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SANDRA SOARES DELLA FONTE

CLÁUDIO ALVES PEREIRA

RELAÇÃO
MESTRE E DISCÍPULO
NA OBRA VIDA DE GALILEU
DE BERTOLT BRECHT
SANDRA SOARES DELLA FONTE
CLÁUDIO ALVES PEREIRA

RELAÇÃO
MESTRE E DISCÍPULO
NA OBRA VIDA DE GALILEU
DE BERTOLT BRECHT

São Carlos, 2022


COMITÊ EDITORIAL

Prof. Dr. André Ricardo de Souza


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

Profa. Dra. Denise de Freitas


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

Prof. Dr. Gabriel de Santis Feltran


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

Isabel Georgina Patronis Dominguez


Especialista em Educação Ambiental pelo CRHEA/USP

Prof. Dr. Jacob Carlos Lima


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

Prof. Dr. Jaime Giolo


Universidade Federal da Fronteira Sul

Dra. Semíramis Biasoli


Fundo Brasileiro de Educação Ambiental (FunBEA)

Prof. Dr. Valdemar Sguissardi


Professor Titular da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
SANDRA SOARES DELLA FONTE
CLÁUDIO ALVES PEREIRA

RELAÇÃO
MESTRE E DISCÍPULO
NA OBRA VIDA DE GALILEU
DE BERTOLT BRECHT

São Carlos, 2022


© Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

Produção editorial • Diagrama Editorial


Capa • Diagrama Editorial com
elementos de pch.vector/Freepik

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD

F682r Fonte, Sandra Soares Della

Relação mestre e discípulo na obra Vida de Galileu de


Bertold Brecht [recurso eletrônico] / Sandra Soares Della
Fonte, Cláudio Alves Pereira. - São Carlos : Diagrama
Acadêmico, 2022.

147 p. : il. ; PDF ; 7,2 MB.


Inclui bibliografia e índice.
ISBN: 978-65-995167-5-7 (Ebook)

1. Educação. 2. Bertolt Brecht. 3. Galileu. I. Pereira,


Cláudio Alves. II. Título.

2022-603 CDD 370


CDU 37

Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410


Índice para catálogo sistemático:
1. Educação 370
2. Educação 37

Rua XV de Novembro, 2190, Centro


13560-240 - São Carlos, SP
Fone: 16 3413-9142
www.diagramaeditorial.com.br

A reprodução não autorizada desta publicação, por qualquer meio,


seja total ou parcial, constitui violação da Lei nº 9.610/ 98.
E
ste livro é dedicado às amigas e aos amigos
do Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia de Minas Gerais, pertencentes à
turma 2019 do Doutorado Interinstitucional do
Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Espírito Santo.
Naquela sala de aula, partilhamos vivências,
conhecimentos, projetos de tese e de melhoria
da educação brasileira. Em meio a nós, Brecht foi
convocado para estimular algumas reflexões so-
bre a sociedade, a ciência e a educação, em espe-
cial sobre a relação professor e estudante. Ali nas-
ceu o projeto deste livro que, embora capitaneado
por nós, traz as marcas das contribuições de cada
um de vocês!


Ora (direis) ouvir estrelas! Certo,
Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto…

E conversamos toda a noite,


enquanto a Via-Láctea, como um pálio
aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: “Tresloucado amigo!


Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?”

E eu vos direi: “Amai para entendê-las!


Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas”.

(Bilac, 1980, p. 47–48).


Bertolt Brecht, desenho por Yuma (2007)
Galileu Galilei (1564–1642), por Ottavio Leoni (1624)
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Bertolt Brecht, desenho por Yuma (2007) 6
Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Bre-
cht_(drawing).png. Acesso em: 20 nov. 2021.
Galileu Galilei (1564–1642), por Ottavio
Leoni (1624) 7
Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Gali-
lee.jpg. Acesso em: 20 nov. 2021.
Bertolt Brecht, foto de Jörg Kolbe 22
Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Bun-
desarchiv_Bild_183-W0409-300,_Bertolt_Brecht.jpg.
Acesso em: 20 nov. 2021.
Encenação de Vida de Galileu (1943), foto
de Fred Erismann 29
Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Sze-
nenbild_aus_dem_%22Leben_des_Galilei%22_von_Ber-
told_Brecht.jpg. Acesso em: 20 nov. 2021.
Galileu com Andrea, foto de Katscherowski
(1971). Encenação da peça Vida de Galileu
pelo grupo Berliner Ensemble em Berlim. 35
Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Bun-
desarchiv_Bild_183-K1004-0032,_Berlin,_Wolfgang_
Heinz_als_%22Galilei%22.jpg. Acesso em: 20 nov. 2021.
La caída de Icaro (1635–1637), pintura de
Jacob Peter Gouwy 108
Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:-
Gowy-icaro-prado.jpg. Acesso em: 20 nov. 2021.
SUMÁRIO
Prefácio 10

Introdução 18

Vida de Galileu e o teatro épico brechtiano 22

Vida de Galileu: diferentes versões em


diferentes contextos 29

A relação entre Galileu e Andrea


na peça brechtiana 35

Galileu: o cientista surrado 56

Galileu-professor e a
democratização do saber 78

Andrea e a busca do professor-herói 89

A transformação do aluno: da
heteronomia necessária à autonomia
desejada 101

Considerações finais 108

Referências 138

Sobre os autores 147


PREFÁCIO

“O MUNDO PRECISA SER


DECIFRADO”: TAREFA DE
CIENTISTAS E PROFESSORES
Do ser humano heterônomo ao
ser humano autônomo

A conquista da autonomia não representa


alcançar um lugar de isolamento no qual o
sujeito individual pense e decida sua vida
de modo abstrato, fora das relações sociais.
(Della Fonte; Pereira, 2022, p. 102)

T
omar a aplaudida obra teatral Vida de Ga-
lileu, de Bertolt Brecht, e, nela, a relação
mestre-discípulo de Galileu com seu auxi-
liar-aprendiz Andrea, como eventual e possível
paradigma inspirador da relação professor-aluno
nos dias de hoje, é de per si uma ideia brilhante.
Fazê-lo quando se comemora o centenário do re-

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Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

nomado filósofo-educador universal Paulo Freire,


uma ideia ainda mais luminosa e oportuna.
Ao ter o privilégio de uma primeira leitura
deste pequeno grande livro, imaginei que Paulo
Freire também teria imenso prazer em fazê-lo.
E talvez pudesse escrever, em carta, e-mail ou
WhatsApp, a seus autores, que, de fato, a educação
– que liberta o homem, que o conduz a sua plena
humanidade e que o transforma de um ser hete-
rônomo em um ser autônomo – não foi uma pura
e simples invenção sua. Ele teria tido o mérito de
propor seu aggiornamento para os alienantes e
perigosos tempos em que vivemos. De Hesíodo
e Sócrates a Galileu Galilei e tantos outros edu-
cadores que antecederam ou sucederam o mestre
retratado por Brecht, a formação do discípulo –
que um dia ombrear-se-á com o mestre e, depois,
o superará, como um ser plenamente humano e
autônomo – tem sido a marca obrigatória dos au-
tênticos educadores ao longo da história.
Como nos lembra a epígrafe da Introdução
desta obra, a história de Galileu Galilei poderia
lançar luzes sobre muitos desafios e questões
atuais: “[…] o debate em curso a respeito dos
domínios da ciência [incluído o “negacionismo
científico”] e da religião, da defesa do ensino de

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RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

ideias criacionistas e dos ataques desinformados


ao intelectualismo e ao conhecimento.” (Livio,
2021, p. 25). Entretanto, dentre essas múltiplas lu-
zes galileanas, os autores – atentos às exigências
da educação hoje, que decorre, como sempre, em
boa medida da adequada e madura relação pro-
fessor-aluno – foram buscar na vida desse pio-
neiro da ciência moderna, em especial na relação
mestre-discípulo entretida no curso de suas ex-
periências e descobertas, modos de pensar e agir
que iluminassem o cotidiano dessa relação peda-
gógica hoje e ajudassem a compreender e superar
suas inerentes contradições.
Para chegar aos possíveis aportes e eventuais
ensinamentos que a obra Vida de Galileu, de
Brecht, poderia trazer para a relação mestre-dis-
cípulo nos tempos atuais, os autores fazem o ca-
minho normal exigido por um estudo como este:
contextualizar a obra de Brecht, suas diferentes
versões e em que circunstâncias histórico-sociais
se deram, e que condicionavam a própria versão
do autor sobre estes aspectos particulares da vida
de Galileu. Brecht, mostram os autores, faria com
que cada uma das três versões da peça teatral
levasse os seus expectadores a refletir sobre os
problemas vividos pela ciência em cada um dos

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Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

diferentes momentos do período que vai dos anos


1930 aos anos 1950. A primeira versão, elaborou-
-a em seu exílio na Dinamarca, quando fugia do
nazismo que se impunha em sua pátria e fazia
da ciência instrumento eficaz e poderoso desse
regime de horror; a segunda, redigiu-a no exílio
norte-americano, ao tempo em que a ciência era
também manipulada na produção de armas nu-
cleares produtoras das tragédias mortíferas de Hi-
roshima e Nagasaki; a terceira, concluiu-a no seu
retorno à pátria alemã, no pós-guerra, quando
eram manifestos e crescentes os riscos de utiliza-
ção da ciência para a destruição da humanidade
no contexto da Guerra Fria.
O que emerge com força da leitura dessa reme-
moração histórica atualizada da vida de Galileu
é a insuperável contradição presente na aventura
da ciência moderna desde seu nascimento à con-
temporaneidade. Tal contradição constitui-se de
pelo menos dois principais elementos. Para Ga-
lileu, nas palavras de Brecht, a ciência teria como
única finalidade o alívio da “canseira da existência
humana”. A grande questão é como conciliar esta
finalidade com os usos a que a ciência se prestava
nos tempos do teatrólogo e poeta alemão, que in-
cluíam o horror da destruição de milhões de seres

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RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

humanos e ameaçavam, como continuam a amea-


çar, a sobrevivência total da humanidade.
Ao fazerem um breve apanhado de partes cen-
trais dessa obra brechtiana, os autores – dentre
tantos aspectos que chamam a atenção de cada
leitor, segundo sua própria experiência, seus in-
teresses e suas indagações – irão fazer, explícita
ou implicitamente, alguns destaques que, no meu
entender, merecem ser aqui apontados: 1) eviden-
temente, o papel pioneiro de Galileu quando dos
primeiros passos da ciência moderna; 2) o papel,
retardador do avanço da ciência moderna, exerci-
do por visões e crenças obscurantistas, fortaleci-
das, ao longo dos séculos, por múltiplos interesses,
sacralizadas pelas autoridades eclesiásticas e ga-
rantidas pelas civis dos Estados laicos ou teocráti-
cos; 3) a finalidade da ciência, do conhecimento, e
sua relação com o bem-estar da humanidade, do
que decorreria sua imprescindível aproximação
com o povo; 4) a distinção e a ideal complemen-
taridade entre o trabalho do cientista e o do pro-
fessor, assim como o papel subversivo, revolucio-
nário, de um e de outro, quando criam a dúvida e
despertam o olhar crítico do povo; 5) a não neu-
tralidade da ciência e os perigos da fé ingênua que
nela depositam cientistas e não cientistas.

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Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

Assim como, ao ler este livro, foi inevitável


pensar na figura, no pensamento e na ação filo-
sófico-educativa de Paulo Freire, a explicitação,
ainda que não exaustiva desses cinco pontos aci-
ma arrolados, fez-me pensar no alcance dessas
reflexões dos autores na constituição de um con-
junto de questões cruciais sobre a realidade dos
tempos presentes no mundo e, em especial, em
nosso país.
Será inevitável, acredito, à maioria dos leitores
desta obra pensar, de forma direta ou mediati-
zada, no que está ocorrendo nos anos recentes
em nosso país, seja no campo da educação su-
perior e básica, seja no da produção científica e
formação de cientistas. Tanto um campo como
o outro, complementares e imbricados, são ob-
jeto de destruição por um processo com duas
faces: obscurantista, anticientificista e anti-in-
telectualista, de um lado, e privado-mercantilis-
ta e predatória do Fundo Público, de outro. Os
instrumentos usuais neste processo, em tempos
de neoliberalismo exacerbado, são tanto a des-
qualificação da educação, mormente pública, em
todos os níveis, assim como da ciência e das ins-
tituições formadoras de cientistas, e a crescente
tentativa de transformar tais instituições, no caso

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RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

universitárias e de pesquisa, em organizações so-


ciais produtoras de ciência tecnológica inovado-
ra a serviço, quase exclusivo, do mercado. Além
de se promover, por todos os meios, a desquali-
ficação, discursiva e de fato, das ciências básicas,
sociais e humanas. E isto sendo posto em práti-
ca mediante legislação e normas jurídicas, mas,
especialmente, por meio do instrumento mais
persuasivo e eficiente dentre tantos que é a sis-
temática e progressiva redução dos recursos do
Fundo Público para instituições universitárias e
de pesquisa estatais públicas.
Será também inevitável aos leitores deste livro
olhar para o presente e o futuro próximo de nos-
so país e para o papel insubstituível de cientistas
e professores na obra por excelência da ciência
e da educação de transformar crianças, jovens e
adultos de qualquer idade, de seres dependentes
e heterônomos em seres plenamente humanos e
autônomos para a construção coletiva, comum,
de uma nação justa, civilizada e soberana.
Muitos aspectos deste livro poderiam ainda ser
apontados para convencer seus futuros leitores a
lê-lo com o prazer com que o li e para considerá-
-lo um rico ensaio sobre temas sempre, especial-
mente hoje em nosso país, de enorme relevância e

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Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

atualidade. Acredito, entretanto, que o conteúdo


destacado nas páginas acima seja suficiente para
mostrar que ele deverá ter a melhor acolhida de
tantos que se preocupam com os percalços que
enfrentam a ciência e a educação em nosso país e
a urgente necessidade de superá-los.

Piracicaba, verão de 2021.

Valdemar Sguissardi
Prof. Dr. Titular (aposentado) da UFSCar

17
INTRODUÇÃO

De fato, que história é melhor contar do


que a de Galileu se queremos lançar luz
sobre preocupações atuais, entre elas o de-
bate em curso a respeito dos domínios da
ciência e da religião, da defesa do ensino
de ideias criacionistas e dos ataques desin-
formados ao intelectualismo e ao conheci-
mento? (Livio, 2021, p. 25).

N
a história do pensamento ocidental, existe
uma longa e antiga tendência que se reno-
vou com o pensamento positivista do sé-
culo XIX que arroga a supremacia do conceitual
sobre o expressivo. Sob esse prisma, o trabalho do
pensamento, em especial o conhecimento cientí-
fico, coloca-se em uma posição de superioridade
diante do campo estético-artístico.
Como forma de provocar o imaginário positi-
vista em sua miopia cientificista, tomamos as ma-
nifestações artísticas, em especial a obra de arte
literária, como fonte de problematização salutar
dos problemas humanos, reconhecendo que “As

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Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

artes – e a literatura, em especial – são a expressão


mais importante da nossa apreensão sensível des-
sa dinâmica real.” (Konder, 2005, p. 65).
No campo educacional, o estudo de Snyders
(1996), em seu livro Alunos felizes (publicado na
França em 1991), sobre a alegria na escola a partir
de textos literários é um marco no campo das pe-
dagogias críticas. Nesse livro, sem descartar obras
teóricas, o autor desloca o acento da literatura
especializada e busca, em romances, biografias,
autobiografias, diários, matéria para sua reflexão.
Snyders (1996, p. 12) acredita que os textos literá-
rios podem ajudar “[…] a precisar, a enriquecer,
até mesmo a alterar o tema da alegria […]”.
Imbuídos por iniciativas como essa, tomamos a
peça teatral Vida de Galileu (Leben des Galilei), de
Bertold Brecht (1898–1955), como objeto de nossa
reflexão. Em tempos de recrudescimento do anti-
-intelectualismo e do anticientificismo, pode cau-
sar surpresa eleger para debate uma dramaturgia
cujo protagonista é um cientista que viu suas des-
cobertas e pesquisas serem negadas por muitas
autoridades político-religiosas de sua época.
A negação da ciência ganha força na contem-
poraneidade em diversos âmbitos da vida; abarca,
por exemplo, questões relativas ao passado (nas

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RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

várias tentativas de revisionismo do Holocausto,


de ditadura militares, da escravidão moderna,
da prática de tortura, do genocídio de indígenas
e quilombolas etc.), às mudanças climática e ao
formato da terra. Os atuais movimentos antiva-
cinas destilam desdém em relação aos quase seis
milhões de óbitos no mundo registrados em fe-
vereiro de 2022 devido à pandemia da Covid-19,
alcançando o Brasil aproximadamente 640 mil
mortes no mesmo momento.
Esse clima ideológico ganha materialidade no
campo das políticas públicas nacionais para a edu-
cação e para a ciência. Sguissardi (2000a, 2000b)
observa que o neoliberalismo ultraliberal vivido
no país desde o impeachment/golpe da Presiden-
ta Dilma tem sido nefasto para o campo educacio-
nal, em especial para a educação superior, locus
principal da pesquisa acadêmica brasileira.
Submetida aos interesses privado-mercantis, a
educação tem sofrido um “efeito bonsai” (Bian-
chetti; Sguissardi, 2017, p. 109, grifo do autor)
que
[…] pode ser demonstrado se examinadas as
medidas relativas ao financiamento, seja do Mi-
nistério de Ciência, Tecnologia, Inovação e Co-
municações (mctic), ao qual está vinculado o
Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq); seja da
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Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal


de Nível Superior (capes), responsável pelo
financiamento, regulação/avaliação e controle
dos mais de 4.400 programas de pós–graduação
de todas as IES de educação superior públicas e
privadas; seja do capital e custeio da IES fede-
rais. (Sguissardi, 2020b, p. 220).

Diante dessa situação, a peça de Brecht mos-


tra-se atual, cheia de vitalidade e oferece abertura
para frentes inesgotáveis de indagações. Interes-
sa-nos, em especial, captar e compreender como a
obra delineia a relação entre Galileu e seu discípu-
lo Andrea Sarti. Parece-nos que a análise da rela-
ção entre mestre e discípulo delineada por Brecht
pode nos oferecer mutatis mutandis provocações
para compreender a relação entre professor e alu-
no no contexto escolar.

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VIDA DE GALILEU E
O TEATRO ÉPICO
BRECHTIANO

Bertolt Brecht, foto de Jörg Kolbe

22
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

N
a sua trajetória artística, Bertolt Brecht pas-
sou por muitas mudanças de tal modo que
“[…] sua obra e suas concepções teóricas
apresentam diversas fases.” (Konder, 2013, p. 121).
Foi no clima político e cultural de consolidação
do teatro épico que Brecht iniciou a escrita de
Vida de Galileu. Ao escrevê-la, o dramaturgo sa-
bia que era preciso se preocupar com a questão da
forma da peça (estrutura, gênero), utilizando-se
de uma linguagem adequada e, portanto, capaz
de transmitir o conteúdo intelectual proposto. Se-
gundo Konder (2013, p. 122), Brecht concluiu que
a forma mais eficaz de conseguir o seu intento era
por meio do teatro épico, “[…] o teatro que nar-
ra a ação sem o recurso excessivo aos elementos
ilusionistas.”.
Bertolt Brecht fugia da forma pomposa do tea-
tro dramático e trazia o foco para aquilo que era
encenado. Nas palavras do próprio autor, “O tea-
tro épico pode se dar como algo mais rico, mais
complexo, mais evoluído [que o dramático] em
todos os seus detalhes, sem precisar fundamen-
talmente de nada além do que se passa numa cena
de rua para ser grande teatro.” (Brecht, 1997, p.
102 apud Costa, 2000, p. 43).

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RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

Antes de Brecht, dramaturgos como Erwin Pis-


cator e Alfred Döblin já trabalhavam esse tipo de
encenação e qualificavam seu trabalho de teatro
político “[…] simplesmente porque a esfera do
político é a esfera do épico e o teatro que trata
diretamente de assuntos políticos é teatro épico.”
(Costa, 2010, p. 215).
Contra uma arte teatral de legado aristotélico
que leva o espectador a uma identificação sen-
timental com os personagens, Brecht caminhou
para uma arte que demandava distanciamento:
“O público não deve ser arrastado pela ação repre-
sentada como pela correnteza de um rio. Os acon-
tecimentos da trama devem se encadear, mas os
elos desse encadeamento devem permanecer bem
visíveis.” (Konder, 2013, p. 127).
O efeito de distanciamento (também chamado
de estranhamento ou desfamiliarização) pode ser
compreendido, segundo Jameson (2013), em qua-
tro sentidos distintos, mas articulados. O primei-
ro deles é evocado pelos próprios termos usados
para qualificá-lo: “Tornar algo estranho, fazer-nos
olhar para isso com novos olhos, implica a exis-
tência de uma familiaridade geral, de um hábito
que nos impede de realmente olhar para as coisas,
uma forma de dormência perceptiva […]” (Jame-

24
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

son, 2013, p. 64). Em uma segunda abordagem, as


próprias técnicas artísticas são vistas como “estra-
nhadas”: a atuação dos atores lembra à audiência
que ele não se transforma na personagem, assim
como o domínio físico do cenário, o uso de in-
tertítulos e da música advertem que tudo se trata
de uma encenação. O que se pretende com isso
(e aqui se encontra o terceiro sentido) é desativar
ou eliminar a empatia ou simpatia do público. Por
seu turno, a quarta formulação do efeito de dis-
tanciamento aglutina as descrições anteriores e é,
em última instância, política:

Aqui, o familiar ou habitual é novamente iden-


tificado como o ‘natural’, e seu estranhamento
desvela aquela aparência, que sugere o imutável
e eterno, e mostra que o objeto é ‘histórico’. A
isso deve-se acrescentar, como corolário políti-
co, feito ou construído por seres humanos e, as-
sim também pode ser mudado por eles ou com-
pletamente substituído. (Jameson, 2013, p. 65).

Ao invés de uma superposição das emoções


em detrimento da inteligência, Brecht força um
distanciamento do espectador; o que se busca é a
reflexão, não a identificação com o ator. Sob essa
ótica, “A arte do teatro épico consiste em provocar

25
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

espanto, não empatia. Em uma fórmula: o público,


em vez de sentir empatia pelo herói, deve apren-
der a se espantar com as situações em que esse
herói se encontra.” (Benjamin, 2017, p. 25).
No palco, encena-se o mundo criado pelos
humanos, histórico, contraditório e passível de
transformação. Suas personagens são retratadas
como sujeitos em formação, “[…] definidos pela
interação dialética entre o condicionamento so-
cial (elemento objetivo) e a escolha que fazem de
si mesmos, a cada instante, dentro do quadro cir-
cunstancial dado (elemento subjetivo).” (Konder,
2013, p. 123).
Dentro dessa proposta, Benjamin (2017, p. 40,
grifo nosso) observa que Brecht leva ao palco um
herói sui generis: “[…] o teatro épico é o teatro
do herói surrado [das Theater des geprügelten Hel-
den]. O herói não surrado não se transforma em
pensador […]”. O público não vive um extravasa-
mento de afetos pela empatia e identificação com
o destino trágico do herói. Pelo contrário, desen-
volve-se uma tensão. Como explica Araújo (2015,
p. 207):

Um herói reflexivo, subjetivo, ambíguo e huma-


nizado, substitui um herói com personalidade
imutável, inevitavelmente vencedor, nobre e
26
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

exemplar. O objetivo desta alteração ‘climática’


é promover o espanto e a admiração pelas rela-
ções que o herói desenvolve ao invés da simpatia
e a admiração pelas suas ações fantasistas.

Ao falar em “herói surrado”, Benjamin vale-se


do verbo alemão prügel no particípio passado ge-
prügelt, com o sentido de espancado, esmurrado,
punido violentamente, açoitado, golpeado. Há aí
a ideia de ser submetido a uma surra. Um herói,
portanto, ameaçado e ferido. Por ser submetido a
tal violência, esse herói também estaria na condi-
ção de vencido? Em certa medida, sim. Benjamin
(1985) escreve que, em seu cortejo triunfal, os do-
minadores espezinham corpos prostrados e feri-
dos no chão. Pisoteiam sujeitos abatidos. É essa
experiência que ganha roupagem dramatúrgica
em Brecht; nesse contexto, suas personagens são
despidas da magnanimidade trágica.
As palavras de Winston Smith, do romance
1984, ilustra bem essa desconfiguração do heroi-
co quando, em um dos seus momentos de tortura,
pensa: “Nunca, por nenhuma razão, se poderia
desejar que a dor aumentasse. Da dor, só se po-
dia desejar uma coisa, que parasse. […] Em face
da dor não há heróis, não há heróis, ele pensou e
tornou a pensar, torcendo-se no chão, segurando
27
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

à-toa o braço esquerdo inválido.” (Orwell, 2005,


p. 228).
Sob uma perspectiva dialética e materialista,
alerta Benjamin (1985), a reflexão histórica des-
vencilha-se do lugar dos vitoriosos. Nas ruínas da
festa dos vencedores, pulsa o que se pretende ca-
lar: sob o verniz da imutabilidade e da harmonia,
encontram-se a mudança e a luta.
A dramaturgia brechtiana caminha nesse sen-
tido: traz para a cena uma figura distante da no-
breza do herói trágico em seu destino inevitável e
natural. Por essa razão, essa personagem está su-
jeita a ser indagada e a indagar-se em sua relação
com as contradições do mundo. O público tem a
chance de interpelá-la na mesma medida em que
ela própria, em sua derrocada, experimenta a ati-
vação de sua consciência em um pensar reflexivo
ao longo da peça. Encenar a condição histórica
desse herói surrado implica trazer, para a narra-
tiva artística, o revés da vitória: o “[…] despertar
no passado as centelhas da esperança […]” (Ben-
jamin, 1985, p. 224) e a “[…] tarefa de libertação
em nome das gerações de derrotados […]” (Ben-
jamin, 1985, p. 229). Em que medida Brecht confe-
riu ao seu Galileu essa roupagem é o que veremos
adiante.

28
VIDA DE GALILEU
Diferentes versões em diferentes
contextos

Encenação de Vida de Galileu (1943), foto de Fred Erismann

29
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

S
egundo Jameson (2013), a peça teatral históri-
ca é, ao mesmo tempo, alegórica e antialegó-
rica. Ela remete evidentemente a uma realida-
de e a um referente, isto é, a um evento histórico
real que se pretende representar, de modo mais ou
menos insistente, a partir de contornos artísticos.
No horizonte desse projeto de caráter eminente-
mente realista, abre-se uma distância alegórica no
interior da obra, uma quebra de seu significado
que remete a outra coisa: “A alegoria é, portanto,
ferida às avessas, uma ferida no texto; pode ser es-
tancada ou controlada (particularmente por uma
vigilante estética realista), mas jamais inteiramen-
te eliminada como possibilidade.” (Jameson, 2013,
p. 170). Desse modo, diante de uma peça histórica,
irrompem questões, como: “[…] por que esta, por
que agora, qual o propósito de exibir esse episó-
dio histórico em particular entre tantos inumerá-
veis relatos do passado?” (Jameson, 2013, p. 171).
A observação jamesoniana é profícua para nos-
sa abordagem de Vida de Galileu. A peça foi escri-
ta em 1938–1939 e ganhou várias versões. Foram
quase duas décadas ao longo da vida de Brecht até
chegar a sua última elaboração. Nesse processo,
cada releitura artística da vida da principal figura
da revolução da ciência moderna possui um solo

30
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

histórico no próprio contexto em que vive Brecht.


Portanto, suas versões abrem um diálogo entre a
vida do seu Galileu literário e a sua própria vida.1
Segundo Fitas (1998), a versão dinamarquesa
da obra foi escrita entre os anos de 1938 e 1939.
A segunda versão, escrita nos Estados Unidos e
em colaboração com Charles Laughton, data de
1947. Por fim, a terceira versão do clássico é co-
nhecida como a versão alemã, finalizada em 1954.
Contudo, segundo o mesmo autor, mesmo antes
da primeira versão da obra, os arquivos de Brecht
apresentam diversos esboços de Vida de Galileu
que, possivelmente, datam entre as décadas de
1920 e 1930.
As três versões da obra deixam evidente o pro-
cesso de amadurecimento de Brecht, tanto social
quanto artisticamente. A primeira versão de Ga-
lileu foi escrita durante a sua fuga da Alemanha e
exílio na Dinamarca, período em que o nazismo
ascendeu politicamente ao poder. Segundo Fitas
(1998), já exilado na Dinamarca, Brecht manteve
estreito relacionamento com o grupo de cientistas
do grupo de investigação de Niels Bohr na Uni-
versidade de Copenhagen, ocasião em que pôde

1 Sobre os paralelismos entre Brecht e Galileu, conferir Al-


candre (1999).
31
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

refinar o seu já amplo estudo da área da Física, es-


pecialmente para as discussões que envolviam as
teorias aristotélico-ptolomaicas e as novas teorias
Copérnico-Galilaicas.
Ao recorrer à personagem de Galileu Gali-
lei, Brecht buscava trazer para a cena a discus-
são sobre as verdades absolutas, o alinhamento
ideológico e político requerido por aqueles que
comandam o Estado e detêm o poder político
e, ao mesmo tempo, apontar que o progresso da
ciência deve ser utilizado para o progresso da hu-
manidade.
Já exilado nos Estados Unidos, na segunda ver-
são da obra, é possível observar um Galileu atento
ao mais novo impacto do progresso tecnológico:
as bombas nucleares de Hiroshima e Nagasa-
ki, tidas por Brecht como o “pecado mortal” da
ciência. Assim, a versão americana da peça traz
uma reflexão sobre o uso que a humanidade tem
feito do conhecimento trazido à tona pela ciência,
mostrando um Galileu mais crítico sobre o papel
da ciência e do cientista:

[…] Brecht defende uma ciência como meio


libertador do homem sujeito ao trabalho servil
e animal, como instrumento produtor de uma
verdade que jamais deve ser sonegada ao povo
32
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

e que deve ser posta ao seu serviço, enquanto


forma de libertação. E porque esta relação está
prestes a atingir um ponto de ruptura com o
holocausto de Hiroshima e Nagasaki, é de facto
sobre a cena do Galileo prisioneiro que se farão
sentir mais fortemente as revisões do dramatur-
go sobre a personagem de Galileo Galilei. (Fi-
tas, 1998, p. 11–12).

A versão alemã da obra, por sua vez, desenha


um Galileu que tem consciência do quanto os
seus descobrimentos contribuíram para o pro-
gresso da ciência e para os seus efeitos adversos;
agora, Brecht já acompanhava os primeiros pas-
sos da corrida armamentista dos Estados Unidos
e da União Soviética e o aumento da distância
entre o avanço tecnológico e o progresso da hu-
manidade.2
É de se considerar a importância que essa peça
tem para entendermos Brecht: sua reescritura
permitiu que ela acompanhasse muitos anos da

2 Para o propósito deste livro, tomaremos como base o


texto da última versão da obra, conhecida como a versão
alemã, traduzida para o português e publicada no volu-
me 6 de Bertolt Brecht – Teatro Completo pela Editora
Paz e Terra. Essa opção nos impede de rastrear se houve,
ao longo dessas três versões, mudanças na relação entre
Galileu Galilei e Andrea Sarti.
33
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

vida de seu autor. Ela também pode ser vista como


uma espécie de testamento. Quando faleceu em
1956, Brecht dirigia os ensaios dessa peça para o
Berliner Ensemble, sua companhia de teatro.
Mas por que tematizar a relação entre o mes-
tre e o discípulo nessa obra-prima? O que há de
especial no vínculo estabelecido por Brecht entre
Galileu Galilei e Andrea Sarti?

34
A RELAÇÃO ENTRE
GALILEU E ANDREA NA
PEÇA BRECHTIANA

Galileu com Andrea, foto de Katscherowski (1971)

35
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

A
peça está organizada em quinze atos, cada
ato possui um título e uma epígrafe. Segun-
do Jameson (2013, p. 70), no teatro brechtia-
no, os títulos segmentam e emolduram as cenas,
funcionam como “[…] remanescentes dos cabe-
çalhos de capítulos dos romances do século xviii
que anunciam seus conteúdos aos leitores curio-
sos, ou talvez relutantes […]”. Nesses títulos nar-
rativos, Brecht assinala as cenas não apenas como
episódios com uma temporalidade própria, mas
dentro da cronologia maior da história. Essa auto-
nomização estética dada a cada ato tem, segundo
Jameson, um verdadeiro sentido analítico:

[…] um processo agradável, uma espécie de


jogo criativo no qual novos atos se formam a
partir de pedaços de outros mais antigos, nos
quais toda a superfície reificada de um período
aparentemente situado além da história e além
da mudança submete-se agora a uma primeira
desconstrução lúdica, antes de chegar a uma
real reconstrução coletiva social e revolucioná-
ria. (Jameson, 2013, p. 75).

Os títulos e epígrafes funcionam como um cor-


te na narrativa, uma espécie de sujeira disfuncio-
nal adicionada à prática teatral, um dos recursos

36
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

técnicos usados por Brecht a serviço do efeito de


estranhamento, isto é, do distanciamento crítico
em relação ao que é encenado.
Ao contrário do que o título pode sugerir, Vida
de Galileu não se propõe a fazer uma biografia
completa do cientista. A peça teatral aborda o in-
tervalo entre 1609 e 1642. Essa opção de Brecht
leva em consideração um fato particular: “Se até
1609 os experimentos de Galileu se concentraram
em objetos que caíam em direção ao centro da
Terra, desse ano em diante ele voltou sua atenção
para o céu.” (Livio, 2021, p. 67). As descobertas
mais impactantes de Galileu ocorreram a partir
de 1609, quando ele passou a priorizar os estudos
astronômicos (com o auxílio do telescópio) e não
os mecânicos. Portanto, o texto brechtiano abran-
ge os principais avanços das pesquisas de Galileu,
assim como as reações suscitadas, culminando
em sua condenação pela Igreja à prisão domiciliar
a partir de 1633 até sua morte em 1642. O penúlti-
mo ato traz o título: “1633–1642. Galileu Galilei
vive numa casa de campo nas proximidades
de Florença, prisioneiro da inquisição até
sua morte. Os Discorsi” (Brecht, 1999, p. 154).
No entanto, Brecht não encena a morte do cientis-
ta. A última ação narrada é a finalização da obra

37
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

Discorsi (Discursos e Demonstrações Matemáticas


Relativas a Duas Novas Ciências) em 1635 e seu
envio clandestino para fora da Itália, “[…] na es-
perança de conseguir uma editora em algum lugar
fora do círculo de domínio da Igreja Católica e
dos jesuítas.” (Livio, 2021, p. 216).3
A peça suscita muitas reflexões ao longo de
seus quinze atos. Pontuamos, nesta seção, algu-
mas cenas acerca da relação entre o mestre Ga-
lileu Galilei e o menino Andrea Sarti, o seu mais
atento e fiel discípulo. Sabemos que esse tipo de
“recorte” representa uma afronta a um texto com-
plexo, com mais de 40 personagens. Contudo,
contraditoriamente, essa escolha permite que re-
nunciemos alguns debates que o texto abre a fim
de priorizar, em um movimento desacelerado, a
compreensão da relação de Galileu e Andrea.
Andrea aparece no primeiro ato da obra como
um garoto de dez anos de idade que vive na mes-
ma casa do mestre, já que sua mãe é a governanta
da residência. Pela manhã, ao trazer o que comer
a Galileu e comunicar-lhe que o leiteiro ameaça
não deixar mais o leite fiado, o garoto é apresenta-
do ao astrolábio com a representação do modelo

3 O livro Discorsi foi publicado em 1638 por uma editora


nos Países Baixos.
38
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

do sistema solar de acordo com a teoria ptolomai-


ca. Segundo Galileu, o modelo estaria ultrapassa-
do e ele lhe explica o porquê. Ao invés de sim-
plesmente defender a teoria copernicana, Galileu
fez questão de demonstrar porque acreditava que
era a Terra que girava em torno do Sol, e não o
contrário. Colocando o garoto sentado em uma
cadeira, Galileu ergueu-o e os fez transladar ao
redor de uma bacia com água (representando o
Sol), explicando-lhe detalhadamente como era o
movimento dos corpos celestes:

Galileu — […] Galileu põe a bacia de ferro no


centro do quarto. Bem, isto é o Sol. Sente-se aí.
Andrea se senta na única cadeira; Galileu está de
pé, atrás dele. Onde está o Sol, à direita ou à es-
querda?
Andrea — À esquerda.
Galileu — Como fazer para ele passar para a
direita?
Andrea — O senhor carrega a bacia para a di-
reita, claro.
Galileu — E não tem outro jeito? Levanta An-
drea e a cadeira do chão, faz meia-volta com ele.
Agora, onde é que o Sol está?
Andrea — À direita.
Galileu — E ele se moveu?
Andrea — Ele, não.
39
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

Galileu — O que é que se moveu?


Andrea — Eu.
Galileu berrando — Errado! Seu burro! A ca-
deira!
Andrea — Mas eu com ela!
Galileu — Claro. A cadeira é a Terra. Você está
em cima dela. (Brecht, 1999, p. 59–60, grifo do
autor)

Desde o primeiro ato, percebe-se a influência


do mestre no cotidiano do garoto. Dona Sarti, sua
mãe, adverte o patrão sobre as “bobagens” que ele
costuma ensinar ao filho, que este corria o risco
de ser repreendido pelos padres, pois o que ele re-
pete ao ouvir do mestre são coisas que vão contra
a Igreja Católica. Quando Galileu espeta uma las-
ca de madeira numa maçã para demonstrar por-
que as pessoas e objetos não caem da Terra, ao gi-
rar em torno do Sol, Andrea não somente entende
a explicação como também lembra da constante
incredulidade da mãe: “Essa é boa; ela vai ficar de
boca aberta.” (Brecht, 1999, p. 62).
Ainda nesse mesmo ato da obra, Galileu alerta
o discípulo de que as “descobertas” tratadas por
eles não poderiam ser comentadas com outras
pessoas, pois as autoridades haviam proibido.
Andrea se mostra confuso, pois aquelas eram as

40
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

verdades. Galileu, no entanto, explica que aqui-


lo eram hipóteses e que, como tal, careciam de
fatos para comprová-las. No final desse ato, Ga-
lileu reserva ao discípulo Andrea a honra de ser
o primeiro a olhar pelas lentes do seu telescópio
depois de ouvir uma confissão do menino:

Andrea — Eu também quero ser físico, senhor


Galileu.
Galileu — Acredito, considerando a infinida-
de de questões que resta esclarecer em nosso
campo. Galileu foi até a janela, e olhou através
das lentes. O seu interesse é moderado. Andrea,
dê uma olhada.
Andrea — Virgem Maria, chegou tudo perto. O
sino do campanário, pertinho. Dá para ler até
as letras de cobre: Gratia Dei. (Brecht, 1999, p.
69)

No terceiro ato da obra brechtiana, já tarde da


noite, ao descobrir que a Lua e a Terra eram cor-
pos celestes iluminados, Galileu insiste para que
Dona Sarti acorde o pequeno Andrea para que
ele próprio possa ver a descoberta pelas lentes do
telescópio:

Dona Sarti entrando — O senhor quer alguma


coisa, seu Galileu?
41
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

Galileu — Quero, quero Andrea.


Dona Sarti — Andrea? Ele está na cama, dor-
mindo.
Galileu — Será que ele não pode acordar?
Dona Sarti — O senhor está precisando dele?
Galileu — É para mostrar uma coisa, uma coi-
sa de que ele vai gostar. Ele vai ver uma coisa
que, fora nós, ninguém viu, desde que a Terra
existe.
Dona Sarti — É esse tubo outra vez?
Galileu — É o meu tubo, Dona Sarti.
Dona Sarti — E para isso eu vou acordar o
menino no meio da noite? O senhor está bom
da cabeça? De noite ele precisa dormir. Mas
nem por sonho eu vou acordar o menino.
Galileu — De jeito nenhum?
Dona Sarti — De jeito nenhum. (Brecht,
1999, p. 81–82, grifo do autor)

O quarto ato mostra Galileu e sua família na


corte de Florença, local para onde se mudaram
com a intenção de divulgar as descobertas do fí-
sico. Andrea é um entusiasta do mestre, sendo o
responsável por apresentar o telescópio aos no-
bres da corte florentina. Estando Galileu ainda na
universidade e diante da impaciência dos nobres
em esperá-lo, Andrea é, então, destacado por sua
mãe para acompanhá-los ao instrumento. O dis-
42
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

cípulo se porta como o próprio Galileu, repetindo


falas e a linguagem corporal do mestre. Tomado
pelo mesmo entusiasmo de Galileu, Andrea ima-
ginava que os nobres se interessariam pelo teles-
cópio e por todas as verdades que o instrumento
revelara sobre o céu.
No entanto, todos se apegaram ao modelo aris-
totélico do sistema solar e à defesa dos dogmas
cristãos: a Terra, habitada pelo homem, criado à
imagem e semelhança de Deus, não poderia ocu-
par outro lugar senão o centro, lugar de destaque
absoluto no céu e em qualquer modelo de sistema
supralunar. Além disso, buscaram deslegitimar o
telescópio como um dispositivo que cria fenôme-
nos não existentes.
Diante dessas reações, Galileu assevera que a
Igreja não poderia desconsiderar as pesquisas que
sucederam as observações de Aristóteles, pois o
filósofo não teria tido a oportunidade de olhar
pelas lentes do telescópio, instrumento que ago-
ra trazia a verdade sobre o universo supralunar:
“A verdade é filha do tempo e não da autoridade.
A nossa ignorância é infinita, vamos reduzi-la
de um centímetro!” (Brecht, 1999, p. 95, ato 4),
­diz-lhes Galileu.

43
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

O telescópio foi desqualificado por ser feito por


artesãos e, sob esse aspecto, para os nobres, ele
não teria potencial para questionar a “verdade”
do modelo aristotélico. Andrea se mostra decep-
cionado ao notar que aqueles visitantes não esta-
vam ali interessados em verdades:

Pausa. De repente, Andrea faz meia-volta e a


passo rígido atravessa o quarto inteiro para sair.
Dá de encontro com a mãe, que o segura.
Dona Sarti – O que foi?
Andrea – Eles são burros. Livra o braço e sai
correndo.
O Filosófo – Pobre criança. (Brecht, 1999, p.
93–94, grifo do autor).

44
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

Figura 1 – Galileu, encenado por Claes Gill (1910–1973).

Encenação de Vida de Galileu no Teatro Odense (Dinamarca),


em 1960 (fotógrafo desconhecido, foto do acervo da Biblioteca
Nacional da Noruega).
Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Claes_Gill_
(1910-1973)_i_Galileis_liv_p%C3%A5_Odense_teater,_1960_
(33026679414).jpg . Acesso em: 20 nov. 2021.

45
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

O nono ato traz um Andrea já moço. Ele agora


se mostra atento aos estudos de outros pesqui-
sadores europeus e encoraja Galileu a voltar aos
estudos. Nesse momento da obra, Brecht retrata
um Galileu receoso de retomar as pesquisas sobre
o sistema solar, visto que a Igreja Católica lhe per-
mitira manter-se em liberdade mediante “voto de
silêncio”. Andrea, contudo, insiste para que eles
possam investigar as manchas solares, tomando
por argumento, dentre outras coisas, que cente-
nas de cartas de toda a Europa chegavam à sua
residência perguntando o que o grande físico
pensava das novas descobertas feitas por outros
estudiosos europeus. As cartas atestavam que o
público queria ouvi-lo.
Com a notícia de que o novo papa era um ma-
temático, Galileu é convencido de que valeria a
pena retomar as pesquisas. Uma questão interes-
sante é trazida nesse momento da obra: as pes-
quisas sobre as manchas solares são conduzidas
por um método proposto por Andrea que é vali-
dado pelo mestre Galileu. Andrea fez entrar um
estreito raio de Sol e observou a imagem na pare-
de, identificando manchas que, com o passar dos
dias, mudavam de lugar. O método de análise se-
ria esse: trazer um anteparo e um espelho de latão

46
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

para fazer projetar a imagem do Sol e, portanto,


proteger os olhos dos pesquisadores durante o es-
tudo das manchas solares.

Andrea — Faz duas semanas que nos dias de


sol eu subo ao vão do telhado. A rachadura das
ripas deixa passar um raio muito fino. Dá para
apanhar a imagem do Sol, invertida, numa folha
de papel. Vi uma mancha, do tamanho de uma
mosca, borrada como uma nuvem. Ela muda
de lugar. Por que não estudamos essas manchas,
senhor Galileu? (Brecht, 1999, p. 126).
[…]
Galileu — Andrea, Fulgenzio, vão buscar o
espelho de latão e o anteparo. Vamos projetar a
imagem do Sol numa tela, para proteger os nos-
sos olhos; é o seu método, Andrea.
Andrea e o Monge vão buscar o refletor e a tela.
Galileu — […] Estendam uma rede de malhas
quadradas sobre a tela. Vamos proceder com
método. E havemos de responder às cartas des-
ses senhores, hein, Andrea? (Brecht, 1999, p.
132–133, grifo do autor).

O ato 13 da obra de Brecht se desenrola em ju-


nho de 1633. Galileu é interrogado pelo tribunal
da Inquisição depois de vinte e três dias preso em
uma cela. Já adulto, Andrea é uma das persona-
47
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

gens que aguarda o final do julgamento no palá-


cio do embaixador florentino na cidade de Roma.
Enquanto outros torcem para que Galileu abju-
re as suas descobertas, escapando da condenação,
Andrea acredita que o mestre não negará a razão.
Nervoso, fala em voz alta para tantos quanto pu-
derem ouvir tudo o que aprendeu com Galileu so-
bre o mundo supralunar. Acreditando na firmeza
do mestre, afirma: “Eles [inquisidores] não vão
ter a coragem! E mesmo se tiverem, ele não vai re-
negar” (Brecht, 1999, p. 150). Usando as mesmas
palavras de Galileu quando este reprimiu Múcio,
seu antigo discípulo, ao saber que ele havia publi-
cado um estudo questionando a teoria de Copér-
nico, Andrea repetiu: “Quem não sabe a verdade
é estúpido e mais nada. Mas quem sabe, e diz que
é mentira, esse é um criminoso.” (Brecht, 1999,
p. 150). Afinal, “[…] a violência não pode tornar
não-vista uma coisa que foi vista.” (Brecht, 1999,
p. 152).

48
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

Figura 2 – Galileu de frente para a Inquisição romana (1857), pin-


tura de Cristiano Banti.

Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Galileo_facing_
the_Roman_Inquisition.jpg . Acesso em: 20 nov. 2021.

Após um momento de suspense sobre o resul-


tado do julgamento, entre rezas e torcidas, choros
e comemorações, os sinos tocam. Era o sinal de
que Galileu havia sido poupado da excomunhão
pela Igreja, e o seu abjuramento ecoou nas ruas
de Roma:

A Voz do Arauto – “Eu, Galileu Galilei, pro-


fessor de matemática e física na Universidade de
Florença, abjuro o que ensinei: que o Sol seja o
49
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

centro do mundo, imóvel em seu lugar, e que


a Terra não seja centro nem imóvel. De cora-
ção sincero e fé não fingida, eu abjuro, detesto
e maldigo todos esses enganos e essas heresias,
assim como quaisquer outros enganos e pen-
samentos contrários à Santa Igreja.”. (Brecht,
1999, p. 153).

Qual o impacto da negação do conhecimento,


da abjuração do ensinamento do mestre? A obra
de Brecht retrata um cenário de revolta entre os
discípulos de Galileu. Andrea está inconsolável
e diz em voz alta: “Infeliz a terra que não tem
heróis!” (Brecht, 1999, p. 153) ao que o mestre,
enfraquecido pelos dias de cárcere e pelo julga-
mento, ao entrar na sala, replica-lhe: “Não. Infeliz
a terra que precisa de heróis.” (Brecht, 1999, p.
154). Andrea não consegue sequer olhar o mestre,
tamanha a sua decepção.
No penúltimo ato da peça, seis anos depois,
Andrea visita Galileu para dele se despedir, pois
decidira sair da Itália para a Holanda para se li-
vrar da perseguição de Roma e continuar as suas
pesquisas científicas. Galileu vive com a filha Vir-
gínia em regime de prisão domiciliar e vigilância.
Nas palavras da filha de Galileu, Brecht descreve
o sentimento dos antigos discípulos pelo cientis-
50
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

ta: depois da abjuração, agora ele é tido como um


inimigo.
No início do diálogo entre o antigo discípulo
e o mestre, há muita cerimônia, nada lembrando
a relação amorosa trazida no início da obra. Am-
bos parecem reafirmar a resignação e a decepção
de outrora. Andrea aponta os efeitos posteriores
do julgamento de Galileu: a estagnação da ciência
no território italiano e europeu, nenhuma obra de
efeito publicada depois da negação das teorias por
Galileu:

Andrea — […] Também nós soubemos que a


Igreja está satisfeita com o senhor. A submissão
total surtiu efeito. É voz corrente que as autori-
dades estão felicíssimas, pois não apareceu obra
alguma na Itália que afirmasse coisa nova, desde
que o senhor se submeteu.
Galileu atento — Infelizmente existem países
que se furtam à tutela da Igreja. Receio que nes-
ses países se aprimorem as doutrinas condena-
das.
Andrea — Também nesses países a sua retra-
tação causou um retrocesso agradável à Igreja.
Galileu — É verdade? Pausa. (Brecht, 1999, p.
159, grifo do autor).

51
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

A conversa é interrompida diversas vezes por


silêncios ensurdecedores. Galileu confessa a An-
drea que voltou a escrever, finalizando a sua der-
radeira obra Discorsi. A cena agora é tomada de
entusiasmos. Andrea recebe das mãos do mestre
uma cópia do livro e fica maravilhado com o que
lê: “Isto vai fundar uma nova física” (Brecht,
1999, p. 162), exclama. Quase pedindo desculpas
por ter lhe acusado de traição contra as ciências,
por ser a voz que gritava mais alto contra ele, Ga-
lileu lhe interrompe e diz: “É assim que devia ser.
Eu lhe ensinei a ciência, e eu abjurei a verdade.”
(Brecht, 1999, p. 162).
O discípulo está eufórico. Em sua cabeça, acre-
dita entender a razão da abjuração: ao renegar
as suas teorias naquele tribunal, o mestre havia
conquistado “[…] o sossego necessário para es-
crever uma obra de ciência, que ninguém mais
poderia escrever.” (Brecht, 1999, p. 163). Diante
de sua euforia e de sua interpretação, Galileu o
interrompe:

Galileu — Eles venceram. E não existe obra de


ciência que somente um homem possa escrever.
Andrea — Então por que o senhor abjurou?
Galileu — Eu abjurei porque tive medo da dor
física.
52
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

Andrea — Não!
Galileu — Eles me mostraram os instrumen-
tos.
Andrea — Então não foi um plano.
Galileu — Não foi.
Pausa.
Andrea em voz alta — A ciência só conhece um
mandamento: a contribuição científica.
Galileu — E essa eu dei. Bem-vindo à sarjeta,
irmão na ciência e compadre na traição! Você
gosta de peixe? Eu tenho peixe. O que fede não
é meu peixe, sou eu. Eu estou em liquidação,
você é freguês. A irresistível sedução do livro,
essa mercadoria sagrada! Corre água na boca, e
as maldições se afogam. A Grande Babilônia, a
besta assassina afasta as coxas, e tudo mudou!
Santificada seja a nossa congregação de trafi-
cantes e puxa-sacos mortos de medo de morrer!
(Brecht, 1999, p. 162–163, grifo do autor)

Em seu último ensinamento, Galileu diz a An-


drea: “O nosso recurso novo, a dúvida, encantou
o grande público […]” (Brecht, 1999, p. 165). So-
bre a necessária aproximação da ciência com o
povo, continua:

Eu sustento que a única finalidade da ciência


está em aliviar a canseira da existência humana.

53
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

E se os cientistas, intimidados pela prepotência


dos poderosos, acham que basta amontoar sa-
ber, por amor do saber, a ciência pode ser trans-
formada em aleijão, e as suas novas máquinas
serão novas aflições, nada mais. Com o tempo,
é possível que vocês descubram tudo o que haja
por descobrir, e ainda assim o seu avanço há de
ser apenas um avanço para longe da humani-
dade. O precipício entre vocês e a humanidade
pode crescer tanto, que ao grito alegre de vo-
cês, grito de quem descobriu alguma coisa nova,
responda um grito universal de horror. Como
cientista tive uma oportunidade sem igual. No
meu tempo, a astronomia alcançava as praças
do mercado. Nessas condições muito particula-
res, a firmeza de um homem poderia ter causa-
do grandes abalos. Se eu tivesse resistido! Se os
cientistas naturais tivessem criado alguma coisa
como o juramento hipocrático dos médicos, o
voto de utilizar o seu saber somente para van-
tagem da humanidade! (Brecht, 1999, p. 165).

Galileu se mostra decepcionado por ter traí-


do tudo aquilo que descobriu e por ter causado
prejuízos à comunidade científica. Despedindo-
-se, Andrea estende a mão ao mestre, gesto que
Galileu não corresponde, dizendo-se indigno:
“Andrea estende-lhe a mão. Galileu vê a mão sem

54
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

apertá-la. Galileu – Você mesmo, agora, é pro-


fessor. Você pode se dar ao luxo de apertar uma
mão como a minha?” (Brecht, 1999, p. 166). É
noite clara e Andrea parte, não sem antes render
reconhecimento ao antigo mestre: afirma a Gali-
leu não acreditar que “[…] a sua análise assassina
[de si] vá ser a última palavra.” (Brecht, 1999, p.
166).
No último ato da peça, Andrea está na fronteira
da Itália e tem os seus pertences revistados pelos
guardas de fronteira. Enquanto espera, lê os Dis-
corsi. Há crianças brincando bem próximo. Um
deles, Giuseppe, lhe pergunta se é possível uma
pessoa voar numa vassoura. Como um pacien-
te mestre, Andrea lhe explica que, naturalmente,
isso não seria possível, a menos que a vassoura
estivesse presa a uma máquina. A máquina ain-
da não existia, mas era precoce dizer que não era
possível que a uma pessoa voasse numa vassoura.
Ainda “[…] estamos muito longe de saber o bas-
tante, Giuseppe. Nós ainda estamos muito no co-
meço.” (Brecht, 1999, p. 170), ensina-lhe Andrea.

55
GALILEU
O cientista surrado

Eu,
abjurei, embora acreditasse
na minha verdade. Um mártir em contrário
à minha própria crença, sem a coragem
de confirmar Aristarco e Giordano Bruno.
(Pacheco, 2002, p. 131).

Entretanto, seremos ainda cientistas,


se nos desligamos da multidão?
(Brecht, 1999, p. 165)

N
a peça brechtiana, Galileu é, ao mesmo
tempo, um cientista e um professor. São
funções distintas. Afinal, como lembra
Saviani (1991), o cientista vincula-se à pesquisa,
atividade de construção sistemática de novos co-
nhecimentos, enquanto ao professor cabe assegu-

56
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

rar a apropriação de conhecimentos sistemáticos


já elaborados.4 Sob esse prisma,

[…] o professor está mais interessado em fazer


progredir o aluno. O professor vê o conheci-
mento como um meio para o crescimento do
aluno; enquanto para o cientista o conheci-
mento é um fim, trata-se de descobrir novos
conhecimentos na sua área de formação. Nesse
sentido, […] o melhor geógrafo não será ne-
cessariamente o melhor professor de geografia;
nem será o historiador aquele que desempenha-
rá melhor o papel de professor de história ou o
melhor literato, o melhor escritor necessaria-
mente o melhor professor de português. E por
quê? Porque para ensinar é fundamental que se
coloque inicialmente a seguinte pergunta: para
que serve ensinar uma disciplina como geogra-
fia, história ou português aos alunos concretos
com os quais se vai trabalhar? Em que essas dis-
ciplinas são relevantes para o progresso, para o
avanço e para o desenvolvimento desses alunos?
(Saviani, 1991, p. 79).

4 Sobre a crítica da noção de professor pesquisador, con-


ferir Malacarne (2014), Malacarne et al. (2014) e Cruz
Júnior et al. (2015).
57
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

A distinção entre essas funções também está


presente na peça brechtiana. Galileu pede aumen-
to salarial porque não consegue sobreviver com
o que a República de Veneza lhe paga por aulas
de matemática na Universidade. No primeiro ato,
em visita a sua casa em Pádua, o procurador lhe
informa que negará seu pedido e sugere que ofe-
reça aulas para alunos particulares, o que Galileu
responde:

Senhor, eu tenho demais [alunos particulares]!


Eu ensino e ensino, e quando é que estudo?
Homem de Deus, eu não sei tudo, como os se-
nhores da Faculdade de Filosofia. Eu sou estú-
pido. Eu não entendo nada de nada. De modo
que sou forçado a preencher os buracos do meu
saber. E quando é que tenho tempo? Quando é
que faço pesquisa? Meu senhor, a minha ciên-
cia ainda tem fome de saber! Sobre os maiores
problemas nós ainda não temos nada que seja
mais do que hipótese. Mas nós exigimos provas.
(Brecht, 1999, p. 65)5

5 O Procurador observa, quase em um tom liberal, que


Galileu recebe pouco, mas tem liberdade de pesquisa;
em outros lugares, pesquisas como as suas já estariam
censuradas. Aceitar essas condições (liberdade + baixo
salário) seria a garantia contra a Inquisição. Na biogra-
fia de Galileu, Livio (2021, p. 65) observa: “Seus confi-
58
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

A obrigação de dar aulas diminui o tempo de


pesquisa. Portanto, por mais que para ensinar
seja preciso valer-se do conhecimento científico
produzido, pode-se dizer que ensinar e pesquisar
são ações concorrentes. Ao indicar a seu amigo
Sagredo a possível mudança para Florença, Ga-
lileu explica: “Meu caro, eu preciso de sossego.
Eu preciso de provas. Eu quero comer carne. Lá
me dispensam de enfiar Ptolomeu na cabeça de
alunos particulares, e terei tempo, tempo, tempo,
tempo, tempo! para elaborar as minhas provas
[…]” (Brecht, 1999, p. 83). A ida para Florença
significa para o Galileu brechtiano a possibilidade
de ter mais tempo para a pesquisa e não ser obri-
gado a dar muitas aulas para compensar o baixo
salário.
Como cientista, Galileu vive desafios e con-
frontos com a universidade, dominada pela ins-
tituição eclesiástica. Como bem observa Rossi
(2001), a ciência moderna nasce em conflito com
dentes em Veneza consideraram um erro grave trocar a
liberdade intelectual (que Galileu tinha em abundância
em Pádua) pela estabilidade financeira e por se ver livre
da exaustão de ensinar. A história mostrou que mesmo
a longa mão da Inquisição raramente chegou à Repúbli-
ca de Veneza de alguma maneira significativa, ao passo
que a mudança para Florença deixou Galileu vulnerável
ao controle da Igreja.”.
59
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

a universidade. Nesse contexto, Galileu enfrenta


problema financeiros, ideológicos, de sobrevivên-
cia, de condições de pesquisa, entre outros. Para
poder aumentar seus ganhos e ter mais tempo
para seus estudos, chega a ludibriar a República
de Veneza dizendo que inventara o telescópio,
instrumento já existente e comercializado na Ho-
landa. Argumenta que a “nova invenção” seria
vantajosa para situações de guerra e de navegação.
Com essa justificativa, Galileu mente em benefí-
cio próprio a fim de esconder que já utilizava o
instrumento para estudo da Física.
Que conhecimento busca? O Galileu brechtia-
no tem o desejo de que o funcionamento do uni-
verso seja entendido: “É para que se entendam
essas coisas que eu trabalho e compro livros caros
em lugar de pagar o leiteiro.” (Brecht, 1999, p.
59). Esse compromisso do cientista o coloca em
risco, pois desafia os dogmas religiosos, apoiados
em argumentos aristotélicos de hierarquia e fini-
tude do universo; colide com a fé que prescinde,
por completo, de evidências e fatos, como obser-
va Galileu no ato 4 da peça diante dos sábios da
corte florentina que não dão crédito às suas des-
cobertas:

60
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

Meus senhores, a fé na autoridade de Aristóteles


é uma coisa, e os fatos, que são tangíveis, são
outra. […]. Eu me acostumei a ver como os se-
nhores de todas as faculdades fecham os olhos a
todos os fatos, fazendo de conta que não houve
nada. Eu mostro as minhas observações e eles
sorriem, eu ofereço o meu telescópio para que
vejam, e eles citam Aristóteles. (Brecht, 1999,
p. 94)

O saber científico também contraria a vida co-


mum em sua experiência mais imediata, como se
observa no trecho a seguir:

Andrea — Mas eu vejo que o Sol de noite não


está onde estava de manhã. Quer dizer que ele
não pode estar parado! Nunca e jamais.
Galileu — Você vê! O que é que você vê? Você
não vê nada! Você arregala os olhos, e arregalar
os olhos não é ver. (Brecht, 1999, p. 59).

Além do texto bíblico, a percepção cotidiana


insiste que o sol se move enquanto a Terra per-
manece imóvel: o sol nasce de um lado, põe-se
em outro. O trajeto do astro rei mostra-se óbvio
aos nossos olhos diários. Galileu compara essa
experiência a uma outra quando conversa com o
cardeal Barberini: “Quando eu era deste tamanho
61
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

– indica com a mão – Eminência, ao andar de bar-


co, eu gritava que a praia ia embora. Hoje sei que
a praia estava parada, e que o movimento era do
barco.” (Brecht, 1999, p. 111).
A observação de Moraes e Frota (2000, p. 68)
quanto ao Galileu histórico serve para o Galileu
literário: “Em seu esforço crítico, Galileu apren-
deu a recusar tanto a tradição, quanto o encanta-
mento da empiria […]”.
Na peça brechtiana, ser cientista é inicialmente,
para Galileu, amar a ciência; isso implica acredi-
tar na razão humana e no bom argumento. Em
diálogo com Sagredo, isso se revela forte:

Sagredo – […] Mas você faz uma afirmação


racional, prova com sete argumentos, e eles
riem na sua cara.
Galileu – Isso é inteiramente falso, é uma ca-
lúnia. Eu não entendo como você possa amar a
ciência, acreditando nisso. Só o morto é insen-
sível a um bom argumento! […] A sedução do
argumento é grande demais. Ela vence a maio-
ria, todos, a longo prazo. Pensar é um dos maio-
res prazeres da raça humana. (Brecht, 1999, p.
80–81).

62
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

No texto brechtiano, a valorização da ciência,


da razão e do bom argumento convive com a in-
genuidade de Galileu que o impede de distinguir
não apenas os seus amigos dos inimigos, como
também de compreender a relação de poder nas
disputas epistemológicas. A voz de Sagredo alerta
o amigo sobre isso quando discute a decisão de
mudar-se para Florença: a verdade do conheci-
mento traz a desgraça de ser perseguido pelos
poderosos e ser ameaçado de morrer na fogueira
tal como ocorrera dez anos antes com Giordano
Bruno em 1600.

Sagredo – Galileu, vejo você num caminho ter-


rível. É uma noite desgraçada a noite em que o
homem vê a verdade. É de cegueira o momento
em que ele acredita na razão da espécie humana.
Quando dizemos que alguém caminha lucida-
mente? Quando se trata de alguém que cami-
nha para a desgraça. Os poderosos não podem
deixar solto alguém que saiba a verdade, mesmo
que seja sobre as estrelas mais distantes! Você
acha que o Papa vai ouvir a sua verdade, quando
você disser que ele errou, e que não vão ouvir
que ele errou? Você acha simplesmente que ele
abre o diário e escreve uma nota: 10 de janeiro
de 1610 – aboliu-se o céu? Você não entende?
Sair da República, com a verdade no bolso, para
63
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

entrar na ratoeira dos padres e dos príncipes, de


telescópio na mão! Dentro da sua ciência você
é desconfiado, mas quanto às circunstâncias
que possam favorecer o exercício dela você é
crédulo como uma criança. Você não acredita
em Aristóteles, mas acredita no Grão-Duque de
Florença. Ainda há pouco eu o olhava quando
você olhava as novas estrelas pelo telescópio,
mas o que eu via era você de pé, sobre um mon-
te de lenha. E quando você disse que acredita
em provas, eu senti o cheiro de carne queima-
da. Eu amo a ciência, porém mais a você, meu
amigo. Não vá para Florença, Galileu! (Brecht,
1999, p. 85).

Brecht, portanto, tensiona a posição inicial de


Galileu: ao mesmo tempo que abala a fé religiosa,
sustenta uma fé cega de que, no plano do conheci-
mento, o convencimento e a argumentação racio-
nal são os critérios exclusivos. Contudo, esse mes-
mo Galileu preza por uma relação próxima com
Cosmo Médici, Grão-Duque de Florença: batiza
uma estrela de Medicéia em sua homenagem, es-
creve-lhe uma carta “servil” (Brecht, 1999, p. 84)
colocando-se à disposição como matemático da
corte, pede sua intercessão quando convocado
pela Inquisição em Roma.

64
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

Brecht traz para o texto dramático o esforço


que fez Galileu para transitar para a esfera de pro-
teção da corte Toscana. Leitão (2010) relata que
essa aproximação começou com seu trabalho de
tutor de Matemática do jovem Cosme de Medici
em 1604. Quando Cosme se torna Grão-Duque
em 1609, o contato entre eles se intensificou a
ponto de Galileu lhe enviar e lhe dedicar sua obra
Sidereus nuncius e batizar os satélites de Júpiter
em sua homenagem:

O nome dos Medici ficava para sempre ligado


às mais importantes descobertas observacio-
nais da história da astronomia, e Galileu seria
recompensado com a entrada na corte florenti-
na. Galileu planeou cuidadosamente esta apro-
ximação, em busca de um estatuto que lhe era
indispensável para a legitimação das suas ideias
científicas. Na verdade, era uma jogada muito
ambiciosa, já que tinha como objectivo a cria-
ção de uma categoria socioprofissional sem
precedentes, a de filósofo e matemático de corte,
estatuto que ele negociou e conseguiu obter dos
Medici. (Leitão, 2010, p. 27).

Esse comportamento de Galileu expressa o


quanto o novo saber se erige a partir da raciona-

65
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

lidade moderna e tem as marcas da emergente


classe burguesa. Como principal representante da
revolução científica moderna, Galileu manifesta,
de certa maneira, essa mudança histórica de ou-
tros modos: valoriza o trabalho manual; aprecia
as artes mecânicas; envolve-se com artesãos e
engenheiros na construção e aplicação de instru-
mentos;6 questiona as publicações em latim.7 Não
por acaso, diante das ameaças que sofre, Galileu
tem o apoio dos manufatureiros, como lhe infor-
ma Vanni (da oficina de fundição):

Vanni – […] O senhor sabe que em Amsterdã


e em Londres existem mercados de dinheiro?
6 Rossi (2001) afirma que um dos obstáculos da ciência
moderna foi a imagem pejorativa das artes mecânicas
(trabalho manual), em contraste com as artes liberais
(trivium e quadrivium), própria dos homens livres. Em
Vida de Galileu, essa situação é retratada em vários mo-
mentos. Em um deles, a personagem “O filósofo” repudia
Federzoni, estudioso e polidor de lentes que acompanha
Galileu na apresentação do telescópio à corte florentina
no ato 4. Também reage quando este participa de uma
conversa científica e não entende latim: “O Filósofo – Eu
preferia que o seu ajudante não desse conselhos numa
disputa científica.” (Brecht, 1999, p. 95).
7 O inquisidor fala ao papa Urbano viii: “Esse homem
ruim [refere-se a Galileu] sabe o que faz quando não
redige os seus trabalhos em latim, mas na língua das pei-
xeiras e dos mercadores.” (Brecht, 1999, p. 148).
66
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

E escolas de artes e ofícios? Jornais publicados


regularmente, com notícias. Aqui não temos
sequer a liberdade de ganhar dinheiro. Eles
são contra as fundições de ferro, acham que a
reunião de muitos trabalhadores em um lugar
favorece a imoralidade! A sua causa, Galileu, é a
minha, é a mesma! Se alguém, por acaso, tentar
alguma coisa contra o senhor, por favor, lembre-
-se de que tem amigos em todos os ramos da in-
dústria; todas as cidades do Norte da Itália estão
do seu lado. (Brecht, 1999, p. 142–143).

Brecht evidencia que o novo conhecimento


possui uma dimensão prática, de aplicabilidade
imediata em situações de guerra, navegação etc.,
perspectiva que, de certa forma, coaduna-se com
os interesses da burguesia nascente. Mas não se
reduz a isso. Há uma faceta desse novo saber que
não está necessariamente vinculada às emergên-
cias e imediaticidades da vida, como coloca o Ga-
lileu brechtiano diante da corte florentina:

Galileu — Alteza! Nestas noites, na Itália intei-


ra, há telescópios voltados para o céu. As luas de
Júpiter não barateiam o leite. Mas nunca foram
vistas, e agora existem. O homem da rua con-
clui que poderiam existir muitas outras coisas
também, se ele olhasse melhor. Vossa Alteza
67
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

deve confirmá-lo! Se a Itália está atenta, não é


por causa do movimento de algumas estrelas
distantes, mas pela notícia de que as doutrinas
ditas inabaláveis estão abaladas, e qualquer um
sabe que o número delas é grande demais. Meus
senhores, não vamos defender doutrinas abala-
das! (Brecht, 1999, p. 95).

Nesse contexto, tendo a física moderna como


protagonista da revolução científica, o lugar da
matemática é central.8 Tal mudança é um corre-
lato, no âmbito do conhecimento, da matematiza-
ção da vida sob a égide do valor que tudo iguala
em uma proporção quantitativa em seu processo
de mercadorização. No momento vivido por Ga-
lileu, a matemática oferece os instrumentos para
a construção de um novo saber. Porta, assim, uma
ameaça aos que se enredavam na metafísica aris-
totélica. Brecht traz, em sua peça, a reação de um
velho cardeal para ilustrar isso:

Dizem que o tal de Galileu transferiu o homem


do centro do universo para algum lugar na peri-

8 Em nota explicativa na carta de Galileu a Monsenhor


Piero Dini, Nascimento (2009) observa que as discipli-
nas matemáticas não eram só a aritmética e a geometria,
mas também a música e a astronomia.
68
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

feria. Está claro, portanto, que ele é um inimigo


da humanidade! E deve ser tratado de acordo. O
homem é a coroa da criação, qualquer criança
sabe disso, é a criatura mais sublime e querida
de Deus. E Deus ia pegar uma tal obra-prima,
um tal esforço, para botar numa estrelinha se-
cundária, rolando por aí? Ele ia mandar seu
filho para um lugar desses? Como pode haver
gente perversa a ponto de acreditar nesses es-
cravos da aritmética! Uma criatura de Deus to-
lera uma coisa dessas? (Brecht, 1999, ato 6, p.
107)9

9 “O Cardeal Muito Velho livra-se do Monge e fala a Ga-


lileu – O senhor quer aviltar a Terra, embora viva nela e
lhe deva tudo. O senhor está emporcalhando a sua pró-
pria habitação! Mas não pense que eu vou tolerar. Em-
purra o Monge, e dá passadas orgulhosas para lá e para
cá. Eu não sou uma coisa qualquer, numa estrelazinha
qualquer, girando por aí, ninguém sabe até quan­do. Eu
piso em tetra firme, com passo seguro, ela está em re-
pouso, é o centro do universo, eu estou no centro, e o
olho do Criador repousa em mim, somente em mim. Os
astros e o Sol majestoso giram em tomo de mim, fixados
em oito esferas de cristal; foram criados para iluminar
a minha cercania, e também para me iluminar a mim,
para que Deus me veja. É visível, portanto, e irrefutável,
que tudo depende de mim, o homem, o esforço de Deus,
a criatura central, a imagem de Deus, imperecível e …
Cai prostrado.” (Brecht, 1999, p. 107–108).
69
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

Semelhante repulsa é ilustrada por Rossi (2001,


p. 160) em seu livro sobre o nascimento da ciência
moderna:

No dia 20 de dezembro de 1614 o dominicano


Tommaso Caccini, em um sermão proferido na
igreja de Santa Maria Novella, qualificou como
herética tanto a opinião de Copérnico como
também daqueles que pretendiam corrigir a Bí-
blia. Lançou-se contra “a arte diabólica da mate-
mática” e contra aqueles matemáticos incentiva-
dores de heresias, que deveriam ser banidos de
qualquer Estado cristão.

A emergência da sociedade capitalista com to-


dos os seus traços revolucionários (posteriormen-
te abandonados pela burguesia em sua consolida-
ção política no poder) torna-se o palco literário
para Brecht abordar a luta que se coloca entre
emergência do novo e as forças conservadoras.
Esse conhecimento sistematizado parte da dú-
vida e fala de um universo infinito e em movimen-
to. Esse é o núcleo de ameaça que ele comporta.
Como observa o inquisidor ao papa Urbano viii
no texto brechtiano:

70
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

Qual seria o resultado se essa gente toda, fraca


na carne e inclinada a qualquer excesso, acre-
ditasse exclusivamente na sua razão, que esse
desvairado proclama como a única autoridade!
Depois de duvidar que o Sol tenha parado sobre
Gibeão, eles vão estender a sua dúvida porca às
coletas da Igreja. (Brecht, 1999, p. 147).

Ludovico, pretendente de Virgínia e espião das


ações de Galileu, também revela algo semelhante
em sua tensa conversa com o cientista. Ele afirma
que a impunidade dos que ameaçam as doutrinas
religiosas com ataques frívolos podem perturbar
seus trabalhadores camponeses:

O senhor nunca esqueça que esses seres de-


ploráveis confundem tudo, em seu estado de
animalização. São animais em sentido próprio,
o senhor mal pode imaginar. Se corre o boato
de que nasceu maçã numa pereira, eles aban-
donam o trabalho para conversar sobre o caso.
(Brecht, 1999, p. 134).

Contudo, Galileu sabe que o incômodo de Lu-


dovico é outro: “É porque eu poderia incitar os
camponeses dele e a criadagem e os administra-
dores a pensar idéias novas.” (Brecht, 1999, p.
134).
71
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

Momentos revolucionários, como o vivido por


Galileu, lembram-nos que fazemos história e que,
pelo trabalho, movimentamos o mundo. As no-
vas ideias e a dúvida no plano do conhecimento
trazem à tona o entrelaçamento de um mundo
natural que se (auto)movimenta com o universo
humano, movido pelos trabalhadores. Daí emer-
ge o potencial ameaçador desse novo saber que
Galileu contraditoriamente representa:

Galileu – Eu poderia escrever na língua do


povo, para muitos, em vez de escrever em latim,
para poucos. Para as novas idéias nós precisa-
mos de gente que trabalhe com as mãos. Quem,
senão eles, quer saber a causa das coisas? Os que
só vêem o pão na mesa não querem saber como
ele foi assado; essa canalha gosta mais de agra-
decer a Deus que ao padeiro. Já os que fazem o
pão compreenderão que nada se move que não
seja movido. A sua irmã, Fulgenzio, lá na prensa
de azeitonas, não há de ficar muito surpresa, tal-
vez até dê risada, quando souber que o Sol não
é um brasão dourado, mas uma alavanca: a Ter-
ra se move porque é movida pelo Sol. (Brecht,
1999, p. 135).

Em outros termos, o Galileu brechtiano fala de


uma ruptura história: “[…] o tempo antigo aca-
72
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

bou, e começou um tempo novo. […] veja o que


se diz agora: se as coisas são assim, assim não fi-
cam. Tudo se move, meu amigo.” (Brecht, 1999,
p. 57).
Contra um mundo inerte, Galileu simboliza a
coragem de buscar um novo conhecimento. Ousa,
assim, chocar-se com as verdades absolutas e ins-
tituídas, ousa lembrar quem movimenta a socie-
dade e produz a riqueza social. Mas, ele também
tem receios, sua liberdade está condicionada ao
seu “voto de silêncio ”. Durante 8 anos, ele perma-
neceu calado, sem pesquisar, a fim de não “ser as-
sado no fogo, como um presunto.” (Brecht, 1999,
p. 127).
No ato 13, em 1633, depois de preso, Galileu
renega tudo que pesquisa. Ele poderia ter ficado
no conforto e na segurança da proposta pelo car-
deal Bellarmino segundo a qual: “[…] não pode-
mos saber, mas podemos pesquisar. […] Mesmo
a mencionada doutrina, o senhor é livre de lidar
com ela, em forma de hipótese matemática. A
ciência é filha legítima e muito amada da Igreja,
senhor Galileu.” (Brecht, 1999, p. 114–115). Pode-
ria, assim, pesquisar, mas manter posição da igre-

73
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

ja.10 Galileu não adere à tese bellarminiana. Ele


vai além. Ele sabe a verdade, mas abjura. Torna-se
criminoso, tal como acusara Múcio. Não abjura
para ter paz e secretamente continuar a escrever
sua obra. Abjura por medo.
O herói trágico tem como desfecho final a no-
breza de seu sacrifício. Em outros termos, como
afirma Williams (2002, p. 256), “O que confirma
o mártir enquanto tal é o fato de ele estar mor-
to.”. Em Vida de Galileu, o grandioso e admirável
herói esfacela-se. Galileu é “Um grande homem
[que] não é grande por igual.” (Brecht, 1999, p.
70). Ele é um homem de carne e osso e cedeu
imediatamente ao ver os instrumentos de tortura.
Mostra sua face humana e, dessa forma, revela a
falsidade e a verdade do mundo:

10 O jesuíta Roberto Bellarmino (1542–1621) foi eleito car-


deal por Clemente VII. Sua tese (já defendida por outros
pensadores antes dele) considerava a astronomia pura
matemática e puro cálculo com construção de hipóteses
sobre as quais não importa dizer se correspondem ou
não ao mundo real. Portanto, em sua visão, era possível
conciliar a posição da igreja com o desejo de manter pes-
quisas científica: no nível apenas de hipótese, não have-
ria perigo de se afirmar que é suposto que Terra se mova
e o sol esteja parado, mas não que realmente se mova.
Giordano Bruno reagiu a essas afirmações e também Ke-
pler e Galileu (Rossi, 2001).
74
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

Galileu, comprometido com um modo univer-


sal e humanista de ver a ciência, caiu na armadi-
lha de uma outra visão: os imperativos de uma
lealdade diferente, referida ao grupo dirigente
que o mantém e que o impele a produzir para
o mercado e para a guerra. Não se trata de que,
como indivíduo, ele seja um hipócrita. A ques-
tão é que sob pressões reais ele incorpora tanto
uma verdadeira quanto uma falsa consciência;
o que Brecht nos convida a ver é o fato desta
coexistência. O movimento da peça estende-se
da irônica aceitação da falsa consciência – aqui-
lo que se diz para poder se arranjar, em um
mundo imperfeito – até o ponto em que a falsa
consciência se torna uma falsa ação e não é mais
ironia, mas tragédia. (Williams, 2002, p. 261).

Por essa razão, o Galileu brechtiano apresenta-


-se como “o pecador original” (Ortega, 2016, p.
6) da ciência moderna: ele sentiu o prazer da des-
coberta de leis que governam o mundo e o medo
por tais descobertas; ele se embrenhou no mundo
dos negócios e da mentira e depositou o conheci-
mento como posse da classe dominante.
A coexistência dessa consciência verdadeira e
falsa lança o herói brechtiano à condição huma-
na e histórica. Torna-se válida e estende-se para
toda a geração de cientistas que o sucedeu. De-
75
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

pois disso, não é possível portar uma fé ingênua


na ciência. Em particular, essa coexistência pesa
sobre os ombros dos cientistas que cederam em
favor da guerra:

O intelectual brechtiano não morreu pela cau-


sa. O intelectual diante do que passou preferiu
a vida do que a tortura e a morte. Galileu é a
representação do homem que vai produzir as
bombas nucleares, das câmaras de gás, das ex-
periências desumanas nos laboratórios nazis-
tas, mas principalmente, Galileu representa a
falência da razão aos interesses das classes do-
minantes e dos próprios desejos humanos. Por-
tanto, Brecht, além de fornecer as características
pessoais a Galileu, como crítico do seu tempo, o
coloca diante de um processo histórico dialético
[…] (Ortega, 2016, p. 82).

No último ato da peça, anos depois, no reen-


contro com Andrea Sarti, Galileu expressa sua de-
cepção consigo mesmo: “Eu traí a minha profis-
são. Um homem que faz o que eu fiz não pode ser
admitido nas fileiras da ciência.” (Brecht, 1999, p.
166). Lamenta-se de sua decisão e do tipo de ciên-
cia que ajudou a construir, distante da multidão.
Sua razão tornou-se desrazão. Aqui se confirma

76
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

a máxima benjaminiana: só um herói surrado


pode se tornar um pensador. Neste último encon-
tro com Andrea, Galileu sonha com uma ciência
que não seja o amontoar de conhecimentos e que
não transforme suas novas máquinas em aflições.
Aliviar a dor, o sofrimento, a canseira humana: ta-
refa que ele próprio não conseguiu cumprir. Para
quem fez, em especial, das observações noturnas
uma aventura celestial, sua última fala na peça é,
no mínimo, uma ironia, com uma dose de tristeza.
Em conversa com a filha, ele pergunta: “Como é
que está a noite?” (Brecht, 1999, p. 167).

77
GALILEU-PROFESSOR E
A DEMOCRATIZAÇÃO
DO SABER

A nossa ignorância é infinita,


vamos reduzi-la de um centímetro!
(Brecht, 1999, p. 95).

Mas agora nós vamos sair, Andrea,


para uma grande viagem.
(Brecht, 1999, p. 57).

N
a peça brechtiana, Galileu também é reco-
nhecido pela função de professor. No ter-
ceiro ato, em conversa com Sagredo, Gali-
leu é apresentado como um professor com muitos
anos de trabalho que ensinou, por longo tempo,
algo que desconfiava não ser verdadeiro:

Sagredo – Galileu, eu sempre o conheci como


homem de juízo. Durante dezessete anos em Pá-
dua, e durante três anos em Pisa, pacientemente
você ensinou a centenas de alunos o sistema de
78
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

Ptolomeu, que é adotado pela Igreja e é confir-


mado pela Escritura, na qual a Igreja repousa.
Você, na linha de Copérnico, achava errado,
mas ensinava assim mesmo.
Galileu – Porque eu não tinha provas. (Brecht,
1999, p. 80).

No ato 11, datado de 1633, quando a Inquisição


convoca a Roma o cientista, enquanto espera ser
recebido, Galileu se encontra com Vanni, para
quem projetara a oficina de fundição e recebera
em troca codornas. Vanni sabe que Galileu está
sob acusação e reconhece que essa perseguição
também é motivada pelo tipo de professor que ele
é:

Não sou homem que entenda muito do movi-


mento das estrelas, mas para mim o senhor é o
homem que luta pela liberdade de ensinar coi-
sas novas. Por exemplo, essa charrua mecânica
dos alemães, que o senhor me descreveu. Só no
ano passado apareceram cinco volumes sobre
agricultura, em Londres. Nós aqui ficaríamos
gratíssimos por um livro sobre os canais holan-
deses. Os círculos que se opõem ao senhor são
os mesmos que em Bolonha impedem os médi-
cos de abrir cadáveres para pesquisa. (Brecht,
1999, p. 142).
79
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

Como professor, o que faz Galileu? Retomemos


a observação feita por Saviani quanto ao trabalho
do professor, mas agora com o auxílio de Snyders.
Ao tratar dos vínculos entre os sujeitos escolares,
esse autor pontua que uma das relações pessoais
do aluno na escola é com o saber elaborado, isto
é, com “[…] os mais belos resultados atingidos
pela cultura, as grandes conquistas da humanida-
de em todos os campos, desde poemas até des-
cobertas prodigiosas e tecnologias inacreditáveis.”
(Snyders, 1996, p. 23), “[…] aos quais os profes-
sores servem essencialmente de intermediários.”
(Snyders, 1996, p. 69). Portanto, o professor é um
mediador entre os alunos e as formas elaboradas
de conhecimento, objetivadas pelas gerações que
lhes antecederam. Nas palavras de Hegel,

O tesouro da cultura, dos conhecimentos e das


verdades, no qual trabalham as épocas passadas,
foi confiado ao professorado, para conservá-lo e
transmiti-lo à posteridade. O professor tem de
se considerar como o guarda e o sacerdote dessa
luz sagrada, para que ela não se apague e a hu-
manidade não recaia na noite da antiga barbárie.
Essa transmissão tem de suceder por um lado,
por meio de um esforço fiel, mas, simultanea-
mente, a letra só será verdadeiramente frutuosa

80
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

pela interpretação e espírito do próprio profes-


sor. (Hegel, 1994, p. 23).

Por inspiração hegeliana, percebemos que o


professor ocupa esse lugar de guardar e transmitir
às novas gerações os “tesouros da cultura”. Essa
tarefa demanda fidelidade ao conhecimento al-
cançado. Contudo, segundo Hegel, isso só pode
ser alcançado pelo trabalho subjetivo do profes-
sor, pela sua liberdade de dialogar com esse pa-
trimônio humano. Por essa razão, essa tarefa tem
uma face política de recusa da barbárie. De certo
modo, o Galileu brechtiano conjuga, na função
docente, esse ímpeto de liberdade, por mais que,
em alguns momentos, ele tenha ensinado o que
desconfiava não ter mais fundamento.
A distinção entre o trabalho do cientista e a do
professor não significa considerar que sejam ati-
vidades distantes. Pelo contrário, são ações orga-
nicamente vinculadas, como se evidencia na dis-
tinção de Saviani mencionada no item anterior e
também na peça brechtiana.
Ao sintetizar esses dois sujeitos – cientista
e professor –, o clamor de Galileu é duplo: não
apenas do cientista que enfrenta o desconhecido
em termos sociais e se depara, de modo constante,
com sua ignorância e com as condições objetivas
81
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

inadequadas para fazer pesquisa; mas também do


professor que só consegue ser intermediário entre
o aluno e as obras-primas da humanidade quan-
do ele próprio tem condições de acessá-las.
Em sua relação com Andrea, Galileu berra,
xinga o menino, condições hoje inaceitáveis. É
ansioso e busca encurtar a distância entre o cien-
tista e o professor quando, no terceiro ato, à noi-
te, pede a Dona Sarti que acorde o menino para
que veja que a Lua e a Terra eram corpos celestes
iluminados. Galileu tem um compromisso com o
aprendizado do seu discípulo, o que implica que
a ele também deveria ser dada a oportunidade de
acessar o conhecimento que o mestre acabara de
descobrir.
O professor Galileu ensinou duvidando e lutou
para ensinar novas coisas. Mas não apenas isso,
como pontua Benjamin (2017, p. 24): “Galileu é
apresentado como um grande professor, em pri-
meiro lugar. Ele não apenas ensina uma nova físi-
ca, como tem outra maneira de ensinar. Em suas
mãos, a experiência não se torna somente uma
conquista da ciência, mas da pedagogia.”.
A relação com Andrea testemunha o esforço
constante de construir um caminho (e, portanto,
um método) para que o pupilo pudesse se apro-

82
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

priar das novas descobertas. Galileu cria situa-


ções pedagógicas nas quais o menino é levado, de
modo intencional, a experimentar, problematizar
e pensar as coisas do mundo e a pôr em xeque
a percepção mais imediata da realidade e a tra-
dição aristotélico-ptolomaica. Como visto, no
primeiro ato, Galileu envolve o menino em uma
circunstância que mimetiza o comportamento do
universo segundo as novas teorias. Andrea se mo-
vimenta em cima de uma cadeira e é desafiado a
pensar. Sua mãe entra para fazer a cama, assiste à
cena e indaga: “Seu Galileu, o que o senhor está
fazendo com o meu menino? Galileu – Eu o estou
ensinando a ver.” (Brecht, 1999, p. 60).
Mas por que é necessário ensinar a ver? Por-
que, para o Galileu brechtiano, há uma distinção
entre abrir os olhos e ver. O arregalar os olhos da
cotidianidade pode nos prender ao encantamen-
to da empiria e à manifestação mais imediata da
vida. O mundo precisa ser decifrado. Por isso a
necessidade de cultivo da sensibilidade e da razão
para que alcancem níveis superiores e avançados
de desenvolvimento a partir do conhecimento
elaborado e sistematizado.
Nesse processo, coloca-se a importância de um
método de ensino que problematize a realidade,

83
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

que leve o aluno a pensar e a sentir o mundo, que


estabeleça uma ponte entre a singularidade do
aluno e as conquistas da humanidade em seu con-
junto. Tal método também encerra o exercício da
confiança, da valorização e do incentivo; portanto,
envolve um zelo com as relações intersubjetivas
imediatas entre os sujeitos empíricos escolares:
“[…] acolhimento, respeito, diálogo, generosidade
e amizade compõem o vasto campo de “atitudes e
posturas inerentes ao papel atribuído ao educador
[…]” (Saviani, 1996, p. 148), sem as quais não se
efetiva o trabalho educativo.
O incentivo e a confiança de Galileu em An-
drea não podem ser compreendidos como algo
pontual. O Galileu-professor acredita que pessoas
simples, apegadas à experiência cotidiana, têm
fome de saber.
Na maior parte das vezes, Dona Sarti aparece
na peça como símbolo do senso comum. Mesmo
assim, Galileu enxerga na mãe de Andrea um
bom senso, como diria Antonio Gramsci,11 que

11 “Este é o núcleo sadio do senso comum, o que poderia


ser chamado de bom senso, merecendo ser desenvolvi-
do e transformado em algo unitário e coerente. Torna-se
evidente, assim, as razões que fazem impossível a sepa-
ração entre a chamada filosofia ‘científica’ e a filosofia
84
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

traz os gérmens da busca da verdade e a partir dos


quais o espírito crítico pode ser incentivado:

Galileu – Dona Sarti, então a senhora mesma


talvez me ajude. A senhora veja, há uma ques-
tão aqui, e nós não conseguimos chegar a um
acordo, provavelmente porque lemos livros de-
mais. É uma questão sobre o céu, uma questão a
respeito das estrelas. É a seguinte: o que é mais
provável: que o grande gire em torno do peque-
no, ou que o pequeno gire em torno do grande?
Dona Sarti desconfiada – Eu com o senhor
nunca sei. O senhor está perguntando a sério,
ou está fazendo troça comigo?
Galileu – Estou perguntando a sério.
Dona Sarti – Bom, a resposta é fácil. Sou eu
que trago a comida para o senhor ou é o senhor
que traz para mim?
Galileu – É a senhora que traz. Ontem estava
queimada.
Dona Sarti – E por que queimou? Porque o
senhor pediu os sapatos enquanto eu estava co-
zinhando. Não fui eu quem trouxe os sapatos?
Galileu – É provável.
Dona Sarti — Justamente. Porque é o senhor
quem estudou e pode pagar.

‘vulgar’ e popular, que é apenas um conjunto desagrega-


do de idéias e de opiniões.” (Gramsci, 1987, p. 16).
85
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

Galileu – Estou vendo. De modo que não há


dificuldade. Bons-dias, Dona Sarti.
Sarti sai, dando risada.
Galileu – E gente assim não havia de entender
a verdade? Eles têm fome de verdade! (Brecht,
1999, p. 82, grifo do autor).

O bom senso de Dona Sarti sinaliza, para o Ga-


lileu brechtiano, que um conhecimento elaborado
e sistematizado como o científico pode ser disse-
minado e compreendido por todos. Nesse sentido,
para ele, a escola ocupa um lugar importante:

Predigo que a astronomia será comentada nos


mercados, ainda em tempos de nossa vida. Mes-
mo os filhos das peixeiras quererão ir à escola.
Pois os habitantes de nossas cidades, sequiosos
de tudo que é novo, gostarão de uma astrono-
mia nova, em que também a Terra se mova.
(Brecht, 1999, p. 58)

Assim, por mais que critique suas percepções


imediatas, o Galileu literário reconhece nas pes-
soas comuns a “sede de verdade”. Dessa maneira,
afirma a necessidade de democratização do saber.
O décimo ato mostra como os ensinamentos
de Galileu se difundiram entre o povo a ponto
de o desfile carnavalesco abordar a astronomia.
86
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

As ideias aristotélicas defendidas pela Igreja se


tornam alvo de ironia e deboche no carnaval de
rua, nos jograis e nos panfletos. Ouve-se: “E as-
sim, na lei do preceito divino vão girando/ Em
torno dos de cima os inferiores/ Em torno dos
da frente os posteriores/ Assim na Terra como no
Céu.” (Brecht, 1999, p. 137). Em certo momento,
o jogral ironiza o clamor dos que tentam frear os
esforços de Galileu – os brancos que têm conta
nos bancos a quem interessa um mundo hierar-
quizado e desigual: “Pois vamos ser francos, so-
mos brancos, temos conta nos bancos: Passar mal
e passar bem, ser mandado e ser mandão, não é
a mesma coisa não!” (Brecht, 1999, p. 140). A
grande ordem do universo é abalada com a teo-
ria heliocêntrica. Todas as justificativas religiosas
que partem da ordem do céu e justificam a ordem
social são postas sob suspeita.
Para além do paralelo provocativo entre a de-
mocratização do conhecimento e o evento festi-
vo, Brecht traz outras insinuações: “Esta cena de
deboche carnavalesco mostra-nos, no entanto,
que o povo também compreendeu que a ques-
tão não diz respeito apenas ao conhecimento,
mas também ao poder.” (Alcandre, 1999, p. 10).
Apropriação do conhecimento e luta social, nes-

87
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

se sentido, podem articular-se: “[…] quando os


oprimidos tiverem acesso ao conhecimento, eles
tomarão o telescópio das mãos dos cientistas e
mirarão sobre aqueles que os oprimem.” (Orte-
ga, 2016, p. 78).
A abjuração é uma traição à ciência e à docên-
cia: Galileu é infiel em relação à verdade de suas
descobertas e ao que ensina. Seus infortúnios são
historicamente determinados. Como apontamos,
seu caminho dramático é o da constituição do he-
rói surrado. E Andrea, como fica nesse enredo?

88
ANDREA E A BUSCA DO
PROFESSOR-HERÓI

D
e início, Andrea é uma criança que, guiada
pelas mãos de Galileu, acessa conhecimen-
tos que extrapolam as demandas diárias da
vida, como a necessidade de pagamento do alu-
guel e do leite e a compra de um novo agasalho.
Ele não é um aluno qualquer: não estuda na uni-
versidade, nem tem aulas particulares com Gali-
leu. Ele mora com o mestre, o acompanha em seu
viver cotidiano.
Essa proximidade diária nos lembra o Emílio
de Rousseau. O aluno imaginário de Rousseau
é órfão e rico; seu preceptor o acompanha “[…]
desde o momento do seu nascimento até que, já
homem, já não precise de outro guia que não ele
mesmo.” (Rousseau, 2004, p. 29). Já Andrea é fi-
lho da empregada de Galileu. Apesar da diferen-
ça, a relação entre o mestre e o aluno em ambas
as obras porta um forte traço amoroso, tal como
Rousseau observara: “Quando, porém, conside-
ram-se um ao outro como pessoas que devem
passar os dias juntos, é importante para eles que
89
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

se façam amar um pelo outro, e por isso mesmo


se tornam queridos.” (Rousseau, 2004, p. 33). A
convivência diária intensifica o vínculo entre o
afetivo e intelectual, o sensível e o racional no
processo educativo tanto de Emílio, como de An-
drea.
Andrea é um entusiasta do mestre. Sua admi-
ração é tamanha que, em determinado momen-
to, deseja ser como ele: físico. É também leal. No
quinto ato, em um surto de peste, mesmo enviado
para longe da cidade junto com Virgínia, Andrea
retorna, caminhando por três dias, e fica ao lado
de Galileu que preferira ficar em casa para prosse-
guir suas pesquisas.
Andrea se coloca na interseção entre o Galileu
cientista e o Galileu professor: o cientista que, na
descoberta, sente a necessidade de socializá-la e
busca meios para alcançar esse objetivo junto ao
seu pupilo; o cientista que aprende e ouve seu alu-
no em suas sugestões e comentários.12
12 Brecht levou para a peça um fato similar ao que ocorreu.
Era complicada a observação do Sol com o telescópio,
pois demandava a cobertura da lente com uma prote-
ção para não lesionar os olhos: “Por sorte de Galileu, seu
talentoso ex-aluno Benedetto Castelli teve a brilhante
ideia de simplesmente projetar a imagem do Sol forma-
da no telescópio em uma tela ou folha de papel.” (Livio,
2021, p. 89).
90
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

A partir do nono ato, Brecht apresenta Andrea


como uma personagem híbrida: na sua mocidade,
continua sendo discípulo de Galileu, mas tam-
bém já se mostra mais autônomo. Ele incentiva
seu mestre a retomar as pesquisas, depois de oito
anos de silêncio, diante da ascensão de um novo
papa. Ele participa das conversas científicas, su-
gere caminhos de investigação. Por seu turno, o
mestre reconhece o protagonismo do discípulo ao
validar o seu método para a pesquisa das man-
chas solares e, ao fazê-lo, também se mostra no
papel de discípulo.
Snyders (1996, p. 81) pontua que “[…] a contra-
dição vivida pelo aluno entre o apego e a rejeição
ao educador está no cerne da vida escolar; não é
possível suprimi-la, e ela é dolorosa e provoca um
intenso mal-estar.”.
Na peça brechtiana, é possível reconhecer essa
contradição entre a admiração e o desprezo, o
deslumbramento e a decepção do aluno em re-
lação ao professor. Andrea passa da identificação,
do amor e da admiração por Galileu à decepção e
à desilusão. A fraqueza do mestre diante da prisão
e da ameaça de morte são fontes de desaponta-
mento. Como o mestre pôde negar tudo aquilo
que os olhos e a razão viram e puderam testemu-

91
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

nhar? Andrea se revolta contra a humanidade de


Galileu, suas debilidades e seus temores. O herói
que ele buscava e reverenciava desmantela-se.
Devemos admirar Galileu ou desprezá-lo por
sua abjuração? Por certo, Andrea é capturado por
essa dicotomia. Entretanto, segundo Raymond
Williams, não é essa a questão que nos propõe
Brecht:

O que ele indaga é o que acontece com a cons-


ciência quando aprisionada num impasse entre
a moralidade individual e a social. A submissão
de Galileu pode ser explicada e justificada, no
âmbito individual, como um meio de ganhar
tempo para poder dar continuidade ao seu tra-
balho. Mas o ponto que escapa à compreensão
aqui é qual é a finalidade do trabalho. Se a finali-
dade da ciência é permitir que todos os homens
possam aprender a compreender o seu mundo,
a traição de Galileu é fundamental. Separar o
trabalho de sua finalidade humana é, e Brecht
vê isso, trair os outros e desse modo trair a vida.
(Williams, 2002, p. 259).

Ademais, ecoa a resposta de Galileu ao seu dis-


cípulo: infeliz não é a terra que não têm heróis,
mas a que precisa deles.

92
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

E do mesmo modo que é uma sociedade má


aquela que necessita de heróis, assim também é
uma vida má aquela que necessita do sacrifício.
Por uma mudança de ponto de vista dramático
temos de olhar não apenas para a experiência
isolada do mártir, mas para o processo social do
seu martírio. E no processo social que nós vive-
mos, nós que não somos mártires. (Williams,
2002, p. 256).

Precisar de heróis é um sintoma de conformis-


mo, como se a história se movimentasse e fosse
conduzida por indivíduos extraordinários.
Como visto, seis anos depois da abjuração, An-
drea decide sair da Itália para a Holanda para se
livrar da vigilância romana. Sente na pele a perse-
guição e os percalços para continuar sua pesquisa,
tal como acontecera com Galileu. Talvez por esse
motivo decide se despedir do mestre e, de alguma
maneira, se reconciliar com ele. Mas o tom inicial
da conversa é acusatório: ele observa que a abju-
ração causou um retrocesso no campo científico,
efeito que muito satisfaz à Igreja.
Entretanto, diante da confissão de que o mes-
tre continuara a escrever e ao receber cópia do
manuscrito, Andrea ainda se ilude com a ideia de

93
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

que o seu herói tudo planejara para manter-se ati-


vo nas pesquisas:

E nós achávamos que o senhor tinha desertado.


A minha voz era a que gritava mais alto contra
o senhor! […] O senhor escondeu a verdade,
diante do inimigo. […] Nós dizíamos: as mãos
dele estão sujas. O senhor diz: melhor sujas do
que vazias. […] O senhor conquistou o sossego
necessário para escrever uma obra de ciência,
que ninguém mais poderia escrever. Se o se-
nhor acabasse em chamas na fogueira, os outros
é que teriam vencido (Brecht, 1999, p. 162–163).

Andrea ainda deseja salvar o seu herói, como se


tudo tivera sido planejado. Afinal, para ele, “Fra-
quezas humanas não têm nada a ver com a ciên-
cia.” (Brecht, 1999, p. 164).
A admiração e o escárnio vividos por Andrea
em relação a Galileu faz lembrar uma persona-
gem do livro Banquete de Platão: o jovem gene-
ral Alcebíades. Sobrinho protegido de Péricles a
quem deveria suceder nas funções políticas, Al-
cibíades aparece no final do livro: sua chegada à
casa de Agatão é ruidosa e impactante. Como as-
sinala Pessanha (1987a, p. 99), com a chegada de
Alcibíades, aparece a “paixão dionisíaca”, inconti-

94
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

da, “[…] acorrentada à imediatez, ao presente, ao


sensível, à urgência do aqui e do agora.” (Pessa-
nha, 1987a, p. 100).
Parecendo embriagado, ele pede que se altere o
percurso da conversa dos convivas: de um elogio
ao amor para um elogio do outro. Endereça seu
discurso a seu antigo mestre Sócrates, por quem
nutre admiração e amor excessivo e a quem in-
sulta e despreza por não corresponder aos seus
desejos. Sócrates chega ao ponto de requerer ao
anfitrião da festa que o defendesse:

Agatão, vê se me defendes! Que o amor deste


homem se me tornou um não pequeno proble-
ma. Desde aquele tempo, com efeito, em que o
amei, não mais me é permitido dirigir nem o
olhar nem a palavra a nenhum belo jovem, se-
não este homem, enciumado e invejoso, faz coi-
sas extraordinárias, insulta-me e mal retêm suas
mãos da violência. Vê então se também agora
não vai ele fazer alguma coisa, e reconcilia-nos;
ou se ele tentar a violência, defende-me, pois eu
da sua fúria e da sua paixão amorosa muito me
arreceio. (Platão, 1991, p. 89).

As relações entre Sócrates e Alcibíades são


analisadas a partir de diferentes abordagens e

95
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

preocupações (cf. Gutman, 2009; Cunha; Bir-


man, 2012). Interessa-nos destacar o caráter pe-
dagógico desse vínculo por meio da erastia, isto
é, “[…] do hábito, entre os gregos, de legalmente
promover, mais exatamente contratar sob a vigi-
lância dos pais, um cuidado amoroso do cidadão
mais velho e experiente no acompanhamento dos
mais jovens a título de uma presença em termos
de orientação e de educação cívica do futuro ci-
dadão (do polítes).” (Spinelli, 2021, p. 14, grifo do
autor). Filhos da elite grega podiam ter um erasté
(preceptor adulto) que se ocupava da preparação
do futuro cidadão.
Há uma dimensão amorosa bastante específica
da atividade erástica entre o preceptor e seu dis-
cípulo:

Numa relação erástica – eis o pressuposto rela-


tivo ao dispensário do amor – não era prescrito
que o erastés (o preceptor) dirigisse ao garoto, e
o garoto ao erastés propriamente o amor, e sim
tudo aquilo que era devido dispensar (oferecer)
um ao outro em nome do amor (de Eros). Ao ga-
roto era obrigação do erastés dispensar proteção,
cuidado, instrução e saber ao modo de quem
ama, de tal modo que “proteção, cuidado e sa-
ber” era o devido (requerido) a ser primordial-

96
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

mente dado em nome do amor. Do jovem, sob


sua proteção, não era devido ao erastés (ao mes-
tre cuidador e preceptor) requerer amor para
si, e sim amor pelo saber ao qual o mestre se
empenhava amorosamente em oferecer, ofertar,
promover. (Spinelli, 2021, p. 25, grifo do autor).

O discurso de Alcibíades retrata não apenas as


oscilações de amor e desprezo do discípulo com
o mestre, mas o próprio insucesso do processo
educativo. Della Fonte (2010, p. 128) aponta que
uma das lições do clássico platônico é que “[…] o
verdadeiro amante não escraviza o amado, mas o
conduz à sabedoria.”. Na relação entre Sócrates e
Alcebíades, a sabedoria do mestre é reconhecida
pelo discípulo, mas a relação amorosa é nutrida
de maneira personificada, desfigurando o papel
emancipatório do processo educativo e contami-
nando a relação entre os sujeitos a tal ponto de
rompê-la:

O principal da desavença entre Sócrates e Alci-


bíades não tem a ver diretamente com a sexuali-
dade, e sim com a afetividade. Assim que Sócra-
tes contraiu a relação erástica com Alcibíades,
começou o problema: o garoto Alcibíades pas-
sou a exigir exclusividade, no sentido de que Só-

97
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

crates haveria de ser o erastés só dele e de mais


ninguém. Isso, para Sócrates, com certeza vinha
a ser um sério problema, visto que, em nome da
Filosofia, do estudo e da reflexão sobre si mes-
mo, andava pelas ruas de Atenas dispondo-se a
ser o erastés de todo e qualquer jovem disposto
a se deixar cuidar pela poíesis (pelo fazer, pela
ação ou pela tarefa) filosófica. Ora, Alcibíades,
como consta no Banquete (214 e), passou a cul-
tivar na relação com Sócrates um páthos (um
entusiasmo) excessivo, exacerbado, mediante o
qual a philerastia [phílos (amigo) + eráo (amar)],
isto é, a amabilidade redundou numa mania,
e, portanto, em manifestação de um desequi-
líbrio emocional, afetivo, psicológico. Levado
a participar de uma relação em que implicava
amabilidade e cuidado, o órfão Alcibíades (que
tinha por kýrios, por responsável, Péricles, seu
tio, absorvido nos afazeres da política) desen-
volveu uma degradação da afeição (philía), quer
em público quer em particular. (Spinelli, 2021,
p. 16–17, grifo do autor).

Cuidando de seu pupilo e o amando, o erastes


não rogava amor a si, mas ao que ele possibilita-
va: o conhecimento. Por essa razão, em Platão, há
a “[…] passagem do amor aos rapazes (Erótica)
ao amor à verdade (Filosofia).” (Pessanha, 1987a,

98
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

p. 84). Entretanto, o processo educativo de Alci-


bíades não foi capaz de deslocar o amor imediato
entre os sujeitos para o âmbito do conhecimento;
permaneceu ao nível carnal, na taxionomia eróti-
ca de Platão. Dessa maneira, o alvo dos afetos de
Alcibíades torna-se o mestre, seja amando-o, seja
desprezando-o.
Essa parece ser a consequência de se heroicizar
o mestre: seu lugar de centralidade atrai para si
quaisquer afetos, méritos ou fracassos do proces-
so educativo. De uma maneira própria, Andrea
descamba nesse território no qual o deslumbra-
mento e a aversão se metamorfoseiam entre si e se
alternam em termos de predominância.
Crer que o mestre-herói planejou sua abjura-
ção em nome do progresso da ciência foi a últi-
ma cena dessa odisseia formativa. Mas ainda era
tempo de mais uma aprendizagem: Galileu afirma
para Andrea que a igreja venceu, que ele não pla-
nejou nenhum feito heróico; pelo contrário, teve
medo: “Bem-vindo à sarjeta, irmão na ciência e
compadre na traição! […] Santificada seja a nossa
congregação de traficantes e puxa-sacos mortos
de medo de morrer!” (Brecht, 1999, p. 164).
Snyders (1996, p. 83) observa: “O educador é
frágil e os alunos, de modo mais ou menos confu-

99
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

so, dão conta disso […]”. Para o autor, essa fragi-


lidade se deve a várias razões. Como se verifica, a
peça de Brecht nos oferece algumas delas.

100
A TRANSFORMAÇÃO
DO ALUNO
Da heteronomia necessária à
autonomia desejada

O
último ato da peça retrata a cena de um An-
drea não apenas cientista, a fugir e a contra-
bandear conhecimentos. É o Andrea pro-
fessor que se importa com a pergunta do menino
Giuseppe e traz em sua resposta a dinamicidade
do mundo: o que hoje se mostra impossível pode
deixar de o ser. Enquanto a constituição de Gali-
leu é a do herói surrado, o movimento de Andrea
no decorrer da peça testemunha o cerne do pro-
cesso educativo.
Ao longo do desenvolvimento humano, o ser
humano precisa valer-se do apoio de outros para
apreender as conquistas humanas materializadas
em conhecimentos, comportamentos, hábitos,
valores etc. Nesse sentido, observa Kant, a hetero-
nomia representa a condução e regulação exter-
na da conduta no sentido de garantir o cuidado
101
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

e o convívio social. O tema é controverso, mas a


posição de Kant é clara: não se trata de estabele-
cer uma relação pedagógica de adestramento: “A
educação deve ser impositiva; mas, nem por isso,
escravizante.” (Kant, 2002, p. 62). Desse modo, à
educação cabe garantir que a construção da ação
humana considere as relações sociais (e não se
guie por meros caprichos individuais) e a apren-
dizagem com as gerações predecessoras. Nesse
sentido, a sujeição à vida social é o passo primeiro
na inserção da criança ao mundo humano. À me-
dida que incorpora esse universo de produções de
modo heterônomo, o ser humano cria condições
de desenvolver sua autonomia, de conduzir sua
vida pelo uso da razão. Essa seria a trajetória de-
sejável: da heteronomia à autonomia.
A conquista da autonomia não representa al-
cançar um lugar de isolamento no qual o sujeito
individual pense e decida sua vida de modo abs-
trato, fora das relações sociais. Pelo contrário, é
no diálogo aberto, público e fundamentado, em
meio a relações sociais, que ele tem condições
de conduzir conscientemente sua vida. Snyders
(1996) observa que nunca prescindimos de mes-
tres, sempre recorremos a canais de informação,
instituições, recomendações etc. Portanto, afir-

102
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

ma-se “A escola não para aprender a prescindir


de mestres, mas para se preparar a fim de melhor
escolher os mestres voluntários da maturidade.”
(Snyders, 1996, p. 116).
Essa consideração aponta que, em relação à
prática social, há entre o professor e o aluno, um
desnível no ponto de partida do processo educa-
tivo:

E do ponto de vista pedagógico há uma dife-


rença essencial que não pode ser perdida de
vista: o professor, de um lado, e os alunos, de
outro, encontram-se em níveis diferentes de
compreensão (conhecimento e experiência) da
prática social. Enquanto o professor tem uma
compreensão que poderíamos denominar de
“síntese precária”, a compreensão dos alunos é de
caráter sincrético. A compreensão do professor
é sintética porque implica uma certa articulação
dos conhecimentos e experiências que detém
relativamente à pratica social. Tal síntese, po-
rém, é precária uma vez que, por mais articula-
dos que sejam os conhecimentos e experiências,
a inserção de sua própria prática pedagógica
como uma dimensão da prática social envolve
uma antecipação do que lhe será possível fazer
com alunos cujos níveis de compreensão ele não
pode conhecer, no ponto de partida, senão de

103
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

forma precária. Por seu lado, a compreensão dos


alunos é sincrética uma vez que, por mais co-
nhecimentos e experiências que detenham, sua
própria condição de alunos implica uma impos-
sibilidade, no ponto de partida, de articulação
da experiência pedagógica na prática social de
que participam. (Saviani, 2008, p. 56–57).

Nesse ponto, Saviani aproxima-se de Gramsci.


Os alunos portam conhecimentos e experiências
frutos das suas práticas sociais cotidianas; seu ca-
ráter sincrético remete àquilo que Gramsci chama
de “filosofia espontânea”, pois engloba concepções
de mundo (contidas na linguagem, nas várias
crenças, opiniões, modos de agir e compreender)
que se aglutinam de modo desagregado e incoe-
rente. Como justaposição de fragmentos, essa “fi-
losofia espontânea” é “[…] composta de uma ma-
neira bizarra: nela se encontram elementos dos
homens das cavernas e princípios da ciência mais
moderna e progressista.” (Gramsci, 1987, p. 12).
Por sua vez, pressupõe-se que, por sua forma-
ção e experiência, o professor possui uma com-
preensão articulada e sistemática da prática so-
cial; contudo, mesmo assim, o seu engajamento
no processo educativo no ponto de partida se dá
apenas em termos de projeção e planejamento.
104
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

Ele possui, neste momento, um conhecimento


precário acerca da condição de seus próprios alu-
nos, limite que só pode ser superado no encontro
e no diálogo com esses estudantes.
Portanto, há um desafio duplo posto para am-
bos os agentes do processo educativo: o aluno
precisa elevar seu conhecimento e sua experiên-
cia com o mundo a um nível sintético, coerente e
consciente; por sua vez, o professor também ne-
cessita passar por transformações a fim de superar
a precariedade que tem acerca do conhecimento e
do potencial de seus alunos com quem construirá
o processo educativo. O horizonte é a transforma-
ção do sujeito que aprende, assim como do sujeito
que ensina. Nesse sentido, o professor também se
forma, também aprende.
Se houvesse uma igualdade no início entre alu-
no e professor, o trabalho educativo não se jus-
tificaria, não haveria sentido, pois ele se mostra-
ria inútil. Portanto, o processo educativo em seu
ponto de partida é marcado pela condição desi-
gual entre alunos e professor em sua relação com
o mundo, mas também pela possibilidade de se
superar isso ao longo do processo. Nas palavras
de Saviani (2008, p. 58), “[…] a educação é uma
atividade que supõe uma heterogeneidade real e

105
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

uma homogeneidade possível; uma desigualdade


no ponto de partida e uma igualdade no ponto de
chegada.”.
O telos do processo educativo indica, assim, a
superação da assimetria entre mestre e discípu-
lo: “O educador é, simultaneamente, superior aos
alunos por sua posição, seu saber e sua experiên-
cia de vida e é superado pelos alunos na mesma
proporção em que o amanhã supera o hoje, em
que a força que se anuncia supera as realizações já
fixadas.” (Snyders, 1996, p. 84).
A conquista da igualdade e da autonomia indi-
ca o momento em que a personificação do amor
se esvai no processo pedagógico. A relação pro-
fessor amante e aluno amado é superada. Como
mediador da experiência formativa e do contato
com as obras-primas da humanidade, o profes-
sor dá as mãos ao aluno para que ele ascenda à
igualdade e se torne tão amante do conhecimento
como ele próprio o é.
Nessa nova condição, tal como o Prometeu de
Ésquilo, Andrea torna-se um criminoso a traficar
um conhecimento proibido. Galileu ainda o aler-
ta, em um salto histórico do século xvii para o
xx: “Você se cuide, quando atravessar a Alema-
nha, com a verdade embaixo do casaco.” (Brecht,

106
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

1999, p. 166). O cuidado do ex-discípulo vai na di-


reção oposta ao que se possa imaginar. Na frontei-
ra da Itália, Andrea não esconde a “verdade”. En-
quanto o guarda da fronteira revista sua bagagem,
ele tem os manuscritos do mestre na sua mão: ele
os lê, sentado em uma caixa.
Talvez isso explique por que a figura central
do final da peça de Brecht já não é Galileu, mas
Andrea. O conhecimento está no começo, assim
como também se inicia a vida desse novo cientis-
ta que se torna professor diante do menino Giu-
seppe. Em outras palavras, o último ato da Vida
de Galileu coincide com o início da história de
Andrea, agora cientista e professor.

107
CONSIDERAÇÕES
FINAIS

La caída de Icaro (1635–1637), pintura de Jacob Peter Gouwy

108
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

O céu de Ícaro tem mais poesia que o de


Galileu.
Tendo a lua, música de Paralamas do Su-
cesso (1991).

O céu de Galileu, com seus fenômenos


catastróficos, de tão desmesurado, dificil-
mente poderia ser sonhado por um poeta.
Mas poucos negariam a intensa poesia dos
mundos em convulsão que o habitam.
Mello Neto (2010, p. 57).

E
m virtude de uma punição de Minos, o ar-
quiteto Dédalo e seu filho Ícaro foram pre-
sos no labirinto, que ele próprio construíra
a pedido do soberano cretense. Para fugir de lá,
Dédalo inventou grandes asas artificiais. Antes de
levantar voo, aconselhou o filho a não voar mui-
to alto para não se aproximar do sol. Contudo,
em sua empolgação, Ícaro ignorou os conselhos
do pai e voou em grandes altitudes. Os raios do
sol derreteram a cera que fixava suas asas e ele se
precipitou no mar em uma queda mortal, como
retratou Gouwy em sua tela do século xvii.
O fim trágico de Ícaro não deixa de suscitar
encantamentos: ele alçou o voo da liberdade, da

109
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

conquista do ar, do deslumbramento com o céu.


Atreveu-se a seguir o ímpeto e a excitação do so-
nho se realizando. Ousou ir além para onde seu
desejo apontava, mesmo sabendo que corria ris-
cos.
Nos versos de sua música, o grupo musical
brasileiro se rendeu ao encanto da narrativa mi-
tológica, possivelmente contrapondo-a à frieza, à
racionalidade, ao cálculo das investigações cien-
tíficas. O céu de Galileu é o da ciência moderna,
dos números, da matematização.
A observação de Ortega (2016) para o Galileu
brechtiano vale para o Galileu histórico: ele foi o
pecador original da ciência moderna. Há um per-
curso que se delineia desse pecador originário a
extermínios, bombas nucleares, catástrofes e des-
truição ambiental. Sob essa ótica, ganham sentido
os versos seguintes da canção:

Tendo a lua aquela gravidade aonde o homem


flutua
Merecia a visita não de militares
Mas de bailarinos
E de você e eu. (Paralamas do Sucesso, 1991).

No século xx, a Guerra Fria fez da lua objeto


de disputa na corrida espacial entre as potências
110
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

mundiais. Entretanto, a música insiste: a lua per-


tence aos amantes e à arte; flutuar nela é bailar,
não é colonizar e guerrear. Nesse sentido, o céu
de Ícaro é o da poesia. A ciência que descambou
em guerras e barbáries aparece, assim, como um
território árido, frio, sem beleza, a serviço da do-
minação. Seus cientistas, descritos por um viés
lendário e mitológico, ocupam uma posição he-
roica, acima das relações sociais e inacessível às
pessoas comuns (Canalle; Moura, 2001).
Essa linhagem da tradição científica existe, é
inconteste, mas não é a única. Talvez o texto
brechtiano nos ajude a problematizar essa ques-
tão. Em contraste com uma suposta grandeza e
magnanimidade, colocam-se, pelo menos, duas
questões. Em primeiro lugar, a vida desses sujeitos
não está acima das relações sociais conflituosas e
contraditórias do momento. Seus feitos “extraor-
dinários” dependem da contribuição de sujeitos
“ordinários” que a história oficial invisibilizou.
Sair da história oficial das grandes figuras implica,
como sugere Benjamin, “[…] escovar a história
a contrapelo […] ” (Benjamin, 1985, p. 225). Nos
versos finais de “Perguntas de um operário que lê”,
Bertold Brecht sintetiza a tese benjaminiana:

111
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

Por todo canto uma vitória.


Quem cozinhou o banquete da vitória?
Cada dez anos um grande homem.
Quem pagou as despesas?
História de mais.
Perguntas de menos. (Brecht, 1966, p. 147).

Contrapor-se à lógica dos heróis históricos é


indagar-se pelos invisíveis e anônimos da histó-
ria, é romper a empatia com o vencedor e com
sua história oficial. Nessa direção, Brecht rodeia o
Galileu literário de pessoas “coadjuvantes”, sem as
quais seus estudos não se viabilizariam: sua filha,
D. Sarti, seus amigos, o operário polidor de lentes
Federzoni, entre outros.
Além disso, Brecht problematiza a história
oficial ao transformar sua personagem principal
em uma espécie de anti-herói, cuja vida é puída…
atravessada por sofrimentos, medos, recuos, con-
denações, perseguições, cooptações. A menção a
Descartes no diálogo final entre Galileu e Andrea
não é ocasional. Quando o cientista pergunta se
tinha novidades de Paris e do filósofo francês, seu
antigo pupilo responde: “A notícia da sua retrata-
ção fez com que ele engavetasse um tratado sobre
a natureza da luz.” (Brecht, 1999, p. 159).

112
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

Considerado um dos fundadores da filosofia


moderna, Descartes foi acusado de blasfêmia e
ateísmo. Várias de suas obras foram banidas de
universidades e incluídas no índice de livros proi-
bidos da Igreja Católica. De fato, a condenação de
Galileu o perturbou bastante:

Quando acaba de concluir um livro e ouve que


Galileu, ao dizer coisas semelhantes sobre o
mesmo tema, teria sido condenado pela Igreja,
acautela-se temerosamente de publicar a obra.
Pois, escreve a um amigo, “desejo tranquilida-
de. O mundo não colocará os olhos nessa obra
antes que passem cem anos após minha morte.”
(Weischedel, 2000, p. 134).

O Tratado do mundo e da luz já estava pronto


para ser impresso, mas Descartes recuou:

E por prudência (que alguns críticos conside-


rarão às vezes excessiva), toda a obra posterior
do filósofo ficará até certo ponto mutilada ou
deformada: Descartes apresentar-se-á como
um “filósofo mascarado” (segundo sua própria
expressão), passando a se exprimir de forma
frequentemente embuçada e ambígua, para
garantir a tranquilidade de sua vida e evitar a
repressão da Igreja. (Pessanha, 1987b, p. xiii)

113
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

Nas palavras do próprio Descartes, “Do mes-


mo modo que os atores colocam uma máscara,
para que a vergonha não se reflita em suas faces,
assim penetro eu no teatro do mundo – mascara-
do.” (Descartes, [s.d.], apud Weischedel, 2000,
p. 131). A defesa cartesiana do ideal de clareza e
distinção como a trilha certa e segura para a razão
chegar à verdade (Descartes, 2006) coexistiu
com um filósofo que se reconhece envergonhado;
por meio de uma máscara, atua de maneira indis-
tinta e opaca. Difícil precisar as fronteiras entre
prudência, astúcia, covardia e medo nessa decisão.
Outro aspecto para o qual a peça brechtiana
chama atenção é que o negacionismo acompa-
nhou, desde o nascimento, a ciência moderna.
Sua história é tão complexa como a do próprio
desenvolvimento científico. Suas atualizações são
diversas. Para compreendê-las, torna-se necessá-
rio enxergá-las como estratégias políticas e eco-
nômicas. Por exemplo, as pesquisas científicas no
início da década de 1950 que reforçaram o víncu-
lo entre uso de cigarros e o desenvolvimento de
doenças respiratórias, como o câncer de pulmão,
foram acompanhadas da reação das companhias
de tabaco que criaram e financiaram a Tobacco In-
dustry Research Committee (Comissão de Investi-

114
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

gação da Indústria do Tabaco) a fim de convencer


o público de que não havia provas e evidências
que relacionassem uso de cigarros e câncer. Des-
de a década de 1970, pesquisas científicas também
passaram a alertar sobre as consequências da ex-
tração e uso do petróleo. Diante disso, a indústria
do petróleo também financiou suas próprias pes-
quisas para desvincular a relação entre o uso do
dióxido de carbono e o aquecimento global antro-
pogênico (Pivaro; Girotto JR., 2020).
Essas duas campanhas negacionistas buscaram
insistir nas incertezas das pesquisas científicas:

Como ironicamente questiona Rabin-Havt


(2016), se a ciência não é a dona da verdade,
por que deveríamos tomar atitudes que preju-
dicam o bem-estar econômico de fazendeiros e
de milhares de trabalhadores da indústria taba-
gista, bem como dizer às pessoas que elas não
deveriam usufruir de um hábito prazeroso? Do
mesmo modo, podemos questionar que se não
há um consenso científico sobre quais as causas
das mudanças climáticas, por que prejudicaría-
mos as indústrias petrolíferas que tanto forta-
lecem a economia e fornecem empregos para a
população em tempos de crises? (Pivaro; Gi-
rotto JR., 2020, p. 1078).

115
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

Pivaro e Girotto Júnior (2020) também obser-


vam que houve entre essas campanhas uma dife-
rença. Ao longo dos anos, a mídia televisiva e im-
pressa ganhou um lugar decisivo como máquinas
de desinformação, amenizando a parcialidade da
propagação dos interesses das empresas:

Para isso, [essas máquinas] começaram a repor-


tar os “dois lados” de diversos assuntos ditos
controversos. Contudo, a intenção de mostrar
os dois lados da história caracterizou-se desas-
trosa para a divulgação científica, criando-se
uma falsa equivalência entre discursos, como se
ambos os lados tivessem a mesma credibilidade.
[…] Diferentemente da indústria do tabaco, não
era mais necessário gastar-se milhões em propa-
gandas para difundir declarações negacionistas
uma vez que, soltando-se a isca da controvérsia,
a própria mídia se encarrega de cobrir o assunto.
(Pivaro; Girotto JR., 2020, p. 1079).

Ademais, afirmam os autores, essa nova es-


tratégia do negacionismo científico assumiu um
partidarismo político de defesa da agenda neoli-
beral. Sob esse contexto, os resultados científicos
se tornam passíveis de julgamentos pessoais de
qualquer natureza.

116
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

A eleição de “pós-verdade” como palavra do


ano pelo Dicionário Oxford em 2016 expressa
esse novo contexto: o neologismo (de parentesco
pós-moderno) sinaliza como se modela a opinião
pública, negligenciando fatos objetivos e apelan-
do para o campo das emoções e crenças pessoais:
“O que vemos com essa chamada era da pós-ver-
dade é uma ampliação da subjetividade da reali-
dade para outros diversos aspectos além da nega-
ção das evidências científicas.” (Pivaro; Girotto
JR., 2020, p. 1083).
Além do negacionismo climático, o anticienti-
ficismo contemporâneo mundial aglutina terra-
planistas e movimento antivacina, este último in-
tensificado pela pandemia mundial da Covid-19.
Tendo como suporte a produção de notícias falsas,
disseminam-se a defesa da equivalência de co-
nhecimentos e opiniões, o desvario de supersti-
ções e obscurantismo, a virulência da ignorância.
Como mencionado, o negacionismo científico
não é um fenômeno contemporâneo, mas ganha
peculiaridades na contemporaneidade, momento
no qual a descrença na ciência é uma das mani-
festações do movimento neoconservador e obs-
curantista sob um norte neoliberal

117
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

[…] o estágio atual do capitalismo imperialis-


ta, que se distingue pela financeirização do ca-
pital e pelo neoliberalismo, tem resultado no
aumento da concentração de riqueza, no apro-
fundamento brutal das desigualdades sociais e
no incremento do conservadorismo conduzido
por movimentos de setores da direita cada vez
mais ruidosos e organizados. Suas manifesta-
ções obscurantistas, ainda que, em aparência, se
manifestem irracionais e localizadas em alguns
setores da sociedade, essencialmente fazem
parte das estratégias de dominação conduzi-
das sob o neoliberalismo. O fortalecimento dos
movimentos conservadores não se revela, assim,
como um processo que vem se somar ao neo-
liberalismo, mas, ao contrário, lhe é inerente.
(Miranda, 2020, p. 689)

O clamor de Galileu pela observação criteriosa


dos fatos, pela consideração das evidências nas
interpretações científicas, pela separação entre
verdade e autoridade mostram-se muito atuais.
Esse fato pode nos dizer que há, nesse campo do
saber, um potencial de verdade que ameaça e cau-
sa desconforto a posições dominantes.
Essa outra face do desenvolvimento científico
sinaliza o quão relevante a ciência também se co-
loca quando se compromete com a verdade. Por-
118
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

tanto, apesar da crítica incisiva que faz à ciência,


a peça de Brecht também nos adverte que outras
estirpes também se desenvolveram e estabelecem
a ciência como uma arena de conflito. Um trecho
da epígrafe do ato 15, momento no qual Andrea
está na fronteira italiana, reforça isso:

Meu vizinho, a ciência agora está contigo,


Cuida dela, cuida bem, mas como amigo.
Que senão ela sobe, cresce, estoura e desce,
Nos come a todos e depois esquece.
E depois esquece. (Brecht, 1999, p. 167).

A compreensão de ciência de Galileu se alte-


ra ao longo da peça. Em seu último diálogo com
Andrea, Galileu defende que o cerne do conheci-
mento científico é sua proximidade com a multi-
dão. Caso contrário, a ciência se infla, nos devora,
nos aniquila; torna-se expressão do esquecimento
do humano. Cuidar da ciência é colocá-la a servi-
ço do alívio da dor e do sofrimento humano. Des-
se modo, segundo Ortega (2016, p. 72), o Galileu
surrado consegue, finalmente, perceber que “[…]
a luta pelo leite e pela verdade científica […] ” são
indissociáveis.

119
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

Se considerada essa outra linhagem do conhe-


cimento científico, não haveria uma chance de
reavaliar o céu de Galileu?
Galileu publicou, em 1610, um livro com relatos
de observações realizadas por meio do telescópio,
que dedica a Cosme de Médicis, IV Grão-Duque
da Toscana, no interesse de ter seu apoio e prote-
ção. Escrito ainda em latim, com o título Sidereus
nuncius, o cientista aludia a um aviso, notícia ou
mensagem das estrelas.
Leitão (2010, p. 22) observa que esse opúscu-
lo de Galileu foi pensado deliberadamente para
“causar sensação”. Seu título segue essa tendência,
inclusive com um tom jornalístico, de ser uma es-
pécie de Gazeta sideral:

Galileu refere-se muitas vezes ao seu livro como


um “Avviso”, por vezes especificando, “Avviso
astronomico”, isto é, um texto destinado a re-
latar novidades com um tom jornalístico. Esta
intenção reflecte-se desde logo no título, com
a famosa ambiguidade entre “mensagem” e
“mensageiro” criada pela palavra Nuncius, uma
ambiguidade que atormenta todos os tradutores
que lidaram com esta obra. (Leitão, 2010, p. 22,
grifo do autor).

120
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

Na primeira edição brasileira, Sidereus nuncius


foi traduzido em consonância com a intenção de
Galileu, como “A mensagem das estrelas” (Gali-
lei, 1987a [1610]). Contudo, nas edições seguin-
tes, consolidou-se a tradução “O mensageiro das
estrelas” (Galilei, 2009 [1610]). Para além da
ambiguidade do termo latim, essa tendência que
acabou se tornando hegemônica se deve a Kepler.
Como explica Camenitzki (2009, p. 17, grifo do
autor): “O mais notável entre os copernicanos,
Johannes Kepler, manifesta-se imediatamente
após a leitura do texto, escrevendo o Conversas
com o mensageiro das estrelas [Dissertatio cum
nuncio sidéreo ], onde apoia as descobertas de Ga-
lileu, sem mesmo haver observado o céu com a
luneta.”.
Se, inicialmente, Galileu atribui a seu livro o
registro das mensagens que o céu lhe envia e o
telescópio lhe permite acolher e interpretar, Ke-
pler desloca a atenção das estrelas para aquele
que recebe e traduz suas mensagens. É com esse
mensageiro que Kepler conversará e não propria-
mente com os corpos celestes vistos através do
telescópio. Desse modo, ganha relevância o lugar
do decifrador estelar, o que configura, segundo

121
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

Capozzoli (2009, p. 6), “[…] a interpretação mais


lírica de Galileu.”.
Se Galileu ouviu as estrelas, cabe-nos repetir
os versos do soneto de Olavo Bilac: “Treslouca-
do amigo!/ Que conversas com elas? Que sentido/
Tem o que dizem, quando estão contigo?” (Bilac,
1980, p. 47). O que as estrelas disseram a Galileu
nessas observações? Que mensagens os corpos
celestes lhe enviaram?

122
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

Figura 3 – Folha de rosto do livro Sidereus nuncius, de Galileu.

Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Sidereus,_nun-
cius_magna_longeqve_admirabilia_spectacula…_Wellcome_
L0072630.jpg . Acesso em: 20 nov. 2021.

123
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

Em Sidereus nuncius, Galileu (2009 [1610], p.


31) registra “[…] inaudita novidade […] ” decor-
rente de três conjuntos de observações feitas com
o auxílio do telescópio, como sintetiza Silva e Lu-
quiari (2017): observações da natureza da lua; das
nebulosas e Via Láctea; e dos satélites de Júpiter.
A primeira delas refere-se ao satélite da Terra:
“[…] a Lua não é coberta por uma superfície lisa
e polida, mas áspera e desigual que, do mesmo
modo que a Terra, é coberta em todas as partes
por enormes proeminências, profundos vales
e sinuosidades.” (Galilei, 2009 [1610], p. 32). A
suposta perfeição do mundo supralunar era des-
mentida. Seu relevo acidentado e desigual revela
que o mundo sub e supralunar não se diferenciam
e, nesse sentido, não é possível estabelecer a hie-
rarquia do cosmo.
Galileu registra ainda que, com o telescópio, é
possível enxergar uma numerosa e inacreditável
quantidade de estrelas, de diversas grandezas, que
não eram percebidas a olho nu.

A Galáxia não é outra coisa senão um conglo-


merado de inumeráveis estrelas reunidas em
nuvens. A qualquer região que se dirija o óculo,
imediatamente se apresenta à vista uma enorme
quantidade de estrelas, algumas das quais pare-
124
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

cem bem grandes e conspícuas, se bem que fica


completamente incalculável o número das pe-
quenas. (Galilei, 2009 [1610], p. 55).

Dado que, na Galáxia, se observa aquela bran-


cura láctea como nuvem esbranquiçada, mas
também brilham debilmente muitas partes de
semelhante cor, dispersas pelo éter, se o óculo
é dirigido para qualquer uma delas, toparemos
com uma assembléia de estrelas. Além disso (o
que aumenta ainda mais o assombro), as estre-
las que até este dia são denominadas nebulo-
sas por todos os astrônomos são agregados de
estrelinhas admiravelmente espalhadas, cujos
raios, por sua mescla, escapam do alcance da
vista pela pequenez ou pelo grande afastamen-
to de nós; assim surge aquela brancura que até
agora se tinha tomado por uma parte mais den-
sa do céu, capaz de refletir os raios do Sol ou das
estrelas. (Galilei, 2009 [1610], p. 55).

O céu de Galileu é composto de um número


maior de estrelas que se supunha. Há uma infini-
dade delas. As até então chamadas estrelas nebu-
losas eram, na verdade, uma “assembleia de estre-
las”, pequenas e distantes. Ademais, elas não estão
fixas. Não há uma esfera de estrelas estáticas que
limitam o universo. A noção de um cosmo imu-
125
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

tável e limitado é posto em xeque. A humanidade


espreitava “[…] o vasto universo que existe além
do Sistema Solar.” (Livio, 2021, p. 79).
O uso do telescópio ocupa um lugar central
nessas descobertas. Koyré (2006, p. 84, grifo do
autor) observa que muitas estrelas no céu eram
invisíveis porque ou eram muito pequenas ou es-
tavam muito distantes: “No primeiro caso, o pers-
pecillium atuaria como uma espécie de microscó-
pio celeste, ampliando, por assim dizer, as estrelas
até dimensões perceptíveis; no segundo, seria um
“telescópio” e, por assim dizer, traria as estrelas
para mais perto de nós, a uma distância que se
tornassem visíveis.”.
Quanto às observações de Júpiter, Galileu
(2009 [1610], p. 32) descobre, em sua órbita, “[…]
quatro estrelas errantes que ninguém antes de nós
conheceu e observou […]”. Isso significava que:

De fato, agora temos não mais um planeta gi-


rando em torno de outro enquanto ambos per-
correm uma órbita em torno do Sol, mas certa-
mente quatro estrelas que, como a Lua ao redor
da Terra, se oferecem aos nossos sentidos gi-
rando em torno de Júpiter, enquanto todos eles
percorrem junto com Júpiter uma grande órbita

126
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

em torno do Sol no lapso de 12 anos. (Galilei,


2009 [1610], p. 77).

Galileu descobriu que essas estrelas se moviam,


isto é, faziam uma “[…] dança celestial […] ” (Li-
vio, 2021, p. 19) ao redor de Júpiter. A observa-
ção dessas estrelas (as mediceias) comprovava
que outras órbitas existiam para além da terrestre.
Portanto, a Terra não poderia ser considerada o
centro do universo.
O Galileu-histórico não coincide com o “eu-
-lírico” do poema Ora (direis) ouvir estrelas, mas,
mesmo assim, ele conversa com as estrelas. Longe
de significar perda da sensatez, conversar com seu
objeto é crucial para o cientista. Seu objeto de in-
vestigação é dotado de existência real. Assim, ele
tem primazia. Porém, suas determinações sempre
escapam de uma apreensão total e imediata. Para
se tornar inteligível, ele precisa ser interrogado: “A
interrogação e a resposta são mutuamente deter-
minantes, e a relação só pode ser compreendida
como um diálogo.” (Thompson, 1981, p. 50, grifo
do autor).
Como observa Duarte (1993), em uma gnosio-
logia realista, o primado do objeto não representa
a anulação do sujeito e a banalização da atividade
intelectual, aprisionada à empiria imediata. Pelo
127
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

contrário, a objetividade do conhecimento dialé-


tico pede mais e não menos sujeito: “[…] o sujeito
deve aguçar sua sensibilidade, sem se tornar oni-
potente […]” (Duarte, 1993, p. 42). Na produção
científica, o sujeito necessita, por um lado, inter-
pelar o objeto em sua existência real e, por outro,
ter ouvido para ouvir e entender o que ele diz.
Nessa conversa, ser o mensageiro das estrelas
impõe a Galileu a tarefa de compreender a lingua-
gem estelar, como ele próprio menciona:

A filosofia encontra-se escrita neste grande li-


vro que continuamente se abre perante nossos
olhos (isto é, o universo), que não se pode com-
preender antes de entender a língua e conhecer
os caracteres com os quais está escrito. Ele está
escrito em língua matemática, os caracteres são
triângulos, circunferências e outras figuras geo-
métricas, sem cujos meios é impossível enten-
der humanamente as palavras; sem ele vagamos
perdidos dentro de um obscuro labirinto. (Gali-
lei, 1987b [1623], p. 21, grifo nosso).

Ao traduzir essa história com a liberdade que


a arte lhe permite, Brecht nos faz ver que, talvez,
em meio a suas próprias contradições, há muitas
coisas admiráveis no campo científico. Galileu

128
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

também enfrentou seu labirinto; os conhecimen-


tos e instrumentos científicos foram suas asas
para a liberdade. Ele também ousou atravessar li-
mites, cedeu à racionalidade técnica e, por várias
vezes, buscou meios injustificáveis para atingir
seus objetivos. Em certa medida, foi porta-voz da
emergente sociedade do capital. Sob esse aspecto,
a possibilidade de matematizar o mundo foi a sua
libertação do medievo e a sua subserviência aos
interesses burgueses.
Entretanto, no conjunto com outros estudos e
esforços, suas investigações permitiram que uma
nova imagem do céu se abrisse. O céu que Galileu
ajudou a descobrir não é finito, inerte e hierarqui-
zado, não há nele um lugar natural para as coisas.
Ele é composto de múltiplas formas geométricas,
é infinito, sem hierarquias, regido pelas mesmas
leis. Ao apontar o telescópio para o céu, Galileu
enfrentou distancias inimagináveis que nosso
olhar não alcançaria a olho nu: o que era invisível
tornou-se visível. Seus olhos finitos depararam-se
com o infinito.13

13 O Galileu histórico não foi categórico na afirmação de


um universo infinito. Para ele, o problema seria insolú-
vel, não haveria como decidir entre finitude e infinitude.
Contudo, ao detectar incalculáveis estrelas no céu, ele
participa do trajeto de superação de um mundo fechado
129
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

Há um encanto na descoberta dessa condição


objetiva do mundo. Barros (1998, p. 10) observa
que “[…] pensar no infinito é pensar no inco-
mensurável dentro de um corpo de conhecimen-
to que se baseia na capacidade de medir.”. A his-
tória dessa nova compreensão do mundo em sua
infinitude não pode ser limitada a uma história
da matemática: “É antes uma história da evolução
do pensamento científico e de como é possível se
pensar em algo que transcende qualquer possibi-
lidade de compreensão.” (Barros, 1998, p. 10).
Contra um mundo finito, ordenado e inerte,
emerge a beleza, para não dizer, sublime, de um
céu sem limites, movente, cujos primeiros olhos
a se aproximar pela mediação do telescópio tam-
bém tiveram um destino trágico: “Galileu viu o
que nenhum homem observara antes dele, e isso,
como que refletindo a natureza da tragédia, fará
com que ele termine seus dias praticamente cego.”
(Capozzoli, 2009, p. 8).
Na peça brechtiana, a descoberta de um univer-
so movente tem como correlatos uma vida social
também sujeita à transformação, a emergência do
para um universo infinito. Afinal, como assinala Koyré
(2006, p. 6), a revolução científica do século xvii é “[…]
a história da destruição do Cosmo e da infinitização do
universo.”.
130
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

novo, o questionamento das hierarquias sociais.


Todo o universo (natural e social) se movimenta.
A própria relação entre Andrea e Galileu é
mutável ao longo da peça: o cientista se constitui
como herói surrado, capaz de refletir sobre suas
ações, seus temores, a ciência que ajudou a cons-
truir, sua responsabilidade social. Já o pequeno
menino caminha em direção à conquista da auto-
nomia, prestes a superar seu mentor.
As mudanças que Brecht confere à relação entre
o mestre e seu discípulo são bastante inspiradoras
para se compreender, com as devidas adaptações,
o vínculo entre professor e aluno.
Entre tantas possibilidades reflexivas, a passa-
gem da heteronomia para a autonomia significa
que o amor característico da relação pedagógica
passa por uma transmutação que tem como clí-
max a conquista, por parte de aluno, do lugar de
amante do conhecimento, tal como, em tese, já se
coloca o professor no início do processo educati-
vo: “O resultado é, então, a perfeita reciprocidade:
o objeto de amor, o amado, acaba tornando-se
também sujeito de amor, amante. E o amante, afi-
nal, vê no amado outro amante. A face do outro é
como sua própria face contemplada num espelho
[…]” (Pessanha, 1987a, p. 102).

131
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

Essa é a mudança do Andrea-aluno-discípulo


para o Andrea-mestre-cientista, que só ocorre
pela chance que tem de se apropriar do conheci-
mento científico. Dessa maneira, supera-se a desi-
gualdade inicial entre Galileu e seu aluno. No final
da peça, ambos se relacionam como amantes do
conhecimento, isto é, como sujeitos iguais. Pas-
sa-se “[…] do plano das relações afetivas entre as
pessoas para o plano da relação afetivo-intelectual
entre sujeitos e verdade […]” (Pessanha, 1987a,
p. 85).  Por seu turno, as crianças que questionam
Andrea na cena final representam a nova geração
de discípulos, tal como fora Andrea no início da
obra. Outros discípulos virão; outros mestres se
sucederão na tarefa de ensinar, de trazer questio-
namentos onde até então só havia certezas.
O movimento de uma heterogeneidade real
para uma homogeneidade possível entre profes-
sor e aluno supõe a passagem da assimetria para
a simetria. Segundo Saviani (2008), o processo
educativo precisa assumir a assimetria inicial
existente; porém, não se avançará se não perspec-
tivar superá-la. O autor considera que essa altera-
ção porta um caráter democrático, pois represen-
ta a passagem da desigualdade para a igualdade:

132
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

Portanto, só é possível considerar o processo


educativo em seu conjunto como democrático
sob a condição de se distinguir a democracia
como possibilidade no ponto de partida e a de-
mocracia como realidade no ponto de chegada.
Consequentemente, aqui também vale o aforis-
mo: democracia é uma conquista; não um dado.
(Saviani, 2008, p. 62).

Assim, na educação, por mais atritos que pos-


sam ocorrer, professor e aluno não são adversá-
rios que precisam ser vencidos pela força e pela
repressão. Segundo Saviani (2008), são contrários,
mas não são antagônicos. O que está em jogo en-
tre eles é a busca do convencimento e não a vitó-
ria sobre o outro. Assim, enquanto “[…] a prática
política apóia-se na verdade do poder: a prática
educativa, no poder da verdade.” (Saviani, 2008,
p. 70).
Esse vínculo do trabalho escolar com a verdade
traz grandes desafios. As palavras de Sagredo na
peça brechtiana nos lembram de quão desgraçada
é a noite na qual o ser humano vê a verdade; a
partir daí, inicia-se a terrível experiência de ser
perseguido e ameaçado. Afinal,

133
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

[…] numa sociedade dividida em classes, a


classe dominante não tem interesse na manifes-
tação da verdade já que isto colocaria em evi-
dência a dominação que exerce sobre as outras
classes. Já a classe dominada tem todo interesse
em que a verdade se manifeste porque isso só
viria a patentear a exploração a que é submeti-
da, instando-a a se engajar na luta de libertação.
(Saviani, 2008, p. 70).

Em sua Epifania das estrelas para Galileu Gali-


lei, o poeta Álvaro Pacheco (2002, p. 74) lembra:
“Os poderosos não sobrevivem a não ser,/ nas ve-
redas do seus enganos.”. Por essa razão, a intole-
rância, obscuras superstições e a ignorância lhes
são benéficas tanto quanto uma ciência longe da
multidão. A verdade do mundo – o seu devir –
lhes são uma ameaça. Sábias foram as palavras de
Giordano Bruno após a leitura do veredito pela
Santa Inquisição, lembradas em uma versão poé-
tica: “Condenado ao patíbulo,/ apenas disse aos
algozes/ ‘mais do que eu, tendes mais medo vós’.”
(Pacheco, 2002, p. 135).
Tendo em vista essas considerações, movimen-
tos negacionistas da ciência tomam a escola como
alvo de suas ações:

134
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

Os terraplanistas e criacionistas são aqui toma-


dos como um emblema dos movimentos con-
servadores que elegem a educação escolar como
campo de batalha nessa quadra da história bra-
sileira, nos quais se incluem, entre mais: todas
as demais modalidades de anticientificismo; os
ataques generalizados à educação escolar; a de-
fesa da educação domiciliar; o movimento pela
“Escola sem partido”; a desqualificação e o con-
trole sobre a prática dos professores; o ataque à
autonomia e à legitimidade das universidades
públicas; a proliferação de escolas militares. Po-
dem ser arrolados ainda os movimentos conser-
vadores não diretamente direcionados para a es-
cola, mas que incidem poderosamente sobre ela:
as pautas e as práticas de conteúdo racista, sexis-
ta e contrárias ao movimento lgbtq; o combate
às religiões não majoritárias, em especial as de
matriz africana. (Miranda, 2020, p. 695).

A depreciação da produção científica e da ins-


tituição escolar são faces de um mesmo processo
que busca estancar horizontes formativos emanci-
patórios. A negação do conhecimento objetivo ou
seu esvaziamento, assim como a desvalorização
da instituição escolar, seja pelo seu sucateamento,
seja pela redefinição do seu papel em termos de
exercícios meramente linguísticos e de enalteci-
135
RELAÇÃOMESTRE E DISCÍPULONA OBRA VIDA DE GALILEU…

mento do vivido, plasmado no empírico, apresen-


tam-se como um render-se à configuração histó-
rica manipulada do capitalismo. Nesse contexto,
quando se renuncia à verdade, ao conhecimento
elaborado (em suas feições científicas, filosóficas e
artísticas) e a sua socialização não é possível falar
da dimensão amorosa da escola (Della Fonte,
2010). A escola só faz reproduzir a desigualdade
social… a relação professor e aluno fica estática,
hierarquizada, mimetizando a relação social en-
tre dominante e dominado.
Ao socializar o conhecimento elabora-
do, a educação torna pública a verdade, isto é, o
conhecimento das determinações histórico-obje-
tivas que revelam o sofrimento humano e a ne-
cessidade de transformação social (cf. Adorno,
2009). Desse modo, firma o compromisso com a
sua democratização.
Para além do engajamento dos docentes e de-
mais trabalhadores da educação nas lutas sociais,
a relação pedagógica possui uma contribuição
imanente na superação dos antagonismos sociais.
A passagem de uma desigualdade real para uma
igualdade possível pela transmissão-apropriação
ativa do saber elaborado, vivo e vinculado à práti-
ca social, é um modo próprio de a educação con-

136
Sandra Soares Della Fonte e Cláudio Alves Pereira

tribuir para a democratização social. Visto sob


essa ótica, como insiste Saviani, a materialização
do princípio democrático se dá na imanência do
processo educativo. A experiência dessa conquis-
ta na escola apresenta-se como um ensaio, insu-
ficiente, mas necessário, para a luta que se coloca
na prática social mais ampla. Em seu microcosmo,
a escola prenuncia a mudança social, oferece ves-
tígios de uma sociedade renovada.
Tudo se move! Ao sobressair a disputa entre
o novo e o velho vivida pelo Galileu histórico,
Brecht abraçou a potência da liberdade artística e
fez brilhar, no céu do Galileu literário, o encanto
da redenção da ciência, da plenitude da educação
e da possibilidade de superação do capital. A poe-
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146
SOBRE OS AUTORES

SANDRA SOARES DELLA FONTE


Graduada em Filosofia e Educação Física, possui
mestrado em Educação e doutorado em Filosofia
e em Educação, com estágio de pós-doutoramento
em Filosofia. É professora da Universidade Fede-
ral do Espírito Santo (Ufes) desde 1997. Atua como
docente no Programa de Pós-Graduação em Edu-
cação da Ufes e no Programa de Pós-Graduação em
Ensino de Humanidades do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo
(Ifes, campus Vitória). É pesquisadora na área de
fundamentos filosóficos e políticos da educação.

CLÁUDIO ALVES PEREIRA


Licenciado em Física, mestre e doutorando em
Educação. Trabalha na Educação Básica desde
2002, tendo exercido a docência em turmas de edu-
cação básica e cursos profissionalizantes. Atual-
mente é Técnico em Assuntos Educacionais e pro-
fessor no curso de Pós-Graduação em Docência
ofertado pelo IFMG campus Arcos. É pesquisador
com interesses na área de formação de professores
e currículo da educação básica.

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