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Seminário “Antonio Candido” 100 anos, Universidade Estadual de São Paulo, USP.

Setembro de 2018.

O direito à literatura de autoria feminina brasileira do século XIX: a atuação


política e literária de escritoras e o confronto com o cânone literário nacional.

Laila Correa e Silva.1

Resumo: A presente comunicação pretende apresentar os resultados parciais obtidos na


pesquisa de doutoramento em desenvolvimento e financiada pela FAPESP, com o título
Dos projetos literários dos “homens de letras” à literatura combativa das “mulheres
de letras”: imprensa, literatura e gênero no Brasil de fins do século XIX. A partir de
obras literárias de autoria feminina no Brasil analisadas durante a pesquisa e refletindo
acerca da proposta deste seminário, propomos uma interlocução entre história,
sociologia e literatura com a finalidade de analisar a produção literária e jornalística de
três escritoras brasileiras atuantes no cenário das letras cariocas de fins do século XIX:
Josephina Alvares de Azevedo (1851-1913), Ignez Sabino (1853-1911) e Maria
Benedita Câmara Bormann, que escreveu com o pseudônimo Délia (1853-1895).
Traçando redes de comunicação e solidariedade entre essas três escritoras, notamos uma
destacada atuação política, por meio das letras e da imprensa feminista do Rio de
Janeiro, em prol da emancipação feminina. Nesse sentido, encontramos uma raiz social
e histórica que alimentou a produção escrita dessas mulheres, sobretudo entre 1880 e
1890, no contexto de transição entre o Império e a República. A mais proeminente de
todas as bandeiras foi a defesa da escrita e da inserção da mulher no âmbito literário
com igualdade de oportunidades em relação aos homens de letras. A literatura era,
então, compreendida como uma forma ou um meio de reivindicar direitos e o exercício
da escrita de autoria feminina transformou-se num palco de disseminação das demandas
sociais das mulheres, indo, portanto, ao encontro da literatura como ―instrumento de
desmascaramento‖, nas palavras de Antonio Candido em O Direito à Literatura (1988),
travestindo-se de uma potência enorme no período estudado, dado que a pena feminina
era uma arma de combate para o conquista de direitos e um modo de participação
feminina na esfera política e social. Por outro lado, justamente como resultado das
barreiras sociais impostas às escritoras, grande parte da produção literária das mulheres
de letras não foi incorporada ao chamado cânone literário, negando o reconhecimento
devido à escrita de autoria feminina e, principalmente, dificultando o acesso aos textos
dessas autoras, por parte do público leitor que, de modo geral, não logrou usufruir da
capacidade ―humanizadora‖ contida nessa importante literatura, ainda hoje, para o
estudo da literatura nacional e para a narrativa social e histórica da trajetória de
mulheres no campo das letras e da política, perdendo-se, portanto, parte significativa da
história nacional e da história das mulheres em busca de direitos sociais e políticos.

1
Doutoranda em História Social na Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, IFCH, Departamento de História. Bolsista da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo, FAPESP, com a pesquisa Dos projetos literários dos “homens de
letras” à literatura combativa das “mulheres de letras”: imprensa, literatura e gênero no Brasil de fins
do século XIX. E-mail: lailacorreaesilva@gmail.com.

1
Atualmente, precisamos, portanto, pesquisar, debater e divulgar a escrita de autoria
feminina do século XIX, restabelecendo sua importância e seu pertencimento à
literatura e à história nacionais.
Palavras- chave: Délia [Maria Benedita Camara Bormann]; Ignez Sabino; Josephina
Álvares de Azevedo; Escrita feminina brasileira no século XIX; Imprensa feminista.

1. Introdução teórica: A autoria feminina brasileira no século XIX, um diálogo


entre gênero e literatura.

A questão de ‗gênero‘ neste texto não pode ser compreendida como um


problema a ser abordado em separado ao processo de articulação e desenvolvimento
da literatura nacional feminina do final do século XIX, como argumenta a estudiosa
de literatura brasileira de autoria feminina e imprensa feminista Constância Lima
Duarte, ao acompanhar o percurso das mulheres na literatura brasileira e seus pontos
em comum com o movimento feminista, promovendo um diálogo entre eles. 2 O
conceito ‗gênero‘ bem como o conceito mais amplo de ‗identidade‘ já geraram
muitos debates teóricos e epistemológicos. Para o momento, dimensiono a
complexidade do tema a partir da ideia geral que pode ser depreendida da obra mais
recente de Eleni Varikas.3 A autora afirma que gênero é um conceito itinerante;
perpassa a história intelectual, a teoria política e a epistemologia.
Abordando o conceito de gênero a partir das letras e da imprensa, numa
interpretação sócio-histórica, proponho que esse conceito seja aqui encarado como a
organização social da diferença sexual, ou os modos pelos quais hierarquias de
diferença- inclusão e exclusões - foram construídas ao longo da história. Para um
debate mais amplo sobre identidade, podem ser elencadas discussões teóricas que
problematizam as definições e o emprego analítico desse conceito nas ciências
humanas.4 De forma geral, os teóricos sobre identidade compreendem que se trata de
um conceito dinâmico, em relativa transformação e móvel, pois a identidade seria
―formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos

2
DUARTE, Constância Lima. Feminismo e Literatura no Brasil. Estudos Avançados, 17 (49), 2003.
3
VARIKAS, Eleni. Pensar o sexo e o gênero (trad.). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2016.
4
APPIAH, Kwane Antohony. ―Identidade como problema‖. In: SALLUM JR., Brasílio; SCHWARZ,
Lilia; VIDAL, Diana; CATANI, Alfredo (orgs). Identidades. São Paulo: Edusp, 2016. HALL, Stuart. A
identidade cultural na pós-modernidade. 2ª Edição. Rio de Janeiro: DP & A, 1998.

2
representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam‖. Logo, a
identidade ―é definida historicamente, e não biologicamente.‖ 5
Compreender a dimensão eminentemente histórica para a definição do
conceito de gênero é fundamental para explicitar suas transformações ao longo do
tempo, bem como revelar diferentes dinâmicas envolvidas nas reivindicações que
mobilizaram homens e mulheres ao longo da história. Por isso, o conceito de gênero
será aqui compreendido como uma forma de identidade coletiva, mobilizada
socialmente por um grupo que reivindicava determinados direitos, num período
específico de fins do século XIX brasileiro. Não se trata, essencialmente, da
reivindicação de reconhecimento da identidade feminina, mas da exigência de
direitos, como por exemplo, o direito à educação adequada e ao exercício pleno do
voto. As mulheres escritoras que apresentarei brevemente adiante não estavam,
explicitamente, ―exigindo reconhecimento de sua identidade‖.6 Elas congregaram-se
em torno da imprensa feminina ou de grande circulação enquanto literatas que
tinham consciência do papel social que a imprensa e a literatura tinham como
instrumento para reivindicações políticas. Ao situar esse processo, Natalie Zemon
Davis7, por exemplo, atentou-se para o papel relacional, ou seja, a importância dos
sexos dos grupos de gênero no passado e desvendou a amplitude dos papeis sexuais e
do simbolismo sexual nas várias sociedades e épocas, apontando qual o seu sentido e
como funcionavam para manter a ordem social ou para mudá-la.
Para inscrever essa análise ao campo da história social, remeto-me ao artigo
de Eleni Varikas ―Gênero, experiência e subjetividade: a propósito do desacordo
Tilly- Scott‖.8 Nesse artigo, Varikas realiza um balanço das discussões teóricas sobre
gênero e o papel da história social e da teoria pós- estruturalista para o avanço no
campo de estudos sobre a história das mulheres, desferindo críticas profícuas à

5
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade2ª Edição. Rio de Janeiro: DP & A, 1998, p.
13.
6
APPIAH, Kwane Antohony. ―Identidade como problema‖, In: SALLUM JR., Brasílio; SCHWARZ,
Lilia; VIDAL, Diana; CATANI, Alfredo (orgs). Identidades. São Paulo: Edusp, 2016,p. 26.
7
DAVIS, Natalie Zemon. Nas margens: três mulheres do século XVII. (trad.). São Paulo: Companhia das
Letras, 1997.
8
VARIKAS, Eleni. ―Gênero, experiência e subjetividade: a propósito do desacordo Tilly-Scott‖.
Cadernos Pagu (3), 1994, pp. 63-84.

3
desconstrução proposta pelos estudos pós-estruturalistas, aos quais Scott associou
seus trabalhos mais recentes. É interessante pontuar essa discussão travada na década
de 1990, pois ela nos mostra um balanço dos problemas teóricos que esse campo de
estudos enfrentou nos últimos anos.
Varikas se refere de modo crítico ao diálogo travado entre Joan Scott e Louise
9
Tilly, duas historiadoras que são referência no campo de estudos sobre história das
mulheres e questões de gênero. Segundo Varikas, a polêmica evidencia preocupações
fundamentais para a história das mulheres, tais como: como superar as abordagens
descritivas e seguir para a solução dos problemas? Como vincular tais problemáticas
a outras do domínio histórico mais amplo? Qual seria a contribuição da história das
mulheres à história em geral?Em quais aspectos ela teria modificado ou transformado
o campo histórico? Quais seriam os instrumentos metodológicos mais adequados
para cumprir essa tarefa?
No artigo, Varikas encara com ceticismo o potencial da desconstrução,
reivindicado por Scott com base no pós- estruturalismo que relativiza o estatuto do
saber, vinculando o saber ao poder e teorizando sobre eles.10 A proposta de Varikas
consiste em refletir de modo mais cuidadoso sobre o uso mais literário e filosófico de
gênero, ou seja, numa proposta mais geral, assinalada pela influência do paradigma
linguístico sobre a história das mulheres. E, principalmente, o que mais se destaca
para o propósito deste texto, as observações acerca da agência na história, integrada
ao conceito de gênero.
Varikas se dedica a pensar nos primeiros trabalhos sobre história das
mulheres, que estariam amplamente inscritos no âmbito da história das ideias e das
mentalidades. Realizando uma reflexão ampla acerca da metodologia da história em
relação às mulheres como objeto de estudo, Varikas afirma que a história social é
importante para a história das mulheres, ―pois propõe uma visão do sujeito da
história fundada sobre a relação entre a experiência e a opressão e as possibilidades
de ação de camadas, grupos, culturas e sexos empobrecidos, marginalizados e

9
TILLY, Louise. ―Gênero, história das mulheres e história social‖. Cadernos Pagu (3), 1994, pp. 29-62.
10
SCOTT, Joan. ―Prefácio a Gender and politics of histoy‖. Trad. Mariza Corrêa. Cadernos Pagu (3),
1994, pp. 11-27.

4
excluídos do direito‖.11 Todavia, tradicionalmente, como aponta a autora, a grande
maioria desses estudos trabalharam com uma visão de sujeito da história como
masculino ou neutro. As exceções seriam os trabalhos de Barbara Taylor, Catherine
Hall e Leonore Davinoff que, dentro da tradição thompsoniana, introduziram
experiências diferenciadas dos homens e das mulheres como uma dimensão
constitutiva dos conceitos de classe, de consciência de classe, de política ou mesmo
de identidade operária. Isso atenderia às demandas de Scott e contradizem suas
críticas à história social que, segundo a autora de Gender and Politics of History,
reduz o conceito de gênero a um dos subprodutos das forças econômicas ou
estruturas econômicas mutantes.12
Cabe ressaltar que as pesquisas em história social já avançaram em muitos
aspectos sobre questões de gênero, especialmente acerca da participação feminina
no mundo do trabalho, embora as relações entre literatura de autoria feminina e
história ainda sejam escassas.
As pesquisas que tomaram o Brasil como objeto de estudo ressaltam que a
identidade surge em virtude das múltiplas experiências dos sujeitos históricos. Por
exemplo, Maria Lúcia Gitahy abordou os diferentes registros do trabalho feminino e
masculino na região portuária de Santos entre 1889 e 1914, mostrando dinâmicas
distintas do trabalho e da cultura da cidade portuária. Isabel Bilhão abordou o
processo de construção da masculinidade e a incorporação da mulher no mercado de
13
trabalho em Porto Alegre, entre o fim do século XIX e início do XX. Isso revela
que a história social tem estado atenta à diversidade de experiências que culturas de
classe e a formação da classe operária abarcam, problematizando abordagens e
concepções que consideram os sujeitos da história como masculinos ou mesmo
neutros.

11
VARIKAS, Eleni. ―Gênero, experiência e subjetividade: a propósito do desacordo Tilly-Scott‖, p. 12.
12
SCOTT, Joan. Gender: a useful category of historical analyses. Gender and the politics of history. New
York, Columbia University Press. 1989. Tradução Christine Rufino Dabat Maria Betânia Ávila (―Gênero,
uma categoria útil para a história‖, p. 13).
13
GITAHY, Maria Lúcia. Ventos do mar: trabalhadores do porto, movimento operário e cultura urbana
em Santos- 1889\1914. São Paulo: Editora Unesp, 1992 e BILHÃO, Isabel. Identidade e trabalho: uma
história do operariado Porto- alegrense (1898-1920). Londrina: EDUEL, 2008.

5
As objeções de Scott, segundo Varikas, se aplicam não apenas à
insensibilidade da história social à questão de gênero, pois essa insensibilidade seria,
mais propriamente falando, reveladora da divergência quanto ao estatuto e ao objeto
do conhecimento histórico, concepção que não se restringe apenas à história social e,
sim, abarca todo o campo dos estudos históricos. Ou seja, Varikas lança luz ao
argumento de Scott, ao dizer que a crítica da autora de Gender (...) à história social
deve-se ao fato de presumir uma relação estreita (de causalidade) entre posições
estruturais e interesses sociais, entre interesses e necessidades sociais e formas de
consciência. Assim, as mulheres teriam interesses e necessidades diferenciados por
conta de sua posição estrutural num determinado tipo de relação de poder. Michelle
Perrot também desenvolveu uma reflexão parecida em Minha história das mulheres,
ao referir-se às mulheres no tempo da história, problematizando as formas pelas
quais a história geral afeta as relações entre os sexos:
Os homens e as mulheres vivem juntos os grandes acontecimentos, as rupturas do tempo.
Juntos, e diferentemente, em razão de sua situação na sociedade no momento. Assim,
perguntou-se se efetivamente teria havido um Renascimento para as mulheres. Sim, mas não
idêntico ao dos homens, e contraditório. Esse movimento reforça seus deveres de beleza, a
14
exigência física da feminilidade. (...)

Outro aspecto abordado por Varikas em relação às críticas de Scott diz


respeito à desconstrução que o pós- estruturalismo propõe. Para Scott, o ponto a ser
abordado é saber como as hierarquias de gênero são construídas e legitimadas.
Consiste no estudo de um processo e esse seria um aspecto positivo da análise pós-
estruturalista, pois há a abordagem de processos conflitivos por meio dos quais o
significado se estabelece, questionando, nesse âmbito, questiona-se quais são as
formas adotadas pelos agentes sociais (ou instituições) para atribuir uma fixidez
(aparente) a conceitos como ‗gênero‘. Isso permitiria determinar o jogo de forças
presentes na construção e aplicação do significado do conceito de ‗gênero‘ em
qualquer sociedade. Segundo Scott, para compreender a aplicação política desse

14
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. (trad.) São Paulo: Editora Contexto, 2007, p. 141.

6
conceito, cabe determinar as implicações políticas da definição do conceito em
questão: a quem interessa controlar ou contestar significados?
Para Scott existiriam duas respostas possíveis: o interesse absoluto e universal
de dominação e o conceito de interesse discursivamente produzido, relativo e
contextualizado. Dessa forma, segundo a historiadora, o interesse envolvido no
conceito de gênero se desenvolve com base em jogos de poder discursivos e a
política é o ―processo pelo qual jogos de poder e saber constituem a identidade e a
experiência‖.15 Destarte, identidades e experiências são fenômenos variáveis,
―organizados discursivamente em contextos ou configurações particulares‖. 16 Mas,
Varikas faz uma pergunta altamente válida: e os sujeitos ou agentes históricos que
estão envolvidos na produção de sentidos do conceito de gênero? Onde estariam as
pessoas implicadas nesses jogos de poder e de saber que constituem a identidade e a
experiência?17
Para Varikas, Scott teria abordado a construção das identidades apenas no
âmbito da formação discursiva, esquecendo-se da experiência concreta das mulheres,
de sua realidade objetiva, sequer buscando recorrer aos escritos deixados pelas
mulheres.18 Essa crítica de Varikas é extremamente profícua, pois conduz a pesquisa
sobre mulheres e a formação de suas identidades no rumo da busca de experiências
concretas, constituintes de processos históricos mais amplos que, no mais das vezes,
não seriam estudados, prioritariamente, a partir da perspectiva feminina.
Como exemplo, recorro aos estudos de historiadores da cultura que procuram
desvendar a complexidade da atuação pública e a produção literária dos escritores
brasileiros na virada do século XIX. Os jovens boêmios de fins da década de 1880 e
os escritores da belle époque suscitaram estudos historiográficos consagrados que
sob diferentes ângulos perscrutam a relação estabelecida entre literatura e política.
Nicolau Sevcenko redigiu o primeiro estudo desse tipo, explorando sua relação com
a sociedade e a política. O recorte temporal de Sevcenko é amplo: desde 1870 até a
segunda década do século XX, com foco sociológico e tipológico dos escritores

15
SCOTT, Joan. ―Prefácio a Gender and politics of history‖, p. 18.
16
SCOTT, Joan. ―Prefácio a Gender and politics of history‖, p. 18.
17
VARIKAS, Eleni. ―Gênero, experiência e subjetividade: a propósito do desacordo Tilly-Scott‖, p. 77.
18
Idem, p. 81.

7
desse longo período. Trata-se, resumidamente, da caracterização de intelectuais
engajados, na segunda metade do século XIX, inserindo-os no fluxo de ideias
europeias que no Brasil representavam correntes de pensamento liberais e até mesmo
cientificistas e evolucionistas, como o darwinismo social.19
O ponto central da análise de Sevcenko são os escritos sobre a Primeira
República, de Euclides da Cunha (1866-1909) e Lima Barreto (1881-1922); todavia,
o autor também aborda a produção de uma série de jovens literatos de fins da década
de 1880 e início dos anos 1890, os quais enfrentaram uma desilusão imensa com a
ascensão da República: momento político que, ao contrário do esperado, não
promoveu a democratização tão almejada por essa geração de homens letrados.
Nicolau Sevcenko, o historiador Jeffrey Needell (1993) e o crítico literário Roberto
Ventura (1991) desenvolveram cada um ao seu modo uma análise sobre a história do
apogeu e decadência da geração de 1870 e seus desdobramentos na cultura nacional.
Todavia, nenhum desses trabalhos sequer mencionou a atuação literária de mulheres
nesse mesmo período, tenham existido muitas escritoras em fins do século XIX
brasileiro. Tampouco, mencionou a mulher como um agente social importante na
formulação de projetos sociais e políticos como a Abolição e a República.20 Pretendo
mostrar que a mulher esteve presente. Não como personagem de romances e
crônicas, como é mais usual ser notado e, sim, presente em carne, osso e opinião. Da
´mulher´, entidade coletiva e abstrata à qual atribuem-se caracteres de convenção21
passo a investigar brevemente os escritos das mulheres singulares, isto é, figuras
reais que viveram e transpuseram suas experiências para as páginas dos jornais.22

19
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: Tensões sociais e criação cultural na Primeira
República. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 100.
20
ALONSO, Angela. Flores, votos e balas (2015) menciona, em alguns momentos, mulheres no
movimento abolicionista. Contudo, elas apenas seriam coadjuvantes que cativavam possíveis doadores de
dinheiro para os comícios, ou mesmo, restringiam-se à atuação artística, como a prima-dona russa Ana
Bulicoff.
21
PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. (trad.), Bauru, SP: EDUSC, 2005.
22
Para o período da Primeira República, existem importantes trabalhos em história social que destacam a
atuação feminina no início do século XX; mais propriamente, as pressões sociais exercidas sobre as
mulheres e suas estratégias de reação a elas. Ver: SOIHET, Rachel Condição feminina e formas de
violência: mulheres pobres e ordem urbana, 1890-1920. (1989); ESTEVES, Martha Abreu, Meninas
perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Époque (1989); RAGO,
Margareth, Os Prazeres da Noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (1890-

8
A mulher pode ser percebida como público leitor e, sobretudo, como
produtora de textos e pensante ativa de uma literatura nacional que se posicionava
politicamente nesse momento de conflito nas letras e na política. Há um aspecto
combativo da atuação feminina na imprensa e nas letras de modo mais geral que
deve ser explorado. Existem aspectos pouco esclarecidos das biografias e das
trajetórias literárias de algumas dessas escritoras brasileiras, deve-se, portanto,
insistir na busca incessante em integrar a questão de gênero das escritoras femininas
às pesquisas em história social dedicadas à literatura brasileira. Assim, por meio da
escrita de literatos e literatas, sigo uma das orientações teóricas da historiadora social
Tilly, com o método da biografia coletiva, ou seja, ―agrupamento de descrições
individuais, padronizadas de modo a traçar o retrato de um grupo inteiro e oferecer
um meio de estudo das variações interindividuais‖. 23
As lacunas no estudo sobre as escritoras do século XIX e o apagamento de
suas obras foram apontadas por Zahidé Lupacci Muzart e Norma Telles.24 Com
efeito, almejando justamente suprir essas ausências é interessante relacionar os
escritos de homens de letras, que contribuíram em jornais nos quais as mulheres de
letras também escreveram e a partir disso, traçar redes de contatos entre eles,
abordando a questão de gênero e a formação da identidade feminina de modo
relacional. Para além disso, faz-se necessário, também, relacionar os estudos críticos
sobre literatura brasileira aos estudos mais específicos acerca da literatura de autoria
feminina, demonstrando à luz de pensadores importantes, como Antonio Candido,
que a autoria feminina do século XIX brasileiro pode ser interpretada num
movimento histórico e social que congrega homens e mulheres de letras.
As escritoras que introduzo agora tinham a experiência vivida de serem
mulheres e escritoras na segunda metade do século XIX. Todas elas atuantes na
imprensa feminista dirigida por mulheres, buscando sempre ampliar a atuação da
mulher em várias esferas da vida pública brasileira, principalmente com a ascensão

1930) (1991) e SCHETTINI, Cristina, Que tenhas teu corpo: uma história social da prostituição no Rio
de Janeiro das primeiras décadas republicanas (2006).
23
TILLY, Louise. ―Gênero, história das mulheres e história social‖, p. 35.
24
MUZART, Zahidé Lupinacci. Escritoras brasileiras do século XIX. Florianópolis: Editora Mulheres;
Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000. TELLES, Norma. Encantações: escritoras e imaginação literária
no Brasil, século XIX. São Paulo: Intermeios, 2012.

9
da República, forma de governo que, segundo acreditavam várias escritoras e
escritores contemporâneos à sua ascensão, poderia ampliar os direitos sociais da
população brasileira.25

2. Três escritoras brasileiras em fins do século XIX: Ignez Sabino, Maria


Benedita Camara Bormann e Josephina Álvares de Azevedo.

Maria Ignez Sabino Pinho Maia foi uma escritora muito participativa na
imprensa dirigida por mulheres26 e colaboradora do jornal feminino carioca A
Estação, no qual iniciou com uma série de biografias de mulheres escritoras ou
mesmo que se destacaram nas ciências e nas artes de modo geral, com o título
―Esboços e Perfis‖ ou ―Esboços Femininos‖.27 Além de artigos em periódicos
femininos Ignez Sabino teve uma produção intensa de poesias e contos. Com um viés
de cunho social destaca-se a coletânea de contos, crônicas e poesia: Contos e
Lapidações (1891).28
Em 15 de outubro de 1890, em A Estação com o título ―Bibliografia‖,
anuncia-se o novo livro de Ignez Sabino, com prefácio de Silvio Romero, Contos e
Lapidações, editado por Laemmert. A nota diz: ―Os leitores da Estação já conhecem
a máscula energia de sua ativa pena‖. Ignez Sabino foi descrita como mulher culta,
com ―vasta ilustração‖ e ―educação esmerada‖. Apesar do conteúdo elogioso da nota,
destinada à escritora, o adjetivo ―máscula energia‖ chama a atenção para as
concepções da crítica em relação à mulher escritora: Sabino tem uma energia
máscula na escrita, por isso é uma mulher culta e inteligente. Sua escrita estaria mais

25
HAHNER, June. Emancipação do sexo feminino: a luta pelos direitos da mulher no Brasil. 1850-1940.
(Trad.) Florianópolis: Ed. Mulheres: Santa Cruz do Sul: EDUSNISC, 2003, p. 160-161.
26
Echo das Damas (Rio de Janeiro, 1879-1888), Corymbo (Rio Grande do Sul, 1883-1943), A Família
(Rio de Janeiro, 1888-1897), A Mensageira (1897-1900), Escrínio (1898-1910) e mais dois periódicos
femininos em Portugal
27
Publicados de 15 de abril de 1890 até 30 de novembro de 1890. Esses escritos podem ser considerados
como precursores de uma das obras mais importantes e conhecidas de Ignez Sabino: Mulheres ilustres do
Brasil (1899).
28
MUZART, Zahidé Lupinacci. Escritoras brasileiras do século XIX. Florianópolis: Editora Mulheres;
Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000, p. 591 ss.

10
próxima de características próprias à escrita masculina, segundo a nota da revista que
não tem autoria identificada.
Todavia, Ignez Sabino era uma escritora militante na imprensa feminista e na
causa pela obtenção de direitos às mulheres, bem como pela consagração da
produção intelectual das mulheres brasileiras. Ela preocupou-se em perenizar nomes
femininos que se destacaram por atos cívicos ou por suas obras literárias no livro
Mulheres ilustres do Brasil (1899). Em seu livro Contos e Lapidações, Sabino
mostra em suas reflexões uma preocupação aguda com as lutas da mulher brasileira
pelo acesso à educação de qualidade em fins do século XIX, de modo que as
mulheres pudessem se preparar adequadamente para o trabalho. Como exemplo, cito
o conto ―Marianita‖:
A mulher é sempre mulher: mas por Deus! Aquela que por um ímpeto evolutivo quisesse se
sobressair, afastando-se do círculo apertado em que vive deixassem-na sobressair, não se lhe
fechassem assim os templos da ciência, que na Europa e na América do Norte são
franqueados às mesmas cortesmente. A ciência e a arte são duas irmãs gêmeas precisas ao
desenvolvimento da intelectualidade feminina daqui, dali, e d´além mar. A mulher de hoje,
29
felizmente, já não é uma simples figura alegórica de ornato, nem uma Cariátide, enfim (...)

Em Contos e Lapidações, Sabino também demonstra franca consciência das


mudanças sociais e políticas engendradas pela proclamação da República. Em
―Crenças e Opiniões‖ a autora propôs uma análise certeira da política nacional:
Deu-se há mais de dois anos, somente entre nós a proclamação da República. A sua
realização parecia utopia; mas o fato confirmou-se, fazendo estremecer os fortes, à vista do
novo Sansão, que abalou e bateu sem uma gota de sangue as colunas do templo da
monarquia. O golpe político foi profundo; há de ser falado enquanto a História do seu país
for escrita no pergaminho do tempo, enquanto houver corações que saibam compreender o
que seja patriotismo.
Torna-se mister, à vista da mudança das coisas, corrigirem-se as leis e ditar novas bases
sobre as tábuas do livro novo do Moisés brasileiro. (...) 30

29
SABINO, Ignez. ―Marianita‖. In: Contos e Lapidações. Apud: MUZART, Zahidé Lupinacci. Escritoras
brasileiras do século XIX. Florianópolis: Editora Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000, p. 594.
30
Idem, p. 603.

11
Ignez Sabino contribuiu para muitos períodos, fundados e dirigidos por
mulheres, concentrando sua produção jornalística nas últimas décadas do século XIX
e início do século XX. Contribuiu também para o Echo das Damas, Corymbo e
Escrínio (jornal do Rio Grande do Sul), A Família (São Paulo\ Rio de Janeiro), A
Mensageira (São Paulo). Em Portugal, escreveu para o Almanach de Lembranças e
Almanach das Senhoras.
Délia, pseudônimo de Maria Benedita Camara Bormann, provavelmente amiga
de Ignez Sabino, como esta pontuou em Mulheres Ilustres do Brasil,31 foi outra
escritora ativa entre os anos de 1880 e 1890. Bormann participou de muitos
periódicos,32 tanto aqueles dirigidos por mulheres e para o público feminino, como os
de público geral e ampla circulação. Délia escreveu durante dez anos para os principais
jornais do Rio de Janeiro, iniciando em O Sorriso com o romance Madalena (1881),
depois para Cruzeiro, com contos breves e folhetins em 1882, na Gazeta da Tarde de
José do Patrocínio, com Aurélia (1883), na Gazeta de Notícias de Ferreira Araújo, com
Carta à Noêmia (1884)33 onde Machado de Assis também participou com a série de
crônicas coletivas ―Balas de Estalo‖ (1883-1886).
O romance mais polêmico de Délia, segundo a crítica da época,34 foi Lésbia
(1890), narrativa da vida de uma jovem chamada Arabela. Filha única de uma família
com posses, dotada de extraordinária inteligência, vive feliz até os 16 anos. Por volta
dos 18 anos casa-se e é infeliz no casamento, pois tem um marido hostil, grosseiro e
ciumento que zombava do empenho de Arabela nos estudos. A moça, com o
consentimento do pai, expulsa o marido de casa e a partir de então começa sua
jornada de bailes e festas, até sofrer uma desilusão amorosa que a impulsiona

31
ARAÚJO, Maria da Conceição Pinheiro, Tramas femininas na imprensa do século XIX: tessituras de
Ignez Sabino e Délia. Tese de doutorado em Letras. Pontifica Universidade Católica do Rio Grande do
Sul, 2008.
32
Gazeta de Notícias (1874-1977), Echo das Damas (1879-1888), Gazeta da Tarde (1880-1901),
Corymbo (1883-1943), O Paiz (1884-1900), A Família (1888-1897), A mensageira (1897-1900), Escrínio
(1898-1910) e os portugueses Almanach de Lembranças (1851-1932) e Almanach das Senhoras (1871-
1928).
33
TELLES, Norma, ―Maria Benedita Câmara Bormann (Délia)‖, In: MUZART, Zahidé Lupinacci.
Escritoras brasileiras do século XIX. Florianópolis: Editora Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, p.
567 ss.
34
Crítica ácida e negativa de Araripe Júnior, que afirma ser Lésbia um livro nada original que apenas pinta o ―retrato
vulgar de uma mulher tola e orgulhosa‖, foi publicada no Correio do Povo, Rio de Janeiro, 17-18 de novembro de
1890.

12
definitivamente para o mundo das letras. Com isso, Délia encontrou um campo
perfeito para a descrição das limitações criativas impostas à mulher que pretendia se
dedicar às letras. Apesar de tudo, Lésbia, pseudônimo adotado por Arabela, consegue
escrever nos jornais cariocas.
Délia criou uma personagem com tendências abolicionistas que não só
criticava os proprietários de terras e escravocratas, mas também os novos grupos
sociais que emergiam em fins do século XIX, burgueses arrivistas e enriquecidos.
Sua crítica parte dos titulados e baronatos, na época da Guerra do Paraguai que:

Serviram de recompensa aos indivíduos que tiravam os pobres negros da enxada das fazendas
ou do serviço doméstico, todos marcados pelo azorrague, pondo-lhes a farda às costas, sem
lhes consultarem a vontade ou talvez por um requinte de vingança (...) marcharam os párias
para a morte, obedecendo à voz do cabo como haviam obedecido à do feitor, resgatando a sua
liberdade de homens do campo de batalha, derramando o sangue em prol d´essa pátria que
35
lhes fora madrasta, e que tantas vezes haviam regado com seus suores .

Em seguida, a crise e decadência do Império, iniciada com a Guerra do


Paraguai vai se desdobrando nos argumentos da literata e personagem Lésbia. Para
ela, os títulos e honras seriam de direito dos ―beneméritos soldados negros do que
dos brancos traficantes de carne humana‖. Na década de 1880 esses homens brancos,
injustamente coroados com as honrarias ofertadas pela Coroa, ―agora, com o
abolicionismo, apresenta-se novo ensejo de especular com o ébano; todos os dias,
chusmas de humanitários restituem alguns desgraçados à liberdade, recebendo
sempre uma indenização, embora mude de espécie; não é dinheiro, mas é honraria‖.
36

Norma Telles pondera que Délia, sendo mulher ―não faz parte dos
‗mosqueteiros intelectuais‘‖ da geração de 70, apesar de ter ―vivido o mesmo período
de mudanças (...) suas críticas devem ser vistas a partir da perspectiva da escritora à

35
BORMANN, Maria Benedicta [Délia]. Lésbia. Capital Federal: Evaristo Rodrigues da Costa, 1890, p. 90; 2 ed.,
Florianópolis: Editora Mulheres, 1998.
36
Idem, p. 91.

13
margem da cultura central‖.37 Nesse âmbito de identificação marginal, similar à
sugestão de Natalie Davis, pode-se supor que a escritora se identificou com os
escravizados e como parte de sua incitação à mudança social utilizou a metáfora da
escravidão como modo de transmissão da raiva acumulada.38
Josephina Álvares de Azevedo, que também assinava textos como Zefa, foi
proprietária e fundadora do jornal A Família: jornal literário dedicado á mãe de
família, São Paulo, 1888-89; Rio de Janeiro, 1889-98, no qual Ignez Sabino e Délia
participaram regularmente. Zefa destaca-se como uma defensora pioneira do voto
feminino em vários artigos escritos em seu jornal. A potencialidade da obra de
Josephina de Azevedo pode ser depreendida de Retalhos (1890), obra que reúne
artigos publicados na imprensa39 e a peça teatral O voto feminino (1890), que consta
publicada na coletânea de artigos A mulher moderna: trabalhos de propaganda
(1891). Suas obras abordam o direito ao voto e a questão da educação da mulher,
visando a participação do sexo feminino na política e, também, no mundo do
trabalho, defendendo a aptidão feminina para o desenvolvimento de qualquer
atividade profissional, em situação de igualdade com os homens, desde que tivesse
acesso e oportunidade de educação iguais ao sexo masculino.
A peça de teatro O voto feminino é pontual, pois simboliza um desejo
imediato da autora em ver o direito ao voto feminino concretizado e serviu como
propaganda política para sua causa. A peça foi encenada em 26 de maio de 1890 no
Recreio Dramático, um dos teatros mais populares do Rio e depois teve uma versão
impressa, em A mulher moderna e outra versão em folhetins no jornal A Família. Sua
finalidade era a de sensibilizar as autoridades republicanas em relação à condição
política marginal da mulher brasileira. A militância de Josephina Azevedo encerra
um empenho de luta feminina ao final do século XIX exemplificando uma aposta na
força democrática da República, ou de um ideal de República, e no poder
transformador da arte e da literatura, e veiculando para um público amplo as

37
TELLES, Norma. Encantações: escritoras e imaginação literária no Brasil, século XIX. São Paulo:
Intermeios, 2012, p. 391.
38
Idem, ibidem.
39
MUZART, Zahidé Lupinacci. Escritoras brasileiras do século XIX. Florianópolis: Editora Mulheres;
Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000, p. 489.

14
demandas sociais das mulheres de fins do século XIX, entendidas como agentes
históricos empenhados em modificar o quadro social da nação brasileira.
A Família, folha dirigida por Josephina Azevedo, abriu a possibilidade de
participação de todas as mulheres que desejassem escrever um texto literário,
narrativa, conto, prosa ou verso, e mesmo artigos, informação que se encontra na
primeira página de todas as edições do periódico semanal: “Franqueia A Família as
suas colunas a todas as senhoras que a queiram honrar com sua colaboração”. As
leitoras realmente participavam da escrita do jornal, como podemos conferir diante
das muitas colaboradoras que publicaram com certa regularidade. A lista oficial de
colaboradoras em São Paulo foi composta por: Analia Franco, professora em
Taubaté; Maria Amelia de Queiroz, da cidade de Recife; Adelia Barros, poetisa
paulistana; Emiliana de Moraes, esposa de Pedro de Moraes, residente em Ubá
(Minas Gerais); Maria Zalina Rolim, filha do Juiz de Direito de São Roque; Maria
Ramos, professora em Mogi das Cruzes; Maria Augusta, diretora de um colégio em
Juiz de Fora; Luiza Thienpont, professora na Estação de Mineiros; Paulina A. da
Silva, esposa de Santos Silva, residente em São Paulo; Alzira Rodrigues, de São
Paulo e Mlle. Rennotte, diretora do colégio Piracicabano.
Disso, resultou uma profusão de diferentes opiniões sobre formas de se
educar a mulher, e de fazê—la ampliar o escopo de sua participação na vida pública:
temos desde a defesa mais ferrenha de uma abertura para profissões ditas masculinas,
tais como a medicina e o direito, até textos voltados à educação feminina para o
exercício da maternidade e o papel de dona de casa. Contudo, o fato de propiciar um
espaço público para o exercício da escrita feminina, com contos, artigos, poemas foi
um traço marcante do jornal e fundamental para a compreensão dos propósitos
políticos do periódico de Josephina Azevedo. Como exemplo, podemos mencionar o
número 58, de 03 de maio de 1890. Em meio ao acirramento da campanha pelo
direito ao voto feminino, Zefa reafirma o seu compromisso em publicar textos de
todas as mulheres que desejassem publicá-los.
A partir do número 61, de 24 de maio de 1890, A Família mudou de formato:
de revista passou ao formato de jornal. Isso refletia o desenvolvimento do periódico,
que empreendeu melhorias desde então e passou a ser publicado duas vezes por

15
semana, e não mais quinzenalmente, com quatro páginas, e maior número de
anúncios. Há também uma ligeira mudança no título do jornal que não menciona
mais no cabeçario ―jornal literário dedicado à educação da mãe de família”,
somente A Família e em seguida Diretora e proprietária- Josephina Alvares de
Azevedo. Contudo, a partir da edição 96 de 26 de fevereiro de 1891, A Família volta
ao seu formato original de revista, agora contando com gravuras, com destaque para
Joana D´Arc na primeira página. Esse retorno ao formato da revista reflete o pedido
das assinantes que segundo a editora e redatora- chefe colecionavam os números de
A Família sendo por isso o formato em revista mais cômodo para tão fim.
Uma enorme mudança ocorreu a partir do número 100 de A Família, a qual
foi incorporada à Companhia Imprensa Familiar, com sede na Capital Federal. A
partir de então Josephina Álvares de Azevedo não seria mais a única proprietária do
periódico que fundou, embora continuasse sendo a mentora intelectual da folha,
segundo suas próprias palavras publicadas em 02 de abril de 1891, ―como vêem os
nossos leitores, cedendo, por conveniências da folha o direito que me assistiam como
proprietária, não cedi, no entanto, o meu posto de combate‖.
A Companhia Imprensa Familiar tinha como finalidade manter a publicação
semanal da revista A Família. Também pretendia montar um estabelecimento
tipográfico para a impressão da revista e outros trabalhos afins, criando uma oficina
na qual mulheres poderiam exercitar-se na tipografia, litografia e encadernação. A
diretoria era presidida pela literata Ignez Sabino que, enquanto presidenta da
Companhia, também assegurou às leitoras de A Família que os compromissos
políticos de Josephina Azevedo seguiriam os mesmos, ―declaro que a direção mental
do referido jornal continua a cargo da Exma. Sra. D. Josephina Alvares de Azevedo,
a qual permanece no seu posto de valorosa combatente em favor da causa feminina‖.
A finalidade de A Família continuaria a ser: ―órgão de propaganda da emancipação
feminina‖. A divisão do jornal foi feita da seguinte maneira: ―Seção Literária‖, com
novidades do mundo das letras e com as produções literárias da ―Redação Literária‖,
―composta por mulheres de letras de todo o modo habituadas, que fornecerão às
páginas do nosso periódico os frutos de seus trabalhos‖. ―Críticas‖, composta pelos
―estudos sobre todas as composições em prosa e verso que forem enviadas à

16
redação‖ do jornal e, finalmente, ―Colaboração‖, aberta a todas as mulheres que
enviassem seus trabalhos para A Família. No quadro fixo de colaboradoras estavam:
Analia Franco, Ignez Sabino, Octavia Mullulo, Julia Cortines, Maria Clara,
Presciliana Duarte, Maria Zalina Rolim, Perpetua do Valle, Maria Jorantes, Maria
Amelia de Queiroz e a francesa, correspondente de Paris, Mme. Potonié Pierre.
Karoline Carula, ao mencionar as mudanças em A Família, evocou a assertiva
de Josephina Azevedo que disse ter sido tal alteração de propriedade movida em
vista da ampliação de capital, aumentando os investimentos no jornal. 40 Isso se
mostra evidente, mas, acrescentamos, revela a visão de profissionalismo de
Josephina no exercício da escrita jornalística feminina. Assim, essa estratégia pode
revelar que A Família estava apta para competir em pé de igualdade com a grande
quantidade de publicações voltadas para o sexo feminino: elas eram muitas e
obedeciam a diferentes perfis e finalidades como bem mostrou Constância Lima
Duarte em seu mais recente estudo sobre a imprensa feminina e feminista no Brasil
do século XIX.41 Nesse âmbito, A Família destacou-se como um jornal politicamente
atuante e defensor da escrita de autoria feminina no Brasil do século XIX,
registrando em suas páginas um capítulo precioso das lutas políticas das mulheres
brasileiras.

3. O direito à literatura de autoria feminina brasileira do século XIX.


As escritoras mencionadas neste texto empreenderam um esforço político
louvável, que se referiu não apenas à defesa de direitos às mulheres, mas, também,
na defesa do direito de escrever, ser reconhecida pela escrita e apoiar suas
companheiras de profissão, mulheres de letras. Nesse sentido, Antonio Candido lança
luz sobre os significados e o potencial político da literatura que, no caso específico
das escritoras brasileiras do século XIX pesquisadas até o momento, adquire sentidos
amplos nesse período específico de fins do século XIX. Havia uma reivindicação
legítima e urgente de reconhecimento da produção escrita das mulheres que não

40
CARULA, Karoline. ―A imprensa feminina no Rio de Janeiro nas décadas finais do século XIX.‖ Revista
Estudos Feministas, vol. 24 (1), 2015, p. 269.
41
DUARTE, Constância Lima. Imprensa Feminina e feminista no Brasil, século XIX. Belo Horizonte:
Autêntica, 2016.

17
faziam parte do grupo de escritores que se tornariam canônicos e constituiriam
associações legitimadoras da atividade profissional literária, como por exemplo, a
Academia Brasileira de Letras, fundada em 1897.
O Direito à Literatura oferta uma concepção de literatura importante para
entendermos com maior complexidade o papel social das escritoras aqui citadas, com
uma produção literária que pretendia ―assumir posição em face dos problemas‖.42
Nesse caso, segundo Candido, podem-se assumir posições éticas, políticas, religiosas
ou humanísticas. Pelo breve percurso literário traçado aqui, Ignez Sabino, Délia e
Josephina Azevedo defendiam posições políticas bem delimitadas no que dizia
respeito ao papel social marginal da mulher brasileira no século XIX. Todavia, como
Candido nos alerta, não devemos ―afirmar que a literatura só alcança a verdadeira
função quando é deste tipo‖. 43
As autoras que constituem objeto desta pesquisa em desenvlvimento
pretendiam tomar posição política e a literatura engajada produzida por elas estava
intimamente ligada ao substrato social e cultural brasileiro, a partir, sobretudo, de um
lugar social marginal da mulher escritora em relação aos seus contemporâneos
homens de letras. Isso nos abre a possibilidade de reconhecer a construção histórica
de uma identidade social de escritoras no século XIX brasileira, bem como desvenda
uma parte importante da história das mulheres brasileiras, registrada por essa
literatura que ―assumiu posição‖.
Ao mesmo tempo, seguindo os sentidos políticos, sociais e humanizadores
conferidos à literatura, conforme a argumentação de Candido em O Direito à
Literatura, o fato apontado no início deste texto, que consiste na constatação da
exclusão das escritoras brasileiras da narrativa sobre a construção da literatura
nacional do século XIX, nos aponta um problema grave. Se a literatura tem um papel
essencial na constituição de nossa humanidade, daí o seu caráter ―humanizador‖, e se
estamos sendo privadas e privados de uma parte importante da história de nossa
literatura nacional, narrada por escritoras brasileiras, logo, há uma ausência

42
CANDIDO, Antonio. ―O Direito à Literatura‖. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995, p.
180.
43
CANDIDO, Antonio. ―O Direito à Literatura‖, p. 181.

18
importante, uma lacuna profunda em nossa formação, uma parcela fundamental da
história literária nacional que não pode cumprir o seu papel social de ―instrumento
44
consciente de desmascaramento‖ que influenciaria principalmente no
reconhecimento da importância histórica, social, cultural e política das mulheres
como agentes sociais propositivos, engajados e produtivos de saberes e de cultura.
Cabe, portanto, a tarefa de pesquisa dessa parte importante da literatura
nacional do século XIX e concatená-la ao movimento mais amplo de escritores e
escritoras que assumiram uma posição política por meio da produção literária e
jornalística. Nesse âmbito, interpretar a literatura de autoria feminina a partir de
obras teóricas seminais como O Direito à Literatura permite estabelecer uma base
social e histórica sólidas, que sustentam a assertiva e a urgência eminente de dizer:
temos direito à literatura de autoria feminina brasileira no século XIX.

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44
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