e classifi­
cado mal as suas faltas; não se recordava de mais nada,
O monge levantou-se, depois sentou-se numa cadeira de palha,
e inclinou-se para o penitente, com uma orelha amplificada pela
mão para ouvir melhor.
E esperou.
Durtal desejava morrer para não ter de falar; conseguiu por fim
vencer-se, e refrear a sua vergonha; descerrou então os lábios, mas
nada daí saiu, e ficou oprimido, com a cabeça entre as mãos,
retendo as lágrimas que sentia subir.
O monge não se mexia.
Enfim fez um esforço desesperado e gaguejou o com eço do
Confiteor, dizendo:

188
A CAMINHO

- Nunca me confessei desde a minha infância; levei, desde esse


tempo, uma vida ignóbil, eu...
Mas as palavras não vieram.
O trapista permanecia silencioso e não o ajudava.
- Cometi todas as faltas... fiz tudo... tudo...
E ficou como estrangulado, e as lágrimas, até então retidas, par­
tiram; e pôs-se a chorar, com o corpo trêmulo e o rosto escondido
entre as mãos,
E como o prior, sempre inclinado para ele, não se movia:
- Mas eu não posso - gritou - não posso!
Toda essa vida que não podia expelir o abafava; soluçava,
desesperado pela vista dos seus pecados e aterrado também por se
encontrar assim abandonado, sem uma palavra de carinho, sem um
socorro. Pareceu-lhe que tudo se derrocava, que estava perdido, e
que era repelido por Aquele mesmo que o tinha enviado para esta
abadia.
E uma mão bateu-lhe no ombro, ao mesmo tempo que uma
voz doce e baixa lhe dizia:
- Tem a alma muito cansada para que eu a possa estar a fati-
gar com perguntas; volte amanhã às nove horas, nós teremos então
tempo suficiente para estarmos à vontade, porque a essa hora não
estaremos apressados por causa de nenhum ofício. Daqui até lá
pense neste episódio do Calvário: a cruz que era feita de todos os
pecados do mundo pesava sobre os ombros do Salvador com um tal
peso que os seus joelhos fraquejaram e Ele caiu. Um homem de
Cirene passava então, e ele ajudou o Senhor a levá-la. Quanto a si,
detestando e chorando os seus pecados, tem desagravado, tem des-
lastrado, digamos assim, a sua cruz do peso das suas faltas, e tendo-
-a tornado menos pesada, permitiu assim a Nosso Senhor o poder
levantá-la.
Ele recompensou-o pelo mais surpreendente dos milagres, pelo
milagre de o ter atraído de tão longe aqui. Agradeça-lhe então de
todo o coração, e não se aflija mais. Recite hoje por penitência os
salmos penitenciais e as litanias dos Santos. Vou dar-lhe a minha
bênção.
E o prior abençoou-o e desapareceu em seguida. Durtal levan­
tou-se, todo em lágrimas; o que ele receava tinha acontecido, o
monge que o devia operar era impassível, quase mudo! Ai! - disse
consigo - , os meus abcessos estavam maduros e era preciso um
golpe de lanceta para os picar!
- No entanto - continuou, subindo a escadaria para ir refrescar
os olhos na sua cela - , este trapista foi compassivo até ao fim,

189
J.-K. HUYSMANS

menos nas suas observações do que no tom em que as pronunciou,


depois, convém ser justo, talvez se surpreendesse com as minhas
lágrimas; o abade Gévresin não tinha, sem dúvida, escrito ao padre
Estêvão que eu me refugiava na Trapa para me converter; colo-
quemo-nos então no lugar de um homem vivendo todo em Deus,
fora do mundo, e em quem se descarrega de repente uma selha de
água pela cabeça abaixo!
Enfim veremos amanhã - e Durtal apressou-se a compor o
rosto, porque as onze horas estavam a cair e o ofício da Sexta devia
começar.
E dirigiu-se à capela; ela estava quase vazia, porque os frades
trabalhavam nesse momento na fábrica de chocolate e nos campos.
Os padres estavam no seu lugar, na rotunda. O prior agitou a
matraca, todos se envolveram num grande sinal da cruz, e à
esquerda, aí, onde ele não podia ver, porque Durtal tinha-se insta­
lado no mesmo lugar da manhã, diante do altar de São José, uma
voz subiu aos ares:
- «Ave, Maria, gratia plena, Dominus tecum.»
E a outra parte do coro respondeu:
- «El benedictus fmctiis ventris tui Jesus.»
Houve um segundo de intervalo, e a voz pura e débil do velho
trapista cantou como antes do ofício de Completas, na véspera:
- «Deus, in adjutorium meum intende.»
E a liturgia progrediu com todas as suas «Gloria Patri», etc.,
durante as quais os monges curvavam a fronte sobre os seus livros,
e com toda a sua série de salmos articulados, num tom breve de um
lado, e longo no outro.
Durtal, ajoelhado, deixava-se embalar pela salmodia, tão lasso
que não conseguia ao menos rezar um pouco.
Depois, quando a Sexta terminou, todos os padres se recolhe­
ram, e Durtal surpreendeu um olhar de piedade no prior que se
voltou um pouco para o seu lado. Compreendeu que o monge
implorava ao Salvador piedade para ele, suplicava talvez a Deus
que lhe indicasse o modo como se havia de comportar no dia
seguinte.
Durtal encontrou-se com Bruno no átrio; apertaram-se as mãos,
depois o oblato anunciou-lhe a presença de um novo conviva.
- Um retirante?
- Não, um vigário das redondezas de Lyon. Fica cá um dia ape­
nas. Veio visitar o abade que está doente.
- Julgava que o abade de Nossa Senhora do Lar era o monge
que costuma dirigir o ofício...

190
A CAMINHO

- Não, esse é o prior, o padre Maximino; quanto ao abade,


nunca o viu, e duvido que o possa ver, porque ele não sairá, sem
dúvida, do seu leito antes da sua partida.
Chegaram à hospedaria, e encontraram o padre Estêvão,
pedindo desculpa a um padre baixo e gordo pelo indigente ban­
quete que trazia.
Este padre, de traços bem acentuados, modelados em bastas
adiposidades, era hílare.
Dirigiu alguns gracejos a Bruno, a quem parecia conhecer
desde longa data, sobre o pecado da glutonaria que devia cometer-
-se frequentemente nas Trapas, depois sorveu, simulando cacarejos
de contentamento, o inodoro bouquet do pobre vinho que lhe ser­
viram; enfim, quando dividiu com uma colher a omeleta que com­
punha o prato substancial do jantar, fingiu que trinchava um frango,
extasiando-se com a bela aparência da carne, e dizendo a Durtal: -
Afianço-lhe, senhor, que é excelente; dá-me licença de oferecer-lhe
uma asa?
Este gênero de galantearia exasperava Durtal, que não achava
nisto a menor vontade de rir, principalmente neste dia; e assim, limi­
tou-se a responder com um vago aceno, desejando no íntimo que o
fim da refeição não se demorasse muito.
A conversação continuou entre este padre e Bruno.
Depois de ter-se dispersado por diversas futilidades acabou por
concentrar-se sobre uma invisível lontra que devastava os lagos da
abadia.
- Mas afinal - dizia o vigário - tem ao menos descoberto o
lugar onde ela habita?
- Nunca; vê-se muito bem sobre a erva calcada o caminho que
ela percorre para se lançar na água, mas num dado ponto perde-se-
-lhe a pista. Eu e o padre Estêvão temo-la espreitado, dias inteiros,
e nunca a vimos.
O abade pôs-se a explicar diversos modos de armadilhas para
a caçar. Durtal pensava nessa caçada da lontra tão jovialmente con­
tada por Balzac à frente dos seus Paysans, quando o jantar se aca­
bou.
O vigário recitou as graças e disse a Bruno:
- E se nós fossemos dar uma volta? O bom ar substituirá assim
o café que se esqueceram de nos servir.
Durtal dirigiu-se para a sua cela.
Sentia-se vazio, moído, trôpego, reduzido ao estado de fila­
mentos, ao estado de polpa. O corpo alquebrado pelos pesadelos
da noite, enervado pela cena da manhã, pedia para sentar-se, para

191
J.-K. HUYSMANS

não se mover, e se a alma já não tinha esse desvairamento que a


havia desfeito em soluços aos pés do monge, permanecia contudo
dolente e inquieta, pedia para calar-se, pedia o repouso, o dormir
Não devemos desertar - disse Durtal sacudamo-nos, pois.
Leu os Salmos da Penitência e as Litanias dos Santos; depois hesi­
tou entre dois dos seus livros, entre São Boaventura e Santa Ângela.
Decidiu-se pela bem-aventurada. Ela havia pecado, e tinha-se
convertido; parecia-lhe menos longe dele, mais compreensiva, mais
humana que o Doutor Seráfico, que o Santo sempre conservado
puro, ao abrigo das culpas.
Não tinha ela sido também uma celerada carnal, não tinha
igualmente vindo de bem longe ao encontro do Salvador?
Sendo casada, pratica o adultério e perde toda a vergonha; os
amantes sucedem-se uns após outros, e, quando estão exaustos,
rejeita-os como se fossem cascas vazias. De súbito, a graça fermenta
nela e faz-lhe estalar a alma. Vai confessar-se, mas não ousa expor
ao padre os mais veementes dos seus pecados, e recebe também a
comunhão, enxertando assim o sacrilégio nas outras suas culpas.
Vive, dias e noites, constantemente torturada pelos remorsos,
acaba por suplicar a São Francisco de Assis que a salve, e na noite
seguinte o santo aparece-lhe: - Minha irmã - disse - se me tivésseis
chamado mais cedo, já vos teria atendido. No dia seguinte, ela
dirige-se à igreja, onde escuta a prática de um padre; compreende
enfim que é a esse a quem deve dirigir-se, e abre-se-lhe completa­
mente, confessando-se inteiramente a ele.
Então começam as provas de uma vida purgativa atroz. Perde
sucessivamente a sua mãe, o seu marido e os seus filhos; sofre ten­
tações carnais tão violentas que vê-se obrigada até a lançar mão de
carvões acesos para cauterizar pelo fogo a própria chaga dos seus
sentidos.
Por espaço de dois anos, o demônio atormenta-a. Ela reparte
os seus bens pelos pobres, veste o hábito da ordem terceira de São
Francisco, recolhe os enfermos e mendiga pelas ruas para eles.
Em certo dia sente uma grande repulsão com a vista de um
leproso cujas escarras levantadas exalavam um cheiro nauseante;
mas para se punir do seu desgosto, bebe da água com que lhe lavou
essas crostas. As náuseas regressam, ela castiga-se ainda, forçando-
-se a engolir uma escama que esta água não pôde levar e ficou na
garganta.
Durante anos e anos, nada mais faz do que pensar feridas e
meditar na Paixão do Senhor. Depois, o seu noviciado de dores tem
fim e o dia radioso das visões ilumina-a. Jesus trata-a com o a uma

192
A CAMINHO

criança amimada, afaga-a, chama-a a Sua dulcíssima, a Sua filha


muito amada; dispensa-a da necessidade de comer, nutrindo-a ape­
nas com as Santas Espécies; chama-a, atrai-a, absorve-a na luz
increada, permite-lhe, por um adiantamento de herança, conhecer,
ainda em vida, as alegrias do céu.
E ela é tão simples, tão tímida que, apesar de tudo, ainda tem
medo, porque a recordação dos seus pecados a alarma. Não acre­
dita que possa ser perdoada e diz a Jesus: «Ah! Eu queria pôr um
colar de ferro ao pescoço e arrastar-me pela praça pública para
apregoar bem alto todas as minhas vergonhas!»
E Ele não só a consola como também lhe repete: «Sossega,
minha filha, porque eu compensei os teus pecados pelos meus sofri­
mentos» e como ela ainda se acusasse de ter vivido na opulência, e
se vituperasse de ter adorado os vestidos e as jóias, ele disse-lhe,
sorrindo: «Para resgatar o teu luxo e fasto, despojei-Me de tudo: era-
-te preciso um grande número de vestidos e Eu não tive mais que
um, e esse mesmo até os soldados mo tiraram e lançaram sortes
sobre ele; a minha nudez foi a expiação da tua vaidade nos adere­
ços e enfeites...»
E todas as falas de Cristo são neste tom; Ele reconfortava cons­
tantemente esta humilde, a quem cumula de benefícios; e com isto
ela é a mais amorosa das santas! A sua obra é uma série de libações
espirituais e de carícias; parece que, ao lado dela, os livros das
outras místicas se apagam, tão vivo é o foco que arde no seu.
Ah! - dizia consigo Durtal, folheando estas páginas - é bem o
Cristo de São Francisco, o Deus de misericórdia, quem fala a esta
franciscana - e ele continuava: - Isto devia dar-me toda a coragem
necessária, porque afinal Ângela de Foligno pecou tanto como eu,
e contudo todas as suas culpas lhe foram perdoadas! Sim, mas tam­
bém, que grande alma não tinha ela, ao passo que a minha não
serve para nada! Em vez de amar, murmura ainda! É justo também
notar que a bem-aventurada estava em melhores condições que eu
para se redimir. Ela vivia no século xm, tinha menos caminho a
andar para chegar até Deus, porque desde a Idade Média, cada
século que passa afasta-nos cada vez mais d7Fle! Ela vivia num
tempo cheio de milagres e que regurgitava de Santos, ao passo que
eu vivo em Paris, numa época em que os milagres são raros, e em
que os santos não abundam. Depois, uma vez partido daqui, vou
amolecer-me sem dúvida, diluir-me ainda na infame estufa, no
banho dos pecados das cidades! Que perspectiva!
A propósito... - e olhou para o seu relógio, sobressaltando-se:
eram duas horas. - Já faltei ao ofício da Noa - disse consigo - ; deci­

193
J.-K. HUYSMANS

didamente tenho que simplificar o horário complicado da minha


papeleta; sem isto nada poderei fazer - e efectivamente traçou-o em
algumas linhas.
Manhã - Levantar às 4 horas ou antes às 3 V2. - Almoçar às 7
horas. - Sexta às 11 horas, o jantar às 11 lA horas. - Noa à 1 V2. -
Vésperas às 5 'A. - Ceia às 6, e Completas às 7 horas e 25 minutos.
Ao menos isto é claro, e fácil de reter na memória. Contanto
que desta vez o padre Estêvão não tenha notado a minha ausência
na capela!
E deixou o seu quarto. - Ah! Eis o famoso regulamento - disse
consigo, ao ver um quadro encaixilhado, pendurado no patamar da
escada. Aproximou-se e leu:

«REGULAMENTO DOS SENHORES HÓSPEDES»

Era composto de numerosos artigos e principiava por estas


palavras:
«Pede-se humildemente às pessoas a quem a Divina
Providência tenha conduzido a este mosteiro que se lhes permita
fazer as advertências seguintes:
«Deve evitar-se sempre o encontro com religiosos ou irmãos
conversos, como também aproximar-se dos lugares onde traba­
lham.»
«É proibido sair da clausura para ir à cerca ou às vizinhanças
do mosteiro.»
Depois seguia-se uma série de recomendações que já figura­
vam na nota dos Horários, impressa nos cartazes.
Durtal saltou vários parágrafos e leu ainda:
«Pede-se aos Senhores Hóspedes que nada escrevam sobre as
portas, nem risquem fósforos pelas paredes, nem ainda deitem água
pelo sobrado.»
«Não se pode ir de um a outro quarto para visitar o seu vizinho
ou falar-lhe.»
«Não se pode fumar dentro de casa.»
E fora também não... - pensou Durtal. - E eu que tinha agora
tanta vontade de acender um cigarro... - e desceu.
Encontrou-se no corredor com o padre Estêvão, que lhe obser­
vou imediatamente que não o tinha visto no seu lugar durante o ofí­
cio. Durtal desculpou-se o melhor que pôde. O monge não insistiu,
mas Durtal compreendeu que ele andava de vigia e que, mesmo sob
esse seu porte bondoso, o hospedeiro devia, desde que se tratasse
de disciplina, estrangular-nos a garganta com um garrote de ferro.

194
A CAMINHO

Dissipou-se-lhe toda a dúvida quando, à hora de Vésperas, viu


que o primeiro olhar do monge ao entrar na capela era para ele,
mas estava tão frouxo, tão dorido nesse dia que não se importou
com isso.
Esta mudança brusca de existência, estas horas da sua vida
habitual, tão completamente transformadas, aturdiram-no, e da sua
crise da manhã havia conservado uma espécie de torpor que lhe
quebrava toda a energia. Passou este fim de dia como alheado, não
pensando em nada, dormindo de pé; e quando a noite sobreveio,
deixou-se cair sobre o leito como uma massa inerte.

195
III

Acordou em sobressalto, por volta das onze horas, sob a


impressão de alguém que se sente olhado enquanto dorme. Riscou
um fósforo, e não viu ninguém; verificou então as horas e, caindo
de novo sobre a cama, dormiu num só sono até perto das quatro
horas. Vestiu-se à pressa e correu para a igreja,
O vestíbulo, obscuro na véspera, estava iluminado nesta
manhã, porque um velho monge celebrava a sua missa no altar de
São José, um monge calvo e alquebrado, com uma barba branca,
irrompendo de todos os lados e esvoaçando em longos fios.
Um converso ajudava à missa; era um homenzinho de barba
negra e crânio rapado, semelhante a uma bola pintada de azul.
Parecia um bandido com a sua barba em desordem e o seu surrado
saco de burel
Mas este bandido tinha o olhar doce e meigo das criancinhas.
Ele servia o padre com um respeito quase tímido, com uma alegria
reprimida verdadeiramente tocante.
Os outros, de joelhos sobre as lajes, oravam, concentrados, ou
liam a sua missa, Durtal contemplava o velhinho de oitenta anos,
que estava imóvel, com o rosto estendido para diante e os olhos cer­
rados; e o moço, aquele mesmo cujo olhar misericordioso o tinha
socorrido perto do lago, meditava agora atentamente o ofício no seu
devocionário. Devia ter aproximadamente vinte anos, e era alto e
robusto; a sua fisionomia um pouco fatigada era ao mesmo tempo
máscula e triste, com os seus traços emagrecidos e a sua barba loura
que caía em ponta sobre o hábito.
Durtal abandonou-se a si mesmo nesta capela, onde cada um
punha um pouco de seu para o ajudar, e, pensando na confissão
que ia fazer, suplicou ao Senhor que o sustentasse e amparasse e
implorou-lhe a sua intervenção para que o monge, que lhe cou­
besse, pudesse bem desdobrá-lo.

196
A CAMINHO

E sentia-se menos apavorado, mais senhor de si, mais firme.


Confrontava-se e agrupava-se, experimentava ainda uma dolorosa
confusão, mas já não tinha esse desânimo que tanto o havia abatido
na véspera. E exaltava-se com a ideia de que não desistia, de que
havia de socorrer-se com todas as suas forças, e que não podia, em
outros casos, reagir melhor.
Foi distraído das suas reflexões pela partida do velho trapista
que acabava de oferecer o sacrifício, e pela entrada do prior que
subia no meio de dois padres, vestidos de branco, da rotunda para
o altar-mor, onde ia dizer a missa.
Durtal absorveu-se todo no seu eucológio, mas, depois que o
padre consumiu as Espécies, cessou de ler, porque todos se levanta­
ram, e ficou boquiaberto, confundido, em face de um espectáculo em
que nem sequer tinha ainda pensado, uma comunhão de monges.
Eles avançavam, um a um, mudos e de olhos baixos, depois ao
chegar diante do altar, o que caminhava na frente voltava-se e abra­
çava o companheiro que vinha atrás; este, por sua vez, apertava em
seus braços o religioso, que o seguia, e assim sucessivamente até ao
último. Todos, antes de irem receber a Eucaristia, trocavam o beijo
de paz, depois ajoelhavam-se, comungavam e voltavam ainda, um a
um, rodeando a rotunda, por detrás do altar.
E a retirada destes homens era estranha; os padres brancos iam
na dianteira, e caminhavam muito lentamente, de olhos fechados e
mãos erguidas. Os rostos tinham alguma coisa de modificado e de
novo-, estavam iluminados de outra forma, por dentro; parecia que,
comprimida pela potência do Sacramento contra as paredes do
corpo, a alma filtrava-se através dos poros, iluminava a epiderme
desta luz especial da alegria, desta espécie de claridade que se
expande das almas cândidas, desliza como um fumo quase cor-de-
-rosa ao longo das faces e irradia, ao concentrar-se, da fronte.
Se se considerasse o andar mecânico e hesitante destes mon­
ges, adivinhava-se que os corpos não eram mais que uns autôma­
tos, executando por hábito o seu movimento de marcha, e que as
almas não se importavam deles, como que estavam noutra parte.
Durtal reconhecia o velho converso tão curvado, agora que o
seu rosto lhe desaparecia numa barba erguida do peito, e as suas
duas grossas mãos nodosas tremiam, ao apertarem-se. Viu também
o jovem frade, com os traços como que fugidos de um rosto des­
feito, deslizando devagar, sem olhos.
E fatalmente deliberou sobre si mesmo. Era o único que não
comungava, porque via, saindo por último detrás do altar, Bruno,
que tomava, de braços cruzados, o seu lugar.

197
J.-K. HUYSMANS

Esta exclusão fazia-lhe bem compreender quanto ele era dife­


rente, quanto ele estava afastado daquele mundo! Todos eram admi­
tidos, só ele ficava de fora. A sua indignidade confirmava-se, e ele
entristecia-se de ser assim posto de parte, tratado assim como o mere­
cia, como um estranho, separado do mesmo modo que o bode das
Escrituras, fechado no redil, longe das ovelhas, à esquerda de Cristo.
Estes reparos foram-lhe salutares, porque lhe dissiparam o ter­
ror da confissão que ainda se afirmava. Este acto pareceu-lhe tão
natural, tão justo, na sua necessária humilhação, no seu indispensá­
vel sofrimento, que ele quis efectuá-lo logo em seguida e poder
apresentar-se nesta capela, expurgado, lavado, tornado pelo menos
um pouco mais semelhante aos outros.
Quando a missa acabou, dirigiu-se à sua cela para ir buscar um
pauzinho de chocolate.
No alto da escada, Bruno, com um grande avental, preparava-
-se para varrer os degraus.
Durtal olhava para ele, surpreendido. O oblato sorriu e aper­
tou-lhe a mão.
- É uma excelente ocupação para a alma - disse, mostrando-
-Ihe a vassoura. - Isto nos recorda os sentimentos de modéstia que
todos somos propensos a esquecer, quando se tem vivido no grande
mundo.
E pôs-se a varrer vigorosamente e a apanhar numa pá a poeira
que enchia, como pó de pimenta, os interstícios cruzados do lajedo.
Durtal levou o seu chocolate para o jardim. - Reflictamos -
pensou, mastigando-o - , e se eu fosse antes por outro caminho, se
fosse passear pela parte do bosque que ainda não conheço... - mas
não teve desejo algum disso. - Não, no estado em que estou, gosto
mais de freqüentar o mesmo local, e não deixar os lugares em que
fixei os meus hábitos; estou já tão pouco coordenado, tão facilmente
esparso, que não me quero arriscar a desunir-me com a curiosidade
de novos sítios - e dirigiu-se para o pé do lago em cruz.
Pôs-se a passear ao longo das suas margens, e quando chegou
ao seu extremo admirou-se de encontrar, a alguns minutos dali, um
regato mosqueado de películas verdes, cavado entre duas sebes que
serviam de limite natural às terras do mosteiro. Mais ao longe, esten­
diam-se os campos de uma vasta granja cujos tectos se entreviam
através do arvoredo, e, por toda a parte, no horizonte, sobre as coli­
nas, fugiam as florestas, parecendo só parar a sua marcha adiante
do céu.
- Parecia-me maior este território - disse consigo, voltando
atrás, e, logo que chegou de novo ao alto do tanque em cruz, pôs-

198
A CAMINHO

-se a contemplar o imenso crucifixo de madeira, erecto no ar, que


se reverberava nesse grande espelho negro. E perdia-se aí, visto de
costas, tremia nas ondinhas que o vento plissava, parecia descer,
redemoinhando, nesta extensão de tinta negra. E deste Cristo de
mármore cujo corpo estava escondido pelo madeiro, só se perce­
biam os dois braços brancos que ultrapassavam o instrumento do
suplício e se torciam na fuligem das águas.
Sentado sobre a erva, Durtal olhava para o obscuro espelho
desta cruz deitada, e, pensando na sua alma que estava, assim como
este lago, imunda e suja por um lastro de folhas mortas, por uma
montureira de faltas, lamentava o Salvador a quem ia convidar a
banhar-se aí, porque isso não seria já o martírio do Gólgota consu­
mado, sobre uma eminência, com a cabeça levantada, à luz do dia,
em pleno ar! Mas sim seria, por um acervo de ultrajes, o abominá­
vel mergulho do corpo crucificado, de cabeça para baixo, de noite,
no fundo de um pântano!
- Sim, ainda há tempo de o poupar a isso, filtrando-me, clari­
ficando-me! - exclamou. E o cisne, até então imóvel num braço do
tanque, varreu, avançando, a lamentável imagem, branqueou com o
seu reflexo o luto movediço das águas.
E Durtal pensou na absolvição que talvez obtivesse, abriu de
novo o seu eucológio e enumerou todas as suas faltas; e lentamente,
como na véspera, broqueou-se a si mesmo e, sondando-se, conse­
guiu fazer sair do solo do seu ser um jacto de lágrimas.
- É preciso coragem - disse consigo, tremendo à ideia de que
se sufocaria ainda, de que não conseguiria falar; e resolveu come­
çar às avessas a sua confissão, enumerar a princípio os pecados mais
pequenos, guardar os maiores para o fim, e terminar pela confissão
dos delitos carnais. - Se sucumbir, então, poderei talvez explicar-me
em duas palavras. Meu Deus!, contando que o prior não se cale
como ontem, contando que ele me absolva!
E assim sacudiu a sua tristeza, depois abandonou o tanque,
dirigiu-se para a sua álea de tílias e pôs-se a examinar de perto estas
árvores. Eram uns troncos enormes, cobertos de plantas amarelen-
tas, sarapintados de prata fosca pelos musgos; e alguns deles nessa
manhã, estavam envoltos, como que numa mantilha salpicada de
pérolas, pelos fios da Virgem que o orvalho prendia com os nós cris­
talinos das suas gotas.
Sentou-se num banco, depois, receando alguma bátega, por­
que o tempo ameaçava chuva, retirou-se para a sua cela.
Não tinha nenhuma vontade de ler, só tinha pressa em chegar,
temendo-a, à hora da confissão, às nove horas, e de acabar com o

199
J.-K. HUYSMANS

lastro da sua alma, descarregando-se enfim; e rezava mecanica­


mente, sem saber o que murmurava, pensando sempre na sua con­
fissão, perseguido de alarmes, trespassado de transes.
Desceu um pouco antes da hora, e a coragem faltou-lhe, assim
que entrou no auditório.
Sem o querer, os seus olhos assestavam-se sobre esse genufle-
xório onde tinha tão cruelmente sofrido.
Pensar que lhe era preciso tornar a colocar-se sobre esta grade,
estender-se ainda sobre este cavalete de tortura! - tentou coligir-se,
resumir-se, e sobressaltou-se bruscamente, porque começou a ouvir
os passos do monge.
A porta abriu-se, e pela primeira vez Durtal atreveu-se a enca­
rar o prior; este já não era o mesmo homem, já não era a mesma
figura que ele distinguia de longe; quanto o perfil era altivo, tanto
o rosto era meigo; e era ainda o olhar que adoçava a altaneira ener­
gia dos traços, um olhar familiar e profundo onde havia ao mesmo
tempo a alegria plácida e a piedade triste.
- Vamos - disse ele - não se perturbe, porque é só a Nosso
Senhor, que conhece muito bem todas as suas faltas, a quem vai
falar.
E ajoelhou-se, orou por muito tempo, e veio, como na véspera,
sentar-se perto do genuflexório; depois inclinou-se para Durtal e
aplicou um ouvido.
Um pouco tranqüilizado, o penitente começou sem muitas
angústias. Acusava-se de todas as faltas comuns aos homens, falta
de caridade para com o próximo, maledicência, ódio, juízos teme­
rários, injúrias, mentiras, vaidade, cólera, etc.
O monge interrompeu-o um instante.
- Declarou-me, creio que a princípio, que na sua mocidade
havia contraído dívidas; pagou-as?
E a um sinal afirmativo de Durtal, disse: - Bem - e prosseguiu:
- Fez parte de alguma sociedade secreta, bateu-se em duelo? Sou
obrigado a fazer estas perguntas porque são pecados reservados.*
- Não? Bem - e calou-se.
- Para com Deus, eu acuso-me de tudo - continuou Durtal. -
Como já lhe confessei ontem, depois da minha primeira comunhão
deixei tudo, orações, missa, tudo enfim; neguei Deus, blasfemei,
perdi completamente a Fé.
E Durtal parou.
Chegava às maldades da carne. A sua voz enfraqueceu.

* Pecados reservados, são aqueles que só os bispos podem absolver. [N.R.j

200
A CAMINHO

- Aqui, não sei como explicar-me - disse, contendo as lágrimas.


- Vejamos - disse docemente o monge - , afirmou-me, ontem,
que tinha cometido todos os actos que comporta a malícia especial
da Luxuria?
- Sim, meu padre - e, trêmulo, acrescentou: - Devo entrar em
detalhes?
- Não, isso é inútil. Houve adultério?
- Sim.
- Posso admitir que nesses seus pecados nenhum dos excessos
foi omitido?
Durtal fez um sinal afirmativo.
- Bem, isto basta.
E o monge calou-se.
Durtal abafava de desgosto; a confissão destas torpezas cus­
tava-lhe horrivelmente, e, contudo, bem que estivesse ainda aca­
brunhado de vergonha, começava já a respirar livremente, quando
de súbito, apertou a cabeça entre as mãos.
A recordação do sacrilégio, no qual a Chantelouve o fizera par­
ticipar, veio-lhe à memória.
Contou, a balbuciar, que havia assistido por curiosidade a uma
missa negra em casa dela, e que depois, sem o querer, tinha profa­
nado uma hóstia que esta mulher, saturada de Satanismo, guardava.
O prior escutava-o sem pestanejar.
- E continuou a freqüentar depois a casa dessa mulher?
- Não, isto tinha-me causado horror.
O trapista reflectiu:
- E nada mais há?
- Creio ter confessado tudo - respondeu Durtal.
O confessor guardou silêncio durante alguns minutos, depois
com uma voz pensativa, murmurou:
- Estou ainda mais abalado e aturdido do que ontem pelo
espantoso milagre que o céu operou em si.
Estava enfermo, tão enfermo que verdadeiramente se poderia
dizer da sua alma o que Marta dizia do corpo de Lázaro: Jam foe-
tetl* E Cristo de algum modo o ressuscitou. Somente, e não se
engane com isso, a conversão do pecador não é a sua cura, mas a
sua convalescença; e esta convalescença dura algumas vezes anos,
é muitas vezes longa.
Convém então que se resolva, desde já, a premunir-se contra
as recaídas, a tentar tudo o que depender de si para se restabelecer.

* «Cheira mal!>* (Jo 11, 39). (N.R.J

201
J.-K. HUYSMANS

Este tratamento preventivo compõe-se de oração, do Sacramento da


Penitência, e da Santa Comunhão.
A oração? Deve forçosamente conhecê-la, porque depois de
uma vida tão agitada, como foi a sua, não se resolveria a vir aqui,
se antes não tivesse rezado muito.
- Ah! Mas tão pouco e tão mal!
- Pouco importa, pois que o seu desejo era orar bem! A con­
fissão? Ela foi muito penosa, mas de agora por diante sê-lo-á menos,
porque já não tem de confessar faltas acumuladas de muitos anos.
A comunhão, porém, inquieta-me muito mais; devemos recear que
no caso em que triunfasse da carne, o demônio o espera aí e esfor-
çar-se-á por afastá-lo dela porque ele sabe muito bem que sem este
divino Magistério nenhuma cura é possível. Tem então de fixar aí
toda a vossa atenção.
O monge reflectiu um minuto, depois continuou:
- A Santa Eucaristia... Há-cle ter muitas e várias necessidades,
porque será mais infeliz que os outros seres menos cultivados, que
os seres mais simples. Será sem dúvida torturado pela imaginação.
Ela fê-lo pecar muito, e por uma justa paga, ela o fará também sofrer
muito; será a porta mal fechada da sua pessoa, e é por aí que o
demônio se introduzirá e se espalhará em si. Vele então deste lado,
e peça ardentemente ao Senhor que lhe venha em ajuda. Diga-me,
tem um rosário?
- Não, meu padre.
- Parece-me - continuou o monge - que, no tom em que pro­
nunciou estas palavras, há uma certa hostilidade contra o rosário.
- Confesso-lhe que este meio mecânico de recitar orações
aborrece-me um pouco; eu não sei, mas parece-me que ao cabo de
alguns segundos, não poderia pensar já, no que repito; pôr-me-ia a
divagar e acabaria certamente por balbuciar parvoíces...
- Conhece perfeitamente alguns pais de família - disse com
tranqüilidade o prior. - Os seus filhos gaguejam-lhes carícias dia a
dia, contam-lhes não se sabe o quê, e contudo eles deleitam-se em
ouvi-los! Por que razão Nosso Senhor, que é tão bom pai, não há-
-de gostar de ouvir os seus filhos, mesmo quando falam sem desem­
baraço, mesmo quando dizem banalidades?
E, depois de uma pausa, prosseguiu:
- Vislumbro um pouco de astúcia diabólica na sua objecção,
porque grandes graças estão ligadas a esta coroa de orações. A pró­
pria Santíssima Virgem revelou aos Santos este meio de orar; Ela
declarou que isso Lhe agradaria muito, o que deve ser bastante para
o amarmos.

202
A CAMINHO

Faça-o então por amor d’Aquela que tão poderosamente aju­


dou a sua conversão e que intercedeu junto de seu Filho para o sal­
var. Recorde-se também que Deus quis que todas as graças nos vies­
sem por intermédio d’Ela. São Bernardo cleclara-o terminantemente:
«Totum nos babere voluit per Mariam»*
O monge fez uma nova pausa e acrescentou:
- De resto, o rosário torna os possessos furiosos, e isso é um
sinal seguro. Tenha, pois, o cuidado de rezar como penitência uma
dezena, por espaço de um mês, todos os dias.
E calou-se; depois, lentamente, continuou:
- Todos nós, ah!, guardamos esta cicatriz do pecado original,
que é a propensão para o mal; cada um de nós a trata melhor ou
pior; quanto a si, desde a idade da discreção, tem-na constante­
mente aberta e fendida, mas basta que abom ine a sua chaga para
que Deus a feche de todo. Já não lhe falarei do seu passado, pois
que o seu arrependimento e o seu firme propósito de não mais
pecar o apagam por completo. Amanhã há-de receber o penhor
da reconciliação, porque vai comungar; ao fim de tantos anos, o
Senhor irá entrar no caminho da sua alma e aí ficará; vá ao seu
encontro com grande humildade, e prepare-se, daqui até lá, por
meio da oração, para este misterioso abraço que a sua bondade
anseia. Diga agora o acto da contrição, porque vou dar-lhe a
absolvição.
O monge alçou os braços, e as mangas do seu hábito branco
voaram assim como duas asas por cima dele. Proferia, com os
olhos pregados no céu, a imperiosa fórmula que rompe todos os
laços; e três palavras pronunciadas com uma voz mais alta e mais
lenta: «Ego te absolvo» caíram sobre Durtal que estremeceu da
cabeça aos pés.
E abaixou-se até ao chão, incapaz de se reunir, de se com­
preender, sentindo unicamente - e isto de um modo muito nítido -
que Cristo em pessoa estava presente, que estava ali junto dele,
nessa sala —e não encontrando palavra alguma para lhe agradecer,
pôs-se a chorar, arrebatado, curvado sob o sinal da cruz com que o
cobria o monge.
Pareceu-lhe que saía de um sonho, quando o prior lhe disse:
- Rejubile pois, a sua vida está morta; fica enterrada num claus­
tro, e é também num claustro que vai renascer; isso é um bom pres­
ságio; tenha pois confiança em Nosso Senhor e vá em paz.
E o padre acrescentou, apertando-lhe a mão: - Não tenha

* «Que nós tudo tivéssemos por Maria». [N.R.]

203
J.-K. HUYSMANS

receio algum de me incomodar, estou sempre à sua inteira disposi­


ção, não só para a confissão mas ainda para todas as conversações,
para todos os conselhos que lhe forem úteis; estamos entendidos,
não é assim?
Ambos eles deixaram o auditório; o monge cumprimentou-o
no corredor e desapareceu em seguida. Durtal hesitava entre ir
meditar na sua cela ou na igreja, quando Bruno sobreveio.
Aproximou-se de Durtal e disse-lhe:
- Hein? Sempre é um bom peso a menos sobre o estômago!
E como Durtal o olhasse espantado, sorriu-se.
- Pensa então que um velho pecador como eu não seria capaz
de descobrir entre mil pequeninos nadas, ao menos nos seus olhos
que agora se iluminam, de que ainda não se tinha reconciliado
quando chegou aqui? Ora eu acabo de surpreender o reverendo
padre, encaminhando-se para o claustro, e a si encontro-o saindo do
auditório; não é necessário ser muito perspicaz para adivinhar que
a grande lavagem acaba de se efectuar!
~ Mas - disse Durtal - o prior, que viu estar comigo, pois que
já tinha partido quando vinha a entrar, poderia ter ido cumprir uma
outra tarefa.
- Não, não; porque ele não estava de escapulário, mas sim de
cogula. E como não costuma envergar este traje senão quando vai à
igreja ou ao confesso, tenho a certeza, dada a hora que não é a de
nenhum ofício, de que ele vinha do auditório. E digo mais ainda
que, não sendo confessados aí os Trapistas, só duas pessoas o pode­
riam ser, você ou eu.
- Muito me diz - replicou Durtal, sorrindo.
Neste entrementes veio ter com eles o padre Estêvão, e Durtal
reclamou-lhe um rosário,
Mas eu não o tenho - exclamou o monge.
- Eu tenho alguns - disse Bruno - e terei muito gosto em ofe-
recer-lhe um. Dá-me licença, meu padre.,.
O monge fez sinal que sim.
~ Então se quiser ter a bondade de me acompanhar - conti­
nuou o oblato, dirigindo-se a Durtal - vou entregar-lhe já.
Subiram ambos a escadaria e Durtal viu então que Bruno habi­
tava num aposento, situado ao fundo de um pequeno corredor, não
muito longe do seu.
Esta cela estava muito simplesmente mobilada de um velho
mobiliário burguês, um leito, uma escrivaninha de acaju, uma boa
biblioteca pejada de livros ascéticos, um fogão de faiança e alguns
cadeirões.

204
A CAMINHO

Estes móveis pertenciam evidentemente ao oblato, porque eles


não se assemelhavam em nada ao mobiliário das Trapas.
- Tenha a bondade de sentar-se um pouco - disse Bruno, indi­
cando-lhe uma cadeira; e meteram-se a conversar.
Depois de terem a princípio falado a respeito do Sacramento
da Penitência, a conversação fixou-se toda sobre o padre Maximino,
e Durtal confessou que o rosto altivo do prior o tinha incomodado
a princípio.
Bruno pôs-se a rir. - Sim - disse - ele produz esse efeito sobre
aquelas pessoas que não convivem com ele, mas quando o fre­
qüentamos, vemos bem que só é rígido para consigo mesmo, por­
que ninguém é para os outros mais indulgente que ele; é, pois, um
verdadeiro e um santo monge, em toda a acepção da palavra; tem
também grandes luzes...
E como Durtal lhe falasse dos outros cenobitas e se admirasse de
que houvesse, entre eles, tantos ainda tão novos, Bruno respondeu:
- Imaginar que a maior parte dos Trapistas viveram no mundo
é um erro. Essa ideia, tão espalhada, de que os homens se refugiam
nas Trapas depois de longas misérias e de existências desordenadas,
é absolutamente falsa; além disso, para se poder suportar o regime
esmagador do claustro é preciso começá-lo quando se é ainda novo
e sobretudo não lhe trazer um corpo gasto por abusos de toda a
espécie.
Convém também não confundir a misantropia com a vocação
monástica; não é a hipocondria, mas o apelo divino que leva até às
Trapas. Há nesse caso uma graça especial que faz com que tantos
moços, que ainda não estão cansados de viver, aspirem a poder
internar-se no silêncio e aí sofrer as privações mais duras; e eles são
felizes como eu o desejaria ser, e contudo a sua existência é ainda
mais rigorosa do que a supõe. Tomemos os conversos, por exemplo.
Imagine então que eles se entregam aos labores mais penosos
e que não têm mesmo como os padres a consolação de assistir a
todos os ofícios e cantá-los; pense que a sua única recompensa, que
é a comunhão, não lhes é muitas vezes concedida.
Faça agora uma ideia do Inverno aqui. O frio é terrível; nestas
construções arruinadas, nada as abriga, e o vento varre toda a casa
de cima abaixo; eles enregelam-se para aí, sem fogo, e deitam-se em
míseros grabatos; e não podem mesmo auxiliar-se, animar-se uns
aos outros, porque mal se conhecem, pois que toda a conversação
lhes é interdita.
Pense também que no estio, quando para os ajudarem a fazer
a messe mandam vir das aldeias vizinhas alguns homens, estes des­

205
J.-K. HUYSMANS

cansam, quando o sol queima os campos, sentam-se à sombra das


medas, em mangas de camisa, e bebem se têm sede e comem se
têm fome; mas o converso olha-os com as suas pesadas vestes, e
não pode comer nem beber coisa alguma. É preciso, pois, almas for­
temente temperadas para poder resistir a semelhante viver!
- Mas enfim - disse Durtal - devem haver dias de folga,
momentos em que a regra se modera.
- Nunca; e não há sequer, assim como nas ordens mais auste­
ras (a dos Carmelitas, para citarmos uma) não há uma só hora de
recreio em que o religioso possa falar e rir. Aqui o silêncio é eterno.
- Mesmo quando estão juntos no refeitório?
- Aí lêem-se as conferências de Cassiano, a Escada Santa de
Clímaco, as Vidas dos Padres do Deserto, ou qualquer outro livro
piedoso.*
- E ao Domingo?
- Ao Domingo levantam-se uma hora mais cedo, mas é real­
mente esse o seu melhor dia, porque podem seguir todos os ofícios,
passar todo o seu tempo na igreja!
- A humildade e a abnegação exacerbadas até este ponto são
sobre-humanas! - exclamou Durtal. - Mas, para que possam entre­
gar-se desde a manhã até à noite aos trabalhos do campo, é preciso
dar-se-lhes em quantidade suficiente uma alimentação forte.
Bruno sorriu-se...
- Eles alimentam-se unicamente de legumes que não são
sequer tão bons como os que aqui nos servem, e em vez de vinho
satisfazem-se com uma bebida picante e adocicada que deixa um pé
de quase meio copo. Cada um regula por um quarto de litro, mas
podem acrescentá-lo com água, se tiverem sede.
- E quantas são as refeições?
- Isso conforme. Do dia 14 de Setembro até à Quaresma só
podem comer uma vez por dia, às duas horas e meia, e durante a
Quaresma esta refeição é adiada para as quatro. Desde a Páscoa até
14 de Setembro, em que o jejum Cisterciense é menos rígido, o jan­
tar tem lugar pelas onze e meia e pode ajuntar-se o misto, isto é,
uma ligeira consoada à noitinha..
- É medonho! Trabalhar e durante meses não se alimentar
senão às duas da tarde, quando se está a pé desde as duas horas da
madrugada e quando se não jantou na véspera!

* São João Clímaco (c. 579-649). Sobre os Padres do Deserto, cf. em por­
tuguês, Os P adres do Deserto, Mareei Driot (Lisboa, 2006) e Ditos e Feitos dos
P adres do Deserto (Lisboa, 2004). [N.R.]

206
A CAMINHO

- Às vezes também se vêem obrigados a alargar um pouco a


regra, e quando um monge cai de fraqueza não lhe recusam um
bocado de pão.
Afinal tem de ser preciso - continuou Bruno num tom pensa­
tivo - alargar-se ainda mais a estreiteza destas observâncias, porque
esta questão da mesa torna-se um verdadeiro obstáculo para o
recrutamento das Trapas; muitas almas que gostariam de viver nes­
tes claustros são forçadas a fugir deles, porque o corpo que elas
arrastam até aqui não consegue acostumar-se a este regime.*
- E os padres levam a mesma existência que os conversos?
- Absolutamente: eles dão o exemplo; todos eles comem a
mesma ração e dormem no mesmo dormitório, em leitos iguais; é a
igualdade absoluta. Somente, os padres têm a vantagem de cantar o
ofício e de obter comunhões mais amiúde.
- Entre os conversos há dois que me têm particularmente inte­
ressado, um, é muito moço ainda, louro, com a barba alongada em
ponta, e o outro um velhinho muito curvado já.
- O jovem é o irmão Anacleto; é uma verdadeira coluna de ora­
ções esse rapaz, e uma das mais preciosas recrutas com que o céu
dotou a nossa abadia. Quanto ao velho Simeão, é um filho das
Trapas, porque foi educado num orfanato da ordem. É uma alma
extraordinária, um verdadeiro santo que vive já fundido em Deus.
Havemos de conversar mais detidamente a seu respeito em outro
dia, porque é tempo de descermos; a hora de Sexta está a cair.
Aqui tem o rosário que tomo a liberdade de oferecer-lhe.
Deixe-me juntar-lhe uma medalha de São Bento - e entregou a
Durtal um pequeno rosário de contas de pau e a estranha rodela,
gravada com letras cabalísticas, que é o amuleto de São Bento.
- Conhece o sentido destes sinais?

* A opinião de Bruno foi recentemente adoptada por todos os abades da


ordem. Em um capítulo geral das Trapas, congregado desde o dia 12 a 18 de
Setembro de 1894, em Tilburg, na Holanda, resolveu-se que fora do tempo de
jejum os monges almoçariam, pela manhã cedo, jantariam às onze horas, e cea­
riam ao fim da tarde.
O artigo cxvi das novas constituições, votadas por esta assembleia capitu­
lar e aprovadas pela Santa Sé, é efectivamente assim concebido:
«Diebus quibus non jeju n atu r a Sancto P ascha usque a d ld u s Semptembris,
Dominicis p e r totum an n u m et om nibus festis Sermonis au t feriatis extra
Q uadragesim am , om nes m on achi m an e accipian t mixtum, h ora u ndecim a
p ra n d ea n t et a d seram coenent». [N.A.]
[Nos dias em que não jejuamos, do santo dia da Páscoa até aos Idos de
Setembro, assim como em todos os domingos do ano, e todas as festas prega­
das e feriais fora da Quaresma, convém que os monges tomem de manhã uma
refeição, ao meio-dia o jantar e à noite uma ceia.] [N.R.]

207
j.-K . HUYSMANS

- Conheço; li-o de uma vez numa brochura de Dom Guéranguer.


- Bom. E a propósito, quando comunga?
- Amanhã.
- Amanhã, é impossível!
- É impossível! Porquê?
- Porque amanhã só se celebrará uma missa, a das cinco horas,
e a regra proíbe comungar isoladamente. O padre Bento, que cos­
tuma dizê-las mais cedo, partiu esta manhã, e só volta daqui a dois
dias. Há portanto um engano.
- Mas o prior declarou-me positivamente que eu havia de
comungar amanhã! - exclamou Durtal. - Então todos estes monges
não são padres?
- Não; com respeito a padres, só há o abade, que está doente,
o prior que há-de oferecer amanhã às cinco horas o sacrifício, o
padre Bento de quem já vos falei e um outro que ainda não viu,
porque anda actualmente em viagem. De resto, se isso fosse possí­
vel, também eu me aproximaria da Santa Mesa.
- Então, se eles não são todos consagrados, que diferença
existe entre os padres que não obtiveram o sacerdócio e os simples
conversos?
- A educação. Para ser padre, é preciso ter feito os seus estudos,
saber o latim, não ser, em uma palavra, o que são os frades leigos,
aldeões ou operários. No entanto, vou procurar o prior e, a respeito
da comunhão de amanhã, logo lhe darei resposta. Mas será um inco­
modo; seria necessário que se pusesse a pé de manhã quando a nós!
Durtal fez um gesto de pesar. Dirigiu-se para a capela, pen­
sando em mais este contratempo, pedindo a Deus que não retar­
dasse mais a sua entrada na graça.
Depois de Sexta, o oblato veio ter com ele. - É mesmo como
eu pensava - disse - , mas não obstante sempre será admitido à con-
sumpção do Sacramento. O padre prior entendeu-se com o vigário,
que janta connosco. Amanhã de manhã antes de partir há-de dizer
missa, na qual lhe dará a comunhão.
- Oh! - gemeu Durtal.
Esta notícia estalava-lhe o coração. Ter vindo à Trapa para rece­
ber a Eucaristia das mãos de um padre de passagem, de um padre
jovial como era este! - Ah! Não; fui confessado por um monge, por­
tanto também quero ser comungado por um monge! - exclamou.
Talvez fosse melhor esperar que o padre Bento voltasse; mas como
há-de ser? Não posso de modo algum expor ao prior que este padre
desconhecido me desagrada e que me seria penoso, nesta altura,
reconciliar-me num claustro assim deste modo!

208
A CAMINHO

E queixou-se a Deus, disse-lhe que toda a felicidade que pode­


ria ter em ser decantado, em ser enfim clarificado, desaparecia-lhe
com esta esperança frustrada.
Chegou ao refeitório, de cabeça baixa.
O vigário já estava lá. Ao ver o rosto contristado de Durtal, ten­
tou caridosamente alegrá-lo, mas as graças que ensaiou produziram
o efeito contrário. Para ser polido, Durtal sorria-se, mas com um ar
tão constrangido que Bruno, que o observava, fez por se mudar de
conversa e sustentou-a só com o padre.
Durtal estava morto para que o jantar acabasse. Já tinha comido
o seu ovo e absorvia com custo um puré de batatas com um fio de
azeite, que se assemelhava, no aspecto, a vaselina; mas no que
menos pensava era em comida!
E dizia consigo mesmo: - É terrível guardar de uma primeira
comunhão uma recordação irritante, uma impressão penosa, e eu
conheço que isso será no futuro uma constante obsessão para mim.
Ora, sei muito bem que, sob o ponto de vista teológico, pouco
importa que isso se faça por um padre ou por um trapista; ambos
eles não passam de uns intérpretes entre mim e Deus, mas enfim;
sinto também que tudo isto não é a mesma coisa. Uma vez, pelo
menos, tenho necessidade de uma garantia, de uma certeza de san­
tidade. E ficou-se, pensando que o abade Gévresin por estas sus­
peitas tinha-o precisamente enviado para uma Trapa.
- Ora que coisa! - dizia consigo.
E nem sequer ouvia a conversação que se arrastava ao lado
dele, entre o vigário e o oblato.
Debatia-se, a sós, comendo debruçado sobre o prato,
- Não tenho vontade alguma de comungar amanhã - e revol­
tou-se. Era um fraco e tornava-se imbecil até ao fim. - Por que razão
o Salvador não se me há-de dar?
Saiu da mesa, agitado por uma angústia surda e começou a
vaguear pelo parque, deixando-se ir ao acaso através das áleas.
Uma outra ideia o obcecava, a ideia de uma provação que lhe
infligia o céu. - Tenho pouca humildade - repetia pois bem, é
para me punir que a alegria de ser santificado por um monge me é
recusada. - Cristo perdoou-me, e isso já é muito. - Por que razão
me havia de conceder mais, atendendo as minhas preferências,
deferindo os meus votos?
Este pensamento acalmou-o por alguns minutos, e ele censu­
rou-se então das suas revoltas, acusou-se de ser injusto para com um
padre que podia, apesar de tudo, ser um santo.
Ah! Deixemos isso - pensou - , aceitemos o facto consumado,

209
J.-K. HUYSMANS

tratemos por uma vez de ser um pouco humildes; entretanto, posso


já recitar o meu rosário. Sentou-se então sobre a erva e começou a
rezá-lo.
Ainda não havia chegado à segunda conta e já era de novo per­
seguido pela sua obsessão. Começou novamente o seu Pater e a sua
Ave, continuou-os, não prestando mesmo a menor atenção ao sen­
tido das suas orações, ruminando: - Ora esta! É preciso muito pouca
sorte para que justamente um monge, que costuma dizer missa
todos os dias, se ausente para eu amanhã ter de sofrer uma seme­
lhante decepção!
E calou-se; veio-lhe depois um minuto de calmaria, mas de
repente um novo elemento de desordem irrompeu nele.
Olhava para o seu rosário de onde apenas tinha desfiado dez
contas.
Mas, vejamos, o prior ordenou-me a recitação de uma de­
zena, todos os dias; uma dezena de contas ou uma dezena de rosá­
rios?
- De contas - respondeu a si mesmo, e quase imediatamente
replicou: - De rosários.
E ficou perplexo.
- Mas seria uma idiotia o ordenar-me a reza de dez rosários por
dia; seria nada menos de quinhentas orações, de seguida; ninguém
pode perfazer uma semelhante tarefa sem sair dos trilhos. Não há
que hesitar, trata-se de dez contas, é claro!
Ah! Não, porque enfim se o confessor nos impõe uma peni­
tencia, devemos admitir que ele a proporciona à grandeza das fal­
tas que vai reparar. Depois, como eu tinha uma grande repugnân­
cia para com estas gotas de devoção postas em glóbulos, é muito
natural que ela me faça engolir o rosário em altas vozes!
Contudo... porém... isto não pode ser! Nem mesmo em Paris
teria o tempo material de o fazer; é um absurdo!
E de novo voltava-lhe a icleia lancinante de que se enganava.
Não há que duvidar, pois; na linguagem eclesiástica uma
dezena quer dizer dez contas; sem dúvida... mas recordo-me muito
bem que depois de ter pronunciado a palavra rosário o padre expri­
miu-se assim: «há-de dizer uma dezena», o que significa uma dezena
de rosários, porque de outro modo ele teria especificado uma
dezena de um rosário.
E replicou vivamente a si próprio: - O padre não precisava de
pôr os pontos nos is, pois que empregava um termo convencio­
nado, conhecido de todos. Este debate sobre o valor de um termo
é extremamente ridículo!

210
A CAMINHO

Tentou dissipar esta tormenta, fazendo um vâo apelo à sua


razão; mas de súbito surgiu-lhe um argumento que acabou de des­
concertá-lo.
Lembrou-se de que era por moleza, por preguiça, por desejo
de contradição, por necessidade de revolta, que não dobava os seus
dez novelos. - Das duas interpretações, escolhia a que me dispen­
sava de todo o esforço, de todo o trabalho, a verdadeiramente fácil.
Isto apenas prova de que me engano quando tento persuadir-me de
que o prior não me prescreveu o contar mais de dez grãos!
Depois um Pater, dez Ave e uma Gloria não é nada realmente;
não se pode tomar a sério como penitencia!
E respondeu a si mesmo: - Afinal de contas isso é muito para
ti, pois que não és capaz de as proferir sem te distraíres afinal.
E como que girava sobre si mesmo sem avançar um só passo.
- Nunca na minha vida experimentei uma semelhante hesita­
ção - dizia consigo, tentando repreender-se. - Eu não estou doido
e contudo bato-me contra o meu bom senso, porque não há que
duvidar, sei-o muito bem, de que tenho a rezar uma dezena de Ave-
-Marias, sem mais!
E ficou-se embaraçado, quase temeroso com este estado que
era novo para ele.
E para se tirar de embaraços, para se calar, imaginou uma nova
reflexão, que conciliava vagamente as duas partes, que lhe parecia
mais urgente, que apresentava pelo menos uma solução provisória.
Em todo o caso - continuou - não posso comungar amanhã se
não cumprir hoje a minha penitência; na dúvida, o mais prudente é
atrelar-me aos dez rosários, e depois veremos o que será; eu pode­
ria, em caso de necessidade, consultar o prior. É verdade que ele
vai-me julgar imbecil, se lhe falo a respeito dos rosários! Não posso
portanto perguntar-lhe isto!
- Mas então, tu acabas de confessá-lo a ti mesmo, não podem
ser só as dez contas!
E exasperou-se, lançou-se sobre o rosário para obter o seu pró­
prio silêncio.
Tinha necessidade de fechar os olhos, de tentar concentrar-se,
agrupar-se, e foi-lhe impossível, ao cabo de duas dezenas, prosse­
guir as suas orações; distraía-se, esquecia-se das bolas dos Padre-
-Nossos, perdia nos grânulos das Ave-Marias, não saía do mesmo
sítio. Lembrou-se, para se reprimir, de, a cada dezena, transportar-
-se a uma das capelas da Virgem que gostava de freqüentar em
Paris, Notre-Dame-des-Victoires, Saint-Sulpice, ou Saint-Séverin; mas
estas Virgens não eram tão numerosas para que pudesse dedicar-

211
J.-K. HUYSMANS

-lhes cada dezena, então evocou as Madonas dos quadros dos


Primitivos e, recolhido diante da sua imagem, enrolou o cabrestante
das suas exorações, não compreendendo o que murmurava, mas
pedindo à Mãe do Salvador que aceitasse essas rezas, como recebia
o fumo perdido de um turíbulo, esquecido diante do altar.
Não posso forçar-me muito mais - disse consigo. Saiu deste
labor fatigado, moíclo; quis tomar fôlego, mas restavam-lhe, ainda
mais três rosários a cumprir,
E logo que parou, a questão da Eucaristia, que julgava morta,
começou de novo.
- Mais me vale não comungar do que comungar mal; e é
impossível que depois de semelhantes lutas e com tais prevenções
possa dignamente aproximar-me da Santa Mesa.
Sim, mas que fazer? No fundo, não era já monstruoso o discu­
tir as ordens do monge, querer operar a seu modo, reclamar os
seus socorros? - Se isto assim continua, arrisco-me ainda a pecar
hoje, de modo que ver-me-ei obrigado a tornar a confessar-me -
dizia consigo.
Para romper esta obsessão, atirou-se às suas contas, mas então
aí desvairou-se por completo; o artifício, de que se tinha servido
para se manter ao menos diante da Virgem, estava gasto. Quando
quis abstrair-se, e depois suscitar em si uma recordação de Memling,
nada conseguiu, e as suas orações puramente labiais, além de o
importunarem, desolaram-no.
Tenho a alma extenuada - pensou - e seria prudente se a dei­
xasse descansar, permanecendo tranqüilo.
E começou a errar ao redor do tanque, não sabendo em que
passar o tempo. - E se fosse para a minha cela? - e encaminhou-se
para aí; tentou absorver-se no Pequeno Ofício da Virgem e não apa­
nhava uma só palavra das frases que lia. Tornou a descer e com e­
çou de novo a circunvagar pelo parque.
- Não há que ver, ponho-me doido! - exclamou, e melancoli-
camente repetiu consigo: - Eu devia considerar-me muito feliz, orar
em paz, e preparar-me para o acto de amanhã, e no entanto nunca
estive tão inquieto, tão agitado, tão longe de Deus!
É-me preciso portanto acabar com esta penitência! - a deses-
peração abateu-o, esteve mesmo prestes a deixar tudo, mas humi­
lhou-se ainda e constringiu-se a soletrar de novo as suas contas.
Acabou por abandoná-las; estava esgotado de forças.
E de súbito achou um novo meio de se torturar ainda.
Recriminou-se de ter engrolado as suas preces com negligên­
cia, sem mesmo ter seriamente tentado condensar o seu sentido.

212
A CAMINHO

E esteve quase resolvido a começar de novo todo o rosário;


mas, diante da evidente loucura desta sugestão, agastou-se e recu ­
sou escutar-se, depois ainda se importunou mais uma vez.
- É mais que verdade que tu não cumpriste a tarefa designada
pelo confessor, pois que a tua consciência te lança em rosto a tua
falta de recolhimento, e as tuas diversões.
Mas eu estou esgotado! - exclamou. - Não posso neste estado
repetir estes exercícios! - e ainda desta vez chegou a inventar uma
nova desculpa para se descartar.
Poderia compensar por uma só dezena, reflectida, pronunciada
com cuidado, todas as contas do rosário que tinha resmungado, sem
compreendê-las.
E tentou tomar a colocar a manivela em marcha, mas apenas
desfiou o Pater, começou logo a divagar; tentou mesmo moer as
Ave-Marias, mas então o seu espírito dispersou-se, fugiu de todas as
partes.
Ficou-se, pensando: - Pois quê? Afinal de contas uma dezena
bem dita não eqüivaleria a quinhentas orações erradas? E depois,
por que razão há-de ser uma dezena e não duas, ou três? É absurdo!
A cólera apoderava-se dele. Afinal, concluiu, estes recidivos são
ineptos e estéreis; Cristo declarou muito positivamente que não era
preciso usar de vãs repetições nas preces. Então qual é o fim deste
sarilho de Ave-Marias?
- Se eu me sobrecarrego com esta ordem de icleias, se ques­
tiono com as injunções cio monge, estou irremediavelmente perdido
- disse de repente consigo; e por um esforço da vontade sufocou as
revoltas que rugiam nele,
E foi refugiar-se na sua cela. As horas alongavam-se interminá­
veis. Ele matava-as em repetir sempre as mesmas objecções, sempre
as mesmas respostas. Isto tornava-se uma lengalenga de que ele
mesmo tinha vergonha.
O que é certo é que sou vítima de uma aberração - continuou.
- Já não falo da Eucaristia; aí os meus pensamentos podem não ser
justos, mas ao menos não são dementes, ao passo que nesta ques­
tão das rezas...
E aturdiu-se tanto em sentir-se martelado do mesmo modo que
uma bigorna entre estas duas obsessões, que afinal caiu amodorrado
sobre uma cadeira.
Passou assim até à hora das Vésperas e da ceia. Depois deste
repasto foi passear pelo parque.
Então os litígios que estavam em letargia reanimaram-se e tudo
voltou de novo à liça. Foi um embate furioso em todo o seu ser.

213
J.-K. HUYSMANS

E ele quedava-se imóvel, escutava-se, aterrado, quando um passo


rápido se aproximou, e Bruno, abeirando-se, disse-lhe:
- Tenha muita cautela, é o alvo de um ataque demoníaco!
E como Durtal estupefacto nada respondesse:
- Sim - disse o bom Deus concede-me às vezes intuições, e
estou bem certo de que nesta hora o diabo anda consigo às voltas.
Vá, diga-me o que tem?
- Não sei... nem posso compreender coisa alguma disto - e
Durtal contou-lhe a espantosa batalha que desde a manhã se travava
dentro em si a propósito do rosário.
- Está louco - exclamou o oblato. - Foram dez contas o que o
prior lhe ordenou; dez rosários são impossíveis de recitar!
- Sei-o muito bem... E contudo duvido ainda.
- É sempre a mesma táctica - disse Bruno conseguir des­
gostar-nos da coisa que se deve praticar; sim, o diabo quis tornar-
-lhe o rosário odioso, atormentando-o. E que mais há ainda? Não
tem vontade de comungar amanhã?
- É verdade - respondeu Durtal.
- Isso mesmo o suspeitei quando estava a observá-lo durante
a refeição. Ah! É depois das conversões que o Maligno verdadeira­
mente se agita; e isso não é nada, pois acredite-me que ele fez-me
ver coisas ainda mais duras que essas.
E enfiou o braço por debaixo do de Durtal, depois levou-o ao
auditório, e aí pediu-lhe que esperasse um pouco e desapareceu em
seguida.
Alguns minutos depois o prior entrava.
- Então - disse - , Bruno acaba de me contar que sofre muito.
Que há de novo então?
- Oh! Isto é tão imbecil que até tenho vergonha de explicar-me.
- Nunca será capaz de espantar um monge - disse o prior sor-
rindo-se.
- Pois bem, tenho a firme certeza de que me deu dez contas
do rosário para as recitar, durante um mês, todos os dias; e desde
esta manhã debato-me contra toda a evidência, contra todo o meu
bom-senso para me convencer de que é de dez rosários quotidianos
que se compõe a minha penitência.
- Deixe cá ver o seu rosário - disse o padre - e olhe para estes
dez glóbulos; pois bem, é tudo o que lhe prescrevi e é tudo o que
tem a recitar. Então já desfiou hoje dez rosários inteiros!?
Durtal fez sinal que sim.
- E, naturalmente embaraçou-se, impacientou-se e acabou por
divagar, distraindo-se?

214
A CAMINHO

E vendo que Durtal deixava escapar um sorriso triste:


- Pois bem, escute-me - declarou o padre num tom enérgico.
- Proíbo-a, de agora para o futuro, de nunca mais repetir a mesma
oração; se ela for mal dita, tanto pior, passa adiante e não a repele.
E nem mesmo lhe pergunto se a ideia de repelir a comunhão
lhe sobreveio; isso é muito natural, porque é para aí que o inimigo
converge todos os seus esforços. Não o escute, pois, a voz diabólica
quer-lhe tirar isso da cabeça; há-de comungar amanhã, dê por onde
der. E não deve restar-lhe nenhum escrúpulo, porque sou eu agora
que lhe ordeno de receber o Sacramento; demais, tomo toda a res­
ponsabilidade sobre mim.
Outra pergunta agora: que tal passa as noites?
Durtal relatou-lhe a abominável noite da sua chegada à Trapa,
e essa sensação de ser espiado que o havia acordado na véspera.
- São manifestações que nós conhecemos de longa data, e não
tem perigo imediato. Não se inquiete, pois, com isso; todavia se per­
sistirem, dê-se ao incomodo de avisar-me, porque então náo nos
descuidaremos de providenciar.
E o trapista saiu tranquilamente, ao passo que Durtal ficou pen­
sativo.
Que estes fenômenos do Sucubato sejam satânicos, nunca o
duvidei - pensou - , mas o que ignorava era estes ataques da alma,
esta carga a fundo contra a razão que permanece intacta ainda que
vencida; isto na verdade é duro; convém, pois, que esta lição me sirva
de aviso, e que não mais me desvaire assim logo ao primeiro alarme!
E tornou a subir para a sua cela; uma grande paz tinha descido
sobre ele. À voz do monge tudo se calara; já não experimentava
senão a surpresa de ter saído do seu caminho durante bastantes
horas; compreendia agora que tinha sido assaltado de improviso e
que não era com ele mesmo que tinha lutado.
E pôs-se a orar, deitando-se por fim. Mas de repente por uma
nova táctica, que náo logrou adivinhar, o assalto prosseguiu.
Sem dúvida - disse consigo - comungarei amanhã, mas...
mas... estarei eu bem preparado para um tal acto? Devia ter-me reco­
lhido durante o dia, devia ter agradecido ao Senhor por me ter
absolvido, e eu perdi todo o meu tempo em loucuras!
Porque não o confessei então ao padre Maximino? Como é que
isso nem sequer me passou pela ideia? De mais a mais, parece-me
que deveria tornar a confessar-me. - E esse padre que me vai dar a
comunhão, esse padre!...
O horror que sentia por este homem cresceu de súbito, tornou-
-se tão veemente que até se espantou de si mesmo. - Ah! Como sou

215
J.-K. HUYSMANS

ainda embalado pelo inimigo! - disse consigo, e depois com fir­


meza:
- Afinal nada me poderá impedir de consumir amanhã as celes­
tes Aparências, porque já estou bem decidido a isso; não é horrível
deixar-se assim comprimir e importunar sem descanso pelo Espírito
de Malícia, e não ter nenhum indício do céu, que não intervém, de
nada saber enfim?
Ah! Senhor, se eu estivesse certo de que esta comunhão vos
agrada! - Dai-me um sinal, mostrai-me que posso sem remorso aliar-
-me a Vós; fazei com que amanhã não seja esse padre, mas sim um
monge que...
E parou, confundido da sua audácia, perguntando a si mesmo
como ousava solicitar um sinal, indicando-o até.
- É imbecil! - exclamou. - Demais, não há o direito de recla­
mar de Deus semelhantes favores; depois, como Ele certamente não
ouvirá este voto - tê-lo-ei ganho! - agravarei ainda as minhas angus­
tias, porque augurarei desta recusa que a minha comunhão de nada
me valerá.
E suplicou ao Senhor que esquecesse o seu desejo, desculpou-
-se de o ter formulado, quis convencer-se de que não tomou conta
no que dizia, embrutecido como estava pelos transes de todo o dia,
e a rezar acabou por adormecer.

216
IV

Quando desceu da sua cela, ia repetindo mentalmente: É nesta


manhã que vou comungar; e esta palavra que devia percuti-lo, fazê-
-lo vibrar, não despertava nele zelo algum. Quedava-se letárgico,
não tendo gosto em nada, lasso de tudo, sentindo-se frio no mais
íntimo do seu ser.
No entanto um receio desentorpeceu-o apenas chegou fora.
- Não sei - dizia consigo - a ocasião azada em que tenho de
deixar o meu lugar para ir ajoelhar-me diante do padre; sei somente
que a comunhão dos fiéis tem lugar depois da do oficiante. Bem,
mas qual o momento preciso em que devo levantar-me? É verda­
deiramente incômodo o sermos obrigados a ir sozinhos para a
inquietante Mesa; de outro modo não teria mais do que seguir os
outros, e não me arriscaria a portar-me com menos inconveniente.
Pôs-se a espreitar antes de entrar na capela; buscava com os
olhos Bruno que, indo para o seu lado, talvez pudesse evitar-lhe
estes cuidados, mas o oblato não se achava aí nessa ocasião.
Durtal sentou-se, desamparado, pensando no sinal que havia
implorado na véspera, e esforçando-se por repelir essa recordação,
não pensando nela.
Quis compulsar-se e reunir-se, orando ao céu que lhe per­
doasse estas idas e vindas de espírito, quando Bruno entrou, e foi
ajoelhar-se diante cia imagem da Virgem.
Quase ao mesmo tempo, um irmão que tinha uma barba plan­
tada em baixo de um rosto piriforme, levou para junto do altar de
São José uma mesinha circular, em cima da qual pousou uma bacia,
um manutérgio, duas galhetas, e uma toalha.
Ante estes preparativos que lhe recordavam a eminência do
Sacrifício, Durtal estremeceu, conseguindo num esforço expulsar as
suas ansiedades, subjugar as suas perturbações, e, escapando-se de
si mesmo, suplicou então ardentemente a Nossa Senhora que inter­

217
J.-K. HIJYSMANS

cedesse para que ele pudesse, durante esta hora pelo menos, orar
em paz, sem se extraviar.
E assim que terminou a sua oração, levantou os olhos e teve
um sobressalto; viu, estupefacto, o padre que avançava, precedido
do converso, para celebrar a missa.
E não era o vigário que já conhecia, mas sim um outro, muito
alto, de rosto pálido e barbeado, e a cabeça calva.
Durtal olhava para ele, que caminhava então solenemente e de
olhos baixos, para o altar, e viu, de súbito, uma chama violácea a
arder nos seus dedos.
Ah! Ele tem o anel episcopal? É, pois, um bispo - dizia consigo
Durtal que se inclinou para ver se distinguia por debaixo da casula
e da alva a cor do vestido. Era branco.
Então é um monge - continuou, desvairado; e maquinalmente
voltou-se para o lado da imagem da Virgem e chamou com um
olhar precipitado o oblato que veio sentar-se à sua beira.
- Quem é?
- É Dom Anselmo, o abade do mosteiro.
- O que estava doente?
- Sim, é ele que nos vai dar a comunhão.
Durtal caiu de joelhos, sufocado, quase a tremer: ele não estava
a sonhar? O céu respondia-lhe pelo sinal que tinha fixado!
Devia agora abismar-se diante de Deus, despedaçar-se a seus
pés, expandir-se num transporte de gratidão; e bem o sabia e bem
o queria, mas, sem que soubesse como, engenhava procurar causas
naturais que pudessem justificar esta substituição de um monge ao
padre.
É sem dúvida muito simples, porque enfim, antes de admitir­
mos uma espécie de milagre... de resto, eu hei-de ter a certeza, por­
que depois da cerimonia vou tirar o caso a limpo.
E revoltou-se contra as insinuações que deslizavam nele. Que
interesse podia apresentar o motivo desta troca? Evidentemente
devia haver um; mas este não era mais que uma conseqüência, que
um acessório; o principal era a vontade sobrenatural que o tinha
feito nascer. - Em todo o caso obtiveste mais do que tinhas pedido
- continuava - tens coisa melhor do que o simples monge que dese-
javas, tens o próprio abade da Trapa! - e exclamou: - Oh! Crer, crer
como estes pobres conversos, não estar possuído de uma alma que
voa assim a todos os ventos; ter a Fé infantil, a Fé imóvel, a desen-
raizável Fé! Ah!, meu Pai, enterrai-a então profundamente em mim!
E teve um tal arroubo que se projectou para fora de si; tudo
lhe desapareceu em derredor, e disse, a balbuciar, a Cristo: «Senhor,

218
A CAMINHO

não vos afasteis de mim. Que a vossa misericórdia reprima a vossa


equidade; sede injusto agora, e perdoai-me; acolhei o mendigo de
comunhão, o pobre de alma!»
Bruno tocou-lhe no braço e convidou-o com um simples olhar
a acompanhá-lo. Caminharam ambos até ao altar e ajoelharam-se
sobre os degraus; depois, quando o padre os abençoou, ajoelharam-
-se mais de perto, sobre o último degrau, e o converso estendeu-lhe
uma pequena toalha, porque não havia aí a grade, nem a longa toa­
lha do costume.
E o abade da Trapa deu-lhes a comunhão.
Em seguida dirigiram-se para os seus lugares. Durtal achava-se
num estado de absoluto torpor; o Sacramento tinha-lhe, de alguma
sorte, anestesiado o espírito; jazia de joelhos, num banco, incapaz
mesmo de distinguir o que podia mover-se no seu íntimo, inapto
para se reunir e concentrar!
E de repente teve a impressão de que abafava, de que lhe fal­
tava o ar. A missa havia acabado; então lançou-se para fora, e cor­
reu até a sua álea; aí quis analisar-se, mas encontrou o vácuo.
E diante do lago em cruz em cujas águas se afogava o cruci­
fixo, experimentou uma melancolia infinda, uma tristeza imensa.
E foi como que uma síncope da alma; aí perdeu todo o conhe­
cimento, e quando voltou a si, admirou-se de não ter sentido um
transporte oculto de alegria; depois havia tido a hóstia colada ao
paladar, e teve que procurá-la e enrolá-la com a língua, como se fora
um farrapo, para a engolir.
Oh! Isto era ainda muito material! Não seria preciso mais que
um fluido, um fogo, um perfume, um sopro!
E tentou explicar o tratamento que o Salvador lhe fazia seguir,
Haviam fracassado todas as suas previsões; era a absolvição e
não a comunhão que havia actuado, de resto. Perto do confessor,
tinha muito nitidamente apercebido a presença do Redentor; todo o
seu ser havia sido, de algum modo, injectado de eflúvios divinos e
a Eucaristia tinha-lhe somente levado um tributo de asfixia e de dor.
Parecia-lhe que os dois sacramentos tinham substituído um ao
outro os seus efeitos; haviam manobrado ao invés, sobre ele; Cristo
tornava-se sensível à alma, antes, e não depois.
Mas, isto é bastante compreensível - dizia consigo - ; a grande
questão para mim era ter a certeza absoluta do perdão; por um favor
especial, Jesus ratificou-me a minha fé no ditame de Penitência.
Porque fez tanto?
E depois, quais seriam então as liberalidades que Ele reserva­
ria aos seus Santos? Isto mesmo causa-me estranheza. Devia então

219
J.-K. HUYSMANS

ser tratado como trata certamente o irmão Anacleto e o irmão


Simeão?
Já obtive mais do que merecia. E esta resposta que eu nesta
mesma manhã obtive? Bem, mas para que há-de haver tantos avan­
ços para de súbito ter de rematar neste recuo?
E ao encaminhar-se para a abadia onde devia ir comer o seu
queijo e o seu pão, disse consigo: - A minha sem-razão para com
Deus é estar sempre a raciocinar, quando devia adorá-lo muito sim­
plesmente como o fazem aqui os monges. Ah! Poder calar-se, calar-
-se a si mesmo, eis a verdadeira graça!
Chegou ao refeitório; estava aí só, como de costume, Bruno
que nunca assistia pela manhã à refeição das sete horas. Mal aca­
bava de partir um pão, quando o padre hospedeiro apareceu.
Trazia nas mãos uma porção de facas e um tijolo. Sorriu-se para
Durtal e disse-lhe: —Vou tratar de fazer reluzir as lâminas do mos­
teiro, porque realmente já têm falta disso - e depô-las em cima de
uma mesa numa sala que dava para o refeitório.
- E então, está satisfeito? - disse ao voltar.
- Certamente; mas o que foi que se passou esta manhã para
que o abade da Trapa me viesse dar a comunhão, quando o devia
fazer o vigário que costuma jantar comigo?
- Ah! - exclamou o monge fiquei tão surpreendido como o
senhor. O padre abade declarou subitamente ao despertar que que­
ria esta manhã celebrar a sua missa. E levantou-se apesar das obser­
vações do prior que quase como médico lhe proibia de sair do leito.
Eu não sei nem ninguém sabe pelo que foi. Assim que lhe anun­
ciaram que havia um retirante para comungar, respondeu: «perfeita­
mente, sou eu quem lhe vai dar a comunhão». O senhor Bruno, pois,
aproveitou-se deste ensejo para também se aproximar do
Sacramento, porque ele gosta muito de receber Nosso Senhor das
mãos de Dom Anselmo.
E esta combinação também satisfez o vigário - prosseguiu sor­
rindo o monge - porque partiu da Trapa mais cedo esta manhã, e
pôde ir dizer a sua missa numa comuna onde era esperado. A pro­
pósito, ele pediu-me que lhe apresentasse as suas desculpas por não
ter podido pessoalmente fazer-lhe as suas despedidas.
Durtal inclinou-se. - Não há que duvidar - pensava - , Deus
quis responder-me de um modo bem nítido.
- E o seu estômago?
- Não há que dizer, meu padre; estou mesmo admirado de que
nunca digeri tão bem como aqui; não contando que as nevralgias
que tanto temia têm-me poupado o mais possível.

220
A CAMINHO

- Isso tudo prova que o Altíssimo o protege.


- Oh!, decerto. Mas agora me lembra uma coisa que já há muito
lhe queria perguntar. Como estão organizados os vossos ofícios? Eles
não conferem com os que vêm no meu eucológio.
- De facto, diferem do seu, porque pertencem ao ritual
romano. As Vésperas são quase semelhantes, salvo às vezes os capí­
tulos, e depois, o que vos desnorteia talvez, é que as nossas são as
mais das vezes precedidas das Vésperas da Santa Virgem. Em regra
geral, temos um salmo de menos, por ofício, e nem sempre lições
breves.
Excepto - continuou sorrindo o padre Estêvão - nas
Completas, aí justamente onde as recita. Assim, como pôde notá-lo,
nós ignoramos o «In manus tuas, Domine», que é uma das raras
lições breves que nas igrejas se cantam.
Actualmente possuímos também um Próprio dos Santos espe­
cial; celebramos a comemoração de bem-aventurados da nossa
ordem que não figuram nos seus livros. Em suma, seguimos à letra
o breviário monástico de São Bento.
Durtal tinha dado fim ao seu almoço. E levantou-se, receando
importunar o padre com as suas perguntas.
LJma palavra do monge lhe galopava no cérebro, a palavra de
que o prior tinha o emprego de médico; e antes de sair, interrogou
ainda o padre Estêvão.
- Não, o padre Maximino não é médico, mas conhece muito
bem as doenças simples, e tem uma pequena farmácia que é sufi­
ciente, de resto, quando a doença não é grave.
- E nesse caso?
- Nesse caso, pode chamar-se um médico das cidades mais pró­
ximas; mas aqui não se chega a estar doente até esse ponto, Estando
nós próximos do nosso fim, a visita de um doutor é bem inútil...
- Então o prior trata da alma e do corpo, na Trapa?
O monge aprovou com um sinal de cabeça.
Durtal foi passear. Esperava dissipar a sua falta de ar com uma
longa caminhada.
Meteu-se por um caminho que não tinha ainda percorrido e
desembocou numa clareira onde se elevavam as ruínas do antigo
convento, alguns panos de muros, colunas troncadas, capitéis de
estilo românico; infelizmente estes destroços achavam-se num
deplorável estado, cobertos de musgos, mutilados, esponjosos e
esburacados como pedra-pomes.
Continuou o seu caminho, indo ter a uma longa vereda, ao
longo da qual se estendia um lago; este lago era cinco ou seis vezes

221
J.-K. HUYSMANS

maior do que o pequeno tanque em forma de cruz que costumava


freqüentar.
A álea que o rodeava era bordada de velhos robles, e ao meio
elevava-se, perto de um banco de pau, uma estátua da Virgem, de
ferro fundido.
Soltou um gemido ao olhar para ela. O crime da igreja perse­
guia-o ainda e sempre; aí, e mesmo nesta capelinha, tão cheia de
um relento divino, todas as imagens provinham dos bazares religio­
sos de Paris e Lyon.
Instalou-se, em baixo, perto do lago cujas margens eram cer­
cadas por canaviais que continham aqui e ali tufos de vimes; e
divertia-se a contemplar as cores destes arbustos, as suas folhas de
um verde liso, as suas hastes de um amarelo de cidra e de um ver­
melho sanguíneo, e a observar a água que se encrespava, e se
punha a borbulhar com qualquer lufada de vento. Algumas andori­
nhas roçavam-na com as pontas das suas asas, destacando-lhe algu­
mas gotas que saltavam como pérolas de prata fluída. E estas aves
subiam, volteavam, soltando os seus gritos, enquanto que as libeli-
nhas se acendiam no ar que elas golpeavam de chamas azuis.
O quieto refúgio! - pensava Durtal. - Já há mais tempo que
devia vir até aqui repousar - e sentou-se então sobre um leito de
musgos, e pôs-se a prestar atenção à vida surda e activa das águas.
Umas vezes, era a agitação e o relâmpago de uma carpa que se
virava a pular, espadanando a líquida superfície com a cauda; outras
vezes eram enormes aranhões que patinavam à sua superfície, tra­
çando pequenos círculos, cavalgando uns sobre os outros, e
parando agora para depois tornar a desfilar, desenhando novas cur­
vas. E pelo chão, perto dele, Durtal via aos pulos miríades de sal-
tões verdes de ventre vermelho, ou colônias desses extravagantes
insectos que têm sobre o dorso uma cabeça de demônio pintada a
mínio num fundo negro, trepando no seu assalto às carvalheiras.
E por cima de tudo isto, se levantasse os olhos, via o mar silen­
cioso e agitado do céu, um mar azul, enrugado de nuvens brancas
que se amontoavam umas sobre as outras como vagas; e este fir­
mamento corria ao mesmo tempo na água onde se espelhava como
num vitral glauco.
Durtal deixava-se ficar, fumando cigarros uns após outros; a
melancolia que o comprimia desde a madrugada começava a diluir-
-se, e a alegria insinuava-se nele ao sentir-se uma alma lavada na
piscina dos sacramentos e enxugada na área de um claustro. E
estava ao mesmo tempo feliz e inquieto, feliz porque a conversação,
que acabava de ter com o padre hospedeiro, lhe havia tirado as

222
A CAMINHO

dúvidas que ainda podia conservar sobre o lado sobrenatural que


apresentava a repentina troca de um padre e de um monge para o
comungar; feliz também em saber que não somente, apesar das
desordens da sua vida, Cristo não o tinha repelido, mas ainda con­
cedia-lhe estímulos e dava-lhe penhores em que confirmava por
meio de actos sensíveis o anúncio das suas graças. E contudo, não
só estava inquieto, porque julgava-se ainda árido, mas também dizia
consigo que era-lhe preciso reconhecer estas bondades por meio de
uma luta contra si mesmo, por meio de uma nova existência com­
pletamente diferente da que tinha até aí arrastado.
Enfim, veremos! - e dirigiu-se, quase sereno para o ofício da
Sexta e daí para o jantar onde encontrou Bruno.
- Vamos hoje passear ambos - disse o oblato, esfregando as
mãos.
E como Durtal olhasse para ele admirado.
- Sim; pensei que depois de uma comunhão faria bem um
pouco de ar fora dos muros, e por isso propus ao padre abade a
graça de libertá-lo por hoje da regra da ordem, no caso em que este
convite não lhe desagrade.
- Oh! Aceito-o com muito gosto e agradeço-lhe do coração
essa caridosa atenção para comigo - exclamou Durtal.
Ambos tiveram por jantar um caldo de azeite, onde nadavam
umas folhas de couve e algumas ervilhas; isto, porém, não era mau,
mas o pão manipulado na Trapa fazia recordar, quando estava seco,
o pão do cerco de Paris e dava um mau gosto à sopa.
Depois, cada qual comeu um ovo com salsa, e um pouco de
arroz com leite e sal.
- Em primeiro lugar, se isso lhe agrada - disse o oblato - , have­
mos de ir fazer uma visita a Dom Anselmo que já me exprimiu o
desejo de conhecê-lo.
E através de um déclalo de corredores e escadarias, Bruno
levou Durtal a uma celazinha onde estava o abade. Assim como
todos os padres, trazia um vestido branco e escapulário negro;
contudo, apresentava ao peito, suspensa na ponta de um cordão
violeta, uma cruz abacial de marfim, em cujo centro estavam
incrustadas algumas relíquias, cobertas com um pequeno vidro
redondo.
Estendeu logo a mão a Durtal e pediu-lhe que se sentasse.
Depois perguntou-lhe se a alimentação lhe parecia suficiente.
E, à resposta afirmativa de Durtal, quis saber ainda se o silêncio pro­
longado não lhe custava a suportar.
- Oh! Não, esta solidão até me agrada muitíssimo.

2 23
J.-K. HUYSMANS

- Pois bem - disse o abade sorrindo posso afirmar-lhe que é


um dos raros leigos que suportou assim tão facilmente este nosso
regime. Geralmente todas aquelas pessoas que têm tentado fazer um
retiro entre nós são logo torturadas pela nostalgia e pelo spleen e não
têm mais que um único desejo, o de tomar imediatamente a fuga.
Não é mesmo possível - continuou depois de uma pausa - que
uma mudança tão brusca de hábitos não arraste consigo privações
penosas; há uma, pelo menos, que deve sentir mais vivamente do
que as outras?
- É verdade, o poder acender um cigarro à vontade...
- Mas - disse o abade a sorrir - presumo que não tem passado
sem fumar desde que está aqui?
- Mentiria se lhe dissesse que não tenho procurado fumar às
escondidas.
- Meu Deus! Mas o tabaco não foi previsto por São Bento;
mesmo a sua regra não faz menção disso, portanto tenho toda a
liberdade para permitir o seu uso; pode, pois, fumar à vontade,
quando lhe aprouver e sem constrangimento algum.
E Dom Anselmo acrescentou:
- Espero dentro em pouco, se não for obrigado a ficar ainda
de cama, ter o gosto de conversar mais demoradamente consigo.
E o monge, que parecia extenuado, apertou-lhe a mão. Ao des­
cer com o oblato para a cerca, Durtal exclamou:
- É em extremo simpático o senhor padre abade, e é ainda
muito novo.
- Ainda não tem quarenta anos.
- Tem aspecto de quem sofre muito.
- É verdade, realmente foi-lhe preciso esta manhã uma energia
pouco comum para poder dizer a sua missa. Agora vamos iniciar o
nosso passeio, visitando as terras da Trapa que decerto ainda não
pôde explorar inteiramente; depois sairemos da clausura e daremos
uma saltada até à granja.
Partiram ambos, costeando os restos da antiga abadia, e pelo
caminho, ao contornar o tanque, onde junto dele Durtal nessa
manhã se havia sentado, Bruno entrou em explicações a propósito
das ruínas.
- Este mosteiro foi fundado em 1127 por São Bernardo, onde
instalou como abade o Bem-aventurado Humberto, um Cisterciense
epiléptico, a quem miraculosamente havia curado. Houve nessa
época aparições no convento: uma lenda conta que dois anjos
vinham cortar um dos lírios plantados no cemitério e levavam-no
para o céu todas as vezes que um dos monges morria.

22 4
A CAMINHO

O segundo abade foi o Bem-aventurado Guerric, que se tornou


célebre pela sua ciência, humildade e paciência em suportar os
males. Possuímos ainda as suas relíquias; são elas as que estão
encerradas no relicário que está por baixo do altar-mor.
Mas o mais curioso dos superiores que se sucederam aqui, na
Idade Média, foi Pedro Monoculus cuja historia foi escrita pelo seu
amigo, o sinodita Tomás de Reuil.
Pedro, chamado Monoculus por ser cego de um olho, foi um
santo ávido de austeridades e de sofrimentos. Era repetidamente
assaltado por horríveis tentações, das quais zombava. Exasperado, o
diabo atacou-lhe o corpo e quebrou-lhe o crânio a golpes de nevral-
gias, mas o céu veio-lhe em ajuda e curou-o. À força de verter lágri­
mas, por espírito de penitência, Pedro perdeu um olho, agrade­
cendo a Nosso Senhor esse benefício. «Eu tinha - dizia - dois ini­
migos; vi-me livre do primeiro, mas o que ainda conservo inquieta-
me mais do que o que perdi.»
Ele operou curas miraculosas; o rei de França, Luís VII, vene­
rava-o a tal ponto que todas as vezes que o avistava queria beijar-
-Ihe a sua pálpebra vazia. Monoculus morreu em 1186; ensoparam-
-se panos no seu sangue, e lavaram-se as suas entranhas com vinho
que foi largamente distribuído, considerando-se esta mistura como
um poderoso remédio.
Este ascetério então era imenso; compreendia toda a região
que nos cerca, mantinha várias gafarias nas suas redondezas, e era
habitado por mais de trezentos monges; infelizmente deu-se com a
abadia de Nossa Senhora do Lar o mesmo que com todas as outras.
Sob o regime dos abades comandatários, ela declinou; estava pres­
tes a morrer de vez, com seis religiosos apenas, quando a Revolução
a suprimiu. A Igreja foi então arrasada e substituída mais tarde pela
capela em forma de rotunda.
Foi pelos anos de 1875 que a casa actual, que data de 1733,
segundo creio, foi reconciliada e se tornou de novo um claustro.
Chamaram-se os Trapistas de Santa Maria do Mar, da diocese de
Toulouse, e esta colônia fez de Nossa Senhora do Lar o viveiro
Cisterciense que vê.
Tal é, em duas palavras, a história deste convento - disse o
oblato. - Quanto às ruínas, elas sumiram-se pela terra abaixo e havia
de descobrir-se sem dúvida preciosos fragmentos se a falta de
dinheiro e de braços não fizesse renunciar qualquer ideia sobre
escavações.
Sobrevive, portanto, da antiga igreja, além dessas colunas que­
bradas e desses capitéis próximo dos quais há pouco passámos,

225
J.-K. HUYSMANS

uma grande estátua da Virgem, que foi erecta num dos corredores
da abadia; e subsistem ainda dois anjos muito bem conservados que
estão agora, acolá em baixo, no extremo da clausura, numa capeli-
nha escondida atrás de uma cortina de árvores.
- Esta Virgem, em cuja frente talvez São Bernardo se tivesse
ajoelhado, devia pôr-se na própria igreja, sobre o mesmo altar votado
a Maria, porque a imagem colorida que lá existe é de uma fealdade
importuna, assim como aquela também - disse Durtal, designando
ao longe a Madona, que se elevava no ar, diante do tanque.
O oblato baixou a cabeça e não respondeu.
- Ora, não quer saber - exclamou Durtal, que ante este silên­
cio não insistiu mais e mudou de conversa - , que tenho inveja da
sua vida aqui!
- Não mereço de modo algum esse favor, porque, em suma, o
claustro é bem menos uma expiação do que uma recompensa; é ele
o único lugar onde se está longe da terra e perto do céu, o único
onde o homem pode entregar-se a esta vida mística que não se
desenvolve senão na solidão e no silêncio.
- Sim, e se é possível, invejo-o mais ainda de ter tido a cora­
gem de aventurar-se em regiões que, confesso-lhe, verdadeiramente
me apavoram. Sei muito bem, de resto, que apesar da fieira das ora­
ções e dos jejuns, apesar da própria temperatura da estufa claustral,
onde a orquídea do Misticismo rebenta do chão, eu me estiolaria e
murcharia nestas paragens, sem nunca chegar a desabrochar.
O oblato sorriu-se. - Sabe que mais? - continuou. - Isto não se
faz numa hora; a orquídea de que me fala não floresce apenas num
dia; avança-se tão lentamente, que as mortificações se espaçam e as
fadigas se repartem pelos anos, tolerando-se facilmente.
Em regra geral, é preciso, para transpor a distância, que nos
separa do Criador, passar-se pelos três graus desta ciência da
Perfeição cristã que é a Mística; é preciso sucessivamente viver a
vida Purgativa, a vida Iluminativa, e a vida Unitiva, para poder ajun-
tar-se ao Bem increado e fundir-se nele.
Que estas três grandes fases da existência ascética se subdivi­
dam em uma infinidade de etapas, e que estas etapas sejam degraus
para São Boaventura, ou passos para Santa Ângela, pouco nos
importa; podem variar em extensão e em número, consoante a von­
tade do Senhor e o temperamento de quem os percorre. Não fica
menos adquirido que o itinerário da alma até Deus contém a prin­
cípio, no seu percurso, caminhos a pique e resvaladouros, são os
caminhos da vida purgativa, depois ínvios atalhos, ainda emaranha­
dos, são os atalhos da vida iluminativa, enfim, uma estrada longa,

226
A CAMINHO

quase plana, a estrada da vida unitiva, ao cabo da qual a alma se


lança na fornalha do Amor, cai no abismo da supra-adorável
Infinidade.
Em resumo, todas estas três vias são sucessivamente reservadas
àqueles que encetam a ascese cristã, àqueles que a praticam, àque­
les enfim que tocam a meta suprema, a morte do seu Eu e a vida
em Deus..
Há muito tempo já - prosseguiu o oblato - que coloquei os
meus anelos para além do horizonte, e portanto nada progrido
agora; estou apenas liberto da vida purgativa, apenas...
- E não tem receio, como direi, não tem receio das enfermida­
des materiais, porque se conseguir afinal transpor os limites da con­
templação, arrisca-se a arruinar para sempre o corpo. A experiência
parece efectivamente demonstrar que a alma divinizada actua sobre
o físico, e aí determina incuráveis perturbações.
O oblato sorriu-se. - Primeiro que tudo, não atingirei sem
dúvida o derradeiro grau da iniciação, o ponto extremo da Mística;
depois, supondo mesmo que eu os atinja, o que seriam os aciden­
tes corporais, comparando-os com os resultados adquiridos?
Deixe-me também assegurá-lo de que estes acidentes não são,
nem tão freqüentes, nem tão certos como parece crê-lo.
Pode-se ser um grande místico, um admirável santo, e não ser
o objecto de fenômenos visíveis para quem nos rodeia. Pensa então,
por exemplo, que a levitação, o arrebatamento do corpo aos ares,
que parece constituir o período excessivo do arroubamento, não
seja dos mais raros?
Quem me cita então? Santa Teresa, Santa Cristina a Admirável,
São Pedro de Alcântara, Domingas de Maria e Jesus, Inês da Boêmia,
Margarida do Santíssimo Sacramento, a Bem-aventurada Gorardesca
de Pisa, e sobretudo São José de Cupertino, que se elevava do solo,
quando o queria. Mas eles são só dez, vinte, de entre milhares de
eleitos!
E note que estes dons não provam a sua superioridade sobre
os outros santos. Santa Teresa assim o declara expressamente: é pre­
ciso não se imaginar que uma pessoa pelo facto de ser favorecida
de graças seja melhor que as que não o são, porque Nosso Senhor
dirige cada um segundo a sua necessidade particular.
E é bem isso a doutrina da Igreja; cuja infatigável prudência se
afirma todas as vezes que se trata de canonizar os mortos. São as
qualidades e não os actos extraordinários que a determinam; os pró­
prios milagres não são para ela mais que provas secundárias, por­
que sabe muito bem que o Espírito do Mal os imita.

227
J.-K. HUYSMANS

Ainda encontrará nas vidas dos Bem-aventurados factos mais


raros, fenômenos mais confundidores do que nas biografias dos
Santos. Esses fenômenos têm-nos mais prejudicado do que servido.
Depois de havê-los beatificado pelas suas virtudes, a Igreja diferiu -
e por muito tempo sem dúvida - a sua promoção à soberana digni­
dade de Santos.
Em suma, é difícil formular-se uma teoria precisa sobre este
assunto, porque se a causa, se a acção interior é a mesma para todos
os contemplativos, ela não difere menos, repito-o, segundo os
desígnios do Senhor e a compleição daqueles que os sofrem; a dife­
rença dos sexos muda às vezes a forma do influxo místico, mas não
modifica nada da essência; a erupção do Espírito do Alto pode pro­
duzir efeitos diversos, mas não fica menos idêntica.
A única observação, que se pode avançar nestas matérias, é
que a mulher mostra-se, de costume, mais passiva, menos reservada,
ao passo que o homem reage mais violentamente contra as vonta­
des do céu.
- Isto faz-me pensar - disse Durtal - que mesmo em religião
existem almas que parecem equivocar-se de sexo. São Francisco de
Assis, que era todo amor, tinha antes a alma feminina de uma monja,
assim como Santa Teresa, que foi a mais atenta das psicólogas, tinha
a alma viril de um monge. Seria mais exacto chamá-los Santa
Francisco e Santo Teresa.
O oblato sorriu-se. - Para voltarmos à vossa questão - conti­
nuou - eu não creio afinal que a doença seja uma conseqüência for­
çada dos fenômenos que pode suscitar o rapto impetuoso da
Mística.
-V e ja , portanto, Santa Coleta, Lidvina, Santa Aldegundes, Joana
Maria da Cruz, soror Emmerich, e tantas outras que passaram a sua
existência, meias paralisadas, sobre um leito!
- São uma minoria ínfima. Demais, as Santas ou Bem-aventu­
radas, cujos nomes me cita, eram vítimas da substituição, expiado-
ras dos pecados de outrem, aquelas para quèm Deus já tinha reser­
vado este papel; portanto não é de admirar que tenham ficado sem­
pre de cama e perclusas, e que tenham estado constantemente
quase mortas.
A verdade é que a mística pode modificar as necessidades do
corpo, sem para isto alterar demasiado a saúde ou destruí-la. Sei
muito bem que vai responder-me pela terrível frase de Santa
Hildegarda, por essa frase ao mesmo tempo equitativa e sinistra: «o
Senhor não habita nos corpos sãos e vigorosos», e que vai acres­
centar, com Santa Teresa, que os males são freqüentes no último dos

228
A CAMINHO

castelos da alma. Sim, mas estas Santas alçaram-se até às cumeadas


da vida e retiveram de um modo permanente um Deus no seu
envoltório carnal. Chegada a este ponto culminante, a natureza,
muito fraca para suportar o estado perfeito, esfacela-se; mas, afirmo-
-o ainda, estes casos são uma excepção e não uma regra. São afinal
doenças que não são contagiosas!
Não ignoro - continuou o oblato, após uma pausa - que há
quem negue resolutamente a própria existência da Mística e que por
conseqüência não admite que ela possa influir sobre as condições
do organismo; mas a experiência desta realidade sobrenatural é
secular e as provas abundam.
Tomemos, por exemplo, o estômago; pois bem, ao simples
toque celeste transforma-se, suprime todo o alimento terrestre, e
consome somente as Espécies Santas.
Santa Catarina de Sena e Ângela de Foligno viveram exclusiva­
mente, durante anos e anos, do Sacramento; e este dom foi igual­
mente concedido a Santa Coleta, a Santa Lidvina, a Domingas do
Paraíso, a Santa Colomba de Rieti, a Maria Bagnesi, a Rosa de Lima,
a São Pedro de Alcântara, à madre Inês de Langeac, e a muitos
outros.
Sob o arroubo divino, o olfacto e o gosto não apresentam
metamorfoses menos estranhas. São Filipe de Neriy Santa Ângela,
Santa Margarida de Cortona, reconheciam um gosto especial no pão
ázimo, quando depois da consagração deixava de ser uma simples
pasta de farinha triga para se transformar na própria carne do Cristo.
São Pacómio distinguia os heréticos pelo seu mau cheiro; Santa
Catarina de Sena, São José de Cupertino, a madre Inês de Jesus, des­
cobriam os pecados pelo seu odor fétido; São Hilariào, Santa
Lutgarda, Gentil de Ravena podiam dizer às pessoas com quem se
encontravam, como que farejando-as apenas, as faltas que haviam
cometido.
E os próprios Santos exalam, em vida ou depois da morte,
potentes perfumes.
Quando São Francisco de Paula e Venturini de Bérgamo ofere­
cem o Sacrifício, rescendem aos bálsamos. São Jo sé de Cupertino
segrega tais fragrâncias que por elas pode-se seguir-lhe a pista; e
algumas vezes mesmo é durante a doença que estes aromas se des­
prendem.
O pús de São Jo ão da Cruz e do Bem-aventurado Dídio respi­
ram as essências cândidas e decididas dos lírios; Bártolo, o terciário,
roído até aos ossos pela lepra, exala inocentes emanações; e dava-
-se o mesmo com Lidvina, Ida de Lovaina, Santa Coleta, Santa

229
J.-K. HUYSMANS

Humiliana, Maria Vitória de Gênova, e Domingas do Paraíso, de


cujas chagas se escapavam frescos aromas.
E poderíamos assim enumerar os órgãos, os sentidos, uns atrás
dos outros, e aí se reconheceriam os exorbitantes efeitos. Não
falando já nesses fiéis estigmas que se abrem ou fecham conforme
o Próprio do ano litúrgico, o que há de mais pasmoso que o dom
de bilocação, o poder de se desdobrar, de estar ao mesmo tempo e
no mesmo momento, em dois sítios diversos? E no entanto, nume­
rosos exemplos deste facto incrível se impõem; alguns mesmo são
célebres, entre outros os de Santo Antônio de Pádua, de São
Francisco Xavier, de Maria de Agreda, que estava simultaneamente
no seu mosteiro em Espanha e no México onde pregava aos infiéis,
o da madre Inês de Jesus, que sem sair do seu convento de Langeac
vinha visitar Olier a Paris. E a acção do Alto parece também singu­
larmente enérgica quando se apodera do órgão central da circula­
ção, do motor que impele o sangue para todas as partes do corpo.
Numerosos eleitos tinham o coração tão ardente que até as
suas roupas se crestavam; o fogo que consumia Úrsula Benincasa, a
fundadora das Teatinas, era tão vivo que esta santa expirava colu­
nas de fumo todas as vezes que abria a boca; Santa Catarina de
Gênova mergulhava os pés e as mãos em água gelada que depois
ficava a escaldar; a neve derretia-se em torno de São Pedro de
Alcântara, e um dia que o Bem-aventurado Gerlach atravessava uma
floresta, em pleno Inverno, aconselhou ao seu companheiro, que
caminhava atrás de si e que não podia avançar mais, porque as suas
pernas se enregelavam, a que pusesse os pés sobre as suas pega­
das, e este deixou logo de sentir mais frio.
Ajuntarei ainda, que alguns destes fenômenos, que fazem sor­
rir os livres-pensa dores, se renovaram, e foram verificados muito
recentemente.
As roupas crestadas pelos fogos do coração foram observadas
pelo Dr. Imbert-Gourbeyre sobre a estigmatizada Palma de Ória, e
alguns fenômenos de alta Mística, que nenhuma ciência pode expli­
car, foram expiados, minuto a minuto, anotados, verificados, sobre
Louise Lateau, pelo professor Rohling, pelo Dr. Lefebvre, pelo Dr.
Imbert-Gourbeyre, pelo Dr. de Noüe, por delegações médicas saídas
de todos os países...
Mas, eis-nos chegados - continuou o oblato - perdão, eu passo
adiante para guiá-lo.
Sempre a conversar, tinham deixado a clausura, e, cortando
através dos campos, chegaram a uma imensa granja; alguns trapis­
tas saudaram-nos respeitosamente quando entraram para dentro dos

230
A CAMINHO

muros. Bruno, dirigindo-se a um deles, fez-lhe ver que desejava visi­


tar todo o domínio.
O converso levou-os aos estábulos, depois às cavalariças, e
enfim aos aviários; Durtal, a quem este espectáculo não interessava
nada, limitava-se apenas a admirar a simplicidade destes bons
homens. Nenhum deles falava, mas respondiam às perguntas por
mímicas e pestanejar de olhos.
- Mas como é que eles se arranjam para comunicarem entre si?
- perguntou Durtal, quando se viu fora da quinta.
- Do modo que acaba de ver. Eles correspondem-se por meio
de sinais; empregam um alfabeto ainda mais simples que o dos sur-
dos-mudos, porque todas as ideias de que podem ter necessidade
de exprimir para os seus trabalhos estão bem previstas.
Assim, a palavra «lixívia» é traduzida por uma mão que bate na
outra; a palavra «legume» pelo dedo indicador esquerdo que se
esfrega; o sono é simulado pela cabeça inclinada sobre o punho; a
bebida por uma mão fechada que se leva aos lábios. E para os ter­
mos cujo sentido é mais espiritual, usam de um meio análogo.
A confissão declara-se por meio de um dedo que, depois de o ter
beijado, se pousa sobre o coração; a água benta é significada pelos
cinco dedos cerrados da mão esquerda, sobre os quais se traça uma
cruz com o polegar da direita; o jejum, pelos dedos que apertam a
boca; a palavra «ontem», pelo braço levado aos ombros; a vergonha,
pelos olhos velados com a mão.
- Muito bem; mas suponhamos que desejam designar-me, eu
que não sou um dos seus, como é que se combinam?
- Servir-se-ão nesse caso do sinal «hóspede», que eles figuram
pelo afastamento do punho, aproximando-o depois do corpo.
- O que quer dizer que eu venho de longe para entre eles! É
de facto ingênuo e mesmo transparente.
Caminharam silenciosamente ao longo de um atalho que des­
cia até aos campos da lavoura.
- Ainda não avistei entre estes monges o irmão Anacleto e o
velho Simeão - exclamou de repente Durtal.
- Oh! Eles não se acham ocupados na quinta; o irmão Anacleto
está empregado na chocolateira e o irmão Simeão guarda os porcos;
ambos eles trabalham no próprio recinto do mosteiro. Se assim o
deseja, vamos daqui dar os bons dias a Simeão.
E o oblato acrescentou: - Poderá atestar, ao entrar de novo em
Paris, que viu um verdadeiro santo, tal como ele podia existir no
século xi; este, com efeito, reporta-nos aos tempos de São Francisco
de Assis; é de alguma forma a reincarnação desse maravilhoso

231
J.-K. HUYSMANS

Junípero de quem os Fioretti nos celebram as inocentes acções.


Conhece?*
- Conheço, e por sinal, é para mim, depois da Legenda Áurea ,
o livro que mais singelamente grava a alma da Idade Média.
- Pois bem, para voltarmos a Simeão, este velho é um santo de
uma simplicidade pouco comum. Eis uma prova de entre mil: já lá
vão alguns meses, que eu estava na cela do prior, quando o irmão
Simeão se apresenta. Disse ao padre a fórmula usada para pedir a
palavra: «Benedicite*•; o padre Maximino responde-lhe «Dominus», e
a esta palavra, que o autoriza a conversar, o irmão mostra os ócu­
los e diz que já não vê por eles.
Isso não é de admirar - disse o prior - porque há já uns dez
anos que traz sempre os mesmos óculos, e a sua vista decerto há-
-de ter enfraquecido durante esse tempo; mas não se inquiete com
isso, porque havemos de achar o grau que actualmente mais con­
venha aos seus olhos.
Conversando assim, o padre Maximino esfregava os vidros dos
óculos entre as mãos, e de súbito pôs-se a rir, mostranclo-me os
dedos que se haviam tomado negros. Depois, afasta-se um pouco,
pega num pano, acaba de limpar os óculos, e, pondo-os sobre o
nariz do irmão, diz-lhe: olhe agora, irmão Simeão?
E o velho, estupefacto, exclama: - Oh!... Agora já vejo!
Mas isto é apenas uma das faces deste bom homem. Uma outra
é o amor dos seus suínos. Quando alguma fêmea está na parturição,
ele solicita a permissão de passar a noite junto dela, e então auxi­
lia-a, cuida dela como a uma criança, e chora quando se vendem os
leitões, ou se mandam os bácoros para o matadouro. Também,
quanto não o adoram todos estes animais!
Na verdade - continuou o oblato, depois de um silêncio -
Deus ama muito todas as almas simples, porque cumula de graças
o irmão Simeão. Só ele aqui possui o dom de império sobre os
Espíritos e pode reabsorver e mesmo prevenir os acidentes demo­
níacos que costumam surgir nos claustros. Assiste-se então a factos
estranhos: uma bela manhã, todos os porcos caem para o lado; mos­
tram-se doentes e prestes a morrer.
Simeão, que conhece a origem destes males, grita ao diabo: -
Espera, espera um bocado e já vais ver! Então corre a buscar água

* Fioretti, ou Florilégio. Ver Fioretti d e São Francisco e dos seus Frades,


revista e prefaciada por Pedro Tamen, Lisboa, 1960. A história de Junípero apa­
rece tradicionalmente como apêndice dos Fioretti, e não consta na edição por­
tuguesa referida. [N.R.]

232
A CAMINHO

benta, asperge, a rezar, o seu rebanho, e todos os animais, que


ainda há pouco agonizavam, levantam-se e pulam, saracoteando a
cauda.
Quanto às incursões diabólicas no próprio convento, elas são
muito reais e por vezes não se podem expulsá-las senão à força de
persistentes preces e enérgicos jejuns; em certos momentos, na
maior parte das abadias, o demônio espalha sementeiras de larvas,
de que não se sabe como desfazer-se delas. Aqui, a intervenção do
padre abade, do prior, e de todos os que são padres malogra-se; é
preciso, para que os exorcismos sejam eficazes, que o humilde con­
verso intervenha; e assim, na previsão de novos ataques, ele obteve
o direito de lavar o mosteiro, quando bem lhe parecer, com água
benta e orações.
Tem o poder de sentir o Maligno no próprio ponto onde se
esconde, e então persegue-o, encurrala-o, e acaba por lançá-lo fora.
Eis as cortes dos porcos - continuou Bruno - designando em
frente da ala esquerda do claustro uns casebres cercados de sebes,
e acrescentou:
- Previno-o de que o velho grunhe tal qual um porco, e ape­
nas responderá por sinais às nossas interrogações.
- Mas ele pode falar aos seus animais?
- Pode, a eles só.
O oblato empurrou uma cancela, e o converso, muito curvado,
levantou a cabeça com custo.
- Bom dia, meu irmão - disse Bruno - ; aqui está o senhor que
queria visitar os seus alunos.
Borboleteou um grunhido de alegria nos lábios do velhinho.
Depois sorriu-se e convidou-os com um sinal a segui-lo.
Introduziu-os num cortelho e Durtal recuou, ensurdecido por
uns gritos medonhos, sufocado pelo cheiro pestilento das águas das
estrumeiras. Todos os porcos se punham de pé, detrás da barreira,
e grunhiam de alegria ao vê-lo.
- Caluda! - disse o velho com uma voz meiga, e, erguendo o
braço por cima das estacas, afagou todos esses focinhos que se
esfalfavam a grunhir, farejando-o sempre.
Depois puxou Durtal pela manga, e, fazendo-o inclinar-se por
cima das grades de pau, mostrou-lhe uma enorme porca de focinho
retorcido, de raça inglesa, um animal monstruoso, rodeada de um
bando de bácoros que se precipitavam, como danados, sobre os
seus úberes.
- Sim, minha linda! Vai, minha linda! - murmurava o velho,
cofiando-lhe as sedas com a mão.

233
J.-K. HUYSMANS

E a porca olhava-o com uns olhitos lânguidos, e lambia-lhe os


dedos; mas começou a soltar clamores abomináveis assim que ele
partiu.
E o irmão Simeão exibiu outros alunos ainda, suínos com ore­
lhas em pavilhão de trompa e caudas em saca-rolhas, porcas cujos
ventres andavam de rastos e cujas patas pareciam apenas saídas do
corpo, recém-nascidos que pilhavam gulosamente as cucurbitáceas
dos úberes, e outros já mais crescidos que folgavam, perseguindo-
-se uns aos outros, ou se rolavam no chiqueiro, espojando-se.
Durtal felicitou-o pelos seus animais, e o velho, jubiloso, enxu­
gou a fronte com a sua mão sapuda; depois, a uma pergunta do
oblato, informando-se sobre a ninhada da tal porca, ele chupou
todos os seus dedos a fio; respondia a esta reflexão, fazendo ver que
estes animais eram verdadeiramente vorazes, como estender os bra­
ços ao céu e indicando as gamelas vazias, tirando bocados de pau,
arrancando manadas de erva que ele levava à boca, grunhindo
como se tivesse o focinho cheio.
Depois foi com eles até ao cerrado, encostou-os ao muro, e em
seguida abriu mais longe uma porta e desviou-se um pouco.
Um formidável varrâo passou semelhante a uma tromba; atirou
de pernas ao ar uma carreta, fez esparrinhar, assim como um óbus,
salpicos de lama em derredor; depois correu a galope, em redondo,
a toda a volta do cerrado, e acabou por ir enterrar a cabeça num
charco fétido. Logo, espojou-se, revirou, esperneou as quatro patas
no ar, e escapou-se daí, negro como um cano de chaminé, ignóbil.
Em seguida parou, levantou contente o focinho e quis acariciar
o monge que o conteve com um gesto.
- É magnifico o seu varrão! - disse Durtal.
O converso olhou para Durtal com os olhos húmidos e roçou
o pescoço com a mão, suspirando:
- Isto quer dizer que vai a morrer proximamente - disse o
oblato.
E o velho aquiesceu com uma dolorosa sacudidela de cabeça.
Eles deixaram-no, agradecendo a sua complacência.
- Quando eu penso no modo como reza na igreja este ser, que
se votou às mais baixas ocupações, dá-me vontade de me lançar de
joelhos e de fazer, assim como os seus suínos, por beijar-lhe as
mãos! - exclamou Durtal, após um silêncio.
- O irmão Simeão é um ser angélico - replicou o oblato. - Ele
vive na vida Unitiva, com a alma sepultada, afogada no oceano da
divina Essência. Debaixo deste grosseiro invólucro, neste pobre
corpo, reside uma alma absolutamente límpida, uma alma sem peca­

234
A CAMINHO

dos; e assim, é bem justo que Deus o manche! Ele delegou-lhe,


como disse, todo o poder sobre o demônio; e em certos casos con­
cede-lhe igualmente a potência de curar as enfermidades pela sim­
ples imposição das mãos. Renovou aqui as curas miraculosas dos
antigos Santos.
Eles calaram-se; depois, prevenidos pelos sinos que tocavam a
Vésperas, dirigiram-se para a igreja.
E, voltando de novo sobre si mesmo, tentando recuperar-se,
Durtal ficou estupefacto. A vida monástica recuava o tempo. Estava
na Trapa desde quantas semanas? E quantos dias havia já que se
tinha aproximado dos sacramentos? Isto perdia-se ao longe; ah!
Vivia-se duplamente nos claustros! - Portanto não se enfadava aí;
havia-se facilmente vergado ao duro regime, e 7 apesar da concisão
dos repastos, não tinha tido ainda nenhuma enxaqueca, nenhum
desfalecimento; nunca se tinha achado tão bem! Mas o que persis­
tia ainda era essa sensação de abafamento, de suspiros contidos,
essa ardente melancolia das horas, e mais que tudo essa vaga
inquietação de ouvir ainda em si, daí escutar as vozes desta
Trindade, Deus, o demônio e o homem, reunida na sua própria
pessoa.
Isto não é a sonhada paz da alma, e é mesmo pior do que em
Paris - dizia consigo, recordando-se da prova demencial do rosário
- e contudo - explicai isto é-se quase feliz aqui!

235
V

Levantando-se mais cedo que o costume, Durtal desceu à


capela. O ofício de Matinas já havia terminado, mas alguns conver­
sos, entre os quais se encontrava o irmão Simeão, oravam de joe­
lhos, no chão.
A vista deste divino guardador de porcos lançou Durtal em lon­
gos devaneios. Tentava debalde penetrar no santuário desta alma
escondida por detrás do abrigo imundo de um corpo, não conse­
guia mesmo prefigurar o carácter tão adesivo e tão dócil deste
homem que tinha atingido o estado mais elevado a que neste
mundo a criatura humana pode aspirar.
Que força de orações ele possui! - dizia consigo, olhando para
este velho.
E rememorava as minúcias da entrevista da véspera. - É por­
tanto verdade - pensava - haver neste monge um pouco desse
irmão Junípero, cuja surpreendente simplicidade transpôs as idades.
E recordava-se das aventuras deste Franciscano a quem os seus
companheiros deixaram um dia sozinho no convento, recomen-
dando-lhe que tratasse do jantar, a fim de que estivesse pronto à sua
volta.
E Junípero reflectiu: - Que de tempo gasto em preparar igua­
rias! Os irmãos que se revezam nesta ocupação não têm vagar para
se entregarem devotamente às suas orações! - e, desejando tirar esse
encargo aos que lhe sucedessem na cozinha, resolveu preparar tão
copiosos pratos, de modo que com eles a comunidade pudesse ali­
mentar-se durante quinze dias.
Então acende todas as fornalhas, descobre, não se sabe como,
enormes caldeirões, enche-os de água, lança para aí indistintamente
ovos com as cascas, frangos com as penas, legumes por escolher, e
esforça-se com uma fogueira capaz de assar bois inteiros por pisar
e remexer com um pau a comida absurda das suas caldeiras.

236
A CAMINHO

Quando os irmãos vêm a entrar e se instalam no refeitório, ele


acorre, com o rosto a escorrer suor e as mãos queimadas, e serve-
-Ihes jubiloso o seu acepipe. O superior pergunta-lhe se não está
doido, e ele fica estupefacto quando não vê ninguém tocar sequer
neste espantoso guisado. Confessa com toda a humildade que jul­
gou fazer serviço aos seus irmãos, e à observação de que tanto
comer era perdido, chorou lágrimas ardentes, declarando-se um
miserável; grita então que não serve senão para desperdiçar os bens
do bom Deus, ao passo que os monges se sorriem, admirando a
incontinência de caridade e o excesso de simplicidade de Junípero.
O irmão Simeão seria assaz humilde e assaz ingênuo para reno­
var tão esplêndidos estragos - dizia consigo Durtal - mas melhor
ainda que o bom Franciscano, ele evoca-me a recordação desse
exorbitante São Jo sé de Cupertino de quem o oblato falava ontem.
Este, que se apelidava a si mesmo o Jumento do convento, era
um delicioso e pobre ser, tão modesto, tão acanhado que o expul­
savam de toda a parte. Ele passa a vida, de boca aberta, indo parar
a todos os claustros, que por sua vez o repelem de si. Anda sempre
de banda em banda, sendo mesmo incapaz de cumprir as tarefas
mais humildes. As suas mãos são, como diz o povo, de manteiga,
quebra tudo em que tocam. Manda-se-lhe uma vez buscar água, e
ele perde-se sem saber como, absorvido em Deus, até que a vai
levar afinal, quando já ninguém pensa nisso, ao cabo de um mês.
Um mosteiro de Capuchinhos, que o havia recolhido, desem­
baraça-se dele. Então parte de novo, vago, alheado, para as cidades,
indo encalhar noutro convento onde o empregam na guarda dos
animais que tanto aclora; aí apresenta-se num perpétuo êxtase, e
revela-se o mais singular dos taumaturgos, expulsando os demônios
e sarando os males.
É ao mesmo tempo idiota e sublime. Na hagiografia permanece
único e parece figurar aí apenas para fornecer a prova de que a
alma se identifica com a Eterna Sabedoria mais pelo não-saber do
que pela ciência.
E este também ama os animais - dizia consigo Durtal, contem­
plando o velho Simeão. - E este também persegue o Maligno e
opera curas por meio da sua santidade.
Numa época em que todos os homens são exclusivamente
obcecados por pensamentos de luxúria e de lucro, parece extraor­
dinária a alma despojada, a alma cândida e toda nua deste bom
monge. Já tem uns oitenta anos feitos, e arrasta desde a sua juven­
tude a existência sumária das Trapas; não sabe provavelmente em
que tempo vive, sob que latitudes habita, se está na América ou em

237
J.-K. HUYSMANS

França, porque nunca leu um jornal e os ruídos do mundo não che­


gam até ele.
Não faz a menor ideia do gosto da carne ou do vinho; não tem
nenhuma noção do dinheiro cujo valor ou aspecto nem sequer pre­
sume; não imagina como uma mulher é feita, nem é pela parturição
dos seus animalejos que adivinha a essência e as conseqüências do
pecado da carne.
Vive sozinho, concentrado no silêncio e enterrado na sombra;
medita sobre as mortificações dos Padres do Deserto que se lhe par-
ticularizam enquanto come no refeitório; o frenesim do seu jejum
torna-o vergonhoso da sua miserável refeição e chega a acusar-se
do seu bem-estar!
Ah! Este irmão Simeão é um inocente; ele não sabe nada
daquilo que nós conhecemos, e sabe o que todo o mundo ignora;
a sua educação é feita pelo próprio Senhor que o instrui nas suas
verdades incompreensíveis para nós, que lhe modela a alma em
nesgas de céu, que se infunde nele, e o possui e deifica na união
de Beatitude!
Isto põe-nos, portanto, um pouco longe das falsas beatas e
devotas, tão longe, de resto, como parece estar da Mística, o
Catolicismo moderno, porque este decididamente apresenta-se tanto
em baixo, quanto a Mística está alta!
E é verdade isto. Em lugar de concentrar todas as suas forças
para o fim inaudito de arrancar a sua alma, de moldá-la a esta forma
de pomba que a Idade Média dava às suas píxides, em lugar de
fazer dela a custódia onde a hóstia possa repousar na própria ima­
gem do Espírito Santo, o católico limita-se apenas a tratar de escon­
der a sua consciência, esforça-se por burlar o Juiz pelo receio de um
salutar inferno; age não por dilecção, mas por medo, foi ele quem
com o auxílio de um clero ignorante e o socorro de uma literatura
imbecil, fez da religião um fetichismo enternecedor, um culto ridí­
culo, composto de estatuetas e de bustos, de tochas e de cromos;
foi ele quem materializou o ideal do Amor inventando uma devo­
ção toda física ao Sagrado Coração, em França!
Que baixeza de concepção! - continuava Durtal que saíra da
capela e errava agora pelas margens do grande lago. Olhou para os
canaviais que se curvavam como uma seara ainda verde às rajadas
do vento; depois, inclinando-se, divisou um velho batei que levava
no seu casco azulado o nome quase apagado de «Aleluia»; esta barca
sumia-se por entre os tufos de folhagem em torno dos quais se enro­
lavam as campânulas das verdeselhas, uma flor simbólica, porque se
afunila como um cálice, e ostenta uma extrema brancura mate.

238
A CAMINHO

A exalação ao mesmo tempo indolente e pesada das águas


embriagara-o. - Ah! - dizia consigo a felicidade consiste certa­
mente em ser internado num lugar muito restrito, numa prisão bem
fechada, onde esteja sempre aberta uma capela - e, continuou: - Ah!
Lá vem o irmão Anacleto - o converso avançava para a frente, cur­
vado ao peso de um grande cabaz.
Passou por diante de Durtal, sorrindo-lhe com os olhos, e,
enquanto continuava o seu caminho, Durtal pensou: - Este homem
é para mim um sincero amigo; quando eu sofria tanto, antes de me
confessar, ele exprimiu-me tudo num simples olhar. Hoje que me
julga mais confortado, mais alegre, está contente e declara-mo num
sorriso; e no entanto nunca poderei falar-lhe, nunca conseguirei
agradecer-lhe, nunca chegarei mesmo a saber quem é, nunca mais,
talvez, tornarei a vê-lo!
E ao partir daqui, conservarei um amigo para quem também
sinto uma verdadeira afeição; e nenhum de nós terá mesmo ocasião
de trocar um com o outro um gesto sequer!
No fundo - ruminava - esta reserva absoluta não torna a nossa
amizade mais perfeita; ela esfumava-se nuns eternos longes, perma­
nece misteriosa e não saciada, porém mais segura.
Raciocinando sempre estas reflexões, Durtal dirigiu-se para a
capela onde o chamava o ofício e daí encaminhou-se para o refei­
tório.
Ficou surpreendido por encontrar um só talher em cima da toa­
lha. - O que teria sucedido a Bruno? Vou esperar por ele um pouco
- pensou; e para matar o tempo pôs-se a ler um quadro impresso
que estava pendurado na parede.
Era uma espécie de advertência que começava assim:

e t e r n id a d e !

«Homens pecadores, vós haveis de morrer. - Estai sempre pron­


tos.»
«Velai então, orai sem cessar, e nunca vos esqueçais dos quatro
fins que vedes aqui traçados.»
«A Morte que é a porta da Eternidade.»
«O Juízo que decide a Eternidade.»
«O Inferno que é a estância da mal-aventurada Eternidade.»
«O Paraíso que é a mansão da bem-aventurada Eternidade.»

O padre Estêvão interrompeu Durtal para participar-lhe que


Bruno havia ido a Saint-Landry, a fim de tratar de algumas compras,

239
J.-K. HtJYSMANS

e que não voltaria antes da hora do deitar. - Não se demore, pois,


a jantar, porque a comida está quase fria.
- E como vai indo de saúde o padre abade?
- Regularmente; ainda não sai do quarto, mas espera poder
descer um pouco para assistir pelo menos a alguns dos ofícios.
E o monge saudou-o e desapareceu em seguida.
Durtal pôs-se à mesa, comeu de uma sopa de favas, engoliu
um ovo, e uma colherada de favas ainda tépidas, e como, uma vez
fora daí, passasse próximo da capela, entrou nela e ajoelhou-se
diante do altar da Virgem; mas de repente o espírito de blasfêmia
apoderou-se dele; pareceu-lhe que experimentava uma alegria mor­
daz, uma voluptuosidade aguda, se como blasfemo manchasse este
lugar, mas conteve-se, crispando o rosto para não deixar escapar as
injúrias de estrebaria, que se amontoavam nos seus lábios, e se dis­
punham a sair.
No entanto, detestava estas abominações, revoltava-se contra
elas, e repelia-as com horror, mas a impulsão tornava-se tão irresis­
tível, que, para conseguir calar-se, teve que morder-se, sangrando a
boca com os dentes.
É muito forte ouvir murmurar dentro em si o contrário do que
se pensa - disse consigo; mas teve necessidade de chamar toda a
sua vontade em ajuda, porque sentia que ia ceder, expectorar
mesmo as suas impurezas, e deitou a fugir, pensando que mais valia,
se já não havia meio de resistir, ir vomitar antes estas imundices na
cerca do que na igreja.
E depois que deixou a capela, esta loucura de blasfêmias ces­
sou; surpreendido pela estranha violência deste ataque, começou a
vaguear ao longo do lago.
E pouco a pouco, uma intuição inexplicada de um perigo, que
o ameaçava, veio-lhe à mente. Assim como um animal que fareja um
inimigo escondido, ele olhou com precaução para si, acabando por
distinguir um ponto negro no horizonte da sua alma. E bruscamente,
sem que tivesse tempo de se reconhecer, de tomar conta no perigo
que via surgir, este ponto estendeu-se, e cobriu-o de sombra; dei­
xou mais de haver nele a luz do dia.
Teve esse minuto de mal-estar que precede a tormenta, e no
silêncio ansioso do seu ser, os argumentos caíam, tais como gotas
de chuva.
Os árduos efeitos do Sacramento justificavam-se! - Não havia
procedido de tal sorte que a sua comunhão não podia deixar de ser
infiel? Evidentemente - em vez de se concentrar e unir, havia pas­
sado uma tarde de revolta e de cólera; à noite mesmo tinha indig­

240
A CAMINHO

namente julgado um eclesiástico cujo único defeito era o compra-


zer-se na vaidade dos gracejos fáceis. Havia-se confessado desta ini­
qüidade e destas sedições? Nada disso; e após a comunhão, havia-
se encerrado, como lhe era preciso, só a só, com o seu Hóspede?
Ainda menos. Tinha-o abandonado, sem mais se ocupar d’Ele, tinha-
o afastado do seu aposento interno, fora passear para as matas, não
tinha mesmo assistido aos ofícios!
Mas afinal estas reprimendas são ineptas, porque comunguei,
tal como estava, por ordem formal do confessor; quanto a este
último passeio, eu não o pedi nem o desejei; foi Bruno, quem de
acordo com o abade da Trapa decidiu que ele me seria propício;
não tenho nada de que me recriminar, não tive a culpa.
- E isto não prova de que terias melhor andado se passasses
todo o dia em oração, na igreja?
- Mas - exclamou - com esse sistema não poderia sair, nem
comer, nem dormir, porque não devia jamais afastar-me da igreja.
Teria forças para isso?
- Sem dúvida; demais, uma alma mais inteligente teria recu­
sado esta excursão justamente por lhe agradar; tê-la-ia desviado, por
mortificação, por espírito de penitência.
- Evidentemente, mas... - e estes escrúpulos torturaram-no. -
O facto é - dizia consigo - que poderia empregar a minha tarde
mais santamente - e daí a crer que se tinha comportado mal, não
havia mais que um passo, e ele deu-o. E assim lapidou-se implaca­
velmente durante uma hora, suando de angústia; acusou-se delitos
imaginários, entrando nesta via tão longa que acabou por se perder,
sentindo mesmo transviar-se nela.
A historia do rosário veio-lhe à memória, e então arguiu-se pelo
facto de se deixar ainda encurralar pelo demônio. Começava já a
respirar livremente, quando ataques de outro modo terríveis se apre­
sentaram.
Não era uma instilação de argumentos que escorriam gota a
gota, mas sim uma chuva furiosa que se precipitou sobre a sua alma,
como uma avalanche. A torrente, cujo aguaceiro de escrúpulos era
apenas o prelúdio, estalou com fúria; e no pânico do primeiro
momento, no fragor da tempestade, o inimigo desmascarou as saas
baterias e feriu-o em pleno peito.
- Não havia auferido bem algum desta comunhão, mas tinha-
-se ainda passado tão pouco tempo! Ah! Será bastante que um
padre profira cinco palavras latinas sobre um pão ázimo para que
esse pão se transforme na carne de Cristo? Que uma criança aco­
lha tais frioleiras, vá! Mas haver já transposto a quarentena e dar

241
J.-K. HUYSMANS

ouvidos ainda a tão formidáveis embustes era excessivo, quase


inquietante.
E as insinuações fustigaram-no como punhados de granizo: por
que razão um pão que é de trigo antes, não é depois senão uma
aparência? O que vem a ser uma carne que não se vê nem se sente?
O que é um corpo cuja ubiquidade é tal que pode aparecer sobre
os altares de países diversos? Como explicar essa potência que se
encontra aniquilada, se não é a hóstia fabricada com pura farinha
triga?
E isto tornou-se uma verdadeira inundação que o submergiu
todo; e contudo, semelhante a uma estaca impermeável, essa fé que
havia adquirido sem nunca saber como, permanecia imóvel, desa­
parecia por debaixo das torrentes de interrogações, mas não se
movia.
Então revoltou-se, dizendo consigo: - O que prova isto senão
que a treva sacramental da Eucaristia é insondável! Afinal, se fora
inteligível deixava de ser divina. Se o Deus a quem nós servimos
pudesse ser compreendido pela razão, não valia a pena servi-lO,
disse Tauler; e a Imitação também declara nitidamente ao fim do
seu livro iv que se as obras de Deus fossem tais que a inteligência
do homem pudesse facilmente penetrá-las, elas cessariam de ser
maravilhosas e não poderiam ser qualificadas de inefáveis.
E uma voz zombeteira continuou:
- Eis o que se chama responder, confessando ao mesmo tempo
que não há nada a responder.
- Enfim - pensou Durtal - , já assisti a experiências de espiri­
tismo em que nenhum embuste parecia possível. Mostrava-se evi­
dente que não era, nem o fluido dos espectadores, nem a sugestão
das pessoas que rodeavam a mesa quem ditava as respostas, pois
que, batendo as suas pancadas, esta mesa exprimiu-se subitamente
em inglês, quando ninguém falava essa língua, e que alguns minu­
tos mais tarde, dirigindo-se a mim que estava afastado dela e que
por conseguinte não a tocava, ela contou-me, em francês desta vez,
factos que já tinha esquecido e que só eu podia saber. Sou, pois,
obrigado a supor um elemento de sobrenatural, servindo-se, em
maneira de intérprete, de uma mesa de um pé só, para aceitar, se
não a evocação dos mortos, pelo menos, o que parece mais prová­
vel, a existência certa de larvas.
Portanto, não é mais surpreendente, nem mais impossível que
Cristo se substitua à pasta de um pão do que uma larva iluda e taga­
rele num pé de mesa. Estes fenômenos desnorteiam igualmente os
sentidos, mas se um deles é inegável - por exemplo, a manifestação

242
A CAMINHO

espírita - que motivos invocar para negar a verosimilhança do outro,


que de resto foi atestado por milhares de Santos?
No fundo - prosseguiu sorrindo - havia já a demonstração pelo
absurdo, mas esta poder-se-ia intitular a demonstração pelo abjecto,
porque se o mistério Eucarístico é sublime, não acontece o mesmo
com o do Espiritismo, que não passa afinal da cloaca máxima do
sobrenatural, do bacio do além!
- E se só houvesse apenas este enigma - continuou falando
mas todas as doutrinas católicas são de uma craveira igual! Examina
a religião desde o seu nascimento e diz-me se ela não se estreia por
um dogma absurdo?
Aqui temos, pois, um Deus infinitamente perfeito, infinitamente
bom, um Deus que não ignora nem o passado, nem o presente, nem
o futuro, e que sabia portanto que Eva havia de pecar; então de
duas uma: ou Ele não é bom, pois que a submeteu a esta prova,
conhecendo que ela havia por força de ficar vencida; ou antes
então, Ele não tinha a certeza da sua derrota; no qual caso, Ele deixa
de ser omnisciente, deixa de ser perfeito.
Durtal não respondia a este dilema, que é efectivamente pouco
fácil de resolver.
Portanto — disse consigo — podemo-nos desde já descartar de
uma dessas duas proposições, a última; porque é uma puerilidade
ocuparmo-nos do futuro quando se trata de Deus; nós julgamo-lO
apenas com o nosso miserável entendimento, quando não há para
Ele, nem presente, nem passado, nem futuro; Ele vê tudo, na luz
increada, no mesmo instante. Para Ele a distância não se figura e o
espaço é nulo. Os outrorci, os agora e os amanhã não são mais que
um. Ele não podia duvidar de que a Serpente venceria. Este dilema
amputado prejudica-se então...
- Seja, mas a outra alternativa fica de pé; que ideia fazes então
da Sua bondade?
- A Sua bondade... - e Durtal tinha que repisar os argumentos
tirados do livre-arbítrio ou da vinda prometida do Salvador, e via-se
obrigado a confessar que estas respostas eram débeis.
E a voz fez-se mais imperiosa e apressada.
- Também admites o pecado original?
- Tenho que admiti-lo, pois que ele existe. O que é a heredi­
tariedade, o atavismo, senão, sob um outro vocábulo, o terrível pe­
cado das origens?
- E parece-te justo que gerações inocentes reparem ainda e
sempre a falta do primeiro homem?
E como Durtal não explicava, a voz insinuou docemente:

24 3
J.-K. HUYSMANS

- Esta lei é de tal modo iníqua que parece até que o Criador
teve vergonha dela e que para se punir da sua ferocidade e não
fazer-se para sempre execrar da sua criatura, quis sofrer na cruz,
expiar o seu crime na pessoa de seu próprio Filho!
- Mas - exclamou Durtal exasperado - Deus não podia come­
ter um crime e castigar-se; se isso assim fosse, Jesus seria o Redentor
de Seu pai e não o nosso; é boa!
A pouco e pouco ia-se equilibrando; lentamente recitou o
Símbolo dos Apóstolos, enquanto que as objecções, que o derriba-
vam, se aglomeravam, umas sobre as outras, dentro dele,
Há todavia um facto certo agora - disse consigo, porque afinal
achava-se, neste tumultuar, muito lúcido é que actualmente
somos dois em mim. Posso seguir os meus raciocínios, mas ouço,
por outro lado, os sofismas que o meu duplo me expira. Nunca esta
dualidade me aparecera assim tão nítida.
E a esta reflexão o ataque enfraqueceu; parecia que o inimigo
descoberto batia em retirada.
Mas não foi nada disso; após uma curta trégua, o assalto reco­
meçou sobre um outro ponto.
- Estás bem seguro de não teres sido sugestionado, de não
teres preparado o golpe para ti mesmo? À força de quereres crer,
acabaste por produzir e por implantar em ti, mascarando-a sob o
nome de graça, uma ideia fixa em torno da qual tudo agora se dese­
nha, Queixas-te de não teres experimentado alegrias sensíveis
depois da tua comunhão, mas isso demonstra simplesmente que tu
não estavas enternecido o bastante, ou que, cansada dos excessos
da véspera, a tua imaginação se revelou incapaz de te exibir a lou­
cura feérica que lhe reclamavas após a missa.
De resto, devias saber que tudo depende, nestas questões, da
actividade mais ou menos febril do cérebro e dos sentidos; vê o que
acontece com as mulheres; elas enganam-se mais facilmente que o
homem, porque aí ainda se revela a diferença das conformações, a
variedade dos sexos; Cristo dá-se carnalmente sob as aparências de
um pão; é o casamento místico, a união divina consumada pela via
dos lábios; Ele é bem o Esposo das mulheres, ao passo que, nós
outros, sem o querer, pelo próprio íman da nossa natureza, nós
somos mais atraídos para a Virgem. Mas Ela não se entrega a nós,
assim como o seu Filho; ela não reside no Sacramento; a sua posse
é impossível; Ela é a nossa Mãe, mas não é nossa Esposa, como Ele,
que é o Esposo das Virgens.
Concebe-se desde então que as mulheres se deixem embalar
mais violentamente, que adorem melhor, e que se imaginem mais

244
A CAMINHO

facilmente acarinhadas. Além disso, Bruno já te dizia ontem: a


mulher é mais passiva, menos rebelde à acção celeste...
- Pois bem! O que tem isso! O que prova isso? Que mais se
ama e melhor se é amado? Mas se este axioma é falso sob o ponto
de vista terrestre, é certamente exacto sob o ponto de vista divino;
o que seria monstruoso seria o Senhor não tratar melhor a alma de
uma Clarissa do que a minha!
Decorreu um instante de repouso; e outra vez o ataque voltou,
precipitando-se sobre um novo alvo,
- Então acreditas no eterno inferno? Supões um Deus mais
cruel como tu o não serias, um Deus que criou os homens sem que
eles fossem consultados, sem que tenham pedido para nascerem; e
que estes depois de haverem sofrido durante toda a sua existência,
sejam ainda supliciados sem piedade, depois da sua morte? Mas,
vejamos, tu serias capaz de ver torturar o teu mais figadal inimigo
sem que fosses tocado de piedade, sem solicitares enfim o seu per­
dão? Tu perdoarias e o Todo-Poderoso seria implacável? Hás-de
confessar que isto é fazer d’Ele uma ideia bem singular.
Durtal calava-se; o inferno, perpetuando-se até ao infinito,
ficava com efeito vexante. A réplica de que ele é legítimo, de que
as penas são eternas pois que as recompensas também o são, não
era decisiva, porque enfim o próprio da Bondade perfeita seria jus­
tamente abreviar os castigos e prolongar as alegrias.
Mas afinal - disse consigo - Santa Catarina de Gênova já eluci­
dou esta questão. Ela expõe muito bem que Deus envia um raio de
misericórdia, uma corrente de piedade até aos infernos, que
nenhum condenado sofre tanto quanto mereceria sofrer, que se a
expiação não deve cessar, pode contudo modificar-se, atenuar-se,
tornar-se com o tempo menos rigorosa, menos intensa.
Ela nota também que no momento de se separar do corpo, a
alma se obstina ou cede; se continua empedernida, se não manifesta
nenhuma contrição das suas faltas, a culpa não poderia ser-lhe per­
doada, porque depois da morte o livre-arbítrio deixa de subsistir, a
vontade que se possui, no instante em que se sai deste mundo, fica
invariável.
Se, pelo contrário, ela não persevera nos seus sentimentos de
impenitência, uma parte da repressão ser-lhe-á sem dúvida tirada;
por conseqüência, não é votado à geena contínua, senão quem
deliberadamente não quer, quando é tempo ainda, voltar à resipis-
cência, senão quem se recusa a renegar as suas faltas.
Acrescentemos que, segundo a Santa, Deus não tem que fazer
expelir para os infernos a alma para sempre poluída, porque ela vai

245
J.-K. HUYSMANS

para aí por si mesma, para aí é conduzida pela própria natureza dos


seus pecados; aí se precipita, como no seu próprio bem, aí se
abisma naturalmente, se pode dizer-se assim.
Em suma, pode prefigurar-se um inferno muito pequeno e um
purgatório muito grande; pode imaginar-se que o inferno é pouco
povoado, que não é reservado senão para os casos raros de per­
versidade, que na realidade a multidão das almas desencarnadas se
aglomeram no Purgatório, e aí sofrem correcções proporcionadas
aos delitos que têm cometido neste mundo. Estas ideias não têm
nada de insustentável, e ainda têm a vantagem de conciliar as ideias
de misericórdia e de justiça.
- Perfeitamente! - replicou a voz trocista. - Então o homem faz
bem em constranger-se! Pode roubar, saquear, matar o seu pai e vio­
lar a sua filha, contanto que no derradeiro momento se arrependa,
está salvo!
- Mas não! A contrição somente apaga a eternidade da pena e
não a própria pena! Cada um de nós deve ser recompensado, con­
soante as suas obras. Aquele que estiver manchado de um parricí­
dio ou de um incesto, suportará um castigo de outra maneira
penoso, de outra sorte longo como o não sofrerá aquele que os não
tiver cometido; a igualdade no sofrimento piacular, na dor repara-
dora, não existe.
De resto, esta ideia de uma vida purgativa, após a morte, é tão
natural, tão certa que todas as religiões a admitem. Para todas elas,
a alma é uma espécie de aeróstato que não pode subir, atingir os
seus fins derradeiro no espaço senão lançando-lhe o respectivo las­
tro. Nos cultos do Oriente, a alma, para se depurar, reincarna-se; ela
roça-se por novos corpos, assim como uma lâmina nas camadas de
grés que a pulem e tornam brilhante. Para nós católicos, ela não
sofre nenhum avatar terrestre, mas alija-se, depura-se, ilumina-se no
Purgatório onde Deus a transforma, atrai, e arranca da sua ganga de
pecados até que possa elevar-se e perder-se n’Ele.
Para acabarmos com esta irritante questão de um perpétuo
inferno, como não conceber que a justiça divina hesite, nas mais das
vezes, em pronunciar inexoráveis sentenças? A humanidade é pela
sua maior parte composta de celerados inconscientes e de imbecis
que nem sequer conhecem o alcance das suas faltas. A estes, a sua
perfeita incompreensão os salva. Quanto aos outros que se deixam
putrefazer, sabendo o que fazem, são evidentemente mais culpados,
mas a sociedade que odeia os homens superiores encarrega-se ela
mesma de castigá-los; humilha-os, persegue-os e é desde então per­
mitido esperar que Nosso Senhor tenha piedade destas pobres

246
A CAMINHO

almas tão miseravelmente tripudiadas, durante a sua habitação sobre


a terra, pela matilha das ruas.
- Então há toda a vantagem em ser um imbecil, porque se é
poupado sobre a terra e no céu.
- Ah! Claro. E depois... de que vale discutir isso, se nós não
podemos fazer a menor ideia do que é a justiça infinita de um Deus!
Demais estes debates maçam-me demasiado! - tentou distrair o
seu pensamento destes assuntos, quis para romper a obsessão trans­
portar-se em pensamento a Paris, mas cinco minutos não se haviam
passado sem que o duplo não voltasse à carga.
Agarrava-se, mais uma vez ao dilema claudicante de toda a
hora, atacava ainda a bondade do Criador a propósito dos pecados
do homem. O Purgatório é já exorbitante, porque enfim - segredava
- Deus bem sabia que o homem teria de sucumbir às tentações;
então porque tolerá-las, sobretudo porque condená-lo? É bondade,
é justiça isto?
- Mas é um sofisma! - exclamou Durtal agastando-se. - Deus
deixa a cada um de nós a sua liberdade; ninguém é tentado além
das suas forças. Se permite, em certos casos, que a sedução ultra­
passe os nossos meios de resistência é para nos chamar à humil­
dade, para nos reconduzir a ela pelo remorso, é para outras causas
que nós ignoramos e que Ele não tem obrigação de nos mostrar. E
provável que então estas transgressões sejam de outra feição apre­
ciadas como não são as que havemos praticado por nossa própria
vontade, espontaneamente...
- A liberdade do homem! Isso é muito belo, sim; falemos, pois,
dela! E o atavismo? E o meio? E as doenças do cérebro e da medula?
Então um homem agitado por impulsões doentias, invadido por per­
turbações genésicas, é responsável pelos seus actos?
- Mas quem diz que nestas condições se imputam ao céu estes
actos? É uma idiotia enfim comparar-se sempre a justiça divina aos
tribunais dos homens! Pois que ela é justamente o contrário; os juí­
zos humanos são as mais das vezes tão infames que chegam a con­
fessar que existe uma outra equidade. Melhor ainda que as provas
da teodiceia, a magistratura prova Deus, porque sem isso, como
seria satisfeito o instinto de justiça, tão inato em cada um de nós que
ainda os animais mais baixos o tem?
- Tudo isso não impede - continuou a voz - que o carácter
mude conforme o estômago funcione bem ou mal; a maledicência,
a cólera, a inveja, é a bílis acumulada ou a má digestão; a bonomia,
a alegria, é o sangue que circula livremente, o corpo que se
expande à vontade; os místicos são anemo-nervosos; as extáticas

247
J.-K. HUYSMANS

são histéricas mal alimentadas, as casas de alienados regurgitam


delas; pertencem à ciência assim que as visões se manifestam.
De súbito, Durtal ganhou coragem; os argumentos materialistas
eram pouco inquietantes, porque nenhum ficava de pé; todos eles
confundiam a função e o órgão, o habitante e o aposento, o relógio
e a hora. As suas asserções não repousavam sobre base alguma.
Assimilar a bem-aventurada lucidez e o inigualável génio de uma
Santa Teresa às extravagâncias das ninfomaníacas e das loucas, era
tão obtuso, tão imbecil, que na verdade causava riso! O mistério
continuava intacto; nenhum médico tinha podido, nem podia des­
cobrir a psique nas células redondas ou fusiformes, na matéria
branca ou na substância cinzenta do cérebro. Eles reconheciam mais
ou menos justamente os órgãos de que a alma se servia para puxar
pelos cordelinhos ao títere que fora condenada a mover, mas ela
permanecia sempre invisível; partia quando eles forçavam os apo­
sentos da sua habitação, após a morte.
Não, estes argumentos não actuam sobre mim - confirmou
Durtal.
~ E agora este actuará melhor? Crês então na utilidade da vida,
na necessidade desta cadeia sem fim, neste reboque de sofrimentos
que se prolongará pela maior parte mesmo depois da morte? A ver­
dadeira bondade consistiria em nada inventar, em nada criar, em
deixar tudo ao acaso, no nada, em paz!
O ataque rodava sobre si mesmo, e voltava sempre, depois de
aparentes rodeios, ao mesmo ponto de partida.
Durtal abaixou a fronte, porque este argumento derrotava-o;
todas as réplicas que se podiam imaginar eram de uma fraqueza
extrema e a menos débil, a que consiste em negar-nos o direito
de julgar, porque nós apenas podemos perceber uns leves esbo­
ços do plano divino, porque não possuímos dele nenhuma vista
do conjunto, não prevalece contra a terrível frase de
Schopenhauer: «se Deus foi quem fez o mundo, eu não quereria
ser esse Deus, porque a miséria do mundo me despedaçaria o
coração!»
Não há que hesitar - dizia consigo tenho de aceitar que a
Dor é o verdadeiro desinfectante das almas, e vejo-me ainda obri­
gado a perguntar a mim mesmo, por que razão o Criador não inven­
tou um meio menos atroz de nos purificar. Ah! Quando eu penso
nos sofrimentos internados nos asilos de alienados e nas salas dos
hospícios, isso revolta-me, isso faz-me duvidar de tudo!
Se ainda a Dor fosse um antisséptico dos delitos futuros ou um
detersivo das faltas passadas, compreender-se-ia ainda! Mas não, ela

248
A CAMINHO

cai, indiferentemente, sobre os maus e sobre os bons; ela é cega.


A melhor prova é a Virgem, que era sem mácula e não tinha de
expiar, como o seu Filho, por todos nós. Não devia, por conse­
guinte, ser castigada, e não obstante sofreu sobre o Calvário o suplí­
cio exigido por esta horrível lei!
- Bem, mas então - continuou Durtal, após um silêncio de
reflexão se a Virgem, estando inocente, deu o exemplo, por que
direito, nós, os culpados, ousamos lastimar-nos?
Temos que nos resolver, pois, a ficar nas trevas, a viver rodea­
dos de enigmas, O dinheiro, o amor, não são bem nítidos; o acaso
se ele existe, é tão misterioso como a Providência, e mais que ela
ainda, é indecifrável! Deus é, pelo menos, uma origem do desco­
nhecido, uma chave.
- Uma origem que é um outro segredo, uma chave que não
abre nada!
Ah! É irritante - disse consigo - ser assim perseguido por todos
os lados. E demais, além disso, são questões que só um teólogo
pode discutir, ao passo que eu estou sem armas; a partida é desi­
gual; não estou para responder mais.
E não podia então ouvir um vago sorriso escarninho que subia
por ele acima.
Abandonou o jardim, depois dirigiu-se para a capela, mas o
receio de se ver de novo apoderado pela loucura de blasfêmias
desviou-o daí. Não sabendo para onde ir, dirigiu-se para a sua
cela, repetindo consigo mesmo: - É crucial não me deixar dispu­
tar assim; mas com o hei-de impedir-me de ouvir chicanas que
saem não se sabe de onde? Ainda que grite: cala-te! - o outro con­
tinua a falar!
Chegado à sua câmara, quis rezar e deixou-se cair de joelhos
diante do leito.
Então passou-se uma coisa abominável. Esta postura suscitou-
-lhe recordações de Florence. Levantou-se então, e as velhas aber­
rações reapareceram.
E tornou a pensar nesta criatura, nos seus gostos bizarros, na
sua mania de beliscar as orelhas, de beber as essências de toucador
pelos próprios vidrinhos. Ela era tão libertina e tão extravagante,
imbecil sem dúvida, mas obscura!
- E se ela estivesse neste aposento, diante de ti, o que fazias?
Ele balbuciava: - Esforçar-me-ia por não ceder!
- Mentes, confessa antes que te lançarias sobre os seus braços,
confessa que mandarias a conversão, o claustro, tudo enfim, de pre­
sente ao demônio!

249
J.-K. HUYSMANS

Ele empalideceu; a possibilidade da sua covardia supliciava-o.


Haver comungado sem se estar mais certo do futuro, mais seguro de
si, é quase um sacrilégio - disse consigo.
E quedou-se. Até aqui tudo ia bem, mas a visão de Florence
impressionou-o. Deixou-se cair, desesperado, em cima de uma
cadeira, não sabendo já o que fazer, reunindo a pouca coragem que
lhe restava para descer até à igreja onde estava a começar o ofício.
Para aí se deixou ir, e aí se atormentou ainda, assaltado por tor-
pezas, desgostado de si mesmo, sentindo fugir-lhe a sua vontade,
ferida por todas as partes.
E quando se viu na cerca, ficou aturdido, perguntando a si
mesmo onde devia abrigar-se. Todos os lugares haviam-se-lhe tornado
hostis; dentro da sua cela eram reminiscências carnais, fora dela eram
as tentações contra a Fé. - Ou antes, arrasto-as constantemente comigo
- exclamou. - Meu Deus, meu Deus, eu estava ontem tão tranqüilo!
Principiava a vaguear, ao acaso, ao longo de uma álea, quando
um novo fenômeno surgiu.
Havia tido até essa hora, no céu interno, a chuva dos escrúpu­
los, a tempestade das dúvidas, o golpe do raio da luxúria, e agora
só tinha o silêncio e a morte.
As trevas cerradas amontoavam-se dentro dele.
Procurava às apalpadelas a sua alma, e encontrava-a inerte,
sem conhecimento, quase gelada. Tinha o corpo vivo e são, toda a
sua inteligência, toda a sua razão e outras potências, todas as suas
faculdades entorpeciam -se a pouco e pouco, e paravam.
Manifestava-se, dentro do seu ser, um efeito simultaneamente aná­
logo e contrário aos que o curar produz sobre o organismo, quando
circula nas redes sanguíneas; os membros paralisam-se; não se
experimenta dor alguma, mas o frio começa a subir; a alma acaba
por ser seqüestrada toda viva em um cadáver; neste caso, é o corpo
vivo que detém uma alma morta.
Fatigado pelo temor, tentou um supremo esforço, quis visitar-
-se, ver onde estava; e, do mesmo modo que um marinheiro, que
num navio que abriu água, desce ao fundo do porão, ele teve que
recuar, porque a escada estava cortada, e os degraus abriam-se por
sobre um abismo.
Apesar do terror que galopava nele, inclinou-se, fascinado,
sobre este buraco, e à força de fixar as suas sombras, distinguiu apa­
rências; em uma luz de eclipse, num ar rarefeito, entrevia no fundo
de si mesmo o panorama da sua alma, um crepúsculo deserto, de
horizontes vizinhos da noite; e havia, alumiado por esta luz dúbia,
alguma coisa como um matagal arrasado, como um pântano cheio

250
A CAMINHO

de entulhos e cinzas; o lugar dos pecados, arrancados pelo confes­


sor, permanecia visível, mas, exceptuando um joio seco de vícios
que rastejava ainda, nada daí brotava.
Via-se esgotado; sabia que já não tinha forças para extirpar as
suas últimas raízes, e esmorecia à ideia de que lhe seria preciso
ainda semear virtudes, arrotear este solo árido, adubar esta terra
morta. Sentia-se incapaz do menor trabalho, e tinha ao mesmo
tempo a convicção de que Deus o repelia, de que Deus já não o aju­
dava. Esta certeza aniquilou-o. Isto foi inexprimível; porque nada
pode dar uma ideia das ansiedades, das angústias deste estado pelo
qual é preciso ter-se passado para o compreender. O desvairamento
de uma criança que nunca se afastou das saias da sua mãe, e que
se abandonasse, sem ela o saber, em pleno campo, à boca da noite,
apenas poderia dar uma pálida ideia; e ainda, em razão mesmo da
sua idade, a criança, depois de se haver afligido, acabaria por se
acalmar, por se distrair da sua aflição, por não mais perceber o
perigo que a ameaça, enquanto que neste estado, é o desespero
tenaz e absoluto, o pensamento imutável do abandono, o transe
obstinado, que nada pode diminuir, que nada pode apaziguar.
Não se ousa mais, nem avançar, nem recuar; talvez se quisesse
esconder, esperar de cabeça baixa o fim de não se sabe que, e estar
seguro de que ameaças que se ignoram e que se adivinham estão
desviadas. Durtal achava-se neste ponto; já não podia voltar atrás,
porque a via que tinha deixado causava-lhe horror. Antes queria
morrer do que voltar a Paris para aí recomeçar as suas instâncias car­
nais, para aí reviver as suas horas de libertinagem e de tédio; mas
se não podia arrepiar caminho, não podia muito mais marchar para
a frente, porque a rota desembocava num beco sem saída. Se a terra
o repelia, o céu cerrava-se ao mesmo tempo para ele.
Jazia exânime na cegueira, na sombra, não sabia onde.
E este estado agravava-se de uma incompreensão absoluta das
coisas que o empunhavam, exagerava-se ainda à lembrança das gra­
ças de antes recebidas.
Durtal recordava-se da doçura das primícias, da carícia dos
toques divinos, da sua marcha contínua e sem obstáculos, do seu
encontro com um padre isolado, da sua missão à Trapa, da sua faci­
lidade em curvar-se à vida monástica, desta absolvição de efeitos
verdadeiramente sensíveis, desta resposta rápida, nítida, de que
podia comungar sem receio.
E, subitamente, sem que, em suma, tivesse delinquido, Aquele
que o tinha até então trazido pela mão, recusava-se a guiá-lo, rele­
gava-o, sem lhe dizer palavra, para as trevas.

251
J.-K. HUYSMANS

Acabou-se tudo - pensou estou condenado a boiar neste


mundo, tal como um salvado de naufrágio que ninguém quer;
nenhum recife me será doravante acessível, porque se o mundo me
repugna, eu desgosto a Deus. Ah! Senhor, lembrai-vos do horto de
Getsémani, da trágica deserção do Pai, que vós imploráveis no meio
de indizíveis pavores! Lembrai-vos que então um anjo vos consolou,
por isso tende piedade de mim, falai-me, e não vos afasteis daqui!
- no silêncio em que se apagou o seu grito, deixou-se sucumbir; e,
contudo, quis reagir contra esta desolação, tentou escapar ao deses­
pero; então começou a rezar, e veio-lhe de novo a sensação muito
precisa de que as suas preces nada alcançavam, não eram mesmo
ouvidas. Chamou a Intendente dos alívios, a Medianeira dos per­
dões em sua ajuda, e ficou persuadido de que a Virgem já não o
escutava.
Depois calou-se, desalentado, e a sombra condensou-se mais
ainda à sua roda, e uma noite cerrada o recobriu. Não sofreu mais
então, no sentido próprio da palavra, mas isto foi pior ainda, por­
que foi o aniquilamento no vácuo, a vertigem do homem que se
curva sobre um abismo; e os restos de raciocínio que podia con­
gregar e juntar, neste descalabro, acabaram por se ramificar em
escrúpulos.
Rebuscava que faltas justificariam, depois da sua comunhão,
uma tal prova, e não as descobria. Chegou até a avolumar os seus
pecadilhos, a intumescer as suas impaciências; quis convencer-se de
que tinha experimentado um verdadeiro prazer em surpreender a
imagem de Florence na sua cela, e torturou-se tão violentamente,
que reanimou a alma quase desfalecida por estes cautérios, e tornou
a levá-la, sem o querer, a esse estado agudo de escrúpulos em que
ela estava, quando se anunciou a crise.
E não perdia, nestes tumultos de reflexões, a triste faculdade da
análise. Dizia consigo, medindo-se num lance de olhos: - Estou
como o piso de um circo, calcado por todas as dores que saem e
entram, mudando de papel. As dúvidas contra a Fé, que pareciam
alongar-se em todos os sentidos, giravam, em suma, no mesmo cír­
culo. E eis que agora os escrúpulos, de que eu me julgava desem­
baraçado, reaparecem e me percorrem todo.
Como explicar isto? Esta tortura, quem lha infligia, o Espírito de
Malícia ou Deus?
Que ele fosse triturado pelo Maligno era mais que seguro; a
própria natureza destes ataques revelava a sua presença; sim, mas
como interpretar este abandono da parte de Deus? Porque enfim o
demônio não podia impedir o Salvador de lhe assistir! E via-se obri­

252
A CAMINHO

gado a concluir que se era martirizado por um, o Outro desinteres­


sava -se disso, deixava correr, retirava-se completamente dele.
Esta contestação deduzida de observações precisas, esta cer­
teza provada, fê-lo sucumbir. Gritou de angústia, olhando para o
lago, junto do qual caminhava, desejando cair nele, julgando que a
asfixia ou a morte seriam preferíveis a uma tal vida.
Depois sentiu-se estremecer diante desta água que o atraía e fugia
dele, carreou consigo a sua angústia ao acaso, pelas matas. Tentou
consumi-la em longas caminhadas, mas fatigava-se sem a cansar, aca­
bando por ir cair, moído, alquebrado, diante da mesa do refeitório.
Fitava o seu prato sem coragem para comer, sem vontade de
beber; estava ofegante, não se podia ter no seu lugar, tão derreaclo
se achava. Levantou-se depois, vagueou pela cerca até às
Completas, e aí na capela, onde esperava encontrar algum alívio, a
alucinação foi levada ao seu auge; a mina estoirou, e a alma minada
desde a manhã fez explosão.
De joelhos, desolado, tentava ainda invocar um apoio e nada sen­
tia vir; parecia-lhe que sufocava murado, numa fossa tão profunda,
debaixo de uma abóbada tão espessa que todo o apelo era abafado,
e nenhum som aí vibrava. Sem coragem já, começou a chorar, com a
cabeça entre as mãos, e enquanto se queixava a Deus de havê-lo assim
levado a uma Trapa para o supliciar, ignóbeis visões assaltaram-no.
Passavam-lhe fluidos diante do rosto, povoando o espaço de
pinturas obscenas. Não os via com os olhos do corpo que não esta­
vam alucinados, mas percebia-os fora de si e sentia-os em si; em
uma palavra, o tacto era exterior e a visão interna.
Esforçou-se por fixar a imagem de São José, diante da qual se
achava, e quis forçar a nada mais discernir senão a ela, mas os seus
olhos pareceram voltar-se e não mais ver senão para dentro. Foi
uma refrega de aparições de contornos indecisos, de cores confu­
sas, que não se precisavam senão nos recônditos apetecidos pela
secular infâmia do homem. E isto variou ainda. Não ficaram, em
invisíveis paisagens de carnes, senão pântanos avermelhados pelos
fogos de não se sabe que poentes, senão charcos estremecendo sob
o abrigo dividido das ervas. Foi o brotar de uma flora imunda, o
desabrochar da bonina das trevas, o rebentar do lótus das cavernas,
enterrado no fundo do vale.
E sopros ardentes estimulavam Durtal, envolviam-no até, e
mudavam-se em hálitos furiosos que lhe escaldavam a boca.
Contemplava tudo isto contra vontade, não podendo mesmo
subtrair-se às vexações imperiosas destes estupros, mas o corpo
estava inerte, permanecia calmo, e a alma revoltava-se a gemer; a

253
J.-K. HUYSMANS

tentação tornava-se então nula; mas se estas manigâncias não con­


seguiam sugerir-lhe senão desgosto e horror, faziam-lhe por outro
lado sofrer incomparavelmente, retardando-se. Todas as fezes da
sua existência licenciosa subiam até à sua superfície; todas estas exi­
gências de uma luxúria desenfreada torturavam-no. Junto à soma
das dores acumuladas desde a madrugada, a sobrecarga destas
recordações esmagou-o por completo e um suor frio o inundou da
cabeça aos pés.
Então teve agonias cruéis, e de repente, como se viesse vigiar
os seus ajudantes, verificar se as suas ordens eram executadas, o
carrasco entrou em cena; Durtal não o viu, mas sentiu-o, e isto foi
inenarrável. Desde que teve a impressão da presença demoníaca
real, a alma toda inteira tremeu, quis fugir, redemoinhou assim
como uma ave que se esbarra contra os vidros de uma vidraça.
E tornou a cair, esfalfada; então, por mais inverosímil que isto
fosse, os papéis da vida inverteram-se; o corpo se ergueu, valido,
dominou a alma enlouquecida, e reprimiu numa tensão furiosa este
pânico.
Muito nitidamente, muito claramente, Durtal percebeu, pela
primeira vez, a distinção, a separação da alma e do corpo, e pela
primeira vez também, teve a consciência deste fenômeno de um
corpo, que havia tanto torturado a sua companheira pelas suas exi­
gências e necessidades, esquecer no perigo comum todos os ranco­
res, e impedir o que lhe resistia por hábito de soçobrar.
Viu isto num relâmpago, e subitamente tudo se apagou.
Pareceu-lhe que o demônio havia-se afastado; a muralha de trevas
que bloqueava Durtal abriu-se, e os clarões derramaram-se por
todas as partes; em um imenso arroubo, o Salve Regina, jorrado do
coro, varria os fantasmas, expulsava as larvas.
O cordial exaltado deste canto reanimou-o. Tomou coragem, e
teve esperanças de que este pavoroso abandono ia cessar; começou
a rezar, e as suas exortações elevaram-se; compreendeu que eram
escutadas enfim.
O ofício havia terminado; depois foi à hospedaria, e quando
apareceu tão abatido, tão pálido, diante do padre Estêvão e do
oblato, estes exclamaram: - Que tem?
Ele deixou-se cair numa cadeira, tentou descrever-lhes o
espantoso Calvário que tinha trepado. - Há mais de nove horas que
isto dura - disse - e admiro-me até de não ter enlouquecido! - e
acrescentou: - Nunca julguei que a alma pudesse sofrer tanto!
E o rosto do padre iluminou-se. Apertando as mãos de Durtal,
disse-lhe:

254
A CAMINHO

- Alegre-se, meu irmão; é tratado tal qual um monge aqui!


- Como? - disse Durtal, sem perceber.
- Sim, essa agonia, porque não há outro termo para definir o
horror deste estado, é uma das provas mais sérias que Deus nos
inflige; é uma das operações da vida purgativa; felicite-se, porque
isso é uma grande graça que Jesus lhe fez!
- E prova também que a sua conversão é boa e sincera.
- Deus! Mas não foi Ele, contudo, quem me insinuou as dúvi­
das contra a Fé, quem fez nascer em mim a loucura dos escrúpulos,
quem me suscitou o espírito de blasfêmia, quem me acariciou a face
com nauseantes aparições!
- Não, mas permite-o. Ah!, isso é m edonho, bem o sei - disse
o hospedeiro. - Deus esconde-se, e se o chamamos não nos res­
ponde. Julgam o-nos desamparados, e contudo Ele está perto de
nós; e enquanto que se conserva oculto, Satã avança, enreda-nos,
enrosca-se em nós, e pousa um m icroscópio sobre as nossas fal­
tas; a sua malícia morde o nosso cérebro semelhante a uma lima
surda, e quando a tudo isto se reúnem, superando, as visões
impuras...
O trapista interrompeu-se; depois, como falando consigo
mesmo, lentamente disse:
- Ainda assim não seria como estar em presença de uma ten­
tação real, de uma verdadeira mulher, em carne e osso. No entanto,
estas aparências, sobre as quais a imaginação trabalha, são horríveis
de suportar!
- E eu que julgava que havia paz nos claustros!
- Não; nós estamos sobre esta terra para lutar, e é justamente
nos claustros que o Muito Baixo, se agita; é por aí que as almas se
lhe escapam, e ele quer a todo o preço conquistá-las. Nenhum sítio
há sobre a terra mais freqüentado por ele do que uma cela; ninguém
é mais importunado do que um monge.
- Um caso que figura na Vicia dos Padres do Deserto é sob este
ponto de vista típico - disse o oblato. - Apenas um só demônio é o
encarregado de guardar uma cidade inteira, e pode dormir à von­
tade, ao passo que duzentos ou trezentos demônios, que receberam
ordem de espiar um mosteiro, não têm repouso algum, agitam-se aí,
é caso de se dizer, como verdadeiros diabos!
E na verdade a missão de fomentar os pecados das cidades é
uma sinecura; porque sem mesmo o duvidarem, Satã domina-as;
não tem mesmo necessidade de atormentá-las para retirar-lhes a
confiança de Deus, pois que sem mesmo se entregarem ao menor
mal, todas lhe obedecem.

255
J.-K. HUYSMANS

E assim, reserva as suas legiões para assediar os conventos


onde a resistência é encarniçada. De resto, acaba de ver a maneira
como ele conduz o ataque!
- Ah! - exclamou Durtal não é ele quem nos faz sofrer mais!
Porque o que ainda é pior que o escrúpulo, pior que as tentações
contra a pureza ou contra à Fé, é o suposto abandono do Céu; não
há nada que possa dar uma ideia disso!
- É o que a teologia mítica chamava a «Noite Escura» - respon­
deu Bruno.
E Durtal exclamou:
- Ah! Estou nela agora; recordo-me bem... eis então a razão
porque São Jo ão da Cruz atesta que não pode descrever-se as dores
desta Noite, e porque não exagera quando afirma que somos então
mergulhados, em vida, nos infernos.
E eu que duvidava da veracidade dos seus livros, eu que o acu­
sava de excessivo! E ele antes a atenuava. Somente, é preciso tê-la
sentido, por si mesmo, para se poder acreditar!
- E não viu ainda nada - repetiu tranquilamente o oblato. -
Acaba de passar pela primeira parte dessa Noite, pela Noite dos
Sentidos; ela é terrível já, sei-o por experiência própria, mas não é
nada em comparação da Noite do Espírito, que às vezes lhe sucede.
Esta é a exacta imagem dos sofrimentos que Nosso Senhor sofreu
no jardim das Oliveiras, quando, transudando sangue, gritou, quase
sem forças: Senhor, desviai de mim este cálice!
Ela é tão espantosa... - e Bruno calou-se, empalidecendo. - Todo
aquele que sofrer este martírio - continuou, depois de uma pausa -
sabe com antecipação o que espera, na outra vida, aos réprobos!
- Vejamos - disse o monge ~ a hora do recolher já bateu. Não
existe senão um só remédio para todos estes males, é a Santa
Eucaristia; amanhã, domingo, a comunidade aproxima-se do
Sacramento; convém, pois, que se junte a nós.
- Mas eu não posso comungar, no estado em que me acho...
- Pois bem, esteja a pé, esta noite, às três horas; irei buscá-lo
à sua cela e levá-lo-ei à do padre Maximino que nos há-de confes­
sar a essa hora.
E sem esperar pela resposta, o hospedeiro apertou-lhe a mão
e retirou-se.
- Ele tem razão - confirmou o oblato é esse o verdadeiro
remédio.
E quando subiu para o seu aposento, Durtal pensou:
- Compreendo agora porque razão o abade Gévresin tinha
tanto empenho em fazer-me ler as obras de São João da Cruz; sabia

256
A CAMINHO

muito bem que eu tinha de entrar na Noite Escura; não ousava


advertir-me claramente com receio de amedrontar-me, mas queria
pôr-me em guarda contra o desespero, ajudar-me pela recordação
aqui destas leituras. Somente, como pôde pensar que, num seme­
lhante naufrágio, eu me recordaria de alguma coisa?
Tudo isto me faz pensar que me tenho esquecido de lhe escre­
ver, e que seria bom que amanhã eu sustentasse a minha promessa,
enviando-lhe uma carta.
E pôs-se de novo a pensar nesse São João da Cruz, nesse car­
melita extraordinário que tinha tão placidamente descrito esta terri-
ficante fase da gnose mística.
E tomava conta da lucidez, da potência de espírito deste
Santo, explicando a vicissitude mais obscura, a menos conhecida
da alma, surpreendendo, seguindo as operações de Deus que
manejava esta alma, comprimia-a na sua mão, espremia-a com o a
uma esponja, depois deixava-a reem beber-se, tornar a encher-se
de dores e torcia-a ainda e fazia-a fundir-se em lágrimas de sangue
para depurá-la.

257
VI

Não - disse Durtal, baixinho - não quero usurpar o lugar des­


tes bons homens.
- Mas asseguro-lhe que isso tanto se lhes dá.
E como Durtal se defendia de passar adiante dos conversos que
esperavam a sua vez de confissão, o padre Estêvão insistiu: - Vou
ficar consigo, mas assim que a cela estiver livre, há-de entrar.
Durtal achava-se então no patamar de uma escada que tinha,
escalonado sobre cada um dos seus degraus, um irmão ajoelhado
ou de pé, com a cabeça envolta no seu capuz, e o rosto voltado
contra a parede. Todos se recolhiam, e examinavam silenciosamente
a alma.
De que faltas se podiam acusar? - pensava Durtal. - Quem
sabe?... - continuou, avistando o irmão Anacleto, com a cabeça pen­
dente sobre o peito e as mãos erguidas - Quem sabe se ele não se
censurará da afeição tão discreta que tem por mim, porque nos con­
ventos toda a amizade é interdita!
E rememorava, no Caminho da Perfeição de Santa Teresa, uma
página ao mesmo tempo ardente e gelada, onde ela apregoa o nada
das ligações humanas, onde declara que a amizade é uma fraqueza,
e confessa claramente que toda a religiosa que almeja ver os seus é
imperfeita.
- Venha - disse o padre Estêvão, que interrompeu as suas refle­
xões e o empurrou para a cela por uma porta de onde vinha a sair
um monge. - O padre Maximino está ali sentado, ao pé de um
genuflexório.
Durtal ajoelhou-se à sua beira e contou-lhe brevemente os seus
escrúpulos e as suas lutas da véspera.
- O que lhe sucede não é para surpreender, após uma conver­
são; de resto, isso é até um bom sinal, porque só aquelas pessoas
sobre quem Deus tem vistas é que são submetidas a estas provações

258
A CAMINHO

- disse lentamente o monge, assim que Durtal terminou a sua nar­


ração.
E prosseguiu:
- Agora que já não tem pecados graves, o demônio esforça-se
por afogá-lo num charco imundo. Em suma, nesses episódios de
uma malícia em apuros há apenas tentação e não culpa.
Sofreu, se sei resumir as suas confissões, sofreu a tentação da
carne e da Fé, e foi torturado pelo escrúpulo.
Ponhamos de parte as visões sensuais. Tais como se produzi­
ram permanecem independentes da sua vontade, custosas sem
dúvida, mas inactivas.
As dúvidas contra a Fé são, porém, mais perigosas.
Compenetre-se bem da verdade de que não existe, além da
oração, senão um só remédio que seja soberano contra este mal: o
desprezo.
Satã é o próprio orgulho em pessoa; despreze-o e logo verá a
sua audácia abater-se; se fala, sacuda os ombros e ele calar-se-á.
O que convém é não dissertar com ele; por mais astuto que seja, fica
sempre por baixo, porque ele possui a mais artificiosa das dialécticas.
- Sim, mas que fazer? Eu não queria escutá-lo, e no entanto
ouvia-o sempre; era obrigado a falar-lhe, quando não fosse para
refutá-lo, ao menos para responder-lhe.
- E era justamente isso com o que ele contava para seduzi-lo;
tenha sempre na lembrança isto: a fim de dar-lhe a facilidade de lhe
retorquir, apresentar-lhe-á, se for preciso, argumentos banais, e logo
que o veja confiante, ingenuamente satisfeito da excelência das suas
réplicas, embrulhá-lo-á em sofismas tão especiosos, que em vão se
debaterá para resolvê-los.
Repito-lhe mais uma vez ainda. Tem na mão a melhor das
razões a opor-lhe: não lhe responda, recuse-lhe a luta.
O prior calou-se, depois continuou tranquilamente:
- Há duas maneiras de desembaraçarmo-nos de uma coisa que
nos molesta: lançá-la para longe ou deixá-la cair. Lançá-la para
longe requer um esforço de que se pode não ser capaz, deixá-la cair
não impõe fadiga alguma, é simples, sem perigo, e ao alcance de
todos.
Lançar para longe, implica ainda um certo interesse, uma certa
animação, até mesmo um certo receio; deixar cair, é a indiferença,
o desprezo absoluto; acredite-me, pois, use deste meio, e Satã
fugirá.
Esta arma do desprezo seria também omnipotente para vencer
o assalto dos escrúpulos, se nos combates desta natureza a pessoa

259
J.-K. HUYSMANS

cercada visse bem claro. Infelizmente, o próprio do escrúpulo é tres-


loucar a gente, fazer perder imediatamente a tramontana, e desde
então é indispensável dirigirmo-nos ao padre para nos podermos
defender.
Efectivamente - prosseguiu o monge que se tinha interrompido
um instante para reflectir - quanto mais se olha de perto, menos se
vê; a gente torna-se presbita desde que se observa; é necessário
colocar-se a um certo ponto de vista para distinguir os objectos, por­
que quando eles estão muito aproximados, tornam-se tão confusos
como se estivessem longe. Eis a razão por que em tal caso é preciso
recorrer ao confessor que não está nem muito afastado, nem muito
próximo, e que se mostra justamente no sítio de onde os objectos
se destacam com todo o seu relevo. Somente, dá-se com o escrú­
pulo o mesmo que com certas moléstias, que, quando não são ata­
lhadas a tempo, tornam-se quase incuráveis.
De modo nenhum lhe permita o poder implantar-se em si; o
escrúpulo, logo ao começo, não resiste à confissão. No momento
em que o formular diante do padre, logo se dissolverá; é uma espé­
cie de miragem que uma palavra apenas faz apagar.
Objectar-me-á, porém - continuou o monge após um silêncio
- que é demasiado mortificante o ter de confessar quimeras que são,
na maior parte das vezes, completamente absurdas; mas é bem para
isso que o demônio nos sugere quase sempre menos argúcias que
disparates. Toma-o assim pela vaidade, pela falsa vergonha.
O monge calou-se ainda, depois continuou:
- O escrúpulo não tratado, o escrúpulo não curado arrasta ao
desânimo, que é a pior das tentações, porque nas outras Satã ape­
nas ataca uma virtude em particular e mostra-se até, ao passo que
nesta ataca a todas ao mesmo tempo e esconde-se.
E isto é tão verdade que se for seduzidos pela concupiscência,
pelo amor ao dinheiro, pelo orgulho, poderá, examinando-se, des­
cobrir a natureza da tentação que o obceca; no desânimo, pelo con­
trário, o seu entendimento se obscurece a tal ponto que não pode
suspeitar sequer que este estado, no qual se debate, não é mais que
uma manobra diabólica que deve combater; e abandona-lhe tudo,
entrega-lhe mesmo a única arma que podia salvá-lo, a oração, de
onde o demônio o desvia como que de uma coisa vã.
Não hesite nunca em cortar o mal pela raiz, isto é, cuidar do
escrúpulo apenas ele nasça.
Agora, diga-me, não tem outra coisa a confessar?
- Não tenho mais nada a não ser este desgosto da Eucaristia,
este langor em que me afundo!

260
A CAMINHO

- Não é de admirar que haja fadiga no seu caso, porque não se


pode suportar impunemente semelhante choque; mas não se inquiete
com isso. Tenha sempre confiança. Não pretenda apresentar-se diante
de Deus como levado à força; vá ao seu encontro, simplesmente,
naturalmente, despreocupado mesmo, tal como está; não se esqueça
ainda de que se é um servo, também é um filho; tenha sempre cora­
gem, que Nosso Senhor há-de enfim dissipar todos estes pesadelos.
Assim que recebeu absolvição, Durtal desceu até à igreja para
esperar a hora da missa.
Quando chegou, porém, o momento da comunhão, seguiu
Bruno, atrás dos conversos. Todos eles se achavam ajoelhados sobre
o lajedo, e uns após outros se erguiam para trocarem o ósculo de
paz e alcançarem o altar.
Repetindo consigo mesmo os conselhos do padre Maximino e,
exortando-se ao abandono, Durtal, ao ver estes monges aproxima-
rem-se da Mesa, não podia impedir-se de pensar: - Oh! O que o
Senhor vai achar, quando chegar a minha vez! Depois de ter descido
a verdadeiros santuários, vai ser reduzido a visitar casebres imundos!
- e sinceramente, humildemente, lamentou-o.
E experimentou; como da primeira vez que se havia aproxi­
mado do plácido mistério, uma sensação de sufocação, de coração
opresso, quando voltou de novo ao seu lugar. Terminada a missa,
abandonou a capela e lançou-se para o parque.
Então, docemente, sem efeitos sensíveis, o Sacramento come­
çou a actuar; Cristo abriu, a pouco e pouco, este aposento fechado,
e arejou-o; a luz do dia entrou às ondas em Durtal. Das janelas dos
seus sentidos, que iam desaguar até então sobre não sabia que
escoadouro, sobre que cerrado húmido e mergulhado em sombra,
contemplou subitamente, numa réstia de luz, a fuga a perder de
vista do céu azul.
A sua visão da natureza modificou-se, os ambientes transfor­
maram-se; esse nevoeiro de tristeza que os velava desfez-se; a ilu­
minação súbita da sua alma derramou-se pelos seus contornos.
Teve a sensação da alegria quase infantil do doente que faz a
sua primeira saída, do convalescente que, depois de se ter arrastado
pelo seu quarto, põe enfim os pés fora; tudo se havia rejuvenescido.
Estas áleas, estas matas que havia percorrido, que começava a
conhecer em todos os seus esconderijos, em todos os seus recantos,
apareceram-lhe sob um outro aspecto. Uma alegria moderada, uma
doçura recolhida emanavam deste retiro, que lhe parecia aproximar-
-se em vez de se estender como dantes, conglomerar-se em torno
do crucifixo, e convergir atentamente para a cruz líquida.

261
J.-K. HUYSMANS

As árvores murmuravam, trementes, numa aragem de orações,


inclinavam-se diante do Cristo que já não estorcia os seus braços
dolorosos no espelho do lago, mas estreitava estas águas, achegava-
-as a si, abençoando-as.
E até elas já diferiam do que eram; a sua cor de tinta negra
enchia-se de visões monacais, de hábitos brancos que o reflexo das
nuvens, ao passar, aí deixavam; e o cisne! Esparrinhava-as, num
esbatimento de sol, e fazia, ao nadar, correr adiante de si grandes
círculos concêntricos com uns laivos de azeite.
Dir-se-ia que estas ondazinhas eram douradas pelo óleo dos
catecúmenos e pelo Santo Crisma, que a Igreja prepara no Sábado
Santo; e por cima delas, o céu entreabriu o seu tabernáculo de
nuvens, de onde saiu um claro sol, semelhante a uma hóstia de ouro
em fusão, a uma custódia em chamas.
Era uma saudação da natureza, uma genuflexão de árvores e
flores, cantando no vento que passa, incensando com os seus per­
fumes o Pão sagrado que resplandecia lá no alto, na píxide abrasada
do astro.
Durtal contemplava tudo isto, transportado. Tinha ímpetos de
gritar a esta paisagem o seu entusiasmo e a sua fé; experimentava
enfim um gosto de viver. O horror da existência não contava já que
em face de tais instantes pudesse dar ainda uma felicidade simples­
mente terrestre. Só Deus tinha o poder de saciar assim a sua alma,
de fazê-la transbordar e escorrer em borbotões de alegria, como só
Ele podia também encher o vaso das dores como nenhum aconte­
cimento deste mundo o saberia fazer. Durtal acabava de experi-
mentá-lo; o sofrimento e o júbilo espirituais atingiam, sob a acção
divina, uma acuidade como as pessoas mais humanamente felizes
ou infelizes nem o suspeitam sequer.

Esta ideia transportou-o às terríveis angústias da véspera.


Tentou resumir o que havia podido observar em si mesmo nesta
Trapa.
A princípio, esta distinção tão nítida do corpo e da alma;
depois, esta acção demoníaca, insinuante e tenaz, quase visível,
enquanto que a acção celeste estaciona, pelo contrário, oculta e
velada, não aparece senão em dados momentos, e parece eliminar-
-se para sempre, em outros.
E tudo isto, sentindo-se, compreendendo-se, apresentando em
si um ar simples, mas não se explicando. Este corpo, parecendo lan­
çar-se em socorro da alma, e cedendo-lhe sem dúvida a sua vontade
para animá-la quando se sentia esmorecer, era ininteligível. Como é

262
A CAMINHO

que um corpo podia mesmo obscuramente reagir e testemunhar; de


súbito uma decisão tão forte que havia comprimido a sua compa­
nheira como num torno e impedira-a de fugir?
É tão misterioso como o restante - dizia consigo Durtal; e
meditabundo continuava:
- O que não é menos estranho é a manobra secreta de Jesus
no seu Sacramento. Se for a julgar pelo que me sucedeu, uma pri­
meira comunhão há-de exasperar a acção diabólica, ao passo que a
segunda a reprime.
Ah!, quanto me acho concentrado em todos os meus cálculos!
Ao abrigar-me aqui julgava-me quase seguro da minha alma, posto
que o meu corpo me inquietasse; e foi justamente o contrário que
se deu.
O meu estômago revigorou-se e mostrou-se apto para tudo
suportar num esforço de que eu nunca o julgaria capaz, mas a
minha alma ficou mais abaixo, vacilante e árida, tão frágil, tão
débil...
Enfim deixemos isso.
E com eçou a passear, arrebatado da terra por uma alegria con­
fusa. Como que se vaporizava em uma espécie de ebriedade, em
uma vaga eterização por onde subiam, sem mesmo pensar em for­
mular, por meio de palavras, acções de graças; era um agradeci­
mento da sua alma, do seu corpo, de todo o seu ser, a esse Deus
que sentia vivo dentro em si e esparso nesta paisagem ajoelhada,
que parecia também expandir-se em hinos mudos de gratidão.
As horas que acabavam de soar no relógio do frontão recorda­
ram-lhe que havia chegado o momento de ir almoçar. Encaminhou-
-se para a hospedaria, onde comeu uma fatia de pão com queijo,
bebeu meio copo de vinho; preparava-se depois para sair, quando
notou que o horário dos ofícios se havia mudado.
Devem ser diferentes dos da semana - disse consigo; e subiu à
sua cela para consultar as papeletas.
Só descobriu uma, a do regulamento dos monges, que conti­
nha advertências sobre as práticas dominicais do claustro; leu-a:

263
J.-K. HUYSMANS

EXERCÍCIOS DA COMUNIDADE
PARA TODOS OS DOMINGOS ORDINÁRIOS

MANHÃ TARDE

horavS horas
1 Levantar, pequeno ofício e 2 Fim do descanso, Noa
oração ã 1 lA 4 Vésperas e Bênção
2 Grande ofício canônico cantado 5 V, Um quarto de hora de oração
5 x/i Prima, missa matutina, 6 horas 6 Ceia
6 V, Capítulo, instruções, grande 7 Leitura antes de Completas
silêncio 7 '/, Completas
9 'A Aspersão, Terço, procissão 7 A Salve, Angehis
10 Missa cantada 7 Vi Exame e retirada
11 Sexta e exame particular 8 Deitar, grande silêncio
11 'A Angehis, jantar
12 '/, Sesta, grande silêncio

NOTA

Depois da Cruz de Setembro, deixa de haver sestas. A Noa é às


2 horas, Vésperas às 3, ceia às 5, Completas às 6, e deitar às 7.

Durtal resumiu este indicador para seu uso num bocado de


papel. Em suma, disse consigo, tenho que estar na capela às 9 horas
e um quarto para a aspersão, missa cantada e ofício de Sexta - daí,
às 2 horas para a Noa - depois, às 4 horas para as Vésperas e
Bênção, e às 7 horas, enfim, para Completas.
Eis um dia que vai ser completamente ocupado, não contando
já que me acho levantado desde as duas horas e meia da manhã -
concluiu; e assim, quando chegou à igreja, por volta das nove horas,
encontrou a maior parte dos conversos, de joelhos, uns fazendo o
caminho da cruz, outros desfiando o seu rosário; mas, apenas o sino
tocou, todos se dirigiram para o seu lugar.
Acompanhado de dois padres de cogula, o prior, vestido com
a alva branca, entrou, e enquanto se cantava a antífona «Asperges
me, Domine, hissopo et mundabor»* todos os monges, seguida­
mente, desfilaram por diante do padre Maximino, que estava de pé
sobre os degraus, voltando as costas ao altar; e aspergia-os com
água benta, quando eles de cabeça baixa, se dirigiam de novo, per-
signando-se, para os seus assentos.

* Salmo 50, 9: «Aspergi-me, Senhor, com um ramo de hissope, e serei puri­


ficado».

264
A CAMINHO

Depois, o prior desceu do altar, e veio até à entrada do vestí­


bulo, onde dispersou a água de uma cruz, traçada pelo hissope
sobre o oblato e Durtal.
Foi enfim paramentar-se e veio celebrar o sacrifício.
Então Durtal pôde passar em revista os seus Domingos entre as
Beneditinas.
O Kyrie eleison era o mesmo, porém mais lento, mais sonoro,
mais grave sobre a terminação prolongada da derradeira palavra; em
Paris, as vozes das monjas desfiavam-no, quase que o poliam, asse-
tinando o seu som de agonia, tornando-o menos surdo, menos
espaçado, menos amplo. O Gloria in excelsis diferia, contudo; o da
Trapa era mais primitivo, mais rústico, mais sombrio, interessante
pela sua própria barbárie, mas menos tocante, porque nas fórmulas
de adoração, no «adoramus te» por exemplo, este «te» não se desta­
cava, não gotejava como uma lágrima de essência amorosa, como
uma confissão retida por humildade na ponta dos lábios; mas só
quando o Credo se elevou é que Durtal pôde exultar de gosto.
Ainda o não tinha assim ouvido tão autoritário e tão impo­
nente; avançava, cantado a uníssono, desenrolava a lenta procissão
dos dogmas, em sons estufados, rígidos, de um violeta tirante a obs­
curo, de um vermelho tirante a negro, e iluminava-se apenas no
final, quando expirava em um longo, em um gemebundo amen.
Seguindo o ofício Cisterciense, Durtal podia reconhecer os tre­
chos de cantochão ainda conservados nas missas paroquiais. Toda a
parte do Canon, o Sursum Corda, o Vere Digmim , as antífonas, o
Pater, permaneciam intactos. Só o Sanctiis e o Agnus Dei variavam
ainda.
Maciços, construídos de alguma forma no estilo românico,
enroupavam-se nesta cor ardente e surda que, de resto, os ofícios
da Trapa revestem.
- Pois bem - disse o oblato, quando após a cerimonia se sen­
taram à mesa do refeitório - , que tal acha a nossa missa cantada?
- É soberba - respondeu Durtal. E como que sonhando, disse:
- Oh! Ter tudo completo! Transportar para aqui, em vez dessa
capela sem interesse, a abside de Saint-Séverin; fazer pender destas
paredes os quadros de Fra Angélico, de Memling, de Grünewald, de
Gerard David, de Roger van der Weiden, de Bouts, juntar-lhes ainda
admiráveis esculturas, obras de pedra, tais como as do grande pór­
tico de Chartres de madeira esculpida, tais como os da catedral de
Amiens, que sonho!
E contudo - continuou após um silêncio - este sonho foi uma
realidade, viu-se. Esta igreja ideal existiu durante séculos, por toda a

265
J.-K. HUYSMANS

parte, na Idade Média! O canto, as jóias de ourivesaria, as talhas, as


esculturas, os tecidos, tudo era à proporção; as liturgias possuíam, para
se fazerem valer, fabulosos escrínios e quanto tudo isto estava longe!
- Já não seria capaz de dizer - replicou sorrindo Bruno - que
os paramentos de igreja sejam desgraciosos aqui!
- Não, mas são esquisitos. A princípio as casulas não têm essas
formas de avental de porta-machado, nem arvoram sobre os ombros
do padre essa intumescência, essa espécie de fole, semelhando uma
orelha pendente, que em Paris os paramenteiros costumam fabricar.
Depois, não têm a cruz agaloada ou tecida, enchendo todo o
estofo, que cai assim como um sobretudo pelas costas do cele­
brante; as casulas trapistinas conservaram as formas de outrora, tal
como no-las deixaram os antigos santeiros e os velhos pintores; e
esta cruz de quatro folhas semelhante às que o estilo ogival cinze-
lou nos muros das suas igrejas, tem um não sei quê do lótus muito
aberto, de uma flor tão desabrochada, que as suas pétalas desviadas
se reviram.
Não contando - prosseguiu Durtal - que o estofo que parece
talhado de uma espécie de flanela ou de baitilha fina, deve ter sido
mergulhado em triplicadas tintas, porque toma uma profundeza e
uma claridade magnífica de tons. Os passamaneiros religiosos
podem recamar de prata e ouro os seus damascos e sedas, mas
nunca conseguirão dar-lhes a cor veemente e, por conseguinte, tão
familiar à vista desta trama carmesim, florida de amarelo enxofre,
que o padre Maximino trazia no outro dia.
- Sim, e a casula de luto com as suas cruzes lobadas e as suas
discretas ramagens brancas, com que se envolveu o padre abade, no
dia em que nos deu a comunhão, não era também uma carícia para
o olhar?
Durtal suspirou: - Ah! Se as imagens da capela exibissem um
gosto igual!
- A propósito - disse o oblato vinde saudar essa Nossa
Senhora do Lar, em que já lhe falei e que foi descoberta nos vestí­
gios do velho claustro.
Levantaram-se ambos da mesa, enfiaram por uma galeria late­
ral, ao cabo da qual pararam em frente de uma estátua de pedra, em
tamanho natural.
Era pesada e grosseira, representava num vestido de longas
pregas, como que uma aldeã coroada e rubicunda, estendendo
sobre um braço uma criança a abençoar uma esfera.
Mas neste retrato de uma robusta senhora, originária da
Borgonha ou da Flandres, havia uma candura, uma bondade quase

266
A CAMINHO

tumultuosa, que jorravam da face sorridente, dos olhos ingênuos, dos


bons e espessos lábios, indulgentes, prontos para todos os perdões.
Era uma Virgem rústica feita pelos humildes conversos; não era
uma grande dama que pudesse conservá-los à distância, antes era
bem a sua mãe que nutria a alma, a verdadeira mãe deles e para
eles! Por que é que ainda não a compreenderam aqui? Porque razão
em vez de brilhar na capela, antes vegeta no fundo de um corredor?
- exclamou Durtal.
O oblato mudou de conversa. - Vou preveni-lo - disse - de
que a Bênção não se dará depois das Vésperas, como o indica o seu
cartaz, mas sim depois das Completas; este último ofício antecipar-
-se-á um quarto de hora pelo menos.
E o oblato tornou a subir para a sua cela, ao passo que Durtal
dirigiu-se para o grande lago. Aí, estirou-se sobre uma cama de
canas secas, olhando para as águas que vinham espreguiçar-se,
ondulando a seus pés, o vaivém destas águas limitadas, desdobra­
das sobre si mesmas, não transpondo a bacia onde estavam conti­
das, arrastou-o a longos devaneios.
Dizia consigo mesmo que um rio era o mais exacto símbolo da
vida activa; retratava-o desde o seu nascimento, em todo o seu per­
curso, através dos territórios que fecundava; cumpria uma tarefa
assinalada antes de ir morrer, imergindo-se, no sepulcro diante dos
mares; mas o lago, esta água hospitalizada, encerrada dentro de uma
sebe de canaviais que ele também havia feito crescer, fertilizando o
solo das suas margens, concentrava-se, vivia sobre si mesmo, não
parecia desempenhar nenhuma obra conhecida a não ser observar
o silêncio e reflectir até ao infinito o céu.
A água sedentária inquieta-me - continuava Durtal. - Parece-
-me que não podendo distender-se, ela profunda-se e que justa­
mente no ponto onde as águas correntes guardam somente o
reflexo das coisas que se espelham nelas, esta traga-as, sem as res­
tituir. Há seguramente neste lago uma absorção contínua e profunda
de nuvens olvidadas, de árvores perdidas, de sensações surpreendi­
das no rosto dos monges que se inclinaram sobre ele. Esta água é
cheia e não vazia, como as que se distraem, serpeando pelas cam­
pinas, banhando as cidades. É uma água contemplativa em perfeito
acordo com a vida recolhida dos claustros.
O facto é - concluiu - que uma ribeira aqui não teria sentido
algum. Não estaria senão de passagem, ficaria indiferente e célere,
seria em todo o caso incapaz de serenar a alma que a água mona-
cal dos lagos apazigua, Ah! Como, fundando Nossa Senhora do Lar,
São Bernardo tinha sabido irmanar a regra Cisterciense com o sítio!

267
J.-K. HUYSMANS

Mas deixemos estes devaneios - disse, levantando-se; e,


fazendo de conta que era Domingo, transferiu-se a Paris, e tornou a
ver as suas estadas nestes dias pelas igrejas.
De manhã, Saint-Séverin encantava-o, mas era precioso não
intrometer-se neste santuário outros ofícios. Aí, as Vésperas eram
mal alinhavadas e mesquinhas; e se era dia de gala, o mestre de
capela revelava-se obsidiado pelo amor de uma música ignóbil.
Algumas vezes Durtal refugiava-se em Saint-Gervais, onde se
exibiam, pelo menos em certas épocas, motetos dos velhos mestres;
mas esta igreja era, do mesmo modo que Saint-Eustache, um con­
certo contratado, onde a Fé nada tinha que fazer. Eram frívolas ses­
sões de música piedosa, um compromisso entre o teatro e Deus.
Mais valia Saint-Sulpice, onde o público era silencioso, pelo
menos. Era aí que as Vésperas se celebravam com a maior soleni­
dade e a menor pressa.
Na maior parte das vezes, o seminário reforçava a capela, e,
manietadas por este coro imponente, desenrolavam-se majestosas,
sustentadas pelos grandes órgãos.
Cantadas, em parte, sem uníssono, reduzidas ao estado de
copias desfiadas, umas por um barítono, outras pelo coro, elas apre­
sentavam-se, de resto; excessivamente mascaradas, mas, como não
eram menos adulteradas nas outras igrejas, havia toda a vantagem
em escutá-las em Saint-Sulpice, cuja poderosa capela, muito bem
regida, não tinha, assim como em Notre-Dame, por exemplo, estas
vozes farinhentas que se pulverizam ao menor sopro.
E só se tornava realmente odioso quando, em uma formidável
explosão, a primeira estrofe da Magnificat abalava as abóbadas.
O órgão absorvia então uma estrofe de entre duas, e sob o
sedicioso pretexto de que a duração do ofício da incensação era
muito longa para ser abrangida toda inteira por este cântico, Widor,
instalado diante do seu balcão, distribuía rebotalhos de música, sus­
surrava lá em cima, imitando a voz humana e a flauta, o biniou e o
pífaro, a gaita de fole e o fagote, bufava chocalhices que ele acom­
panhava na cornamusa, ou antes, cansado de fazer trejeitos, silvava
furiosamente, e acabava por simular o rolar das locomotivas por
cima das pontes de ferro, disparando todas as suas bombardas.
E como o mestre de capela não quisesse mostrar-se inferior no
seu ódio instintivo ao cantochão, dava ao organista o gáudio,
quando começava a Bênção, de escolher as melodias gregorianas
para fazê-las bailar aos seus coristas.
Parecia estar-se, não num santuário, mas sim num pandemô­
nio. As Ave Maria , as Ave vemm , todos os decotes místicos do

268
A CAMINHO

defunto Gounod, as rapsódias do velho Thomas, os bailados de


indigentes musicastros, desfilavam em longo rosário dobados pelos
coristas da capela à Lamoureux,* cantados infelizmente também por
crianças de quem não receavam poluir a castidade das vozes nestas
licenças burguesas de música, nestas frioleiras de arte!
Ah! —dizia consigo Durtal - , se somente este mestre de capela,
que é evidentemente um excelente músico, porque enfim, quando
é preciso, sabe fazer executar, melhor que em nenhuma outra parte,
em Paris, o De Profundis em fabordão e o Dies Irae, se somente este
homem fizesse tocar, assim como em Saint-Gervais, as melodias de
Palestrina e Victoria, Aichinger e Allegri, Orlando Lassus e Deprès! -
mas não, ele deve igualmente abominar estes mastros, considerá-los
como destroços arcaicos, só bons para relegar de vez.
E Durtal continuava:
É mesmo incrível o que se ouve agora em Paris, pelas igrejas!
Com o propósito de se poupar o ganha-pão dos chantres, suprime-
-se a metade das estrofes, dos cânticos e dos hinos, e substituem-
-nos, para variar os gostos, pelas divagações aborrecidas de um
órgão.
Grita-se o Tantum ergo como o hino nacional austríaco, ou, o
que é pior ainda, revestem-na de cópias de operetas ou de gorgo-
lejos de cantina. Divide-se mesmo o seu texto em quartetos a que
se junta um pequeno estribilho, semelhante a uma canção báquica.
E as outras prosas são tratadas da mesma sorte.
E contudo o Papado defendeu formalmente por diversas bulas
que se deixasse manchar o santuário com tais garganteios. Para não
citar senão uma, na sua bula Docta Sanctorum Jo ão XXII proibiu
expressamente a música e as vozes profanas nos templos. Ao
mesmo tempo interditou as capelas de alterar com floreados o can­
tochão. Os decretos do Concilio de Trento não são, deste ponto de
vista, menos claros, e muito recentemente ainda, um regulamento
da Sagrada Congregação dos Ritos interveio para proscrever dos
lugares santos as algazarras musicais.
Então o que fazem os párocos que são, em suma, os encarre­
gados da polícia musical nas suas igrejas? Nada, e ainda por cima
zombam disso.
Ah!, isto não é para ter que dizer, mas com estes padres que na
expectativa de uma receita permitem nos dias de festa as vozes arre­
gaçadas de actrizes, bailando aos sons pesados do órgão, a pobre
Igreja torna-se alguma coisa de bem pouco próprio!

* Amhroise Thomas (1811-1896). Charles Lamoreux (1834-1899) [N.R.]

269
J.-K. HUYSMANS

Em Saint-Sulpice - continuou Durtal - o cura tolera a vilania


das frioleiras que lhe servem, mas ao menos não admite, como o de
Saint-Séverin, que comediantes tornem visível no Sábado Santo o
ofício com as pompas decotadas das suas vozes. Enfim, se as
Bênçãos em Saint-Sulpice são uma vergonha, as Completas conser­
varam-se aí verdadeiramente encantadoras, apesar da sua atitude
teatral.
E Durtal pôs-se a pensar nessas Completas, cuja paternidade é
por vezes atribuída a São Bento; eram elas, em suma, a prece integral
das noites, a adjuração preventiva, a salvaguarda contra os cometi-
mentos do Sucubato; eram, de alguma sorte, sentinelas avançadas,
guardas colocados ao redor da alma para a proteger durante a noite.
E a ordenança deste acampamento entrincheirado de orações
era na verdade perfeita. Após a Bênção, a voz mais adelgaçada, a
mais filiforme da capela, a voz da mais nova das crianças, lançava,
assim como uma alerta, a lição breve extraída da primeira epístola
de São Pedro, advertindo os fiéis a que sejam sóbrios e a velarem
para não se deixarem surpreender de improviso. Um padre recitava
em seguida as orações habituais das noites, o órgão do coro dava a
entonação e os salmos caíam, salmodiados um a um, salmos cre-
pusculares em que ante estas aproximações da noite povoada de
lémures e sulcada de larvas, o homem chama Deus em sua ajuda e
pede-Lhe para afastar do seu sono a violação dos espíritos do
inferno, o estupro das lâmias que passam.
E o hino de Santo Ambrósio, o Te lucis ante terminum, preci­
sava mais ainda o sentido esparso destes salmos, resumia-o nas suas
curtas estrofes. Infelizmente, a mais importante, aquela que prevê e
revela os perigos luxuriosos da sombra, era absorvida pelos grandes
órgãos. Este hino, em Saint-Sulpice, não se clamava em cantochão,
como na Trapa, mas entoava-se numa ária pomposa e destacada,
numa ária embalada de glória, de um assaz andamento, e que era
originária sem dúvida do século x v iii .
Depois, havia uma pausa, - e o homem sentindo-se melhor
abrigado por detrás desta trincheira de invocações, recolhia-se então
mais tranqüilo, e servia-se das vozes inocentes para endereçar a
Deus novas súplicas. Após o capítulo desfiado pelo oficiante, os
meninos da capela cantavam o responso breve «/n manus tuas,
Domine, commendo spiritum meum * que se desenrolava, bisando-
-se, depois desdobrava-se e soldava de novo, no final, os seus dois
troços, separados, por um versículo e uma metade de antífona.

* «Nas tuas mãos, Senhor, entrego a minha alma». [N.R.]

270
A CAMINHO

E depois desta prece, havia ainda o cântico desse Simeão que,


desde que viu o Messias, desejou morrer. Este Nunc dimitis, que a
Igreja incorporou nas Completas para nos estimular a revermo-nos
à noite - porque ninguém sabe se despertará no dia seguinte - era
exalçado por toda a capela, que o alternava com responsos do
órgão.
Enfim, para terminar este ofício de cidade bloqueada, para
tomar as suas últimas disposições e tentar repousar ao abrigo de um
golpe de mão, em paz a igreja edificava ainda algumas orações e
colocava os seus eucológios sob a tutela da Virgem de quem can­
tava uma das quatro antífonas que se sucedem, segundo o Próprio.
Na Trapa, as Completas são evidentemente menos solenes,
mesmo menos interessantes do que em Saint-Sulpice, concluiu
Durtal, porque o breviário monástico é menos completo para este
ofício do que o breviário romano. Quanto às Vésperas de Domingo,
estou curioso por ouvi-las aqui.
E ouviu-as, pois; elas, porém, não diferiam em nada das
Vésperas adoptadas pelas Beneditinas da rua Monsieur; eram mais
densas, mais graves, mais romanas, se pode dizer-se assim, porque
forçosamente as vozes de mulheres afilam-nas em lancetas, ogivas,
modulam-na, de alguma sorte, no estilo gótico, mas as árias grego­
rianas eram ainda as mesmas.
Pelo contrário, elas não se assemelhavam em nada às de Saint-
-Sulpice, cujos acessórios modernos sofismam as próprias essências
do canto gregoriano. Somente o Magnificat da Trapa, abrupto e de
um brilho áspero, não alia este majestoso, este admirável Magnificat
Real que em Paris se canta.
São assombrosos estes monges com as suas vozes soberbas -
dizia consigo Durtal, e sorriu-se, quando eles davam fim ao cântico
da Virgem, porque se recordava de que na primitiva Igreja o chan­
tre era apelidado o «fabarius cantor% «comedor de favas», pelo
motivo de ser condenado a comer destes legumes para fortificar a
sua voz. Ora na Trapa, os pratos de favas eram freqüentes; estava aí
talvez a receita das vozes monásticas sempre juvenis!
E continuava a devanear sobre a liturgia e o cantochão,
fumando cigarros, depois das Vésperas, pelos renques de árvores.
E rememorava o simbolismo destas horas canônicas que traçam
todos os dias aos fiéis a brevidade da vida, resumindo-lhe a sua ima­
gem, desde a infância até à morte.
Recitada a contar da aurora, a Prima figurava a adolescência; a
Terça a juventude; a Sexta o pleno vigor da idade; a Noa os pri­
meiros rebates da velhice, e as Vésperas alegorizavam a decrepi-

271
J.-K. HUYSMANS

tude. No entanto, as Vésperas pertenciam aos Nocturnos, e salmo-


diavam-se dantes às seis horas da tarde, à hora em que no tempo
dos equinócios o sol se põe na cinza arroxeada das nuvens. Quanto
às Completas, elas reboavam ainda, quando, símbolo da morte, a
noite já tinha caído.
Este ofício canônico era um maravilhoso rosário de salmos;
cada conta de cada uma destas horas referia-se às diferentes fases
da existência humana, seguia a par e passo, os períodos do dia, o
declinar do destino, para terminar pelo mais perfeito dos ofícios, as
Completas, esta absolvição provisória de uma morte representada,
ela mesma, pelo sono!
E se, destes textos tão sabiamente escolhidos, destas prosas tão
solidamente seladas, Durtal passava às vestes sacerdotais dos seus
sons, a esses cantos neumáticos, a essa divina salmodia, toda uni­
forme, toda simples como é o cantochão, devia reconhecer que,
salvo nos claustros Beneditinos, tinham-lhe por toda a parte adjunto
um acompanhamento de órgão, tinham-no mergulhado à força na
tonalidade moderna, e ele desaparecia sob estas vegetações que o
abafavam, mostrava-se em toda a parte incolor e amorfo, incom­
preensível.
Só um dos seus verdugos, Niedermeyer,* se tinha mostrado
menos impiedoso. Tinha ensaiado um sistema mais engenhoso e
mais probo. Havia invertido os termos do suplício. Em vez de que­
rer tornar flexível o cantochão e lançá-lo nos moldes da harmonia
moderna, constrangera esta harmonia a vergar-se à tonalidade aus­
tera do cantochão. Conservava assim o seu carácter, mas quanto
seria mais natural deixá-lo solitário, não o obrigar a comboiar um
inútil cortejo, um desastrado séquito!
Ao menos aqui na Trapa, ele vivia, expandia-se com toda a segu­
rança, sem traições por parte destes monges. Havia sempre homofo-
nia, era sempre cantado sem acompanhamento, em uníssono.
Mais uma vez ainda pôde confirmar esta verdade, à noite, após
a ceia, quando o padre sacristão acendeu todas as velas do altar.
Neste momento, no silêncio dos trapistas ajoelhados, com a
cabeça entre as mãos ou a face debruçada sobre a manga do seu
grande hábito, três conversos entraram, dois traziam tochas e, um
outro, que os precedia, um incensário, e atrás deles, a alguns pas­
sos, o prior avançava de mãos erguidas.
Durtal olhava para o traje mudado dos três irmãos. Já não tra­
ziam o seu vestido de burel, feito de retalhos e todo remendado,

• Louis Niedermeyer (1802-1861). [N.R.]

27 2
A CAMINHO

sujo até, de uma cor de terra, mas hábitos de um pano violáceo de


ameixa, sobre o qual sobressaía o branco encanudado de uma
sobrepeliz nova.
Enquanto que o padre Maximino, envergando uma capa de um
branco leitoso, tecida de cruzes de um amarelo de cidra, colocava a
hóstia na custódia, o turiferário pousava o turíbulo onde se derre­
tiam as lágrimas dos verdadeiros incensos. Contrariamente ao que
sucede em Paris, onde o turíbulo brandido ante o altar ressoa de
encontro às suas cadeias, e simula o tinido dos arreios de um cavalo
que os sacode ao levantar a cabeça com o freio, o incensário na
Trapa permanecia imóvel diante do altar, fumegava sozinho, nas
costas dos oficiantes.
E todos eles cantaram a implorante e a melancólica antífona
do Parce Domine, depois o Tantum ergo, este cântico magnífico
que quase podia ser declamado e representado, tanto os sentimen­
tos que se sucedem na sua prosa rimada são nítidos nas suas cam-
biantes.
Na primeira estrofe, parece efectivamente que inclina doce­
mente a cabeça, que apoia, por assim dizer, no queixo, a fim de
atestar a insuficiência dos sentidos em explicar o dogma da Presença
Real, o avatar completo do Pão; é então admirativo e ponderado.
Depois, esta melodia tão atenta, tão respeitosa, não se demora a
mostrar a fraqueza da razão e a potência da Fé, mas na segunda
estroíé exalta-se, adula a glória das três Pessoas, exulta de júbilo, e
não volta a si senão no fim, quando a música junta um sentido novo
ao texto de São Tomás, confessando em um longo, em um dolente
amen, a indignidade da assistência a receber a bênção da Carne
encerrada nesta cruz, que a custódia vai desenhar no ar.
E lentamente, enquanto que, desenrolando a sua espiral de
fumo, o incensário estendia como que uma gaze azul, por diante do
altar, enquanto que o Santíssimo Sacramento se elevava, semelhante
a uma lua de ouro, por entre as estrelas dos círios a cintilarem nas
trevas incipientes desta bruma, os sinos da abadia repicaram em
badaladas precipitadas e brandas. E todos os monges acocorados e
de olhos fechados, se endireitaram e entoaram o Laudate sobre a
velha melodia que é cantada igualmente em Notre-Dame-des-
-Victoires, na Bênção da noite.
Em seguida, um a um, depois de terem-se ajoelhado em face
do altar, saíram da igreja, ao passo que Durtal e o oblato voltaram
à hospedaria onde os esperava o padre Estêvão.
Este disse a Durtal: - Não queria ir deitar-me sem saber como
havia passado o dia de hoje - e como Durtal lhe agradecia, afir­

273
J.-K. HUYSMANS

mando-lhe que neste domingo tinha estado muito sossegado, o


padre Estêvão sorriu-se, e revelou, ainda mesmo sob esta sua atitude
reservada, que todos na Trapa se interessavam pelo seu hóspede
mais do que ele próprio o julgava.
- O padre abade e o padre prior vão ficar muito contentes
quando lhes der esta resposta - disse o monge, que desejou uma
boa noite a Durtal, estreitando-lhe a mão.

274
VII

Às sete horas, no momento em que se preparava para comer o


seu pão, Durtal encontrou-se com o padre Estêvão.
- Meu padre - disse - amanhã é terça-feira. O tempo do meu
retiro já está acabado e vou portanto partir. Como hei-de arranjar um
carro para levar-me até Saint-Landry?
O monge sorriu-se.
- Posso encarregar dessa comissão ao carteiro quando trouxer
o correio; mas então tem muita pressa em deixar-nos?
- Oh! Não, mas eu não queria abusar...
- Pois então já que está bem resolvido a abandonar a vida das
Trapas, peço-lhe que fique ainda estes dois dias connosco. O Padre-
-procurador deve ir a Saint-Landry tratar de uma questão, e pode
conduzi-lo até à gare na nossa carruagem. Com isto evita uma certa
despesa, e o trajecto daqui até ao caminho de ferro há-de parecer-
-lhes a ambos menos longo.
Durtal aceitou e, como chovia, tornou a subir ao seu quarto.
- É deveras para estranhar - disse sentando-se - a impossibilidade
que se encontra num claustro em ler um livro; não se tem vontade
de nada; pensa-se em Deus por si próprio e não pelos volumes que
nos falam d’Ele.
Maquinalmente, tirou de entre um montão de alfarrábios um in-
-dezoito, que havia encontrado em cima da mesa no dia em que se
instalou na cela; exibia este título: Manresa ou os Exercícios
Espirituais de Santo Inácio de Loyola.
Tinha já percorrido esta obra em Paris, e as páginas que de
novo folheava não lhe alteravam em nada a impressão ríspida,
quase hostil, que havia conservado deste livro.
O caso é que estes exercícios não deixavam nenhuma inicia­
tiva à alma; consideravam-na como uma pasta mole, boa para fazer
escoar-se num molde; não lhe mostravam nenhum horizonte, e

27 5
J.-K. HUYSMANS

nenhum Céu. Em lugar de tentar distendê-la, engrandecê-la, dimi-


nuíam-na ainda, de propósito, rebaixavam-na nos seus moldes,
pareciam apenas nutri-la com minúcias fanadas, com bagatelas
secas.
Esta cultura japonesa de árvores contrafeitas e que ficaram
anãs, esta deformação chinesa de crianças plantadas em vasos, hor-
ripilavam Durtal, que fechou o volume.
Abriu outro: Introdução â Vida Devota de São Francisco de
Sales.
Por certo que não tinha a menor vontade de o tornar a ler, não
obstante as suas graças, as suas delicadezas, e a sua bonomia sem­
pre encantadora, mas que acabava sempre por descorçoar-nos e por
orvalhar-nos a alma com as suas dragas e os seus fundentes açuca­
rados; em suma, esta obra, tão gabada no mundo dos católicos, era
para ele um julepo perfumado a bergamota ou a âmbar. Rescendia-
-lhe a lenço de luxo sacudido numa igreja, onde persistisse ainda
um relento de incenso.
Mas o próprio homem, o bispo que se chamou São Francisco
de Sales, era na verdade sugestivo; evocava com o seu nome toda
a historia mística do século xvn.
E Durtal relembrava as recordações conservadas da vida reli­
giosa destes tempos. Houvera então na Igreja duas correntes:
A do Misticismo chamado exaltado, originário de Santa Teresa
e de São João da Cruz, e esta corrente tinha-se concentrado toda
sobre Marie Guyon.*
E uma outra, a do Misticismo chamado temperado, cujos adep­
tos foram São Francisco de Sales e sua amiga a célebre baronesa de
Chantal.
Era naturalmente esta última corrente que devia triunfar.
Apresentava um Jesus, pondo-se ao alcance dos salões, descendo ao
nível das mulheres elegantes, um Jesus moderado, conveniente, não
manejando a alma da sua criatura senão o preciso para dotá-la com
um atractivo mais. Mas Marie Guyon, que derivava sobretudo de
Santa Teresa, que ensinava a teoria mística do amor e o comércio
familiar com o céu, levantou a reprovação de todo um clero que
abominava a Mística sem a compreender; exasperou o terrível
Bossuet que a acusou de heresia, de molinismo e de quietismo. Ela
refutou sem grande trabalho este agravo, mas ele nem por isso dei­
xou de persegui-la menos: irritou-se contra ela, fê-la encarcerar em
Vincennes, revelou-se tenaz e bulhento, inexorável.

* Jeannc-Marie Bouvier de La Motte (1648-1717), mística francesa. [N.R.]

276
A CAMINHO

Fénelon, que havia tentado conciliar estas duas tendências,


preparando uma pequena Mística, nem muito quente, nem muito
fria, um pouco menos tépida que a de São Francisco de Sales, e
sobretudo muito menos ardente que a de Santa Teresa, acabou por
desagradar também ao gaivotão de Meaux,* e posto que tivesse
abandonado e renegado Marie Guyon, de quem era amigo desde
longos anos, foi perseguido, encurralado por Bossuet, condenado
em Roma, e exilado para Cambrai.
E aqui, Durtal não podia impedir-se de sorrir, porque se recor­
dava das queixas pungentes dos seus partidários, chorando esta des­
graça, representando como um mártir este arcebispo cuja punição
consistia em fazer cessar o seu papel de cortesão em Versalhes para
ir enfim administrar a sua diocese que não parecia até então tê-lo
preocupado.
Este Jo b mitrado, que ficava ainda, na sua desgraça, arcebispo
e duque de Cambrai, príncipe do Santo Império e rico, desolando-
-se, porque se vê obrigado a visitar as suas ovelhas, denota bem o
estado do episcopado sob o reinado redundante do grande Rei. Era
um sacerdócio de financeiros e de servos.
É triste dizê-lo, mas é assim - concluiu Durtal. Quanto a Marie
Guyon - continuou - ela não foi nem uma escritora original, nem
uma santa; não era mais que uma sucedânea malograda da verda­
deira mística; ela presumia, mas faltava-lhe seguramente a humil­
dade que exaltou uma Santa Teresa e uma Santa Clara; mas enfim
ardia em chamas, era uma embalada de Jesus, não era portanto uma
cortesã piedosa, uma beata moderada de corte, como a Maintenon!*
De resto, que época religiosa esta? Os seus santos têm todos
alguma coisa de cordato e de compassado, de verboso e de frio
que me embaraça. São Francisco de Sales, São Vicente cie Paulo,
Santa Chantal... mas não, eu gosto mais de São Francisco de Assis,
São Bernardo, Santa Ângela... A Mística do século xvn está bem em
relação com as suas igrejas enfáticas e mesquinhas, com a sua pin­
tura pomposa e gelada, com a sua poesia solene, e com a sua prosa
sombria!
Oh! - exclamou a minha cela ainda não foi varrida e arru­
mada; tenho receio de desgostar o padre Estêvão com esta minha
demora aqui. Chove muito, porém, para eu poder passear pelos

* Referência irônica a Bossuet, a «águia de Meaux». [N.R.]


* Marquesa de Maintenon, (1635-1719), encarregada da educação dos
filhos de Luís XIV e Madame de Montespan, mais tarde casou secretamente com
o Rei. Embora de berço católico, foi educada por Calvinistas, e exerceu grande
influência na Corte. [N.R.]

277
J.-K. HUYSMANS

bosques; o mais simples seria ir à capela ler o Pequeno Ofício da


Virgem.
Desceu até lá; a esta hora estava ainda quase vazia; os monges
trabalhavam nos campos ou na fábrica; sozinhos, dois padres, de
joelhos diante do altar de Nossa Senhora, rezavam tão violenta­
mente que nem sequer deram fé de se empurrar a porta.
E Durtal, que se tinha instalado perto deles, defronte do pór­
tico que dava para o altar-mor, via-os reverberados na placa de
vidro colocada diante do relicário do Bem-aventurado Guerric.
Efectivamente, esta placa fazia de espelho, e os padres brancos per­
diam-se aí, como que viviam em orações sob a mesa, no próprio
coração do altar.
E ele também aí aparecia, em um canto, reflectido, no sopé do
relicário, perto do despojo sagrado do monge.
Em um dado momento, Durtal levantou a cabeça e viu que a
fresta aberta na rotunda, por detrás do altar-mor, reproduzia num
vitral, ensombrado de cinzento e azul, os distintivos gravados no
reverso do medalhão de São Bento, as primeiras letras das suas fór­
mulas imperativas, as iniciais dos seus dísticos.*
Dir-se-ia uma imensa medalha transparente, tamisando uma luz
pálida, filtrando-a através de orações, não a deixando penetrar até
o altar senão santificada, senão abençoada pelo Patriarca.
E enquanto que cismava, o sino tocou, e os dois trapistas diri­
giram-se para as suas estantes ao mesmo tempo que os outros
entravam.
Soara pois, neste entrementes, a hora de Sexta. O abade avan­
çou para a frente. Durtal tornava a vê-lo, pela primeira vez, depois
da sua conversação; parecia menos adoentado, menos pálido; cami­
nhava majestoso na sua grande cogula branca, de cujo cabelo pen­

* Eis a explicação das letras gravadas no reverso da medalha de São Bento


[que aparecia na folha de rosto da primeira edição de En Route}.
No alto da medalha está o monograma de Jesus - I.H.S. (Jesus Hominum
Salvator, Jesus Salvador dos Homens), depois, nos vazios, que desenham qua­
tro triângulos esféricos por cima e por baixo dos dois braços da cruz, estas letras
inscritas em minúsculos discos, C.S.P.B., iniciais destas palavras, Crux Sancti
Patris Benedicti, Cruz do Santo Padre Bento.
Depois, no braço vertical da cniz: C.S.S.M.L., Crux Sacra Sit Mihi Lux, que
a cruz santa seja a minha luz; e no braço horizontal: N.D.M.D., Non D raco Sit
Mihi Dux, que o diabo não seja o meu guia.
Na bordadura do círculo, no enxergo, começando pelo alto e descendo à
direita, lêem-se estas letras: V.R.S.N.S.M.V. (Vade Retro, Sathana, Nuquam Suade
Mihi Vana, Retira-te, Satã, não me aconselhes as coisas vãs), e S.M.Q.I.V.L. (Sunt
M ala Q uae Lihas; Ipse Venena B ibas, O que tu nos vertes é o Mal; bebe, tu
mesmo, os teus venenos). [N.T.]

278
A CAMINHO

dia uma borla violácea, e os padres inclinavam-se, beijando-lhe a


fímbria da manga; depois, chegou ao seu lugar, que era designado
por um báculo de pau, levantado perto de uma estante, e todos eles
se envolveram num grande sinal da cruz, saudaram o altar, e a voz
fraca e implorante do velho trapista subiu aos ares: «Deus in adju-
torium meum intende».
E o ofício continuou no balouçar monótono e atraente da
doxologia, entrecortado de inclinações profundas, de grandes movi­
mentos de braços, levantando a manga da cogula e caindo por terra,
para permitir sair a mão e virar as páginas.
Quando o ofício de Sexta terminou, Durtal foi juntar-se ao
oblato.
Acharam em cima da mesa do refeitório uma pequena omeleta
com alhos bravos num molho de farinha e azeite, um prato de fei­
jões e algum queijo.
- É espantoso - disse Durtal - como a propósito dos místicos
o mundo erra sobre ideias preconcebidas, sobre banalidades. Os
frenologistas pretendem que os místicos tem crânios em ponta; ora,
aqui em que a sua forma é mais visível que algures, pois que todos
eles, ou não têm cabelo, ou são tonsurados, há mais cabeças des­
nudadas do que em outra qualquer parte. Vi, pois, esta manhã, a
contextura destes crânios, e nenhum havia semelhante. Uns são
ovais e deitados, outros são piriformes e direitos; outros ainda são
redondos; estes têm bossas e aqueles não as têm. E dá-se o mesmo
com as faces; quando não se apresentam transfiguradas pela ora­
ção, são triviais. Se não envergassem o costume da sua ordem, nin­
guém poderia reconhecer nestes trapistas seres predestinados,
vivendo fora da sociedade moderna, em plena Idade Média, na
confiança absoluta de um Deus. Se têm almas que não se asseme­
lham às dos outros, têm em suma, o rosto e o corpo de qualquer
de nós.
- Tudo está no interior - disse o abade. - Por que razão as
almas eleitas haviam de estar encerradas em cárceres carnais dife­
rentes dos outros?
Esta conversação, que continuava desencadeada sobre a Trapa,
acabou por fixar-se sobre a morte nos claustros, e Bruno revelou
alguns detalhes.
- Quando a morte está próxima - disse ele - o padre abade
desenha no chão uma cruz de cinza benta, que se recobre de palha,
e aí se depõe o moribundo, envolto num pano de sarja.
Os irmãos recitam junto dele as orações dos agonizantes, e, no
momento em que expira, canta-se em coro o responso: Subvenite

279
J.-K. HUYSMANS

Sancti Dei .* O padre abade incensa o cadáver, que é lavado


enquanto os monges salmodiam o ofício dos defuntos numa outra
sala.
Restitui-se em seguida ao morto os seus hábitos religiosos, e
processionalmente transferem-no para a igreja, onde fica depositado
sobre uma padiola, com o rosto descoberto, até à hora designada
para os funerais.
Então a comunidade começa a entoar, encaminhando-se para
o cemitério, não o canto dos mortos, os salmos das dores e as pro­
sas das saudades, mas o «In exitu Israel de /Egipto»,* que é o salmo
da libertação, o canto desprendido das alegrias.
E o trapista é enterrado, sem caixão, no seu vestido de burel,
com a cabeça coberta com o capuz.
Enfim, por espaço de trinta dias, o seu lugar permanece vazio
no refeitório; a sua ração é servida como de costume, mas o irmão
porteiro distribui-a aos pobres.
- Ah! Que felicidade o morrer assim! - exclamou o oblato ao
terminar. - Porque, se se morre depois de haver honestamente cum­
prido a sua tarefa, em ordem, está-se seguro da eterna beatitude,
segundo as promessas feitas por Nosso Senhor a São Bento e a São
Bernardo!
- A chuva vai a cessar - disse Durtal. - Muito desejava ir hoje
visitar essa capelinha no extremo do parque de que me falou no
outro dia. Qual é o melhor caminho para me dirigir até lá?
Bruno traçou-lhe o itinerário e Durtal lá se foi, a enrolar um
cigarro, até ao grande lago; obliquou por uma azinhaga, à esquerda,
e escalou uma ruazinha de árvores.
Resvalava pela terra desfeita e avançava com bastante custo.
Chegou afinal a um tufo de nogueiras que contornou. Por detrás
delas, elevava-se uma torre anã, coifada de uma minúscula cúpula
e furada de uma porta. À esquerda e à direita desta porta, sobre
pedestais em que alguns ornatos da época romana apareciam ainda
sob a crosta aveludada dos musgos, dois anjos de pedra sustinham-
-se de pé.
Pertenciam sem dúvida à escola borgonhesa, com as suas
grandes cabeças redondas, os seus cabelos em desalinho e sulca­
dos de ondas, as suas faces infladas de uma cor rósea, as suas
sólidas roupagens de encanudados hirtos. Provinham também das
ruínas do velho claustro, mas o que era infelizmente bem

* «Vinde, Santos de Deus». [N.R.]


* Salmo 113: «Quando Israel saiu do Egipto». [N.R.]

280
A CAMINHO

m oderno era o interior desta capela tão exígua que os pés quase
tocavam a parede de entrada, quando a gente se ajoelhava diante
do altar.
Em um nicho esfumado por uma gaze branca, uma Virgem,
que exibia uns olhos num fundo azul e duas maçãs coradas no lugar
das faces, sorria, estendendo as mãos. Era de uma insignificância
verdadeiramente lamentável, mas o seu santuário, que conservava a
mornidão dos aposentos sempre fechados, era bem íntimo. As suas
paredes, forradas de um pano vermelho, estavam limpas do pó, o
pavimento estava varrido e as pias de água benta cheias; soberbas
rosas-chá desabrochavam em vasos, por entre os candelabros.
Durtal compreendeu então a razão, porque tinha tantas vezes avis­
tado Bruno a encaminhar-se com flores nas mãos para este lado;
vinha orar neste lugar que ele amava sem dúvida, porque se achava
assim isolado na solidão profunda desta Trapa.
- Oh! O bom homem! - exclamou Durtal, tornando a pensar
nos serviços afectuosos, nas atenções fraternais que o oblato tinha
tido para com ele. E acrescentou: - E feliz homem também, porque
ele tem a posse de si mesmo e vive muito tranqüilo aqui!
E efectivamente - prosseguiu - para que serve lutar se isso não
é senão contra si próprio? Para quê? Agitar-se por causa do dinheiro,
por causa da glória, inquietar-se para oprimir os outros e ser adu­
lado por eles, que tarefa vã!
Só a Igreja, erigindo os altares portáteis do ano litúrgico, for­
çando as estações a seguir, passo a passo, a vida de Cristo, soube
traçar o plano das ocupações necessárias e dos fins úteis. For­
neceu-nos o meio de caminhar sempre lado a lado com Jesus, de
viver do pão quotidiano dos Evangelhos; para os cristãos, fez do
tempo o mensageiro das dores e o arauto das alegrias; confiou ao
ano o papel de servo do Novo Testamento, de emissário zeloso do
culto.
E Durtal reflectia então nesse ciclo da liturgia que começa no
primeiro dia do ano religioso, no Advento, depois gira num movi­
mento insensível sobre si mesmo até chegar ao seu ponto de par­
tida, à época em que a Igreja se prepara pela penitência e oração
para celebrar o Natal.
E, folheando o seu eucológio, vendo este círculo inaudito de
ofícios, pensava nessa prodigiosa jóia, na coroa do rei Recceswinthe*
que o museu de Cluny guarda preciosamente.

* Rei dos Visigodos (653-672), cuja coroa está exposta no museu de Cluny.
[N.R.]

281
J.-K. HUYSMANS

O ano litúrgico não seria, como ela, empedrado de cristais e


pregarias pelos seus admiráveis cânticos, pelos seus ferventes hinos,
engastados no próprio ouro das Bênçãos e das Vésperas?
Parecia que a Igreja tinha substituído a coroa de espinhos com
que os judeus haviam cingido as fontes do Salvador, pela coroa ver­
dadeiramente real do Próprio Tempo, a única que foi cinzelada num
metal precioso, com uma arte pura, para ousar pôr-se sobre a fronte
de um Deus!
E o grande Lapidário tinha começado a sua obra, incrustando
neste diadema de ofícios o hino de Santo Ambrósio, e a invocação
tirada do Velho Testamento, o Rorate coeli, este cântico melancólico
da esperança e da saudade, esta gema fumosa e violácea, cuja água
se clarifica, quando após cacla uma das suas estrofe surge a depre-
cação solene dos patriarcas, chamando a presença tão esperada de
Cristo.
E os quatro domingos do Advento desapareciam com as pági­
nas viradas do eucológio; a noite da Natividade sobrevinha: depois
do Jesu Redemptor das Vésperas, o velho cântico português, o
Adeste fidelis* elevava-se, à Bênção, de todas as bocas. Era uma
prosa de uma singeleza verdadeiramente encantadora, uma antiga
imagem onde desfilavam padres e reis numa ária popular apro­
priada às grandes marchas, apta para atrair, para ajudar, pelo ritmo
de alguma sorte militar dos passos, as longas etapas dos fiéis, dei­
xando as suas choupanas para se dirigirem às igrejas afastadas dos
burgos.
E imperceptivelmente, assim como o ano, em uma invisível
rotação, o círculo rodava, quedava-se na festa dos Santos Inocentes,
onde se desabrochava, como uma flora de matadouro, em uma
gavela ceifada de um solo irrigado pelo sangue dos cordeiros, esta
seqüência rubra e rescendendo a rosas, como é o Salveteflores mar-
tirum de Prudêncio; a coroa movia-se ainda e o hino da Epifania, o
Cmdelis Herodes, de Sedulius, surgia a seu turno.
Agora, os domingos gravitavam, os domingos cor-de-violeta*
em que se não ouve mais que o Gloria in excelsis, em que se canta

* Este célebre hino de Natal, embora não litúrgico, é hoje universal, e


conhecido, em especial em países de língua inglesa, como Portuguese Hymn. A
sua autoria, incerta, é tradicionalmente atribuída a D. João IV, «por aparecer
designado como ‘hino português’ em colectâneas várias e na capela portuguesa
de Londres ligada à Casa de Bragança na época da Restauração» (Blanc de
Portugal). A forma que se conhece é do século xvn, mas a melodia terá origem
num velho cântico de marinheiros portugueses.
* Celebrados em paramentos de púrpura, cor de penitência [N.R.]

28 2
A CAMINHO

o Audi Benigne de Santo Ambrósio, e o Miserere, este salmo cor-de-


-cinza, que é talvez a mais perfeita obra-prima de tristeza, que a
Igreja guarda nos seus repertórios de cantochão.
Era a Quaresma, cujas ametistas se apagavam no cinzento
húmido dos hidrófanos, no branco enevoado dos quartzos, e a
invocação magnífica, o Attende Domine subia até às arcarias das
abóbadas. Saído, como o Rorate Coeli, das prosas do Antigo
Testamento, este canto humilhado, contrito, enumerando as puni­
ções merecidas das culpas, tornava-se, senão menos doloroso, em
todo o caso mais grave ainda e mais pesado, quando confirmava,
quando resumia, na estrofe inicial do seu estribilho, a confissão já
divulgada das vergonhas.
E subitamente, nesta coroa refulgia, após os fogos cansados das
Quaresmas, o carbúnculo em chamas da Paixão. No fundo fuligi­
noso de um céu em confusão, uma cruz vermelha se levantava, e
burras majestosos e gritos pungentes aclamavam o Fruto ensan­
güentado da árvore; e o Vexilla regis repetia-se ainda no Domingo
seguinte, na féria dos Ramos, que a juntava a esta prosa de Fortunat
o hino verde, que ela acompanhava de um ruído sedoso de palmas,
a Gloria, laus el honor de Teodulfo.
Depois, os fogos das pedrarias engelhavam-se e morriam. As
brasas das gemas sucediam-se os carvões mortiços das obsidianas,
das gemas negras, intumescendo frouxamente sobre o ouro baço,
sem um reflexo, dos seus engastes; entrava-se na Semana Santa; por
toda a parte o Pange língua, de Cláudio Mamert, e o Stahat gemiam
por debaixo das abóbadas; eram as Trevas, as lamentações e os sal­
mos, cujos dobres funéreos faziam vacilar a flama dos círios de cera
virgem, e, depois de cada paragem, ao fim de cada um dos salmos,
um dos círios expirava, e o seu fuso de fumo azul diluía-se ainda no
circuito aberto das arcadas, quando o coro repetia a série interrom­
pida das lamentações.
E a coroa girava mais uma vez; as contas deste rosário musical
corriam ainda e tudo se mudava. Jesus era ressuscitado e os cânti­
cos de alegria saltavam dos órgãos. O Victimae Paschali laudes
exultava antes do evangelho das missas e à Bênção, o Ofilii etfiliae,
verdadeiramente criado para ser entoado pelos júbilos exaltados das
multidões, corria, folgava, no furacão festivo dos órgãos que desen-
raizavam os pilares e levantavam as naves.
E as festas de guarda seguiam-se com mais longos intervalos.
Na Ascensão, os cristais densos e límpidos de Santo Ambrósio
enchiam de água luminosa a bacia minúscula dos engastes; os fogos
dos rubis e as granates acendiam-se de novamente com o hino car­

283
J.-K. HUYSMANS

mesim e a prosa escarlate do Pentecostes, o Veni Creator e o Veni


Spiritus. A festa da Trindade passava, assinalada pelos quartetos de
Gregório o Grande, e para a festa do Santíssimo Sacramento, a litur­
gia podia exibir o mais maravilhoso escrínio do seu dote, o ofício
de São Tomás, o Pange Lingua, o Adoro te, o Sacris Solemniis o
Verbum supernum, e sobretudo o Lauda Sion, esta pura obra-prima
da poesia latina e da escolástica, este hino tão conciso, tão lúcido
na sua abstracção, tão firme no seu verbo rimado, ao redor do qual
se enrola a melodia mais entusiasta, a mais flexível talvez do canto­
chão.
O círculo deslocava-se ainda, mostrando nas suas diferentes
faces os vinte e três a vinte e oito Domingos que desfilam atrás do
Pentecostes, as semanas verdes* do tempo de Peregrinação, e
parava na última féria, no Domingo depois da Oitava de Todos os
Santos, na Dedicação das igrejas que o Coelestis urbs incensava de
velhas estâncias cujas ruínas haviam sido mal consolidadas pelos
arquitectos de Urbano VIII, e de antigas pedras preciosas não lapi­
dadas cuja água turva dormitava e não se animava senão de raros
clarões.
A soldadura da coroa religiosa, do ano litúrgico, fazia-se então
nas missas em que o evangelho do último Domingo que segue o
Pentecostes, o Evangelho segundo São Mateus, repete, assim como
o Evangelho segundo São Lucas que se recita no primeiro Domingo
do Advento, as terríveis predições do Cristo sobre a desolação dos
tempos, sobre o fim anunciado do mundo.
E isto não é tudo - continuou Durtal, a quem esta correria atra­
vés do seu devocionário interessava. - Nesta coroa do Próprio do
Tempo inserem-se, tais com o pedras pequeninas, as prosas do
Próprio dos Santos que enchem os espaços vazios e acabam de ata­
viar o ciclo.
A princípio, as pérolas e as gemas da Santíssima Virgem, as
jóias límpidas, as safiras azuis e os rubis róseos das suas antífonas,
depois o berilo tão luminoso e tão puro do Ave maris stela, o topá­
zio desmaiado das lágrimas do O quot undis lacrimarum da festa
das Sete Dores, e o jacinto, cor-de-sangue enxugado, do Stabat;
depois desfilam as festas dos Anjos e dos Santos, os hinos dedica­
dos aos Apóstolos e aos Evangelistas, aos Mártires, sós ou aos pares,
fora e durante o tempo pascal, aos Confessores Pontífices ou não
Pontífices, às Virgens, às Santas Mulheres, todas festas diferenciadas
por seqüências particulares, por prosas especiais, de onde algumas

* Cor dos ornamentos, nas semanas depois do Pentecostes. [N.R.]

284
A CAMINHO

singelas, como os quartetos feitos em honra da Natividade de São


João Baptista, por Paulo Diácono.
Resta enfim a festa de Todos os Santos com o Placare Christe,
e os três toques de rebate, os dobres fúnebres em tercetos do Dies
irae que reboam no dia reservado ã Comemoração dos defuntos.
Que imensos bens de raiz de poesia, que incomparável feudo
de arte a Igreja não possui! - exclamou, fechando o seu livro; e inú­
meras recordações se elevavam desta sua excursão através o euco-
lógio.
Quantas noites a tristeza de viver se dissipava, ao escutar estas
prosas, clamadas pelas igrejas!
Tornava a pensar mais uma vez na voz súplice do Advento, e
recordava-se de uma noite em que vagueava, debaixo de uma chuva
miudinha, ao longo dos cais. Tinha sido impelido de sua casa por
ignóbeis visões, ao mesmo tempo que era obsidiado pelo desgosto
crescente dos seus vícios. Fora dar sem querer a Saint-Gervais.
Na capela da Virgem estavam prostradas algumas pobres
mulheres. Tinha-se ajoelhado, cansado, aturdido, com a alma em tão
mal-estar que ela como que dormitava sem forças para despertar-se.
Alguns chantres da música de capela haviam-se instalado com dois
ou três padres neste santuário da Virgem; tinham-se acendido os
lumes, e uma voz fiava e ténue de criança cantara, no negrume da
igreja, as longas antífonas do Rorate.
No estado de acabrunhamento em que se estagnava, Durtal
sentia-se aberto e sangrado até ao fundo da alma, quando, menos
tremente que uma voz mais idosa que tivesse compreendido o sen­
tido das palavras que dizia, esta voz cantava ingenuamente, quase
sem confusão ao Justo: «Pecavimus etfacti sumus tanquam immun-
dus nos».*
E Durtal repetia estas palavras, soletrava-as, terrificado, e pen­
sava: - Ah! Sim, nós pecamos e temo-nos tornado semelhantes ao
leproso, Senhor! - e o canto continuava, e, a seu turno, o Altíssimo
servia-se deste mesmo órgão inocente da infância para confessar ao
homem a sua piedade, para confirmar-lhe o perdão, assegurado
pela vinda do Filho.
E o serão terminava por uma Bênção de cantochão, no meio
do silêncio prosternado de desafortunadas mulheres.
Durtal recordava-se de ter saído da igreja, ajudado, desemba­
raçado das suas obsessões, e partira, mesmo sob a neblina, sur­
preendido por o caminho lhe parecer mais curto, cantarolando o

* Isaías 64, 6: «Pecámos, e tornámo-nos iguais ao imundo». [N.R.]

285
J.-K. HUYSMANS

Rorate cuja ária o obsidiava, acabando por ver nela a expectativa


pessoal de um desconhecido propício.
E havia outras noites... a Oitava dos Defuntos em Saint-Sulpice
e em Saint-Thomas, onde se ressuscitava, depois das Vésperas dos
mortos, a velha seqüência desaparecida do breviário romano, o
Languentibus in Purgatorio.
Esta igreja era a única em Paris que havia conservado estas
páginas no hinário galicano, e ela fazia-os particularizar, sem capela,
por dois baços; mas estes chantres, tão medíocres de ordinário, gos­
tavam sem dúvida desta melodia, porque, se eles não a cantavam
com arte, expeliam-na ao menos com um pouco de alma.
E esta invocação à Madona, a quem se suplicava, para que sal­
vasse as almas do Purgatório, era dolente como estas mesmas
almas, e tão melancólica, tão lânguida que fazia esquecer o
ambiente, o horror deste santuário cujo coro é uma cena de teatro,
contornado de camarins fechados e guarnecido de lustres; sonhava-
-se estar longe de Paris, por alguns instantes, fora desta população
de devotas e domésticas, que costuma freqüentar este lugar, nessa
noite.
Ah! A Igreja - dizia consigo, ao descer o atalho que ia dar ao
grande tanque a Igreja, que genetriz de arte! - e subitamente o
aiído de um corpo que caía na água, interrompeu as suas reflexões.
Olhou através a caniçada de vedação e não viu nada, salvo uns
grandes círculos, correndo por sobre a superfície da água; mas de
repente, numa dessas linhas curvas, apareceu uma cabeça minús­
cula de cão, trazendo um peixe na boca, e o animal empinou-se um
pouco fora da água, mostrou um corpo afilado e coberto de uma
pelugem, e tranquilamente fixou Durtal com os seus pequeninos
olhos negros.
Depois, em um relâmpago, transpôs a distância que o separava
da margem e desapareceu por entre as ervas.
- É a lontra - disse consigo, recordando-se da discussão que o
vigário de passagem e o oblato tiveram à mesa.
E encaminhava-se para o outro lago, quando topou com o
padre Estêvão.
Contou-lhe o seu encontro.
- Não é possível! - exclamou o monge. - Ninguém ainda viu a
lontra; deve talvez confundi-la com um rato de água, ou com outro
bicho qualquer, porque o animal, que nós espreitamos há anos, é
invisível.
Durtal fez-lhe a descrição.
- Então é ela sem dúvida! - concordou o hospedeiro, surpreso.

286
A CAMINHO

Era bem evidente que esta lontra vivia no estado de lenda neste
lago. Nestas existências monótonas, nestes dias semelhantes do
claustro, ela tomava as proporções de uma coisa fabulosa, de uma
aventura cujo mistério devia ocupar os intervalos aproveitados entre
as orações das horas.
- É preciso indicar ao senhor Bruno o sítio exacto onde a avis­
tou, porque ele vai recomeçar a caçada - disse o padre Estêvão,
após um silêncio.
- Mas, enfim, que tem que ela coma os peixes, se não os
pescam?
- Perdão, nós pescamo-los a fim de os remetermos para o arce-
bispado - respondeu o monge, que continuou - é mesmo bem
estranho o facto de ter visto esse animal!
Decididamente, ao partir daqui dir-se-á de mim: é aquele
senhor que viu a lontra! - pensou Durtal.
Sempre a conversar, chegaram ao pé do tanque em cruz.
- Olhe - disse o padre, designando-lhe o cisne que se punha
em pé, furioso, e batia as asas, silvando.
- Que é o que tem?
- É a cor branca do meu vestido que o exaspera.
- Ah! E porquê?
- Não sei; talvez que só ele queira ser o único branco aqui;
poupa os conversos, mas assim que um padre... Ora espere que já
vai ver.
E o hospedeiro dirigiu-se tranquilamente para o cisne.
- Vem cá - disse ao animal irritado, que o esparrinhou de água;
e estendeu-lhe a mão que o cisne abocou.
- Vê - fez o monge, mostrando a marca de uma pinça verme­
lha, impressa na sua carne.
E sorriu-se, disfarçando ocupar-se da mão, depois deixou
Durtal, que perguntou a si mesmo se, procedendo desta sorte, o tra­
pista não quisera infligir a si próprio uma punição corporal para
expiar uma distracção qualquer, uma insignificância?!
Esta bicada devia tê-lo torturado atrozmente, porque as lágri­
mas subiram-lhe aos olhos. Como é que se expôs tão alegremente
a esta mordedura?
E lembrava-se de que um dia, ao ofício de Noa, um dos jovens
monges havia-se enganado no tom de uma antífona. No momento
em que terminava o ofício, tinha-se ajoelhado diante do altar, depois
estendera-se ao comprido sobre as lajes de granito, com o ventre de
rastos, a boca colada ao chão, até que a matraca do prior lhe inti­
masse a ordem de levantar-se.

287
J.-K. HUYSMANS

Era a culpa voluntária por uma negligência cometida, por um


esquecimento. Quem sabe se o padre Estêvão não se tinha a seu
turno castigado de algum pensamento que julgasse pecaminoso ao
fazer-se assim morder?
A este propósito consultou o oblato, à noite, mas Bruno con-
tentou-se em sorrir sem lhe responder.
E, como Durtal lhe falasse da sua próxima partida para Paris, o
velho sacudiu a cabeça.
- Tendo em conta - disse - as apreensões e a vexação que lhe
causa a comunhão, será prudente aproximar-se da Santa Mesa, logo
depois da sua volta.
E vendo que Durtal não replicava e baixava a fronte:
- Acredite num homem que já conheceu todas essas provas; se
não se domar, enquanto está ainda sob a quente impressão da
Trapa, há-de flutuar entre o desejo e o desgosto, sem avançar; há-
-de engenhar descobrir escusas para não se confessar e esforçar-se-
-á por acreditar que é impossível achar-se em Paris um abade que
o compreenda. Permita-me assegurar-lhe que nada há mais falso. Se
desejar um confidente experimentado e benigno, dirija-se aos
Jesuítas; se quer, sobretudo, uma alma zelosa de padre, ide a Saint-
-Sulpice.
Encontrará aí eclesiásticos honestos e inteligentes, de bom
coração. Em Paris, onde o clero das paróquias é tão misto, são eles
a fina flor do sacerdócio; e isto concebe-se pela razão de que for­
mam uma comunidade, habitam em cela, não jantam por fora, e
como o regulamento Sulpiciano lhes interdita de pretender honras e
prebendas, não se arriscam por ambição a tornarem-se maus padres.
Conhece-los?
- Não, mas para resolver esta questão, que não deixa de me
preocupar, conto com um abade meu amigo, aquele mesmo que me
enviou para esta Trapa.
E isto fez-me lembrar - continuou, ao mesmo tempo que se
levantava para se dirigir às Completas - que me tenho esquecido de
escrever-lhe. É verdade que já agora é muito tarde, a carta chegaria
ao seu destino quando a mim. É extraordinário, mas à força de se
passear dentro do seu próprio ser, à força de viver sobre si mesmo,
os dias fogem e não há tempo de se fazer nada aqui!

288
VIII

Esperava ter para seu derradeiro dia na Trapa uma manhã de


quietação e de paz de espírito, uma mitigação de sesta espiritual e
de despertar embalado por melopeias de ofícios, e nada disso tinha;
a ideia invasora, tenaz, de que ia no dia seguinte abandonar o mos­
teiro, embaciava-lhe todas as alegrias que a si mesmo tinha prome­
tido.
Agora que já não tinha mais que passar-se pelo crivo das con­
fissões, que apresentar-se à recepção matinal do Viático, permane­
cia irresoluto, não sabendo mais em que passar o seu tempo, atur­
dido por este prosseguimento da vida profana que derribava as suas
barreiras de esquecimento e que o atingia já por cima dos diques
transpostos do claustro.
Semelhante a uma besta fera capturada, começou por se arre­
messar de encontro às barras da sua jaula, e depois deu a volta à
clausura, enchendo a vista com estas paisagens, onde tinha passado
tão clementes e tão cruéis horas.
Sentia dentro em si um aluimento de terreno, um desmoronar
da alma, um desânimo absoluto ante a perspectiva de tornar a entrar
na existência habitual, de se imiscuir de novo nos vaivéns dos
homens; e experimentava ao mesmo tempo uma fadiga cerebral
imensa.
Arrastou-se pelas áleas num estado de completo desconforto,
num desses acessos de spleen religioso que determinam, quando se
prolongam durante anos, o «taedium vitae» dos claustros. Tinha hor­
ror a uma outra vida que não fosse esta, e a alma cansada pelas ora­
ções, desfalecia num corpo insuficientemente repousado e mal
nutrido; ela não tinha desejo algum, pedia para não ser incomodada,
para deixá-la dormir, caía num desses estados de torpor em que
tudo se torna indiferente, em que se acaba por perder brandamente
o conhecimento, por asfixiar-se sem que se sofra.

289
J.-K. HUYSMANS

Para reagir, consolando-se, tinha que prometer a si mesmo que


havia de assistir em Paris aos ofícios das Beneditinas, que se con­
servaria no limiar da sociedade, à parte, mas via-se obrigado a res­
ponder que estes subterfúgios são impossíveis, que o próprio ar
livre da cidade é rebelde aos enganos, que o isolamento numa sala
não se parece nada com a solidão de uma cela, que as missas, cele­
bradas nas capelas abertas ao público, não podem assemelhar-se
aos ofícios fechados das Trapas.
Depois, que lucrava com tentar enganar-se? Dava-se com a
alma o mesmo que com o corpo, que passa melhor à beira-mar ou
nas montanhas do que no fundo das cidades. Mesmo em Paris,
havia melhor ar espiritual em certos quarteirões religiosos da mar­
gem esquerda do que nos distritos situados na outra margem; mais
ardente em algumas basílicas, mais puro, por exemplo, em Notre-
-Dame-des-Victoires que nas igrejas, tais como a Trinité ou a
Madeleine.
Mas o mosteiro era de alguma sorte a verdadeira praia e o ele­
vado palco da alma. Aí a atmosfera era balsâmica; as forças volta­
vam, o apetite perdido de Deus reanimava-se; era a saúde suce­
dendo-se ao mal-estar, o regime fortificante e continuado substi­
tuindo a languidez, os exercícios restritos das cidades.
Aterrou-o a convicção de que em Paris nenhum logro lhe seria
possível. Vagabundeou da cela até à capela, da capela até aos bos­
ques, esperando com impaciência a hora de jantar para poder falar
com alguém, porque na sua confusão uma nova necessidade aca­
bava de nascer. Há mais de oito dias que tinha passado tardes intei­
ras sem descerrar os lábios; não sofria com isto, estava mesmo satis­
feito com este silêncio, mas depois que era perseguido pela ideia de
uma partida, não podia mais calar-se, punha-se a pensar pelas áleas,
em voz alta, para desoprimir esta enorme vontade de chorar que o
abafava.
Bruno era demasiado sagaz para deixar de adivinhar o mal-
-estar do seu companheiro, tornado alternadamente taciturno e fala­
dor durante o repasto. Fingiu que não percebeu, mas, depois de
recitar as graças, desapareceu, e Durtal, que rodava perto do grande
tanque, ficou surpreendido ao vê-lo dirigir-se para o seu lado mais
o padre Estêvão.
Achegaram-se a ele, e o trapista, que sorria, propôs-lhe, se
ainda não tivesse formado outro projecto, visitar o convento como
distracção e sobretudo a biblioteca, que o padre prior ficaria encan­
tado por lhe mostrar.
- Se isso me convém... Oh! Naturalmente! - exclamou Durtal.

290
A CAMINHO

Voltaram, todos os três, para a abadia; o monge levantou a


aldraba de uma portazinha, cavada num muro, próximo à igreja, e
Durtal penetrou num cemitério minúsculo, com muitas cruzes de
pau, espetadas em campas cobertas de ervas!
Não havia nenhuma inscrição, nenhuma flor neste recinto que
acabavam de atravessar; o monge empurrou uma outra porta, e eles
acharam-se num longo corredor que cheirava a rato. Ao cabo deste
corredor, Durtal reconheceu a escadaria que tinha subido uma
manhã para ir confessar-se ao prior. Eles deixaram-na à sua
esquerda, tornearam uma outra galeria, e o hospedeiro introduziu-
~os numa sala imensa, furada de altas janelas, decorada de tremós
do século xviii e de pinturas; estava exclusivamente mobilada com
bancos e estantes no meio das quais uma poltrona isolada, tendo
esculpida as armas abadais a cores, designava o assento de Dom
Anselmo.
- Oh! Esta sala do capítulo não tem nada de monástico! - disse
o padre Estêvão, apontando para as pinturas profanas das paredes.
- Temos conservado tal qual o salão desta antiga casa, mas acredite
que esta decoração não nos agrada nada.
- E que se faz nesta sala?
- Reunimo-nos aqui depois da missa; o capítulo abre-se pela
leitura do martirológio, seguido das últimas orações de Prima.
Depois lê-se uma passagem da regra que o padre abade comenta.
Por fim, praticamos o exercício de humildade, isto é, aquele de
entre nós que cometeu uma falta contra a regra, prosterna-se e con­
fessa-a diante dos seus irmãos.
Dirigiram-se daí ao refeitório. Este salão tão alto de tecto, mas
mais pequeno, estava guarnecido de mesas, desenhando a forma
de uma ferradura. Espécies de grandes galheteiros, contendo cada
um duas meias garrafas de água-pé, separadas por uma outra
branca, e diante deles xícaras de barro grosseiro com duas asas,
servindo de copos, estavam aí postadas, de distância em distância.
O monge explicou que estes falsos galheteiros cie três ramos indi­
cavam o lugar de dois talheres, tendo cada monge direito à sua
meia garrafa de bebida e partilhando com o seu vizinho a água da
garrafa.
- Este púlpito - continuou o padre Estêvão, designando uma
espécie de grande galinheiro de madeira, encostado ao muro - é
destinado ao leitor de semana, ao padre que faz a leitura durante a
refeição.
- E que tempo dura a refeição?
- Uma meia hora.

291
J.-K. HIJYSMANS

- Oh! Mas a cozinha, de onde nós somos servidos, é uma cozi­


nha delicada em comparação daquela de onde se servem os mon­
ges - disse o oblato.
- Mentiria se por acaso lhe dissesse que nos regalamos com ela
- respondeu o hospedeiro. Mas fique sabendo que o que é mais
custoso de suportar, nos primeiros tempos sobretudo, é a falta de
condimentos que se encontra nos nossos pratos. A pimenta e as
especiarias são interditas pela regra, e como nenhuma saleira figura
na nossa mesa, nós comemos tal qual os alimentos nos chegam, que
são mal salgados pela maior parte.
Em certos dias de Verão, quando o suor cai em gotas como
bagos, isto torna-se quase impossível, porque o corpo definha. E é
preciso tragar à força esta comida quente, absorvê-la em quantidade
suficiente para nos podermos sustentar até ao dia seguinte; olhamo-
-nos uns para os outros desanimados, não podendo mais; não há outra
palavra para definir o nosso jantar no mês de Agosto, é um suplício!
- E todos, o padre abade, o prior, os padres, os irmãos, todos
enfim, têm a mesma alimentação?
- Todos. Venha agora visitar o dormitório - subiram ao pri­
meiro andar. Um imenso corredor, guarnecido de camaratas assim
como uma cavalariça, estendia-se, fechado em ambas as extremida­
des por uma porta.
Eis os nossos aposentos - disse o monge, parando diante des­
tes cubículos. Em letreiros colocados por cima deles, via-se o nome
de cada monge, e a primeira arvorava como rótulo esta inscrição:
«Padre Abade».
Durtal palpou o leito que estava arrimado a um dos dois tabi-
ques.
Tinha a aspereza de um pente de cardar e o mordente de um
ralador. Compunha-se de uma simples enxerga acolchoada, esten­
dida sobre tábuas; por única roupa, um cobertor de lã parda; e no
lugar dos travesseiros, um saco de palha.
- Meu Deus! Como isto é duro! - exclamou Durtal, e o monge
sorriu-se.
- Os nossos hábitos - disse - amortecem a rugosidade destes
pseudo-colchões, porque a nossa regra não nos permite despir-nos;
podemos apenas descalçar-nos; e assim, dormimos todos vestidos,
com a cabeça coberta com o capuz.
- E o que deve fazer de frio neste corredor, varrido por todos
os ventos! - acrescentou Durtal.
- Sem dúvida, o Inverno é feroz aqui; mas não é ainda esta
estação que nos alarma; vive-se, nem bem nem mal, mesmo sem

29 2
A CAMINHO

lume, pelos tempos de neve; mas no Verão! Se soubesse o que é o


despertar em vestidos ainda ensopados de suor, mal enxutos desde
a véspera! Oh! É atroz.
Depois, ainda que, por causa do calor, se tenha às vezes dor­
mido mal, é preciso antes de vir o dia saltar da cama abaixo e come­
çar imediatamente o grande ofício da Noite, as Vigílias, que duram
pelo menos duas horas. Mesmo depois de vinte anos de vida na
Trapa custa este levantar; luta-se na capela contra o sono que nos
esmaga; dorme-se enquanto se ouve cantar um versículo; peleja-se
para se manter desperto a fim de poder cantar o outro, e torna-se a
cair ainda.
É preciso poder-se dar uma volta de chave ao pensamento e
não se é capaz disso.
Na verdade, asseguro-lhe que, mesmo exceptuando a fadiga
corporal que explica este estado, dá-se pela manhã uma agressão
demoníaca, uma tentação incessante para nos incitar a rezar mal o
ofício.
- E todos sofrem essa luta?
- Todos; e isso não impede - concluiu o monge, cujo rosto se
tornou radiante - que nós não sejamos aqui verdadeiramente felizes.
É que todas estas provações não são nada, ao lado das alegrias
profundas e íntimas que o bom Deus nos concede! Ah! Ele é um
senhor generoso; paga-nos, a centuplicar, os nossos pobres salários
de dores.
Sempre a falar, tinham enfiado pelo corredor, e achavam-se
agora na outra extremidade.
O monge abriu a porta, e Durtal, estupefacto, encontrou-se
num vestíbulo, justamente em frente da sua cela.
- Não julgava habitar tão perto de si! - disse.
- Esta casa é um verdadeiro labirinto. Agora o senhor Bruno
vai levá-lo à biblioteca, onde o padre prior o está esperando, por­
que tenho que ir neste instante aos meus negócios. Até já - prosse­
guiu, sorrindo-se.
A biblioteca estava situada do outro lado da escadaria por onde
Durtal costumava subir para a sua cela. Era espaçosa, guarnecida de
prateleiras de.cima até baixo, ocupada ao meio por uma espécie de
mesa; contador por debaixo do qual se empilhavam ainda filas de
livros.
O padre Maximino disse a Durtal:
- Nós não somos muito ricos, mas enfim possuímos instru­
mentos de trabalho bastante completos sobre a teologia e a mono­
grafia dos claustros.

293
J.-K. HUYSMANS

- Tem livros soberbos! - exclamou Durtal, que estava a olhar


para uns magníficos in-fólios, encadernados em esplêndidas capas
com fechos, cantos e pregagens.
- Ora aqui estão as obras de São Bernardo em uma bela edi­
ção - e o monge apresentou a Durtal uns enormes livros impressos
com caracteres graves, num papel sonoro.
- E eu que havia com antecipação prometido a mim mesmo o
prazer de saborear as obras de São Bernardo nesta mesma abadia
que ele fundou, acho-me agora na véspera da minha partida, sem
nada ainda ter lido.
- Então não conhece as suas obras?
- Conheço apenas alguns trechos esparsos dos seus sermões e
das suas cartas; só percorri as medíocres selectas.
- Aqui, é ele o nosso mestre por excelência, mas não é o único
dos nossos antepassados em São Bento de que este convento dis­
põe - disse o padre com uma certa altivez. - Veja - e designou sobre
as prateleiras alguns pesados in-quarto. - Eis: São Gregório Magno,
Venerável Beda, São Pedro Damião, Santo Anselmo... Os seus ami­
gos estão aí - disse, seguindo com a vista Durtal que lia os títulos
dos volumes - Santa Teresa, São João da Cruz, Santa Madalena de
Pazzi, Santa Ângela, Tauler... e esta que, analogamente à soror
Emmerich, ditava os seus colóquios com Jesus, durante o êxtase - e
o prior tirou, da fiada dos livros dois in-dezoito, os Diálogos de
Santa Catarina de Sena.
- Esta dominicana é terrível para os padres do seu tempo -
prosseguiu o monge. - Ela verifica os seus delitos, acusa-os clara­
mente de venderem o Espírito Santo, de praticarem sortilégios, de
se servirem do Sacramento para comporem malefícios.
- Sem contar os vícios impróprios de que ela os acusa na série
do pecado da carne - acrescentou o oblato.
- Por certo, ela não suaviza as suas palavras, pois que tinha o
direito de dizê-las neste tom e de ameaçar em nome do Senhor, por­
que era verdadeiramente inspirada por Ele. A sua doutrina era hau-
rida nas nascentes divinas. «.Doctrina ejus infusa, non acquisita», diz
a Igreja na bula que a canoniza. Os seus Diálogos são admiráveis;
as páginas em que Deus lhe explica as santas fraudes de que usa às
vezes para fazer voltar os homens ao bem, as passagens onde trata
da vida monástica, desta barca que possui três amarras: a castidade,
a obediência e a pobreza, e que afronta a procela sob a conduta do
Espírito Santo, são deliciosas. Revela-se na sua obra a aluna do dis­
cípulo bem-amado e de São Tomás de Aquino. Julgar-se-ia ouvir o
Anjo da escola parafraseando o último dos Evangelhos!

294
A CAMINHO

- Sim - disse a seu turno o oblato se Santa Catarina de Sena


não se entrega às altas especulações da Mística, se não analisa como
Santa Teresa os mistérios do amor divino e não traça o itinerário das
almas destinadas à vida perfeita, reflecte directamente pelo menos
as falas do céu. Ela chama, ela ama! Já leu os seus tratados da
Discrição e da Prece?
- Ainda não. Já li Santa Catarina de Gênova, mas os livros de
Santa Catarina de Sena nunca me caíram nas mãos.
- E que me diz deste compêndio?
Durtal olhou para o título e fez um gesto de desagrado.
- Vejo que Suso não o seduz muito.
- Não diria a verdade se lhe asseverasse que as dissertações
deste dominicano me agradam. Desde o princípio, este iluminado não
me atrai. Não falando já no frenesi das suas penitências, que minúcia
de devoção, que estreiteza de piedade era a sua! Imagine que ele não
podia resolver-se a beber sem primeiro ter dividido a sua beberagem
em cinco partes. Pensava honrar assim as cinco chagas do Salvador;
e ainda fazia por engolir por duas vezes o seu derradeiro trago para
evocar o sangue e água que saíram do flanco do Verbo.
Oh! Nunca entrarão na minha cabeça estas coisas; jamais che­
garei a admitir que semelhantes práticas possam glorificar Cristo.
E repare ainda que este amor de futilidades, que esta paixão de
miudezas encontra-se por toda a sua obra. O seu Deus é tão difícil
de contentar, tão meticuloso, tão esmiuçador que ninguém iria para
o Céu, se fosse a acreditar no que ele conta! É um censor da eter­
nidade, um avaro de Paraíso, este seu Deus!
Em suma, Suso expande-se em impetuosos discursos sobre
ninharias; e depois, o que ele me maça com as suas insípidas ale­
gorias, com o seu estafante «Colóquio dos Nove Rochedos»!
- No entanto, há-de convir que o seu estudo sobre a «IJnião da
Alma» é muito substancial, e que o «Ofício da Eterna Sabedoria», que
ele compôs, vale bem a pena ler-se...
- Eu não digo esses, meu padre; não tenho mesmo presente na
memória esse ofício, mas recordo-me muito bem do tratado da
«União com Deus»; este pareceu-me até mais interessante que o
resto, mas há-de confessar que ele é de bem pequeno fôlego... e
demais, Santa Teresa já elucidou também a questão do renuncia-
mento humano e da fruição divina...
- Vamos - disse o oblato sorrindo-se desisto então e fazer de
si um leitor fervoroso do bom do Suso.
- Para nós - continuou o padre Maximino - eis verdadeira­
mente qual devia ser, se pudéssemos dispor de um pouco de tempo

295
J.-K. HUYSMANS

para trabalhar, o fermento das nossas meditações, o assunto das


nossas leituras - e trouxe-lhe um in-fólio que continha as obras de
Santa Hildegarda, abadessa do mosteiro de Ruperstberg.
- É que, como vê, esta é a grande profetiza do Novo
Testamento. Jamais, depois das visões de São João, em Patmos, o
Espírito Santo comunicou com um ser terrestre com tanta plenitude
e luz. No seu Heptachronon, prediz o protestantismo e o cativeiro
do Vaticano; no seu Scivias ou Conhecimento das Vias do Senhor,
que foi redigido, conforme a sua narração, por um monge do con­
vento de Saint—Désibode, interpreta os símbolos das Escrituras e a
própria natureza dos elementos. Escreveu igualmente um cuidadoso
comentário da nossa regra, e altivas e entusiásticas páginas sobre a
música religiosa, sobre a literatura, e sobre a arte que ela define
excelentemente: uma reminiscência semi-apagada de uma condição
primitiva de que fomos despojados desde o Éden. Infelizmente, para
compreendê-la é preciso entregar-se a minuciosas investigações e
pacientes estudos. O seu estilo apocalíptico tem alguma coisa de
retráctil; parece que recua e se fecha ainda mais quando se pretende
abri-lo.
~ Sei muito bem que o meu pouco latim não entra nele - disse
Bruno. - Que pena não haver uma tradução das suas obras, apoiada
em glosas!
- São intraduzíveis - disse o padre, que prosseguiu.*
- Santa Hildegarda é, mais São Bernardo, uma das mais lídimas
glórias da família de São Bento. Que sublime predestinada não foi
esta virgem, inundada de claridades interiores desde a idade de três
anos e morrendo aos oitenta e dois, depois de ter vivido toda a sua
vida nos claustros!
- E acrescente ainda que ela foi fatídica num estado perma­
nente - exclamou o oblato. ~ Não pode equiparar-se a nenhuma
outra Santa; tudo nela assombra; até a maneira como Deus a apos-
trofa, porque esquece-se de que ela é mulher e chama-a «homem».
- E ela mesma, quando quer designar-se, emprega esta estra­
nha expressão: «eu, a desprezível forma» - continuou o prior. - Mas
eis uma outra escritora, que nos é cara aqui - e mostrou a Durtal os
dois volumes de Santa Gertrudes. - Esta é ainda uma das nossas
grandes monjas, uma abadessa verdadeiramente Beneditina, no sen­
tido exacto da palavra, porque fazia explicar as Santas Escrituras às
suas freiras, queria que a piedade das suas filhas se apoiasse sobre

* Ver tradução de poemas de Hildegard von Bingen, Flor B rilhante, por


Joaquim Félix de Carvalho e José Tolentino Mendonça (Lisboa, 2004).

296
A CAMINHO

a ciência, que a sua fé se sustentasse com alimentos litúrgicos, se


pode dizer-se assim.
- Não conhecia dela senão os seus Exercícios - observou
Durtal - e eles deixaram-me a impressão das palavras de eco, de
repetições dos Livros Santos. Se se pode julgá-la por simples extrac-
tos, parece-me não ter uma expressão original, e estar bem abaixo
de uma Santa Teresa, ou de uma Santa Ângela.
- Sem dúvida - respondeu o monge. - Aproxima-se contudo
de Santa Ângela pelo dom da familiaridade quando conversa com
Cristo, e também pela veemência amorosa das sua falas; contudo,
tudo isto se transforma ao sair da sua própria origem. Ela pensa
liturgicamente; e isto é tão verdade, que a mais pequenina das refle­
xões apresenta-se-lhe imediatamente vestida com a linguagem dos
Evangelhos e dos Salmos.
As suas Revelações, as suas Insinuações, o seu Mensageiro do
Amor Divino são uma maravilha sob este ponto de vista; e depois,
não é esquisita a sua oração à Santíssima Virgem, que começa por
esta frase: «Salve, ó branco lírio da Trindade, resplandecente e sem­
pre tranqüila»?...
Como continuação às suas obras, os Beneditinos de Solesmes
editaram também as Revelações de Santa Matilde, o seu livro sobre a
Graça Especial, e a sua Luz da Divindade) eles estão ali, naquela fila...
- Quer que lhe mostre guias sabiamente orientados para a
alma, que se desprende de si mesma e quer tentar a ascensão dos
montes eternos? - disse por sua vez Bruno, apresentando a Durtal a
Lucerna Mystica de Lopez Ezquerra, os in-quarto de Scarameli, os
tomos de Schram, a Ascética Cristã de Ribet, os Princípios de
Teologia Mística do padre Séraphin.
- E este, conhece-lo? - continuou o oblato; o volume que lhe
estendia intitulava-se Da Oração, era anônimo, trazia na parte infe­
rior da primeira página: Solesme, tipografia da Abadia de Santa
Cecília, e por baixo da data impressa - 1886, Durtal decifrou estas
palavras escritas a tinta de escrever: «Comunicação essencialmente
privada».
- Nunca vi este opúsculo, que não parece, de resto, ter sido
posto à venda; quem é o seu autor?
- A mais extraordinária das monjas deste tempo, a abadessa
das Beneditinas de Solesmes. Lamento apenas o ter de partir tão
depressa, porque teria muito gosto em que o lesse.
Sob o ponto de vista do documento, é de uma ciência verda­
deiramente soberana e contém admiráveis citações de Santa
Hildegarda e de Cassiano; sob o ponto de vista da própria Mística,

297
J.-K. HUYSMANS

a madre Santa Cecília não faz mais do que reproduzir os trabalhos


das suas antecessoras e não nos ensina nada de novo. No entanto,
lembra-me agora uma passagem que me parece mais especial, mais
pessoal. Ora espere um pouco...
E o oblato compulsou algumas páginas. Ei-la:
«A alma espiritualizada não parece exposta à tentação propria­
mente dita, mas por uma permissão divina é chamada a bater-se com
o demônio, espírito contra espírito... o contacto do demônio é então
percebido à superfície da alma sob a forma de uma queimadura ao
mesmo tempo espiritual e sensível. Se a alma se mantém na sua
união com Deus, se é forte, a dor, ainda que muito viva, é suportá­
vel; mas se a alma comete alguma ligeira imperfeição, mesmo inte­
rior, o demônio avança ainda e leva a sua horrível queimadura mais
adiante até que, por actos generosos, ela possa repeli-lo para fora.»
Este afloramento satânico, que produz um efeito quase mate­
rial sobre as partes mais intangíveis do nosso ser, é, reconheça,
algum tanto curioso - concluiu o oblato, fechando o volume.
- A madre Santa Cecília é uma notável estratega da alma - disse
o prior - mas... mas... esta obra, que ela redigiu para as filhas da sua
abadia, contém, segundo creio, algumas proposições temerárias que
não têm sido lidas sem desprazer em Roma.
Para acabar com as nossas pobres riquezas - continuou - têm
os deste lado - e designou uma parte das estantes que enchiam o
salão - , algumas obras de longo fôlego, como o Menológio Cister-
ciense, a Patrologia de Migne, dicionários de hagiografia, manuais de
hermenêutica sagrada, de direito canônico, de apologética cristã, de
exegese bíblica, as obras completas de São Tomás, ferramentas de tra­
balho que não empregamos, porque, como o sabeis, somos um ramo
do tronco Beneditino votado a uma vida de labor corporal e de peni­
tência, somos sobretudo os homens de trabalho do bom Deus. Aqui,
é só o senhor Bruno quem se serve destes livros, e eu algumas vezes,
também porque sou mais especialmente encarregado do espiritual
neste mosteiro - acrescentou, sorrindo, o monge.
Durtal contemplava-o; ele manejava os volumes com umas
mãos acariciadoras, envolvia-os nuns olhos cheios de uma luz azul,
e ria-se com uma alegria de criança, ao virar as páginas.
Que diferença entre este monge, que adorava evidentemente
os alfarrábios, e esse prior, de perfil imperioso, de lábios mudos,
que o havia ouvido de confissão ao segundo dia! Depois, pensando
em todos estes trapistas, na serenidade dos seus rostos, na alegria
dos seus olhos, Durtal dizia consigo mesmo que estes Cisterciences
não eram de modo algum, como o mundo os julga, homens dolo­

298
A CAMINHO

rosos e fúnebres, mas sim, bem ao contrário, eram os mais alegres


dos homens.
- A propósito - disse o padre Maximino - o senhor padre
abade encarregou-me de uma comissão. Sabendo que quer deixar­
mos amanhã, tinha muito vontade, agora que já ando a pé, de pas­
sar consigo alguns minutos pelo menos. Esta noite, têm-na livre.
Incomodaria procurá-lo depois das Completas?
- Nada disso; até terei muito gosto em conversar com Dom
Anselmo.
- Então estamos entendidos.
Todos eles desceram. Durtal cumprimentou o prior, que entrou
nos corredores e o oblato que subiu à sua cela. Depois, distraiu-se
com frivolidades e, apesar deste tormento da partida que o obsi-
diava, chegou à noite, não sem grande custo.
O Salve Regina, que ouvia talvez pela derradeira vez, assim
modelada por vozes másculas, nesta capela aérea feita de sons e
evaporando-se com o fim da antífona na fumarada dos lumes,
comoveu-o até ao fundo da sua alma; e depois, a Trapa nessa tarde
mostrava-se verdadeiramente encantadora. Após o ofício, rezou-se o
rosário, não como em Paris, onde se recita um Pater, dez Ave e uma
Gloria, e assim em seguida; aqui, desfiava-se em latim um Pater,
uma Ave, e uma Gloria e tornava-se a começar até que se tivessem
esgotado desta sorte algumas dezenas.
Este rosário foi particularizado de joelhos, metade pelo prior, e
metade por todos os monges. Rolava a galope, tão depressa, que
mal se discerniam as palavras, mas assim que terminou, a um sinal,
fez-se o grande silêncio, e cada um, com a cabeça entre as mãos,
pôs-se a orar.
E Durtal reparou então no sistema engenhoso das orações con-
ventuais; atrás das preces puramente vocais como estas, vinha a ora­
ção mental, a deprecação pessoal, estimulada, posta a trabalhar pela
própria máquina das rezas.
Nada há deixado ao acaso na religião; todo o exercício, que à
primeira vista parece inútil, tem a sua razão de ser - dizia consigo,
ao sair para fora. - E o caso é que o rosário, que não parece ser
mais que uma lengalenga de sons, cumpre um fim. Faz repousar a
alma cansada das suplicações que recita, ao aplicar-se nisso, ao pen­
sar nisso; impede-a de divagar, de repisar sempre as mesmas peti­
ções e os mesmos queixumes a Deus; permite-lhe tomar fôlego, e
descansar em orações onde pode dispensar-se de reflectir e de des­
prender-se. Em suma, o rosário ocupa, rezando-o, as horas de fadiga
em que se não rezaria coisa alguma. - Ah! Eis o padre abade.

299
J.-K. HUYSMANS

O trapista exprimiu-lhe o pesar de não o poder visitar senão


por alguns momentos; em seguida, depois de ter respondido a
Durtal que lhe havia perguntado pelo estado da sua saúde, que
esperava enfim ver-se curado, propôs-lhe irem passear pelo jardim
e convidou-o a não se constranger para fumar, se tivesse vontade,
os seus cigarros.
E a conversação recaiu logo sobre Paris. Dom Anselmo pedia
notícias e acabava por dizer, sorrindo:
- Vejo por excertos de jornais que me chegam às mãos que a
sociedade está actualmente imbuída de socialismo. Todos querem
resolver a famosa questão social. A que se tem chegado então?
- A que se tem chegado? A pouco mais de nada! A menos que
se não mudem as almas dos operários e dos patrões e estes se tor­
nem de um dia para o outro desinteressados e caritativos, para onde
quer que todos estes sistemas vão ter?
- Pois bem - disse o monge, envolvendo num gesto o mosteiro
- esta questão já está resolvida aqui.
Não existindo o salário, todas as origens dos conflitos são
suprimidas.
Cada um de nós labuta consoante as suas aptidões e consoante
as suas forças; os padres, que não têm sólidas espáduas e grossos
braços, dobram os papéis do chocolate ou fazem a escrituração, e
aqueles que são robustos revolvem a terra.
Digo mais ainda que a igualdade nos nossos claustros é de tal
modo, que o prior e o abade não têm nenhuma vantagem a mais que
os outros monges. À mesa as rações, e no dormitório, as enxergas
são idênticas. Os únicos proveitos do abade consistem, em suma, nos
inevitáveis cuidados que suscitam a conduta moral e a direcção tem­
poral de uma abadia. Não há, pois, razão para que os operários con-
ventuais se ponham em greve - concluiu sorrindo o abade.
- Sim, mas são minimistas, suprimem a família, a mulher, não
vivem de nada enfim, e ainda não esperam ser realmente recom­
pensados dos vossos trabalhos senão depois da morte. Ide então
fazer compreender isto aos homens das cidades!
- A situação social resume-se assim, não é isso? Os patrões
querem explorar os operários, que querem a seu turno ser pagos o
mais possível, trabalhando o menos que puderem. Pois bem, mas
isto então não tem saída!
- Perfeitamente, e é triste, porque o socialismo deriva, em
suma, de ideias clementes, de ideias úteis, mas sempre se há-de
esbarrar de encontro ao egoísmo e ao lucro, contra os inevitáveis
escolhos dos pecados do homem.

300
A CAMINHO

E a vossa pequena fábrica de chocolate traz-lhe alguns benefí­


cios?
- Traz, é ela que nos vale.
O abade calou-se por espaço de um segundo, e depois conti­
nuou:
- Sabe muito bem como um convento se funda. Escolho para
exemplo a nossa ordem. Uma propriedade e terras anexas são-lhe
oferecidas com a obrigação de as povoar. Que faz ele então? Toma
um punhado dos seus monges e semeia-os no solo que se lhes dá.
Mas aí finda a sua tarefa. O grão deve brotar por si; dizendo de
outro modo, os trapistas, destacados da sua casa-mãe, devem
ganhar a sua vida e sustentarem-se a si mesmos.
E assim, quando tomámos posse destes edifícios estávamos tão
pobres, que desde o pão até ao calçado, tudo nos faltava; mas náo
nos inquietávamos pelo futuro, porque não há exemplo na historia
monástica de que a Providência deixasse de socorrer as abadias que
confiam nela. Pouco a pouco tiramos desta terra a nossa provisão
de víveres; também aprendemos os mesteres úteis; actualmente
fabricamos os nossos vestidos e o nosso calçado; colhemos o nosso
trigo e cozemos o nosso pão, A nossa existência material está, pois,
assegurada, mas os impostos esmagam-nos; foi por isso que fundá­
mos esta fábrica, cujos rendimentos se tornam de ano para ano
melhores.
Em um ano ou dois, o edifício, que nos abriga e que não temos
podido fazer reparar por falta de meios, se esboroará; mas, se Deus
permitir que algumas almas generosas nos venham em ajuda, talvez
sejamos capazes de edificar um mosteiro, e é esse o nosso desejo,
porque na verdade este casarão, com as suas divisões em desordem
e a sua capela em rotunda, é-nos desagradável.
O abade calou-se; em seguida, após uma pausa, disse, a meia
voz, como falando consigo mesmo:
- Não se poderá negar que um convento, que não tenha o
aspecto de um claustro, é um obstáculo às vocações; o postulante
tem necessidade - está na natureza isto - de se deixar afeiçoar em
um meio que lhe apraza, de se animar numa igreja que o envolva,
em uma capela um pouco sombria e triste, e este resultado só o
pode obter o estilo românico ou o gótico.
- Ah! Sim, sem dúvida. E tem muitos noviços?
- Temos sobretudo muita gente que deseja tactear a vida das
Trapas, mas a maior parte não consegue suportar o nosso regime.
Exceptuando mesmo a questão de saber se a vocação dos princi­
piantes é imaginária ou real, podemos, sob o ponto de vista físico,

301
J.-K. HUYSMANS

depois de passados quinze dias de ensaio, fazer claramente o nosso


juízo.
- O que deve deitar por terra as constituições mais robustas é
a alimentação única e exclusiva de legumes; não posso compreen­
der como, levando uma existência activa como é a vossa, podem
resistir a isso.
- A verdade é que os corpos obedecem, quando as almas são
resolutas. Os nossos antepassados suportavam sem custo a vida das
Trapas! O que nos falta hoje em dia são as almas. Recordo-me muito
bem que quando fiz a minha provação num claustro de Cister, a
minha saúde era extremamente precária.
De resto, a regra vai ser proximamente suavizada - prosseguiu
o abade. - Mas em todo o caso, há ainda um país que na previsão
de uma carestia nos podia assegurar um bom número de recrutas, é
a Holanda.
E, vendo o olhar pasmado de Durtal, o padre disse:
- Sim, neste país protestante, a vegetação mística é florescente.
O Catolicismo é tanto mais fervoroso aí, quanto é, senão perse­
guido, pelo menos menosprezado, afogado na massa dos luteranos.
Talvez se deva isto à natureza do solo, às suas planícies solitárias,
aos seus canais silenciosos, ao próprio gosto dos holandeses para
uma vida regular e quieta; a cada passo vê que neste pequeno
núcleo de católicos a vocação Cisterciense é muito freqüente!
Durtal olhava para este trapista, que caminhava, majestoso e
tranqüilo, com a cabeça enterrada no seu capuz, e as mãos passa­
das pela cinta.
Por instantes, os seus olhos relampejaram no interior do capuz,
e a ametista que usava no dedo faiscou tênues chispas de lume.
Nenhum ruído se ouvia; a esta hora a Trapa dormia pesada­
mente. Durtal e o abade caminhavam ao longo das orlas do grande
lago cuja água vivia, só ela acordada no sono destas matas, porque
a lua, que resplandecia num céu sem nuvens, semeava-a de uma
miríade de peixes de ouro; e esta poeira luminosa, caída do astro,
subia e descia, agitava-se em milhares de cedilhas de fogo a que o
vento que soprava activava os clarões.
O abade deixou de falar, e Durtal, que sonhava embalado pela
doçura desta noite, soltou de súbito um gemido. Acabava de lem­
brar-se que a essa hora, no dia seguinte, já havia de estar em Paris,
e, vendo o mosteiro, cuja fachada surgia toda enevoada ao fundo de
uma álea assim como no extremo de um túnel negro, exclamou,
pensando em todos esses monges que o habitavam:
- Ah! Quanto eles são felizes!

302
A CAMINHO

E o abade respondeu: - Muito.


Depois, docemente, em voz baixa:
- É, portanto, verdade; nós entramos aqui para fazermos peni­
tência, para nos mortificarmos, e mal ainda temos sofrido, já Deus
nos vem consolar! Ele é tão bom, que até quer enganar-se a si
mesmo a respeito dos nossos méritos. Se tolera que em certos
momentos o demônio nos persiga, dá-nos em troca tanta felicidade
que não há nenhuma proporção de reserva entre a recompensa e a
pena. Às vezes, quando penso nisso, pergunto a mim mesmo como
subsiste ainda este equilíbrio, que as monjas e os monges são encar­
regados de manter, porque, nem uns, nem outros, sofrem o bastante
para neutralizarem as ofensas assíduas das cidades.
O abade interrompeu-se, e depois continuou, pensativo:
- O mundo não concebe mesmo como as austeridades das aba­
dias possam aproveitar-lhe. A doutrina da suplência mística escapa-
-lhe por completo. Não pode imaginar que a substituição do ino­
cente ao culpado, desde que se trate de sofrer uma pena merecida,
é necessária. Não sabe explicar como, querendo padecer pelos
outros, os monges desviem as cóleras do céu e estabeleçam uma
solidariedade no bem que faz contrapeso à federação do mal. E
Deus sabe, portanto, de que cataclismos este mundo inconsciente
seria ameaçado, se em seguida a uma desaparição súbita de todos
os claustros, este equilíbrio que o salva se rompesse!
- O caso já se apresentou - disse Durtal, que sempre a ouvir
este trapista pensava no abade Gévresin, e se recordava de que este
padre se exprimia sobre o mesmo assunto em termos quase seme­
lhantes. - A Revolução suprimiu realmente num traço de pena todos
os conventos; mas sou de opinião que a história deste tempo, sobre
que tantos escrevinhadores se encarniçam, está ainda por fazer. Em
vez de procurar documentos sobre os actos e sobre as próprias pes­
soas dos Jacobinos, seria preciso revolver os arquivos das ordens
religiosas que existiam nessa época.
Trabalhando assim ao lado da Revolução, reconhecendo-se os
seus arredores, sondando os seus contornos, chegar-se-ia enfim a
exumar os seus fundamentos, desenterrar-se-ia as suas causas; des-
cobrir-se-ia certamente que, à medida que os conventos se desmo­
ronam, surgem excessos monstruosos. Quem sabe se as loucuras
demoníacas de um Carrier ou de um Marat não concordam com a
morte de uma abadia, cuja santidade preservava de há anos a
França?
- Para sermos justos - respondeu o abade - convém dizer-se
que a Revolução não destruiu mais que ruínas. O Regime da

303
J.-K. HUYSMANS

Comenda* tinha acabado de satanizar os mosteiros. E foram eles


sim, que pelo relaxamento dos seus costumes, fizeram pender a
balança e atrair sobre este país o raio.
O Terror não foi mais que uma conseqüência da sua impie­
dade. Deus, a quem nada já retinha, assim o permitiu.
- Sim, mas como convencer agora da necessidade das com­
pensações um mundo que divaga em acessos contínuos de ganho;
como persuadi-lo de que seria urgente, para conjurar novas crises,
abrigar as cidades por detrás dos redutos sagrados dos claustros?
Depois do cerco de 1870, prudentemente envolveu-se Paris
numa imensa rede de insuperáveis fortes; mas não seria indispen­
sável cercá-la também de uma cintura de orações, abaluartar o seu
contorno de casas conventuais, edificar por todos os seus arrabaldes
mosteiros de Clarissas, de Carmelitas, de Beneditinas do Santíssimo
Sacramento, mosteiros que seriam de alguma sorte poderosas cida­
delas, destinadas a suster a marcha dos exércitos do mal?
- Certamente, as cidades teriam grande necessidade de estarem
garantidas contra as invasões infernais por meio de um cordão sani­
tário de ordens... mas, eu não quero privá-lo de um repouso útil; irei
vê-lo amanhã antes de deixar a nossa solidão; posso, contudo, afir­
mar-lhe desde já que entre nós só conta com amigos e que sempre
aqui será bem-vindo.
Espero, no entanto, que pela sua parte não guarde uma má
recordação da nossa pobre hospitalidade, o que nos provará, vol­
tando a ver-nos dentro em breve.
Tinham chegado, sempre a conversar, diante da hospedaria.
O padre apertou as mãos de Durtal, e subiu lentamente a
escada exterior, varrendo com o seu hábito roçagante a poeira
argentada dos degraus, como que elevando-se, todo de branco, num
raio de luar.

* Regime d e la com m ende, que introduziu, em França, a nomeação dos


abades pelo poder real, em vez da antiga prática da sua eleição pelos outros
monges. [N.R.]

304
IX

Logo depois da missa, Durtal quis ir visitar pela última vez estes
bosques que tinha batido, umas vezes tâo lânguido e outras tão vio­
lentamente. A princípio, passeou pela velha álea das tílias, cujas
pálidas emanações eram verdadeiramente para o seu espírito o que
as suas folhas de infusão são para o corpo, uma espécie de pana-
ceia muito frouxa, de sedativo benigno, muito suave.
Depois, sentou-se à sua sombra num banco de pedra.
Inclinando-se um pouco, entrevia pelos interstícios agitados das
folhagens a fachada solene da abadia, e defronte dela, separada pela
horta, a gigantesca cruz erecta, diante do plano líquido de uma basí­
lica como o lago simulava.
Levantou-se, e aproximou-se desta cruz fluida, cuja água ama-
relenta e escura o céu azulava com as suas nuances cerúleas, e pôs-
-se a contemplar o grande Cristo de mármore branco, que dominava
toda a Trapa e parecia levantar-se em frente dela como uma recor­
dação permanente dos votos de sofrimentos que tinha aceitado, e
que tencionava mudar com o tempo em alegrias.
O caso é - disse consigo Durtal que pensava mais uma vez nas
confissões contraditórias dos monges, afirmando que levavam ao
mesmo tempo a vida mais atraente e a mais atroz - o caso é que o
bom Deus engana-os. Alcançam neste mundo o paraíso, procurando
nele o inferno; e que estranha existência eu mesmo passei neste claus­
tro! - continuou porque aqui fui simultaneamente muito desgraçado
e muito feliz, e agora já pressinto a miragem começar a formar-se;
antes de dois dias, a lembrança das misérias, que foram contudo, se as
recensear com cuidado, muito superiores às alegrias, terá desaparecido
e não mais me recordarei senão das temulências interiores na capela,
senão dos arroubos deliciosos pela madrugada nos atalhos do parque.
O que eu terei de saudades da prisão em pleno ar livre, deste
convento! É curioso o julgar-me preso a ele por obscuros laços;

305
J.-K. HUYSMANS

invadem-me, quando me acho na minha cela, não sei que recorda­


ções de família antiga. Encontrei-me imediatamente em minha casa,
num lugar que nunca tinha visto; reconheci, desde o primeiro ins­
tante, uma vida muito especial e que ignorava contudo. Parece-me
que alguma coisa que me interessa, que me é mesmo pessoal, se
passou aqui antes de eu nascer. Na verdade, se eu acreditasse na
metempsicose, poderia imaginar que nas existências anteriores teria
sido monge... mau monge sem dúvida - disse consigo, sorrindo des­
tas reflexões - pois que teria de reincarnar-me e voltar a um claus­
tro para expiar as minhas faltas.
Sempre a conversar consigo mesmo, percorrera uma comprida
álea que ia dar a um extremo da cerca, e, cortando a meio-caminho,
através do silvado, chegou às ourelas do grande lago.
As suas águas só se encrespavam em certos dias em que o
vento o cavava e entumescia, fazia-o correr e voltar atrás sobre si
mesmo, assim que tocava nas suas margens. Permanecia imóvel,
não era agitado senão pelos reflexos de nuvens movediças e do
arvoredo. Por momentos, uma folha caída dos choupos vizinhos
vogava sobre a imagem de uma nuvem; noutros, algumas bolhas de
ar subiam do fundo e desfaziam-se à sua superfície no azul rever-
berado do céu.
Durtal rebuscou a lontra, mas ela não se quis mostrar; tornava a
ver somente os gaivões que roçavam pela água com as pontas das
suas asas, e as libelinhas que cintilavam no ar como pequenas plumas
de cores berrantes, brilhando como as chamas azuladas do enxofre.
Se tinha sofrido junto do tanque em cruz, não podia evocar
diante da toalha líquida deste outro tanque senão o chamamento
das lenitivas horas que aí lhe haviam decorrido, estendido num leito
de musgo ou numa cama de canas secas; e então olhava para ele
comovido, esforçando-se por fixá-lo e levá-lo na memória para tor­
nar a viver em Paris, de olhos fechados, pelas suas margens.
Depois, prosseguiu o seu caminho, e quedou-se numa álea de
nogueiras que corria ao longo dos muros, pelo lado de cima do
mosteiro; daí estendia a vista para o cerrado da frente do claustro e
para as suas dependências, currais, casas da lenha, e ainda para as
cortes. Esforçava-se por ver o irmão Simeão, mas ele provavelmente
estava ocupado nos estábulos, porque não apareceu. As casas esta­
vam mudas e os suínos já tinham entrado; apenas alguns gatos
esgalgaclos giravam taciturnos, mal entreolhando-se quando se
encontravam, indo cada qual para o seu lado à cata sem dúvida de
algum suculento biscate que os consolasse desses eternos repastos
de sopa magra que lhes servia a Trapa.

306
A CAMINHO

As horas apertavam, mas ele ainda foi rezar pela última vez à
capela e daí dirigiu-se para a cela a fim de preparar a sua mala.
Enquanto arranjava as suas coisas, ia pensando na inutilidade
dos aposentos que é costume prepararem-se. Gastara em Paris todo
o seu dinheiro em comprar estatuetas, gravuras e livros, porque
havia até então detestado a nudeza das paredes.
E hoje, ao considerar as paredes desertas desta sala, confessava
que estava mais em sua casa dentro destes quatro tabiques do que
no seu quarto forrado de estofos, em Paris.
Subitamente, discernia que a Trapa tinha-o desprendido das
suas preferências, tinha-o em alguns dias voltado do avesso. - A
potência de um tal meio! - disse consigo, um pouco inquieto por
sentir-se assim transformado. E continuou, afivelando a sua mala: É-
-me preciso ir ter com o padre Estêvão, porque quero enfim satisfa­
zer a minha despesa; não quero de modo algum prejudicar estes
bons homens.
Visitou os corredores e cruzou-se afinal com o padre no cerrado.
Tinha um certo acanhamento em abordar esta questão; às pri­
meiras palavras o hospedeiro sorriu-se.
- A regra de São Bento é formal - disse - , nós devemos rece­
ber os nossos hóspedes, como receberíamos Nosso Senhor Jesus
Cristo em pessoa; isto quer dizer que não podemos receber dinheiro
algum em troca dos nossos pobres serviços.
E como Durtal insistisse embaraçado:
- Se tem feito o propósito de não partilhar da nossa magra
ração sem a pagar, nesse caso faça como lhe aprouver; só que a
soma que nos der terá de ser distribuída em moedas de dez e de
vinte soidos pelos pobres que todas as manhãs vêm, de bem longe
às vezes, bater à portaria do mosteiro.
Durtal inclinou-se e deitou o dinheiro que trazia reservado na
algibeira do padre; depois perguntou se não poderia conversar com
o padre Maximino antes da sua partida.
- Ora porque não? O padre prior não vos deixaria partir sem
vir apertar-lhe a mão à despedida. Vou saber se está livre; espere
por mim no refeitório - e o monge desapareceu e tornou a entrar
alguns minutos depois, precedido pelo prior.
- Então - disse este - sempre vai tornar a mergulhar no bulí-
cio do mundo?
. - Oh! E sem alegria alguma, meu padre.
- Eu compreendo isso. É tão bom, não é assim, nada mais
ouvir, e nós mesmos calarmo-nos também? Enfim, ganhe coragem,
que nós havemos de rezar muito por si.
J.-K. HUYSMANS

E como Durtal agradecesse a ambos as suas atenciosas finezas:


- É um grande prazer acolher um retirante assim - exclamou o
padre Estêvão sem ninguém o apoquentar, mostrou-se tão pon­
tual que se punhas a pé antes da hora; pela sua parte fez-me fácil o
meu papel de vigilante. Se todos assim fossem tão pouco exigentes
e tão dóceis!
E confessou ter albergado alguns padres enviados pelos seus
bispos em penitência, eclesiásticos clesencaminhados cujas queixas
sobre a alimentação, sobre a cela e sobre as exigências matinais do
despertar não tinham fim.
- Se ainda - disse o prior - se tivesse a esperança de trazê-los
ao bem, de enviá-los curados para as suas paróquias; mas não, eles
abalam daqui ainda mais revoltados que dantes; o diabo não os
quer largar de modo nenhum.
Neste entrementes, um converso trouxe alguns pratos cobertos
com outros pratos e pousou-os em cima da mesa.
- Alterámos a hora do seu jantar por causa da partida - disse
o padre Estêvão.
- Que lhe faça bom proveito! Agora adeus, e que o Senhor o
abençoe - disse o prior.
Levantou a mão e envolveu num grande sinal da cruz a Durtal,
que se surpreendera pelo tom subitamente comovido do monge.
Mas o padre Maximino recuperou-se imediatamente e saudou-o no
momento em que Bruno entrava.
A refeição decorreu silenciosa; o oblato estava visivelmente
magoado pela próxima partida deste companheiro que tanto esti­
mava, e Durtal pensava com o coração confrangido neste velho, que
tinha tão caridosamente saído da sua solidão para lhe oferecer os
seus serviços.
- Então não virá ver-me um dia a Paris? - disse-lhe.
- Não, eu deixei de vez a vida sem a menor tenção de voltar a
ela; não desejo tomar a ver Paris, não quero mais reviver.
Mas se Deus me der alguns anos de existência, espero ainda
tornar a vê-lo aqui, porque não se transpõe em vão o limiar do asce-
tério místico para aí verificar por meio de uma experiência sobre si
mesmo a realidade das inquirições que Nosso Senhor opera. Ora
como Deus não procede ao acaso, acabará certamente a sua obra,
espremendo-o. Atrevo-me a recomendar-lhe que se esforce sempre
por não ceder e tente morrer para si mesmo a fim de não contrariar
os seus planos.
- Sei muito bem - disse Durtal - que tudo se acha deslocado
em mim, que já não sou o mesmo; mas o que me admira é o estar

308
A CAMINHO

actualmente seguro de que os trabalhos da escola Teresiana são


exactos quando... quando é preciso passar por todos os rolos dos
laminadores que São João da Cruz nos descreve...
Um rodar de carruagem no cerrado interrompeu-o. Bruno
aproximou-se da janela e informou-se:
- A sua bagagem já desceu?
-Já .
E olharam-se.
- Escute-me um pouco, pois que na verdade queria dizer-lhe...
- Não, não me agradeça - exclamou o oblato, - Ah! Eu nunca
compreendi tão bem a miséria do meu ser; se eu fosse um outro
homem teria podido, orando melhor, ajudá-lo mais!
A porta abriu-se e o padre Estevão declarou:
- Não tem um minuto a perder, se não quiser perder o com­
boio.
Assim apressado pelas horas, Durtal apenas teve tempo de
abraçar o seu amigo, que o acompanhou até ao cerrado. Sobre uma
espécie de carruagem, um trapista, que usava uma grande barba
negra por baixo de um crânio calvo e de faces listradas de fios rosa­
dos, esperava-o, sentado.
Durtal apertava pela última vez a mão do hospedeiro e a do
oblato, quando o padre abade veio a seu turno desejar-lhe uma boa
viagem, e do extremo do cerrado Durtal avistou dois olhos que o
fixavam; eram os do irmão Anacleto, que de longe lhe dizia adeus,
um pouco inclinado, sem um gesto.
Até este pobre homem, cujo olhar eloqüente revelava uma afei­
ção verdadeiramente tocante, uma piedade de santo para com o
estrangeiro que tinha visto tão tumultuoso e tão triste, ao abandono
desolado dos bosques...
Na verdade, a rigidez da regra interditava toda a efusão a estes
monges, mas Durtal bem percebia que por amor dele tinham ido até
aos limites das concessões permitidas, se a sua aflição foi inenarrá­
vel quando lhes lançou ao partir um derradeiro adeus.
E fechou-se a porta da Trapa, essa porta diante da qual tremera
à sua chegada e que agora olhava com as lágrimas nos olhos.
- Agora temos que ir a galope - disse o procurador - porque
estamos em atraso - e o cavalo deitou a correr pelos caminhos fora.
Durtal reconhecia afinal o seu companheiro por tê-lo visto na
rotunda, cantando no coro durante o ofício.
Tinha um aspecto bonachão e ao mesmo tempo decidido, e os
seus olhos azulados sorriam, remexendo-se por trás dos óculos.
- E então - disse - como suportou o nosso regime?

309
J.-K. HUYSMANS

- Não podia tê-lo suportado melhor; desembarquei aqui com o


estômago arruinado, o corpo doente, e os repastos lacônicos da
Trapa curaram-me de todo.
E como Durtal lhe narrasse resumidamente os transes de alma
que tinha sofrido, o monge murmurou:
- Isso não é nada; em matéria de assaltos demoníacos, temos
tido aqui verdadeiros casos de possessão.
- E é o irmão Simeão quem os tem resolvido!
- Ah! Sabe isso... - replicou muito simplesmente a Durtal, que
lhe falava da sua admiração para com os pobres conversos.
- Tem razão, senhor; se pudesse falar com estes aldeões iletra-
dos ficaria surpreendido pelas respostas às vezes profundas que eles
lhe ciariam; demais, são eles realmente os únicos corajosos na Trapa;
nós, os padres, quando nos achamos muito debilitados, aceitamos
de boa vontade o suplemento autorizado de um ovo; eles nunca o
fazem; rezam muito mais que nós e temos de admitir que Nosso
Senhor os escuta, pois que se restabelecem e raro estão doentes.
E a uma pergunta de Durtal, que o interrogara sobre que con­
sistiam as suas funções de procurador, o monge respondeu:
- Consistem em tratar de todos os negócios, de compras e ven­
das, em viajar, em fazer tudo, salvo o que diz respeito à vida do
claustro; nós, porém, somos tão pouco numerosos em Nossa
Senhora do Lar que cada um de nós torna-se forçosamente um fac-
-totum. Ora veja, por exemplo, o padre Estêvão, que é celeireiro da
abadia e hospedeiro, e é também sacristão e sineiro; pela minha
parte, sou igualmente primeiro chantre e professor de cantochão.
E enquanto que a carruagem rolava, sacudida nos eixos, o pro­
curador asseverava a Durtal, que lhe contava quanto os ofícios can­
tados na Trapa o tinham deleitado:
- Não é entre nós que se deve vir ouvi-los; os nossos coros são
muito restritos, muito fracos para poderem levantar a massa gigan­
tesca destes cantos. É preciso ir aos monges negros de Solesmes ou
de Ligugé, se quiser tornar a achar as melodias gregorianas, tais
como elas o foram em plena Idade Média. A propósito, conhece em
Paris as Beneditinas da rua Monsieur?
- Conheço, mas não lhe parece que elas amolecem-nas um
pouco?
- Não digo que não; isso não impede, todavia, que o seu reper­
tório seja autêntico; mas no pequeno seminário de Versalhes tem-no
melhor ainda, pois que aí canta-se exactamente como em Solesmes;
note bem, de resto, que em Paris, quando as igrejas consentem em
não repudiar as cantilenas litúrgicas, usam pela maior parte da falsa

310
A CAMINHO

notação, impressa e espalhada copiosamente por todas as dioceses


de França pela casa Pustet, de Ratisbona.
Ora os erros e as fraudes que pululam nestas edições estão
mais que demonstradas.
A lenda sobre a qual os seus partidários a apoiam é inexacta.
Pretender, assim como o fazem, que esta versão não é outra senão
a de Palestrina, que foi encarregado pelo papa Paulo V de rever a
liturgia musical da Igreja, é um argumento despido de veracidade e
privado de força, porque todos sabem que, quando Palestrina mor­
reu, apenas havia começado a correcção do Gradual.
Acrescentarei que, ainda mesmo que este músico tivesse aca­
bado a sua obra, isso não provaria que a sua interpretação devesse
ser preferida à que foi recentemente constituída, depois de pacien­
tes investigações, pela abadia de Solesmes, porque os textos
Beneditinos apoiam-se sobre a cópia, conservada no mosteiro de
Saint-Gall, do antifonário de São Gregório, que representa o monu­
mento mais antigo e o mais seguro que a Igreja guarda do verda­
deiro cantochão.
Este manuscrito, cujos fac-simile, cujas fotografias existem, é o
código das melodias gregorianas, e devia ser, permita-se-me falar
assim, a bíblia neumática das músicas de capela.
Os discípulos de São Bento têm absolutamente razão, quando
atestam que a sua versão é a única fiel, a única justa.
- Porque é então que tantas igrejas se fornecem de Ratisbona?
- Ah! Pustet tem durante tanto tempo açambarcado o mono­
pólio dos livros litúrgicos e... mas não, mais vale calarmo-nos...
fique sabendo somente que os livros alemães são a negação abso­
luta da tradição gregoriana, a heresia mais completa do cantochão.
A propósito, que horas temos? Ah!, é preciso despacharmo-nos,
disse o Procurador - olhando para o relógio, que lhe estendia
Durtal. - Vamos, minha linda! - e chicoteou o animal.
- Conduz com um ardor! - exclamou Durtal.
- É verdade, já me ia esquecendo de dizer-lhe que, além das
minhas outras funções, exerço ainda, por necessidade, a de
cocheiro.
Durtal pensava que eram em tudo extraordinários estes
homens, que viviam a vida interior, em Deus. Desde o momento
que consentiam em tornar a descer à terra, revelavam-se os mais
sagazes e os mais audaciosos dos comerciantes. Um abade fundava
uma fábrica com os poucos recursos que conseguia reunir; indicava
o emprego que convinha a cada um dos seus monges e com eles
improvisava artistas, guarda-livros, transformava um professor de

311
J.-K. HUYSMANS

cantochão num feirante, envolvia-se no bulício das compras e ven­


das e a pouco e pouco a casa, que mal se elevava de rente do chão,
crescia, desenvolvia-se, e acabava por nutrir com os seus frutos a
abadia que a tinha plantado.
Transportados para um outro meio, esta gente também teria
facilmente criado grandes oficinas e fundado bancos. E dava-se o
mesmo facto com as mulheres. Quando se pensa nas qualidades
práticas de procurador de grandes casas ricas e no sangue frio de
velho diplomata que uma madre abadessa deve possuir para reger
a sua comunidade, somos bem obrigados a confessar que as únicas
mulheres verdadeiramente inteligentes, verdadeiramente notáveis,
estão fora dos salões, fora do mundo, à cabeça dos claustros!
E como se admirasse de que os monges fossem tão hábeis e
experimentados na montagem das suas empresas:
- E é bem preciso - suspirou o padre. - Então julga que nós
não temos saudades do tempo em que cada um se provia, cavando
a terra! Tinha-se o espírito livre pelo menos; podia-se santificar neste
silêncio que é tão necessário para o monge como o pão para a boca,
porque é graças a ele que se abafa a vaidade que surge, que se
reprime a indocilidade que murmura, que se recalca todas as aspi­
rações, todos os pensamentos para Deus, que se torna enfim atento
à Sua Presença.
Em vez disto... ah! Eis-nos na gare; deixe a mala ao meu cui­
dado e vá comprar o seu bilhete, porque já ouço apitar a locomo­
tiva - e efectivamente, Durtal mal teve tempo de apertar a mão ao
padre, que lhe fora colocar a sua bagagem na carruagem.
Aí, quando se viu só, sentado, olhando para o monge que se
afastava, confrangeu-se-lhe o coração, prestes a romper-se.
E no meio do barulho ensurdecedor das ferragens, o comboio
partiu.
Nitidamente, claramente, em um minuto, Durtal tomou conhe­
cimento da espantosa desordem em que tinha lançado a Trapa,
Ah! Como fora dela tudo me é indiferente, e como nada mais
me importa! - exclamou. E soltou um gemido ao saber que nunca
mais conseguiria efectivamente interessar-se por tudo o que faz a
alegria dos homens! A inutilidade de se ocupar em outra coisa que
não na Mística e na liturgia, de pensar em outra coisa que não em
Deus, implantou-se tão violentamente em si que chegou a pergun­
tar a si mesmo o que ia fazer a Paris com semelhantes ideias.
E assim viu-se, sofrendo os enredos das controvérsias, a cobar-
dia das condescendências, a vaidade das afirmações, a inanidade
das provas. Viu-se acometido, ferido pelas reflexões de todo o

312
A CAMINHO

mundo, constrangido doravante a avançar ou a recuar, a batalhar ou


a calar-se.
Em todo o caso, era a paz para sempre perdida. Como reunir-
-se e recobrar-se, agora que lhe era preciso habitar num lugar de
passagem, numa alma aberta a todos os ventos, visitada pela multi­
dão dos pensamentos públicos?
O seu desprezo pelas relações, o seu desgosto pelos vínculos
cresceram. Não, antes tudo do que misturar-me ainda com a socie­
dade - exclamou; e calou-se desesperado, porque sabia que não
poderia, longe da zona monástica, permanecer no isolamento. Era o
aborrecimento a breve trecho, o vácuo; e assim, porque não se tinha
reservado, porque se tinha confiado inteiramente ao claustro? Não
tinha mesmo sabido reservar-se o prazer de tornar a entrar no seu
interior; havia descoberto o meio de perder o gosto dos adornos, de
extirpar de si esta última satisfação, na branca nudeza de uma cela!
Não tinha apego a nada, jazia, abatido, e dizia consigo: - Renunciei
de vez à pouca felicidade que me podia ainda tocar, e agora para
onde vou eu?
E, terrificado, entreviu as inquietações de uma consciência
hábil em atormentar-se, as recriminações permanentes de uma
tibieza adquirida, as apreensões das dúvidas contra a Fé, o receio
dos clamores furiosos dos sentidos, agitados pelas circunstâncias.
E repetia a si mesmo que o mais difícil não seria ainda mastrear
a agitação da sua carne, mas sim viver cristãmente, confessar-se,
comungar em Paris, numa igreja. - Isto nunca conseguirei - pensou.
E computava as suas discussões com o abade Gévresin, as suas
delongas, as suas recusas, previa que a sua amizade se arrastaria em
disputas.
Depois, onde havia de refugiar-se? À simples recordação da
Trapa, as representações teatrais de Saint-Sulpice faziam-no pular.
Saint-Séverin parecia-lhe jovial e insulsa. Como havia de permane­
cer também no meio do povo banal dos devotos; como escutar, sem
ranger os dentes, os cantos alterados das músicas de capela? Como,
enfim, tornar a achar na capela das beneditinas, e mesmo em Notre-
-Dame-des-Victoires, este surdo calor, irradiando das almas dos
monges e degelando a pouco e pouco a neve do seu pobre ser?
E depois, o que era verdadeiramente pungente, verdadeira­
mente horroroso, era pensar que nunca mais sem dúvida experi­
mentaria esta admirável alegria, que nos levanta da terra, que nos
leva não se sabe onde, sem que se saiba com o, para além dos
sentidos.
Ah!, estas áleas da Trapa, percorridas desde a madrugada, estas

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J.-K. HUYSMANS

áleas onde um dia, depois de uma comunhão, Deus lhe tinha dila­
tado a alma de tal sorte que já não a sentia como sua, tanto o Cristo
a havia mergulhado no mar da sua divina Infinidade, e imergido no
celeste firmamento da sua Pessoa!
Como reintegrar este estado de graça sem a comunhão e fora
de um claustro? Não, está tudo acabado - concluiu.
E apoderou-se dele um tal acesso de tristeza, um tal impulso
de desespero, que pensou em descer na primeira estação e voltar
para a Trapa; mas teve que sacudir os ombros, porque ele não tinha
o carácter assaz paciente, nem a vontade assaz firme, nem o corpo
assaz resistente para suportar as terríveis provas de um noviciado.
Demais, a perspectiva de não ter uma cela só para si, de se deitar
vestido, promiscuamente, num dormitório, espantava-o.
Mas que fazer então? E dolorosamente, resumia-se.
- Ah! - dizia consigo - , vivi vinte anos em dez dias neste con­
vento, e saio dele com o cérebro desfeito e o coração aos farrapos:
estou para sempre perdido. Paris e Nossa Senhora do Lar repeliram-
-me alternadamente como um salvado de naufrágio, e eis me con­
denado a viver como desemparelhado, porque eu sou ainda muito
homem de letras para me fazer monge, e sou contudo muito monge
para ficar entre os homens de letras.
De chofre, sobressaltou-se e calou-se, deslumbrado pelos jac­
tos de luz eléctrica que o inundaram, ao mesmo tempo que parava
o comboio.
Estava de volta em Paris.
- Se eles - continuou, pensando nos escritores que lhe seria
sem dúvida difícil não tornar a ver - , se eles soubessem quanto são
inferiores ao último dos conversos! Se pudessem imaginar quanto a
ebriedade divina de um guardador de porcos da Trapa me interessa
mais que todas as suas palestras e que todos os seus livros! Ah!
Viver, viver à sombra das orações do humilde Simeão, Senhor!

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Rom ance autobi.ográfico, em que Huysmans
projecta a sua própria vida, a de um escritor
parisiense com uma atormentada vida interior.

Aconselhado por um amigo, o padre Gévresin,


Durtal tenta resolver os seus conflitos interiores,
retirando-se para um convento e vivendo de
perto com os religiosos mais austeros.

Escolhe a Trapa de Nossa Senhora do Átrio, e


descreve os costumes dos monges beneditinos,
os ritos, os cantos e as belezas da liturgia.

Mas será Sim eão, o mais humilde frade do


convento, que levará D urtal a d escobrir a
simplicidade que lhe faltava...

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