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de concreto criando ambientes.

Só que não há
Conceituar significa ninguém nestes ambientes
definir parâmetros para Passeio pelo calçadão da Rua da Praia. A
atingir objetivos costumeira aglomeração. O piso chama-me
atenção. Noto áreas de granito cinza claro. Logo
adiante, cinza escuro. À direita, placas de granito
Vladimir Kupac - prof da UFRGS vermelho. Áreas extensas, áreas menores. Por
quanto alongue o olhar, não consigo estabelecer
Estou indo, de carro, por uma avenida de Porto relações, nem intenções entre estas áreas. Serão
Alegre. Procuro uma rua. Pressionado pela então remendos? Ou faltou material?
corrente automobilística, não consigo andar a Eis-me agora na janela do 9o andar do edifício
menos de 50 km por hora. Numa esquina, no Santa Cruz. Olho para baixo. Eis de novo o piso
meio de uma profusão de placas, há uma, azul, da Rua da Praia. o mesmo. Ou melhor, diferente.
bastante ampla. Nela, há algo escrito, com letras Pois, desta altura, consigo identificar
brancas, microscópicas. Não consigo ler. Ajeito perfeitamente a intenção formal que une aquelas
os óculos, para ver melhor. Não adianta. Em cima áreas cinzas e vermelhas. E realmente, o efeito é
da placa azul há outra placa onde se lê e letras bastante agradável. Fico imaginando então como
garrafais: SALEM, e uma flecha indicadora. seria bom se todos tivéssemos 70m de altura.
Vou, ou melhor, sou empurrado adiante. Não Poderíamos assim apreciar a obra de arte.
consegui saber em que rua me encontro. Em Será que quem “bolou” isso, na escala de 1:1000,
compensação, fiquei sabendo que existe a sabe o que é “escala humana”?
SALEM e que fica pra lá. Eis-me agora numa rua de bairro. Este é um
Na próxima esquina, nova tentativa. Nada. Não prédio. Deve ser um presídio. Todo em tijolos à
consigo ler na placa azul de baixo. Na de cima vista e concreto aparente. Enormes platibandas
sim. Fácil e claro: CARREFOUR. de concreto pintado em concretina cor cimento.
Na terceira esquina, olho. E decido parar. Desço Tetos de concreto aparente pintados com
do carro. Vou aproximando-me pé-ante-pé: 20 concretina cor cimento. Poucos vidros, armados
metros. 15. 10. 5 metros. Eis, afinal. A enorme em tubos metalon. Pouco sol, muita escuridão.
placa azul desvenda seu mistério. Em letrinhas Um esqüálido pátio de recreio. Sou informado
brancas, com 3 cm de altura, está escrito: rua que não é um presídio. Vejam só! É uma escola.
Silva Só. Para crianças. Mas não vejo crianças, pois é
Lembro-me das boas, velhas placas de domingo. E se fosse segunda? As veria?
antigamente. Lia-se, e ainda se lê, a uma boa Será que quem projetou este mausoléu sabe o
distância: RUA JOSÉ BONIFÁCIO. Naquele que são crianças?
tempo, ia-se de charrete, 10, 15km/h, ou então a É inverno. Quero comprar um pijama de flanela.
pé. Havia tempo suficiente para se ler uma placa. Há vários modelos, bem felpudos, cores
E as letras tinham 8, 10cm de altura. Ora, me aconchegantes. E todos com aquele decote em
pergunto: se naquela época havia preocupação, V. Sem dúvida, foram criados em confortáveis
na elaboração das placas, que estas fossem ateliers com calefação. Penso. Quem “bolou”
lidas, fácil e rapidamente, quais meandros estes pijamas sabe o que é inverno? E o que é
mentais terão elaborado as placas atuais, quando qarganta inflamada?
quase ninguém mais procura ruas a pé e os Edifício Fronteira, na av. Borges de Medeiros.
carros correm a 50/60km/hora? E a informação, Quase meio-dia. O hall térreo e insuficiente para
portanto, deve ser rápida e clara? Será que quem conter as pessoas que esperam os elevadores,
“bolou” estas placas sabia o que estava fazendo, as que saem e as que entram. Os quatro
e para quem? Ou pensou que todo mundo tem elevadores estão, dois a dois, uns em frente aos
olho de lince? outros, distanciados talvez uns dois metros.
Eis o viaduto Loureiro da Silva. À minha Evidentemente, o projeto dimensionou esta
esquerda, em frente ao Instituto Palestrina há distância em função do tráfego de pessoas
uma pracinha. Nela, uma fonte redonda, de provável no pavimento-tipo. Num único
concreto armado aparente. No centro dela, pavimento-tipo. Não se cogitou, provavelmente,
chapas arredondadas de aço inox. Há restos de que todos estes pavimentos
holofotes, canalizações elétricas e hidráulicas. somados,despejariam sua carga humana no
Talvez uma bomba de recalque. A fonte, pavimento térreo, o qual, limitado pela posição
naturalmente esta seca. À minha direita, eis a dos elevadores, não teria como expandir seu hall.
praça Argentina. Com uma fonte redonda, de Pergunto: Quem “bolou” estes prédios de
concreto aparente. No centro dela, chapas de aço escritórios se lembrou que estes possuem horas
inox. Restos de holofotes, canalizações de pique?
hidráulicas e elétricas. A fonte, naturalmente, está Receio, porém, cutucar a paciência alheia. -E
seca. Ha também uns 15 km de sinuosos bancos assim poderia continuar, “ad infinitum”.

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Encontrando novos exemplos a cada passo, a uma mesinha de centro: total 5 pessoas. Há,
cada olhar. também, bem no meio, uma lareira. À esquerda,
Refugio-me, portanto, no aconchego intelectual num canto espremido entre duas portas, uma
de nossa Universidade, templo do saber e da mesa com seis cadeiras indica a zona de jantar.
lógica. Sem balcão. Sem cristaleira. Não cabem. E
E eis-me em frente à minha escola, a Faculdade assim se conclui a zona social. num único relance
de Arquitetura. Que é ela, não há dúvida, pois se vê tudo.
está escrito, e bem claro, em cima da entra da: Ora, vejamos. A zona social é o lugar onde a
“Faculdade de Arquitetura”. Para reforçar, uma família vive, conversa, recebe, se diverte, se
lápide, que não é mortuária, repete, para quem se produz, se propõe e se expõe à sociedade. As
dispuser a inclinar 90o seu delicado pescoço: novas possibilidades tecnológicas geraram
“Faculdade de Arquitetura”. Para não ficarmos novidades. Rádio, televisão, vídeos, games, som,
com torcicolo, viremos 180o o nosso já não tão bar, souvenirs. Estas atividades requerem seus
delicado pescoço; Outra lápide, esta metálica, próprios espaços, integrados, em articulações
nos informa: “Faculdade de Arquitetura”. harmônicas, até formar um todo efervescente,
Eis-me no auditório. Admiro extasiado as agradável onde, ao penetrar descobrem-se a
dimensões da tela de projeções: 7 metros de cada passo novos ângulos, novas perspectivas.
largura por 1,50m de altura. Jóia! Pois a arquitetura é forma e função, claro, mas é
Só que... em qualquer projeção há uma relação também espetáculo, é também emoção.
constante, matemática, entre largura e altura do Esta lareira. Pela posição, dominante, mais
plano de projeção. Veja-se slides, filmes, vídeos, parece um altar. Imagino-me chegando em casa,
etc. ao meio-dia, em pleno verão. Suado, abrindo o
Examino os trabalhos dos meus alunos. Há 12 colarinho, entro ofegante na sala, já saboreando,
anos faço isto. Trata-se de um condomínio por antecipação, o refrigério do ar condicionado.
horizontal. Em terreno plano. Vários trabalhos E o que vejo, bem a minha frente? A lareira. Com
solucionaram o problema do espaço colocando a a boca negra escancarada, engolindo uma
garagem no subsolo. Barbada. A testada média samambaia. Estarei na Noruega? Não. Estou no
dos lotes é de 12m, maior, portanto, que a Brasil, país tropical abençoado por Deus. Onde
maioria dos lotes de Porto Alegre. temos dois meses de inverno e dez de inferno.
Imagino-me proprietário de uma destas unidades. Tecnicamente, a lareira é um absurdo. 80% do
Raciocinaria: Se estou aqui fora, no nível 0,00, e calor gerado vai-se embora pela chaminé.
a minha casa e no nível 0,00 por que iria eu fazer Desperdício de energia, poluição, homicídio
escavações, muros de contenção, ecológico. Eliminemos então a lareira. Não. Não.
impermeabilizações, drenagens, canalizações A lareira, e por meio dela o fogo, possui poder
pluviais, bombas de recalque, uma escada que hipnótico sobre nós, nos reporta a nossas origens
teria que subir e descer dezenas de vezes por ancestrais, desperta sensações agradáveis de
dia, para descer a nível -2,50, para novamente aconchego. É bom então ter uma lareira. Mas ali,
subir afinal ao nível 0,00, onde já me encontrava quietinha, num cantinho amigo, sem imposições,
antes disto tudo? Traçando um paralelo seria a sem desnecessárias importâncias.
mesma coisa que comprar um par de sapatos e Esta é uma sacada. Tem 1,20m de largura por
que a caixa custasse mais que os próprios 7,40m de comprimento = 8,9m2. Parece mais um
sapatos. E quando o carro não “pegasse”, de corredor suspenso no ar. Útil para teste de
manhã, iria eu me associar ao Touring para ter cooper. Mas. o que é uma sacada? É um espaço
direito a um guincho? Ou arregimentaria toda a de comunicação com o meio exterior. Onde se
vizinhança masculina? deixa de ser espectador e se torna protagonista
A garagem, hoje, em função do seu alto custo, do espaço exterior, que o envolve e o emociona.
não pode mais limitar-se a simples depósito de Se esta mesma área, 8,9m 2 tivesse 3m x 3m,
veículos e acessórios, enterrada e isolada no poderia ser cria do um agradável estar suspenso.
sub-solo. Deve exercer atividades de apoio da Quando foi dado o tema deste semestre, ficou
vida doméstica, como ampliação do pátio de estabelecido que as unidades habitacionais
serviço, como churrasqueira, como salão de seriam articuladas em níveis diferenciados. O
festas para crianças, como extensão mais rural objetivo era familiarizar o estudante com a
talvez, da zona social. Para isto ela deve estar sobreposição de espaços arquitetônicos,
integrada ao corpo da casa, ter acabamento mais relacionando-os entre si nas suas componentes
sofisticado, melhores condições de habitabilidade. estruturais e de instalações. O aluno aprenderia
O tema proposto neste semestre prevê então a “ver” o espaço bidimensional e
habitações para 8 pessoas em área de “visualizar” o espaço tridimensional, prática
260/280m2, em zona urbana nobre. indispensável para a elaboração futura de temas
Examino neste outro projeto a zona social. À mais complexos.
direita, há um estar, com sofá, duas poltronas e Até que o projeto desta habitação tem o

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pavimento térreo bem desenvolvido. O pavimento nem condições para isto. E, francamente, não é
superior também não apresenta falhas graves. Só importante.
que o pavimento superior nada tem a ver, Importante e ensinar a raciocinar, a “ver”, a
estruturalmente e nas suas instalações, com o “sentir”. A conceituar. Submeter cada fato
pavimento inferior. Parecem vindos de casa arquitetônico ao crivo da razão e, por que não, do
diferentes. coração.
Mas, “voi-lá”, umas vigas aqui, uns forros-falsos Entender uma obra não só como um amontoado
ali, mais uns degraus e está resolvido o de espaços, materiais e modismos formais. Uma
problema. Amém! obra arquitetônica e um organismo. Sua estrutura
Fico pensando. Uma habitação é tema simples e e seu esqueleto, seus tijolos são sua carne, o
facilmente adaptável. Pode-se habitar no Palácio sistema elétrico e o sistema nervoso, seu sistema
de Versalles. Ou numa barraca de camping. E ser hidráulico e o sistema circulatório, seus rebocos
felizes. são sua pele.
Mas se em vez de residência, este trabalho fosse Em ausência de uma sólida base conceitual e
um aeroporto, o avião já teria caído. desprovidos, portanto, de argumentação
Se fosse um hospital, o paciente já teria morrido. filosófica, aceitamos e aprovamos as mais
Estou estendendo-me excessivamente. Talvez os estapafúrdias propostas, em que o “formal”,
exemplos apontados não sejam os mais pretensioso e vazio, subjuga os mais elementares
indicativos. Muitos outros poderiam ser preceitos da razão e ao sentimento.
Mas o que me interessa agora, é concluir. É Rotulam-se como “conceitos pessoais a
mostrar onde queria chegar. respeitar” os mais grosseiros erros de raciocínio,
E, meio atabalhoadamente, cá estamos. que magoam não só o saber de nível
Conceituação. universitário, mas a própria inteligência comum.
Todos os exemplos apontados pecaram por um “Conceituar” é entender a voluptuosidade desta
problema comum: ausência de um embasamento sociedade em constante evolução e mutação.
conceitual, como premissa indispensável ao Captar, diagnosticar e endereçar para a
processo criador. arquitetura as aspirações, os desejos, os sonhos
Os fatos, arquitetônicos e urbanísticos são e as realidades do meio, que nos cerca, é o
atirados a esmo, sem direção, sem objetivos. nosso dever.
Avança-se por tentativas, braços estendidos, e
olhos vendados.
O aluno não tem noção do que quer, nem o que
alcançar. Confunde forma e função. Sentimentos
e técnicas.
O que é uma casa? É o abrigo comum de um
núcleo humano ligado por sentimentos, onde se
pratica o amor, a democracia, a liberdade e, por
meio destes, a expressão máxima a que todos
aspiramos: a felicidade. É tendo estes princípios
presentes e definidos, que o estudante saberá o
caminho a percorrer.
Um hospital, o que é? E um hotel? E um
aeroporto? Cada tema exige uma preparação
conceitual que precederá e presidira a elaboração
do processo de criação arquitetônica.
Não se pode projetar uma rodoviária com a
complexidade conceitual de um aeroporto, pois
outro é o público-alvo, com diferenças das
capacidades de percepção e resolução.
Pede-se aos alunos, no inicio do semestre, que
pesquisem. E lá vão eles, em grupos ou
isoladamente, a ver, a perguntar, a tomar nota, a
fazer rabiscos. E assim verificam como são feitas
as coisas. Mas, “por que” são feitas assim,
ninguém lhes diz. Mesmo porque, na maioria dos
casos, nem há ‘porque’.

E eis-nos no âmago. Nós não podemos ensinar a


projetar um hospital, uma residência, uma
rodoviária, um teatro, etc, etc. Não temos tempo

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