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O Homem e a Natureza
(Seyyed Hossein Nasr)
Zahar
1977
2
ÍNDICE
Uma década se passou desde que este livro foi escrito. Durante esse período, a
consciência da grande crise ecológica, que foi prevista neste trabalho, subitamente
despertou na mente do homem ocidental. Na América, em certas partes da Europa e
também no Japão foram dedicados dias especiais à salvação da Terra. Florestas foram
derrubadas para produzir o papel necessário para se escrever a respeito dos vários
aspectos da crise ecológica. E, por fim, em 1972, em Estocolmo, teve lugar uma
importante conferência internacional, resultando na criação de um órgão especial para
estudar e aplicar meios de preservação do meio ambiente.
Não há dúvida de que as várias dimensões dos problemas que a crise ecológica
está colocando diante do homem tornaram-se muito mais bem conhecidas durante este
período e de que se criou entre as pessoas uma maior conscientização no que diz
respeito aos malefícios causados pelo homem moderno em sua lida com o ambiente
natural, do qual depende de forma tão direta. Essa nova preocupação é observada no
número de livros e revistas agora dedicados a esse assunto; nos currículos criados em
várias universidades, especialmente nos Estados Unidos e norte da Europa, para ensinar
e treinar especialistas para enfrentar os problemas do meio ambiente, na fundação de
órgãos nacionais e internacionais para supervisionar a utilização do meio ambiente; em
grupos como o Clube de Roma, que foi estabelecido para aproximar os mais destacados
cientistas e "pensadores", a fim de que ponderem sobre o futuro do homem; e mesmo
nas tentativas de se criar um novo tipo de tecnologia, chamada "branda",
Intermediária" ou "limitada", para atenuar os efeitos das Indústrias pesadas sobre o meio
ambiente. Mas apesar de todos estes movimentos, a gravidade da crise ecológica e o
perigo iminente que constitui para a vida humana permanecem irredutíveis. De certa
forma, todos estes esforços parecem não ter alcançado o âmago do problema, pois com
a menor das pressões econômicas externas, como esta provocada pela crise de energia
nos dois últimos anos, são sempre as leis recentemente promulgadas sobre o meio
ambiente que são modificadas, em lugar da modificação dos modos de vida, que são os
principais responsáveis pelas crises que o homem está enfrentando nos dias de hoje. É
por esta razão que talvez este livro ainda tenha uma mensagem para aqueles que
continuam interessados na busca de uma solução real para as difíceis condições do
homem moderno, especialmente quando refletidas em sua total desarmonia com o
ambiente natural.
Nas páginas que se seguem, procuramos descobrir as raízes da crise ecológica através
do exame da história da ciência no Ocidente, e buscando mesmo atribuir um novo papel
a esta disciplina acadêmica. Na década que passou, algum esforço foi feito neste
sentido, mas de dimensão insignificante, tendo-se em vista a urgência e atualidade do
problema. Durante os distúrbios estudantis nas universidades americanas, pelo menos
um grupo de estudantes invadiu o departamento de história da ciência de uma destacada
universidade, exigindo especificamente um novo papel para esta disciplina, que não
4
Por fim, nas páginas que se seguem, afirmamos claramente que a crise ecológica
é apenas uma exteriorização de um mal-estar interno e que não pode ser resolvida sem
um renascimento espiritual do homem ocidental. Este tema foi intensamente abordado
por Theodore Roszak em seu livro Where the Wasteland Ends e ocasionalmente em
outros trabalhos, mas não fosse pelos expoentes das doutrinas tradicionais como Frithjof
Schuon, Titus Burckhardt, Marco Pallis e Martin Lings, cujos trabalhos são citados com
frequência neste livro, as forças para uma genuína renovação dentro das tradições
religiosas no Ocidente não teriam avançado de forma apreciável. Na realidade, foram as
forças que desejam repetir os erros do modernismo, dentro da própria estrutura das
doutrinas e ritos religiosos, que ganharam ascendência, forçando as pessoas de
pensamento elaborado a buscar em outras paragens os ensinamentos tradicionais
genuínos.
5
Teerã
1
Hugo de São Victor, Eruditio Didascalica, 6.5 p. 176, 1. 805.
6
Introdução
Não há uma maneira de o homem defender sua qualidade de humano sem ser
arrastado por suas próprias invenções e maquinações a uma condição infra-humana, a
não ser permanecendo fiel à imagem do homem como um reflexo de algo que
transcende o meramente humano. A paz na sociedade do homem e a preservação dos
valores humanos são impossíveis sem paz com as ordens natural e espiritual e respeito
pelas realidades supra-humanas imutáveis, que são a origem de tudo que se chama
"valores humanos".
Teerã
Dezembro de 1967
Ramadã, 1387
9
Capítulo I - O Problema
Ultimamente, numerosos estudos têm sido feitos com respeito à crise causada pela
ciência moderna e suas aplicações, mas poucos investigaram as causas profundas,
históricas e intelectuais, que são responsáveis por este estado de coisas. Quando
convidados a dar uma série de confedências nesta universidade sobre o sentido do
combate e luta pela preservação da dignidade humana, sob condições que ameaçam a
própria existência do homem, sentimos que seria mais próprio tratar antes dos
princípios, e causas que das contingências e efeitos, um dos quais é o problema da ação
moral nos níveis social e humano, juntamente com a possível consequência de uma
guerra que a tecnologia e ciência moderna tornaram total. Esperamos, portanto, definir o
problema que resultou do confronto do homem e da natureza, nos dias atuais, buscando
a seguir as causas subjacentes que provocaram esta condição, e citar os princípios cuja
negação tornaram tão grave a crise moderna.
Hoje, quase todo mundo que vive nos centros urbanizados do Ocidente sente
intuitivamente a falta de alguma coisa na vida. Isto se deve diretamente à criação de um,
ambiente artificial de onde a natureza foi excluída ao limite máximo possível. Mesmo o
homem religioso em tais circunstâncias, perdeu a noção do significado lógico da
natureza.2 Os domínios da natureza tornaram-se uma “coisa” desprovida de sentido
e, ao mesmo tempo, o vazio criado pelo desaparecimento deste aspecto vital da
natureza humana continua a viver no íntimo da alma dos homens, manifestando-se de
várias maneiras, algumas vezes violenta e desesperadamente. Além do mais, mesmo
este tipo de existência secularizada e urbanizada está ameaçado pela própria dominação
da natureza que o tornou possível, de forma que a crise causada pelo confronto do
homem e da natureza e a aplicação das modernas ciências da natureza à tecnologia
tornaram-se uma questão que preocupa a todos.3
2
"A liturgia cósmica, o mistério da participação da natureza no drama cristológico tornaram-se
inacessíveis aos cristãos que vivem em uma cidade moderna. A experiência religiosa não está mais
"aberta" ao cosmo. Em uma última análise, é uma experiência estritamente privada; a salvação é um
problema que diz respeito ao homem e seu deus; na melhor das hipóteses, o homem reconhece que é
responsável não somente ante Deus, mas também ante a história. Nestas relações homem-Deus-
história, porém, não há lugar para o cosmo. Partindo disto, poder-se-ia concluir que, mesmo para um
cristão autêntico, o mundo já não é sentido como obra de Deus." M. Eliade, The Sacred and the Profane,
the Nature of Religion: Nova York, 1959. p. 179.
3
Muitas críticas surgiram durante as duas ou três décadas passadas, por parte de naturalistas, filósofos,
cientistas sociais, arquitetos e homens de outras profissões, com respeito ao perigo da dominação do
próprio homem sobre a natureza. Os escritos de Lewis Mumford e Joseph Wood Krutch representam
dois tipos bem conhecidos, mas muito diferentes, desta classe de literatura, onde de certa forma ecoam
em condições bem alteradas questões que preocupavam William Morris e John Ruskin há um século
atrás.
10
Os perigos gerados pelo domínio do homem sobre a natureza são muito bem
conhecidos para necessitar elucidação. A natureza tornou-se dessacralizada para o
homem moderno, embora este mesmo processo tenha sido levado à sua conclusão
lógica apenas no caso de uma pequena minoria.4 Além disso, a natureza passou a ser
considerada algo para ser utilizado e desfrutado ao limite máximo possível. Em lugar de
ser a esposa de quem o homem se beneficia, mas por quem é também responsável, para
o homem moderno a natureza passou a ser uma prostituta — para servir sem que se
tenha qualquer sentido de obrigação e responsabilidade para com ela. A dificuldade é
que a condição de prostituta da natureza está evoluindo tanto, a ponto de fazer com que
não se possa mais dela desfrutar. E, na verdade, é por isso que muitos começam a se
preocupar com a situação da natureza.
4
"A experiência de uma natureza radicalmente dessacralizada é uma descoberta recente; além disso, é
uma experiência accessível apenas a uma minoria nas sociedades modernas, especialmente aos
cientistas. Para outros, a natureza ainda exibe um encanto, uma majestade secreta onde é possível
decifrar traços de antigos valores religiosos." Eliade, op. cit., p. 151
5
"Em um certo sentido externo poder-se-ia dizer que o mal social e político do Ocidente é a
mecanização, posto que é a máquina que de forma mais direta engendra os grandes males de que o
mundo de hoje está padecendo. A máquina, geralmente falando, caracteriza-se pelo uso de ferro, fogo,
e forças invisíveis. Falar-se a respeito de. uma sábia utilização de máquinas, de seu serviço ao espírito
humano, é positivamente quimérico. Está na própria natureza de mecanização reduzir os homens à
escravidão e devorá-los inteiramente, deixando-lhes nada de humano, nada acima do nível animal, nada
acima do nível coletivo. O reinado da máquina seguiu-se ao do ferro, ou, antes, deu-lhe a mais sinistra
expressão. O homem, que criou a máquina, acaba por tornar-se a sua criatura." F. Schuon, Spiritual
Perspectives and Human Facts (trad. de D. M. Matheson) : Londres, 1953, p. 21.
6 "0 que precisa, entretanto, ser entendido é que a felicidade depende da aceitação preliminar de
inúmeros fatos intragáveis. 0 mais importante destes fatos é o conhecimento prático, distinto de
qualquer teoria, daquilo que traz a felicidade. Este conhecimento é particularmente difícil de chegar até
nós, do Ocidente, condicionados que estamos a fazer grandes demandas ao nosso meio ambiente e a
11
O homem quer dominar a natureza não só por motivos econômicos, mas também
por uma "mística" que é um resíduo direto do tempo em que tinha uma relação
espiritual com a natureza. O homem não escala mais as montanhas espirituais, ou pelo
menos raramente o faz. Quer agora conquistar todos os picos de montanhas. 8 Deseja
destituir a montanha de toda sua majestade ao sobrepujá-la, com preferência pela linha
de ascensão mais difícil. Quando a experiência de subir aos céus, simbolizada no
Cristianismo pela experiência espiritual da Divina Comédia e no Islam pela ascensão
noturna (al-mi'râj) do profeta Muhammad (sobre quem haja paz), não está mais à
disposição do homem, resta então a ânsia de voar pelo espaço e conquistar os céus. Em
toda parte há o desejo de conquistar a natureza, mas nesse processo o valor do próprio
conquistador, o homem, é destruído, e mesmo sua própria existência, ameaçada.
alimentar a ilusão de que elevar os padrões de vida eqüivale a alimentar o espírito humano." Dom A.
Graham, Zen Catholicism, a Sugestion: Nova York, 1963, p. 38. 0 mesmo se aplica, hoje, a todos aqueles
afetados pela psicose do progresso, qualquer que seja o continente em que vivam.
7
Ver J. Sittler, The Ecology of Faith: Filadélfia, 1961, p. 22. O mesmo autor escreve (p. 23): "Na íntegra, a
experiência dos povos dos Estados Unidos criou e nutriu uma visão do mundo que se opõe
da forma mais intensa possível à visão do mundo da Bíblia".
8
A respeito desta questão, ver a análise magistral de M. Pallis em seu livro The Way and the Mountain:
Londres, 1960, Capítulo I.
9
"... não é mais o intelecto humano, mas as máquinas — ou a física, ou a química, ou a biologia — que
decidem o que é homem, o que é a inteligência, o que é a verdade. Sob estas condições a
mente do homem depende cada vez mais do "clima" produzido por suas próprias criações... São,
portanto, a ciência e as máquinas que por sua vez criam o homem e, se pudermos arriscar semelhante
expressão, elas também "criam Deus", porque a lacuna assim deixada pela deposição de Deus não pode
permanecer vazia, a realidade de Deus e suas marcas no espírito humano requerem um usurpador da
divindade, um falso absoluto que possa preencher a insignificânciade uma inteligência destituída de sua
substância." P. Schuon, Understanding Islam (trad. de D. M. Matheson) : Londres, 1963, pp. 32-3.
"Valores que hoje aceitamos como permanentes e com freqüência evidentes por si mesmos surgiram do
Renascimento e da Revolução Científica. As artes e as ciências modificaram os valores da Idade Média..."
J. Bronowski, Science and Human Values: Nova York, 1965, p. 51.
12
As próprias ciências da natureza, que são por um lado o resultado e por outro a
causa da presente crise do confronto desta com o homem, tornaram-se secularizadas
através de um processo gradativo que examinaremos mais tarde. E este conhecimento
secularizado, divorciado da visão de Deus na natureza, tornou-se aceito como a única
forma legítima de ciência.11 Além disso, devido à distância que separa o cientista do
leigo, criou-se uma grande distorção e discrepância entre as teorias científicas e sua
vulgarização, na qual se baseiam, com muita frequência, as supostas implicações
teológicas e filosóficas destas teorias.12
De modo geral, pode-se dizer que o problema diz respeito tanto às ciências
quanto aos meios empregados para se fazer com que estas sejam entendidas,
interpretadas e aplicadas. Há crises nos domínios tanto da compreensão quanto nos da
aplicação. O poder de raciocínio conferido ao homem, sua ratio, que é como a projeção
ou prolongamento subjetivo do intelecto ou intellectus, divorciado de seu princípio,
transformou-se em algo como um ácido que corrói ao escorrer pelas fibras que
compõem a ordem cósmica, ameaçando destruir a si mesmo neste processo. Há um
desequilíbrio, que por pouco não é total, entre o homem moderno e a natureza, como
ficou comprovado por quase todas as manifestações da civilização moderna, que busca
antes oferecer um desafio ã natureza que cooperar com ela.
Que se destruiu a harmonia entre homem e natureza é um fato que a maioria das
pessoas admite. Mas nem todos percebem que este desequilíbrio deve-se à destruição da
10
"O homem abusou de sua autoridade no mundo de Deus. Empregou seu conhecimento científico para
explorar a natureza em lugar de usá-la sabiamente de acordo com a Vontade de Deus." G. D. Yarnold,
The Spiritual Crisis of the Scientific Age: Nova York, 1959, p. 168.
11
A ciência moderna está bem equipada para fornecer certos tipos de informação, mas nega a si
mesma a possibilidade de interpretar essa informação; a tarefa de assim proceder é por conseguinte
deixada ao balanço das opiniões, individuais ou coletivas, bem informadas ou ignorantes. Seu erro
fundamental reside, portanto, em sua reivindicação de ser ela a própria ciência, a única ciência possível,
a única ciência que há." Lord Northbourne, "Pictures of the Universe", Tomorrow, outono de 1964, p.
275. "... antes da separação da ciência e da aceitação dela como único meio válido de apreensão da
natureza, a visão de Deus na natureza parecia ser a via normal de entender o mundo, tampouco poderia
ter sido ela considerada uma experiência excepcional." F. Sher-wood Taylor, The Fourfold Vision:
Londres, 1945, p. 91.
12
Este fato tem sido afirmado com freqüência pelos próprios cientistas. Por exemplo, com respeito à
má interpretação popular da teoria da relatividade, R. Oppenheimer escreve: "Os filósofos e
divulgadores que tomaram equivocadamente a relatividade pela doutrina do relativismo interpretaram
os grandes trabalhos de Einstein como se eles reduzissem a objetividade, firmeza, e consonância à lei do
mundo físico, enquanto está claro que Einstein viu em suas teorias da relatividade uma posterior
confirmação da visão de Espinoza de que é a mais elevada função do homem conhecer e compreender o
mundo objetivo e suas leis". R. Oppenheimer, Science and the Common Understanding: Londres, 1945,
pp. 2-3.
13
harmonia entre o homem e Deus.13 Isto envolve uma relação que diz respeito a todo
conhecimento. E, de fato, as próprias ciências modernas são o fruto de um conjunto de
fatores que, longe de estarem limitados aos domínios da natureza, estão relacionados
com toda herança religiosa e intelectual do homem ocidental. Por isso, ou
frequentemente como uma reação a isso, as ciências modernas passaram a existir. É essa
a razão por que se faz necessário começar nossa análise ocupando-nos primeiramente
das ciências naturais e dos pontos de vista que dizem respeito ao significado filosófico e
teológico das mesmas e, a seguir, das limitações a elas inerentes e que são responsáveis
pela crise que a aplicação e aceitação da visão do mundo destas ciências trouxeram ao
homem moderno.
Jamais deve ser esquecido que para o homem não moderno — seja ele do
passado ou contemporâneo — o próprio conteúdo do Universo tem um aspecto sagrado.
O cosmo fala ao homem, e todos os seus fenômenos contêm significado. São símbolos
de um grau elevado de realidade que os domínios do cosmo, a um só tempo, ocultam e
revelam. A própria estrutura do cosmo contém uma mensagem espiritual para o homem,
sendo, por conseguinte uma revelação vinda da mesma origem que a própria religião.14
Ambas são manifestações do Intelecto Universal, o Logos, e o próprio cosmo é parte
integrante desse Universo pleno de significado, onde o homem vive e morre.15
13
"L'equilibre du monde et des créatures dépend de Vequilibre entre l'homme et Dieu, done de notre
connaissance et notre volonté à l'égard de l'Absolu. Avant de demander ce qui doit faire 1'homme, il
faut savoir ce qu'il est." F. Schuon, "Le commandement suprême", Études Traditionnelles, setembro-
outubro, 1965, p. 199.
14
Poder-se-ia dizer que a própria estrutura do cosmo mantém vive a memória do ser celestial supremo.
É como se os deuses tivessem criado o mundo de tal forma que não pudesse refletir senão sua
existência; dado que nenhum mundo é possível sem verticalidade, e essa dimensão é por si só suficiente
para evocar a transcendência." M. Eliade, op. cit., p. 129.
15
"Para o homem religioso, a natureza nunca é apenas "natural"; está sempre carregada de valor
religioso. Isto se explica facilmente, dado que o cosmo é uma criação divina; saído das mãos de Deus, o
mundo está impregnado de uma qualidade sagrada." Ibid., p. 116.
14
que é em alto grau diretamente responsável pela crise que a visão do mundo científico
moderno e suas aplicações trouxeram como resultado.16
16
"... nosso conhecimento (dos fenômenos cósmicos) tem de ser tanto simbolicamente verdadeiro
quanto fisicamente adequado; no segundo caso, tem de reter para nós uma inteligibilidade, dado que
sem isto toda a ciência é inútil e nociva." F. Schuon, Light on the Ancient Worlds (trad. de Lord
Northbourne) : Londres, 1965, p. 105.
17
Para uma análise profunda desta questão em todos os seus aspectos, ver R. Guénon, The Reign of
Quantity and the Signs of the Times (trad. de Lord Northbourne): Londres, 1953.
18
"A ciência moderna, portanto, pede-nos para sacrificarmos boa parte daquilo que nos blinda a
realidade do mundo, oferecendo-nos em troca esquemas matemáticos cuja única vantagem é auxiliar-
nos a manipular a matéria em seu próprio plano, o da quantidade." T. Burckhardt, "Cosmology and
Modern Science", Tomorrow, verão de 1964, p. 186.
19
"Poder-se-ia também demonstrar que a ciência, embora neutra em si mesma — dado que fatos são
fatos — é nada menos que uma semente de corrupção e aniquilamento nas mãos do homem, que em
geral não tem conhecimento suficiente da natureza subjacente da Existência para ser capaz de integrar
— e portanto neutralizar — os fatos da ciência em uma visão total do mundo." Schuon, op. cit., p. 38.
15
que se destina a ligar-se à revelação e à doutrina metafísica, em cujo seio, por si só,
torna-se eficaz e plena de significado. Hoje não há uma cosmologia moderna, e a
utilização da palavra é na realidade a usurpação de um termo cujo significado original
foi esquecido.20 Uma cosmologia que se baseia unicamente no nível material e corpóreo
da existência, ainda que este nível se estenda às galáxias, e que além disso se baseia em
conjecturas individuais que se modificam dia a dia, não é uma cosmologia verdadeira, li
uma visão generalizada de uma química e de uma física terrestres, e como foi assinalado
por certos teólogos e filósofos cristãos, é realmente desprovida de qualquer sentido
teológico direto, a não ser que seja por mero acaso.21 Além disso, está baseada em uma
física material que tende a uma análise e divisão da matéria sempre crescentes, com o
ideal de alcançar a matéria "final" na base do universo; entretanto, apenas um ideal, que
jamais poderá ser atingido por causa da ambiguidade e ininteligibilidade inerentes à
natureza da matéria e à linha divisória do caos que separa a matéria formal daquela
"matéria pura" que os filósofos medievais denominaram matéria prima.22
20
"... toda cosmologia genuína está ligada a uma relação divina, mesmo que o objeto considerado e o
modo de sua expressão estejam situados aparentemente fora da mensagem que esta revelação
transmite. Tal é o caso, por exemplo, da cosmologia cristã, cuja origem se apresenta à primeira vista um
tanto heterogênea, dado que se referepor um lado, aos relatos bíblicos da criação, mesmo quando se
baseia, por outro lado, na herança dos cosmólogos gregos." T. Burckhardt, "Cosmology and Modern
Science", Tomorrow, verão de 1964, p. 182.
21
Ver por exemplo E. C. Mascai, Christian Theology and Natural Science: Londres, 1956, Capítulo IV.
22
"A ciência moderna jamais alcançará aquela matéria que se encontra na base deste mundo. Mas
entre o mundo qualitativamente diferenciado e a matéria não diferenciada acha-se algo como que uma
zona intermediária: o caos. Os temíveis perigos que acompanham a fissão atômica são nada mais nada
menos do que um mostrador indicando a fronteira do caos e da dissolução." T. Burckhardt, "Cosmology
and Modern Science", p. 190.
16
independente que a razão deve exercer sobre a ciência, que é criação sua, desapareceu,
de forma que este jovem rebento da mente do homem tornou-se o juiz dos valores
humanos e o critério da verdade. Neste processo de redução, em que o próprio papel
crítico e independente da filosofia cedeu lugar aos editos da ciência moderna, muitas
vezes foi esquecido que a própria revolução científica do século dezessete baseou-se em
uma determinada posição filosófica. Ela não é a ciência da natureza, mas uma ciência
que faz certas suposições, como a respeito da natureza da realidade, do tempo, do
espaço, da matéria etc.23 Mas, uma vez que essas suposições tenham sido feitas, e que
uma ciência tenha passado a existir baseada nessas mesmas suposições, estas foram
comodamente esquecidas, passando os resultados desta ciência a ser o fator
determinante quando à verdadeira natureza da realidade.24 É por isso que se faz
necessário ocuparmo-nos, embora ligeiramente, da visão dos modernos cientistas e
filósofos da ciência com respeito à importância da ciência moderna, especialmente a
física, na determinação do significado da natureza total das coisas. Quer gostemos, quer
não, são precisamente estas visões que determinam a maior parte da concepção moderna
da natureza aceita pelo público em geral, e são, por isso, elementos importantes no
problema geral do confronto homem e natureza.
Sem nos atermos aos detalhes que dizem respeito às diferentes escolas de
filosofia da ciência, tarefa para qual outros estão bem melhor preparados que nós e que
foi, na verdade, conduzida de forma completa em diversos trabalhos recentes, 25 é
necessário descrever algumas das tendências que pertencem mais diretamente à nossa
discussão. Dentre estas escolas, talvez a de maior influência, certamente nos países de
língua inglesa, tenha sido o positivismo lógico, nascido a partir do círculo de Viena, de
R. Carnap, P. Frank, H. Reichenbach e outros.26 Buscando remover o último espectro de
significado metafísico da ciência moderna, os seguidores desta escola acreditam que não
compete à ciência descobrir a natureza das coisas ou de alguns aspectos do real, mas
sim estabelecer ligações entre os sinais matemáticos e físicos (que eles chamam
símbolos), que podem ser elaborados por meio dos sentidos externos e instrumentos
científicos, em relação àquela experiência que a nós se apresenta como o mundo
exterior
23
Este fato, evidentemente, foi percebido por certos historiadores da ciência e filosofia, como E. A. Burtt
em seu livro Metaphyaical Founãations of Modern Physical Science: Londres, 1925; e A. Koyré em seus
muitos trabalhos magistrais sobre o Renascimento e a ciência do século dezessete. Mas este fato é
freqüentemente esquecido por um grande número de filósofos e historiadores da ciência.
24
"Qualquer um familiarizado com o escrito e a fala contemporâneos sabe que as pessoas estão mais
dispostas a aceitar a física como ver dade e a empregá-la para construir uma "filosofia" do que a inves
tigar os métodos da física, suas pressuposições e as bases filosóficas destas." E. F. Caldin, The Power and
Limita of Science, a Philosophical Study: Londres, 1949, p. 42.
25
Ver por exemplo, M. White, The Ape of Analysis: Nova York, 1955; A. W. Levi. Philosophy and the
Modem World: Bloominrton, 1959: Ch. Gillisuie, The Edge of Obiectivity: Princeton, 1960, e A. Danto e S.
Morgenbesser (orgs.), Philosophy of Science: Nova York, 1960.
26
A respeito do Círculo de Viena e da escola do positivismo, ver P. Frank, Modem Science and its
Philosophy: Cambridge, 1950, e Levi, op. cit.
17
27
Ver seu ensaio, "Science, Philosophy and Paith", em Science, Phiposophy and Religion, a Symposium:
Nova York, 1941, p. 166. A respeito da Escola de Viena ele escreve: "O erro essencial desta escola é
confundir aquilo que é verdade (com certas restrições) sobre á ciência dos fenômenos com aquilo que é
verdade de toda ciência e em todo conhecimento em geral, de todo saber científico. É aplicar
universalmente a todo conhecimento humano aquilo que é válido apenas para uma de suas esferas
especificas. Isto conduz a uma negação absoluta da metafísica e à arrogante pretensão de negar que as
suposições metafísicas tenham algum sentido". Pp. 169-70. P. Frank descreve esta atitude como "A
superstição positivista a respeito da ciência positiva." P. 170
18
Uma outra escola, que também tem afinidades com o ponto de vista positivista
em sua negação de uma ligação entre os conceitos da ciência e o real, é algumas vezes
chamada de lógica não-realista. Dentre seus membros, os mais destacados são H.
Poincaré e P. Duhem, ambos matemáticos e físicos de renome. Duhem é ainda um
eminente historiador da ciência,30 e da mesma forma, em de terminado sentido, também
o é E. Maeh, físico e filósofo e historiador da ciência. A questão quanto a se outras
formas de conhecimento podem atingir o terreno da realidade é aqui irrelevante, pois os
diferentes membros desta escola sustentaram diferentes pontos de vista sobre o assunto.
Onde todos concordam é que os conceitos derivados da intelecção, e que constituem as
leis e o conteúdo inquestionáveis da ciência moderna, não são aspectos descobertos da
realidade com aparência ontológica. São antes conceitos mentais irredutíveis e
convenções subjetivas de natureza linguística estabelecidos pelos cientistas, de forma
que possam, por sua vez, estabelecer uma linguagem para se comunicarem uns com os
28
Ver especialmente seu De l'Explication dans les sciences, 2 vols.: Paris, 1921.
29
Esta tendência de falar-se de "universos de investigação" e a oposição a qualquer "hipótese unificada
do mundo" derivada das ciências são também enfatizadas por J. B. Conant em seu livro Modem, Science
and Modern Man: Nova York, 1952, especialmente pp. 84 e ss. Quanto à filosofia "operacional" da
ciência, ver. P. Bridgman, Logic of Modem Physics: Nova York, 1927.
30
Vide H. Poincaré, Science and Hypothesis: Nova York, 1952, especialmente os Capítulos IX e X; e o seu
La Valeur de Ia science: Paris, 1948. Também, P. Duhem, "Essai sur la notion de théorie physique de
Platon à Galilée", Annales de philosophie chrétienne: Paris, 1908; Origines de Ia statique, 2 vols.: Paris,
1905-6; e The Aim and Structure of Psycal Theory (trad. de P. Wierner) : Princeton, 1954. Embora
alguns tenham interpretado a posição de Mach como alegando que esta trata antes de conceitos que de
fatos objetivos, os positivistas alegam que a principal mensagem de seus mais impor tantes trabalhos
Beiträge zur Analyse der Empfindungen e Die Mechanik in ihrer Ent-wickelung é remover todos os traços
de metafísica da ciência e, por conseguinte, unificá-la, uma unificação da ciência através da eliminação
da metafísica! É de se admirar de como é possível confundir unidade com uniformidade e tentar unificar
qualquer domínio da multiplicidade sem um princípio que transcenda essa multiplicidade. A respeito de
Mach vide C. B. Weinberg, Mach's Empirio-Pragmatism in Physical Science: Nova York, 1937.
19
Há ainda o grupo dos realistas lógicos, oposto aos dois acima, para o qual os
conceitos derivados por meio do intelecto têm uma categoria logicamente realista;
referem-se a um objeto ontológico de conhecimento. Neste grupo podem ser
mencionados A. Grünebaum e F. S. C. Northrop, ambos enfatizando a correspondência
entre os conceitos da física matemática e o real.33 Northrop em particular procura
mostrar que tanto o universo newtoniano-kantista da física matemática quanto a visão
qualitativa da natureza enfatizada por Goethe, que ele chama de visão histórica natural,
e cujo conhecimento é antes imediato e estético que absoluto e matemático, são
fundamentalmente reais.34 O mundo é antes ordem ou cosmos que caos, aquele que está
vivo como organismo e, ao mesmo tempo, é governado pela lei.35 Mas, nesta escola,
novamente é enfatizado que o conhecimento derivado das ciências é a via que nos
conduz a um conhecimento definitivo das coisas. Não há hierarquia de conhecimento,
apenas um conhecimento do domínio corporal que determina o conhecimento como tal.
mover-se sempre dentro dos limites do mundo fechado e subjetivo das "leituras de
mostradores" e conceitos matemáticos. Esta visão, popularizada especialmente por A.
Eddington36 e, sob outro ângulo, por J. Jeans, foi utilizada em grande escala por não-
cientistas para mostrar as limitações da ciência ou o caráter "ideal" do mundo. Mais
uma vez, entretanto, esta visão não serviu ao propósito de definir o domínio do
conhecimento científico dentro de uma hierarquia universal de conhecimento. Não
obstante, a tese de Eddington, de que a ciência, devido a seus métodos, é seletiva e
limitada a um "conhecimento subjetivamente selecionado", é certamente significativa;
contudo, trata apenas de um aspecto da realidade, e não do seu todo, na questão da
relação entre ciência, filosofia e religião. É um ponto de vista que, embora de maneira
bem diferente, foi também exposto por A. Whitehead. Sua filosofia processo da
natureza também buscou exibir a riqueza de uma realidade de que a ciência trata apenas
em parte.37
36
Ver J. Jeans, Physics and Philosophy: Cambridge, 1942; e The New Background of Science: Nova York,
1933; A. Eddington, The Philosophy of Physical Science: Nova York, 1958, e especialmente seu The
Nature of the Physical World: Cambridge, 1932, que provavelmente influenciou mais amplamente do
que qualquer outro trabalho deste tipo escrito por um cientista moderno. Certos físicos, ao contrário de
Eddington, dirigiram-se à própria física em busca de provas da existência e natureza de Deus. Ver por
exemplo E. Whittaker, Space and Spirit, Theories of the Universe and the Arguments for the Existence of
God: Londres, 1946.
37
Ver especialmente A. N. Whitehead, Process and Reality: Nova York, 1929; The Concepts of Nature:
Cambridge, 1920; e Science and the Modem World: Nova York, 1948. Whitehead censura a pobreza da
concepção científica da natureza que exclui as realidades da religião e da arte e busca construir uma
visão totalmente abrangente da natureza. "Assim, a ciência da natureza coloca-se em oposição às
pressuposições do humanismo. Onde se tenta alguma conciliação, a coisa com freqüência toma a forma
de uma espécie de misticismo. Mas em geral não há conciliação", Nature and Life: Chicago, 1934, p. 4.
38
"... As premissas da ciência não podem ser explicitamente formuladas, e podem ser encontradas,
autenticamente manifestadas, apenas na prática da ciência, da forma como é mantida pela tradição da
mesma." M. Polayni, Science, Faith and Society: Chicago, 1964, p. 85.
39
"De forma que a ciência, seja antiga ou moderna, não pode jamais, sem contradizer-se, provar uma
tese idealística e permitir-se a ser uma base para se atacar um ponto de vista empírico-realista.
Pensadores idealistas têm que procurar outros meios de realizar sua nobre missão. Mas, por outro lado,
a ciência não pode também ser utilizada para erigir uma tese materialista." P. J. Chaudhury, The
Phiosophy of Science: Calcutá, 1955.
21
Nesta questão os não-cientistas foram, de fato, muito mais longe que os próprios
cientistas, especialmente em biologia e na questão da evolução. Algumas vezes, para
uma determinada verdade religiosa ou filosófica, apresentam-se as provas mais
superficiais, como se a única prova aceitável fossem as teorias científicas recentemente
descobertas. Quantas vezes se têm ouvido, em salas de aula e dos púlpitos, que a física,
através do princípio de indeterminação, "permite" ao homem ser livre, como se o que há
de menor pudesse determinar o grandioso, ou como se a liberdade humana pudesse ser
determinada externamente por uma ciência que está contida na própria consciência do
homem.
40
Um renomado físico moderno, W. Heisenberg, escreve: "Assim como os corpos elementares
regulares da filosofia de Platão, as partículas elementares da física moderna são definidas pelas
condições? matemáticas de simetria; não são eternas e invariáveis e, portanto, dificilmente o que se
poderia chamar de "real" no verdadeiro sentido da palavra. Antes, são simples representações dessas
estruturas matemáticas fundamentais às quais se chega nas tentativas de se subdividir
progressivamente a matéria; representam o conteúdo das leis fundamentais da natureza. Para a ciência
natural moderna não há mais, de início, o objeto material, mas a forma, simetria matemática. E dado
que a simetria matemática é, em última análise, um conteúdo intelectual, poderíamos dizer, nas
palavras do Fausto de Goethe; "No início era o verbo, o logos". Conhecer este logos em todos os seus
detalhes particulares e com clareza total, com respeito à estrutura fundamental da matéria, é tarefa dos
físicos atômicos dos dias atuais..." W. Heisenberg, M. Bom, E. Schrodinger, P. Anger, On Modem Physics:
Nova York, 1961, p. 19. Embora esta afirmação seja até certo ponto verdadeira no que diz serem todas
leis naturais e a compreensão inteligível do conteúdo destas provenientes do próprio logos, está
certamente confundindo o reflexo com a própria coisa ao identificar o conteúdo intelectual da simetria
matemática com o próprio logos. O significado desta simetria existe e é sentido pelos físicos, mas
somente a metafísica pode mostrar que ela é uma aplicação de um princípio mais universal. Sem a
metafísica, incide-se novamente no erro de reduzir o mais elevado ao mais baixo, o Verbo à
inteligibilidade matemática da forma dos objetos materiais.
22
intelectual necessária para a apreensão da total significação das mesmas. Dentre os mais
seriamente interessados neste campo pode-se mencionar R. Oppenheimer e E.
Schrodinger. O último, que muito tem escrito sobre a filosofia da física moderna, em
seu especial interesse no problema da multiplicidade de consciências que partilham do
universo, voltou-se para as doutrinas hindus em busca de uma solução. Para explicar
esta multiplicidade, ele crê que um dentre dois milagres tenha de ser verdade, ou a
existência de um mundo externo real, ou a aceitação de que todas as coisas e todas as
consciências sejam aspectos de uma única realidade, o Uno.41 O mundo que não diz
respeito a "mim" é maya, a consciência que diz "eu". A metafísica oriental
acrescentaria, a esta altura, que não se trata de uma questão de escolher entre os dois
milagres. Ambos são verdades, mas cada um em seu próprio nível. O milagre da
existência, em si, é o maior de todos os milagres, para aqueles que vivem no domínio
das coisas existentes, enquanto do ponto de vista do Uno, o Absoluto, não há "existência
de outros" ou "separação". Todas as coisas são uma, não material e substancialmente,
mas interna e essencialmente. Mais uma vez é a questão de se perceber os níveis de
realidade e a hierarquia dos diferentes domínios de existir.
41
A respeito da doutrina da identidade, que oferece tanto um con teúdo ético mais elevado quanto um
consolo mais profundo que o materialismo, E. Schrodinger escreve: "O materialismo nada oferece;
embora haja muitas pessoas que se convençam de que a idéia que a astronomia nos fornece de
miríades de sóis, talvez com planetas inabitados, e de uma multiplicidade de galáxias, cada uma com
miríades de sóis, e finalmente de um universo provavelmente finito, nos proporciona uma espécie de
visão ética e religiosamente consoladora, transmitida aos nossos sentidos pelo panorama indescritível
do céu estrelado numa noite clara. Para mim, pessoalmente, tudo isso é maya, não obstante, sob uma
forma muito interessante, exibindo leis de grande regularidade. Isto tem pouco a ver com minha
herança eterna (para me expressar de forma absolutamente medieval)". E. Schrcdinger, My View of the
World: Cambridge, 1964, p. 107.
42
"O ceticismo foi o privilégio de uns poucos homens de saber que sobreviveram porque erguia-se
então a sua volta um mundo de fé inabalável. Hoje, o ceticismo se infiltrou nas massas e abalou os
alicerces de sua ordem de vida. Agora, são os homens de saber que estão assustados." C. F. Weizsácker,
The History of N'ature: Chicago, 1949, p. 177.
23
43
"Praticamente todas as tentativas que se fizeram para construir um acesso sobre o vazio existente
entre a teologia e as ciências partiram da teologia." Yarnold, The Spiritual Crisis of the Scientifie Age, pp.
54-5.
44
O tipo de trabalho de cientistas a que aqui nos referimos é exemplificado por C. P. von Weizsácker,
The Relevance of Science: Londres, 1964. Ver também os escritos do botânico A. Arber, especialmente
The: Manifold and the One: Londres, 1957, que contém uma extensa bibliografia sobre a concepção
tradicional da natureza.
45
Apareceram certos trabalhos de fenomenologistas que dizem respeito à ciência, mas que até agora
não receberam muita atenção dos próprios cientistas. Ver por exemplo E. Stroker, Philosophische
Untersuchungen zum Raum: Frankfurt am Main, 1965, sobre a noção de espaço quando pertinente à
filosofia, à física e à matemática. Ver também M. Scheler, Man's Place in Nature (trad. de H. Meyerhoff)
: Boston, 1961, a última obra de Scheler, onde a visão unificada do homem e o mundo a sua volta,
característica da fenomenologia, é exposta. Para um resumo da interação da fenomenologia e ciência,
especialmente quando diz respeito à posição do homem, no mundo, ver A. Tymieniecka,
Phenomenology and Science in Contemporary European Thought: Nova York, 1962.
46
"Assim, o quadro do universo apresentado pela ciência moderna torna-se cada vez mais complexo,
obscuro e longínquo com relação ao quadro natural. Não obstante, independente de qualquer questão
quanto a sua relativa validade, ele existe como fator influente no pen samento contemporâneo; assim
sendo, ele é parte de nós mesmos e parto do universo. Sua causa final, portanto, não pode ser outra
que a causa final de todas as coisas, e como todas as coisas, incluindo o quadro natural, o quadro
científico pode ser visto como um símbolo de sua causa, quer dizer, como um reflexo parcial dessa causa
sobre o pla no das aparências. Mas quando se considera apenas sua forma exteriorizada, essa forma
transforma-se num véu quase impenetrável, ocultando as causas; contudo, caso seu significado
simbólico possa ser descoberto, o mesmo pode revelar a causa." Lord Northbourne, "Pictures of the
Universe", p. 275.
24
teólogos e pensadores cristãos sobre este assunto, além dos pontos de vista dos filósofos
da ciência acima citados. É preciso que se diga de início, que houve uma estranha
negação deste domínio entre teólogos cristãos, principalmente os protestantes. A
maioria das tendências teológicas de destaque trataram do homem e da história e
concentraram-se antes na questão da redenção do homem como um indivíduo isolado
que na redenção de todas as coisas. A teologia de P. Tillich está centrada no problema
de supremo interesse na área da existência que inclui o sagrado e o profano, voltando-se
mais para o papel existencial do homem na história e sua posição mais como um ser
isolado ante Deus que como uma parte da criação e no interior do próprio cosmos,
considerado como hierofania. Ainda mais afastados desta questão encontram-se
teólogos como K. Barth e E. Brunner, que ergueram uma muralha de ferro em torno do
universo da natureza.47 Acreditam que a natureza nada pode ensinar ao homem a
respeito de Deus e, portanto, não é de interesse teológico ou espiritual. 48 Da mesma
forma, para os desmistificadores como R. Bultmann, ao invés de penetrarem no
significado interno do mito, como símbolo de uma realidade transcendente que diz
respeito à relação entre o homem e Deus, na história como no cosmos, negam também o
significado espiritual da natureza, reduzindo-a à categoria de um cenário artificial e
desprovido de sentido para a vida do homem moderno.
47
Um dos seguidores desta escola, K. Heim, mostrou algum interesse em ciência, como se vê em seu
livro Christian Faith and Natural Science: Nova York, 1953. Mas os problemas mais profundos envolvidos
não foram pesquisados a fundo, especialmente quando diziam respeito à questão do significado
simbólico dos fenômenos naturais e seu sentido religioso.
48
Pode-se assinalar, de passagem, que certamente não é acidental o fato de a teologia barthiana
mostrar desinteresse pelo estudo da natureza quanto da religião comparativa. Tanto o cosmo como as
outras religiões aparecem como um domínio "natural", à parte do domínio da graça, do qual a teologia
cristã deve se ocupar.
49
Ver, por exemplo, J. Oman, The Nature and the Supernatural". Cambridge, 1936.
50
"Somente uma crença inabalável de que 'as coisas que são feitas', a despeito da Queda e suas
conseqüências, realmente manifestam a verdadeira natureza de seu Fazedor pode fornecer algum
fundamento para uma fé razoável." C. E. Raven, Natural Religion and Christian Theology: Cambridge,
1953, p. 137.
51
Referimo-nos aqui ao ponto de vista tão característico dos escritos da passagem do século, tal como
A History of the Warfare of Science and Theology in Christendom, de A. D. White, 2 vols.: Nova York,
1960.
25
52
"Mas é imediatamente evidente que a descrição geral da estrutura do universo, como apresentada
pela ciência nos dias atuais, é muito mais simpática à hipótese teísta, como a temos considerado, do
que eram as teorias científicas prevalecentes nos séculos dezoito e dezenove." W. Temple, Nature, Man
and God: Nova York, 1949, p. 474.
53
"Não posso pensar em nenhum desserviço maior que pudesse ser feito à religião cristã do que limitá-
la com argumentos baseados em confusões verbais ou com visões científicas que são meramente
temporárias." Mascall, Christian Theology and Natural Science, p. 166.
26
mundo criado por Deus, onde o Verbo se fez carne.54 Alguns relacionaram o problema
da unidade e multiplicidade na natureza à Trindade do Cristianismo,55 enquanto outros
insistiram que somente o Cristianismo, em um sentido positivo, tornou possível a
ciência.56 Mas, em todos estes casos, é de se admirar a validade total desta afirmação, se
tomarmos em consideração a existência das ciências da natureza em outras civilizações
(especialmente a islamita). Estas ciências insistem antes na unidade que na trindade.
Além disso, temos de considerar o estrago causado pela ciência moderna e suas
aplicações no seio do próprio universo do Cristianismo.
54
Ver Smethurst, Modem Science and Christian Belief, pp. 17-18.
"Somente a fé católico-cristã total pode fornecer tanto as crenças teológicas e filosóficas necessárias
que se requer para justificar o estudo da natureza do universo pelo método científico, como também o
ímpeto e a inspiração que impelirão o homem a levar a cabo este estudo." Ibid., p. 20.
55
Ver por exemplo R. G. Collingwood, Essay on Metaphysics: Oxford, 1940, p. 227.
56
"Estou convencido de que só o Cristianismo tornou possíveis tanto a ciência positiva quanto as
técnicas." N. Berdyaev, The Meaning of History: Londres, 1935, p. 113.
57
Ver W. Temple, Nature, Man and God, p. 478, onde o autor acrescenta que o Cristianismo é capaz de
dominar a matéria, precisamente porque, em contraste com outras religiões como, por exemplo, o
hinduísmo, é o cristianismo "a mais declaradamente materialista de todas as grandes religiões". "Creio
que a distância que existe, na mente do homem moderno, entre o sujeito e o objeto é um legado direto
da distância do cristianismo para com o mundo." von Weizsãeker, The History of Nature, p. 190.
58
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27
criadas por Deus.64 Para que Deus seja o criador e também eternamente Ele mesmo, Sua
criação tem de ser sacramental tanto para Suas criaturas quanto para Ele próprio.65
Nos escritos deste pequeno grupo de teólogos, que dedicaram alguma atenção à
questão da relação do homem com a natureza, o aspecto revelado de todo o Universo foi
trazido a balia. Se a criação não fosse de certa forma revelada, não haveria revelação
possível.66 Por conseguinte, toda criação tem algum modo que partilhar do ato de
redenção, da mesma forma que toda criatura é afetada pela corrupção e pecado do
homem, como foi declarado por S. Paulo na Epístola dos Romanos ( Capítulo VIII). A
salvação plena do homem é possível quando não somente o próprio homem, mas todas
as criaturas tiverem redimidas.67
Este ponto de vista acima proposto, que poderia ter a mais profunda significação
na relação do homem com a natureza, foi, no entanto pouquíssimas vezes compreendido
e aceito. Mesmo aqueles que se dedicaram mais a uma teologia sacramental falharam,
na maioria dos casos, em aplicá-la ao universo da natureza. A visão sacramental ou
simbólica da natureza – caso compreendamos os símbolos em seu verdadeiro sentido –
em grande parte não foi propagada pelas escolas moderna de teologia cristã. Na
realidade, no inverso está a verdade. Na medida em que o ponto de ênfase predominante
foi a redenção do individuo e o desinteresse pela " redenção da criação", a maior parte
do pensamento religioso moderno ajudou a sacralizar a natureza e dobrou-se para se
entregar aos ditames da ciência no domínio natural.
64
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28
realidade o resultado mais importante da visão neotomista não foi tanto fornecer uma
nova interpretação espiritual da natureza e desenvolver-lhe seu caráter sagrado e
simbólico, mas sim fornecer a ciência uma filosofia da natureza e mostrar, através de
argumentos filosóficos, as limitações existentes na abordagem cientifica. Foi para
salvaguardar a independência da teologia e da metafísica das ciências experimentais.72
Quaisquer que sejam seus defeitos, por ser muito racionalista e não simbólica e
metafísica o suficiente no verdadeiro sentido, esta escola pelo menos afirmou e declarou
uma simples verdade que está sendo esquecida cada vez mais nos dias atuais, a saber,
que a faculdade crítica da inteligência e da razão não pode ser subjugada aos achados de
uma ciência experimental, que esta mesma razão tornou possível.
Por esta mesma razão e também a despeito de toda atividade das ciências
naturais não há nos dias correntes uma filosofia da natureza. Enquanto a ciência
medieval da física, que foi realmente uma filosofia da natureza, se tornou uma ciência
dentre outras ciências naturais, nada tomou seu lugar como sustentáculo de todas as
ciências especificas da natureza. Embora a necessidade de uma filosofia da natureza
seja sentida mesmo por alguns físicos (e muitos se voltam para a história da ciência
afim, exatamente, de receber inspiração para métodos e filosofias que poderiam ser de
auxilio a ciência moderna), não existe ainda uma filosofia aceita da natureza, a despeito
das filosofias propostas por muitos pensadores modernos como Whitehead e Maritain.74
Pode-se dizer, com pesar ainda maior, que não há uma teologia da natureza que
possa fornecer satisfatoriamente uma ponte espiritual entre o homem e a natureza.
Alguns perceberam a necessidade de harmonizar a teologia cristã e a filosofia natural a
fim de gerar uma teologia da natureza,75 mas tal tarefa não foi realizada, e nem poderia
ser diferente, até que a teologia seja compreendida a luz intelectual dos primitivos
padres da Igreja, os metafísicos cristãos da Idade Média, tais como Erigena e Eckhart,
72
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paredes. Alguns mostram-se exultantes perante este fato, acreditando que é a ocasião de
uma reafirmação da visão espiritual das coisas. Mas, na realidade quase sempre as
fendas são preenchidas pelos mais negativos "resíduos físicos", e as praticas das
"ciências ocultas" que uma vez desligadas de graça de uma espiritualidade viva torna-se
a mais insidiosa das influencias e muito mais perigosas que o materialismo.78 São antes
a água que dissolve do que a terra que solidifica. Entretanto não são as "águas
superiores", mas as "águas inferiores", para utilizarmos o muito significativo
simbolismo da Bíblia. Não é por mero acaso que na maioria dos círculos pseudo-
espiritualistas se transforme grande parte da síntese entre ciência e religião em uma
"nova ordem espiritual", como se o homem pudesse criar, por seus próprios meios, uma
escada que conduzisse ao céu ou, para falarmos em termos cristãos, como se pudesse
unir-se a natureza de Cristo se tornasse homem.
78
79
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31
Grande parte da culpa pelo abandono de outras concepções de ciência e pelo fracasso
em apreender-se a verdadeira significação das cosmologias primitivas e medievais e de
outras ciências da natureza recai sobre a maneira pela qual estas ciências são estudadas
nos dias atuais. A investigação da história da ciência, que durante este século se tornou
uma importante disciplina acadêmica, concentrou-se mais em glorificar a ciência
moderna ou em buscar suas raízes históricas que em fazer um estude em profundidade
das concepções da natureza em diferentes civilizações e períodos da história ou em
penetrar na significação das ciências primitivas e medievais. Neste campo, a maioria
dos estudiosos voltou a atenção exclusivamente para aqueles elementos e fatores das
ciências primitivas e medievais, e mesmo da ciência renascentista, que se assemelham,
antecipam ou que influenciaram a ciência moderna.81 Na realidade, esta última foi
levada em conta pela maioria dos historiadores da ciência como a única forma legítima
e possível da ciência da natureza, e todas as outras ciências cosmológicas foram
consideradas ou antevisões desta forma de ciência ou divergências que puseram
obstáculos a ciência moderna. O uso da palavra "ciência", em inglês, é especialmente
significativo e indicativo do ponto de vista em questão.82
A base histórica tanto da própria ciência quanto das filosofia e teologia gregas e
cristãs é de importância para qualquer discussão nos dias atuais, porque o indivíduo,
como também a cultura em que ele vive, inevitavelmente trazem em seu íntimo as raízes
profundas de seu passado. O presente confronto homem e natureza, e todos os
problemas filosóficos, teológicos e científicos a ele associados, trazem em suas próprias
83
Felizmente, nos últimos anos, alguns historiadores da ciência voltaram sua atenção para o estudo da
ciência antiga e medieval no aspecto em que esta se relaciona à visão total do mundo por parte das
culturas daqueles tempos, em lugar de vê-la como prelúdios meramente históricos da ciência moderna.
Devido à falta de conhecimento metafísico e ao desinteresse pela ciência do simbolismo, esta
abordagem não foi amplamente divulgada.
33
84
É praticamente desnecessário reafirmar, como tantos eruditos mo dernos insistem, no íntimo nexo
entre ciência e pensamento cristão. Alguns levam em consideração relações positivas, e outros, as
reações entre os dois. Ver por exemplo Smethurst, Modem Science and Christian Belief; J. MacMurray,
Reason and Emotion: Londres. 1935,
J. Baillie, Natural Science and the Spiritual Life: Londres, 1951; e S. P. Mason, Main Currents of Scientific
Thought: Nova York, 1956
85
Ver P. Cornford, Principium sapientiae: Cambridge, 1952; e W. Jaeger, Theology of the Early Greek
Philosophers: Oxford, 1947.
86
Ver Cornford, From Religion to Philosophy: Nova York, 1958; também G. DiSantillana, Foundation of
Scientific Thought: Chicago, 1961
87
Ver F. Schuon, Light on the Ancient Worlds, p. 64.
34
88
É evidente que o estoieismo teve muita importância durante a Re nascença e século XVII como arma
contra o aristotelismo, contribuindo bastante para o surgimento da física do século XVII, como foi
mostrado por S. Sambursky em Physics of the Stoics: Nova York, 1959. Mas, não obstante, não se pode
negar que as realizações científicas dos estóicos, epieuristas e escolas posteriores semelhantes, que se
disseminaram no Império Romano, dificilmente se comparam com as de Aristóteles ou as da escola de
Alexandria em geral. É também interessante notar que após o próprio Aristóteles, sua escola, entre
outras coisas, passou do estudo do aspecto orgânico da natureza, como é testemunhado nos trabalhos
biológicos de Aristóteles e na botânica de Teofrasto, ao interesse em mecânica e máquinas simplu,
como se vê na Mecânica pseudo-aristotélica.
89
Ver Bavink, "The Natural Sciences", em Introduction to the Scientific Philosophy of Today: Nova York,
1932, onde o autor escreve que exceto por uns poucos teutões, S. Francisco de Assis, os místicos
alemães e Lutero, o Cristianismo negou o estudo da natureza exterior ao ser humano. Ver
especialmente p. 576.
90
Com referência ao debate e diálogo entre o cristão e o helenístico, Schuon escreve: "... uma meia
verdade que tende a salvaguardar a transcendência de Deus às expensas da inteligibilidade metafísica
do mundo é menos errônea que uma meia verdade que tende a salvaguardar a natureza divina do
mundo às expensas da inteligibilidade de Deus". Light on the Anoient Worlds, p. 60. Sobre a luta entre a
35
Contra esta cosmologia o Cristianismo colocou sua teologia, e contra esta ênfase
sobre o conhecimento salientou a via do amor. Para superar o perigo do racionalismo
divorciado da gnose, fez do conhecimento o serviçal da fé, ignorando a essência
sobrenatural da inteligência da natureza no íntimo do homem. Somente desta forma o
Cristianismo foi capaz de salvar a civilização e infundir uma nova vida espiritual em um
mundo decadente; mas este processo deu lugar a uma alienação em relação à natureza
que deixou sua marca na subsequente história do Cristianismo. Esta é uma das raízes
profundas da presente crise do homem moderno em seu confronto com a natureza.
teologia cristã primitiva e a "religião cósmica" dos gregos, ver J. Pépin, Théologie cosmique et théologie
chrétienne: Paris, 1964.
91
Evidentemente, entendemos por gnose aquele conhecimento unitivo que salva e ilumina, que é
inseparável do amor, e não o gnosticismo que foi banido como heresia pelos conselhos cristãos.
36
92
Sobre esta questão, ver T. Burckhardt, "Nature de la perspective cosmologique", Études
traditionnelles, vol. 49, 1958, pp. 216-19; e, no contexto do Islam, S. H. Nasr, An Introduction to Islamic
Cosmological Doctrines: Cambridge (E.U.A.), 1964, especialmente a introdução
93
A cosmologia tradicional é bastante semelhante à arte sagrada que escolhe, dentre as muitas formas
do mundo da multiplicidade, um certo número destas, as quais molda e transmuta de forma a torná-las
um símbolo transparente e inteligível do gênio espiritual da tradição religiosa em questão. Ver T.
Burckhardt, "Nature de la perspective cosmologique"
37
mundo" e uma busca de um reino que não se encontrava neste mundo, em sua visão
total das coisas teve também de possuir o meio de equiparar as técnicas dos artesãos
com a atividade cristã e o mundo em que o homem cristão vivia com o Universo cristão.
E obteve sucesso nestas duas medidas, ao criar tanto uma tradição artesanal capaz de
construir as catedrais medievais, que são modelos microcósmicos do cosmo cristão,
quanto uma ciência total do Universo visível que descrevia este como um Universo
cristão. Quando o homem se encontra no interior de uma catedral medieval, se sente
como se estivesse no centro do mundo.94 Isto pode ser conseguido unicamente através
da relação entre a arte sagrada e a cosmologia que existiram no Cristianismo medieval
como também em outras tradições. A catedral evoca o cosmo, sendo sua réplica no
plano humano, do mesmo modo que a cidade medieval com suas muralhas e portões é
um modelo do limitado Universo medieval.95
94
Ver "Aesthetics and Symbolism in Art and Nature" na obra de F. Schuon, Spiritual Perspective and
Human Facfs, pp. 24 e ss. 95 Não foi por acaso que as muralhas das cidades européias começaram a ser
demolidas ao mesmo tempo em que a teoria heliocêntrica destruía a idéia do mundo como um cosmos
ou "ordem", destituído da fronteira finita do Universo.
95
Ver o apêndice de E. Levy na obra de O. von Simpson, The Gothic Cathedral: Nova York, 1956; também
T. Burckhardt, Chartres und die Geburt der Kathedrale, Lausanne e Friburgo, 1962. H. Keyser em muitos
estudos como Akroasis, die Lehere von Harmonike der Welt: Stuttgart, 1947, redescobriu para o mundo
moderno esta esquecida ciência tradicional da harmonia, que é tão importante quanto um princípio
integrador das artes e das ciências. O trivium e quadrivium, as próprias artes e ciências medievais,
procedem da divisão sétupla pitagórica da escala musical.
38
Quando nos deparamos com a Idade Média vemos, por um lado, uma história
natural popular imbuída cada vez mais dos valores cristãos de ordem ética como se
refletem nos livros medievais sobre animais e, por outro lado, uma ciência da natureza
intimamente associada às fraternidades dos artífices. Nesta última, enfatizou-se
primeiramente um conhecimento operativo da natureza, enquanto o conhecimento
teórico permaneceu em grande parte sem ser escrito ou formulado. Ocasionalmente,
seria fornecida uma expressão intelectual desta ciência religiosa das coisas e do cosmo
como um todo. Esta nós encontramos nas obras de Dante e um pouco antes na escola de
Chartres.
96
Ver o apêndice de E. Levy na obra de O. von Simpson, The Gothic Cathedral: Nova York, 1956;
também T. Burckhardt, Chartres und die Geburt der Kathedrale, Lausanne e Friburgo, 1962. H. Keyser
em muitos estudos como Akroasis, die Lehere von Harmonike der Welt: Stuttgart, 1947, redescobriu
para o mundo moderno esta esquecida ciência tradicional da harmonia, que é tão importante quanto
um princípio integrador das artes e das ciências. O trivium e quadrivium, as próprias artes e ciências
medievais, procedem da divisão sétupla pitagórica da escala musical
97
Ver M. Aniane, "Notes sur 1'alchimie, 'yoga' cosmologique de la chrétienté médiévale", em Yoga,
science de 1'homme integral: Paris, 1953, pp. 243-73; também T. Burckhardt, Die Alehimie, Sinn und
Welthüd: Osten, 1960; e S. H. Nasr, "The Alchemical Tradition" em Science and Civilization in Islam:
Cambridge (E.U.A.), 1968.
39
a observação da natureza com uma filosofia mística baseada na iluminação, mas isto foi
mais uma exceção que uma regra. Mesmo os franciscanos que vieram depois, como o
grande teólogo S. Boaventura, que expressou a necessidade de uma sapientia como base
para scientia, não estavam especificamente interessados no estudo da natureza.
Aqui, não nos cumpre saber como transcorreu esta transmissão, tampouco nos
interessa as diferentes ciências que através deste processo vieram a ser conhecidas no
mundo latino. Desejamos antes nos voltar para o efeito deste novo desenvolvimento na
visão geral da natureza. Os muçulmanos por muitos séculos desenvolveram a ciência e a
filosofia peripatéticas, assim como a matemática, mas ao mesmo tempo a dimensão
gnóstica e iluminativa associada ao sufismo manteve-se viva desde o início e prosseguiu
como a força vital interna desta tradição.99 De fato, o Islam voltou-se, cada vez mais,
para esta direção durante sua história posterior.
98
Ver H. Probst-Biraben, Les Mystères des templiers: Nice, 1947; também P. Ponsoye, Islam et le Graal:
Paris, 1957.
99
Quanto à relação entre as ciências, filosofia e a dimensão gnóstica e sufista dentro do Islam, ver S. H.
Nasr, Three Muslim Sages: Cambridge (E.U.A.), 1964; An Introduction to Islamic Cosmological Doutrines
e Science and Civilization in Islam.
100
Ver Three Muslim Sages, Capitulo I
40
101
Ver An Introduction to Islamic Cosmological Doctrines, pp. 185-91.
102
Ver Corbin, Avicenna and the Visionary Recital, seção II; também S. H. Nasr, Three Muslim Sages, pp.
28-31.
103
Corbin, op. cit., pp. 101 e ss
104
Ver R. Guénon, Aperçu sur l'ésoterisme chrétien: Paris, 1954
41
A Idade Média chegou ao fim num clima onde a visão simbólica e contemplativa
da natureza fora, em grande parte, substituída por uma visão racionalista, e isto, por
sua vez, conduziu ao ceticismo filosófico, através do criticismo dos teólogos
nominalistas. Enquanto que, com a destruição dos elementos gnóstico e metafísico
dentro do Cristianismo, as ciências cosmológicas se tornaram opacas e
incompreensíveis e o próprio cosmo foi gradativamente secularizado. E mais: dentro
dos círculos cristãos em geral, nem os dominicanos nem os franciscanos mostraram
especial interesse pelo estudo da natureza.106 Os alicerces estavam portanto preparados
para aquela revolução que pôs fim à civilização cristã integral do período medieval e
criou uma atmosfera onde as ciências da natureza passaram a ser cultivadas alheias à
visão cristã do mundo e onde o cosmo gradativamente cessou de ser cristão.
105
E. Gilson, The Unity of Philosophical Experience: Londres, 1938. pp. 62 e ss
106
o fato de nem os franciscanos nem os dominicanos terem conseguido estabelecer uma consideração
séria pelo estudo da natureza no seio da Igreja durante o século em que a Cristandade medieval atingiu
seu esplendor tornou inevitáveis as "sublevacões e revoltas da Renascença e da Reforma." Raven,
Science and Religion, p. 72.
107
Ver F. Shuon, Light on the Ancient Worlds, Capitulo ÍI, "In the Wake of the Fall".
42
Esta nova concepção de um homem preso à terra, que está intimamente ligada ao
humanismo e ao antropomorfismo deste período, coincidiu com a destruição e gradual
desaparecimento do que restava das organizações iniciáticas e esotéricas da Idade
Média. A Renascença foi testemunha da destruição de organizações como a Sociedade
Rosacruz, enquanto ao mesmo tempo começou a aparecer toda sorte de escritos
associados às organizações e sociedades secretas, tais como as obras herméticas e
cabalísticas. O vasto número destas obras durante este período deve-se, entretanto, antes
e acima de tudo, à destruição dos depositários deste tipo de conhecimento, facilitando
assim sua profanação e vulgarização. Em segundo lugar, deve-se a uma tentativa por
parte de alguns pensadores para descobrir uma tradição religiosa primordial anterior ao
Cristianismo, de modo que se voltaram para tudo que se falasse dos antigos mistérios.109
108
Ver G. Williams, Widerness and Paradise in Christian Thought, Capítulo III.
109
Para a análise deste aspecto da questão no que diz respeito ao hermetismo, ver M. Eliade, "The
quest for the 'Origin' of Religion", History of Religions, vol. IV, n.° 1, verão de 1964, pp. 156 e ss.
110
Apenas um pequeno número de eruditos como W. Pagel e recentemente A. Debus e F. Yates
estudaram e tornaram conhecida a imensa influência da tradição paracelsiana e alquímica da
Renascença sobre as ciências do século XVII. in Ver T. Burckhardt, "Cosmology and Modern Science",
pp. 183-4
43
111
Burckhardt, "Cosmology and Modem Science", pp. 184-5.
44
Com a destruição do conjunto imutável dos princípios, que são os juizes tanto do
conhecimento como da virtude, e o aparecimento de um homem puramente terrestre,
que se tornou a medida de todas as coisas, teve início na civilização ocidental uma
tendência de caminhar do objetivismo ao subjetivismo, que prossegue até hoje. Já não
estavam mais presentes uma metafísica e uma cosmologia para julgar a verdade ou
falsidade do que os homens diziam, mas os próprios pensamentos dos homens, a cada
112
Já um século antes de Copérnico, Nicolau de Cusa em sua obra De docta ignorantia referiu-se à terra
como uma estrela e acreditava em um universo ilimitado, cuja significação metafísica e esotérica
ele apontou mais de uma vez. Ver R. Klibansky, "Copernic et Nicolas de Cuse", em Léonard da Vinci et
l'experience scientifique du XVIe siècle: Paris, 1953
113
"O próprio sistema heliocêntrico admite um simbolismo óbvio, dado que o mesmo identifica a
origem da luz com o centro do mundo. Sua redescoberta por Copérnico são produziu, entretanto, uma
nova visão espiritual do mundo; pelo contrário, foi comparável à perigosa popularização de uma
verdade esotérica. O sistema heliocêntrico não encontra paralelo na experiência subjetiva das pessoas,
nele o homem não tinha um lugar físico; em vez de ajudar a mente humana a ir além de si mesma e a
considerar as coisas em termos da imensidade do cosmo, este sistema apenas encoraja um
prometeanismo materialístico que, longe de ser super humano, acaba por ser subumano."
114
Ver A. Koyré, From the Closed World to the Infinite Universe: Nova York, 1958.
45
O gênio de Newton foi capaz de criar uma síntese a partir das obras de
Descartes, Galileu e Kepler, e de apresentar um quadro do mundo que ele, um homem
religioso, sentiu ser uma confirmação da ordem espiritual do Universo. Na realidade, os
fundamentos do pensamento de Newton, ligados a figuras como Isaac Burrows e os
115
Ver E. Gilson, The Unity of Philosophical Experience, p. 127
116
Gilson, ibid., Capítulo V.
46
117
Ver H. Corbin, Herméneutique spirituelle comparée (I. Sweden-borg-11. Gnose ismaélienne),
Eranos Jahrbuch, Zurique, 1965.
47
118
"Com Voltaire, Rousseau e Kant, a não-inteligência burguesa se auto-eleva ao nível de "doutrina" e
passa a ficar entrincheirada no "pensamento" europeu, dando surgimento, através da Revolução
Francesa, à ciência positivista, à indústria e à "cultura" quantitativa. Daí em diante, a hipertrofia mental
do homem "aculturado" prolonga a ausência de penetração intelectual; todo sentimento pelo absoluto
e pelos princípios é sufocado em um empirismo vulgar, ao qual é enxertado um pseudomisticismo com
tendências "positivistas" ou "humanistas". É provável que algumas pessoas venham a nos reprovar pela
falta de reverência, mas gostaríamos de saber onde está a reverência dos filósofos que
vergonhosamente retalham a filosofia de séculos e séculos." P. Schuon, Language of the Self (trad. de M.
Pallis e D. M-. Matheson): Madrasta, 1959, p. 8, nota I.
119
"À época da Revolução do fim do século dezoito, a terra tornou-se definitiva e exclusivamente a meta
do homem; o "Ser Supremo" era meramente um "consolo" e, como tal, alvo do ridículo; a multiplicidade
aparentemente infinita das coisas sobre a terra exigiu uma infinidade de atividades, que forjaram um
pretexto para rejeitar a contemplação ..., o homem estava finalmente livre para ocupar-se, do lado de cá
da transcendência, com a descoberta do mundo terrestre e com a exploração de suas riquezas; por fim,
estava livre de símbolos, livro da transparência metafísica; nada mais havia senão o agradável e o
desagradável, o útil e o inútil, daí o desenvolvimento anárquico e irresponsável das ciências
experimentais." Schuon, Light on the Ancient Worlds, p. 30.
48
Da mesma forma, um homem como John Ruskin viu a natureza como algo
divino e falou do "poder espiritual do ar, das rochas e das águas".121
120
120
"Ruskin via o universo material com vivacidade e clareza sobrenaturais, acreditando que o que via era
divino." J. Rosenberg, The Darkening Glass, a Portrait of Ruskirís Genius: Nova York, 1961, pp. 4-5.
121
Ibid., p. 7
49
A teoria da evolução não fornece uma visão orgânica para as ciências, mas
fornece ao homem um meio de reduzir o mais elevado ao mais baixo, uma fórmula
mágica para se aplicar a tudo, a fim de explicar as coisas sem a necessidade de ter
acesso a quaisquer princípios ou causas mais elevadas. Esta teoria também caminhou de
mãos dadas com um historicismo predominante que é uma paródia da filosofia cristã da
história, mas que, não obstante, poderia suceder apenas no mundo cristão onde a própria
verdade tornara-se encarnada no tempo e na história. A reação sempre ocorre contra
uma afirmação e uma ação existente.
Com o colapso da física clássica, no final do século XVIII, não houve uma força
espiritual pronta a reinterpretar a nova ciência e integrá-la a uma nova perspectiva mais
universal. Alguns viram neste colapso uma possibilidade de reafirmar outros pontos de
vista que a concepção mecanicista monolítica do Universo previamente obstara. De um
lado, o colapso significou a reinterpretação da ciência, que destruiu até mesmo a
possibilidade de um futuro contato com o mundo macrocósmico e com o simbolismo
imediato das coisas. (Isto pode ser observado no caso da mudança da geometria
euclidiana para as de Riemann e Lobachevski.) Por outro lado, significou a abertura de
uma passagem a toda sorte de movimentos pseudo-espiritualistas e de ciências ocultas,
que se enxertaram nas mais novas teorias da física, mas que em geral são ou resíduos
degenerados de ciências cosmológicas mais antigas, não mais compreensíveis ou
invenções s:'mplesm:nte perigosas e perniciosas. Dos setores genuinamente religiosos o
colapso da física clássica não provocou uma resposta vigorosa que pudesse conduzir a
122
Sobre a cadeia da existência e sua relação com a teoria da evolução, ver O. Lovejoy, The Great Chain
of Being: Cambridge (E.U.A.), 1933.
50
uma síntese significativa. A resposta teológica foi em grande parte um fraco eco que
frequentemente adotou ideias abandonadas da própria ciência e algumas vezes, como no
caso de Theilhard de Chardin, buscou uma síntese que, metafisicamente, é um absurdo
e, teologicamente, uma heresia.123
Foi esta longa história, da qual alguns destaques foram aqui assinalados, que
finalmente conduziu à presente crise no encontro entre homem e natureza. Como
assinalado no Capítulo I, somente através de uma redescoberta da verdadeira metafísica,
especialmente das doutrinas sapienciais do Cristianismo e do renascimento dessa
tradição no seio da Cristandade, a qual fez justiça à relação entre homem e natureza, é
que se pode novamente assegurar uma hierarquia do conhecimento e restabelecer uma
ciência simbólica da natureza que efetivamente complementará as ciências quantitativas
de hoje. Somente desta forma pode ser criado um equilíbrio, um equilíbrio do qual o
desenvolvimento destes últimos séculos foi-se descartando, com velocidade sempre
crescente, até chegar hoje ao desequilíbrio e falta de harmonia entre homem e natureza e
que ameaça destruir a ambos de uma só vez. Assim, temos de nos voltar para a
discussão da metafísica e para a tradição do estudo espiritual da natureza no seio do
Cristianismo.
123
"O teilhardismo, como sintoma de nosso tempo, é comparável a uma daquelas fissuras que se devem
à própria solidificação da caixa craniana, que não se abrem em direção ao alto, em direção ao céu da
unidade verdadeira e transcendente, mas para baixo, em direção ao domínio do psiquismo inferior:
enfadada de sua própria visão incoerente do mundo, a mente materialista se deixa levar a uma
embriaguez pseudo-espiritual, da qual esta fé — ou este materiaiismo sublimado — que acabamos de
descrever marca uma fase de especial significação." Burckhardt, "Cosmology and Modern Science",
Tomorrow, outono de 1964, p. 315.
51
Esta ciência suprema do Real, que sob certa luz é o mesmo que gnose, é a única
ciência que pode distinguir entre o Absoluto e o relativo, aparência e realidade. É so
mente à sua luz que o homem pode distinguir entre níveis de realidade e condições de
existência e ser capaz de ver cada coisa em seu lugar no esquema total das mesmas.
Além disso, essa ciência, assim como a dimensão esotérica, existe dentro de toda
tradição ortodoxa e integrai, estando unida a um método espiritual totalmente derivado
das origens da tradição em questão.
124
"Uma doutrina metafísica é a corporificação na mente de uma verdade universal. Um sistema
filosófico é uma tentativa racional de resolver certas questões que formulamos a nós mesmos." Ver F.
Schuon, Spiritual Perspectives and Human Facts, p. IL
125
Sobre metafísica oriental, ver R. Guénon, La Métaphysique Orientale: Paris, 1951.
52
"Todas as coisas sob o Céu são produtos do Ser, mas o próprio Ser é o produto
do Não-Ser."126 Nesta simples declaração está contido o princípio de toda metafísica, ao
salientar a estrutura hierárquica da realidade e a dependência de tudo que é relativo ao
Absoluto e ao Infinito, simbolizado pelo Vazio ou Não-Ser, que é livre e sem limites.
Da rnesma forma, um tanto mais elaboradamente, Chuang-Tzu afirma o mesmo
princípio, quando escreve:
"No Solene Começo (de todas as coisas) nada havia em toda vacuidade do
espaço; nada havia que se pudesse dar nome. Foi então neste estado que brotou a
primeira existência — a primeira existência, mas ainda sem forma corpórea. A partir
destas coisas pôde então ser produzido (recebendo) o que chamamos sua característica
própria. Aquilo que não tinha forma corpórea foi dividido, e então, sem intermissão,
houve o que chamamos processo de conferição. (Os dois processos) continuando em
operação produziram as coisas. Ao completarem-se as coisas, foram então produzidas as
linhas delimitadoras de cada uma, o que chamamos forma corpórea. Essa forma era o
corpo, preservando em si o espírito, e cada uma tinha suas manifestações peculiares, o
que chamamos sua Natureza. Quando a Natureza for cultivada, a forma retornará a sua
característica própria; e quando esta for atingida, encontrar-se-á a mesma condição que
a do início".127
"O Mundo tem uma Causa Primeira que pode ser vista como a Mãe do Mundo.
Quando se encontra a Mãe, pode-se conhecer o Filho. Conhecendo o Filho e sem perder
de vista a Mãe, até o final de seus dias, ele não sofrerá dano algum."129
126
L. Giles, The Sayings of Lao Tzu: Londres, 1950, p. 22. A respeito das doutrinas metafísicas chinesas
em geral, ver Matgioi, La Voie métaphysique: Paris, 1959; e M. Granet, La Pensée chinoise: Paris, 1934
127
The Sacred Books of China, The Texts of Taoism (trad. de J. Legge), vol. I: Nova York, 1962, pp. 315-
16.
128
J. Needham, Science and Civilization in China, vol. II: Cambridge, 1956, p. 50. Needham interpreta
este provérbio como uma prova da crença no naturalismo científico e faz até uma comparação com
Lucrécio. Mas há um mundo de diferença entre o "naturalismo" helenístico-romano e o "naturalismo"
de outras tradições, em que a substância da natureza não se tornou profana, mas age como um meio.
de transmitir graça.
129
The Sayings of Lao Tzu, p. 23.
54
Essa ciência é segura e sem perigo, a qual percebe a manifestação sem perder de
vista o Princípio.
Estar contente com a natureza, precisando bem, significa antes aceitar seus
ritmos que procurar dominá-los e subjugá-los. A natureza não deve ser julgada de
acordo com sua utilidade para o homem, tampouco o homem terreno deve tornar-se a
medida de todas as coisas. Não há antropomorfismo associado à relação do homem com
130
Needham, op. cit., pp. 36 e ss.
131
The Sacred Books of China, The Texts of Taoism, Parte I, p. 342.
132
Chuang-Tzu referindo-se aos sábios escreve: "(tais homens) por sua quietude tornam-se sábios; e por
seus movimentos, reis. Nada fazendo, são eles honrados; em sua límpida simplicidade, ninguém neste
mundo pode com eles disputar (a glória da) excelência. A clara compreensão da virtude do Céu e da
Terra é o que se chama 'A Grande Raiz' e 'A Grande Origem' — aqueles que a têm estão em harmonia
com o Céu, assim produzindo todas as medidas equânimes no mundo —, eles são aqueles que estão em
harmonia com os homens." Ibid., p. 332.
133
Citado em A History of Chinese Philosophy, de Fung Yu-Lan (trad. de D. Bodde), vol. I: Princeton,
1952, p. 224.
134
The Sayings of Chuang Chou (trad. de J. Ware) : Nova York, 1963, p. 88.
55
a natureza.135 O homem deve aceitar e seguir a natureza das coisas e procurar não
perturbar a Natureza por meios artificiais.136 A ação perfeita é agir sem agir, sem
interesse próprio e apego ou, em outras palavras, de acordo com a natureza que age
livremente e sem cobiça, avareza ou outros motivos inconfessados. Há, de fato, no
Taoísmo uma oposição à aplicação das ciências da natureza para o bem-estar puramente
material do homem, como se vê na famosa estória registrada nas palavras de Chuang-
Tzu:
É preciso ser lembrado que esta mesma civilização chinesa, onde se cultivou
essa visão contemplativa da natureza, e onde houve até mesmo oposição à aplicação das
ciências da natureza, desenvolveu a física, a matemática, a astronomia e a história
natural e, além disso, ficou conhecida através de toda sua história por seu gênio e
proezas tecnológicos. É preciso, ainda, lembrar que a maioria dos primitivos
alquimistas, geólogos e farmacologistas da China eram taoístas;138 e que a polarização
do Céu e da Terra e a significação religiosa da natureza persistiram até quando a
tradição chinesa manteve-se forte. A significação metafísica da natureza como exposta
no Taoísmo, e também no Budismo, mesmo contribuindo para o desenvolvimento de
ciências da natureza, permaneceu como uma balança que preservara a hierarquia do
conhecimento e impedia a natureza de tornar-se profana.
135
Ver Needham, op. cit., pp. 49 e ss.
136
Ibid., p. 51
137
The Sacred Books of China; The Texts of Taoism, Parte I. pp. 297-8.
138
Este ponto foi enfatizado em muitas obras de Needham: "Está portanto corporificado no nome
comum hoje empregado para um templo taoísta [kuan] a significação primitiva da observação da
Natureza, e desde que em seus primórdios mágica, adivinhação e ciência estavam inseparáveis, não
podemos estar surpresos pelo fato de que seja entre os taoístas que temos de procurar as raízes do
pensamento científico chinês." "The Pattern of Nature-Mysticism and Empiricism in the Philosophy of
Science, Third Century B.C. China, Tenth Century A.D. Arábia, and Seventeenth Century A.D. Europe", in
Science, Medicine and History, Essays in Honor of Charles Singer (ed. E. Ashworth Underwood) :
Londres, 1953, p. 361.
56
Esta visão, porém, é o pior possível dos equívocos. É maya pura e simples. O
que o Hinduísmo declara, como todas as outras doutrinas orientais, é a necessidade de
139
139 "Na Ásia, o que é propriamente chamado xamanismo é encontrado não apenas na Sibéria, mas
também no Tibete (sob a forma do Bün-po) e na Mongólia, Manchúria e Coréia. A tradição pré-budista
chinesa, com seus ramos confucionista e taoísta, está ligada à mesma família tradicional, e o mesmo se
aplica ao Japão, onde o xamanismo deu surgimento à tradição especificamente japonesa do Shinto. É
característica de todas estas doutrinas uma oposição complementar entre Céu e Terra e um culto da
Natureza..." Schuon, Light on the Ancient Worlds, p. 72.
57
se conseguir liberar-se do cosmo, que é maya. Entretanto maya não é apenas ilusão, que
é seu aspecto negativo, mas também o jogo divino ou arte.140 Ela encobre o Eu
Supremo, a Realidade Absoluta, mas também a revela e a exibe. Do ponto de vista de
Atman ou Brahman, o Universo é irreal; somente o próprio Absoluto é real, no sentido
absoluto. Para aquele que vive em maya a realidade relativa em que se encontra é, no
mínimo, tão real quanto seu próprio eu empírico; e além disso pode ser de ajuda na
obtenção da liberação. Embora para o sábio o cosmo seja uma prisão, também é
possível transcendê-la por meio do conhecimento de: sua estrutura e mesmo com seu
auxílio. É por isso que o Hinduísmo, como uma tradição integral, desenvolveu
elaboradas ciências cosmológicas e naturais, e mesmo técnicas espirituais intimamente
ligadas ao uso da energia latente na natureza. Não obstante, toda ciência, física,
matemática e alquímica, como também as propriamente religiosas e espirituais, estão
ligadas à matriz total do Hinduísmo e em certos casos do Budismo, e aos princípios
metafísicos que dominam toda a tradição.141
Um sistema assim tão analítico e tão atentamente ocupado com coisas naturais
como o Vaisesika, tem como meta a liberação da alma do mundo atomístico, ao qual ela
140
Esta é de fato a forma pela qual o incomparável erudito do Hinduísmo, da metafísica oriental e da
arte em geral, A. K. Coomaraswamy, traduziu a palavra maya.
141
Do imenso número de obras sobre o Hinduísmo nas línguas européias, bem poucas compreenderam
o ponto de vista característico hindu ou expressaram a visão da própria tradição. Quanto às doutrinas
metafísicas do Hinduísmo e a estrutura desta tradição, ver R. Guénon, Introduction to the Study of the
Hindu Doctrines (trad. de M. Pallis) : Londres, 1945; R. Guénon, Man and His Becoming, according to the
Vedanta (trad. de R. Nicholson) : Londres, 1945; F. Schuon, The Language of the Self; e as muitas obras
de A. K. Cooamaraswamy, especialmente Hinduism and Buddhism: Nova York (s.d.). Ver também as
exposições lúcidas de M.Eliade e H. Zimmer
142
Há evidentemente exceções como aquelas do século XVII que falavam do atomismo de Moisés e
relacionadas à visão atomista do próprio profeta hebreu.
58
Outro dos darshanas, o Samkhya, que contém uma das mais elaboradas
cosmologias e filosofias naturais dentre todas as tradições, começa igualmente com o
problema do triplo sofrimento presente na alma e os meios de remover este sofrimento,
como está claramente asseverado no início do Samkhya Karika.146 Os três tipos de
143
"A sujeição ao mundo se deve ao falso conhecimento que consiste em pensar que meu próprio eu é
aquilo que não é eu-mesmo, a saber, os sentidos do corpo, manas, sentimento e conhecimento; uma
vez que se obtenha o conhecimento dos seis padarthas, e como diz o Nyaya, das provas dos obietos do
conhecimento e das outras categorias lógicas da inferência, o falso conhecimento é destruído." S.
Dasgupta, A History of Indian Philosophy, vol. I: Cambridge, 1922, p. 365.
144
Padarthadharmasangraha de Praçastapada (trad. de M. G. Jha), Allahabad, 1916, p.13. Este mesmo
texto diz: "Também aqui a declaração de que o conhecimento da semelhança etc. é o recurso da mais
elevada beatitude implica que tal beatitude é gerada por um verdadeiro conhecimento das próprias
categorias; como se não pudesse haver conhecimento da dita semelhança etc. independente das
categorias." p.15
145
The Sacred Books of the Hindus (org. por B. D. Basu), vol. VI, The Vaisesika Sutras of Kanada (trad. de
Nandalal Sinha) : Allahabad, 1923, p. 2.
146
"Do efeito danoso da tripla espécie de dor (surge) um desejo de conhecer a forma de removê-la (a
dor). Se das visíveis (formas de removê-la), este (desejo) parecesse supérfluo, não o seria, pois estas
formas não são nem absolutamente completas, nem duradouras." The Samkhya Karika of Iswar Krishna
(trad. de J. Davies) : Calcutá, 1957, p. 6.
Fizemos algum uso para esta análise do Samkhya da obra persa de D. Shayegan, que se encontra no
prelo (Tehran Univ. Press). A respeito do sistema SamJchya, ver A. B. Kheit, Samkhya System: Calcutá,
1949, e B. N. Seal (Vrajendranatha-Sila), Positive Sciences of the Ancient Hindus: Londres, 1915.
59
sofrimento, que são o natural e intrínseco como as doenças, o natural e extrínseco como
qualquer sofrimento causado por uma origem externa e, por fim, o sofrimento divino ou
sobrenatural causado por fatores espirituais, só podem ser superados por um
conhecimento analítico dos três princípios desta escola, a saber, a substância ou
natureza primeira (prakriti), a matéria manifestada que está em estado de fluxo (uyakti)
e, finalmente, o Espírito que não gera nem é gerado (Purusa).
Além disso, existe a divisão mais detalhada em tattvas. Através da ação dos
gunas, que estão presentes em todos os níveis da realidade cósmica, gera-se primeiro o
Buddhi ou intelecto, e deste o princípio do Egoísmo, ou Ahankara. Deste último, por
sua vez, procedem os cinco elementos sutis (tanmatra), que são os princípios dos
elementos grosseiros, corpóreos. A partir também de Ahankara emergem os onze
sentidos que consistem de: os cinco órgãos dos sentidos, os cinco órgãos da ação e a
faculdade receptiva e discriminativa (manas). Dos elementos sutis são produzidos os
elementos grosseiros (mahabuta). Acima do todo este domínio acha-se o Purusa e o
objetivo de todas as ciências da natureza é precisamente que a alma se desvencilhe dos
sentidos da percepção, com os quais, por engano, se identifica através da ação de manas
e ahankara.
147
"A forma de erradicar a raiz da aflição é portanto o questionamento prático da filosofia Samkhya."
Dasgrupta, op. cit., p. 265
148
Esta quádrupla divisão tem uma surpreendente semelhança com a De divisione naturae, de Erigena
149
"É para que a alma seja capaz de contemplar a Natureza e tornar-se totalmente separada da mesma
que a união de ambas é feita, como a do coxo e o cego, e através dessa (união) o universo é formado."
The Samkhya Karika, p. 34
60
150
Ibid., p. 67. O comentário Tattva-Kaumudi além disso acrescenta: "Como um servo competente que
assegura o bem-estar de seu senhor incompetente, por motivos puramente não egoístas, sem qualquer
benefício para si mesmo; assim também a Natureza, dotada dos três Atributos, beneficia o Espírito sem
receber em troca nenhum bem para si mesma. Assim os motivos puros e não egoístas da Natureza são
estabelecidos." Tattva-Kaumudi de Vachaspati Misra (trad. de G. Jha) : Bombaim, 1896, p. 104.
151
Ver Sir J. Woodruffe, Introtuction to Tantra Sastra: Madrasta, 1956, pp. 34-5.
152
Ver M. Eliade, Yoga, Immortality and Freedom: Nova York, 1958, p. 204.
153
Ver Sir J. Woodruffe, The World as Power: Madrasta, 1957, p. 3.
154
Ver Cultural Heritage of índia, vol. I: Calcutá, 1958, pp. 264-2 capítulo sobre os Vedangas por V. M.
Apte).
61
155
A respeito dos Upavedas, ver R. Guénon, Introduction to the Study of the Hindu Doctrines,
Capítulo VIII.
156
Sobre a relação entre o zero e o centro da roda cósmica, e também quanto ao vazio, ver A. K.
Coomaraswamy, "Kha and Other Words Denoting 'Zero', in Connection with the Metaphysics of Space"
Bull. School of Oriental Studies, vol. VII, 1934, pp. 487-97.
157
A respeito das doutrinas cosmológicas do Islame, ver S. H. Nasr, An Introduction to Islamic
Cosmological Doctrines. Enquanto que para as próprias ciências islamitas, ver S. H. Nasr, Science and
Civilization in Islam.
158
Ver S. H. Nasr, Islamic Studies: Beirute, 1966, Capitulo V, "The Meaning of Nature in Various
Intellectual Perspectives in Islam" e Capítulo XIII, "Contemplation and Nature in the Perspective of
Sufism".
62
Além disso, durante toda história islamita houve uma íntima conexão entre
gnose, ou a dimensão metafísica da tradição, e o estudo da natureza, como também a
encontramos no Taoísmo chinês. A grande maioria dos ci entistas muçulmanos como
Avicena, Qutb al-Din Shirazi e Baha' al-Din 'Amili eram ou sufis praticantes ou
estavam intelectualmente ligados às escolas gnósticas iluministas. No Islam como na
China, a observação da natureza e mesmo a experimentação mantiveram-se em grande
parte ao lado do elemento gnóstico e místico da tradição, enquanto o pensamento lógico
e racionalista geralmente permaneceu alheio à verdadeira observação da natureza.
Nunca ocorreu o alinhamento encontrado na ciência do século dezessete, a saber, um
casamento entre racionalismo e ernpirismo, que no entanto estavam agora totalmente
divorciados daquela experimentação que foi central para o homem do passado, a saber,
a experimentação consigo mesmo através de uma disciplina espiritual.159
162
"Tampouco há qualquer coisa que seja mais do que uma sombra. Na verdade, se um mundo superior
não lançasse sombras, os mundos inferiores desapareceriam de uma só vez, posto que cada mundo em
criação não é mais que uma trama de sombras inteiramente dependente dos arquétipos do mundo que
se encontra acima. Assim, o fato mais destacado e mais verdadeiro sobre qualquer forma é que esta «é
um símbolo, de forma que ao contemplar algo a fim de que se recorde suas realidades mais
elevadas, o viajante está considerando esta coisa em seu aspecto universal, que por si só explica sua
existência." Abu Bákr Siraj Ed-Din, The Book of Certainty: Londres, 1952, p. 50
163
Sobre esta doutrina capital, ver al-Jili, De Fhomme universel (trad. de T. Burkhardt) : Lyon, 1953;
e T. Burckhardt, An Introduction to Sufi Doctrine (trad. de D. M. Matheson): Lahore, 1959.
64
natureza, o estado interior deste se reflete na ordem externa.164 Se não houver mais
contemplativos e santos, a natureza tornar-se-á desprovida da luz que a ilumina e do ar
que a mantém viva. Isto explica porque, quando o ser interno do homem torna-se
escuridão e caos, a natureza também, da harmonia e da beleza, passa ao desequilíbrio e
à desordem.165 O homem: vê na natureza aquilo que ele próprio é, e só penetra no
significado secreto da mesma com a condição de ser capaz de penetrar nos mais
profundos recônditos de seu próprio ser e de deixar de residir meramente na periferia
deste. Os homens que vivem apenas na superfície do ser podem estudar a natureza como
algo a ser manipulado e dominado. Mas somente aquele que se voltou para a dimensão
interna de seu ser pode ver á natureza como um símbolo, como uma realidade
transparente, podendo chegar a conhecê-la e compreendê-la no verdadeiro sentido.
164
"Ao se considerar aquilo que a religião ensina, é essencial lembrar que o mundo externo é um reflexo
da alma do homem..." The Book of Certainty, p. 32. "O estado do mundo exterior não corresponde
meramente ao estado geral da alma dos homens; num certo sentido também depende desse estado,
posto que o próprio homem é o pontífice do mundo exterior. Assim, a corrupção do homem necessa
riamente afeta o todo..." Ibid., p. 33.
165
Um mulçumano tradicionalista veria na desolação e na feiúra da sociedade industrial moderna e no
ambiente que esta criou um reflexo externo das trevas na alma dos homens que criaram esta ordem e
que vivem segundo a mesma.
166
Ver H. Corbin, Avicenna and the Visionary Recital (trad. de W. Trask), Nova York, 1961; e S. H. Nasr,
Three Muslim Sages, Capítulo I; An Introduction to Islamic Cosmological Doctrines. pp. 177 e ss.
167
Ver J. Needham, "Science and Society in East and West", Centaurus; vol. 10, n.° 3, 1964, pp. 174-97.
65
explicação social e econômica são suficientes para explicar por que a revolução
científica, como se vê no Ocidente, não se desenvolveu em nenhuma outra parte. A
razão mais fundamental é que nem no Islam, nem na Índia, nem no Extremo Oriente, a
substância e o conteúdo da natureza foram tão esvaziados de um caráter sacramentai e
espiritual, nem a dimensão intelectual destas tradições foi tão enfraquecida a ponto de
permitir que uma ciência da natureza puramente secular e uma filosofia secular se
desenvolvessem fora da matriz da ortodoxia intelectual tradicional.168 O Islam, que se
assemelha ao Cristianismo sob tantos aspectos, é um exemplo perfeito desta verdade, e
o fato de a ciência moderna não ter se desenvolvido em seu meio não é sinal de
decadência, como alguns alegaram, mas da recusa por parte do Islam de considerar
qualquer forma de conhecimento como uma forma puramente secular e divorciada
daquilo que ele considera como a meta final da existência humana.
168
Por ortodoxia não queremos dizer simplesmente seguir a interpretação exotérica e literal de uma
religião, mas possuir a doutrina correta (orthos-doxia) aos níveis tanto exotérico quanto esotérico. Ver
F. Schuon, "Orthodoxy and Intellectuality", em Language of the Self: Madrasta, 1959, pp. 1-14
169
A respeito dos ensinamentos metafísicos dos índios, ver J. Brown, The Sacred Pipe: Norman, 1953;
também P. Schuon, "The Shamanism of North American Indians", em Light on the Ancient World, pp.
72-8.
66
170
Quanto ao mundo islamita, com poucas exceções, não houve contato intelectual com o Cristianismo
desde a Idade Média.
171
A respeito desta cosmologia perene, ver. T. Burckhardt, Cosmologie Perennis, Kairos, vol. VI, n.° 2,
1964, pp. 18-32. Isto não quer dizer, evidentemente, que não haja diferenças no papel e significado da
natureza nas várias tradições citadas. Mas há suficiente concordância sobre os princípios e sobre a
significação metafísica da natureza para assegurar o emprego do termo "cosmologia perennis".
172
Williams, Wilderness and Paradise in Christian Thought, introdução, p. x.
173
"O termo correspondente a paraíso, no sentido do Jardim do Grande Rei do Universo, aplicar-se-á
provisoriamente, no devido tempo, à Igreja, a seguir mais exclusivamente somente ao mosteiro
disciplinado, depois à escola que crescia fora da Igreja e do mosteiro, a saber, a universidade medieval,
e por fim, no Novo Mundo, ao seminário teológico como berço de missionários e ministros." Ibid., p. 6.
174
Este desenvolvimento foi integralmente traçado em Wilderness and Paradise, de Williams
67
175
Basílio de Neo-Cesaréia, um origenista, escreve em seu Hexaemeron: "Uma simples folha de relva é
suficiente para ocupar toda a vossa mente ao contemplares o talento que o produziu", e faz preleçõcs
sobre a natureza como o produto da mão de Deus. Ver Raven, Natural Religion and Christian Theology I,
Science and Religion, p, 47, onde é citado este dito.
176
Quanto à atitude de Santo Agostinho e da Igreja primitiva, como também do Cristianismo posterior
face à natureza, ver Raven, op. cit.
177
Williams, Paradise and Wilderness, pp. 46 e ss.
178
‘’A peregrinação do monge irlandês, portanto, não foi meramente a busca incansável de um coração
romântico insatisfeito, foi sim um tributo profundo e existencial às realidades percebidas na própria
estrutura do mundo, do homem e de seu ser: uma compreensão do diálogo ontológico e espiritual entre
o homem e a criação, onde as realidades espirituais e corpóreas se unem e se entrelaçam como as
iluminuras manuscritas do Livro de Kells... Melhor talvez que os gregos, alguns monges celtas
alcançaram a pureza dessa theoria physike que vê Deus não nas essências ou logoi das coisas, mas em
um cosmo hierofante: daí então a maravilhosa poesia vernacular da natureza dos eremitas célticos dos
séculos VI e VIL" T. Merton, "From Pilgrimage to Crusade", Tomorrow, primavera de 1965, p. 94.
68
Universo. Contudo, para ele todas as coisas do Universo provêm de Deus e são criadas
através de Cristo.179 A primeira frase de abertura das Escrituras, "No começo Deus fez o
céu e a terra", de fato significa para Erigena a criação de todas as causas primordiais em
Cristo.180
179
Erigena seguiu a visão de Clemente de Alexandria, que declarou: "0 Filho não é certamente um, como
um; tampouco muitos, como partes; mas um, como todas as coisas; pois d'Ele partem todas as coisas; e
Ele é a concentração de todos os poderes agrupados e unidos em um só." Stromata, IV, 635-9, citado em
Johannes Scotus Erigena, a Study in Medieval Philosophy, de H. Bett: Cambridge, 1925, p. 32.
180
íbid., p. 40.
181
"O espaço de um ponto não é o espaço percebido paios sentidos, mas um espaço interpretado pelo
intelecto. Assim, um ponto é incorpóreo e a origem das linhas; a linha é incorpórea e a origem das
superfícies; uma superfície é incorpórea e a origem da solidez, e a solidez é a perfeição da natureza. A
matéria, por conseguinte, é na realidade uma combinação de qualidades incorpóreas. É a forma que
constitui e contém todos os corpos materiais, e forma é incorpórea." Ibid., p. 46.
182
"Como o homem é o ponto médio entre os extremos do espiritual e do corpóreo, uma união única da
alma e corpo, é natural supor-se que cada criatura, visível e invisível, de um extremo a outro, seja
criada no homem, e que todas estejam reunidas e reconciliadas no mesmo." Ibid., p. 58.
183
A respeito de sua astronomia, ver E. von Erhardt — Siebold e R. von Erhardt, The Astronomy of
Johannes Scotus Erigena: Baltimore, 1940; e Cosmology in the "Annotations in Marcianum": Baltimore,
1940.
69
"Eu sou a força suprema e ardente que emite todas; as centelhas da vida. A
morte não faz parte de mim, embora eu a aceite, e em consequência sou provida de
sabedoria bem como de asas. Sou aquela essência viva e ardente da substância divina
que jorra na beleza dos campos. Eu brilho na água, eu queimo no sol, na lua e nas
estrelas. É minha aquela força misteriosa de vento invisível. Eu sustento a alento tudo
que vive. Respiro no verde, e nas flores, e quando as águas fluem como coisas vivas,
sou eu. Ergo as colunas que sustentam toda a terra... Sou a força que reside nos ventos,
de mim eles se originam, e assim como um homem consegue mover-se porque respira,
assim o fogo não queima a não ser com o ar por mim soprado. Tudo isto vive porque
estou em tudo isto e sou a vida. Sou a sabedoria. É minha a emissão do verbo proferido
através do qual todas as coisas foram feitas. Eu impregno todas as coisas para que não
pereçam. Eu sou a vida."187 Aqui está uma visão da natureza ainda sagrada e espiritual,
antes de se tornar profana.
184
Ver G. B. Burch, Early Medieval Philosophy: Nova York, 1951; e "The Christian Non-Dualism of Scotus
Erigena", Philosophical Quarterly, vol. 26, 1954, pp. 209-14, onde se fazem certas comparações, do
ponto de vista mais filosófico que propriamente metafísico.
185
As obras científicas de Sta. Hildegarda estão contidas em Scivias e Liber ãivinorum operum simplicis
nominis, cujo manuscrito de Lucca contém as belas iluminuras.
186
Há um vínculo estreito entre cosmologia e arte sacra no aspecto em que ambas selecionam da
multitude de formas certos elementos que refletem um determinado caráter religioso e étnico. Ver T.
Burckhardt, Von Wesen Heiliger Kunst in den Welt Religionen, 1955. Para a cosmografia cristã em sua
relação com arte, ver J. Baltrusaitis, Cosmographie chrétienne dans Vart du moyen-âge: Paris, 1939.
187
C. Singer, Studies in the History and Method of Science: Oxford, vol. I, 1917, "The Scientific Views and
Visions of Saint Hildegard", p. 33. No fim da vida, Sta. Hildegarda escreveu: "E agora que tenho mais de
setenta anos, meu espírito segundo a vontade de Deus ascende às alturas, visando o céu mais elevado e
a mais longínqua película de ar, espraiando-se entre os diferentes povos a regiões que se estendem para
muito além de mim, de onde posso contemplar as nuvens cambiantes e as mutações de todas as coisas
criadas; pois a tudo isso eu vejo não com olhos ou ouvidos externos, nem o crio das cogitações de meu
coração..., mas no interior de meu espírito, com os olhos abertos, de forma que jamais sofri qualquer
pavor quando elas mo abandonam." Ibid., p. 55.
70
Também encontramos em São Francisco de Assis uma admirável figura que faz
lembrar a possibilidade de uma atitude reverente em relação à natureza dentro da aura
da vida cristã santificada. Sua vida entre os pássaros e os animais, com os quais se
comunicava, foi um exemplo concreto da crença cristã de que através do sagrado o
homem pode estabelecer um relacionamento com a natureza. Isto é um retorno às
condições de antes da queda, com seu subsequente rompimento da harmonia entre
homem e natureza.191
No Cântico ao Sol e em muitos outros sermões, São Francisco exibe uma visão
contemplativa e desinteressada da natureza, além de qualquer utilitarismo humano. Em
sua conversa com os animais e mesmo com os elementos como o fogo, ao qual dirigia a
palavra enquanto estava sendo cauterizado, ele ilustra a profunda relação e intimidade
que o homem santo alcança com a natureza em virtude de tornar-se identificado com o
Espírito que sopra no interior da mesma.
188
Ver A. Crombie, Robert Grosseteste and the Origins of Experimental Science: Oxford, 1955.
189
Referindo-se a Roger Bacon, A. E. Taylor escreve: "No fundo não há diferença entre os
conhecimentos natural e sobrenatural. Sua importante teoria é que todo conhecimento exato é
experimental, mas a experimentação de duas espécies, experimentação feita com a natureza externa, a
fonte da certeza na ciência natural, e convivência experimental com a obra do Espírito Santo no interior
da nlma, a fonte do conhecimento das coisas celestes que culmina na visão de Deus." European
Civilization, vol. III: Londres, 1935, p. 87.
190
F. Picanet escreve que se a trajetória de R. Bacon fosse seguida, "não haveria lugar para uma
Renascença totalmente separada do Catolicismo nem para uma luta aberta e ruptura total entre
teologia, filosofia e ciência". Citado por C. Raven, Science and Religion, p. 8.7
191
"Quaisquer que tivessem sido os verdadeiros episódios, é significativo que tanto os santos quanto os
hagiógrafos sentissem que somente através da recuperação da pristina santidade o homem poderia
desfazer a ferocidade trazida ao mundo pela sua desobediência primordial no primeiro Paraíso."
Williams, Wilderness and Paradise, p. 42
71
192
Ver R. Guénon, L'Esotérisme de Dante: Paris, s.d.
193
Qualquer que tenha sido o serviço prestado pelas obras de C. G. Jung em tornar a alquimia mais
conhecida, elas são inadequadas no que limitam a alquimia a uma psicologia destituída de origem
espiritual e transcendente para os símbolos que surgem à psique humana.
194
Burckhardt, De Alchemie. Sinn und Weltbüd, onde são fornecidos exemplos de alquimistas cristãos;
ver também M. Eliade, The Forge and the Crucible: Nova York, 1956.
72
195
A respeito de Boehme, ver A. Koyré, La Philosophie de Jacob Boehme: Paris, 1928; e a seção dedicada
a Boehme em Hermes, 3, inverno, 1964-65.
73
196
"Il y a des critiques littéraires et des critiques d'art. Pourquoi n'y aurait-il pas des critiques
scientifiques?" M. Ollivier, Physique moderne et réalité: Paris, 1962, p. 58
197
íbid., p. 9
74
Esta função da metafísica está estreitamente relacionada a seu papel como base
para uma filosofia da natureza onde as ciências modernas pudessem ser integradas. Já
aludimos à falta hoje em dia de uma filosofia abrangente da natureza e, precisamente, à
necessidade de uma tal filosofia. Uma tradição intelectual revitalizada baseada em um
conhecimento metafísico real poderia primeiramente libertar a filosofia da escravidão
total aos sentidos, ao fruto da experimentação e ao empirismo; em segundo lugar,
poderia ajudar na criação de uma filosofia da natureza que delineria a anatomia da
natureza e das diferentes ciências que pudessem ser a elas associadas.
Isto não significa a imposição, vinda de cima, de uma, restrição sobre uma
determinada ciência, nem uma mudança de método, digamos, da química de indução
para a de dedução. Significa antes a criação de uma visão total da natureza que poderia
lançar os achados de uma determinada ciência, como a física ou a química, num amplo
esquema de conhecimento, relacionando as descobertas de cada ciência ao
conhecimento como um todo. Hoje, toda sorte de conclusões filosóficas são feitas
tendo-se em vista teorias e descobertas físicas ou astronômicas, frequentemente com
total desprezo pelas limitações e suposições, feitas originalmente pelos cientistas. Com
Kant, a física tornou-se origem da filosofia e então desenvolveu-se um fisicismo muito
semelhante ao primitivo matematicismo de Descartes. Com uma verdadeira filosofia da
natureza haveria uma matriz independente onde as implicações das diferentes ciências
poderiam ser testadas e tentadas, e seu significado ficaria conhecido sem as aberrações
que com tanta frequência acompanham as interpretações filosóficas das teorias
científicas de hoje.
198
No que toca o verdadeiro significado das ciências ocultas e espiritismo, ver R. Guénon, L'Erreur
spirite: Paris, 1923; também o seu Symboles fondamentaux de Ia science sacrée: Paris, 1962.
76
sentido, sentimental. A natureza tem de ser vista como uma afirmação e um auxílio à
vida espiritual, e mesmo como um veículo de graça, em vez da realidade escura e opaca
como veio a ser considerada.199 Tem novamente de tornar-se um meio de lembrança
do Paraíso e do estado de felicidade que o homem naturalmente busca.200
Uma tal atitude poderia ainda auxiliar a cultivar um sentimento de amor pela
natureza que é a própria antítese da atitude preponderante do homem moderno no papel
de conquistador e inimigo da natureza. Poucos percebem que pelo próprio fato de a
natureza ser finita não se pode fazer recuar suas fronteiras indefinidamente. O homem
simplesmente não pode continuar a conquistar indefinidamente a natureza sem esperar
199
"A Natureza selvagem está de acordo com a pobreza sagrada e também com a inocência espiritual; é
um livro aberto contendo um ensinamento inesgotável de verdade e beleza. É no meio de seus próprios
artifícios que o homem se torna corrupto, são estes que o fazem ganancioso e irreverente; junto à
Natureza virgem, que não conhece agitação nem falsidade, o homem teve a esperança de permanecer
contemplativo como a própria Natureza. E é a Natureza, virtualmente divina em. sua totalidade, que
terá a palavra final." Schuon, Light on the Ancient Worlds, p. 84.
200
A Natureza imaculada é a um só tempo um vestígio do Paraíso Terrestre e uma prefiguração do
Paraíso Celeste..." Schuon, op. cit., p. 143.
201
"O Cristianismo, tendo de reagir contra um espírito inteiramente "pagão" (no sentido bíblico), fez ao
mesmo tempo com que desaparecessem — como sempre acontece nesses casos — valores que não
mereceram a acusação de paganismo. Tendo de se opor, entre os mediterrâneos, a um naturalismo
filosófico e "chão", ao mesmo tempo suprimiu, entre os nórdicos, um "naturismo" de caráter espiritual.
A tecnologia moderna é o resultado — muito indireto sem dúvida — de uma perspectiva que, tendo
banido da natureza os deuses e os gênios, e tendo também, por este mesmo fato, a tornado profana,
acabou por permitir que ela fosse "profanada" no sentido mais brutal da palavra. O ocidental
prometéico — mas não todo ocidental — é afetado por uma espécie de desprezo inato pela natureza;
para ele a natureza é uma propriedade a ser aproveitada ou explorada, ou mesmo um inimigo a
conquistar." F. Schuon, "The Symbolist Outlook", Tomorrow, inverno, 1966, pp. 54-5.
202
Ver W. J. Ong. "Religion, Scholarship and the Restitution of Man", Daedalus, XCI, primavera, 1962,
onde ele fala da necessidade de reunir "o interior ao exterior, para recolocar o homem em seu lar no
cosmo", pp. 428-9.
77
desta uma reação para restabelecer o equilíbrio destruído por ele mesmo. Uma
percepção espiritual da natureza poderia melhorar, pelo menos um pouco, esta atitude
existente e o perigo a ela inerente, fornecendo um remédio para a grave doença de que
sofre o mundo moderno. Este sofrimento é produzido pela aplicação excessiva da
tecnologia e o impacto da guerra, que se unem em sua inimizade e agressão contra a
natureza. O amargo fruto desta atitude puramente antagonista ante a natureza é hoje tão
evidente que poucos podem se dar ao luxo de menosprezar qualquer meio que possa
fornecer uma solução para o problema.
A natureza é, no todo, mais rica que o conhecimento a que a física chega através
de seus métodos quantitativos e que são seletivos tanto em seus dados quanto na
interpretação destes.204 A física é uma ciência da natureza limitada pelas próprias
seleções que faz da realidade externa bem semelhante ao ictiólogo que usa uma pequena
rede de pesca, exemplo que Eddington tornou bem conhecido.205 Igualmente, o próprio
fato de suas conclusões se basearem em experimentos implica que sua validade
mantém-se apenas dentro das condições destes experimentos.206 A física então, como as
203
"Num certo sentido, metafísica e ciência são complementares. A metafísica não trata do
comportamento detalhado da natureza, a ciência não trata da interpretação final do conhecimento
natural. Ambas são necessárias para uma visão sintética do mundo. Mas a relação é unilateral; a ciência
não pode ter início sem adotar um princípio metafísico, enquanto a metafísica não pressupõe qualquer
princípio metafísico para a validade de suas conclusões. Uma das funções da metafísica é examinar os
dados para as pressuposições da ciência, assim como uma função da lógica é deixar às claras estas
pressuposições. Mas isto não esgota a metafísica. .." Caldin, The Power and Limits of Science, A
Philosophical Study, p. 117.
204
"A física é limitada pelo seu próprio método, e não se pode esperar que ela forneça uma explicação
total da experiência: ela não pode ocupar-se dos fundamentos do pensamento e da ação racionais,
omite considerações de qualidades, de formas, de agentes e causalidade. Conseqüentemente o
conhecimento da natureza fornecido por suas interpretações teóricas é muito limitado; mas estas
limitações não geram conseqüências fora da física. Uma filosofia, então, não
pode basear-se somente na física; isto não só teria de deixar sem explicação as suposições básicas da
física, como seria de um alcance absurdamente limitado." Caldin. op. cit., pp. 47-8.
"O que deve ser evidente, de imediato, é que a ciência da física absorveu certas quantidades
mensuráveis de uma realidade mais rica em seu todo e ocupou-se destas, somente à exclusão de tudo o
mais' que é de interesse." Yarnold, The Spiritual Crisis of the Scientific Age, p. 28.
Ver também Mascall, Christian Theology and Natural Scienc., Cap. II; e Smethurst, Modem Science
and Christian Bclief, Cap. V.
205
Eddington conta a história do ictiologista que utiliza um certa tipo de rede de pesca e que chega à
conclusão de que todos os peixes do mar são do mesmo tamanho. Ver Eddington, The Phüosophy
of Physical Science, p. 16.
206
O fato de a experiência ser fabricada impõe uma estrita limitação às conclusões gerais. Estas são
válidas no contexto da experiência e do experimentador." Yarnold, op. cit., pp. 16-17
78
outras ciências da natureza, é uma ciência específica das coisas, legítima dentro de suas
próprias suposições e limitações, mas não é a única ciência válida do mundo natural. É
apenas uma ciência possível da natureza, dentre outras.207 A física nos dá um certo
conhecimento do mundo físico, mas não todo o conhecimento de que se necessita,
especialmente na medida em que diz respeito à relação integral entre homem e
natureza.208 As próprias qualidades, formas e harmonias que a física deixa de lado
devido a seu ponto de vista quantitativo, muito longe de serem acidentais ou
desprezíveis, são os aspectos mais estreitamente ligados à raiz ontológica das coisas. É
por isso que a aplicação de uma ciência que despreza estes elementos provoca
desequilíbrio e gera desordem e feiura, especialmente num mundo onde não existem
outras ciências da natureza e não há sabedoria ou sapientia que possa colocar as
ciências quantitativas da natureza em seus devidos lugares no esquema total do
conhecimento.
207
"Vimos porém que a ciência se ocupa apenas de uma parte daquilo que podemos perceber; assim, o
conhecimento do mundo natural que poderia ser obtido pelo uso de todas as nossas faculdades, e que
nos levaria ao convívio com este mundo, excede e transcende cnormemente aquilo que pode ser
conseguido pela utilização do método científico. Temos de estabelecer o ideal de uma sapientia
naturalis, uma sabedoria a respeito da natureza para a qual a nossa atual scientia ou conhecimento seja
uma contribuição válida." Sherwood Taylor. The Fourfold Vision, p. 84.
208
"Então a ciência da física não é uma descrição adequada da natureza; é um retrato feito por um
observador de um determinado ponto de vista e com limitação definida em sua visão. Ele seleciona os
elementos, semelhante ao que faz um artista. Ciência é uma construção, feita ao se sintetizar
informações selecionadas; não é uma visão intacta da natureza. É certo que nos dá alguma
compreensão da ordem das operações da natureza, mas não uma compreensão total. Além disso,
despreza inteiramente a relação da natureza com o homem e com a causa primeira. Com a ciência
natural não podemos aprender para que serve a natureza material, como e por que ela existe, o por que
tem algumas leis. A beleza da natureza em seu sentido mais amplo não poderia, então, ser captada só
através da ciência. . . Além das minuciosas investigações da ciência e da unificação destas efetuadas pela
ciência teórica, precisamos compreender a relação da natureza para com o homem e Deus. . .
Necessitamos de uma sabedoria que transcenda a ciência se quisermos ter uma visão completa da
natureza. A ciência por si só não nos fornece as concepções de que necessitamos para um
conhecimento completo da natureza..." Caldin, op. cit., pp. 130-1.
209
"O mais insignificante fenômeno participa de diversas continuidades ou dimensões cósmicas,
incomensuráveis umas em relação às outras..." Burckhardt, "Cosmology and Modem Science",
Tomorrow, outono, 1964, p. 308
79
210
Ver Lorde Northbourne, "Pictures of The Universe", Tomorrow,
outono, 1964, pp. 267-78.
80
vácuo. Matematicamente, tal modelo talvez seja, hoje, um modelo conveniente para
base de cálculos, mas fisicamente não se pode aceitar um vazio total apresentando
características. Um vazio não é nada, e o que não existe nada pode mostrar.211 Da
mesma forma, a descontinuidade apresentada na matéria ao nível subatômico, com toda
a significação que tem a constante de Planck, não invalida um substrato de continuidade
exigido por tantos outros fenômenos naturais, especialmente a luz. A natureza
ambivalente da luz, se indica alguma coisa, é uma substância subjacente contínua, que a
cosmologia chama de éter, e que também exibe um aspecto descontínuo em virtude de
sua existência indistinta. Hoje, o debate sobre este domínio, se olharmos os princípios
envolvidos, não é muito diferente daquele dos seguidores do hilemorfismo e do
atomismo na Idade Média e na Antiguidade.
211
A respeito desta e de outras contradições nas teorias da física moderna, ver M. Olivier, Physique
moderne et réalité.
81
Do ponto de vista metafísico, a realidade de uma espécie não se esgota por suas
manifestações puramente materiais. Como outras coisas, a espécie é uma "idéia" cuja
marca no domínio material não confina nem esgota sua realidade essencial que
permanece independente da matéria. Uma espécie não poderia evoluir em outra porque
cada espécie é uma realidade independente, qualitativamente diferente de outra. Como
é verdadeiro para o domínio da qualidade em geral, cada qualidade é uma realidade
independente mesmo que materialmente produzida por outras, como está exemplificado
no caso das cores, onde uma cor produzida pela mistura de outras duas é em si mesma
uma qualidade nova e independente. No tocante às espécies, do ponto de vista
metafísico, estas são em última análise tantas "ideias" na Mente Divina que, em um
determinado momento cósmico, deixaram suas impressões no mundo tangível e retêm
212
Sobre a ciência "perfeita" e sua comparação com a ciência moderna, ver F. Brunner, Science et
réalité, Paris, 1954, onde ele escreve: "La science parfaite, si elle existe, n'est pas, comme la science
moderne, une démarche de raison individuelle, liée aux données de 1'expérimentation et du calcul.
Relative à l’origine, à 1'être et à la fin absolue des choses, sa propriété est d'être tout entière
suspendue à la connaissance du Príncipe de l’univers" (pp. 8-9).
213
"... para Jung, o "inconsciente coletivo" situa-se "em baixo", ao nível do instinto psicológico: é
importante ter-se isto em mente dado que o termo "inconsciente coletivo" em si poderia comportar um
significado mais amplo e, de algum modo, mais espiritual, como parece sugerir certas adaptações feitas
por ele, especialmente sua utilização — ou, na realidade, sua usurpação — do termo 'arquétipo'..."
Burckhardt, "Cosmology and Modem Science", Tomorrow, inverno, 1965, p. 27. "Jung abriu uma brecha
em certas estruturas estritamente materialistas da ciência moderna; mas isto não tem utilidade para
ninguém, sem exagero — quem dera pudéssemos nos regozijar com isto —, pois as influências que se
infiltram por esta brecha vêm do psiquismo inferior e não do Espírito, que por si só é a verdade e o
único capaz de nos salvar." Ibid., p. 55
82
sua realidade em outros planos de existência — quaisquer que sejam seus cursos e
histórias no domínio corporal. Acima de tudo, a metafísica e também a lógica não
podem aceitar a possibilidade do mais elevado emergir do mais baixo, a menos que lá já
estivesse, de uma forma ou de outra. A consciência ou o espírito não pode evoluir da
matéria, a menos que já estivesse presente na mesma, exatamente como não se poderia
levantar fisicamente um objeto contra um campo gravitacional, a não ser que já
houvesse uma reserva de energia no autor do movimento.
Além disso, do ponto de vista metafísico, o efeito jamais pode ser dissociado de
sua causa. O mundo jamais poderia ser totalmente afastado de seu Criador, e não há
uma razão lógica ou filosófica, seja qual for, para rejeitar a possibilidade da criação
contínua ou de uma série de criações, como todas as doutrinas tradicionais têm
sustentado. A compreensão da metafísica poderia no mínimo esclarecer o fato
frequentemente esquecido de que a plausibilidade da teoria da evolução baseia-se em
diversos fatores não científicos pertencentes ao clima filosófico geral da Europa dos
séculos XVIII e XIX, tais como a crença no progresso, deísmo que afasta da criação as
mãos do Criador, e a redução da realidade aos dois níveis de mente e matéria. Somente
com tais crenças a teoria da evolução poderia aparecer como "racional" e como a mais
fácil de ser aceita num mundo que perdeu completamente a visão dos múltiplos níveis
do ser e que reduziu a natureza a um mundo totalmente corpóreo, totalmente à parte de
qualquer outra ordem de existência.
214
Um dos grandes biólogos franceses escreve: "Bref, on nous demande ici un acte de foi, et c'est bien
en effet sous Ia forme d'une vérité révelée que chacun de nous a reçu jadis Ia notion d'evolution". L.
Bounoure, Déterminisme et finalité double loi de Ta vie: Paris, 1957. Ver também Recherche d'une
doctrine de Ia vie, Paris, 1964, para uma crítica biológica da evolução e alguns de seus defensores.
215
“O conceito de Evolução orgânica é altamente apreciado pelos biólogos, para muitos dos quais é um
objeto de devoção genuinamente religiosa, porque o vêem como um princípio integrador supremo.
Esta é provavelmente a razão por que o severo criticismo meodológico empregado em outros
departamentos da biologia não foi ainda chamado a um confronto com a especulação evolutiva."
Thompson, Science and Common Sense, p. 229.
Lembramo-nos certa vez numa aula de estratigrafia quando fizemos ao professor uma pergunta que
parecia criticar o postulado da evolução, tendo ele respondido prontamente: "Não fazemos mais
perguntas sobre a evolução. Simplesmente a aceitamos e a seguimos"
83
216
Muito freqüentemente as obras de tais autores foram deliberadamente desprezadas ou suprimidas.
Um exemplo disto é a obra de D. Dewar intitulada The Transformist Illusion, Murfreesboro, 1957, que
reuniu um grande volume de evidências paleontológicas e biológicas contra a evolução. O autor, que
fôra em sua juventude um evolucionista, escreveu muitas monografias existentes em bibliotecas de
zoologia e biologia comparativas por toda a parte. Mas sua última obra, The Transformist Illusion, teve
de ser publicada em Murfreesboro, Tennessee (!) e não é fácil de se achar nas bibliotecas que têm todas
as suas obras anteriores. Dificilmente há algum outro campo da ciência onde predominem tais práticas
obscurantistas.
217
Lemoine, um geólogo francês, no papel de editor de um volume da Enciclopédia Francesa sobre
"Organismos Vivos", após rever ar tigos de diferentes colaboradores a respeito das provas
paleontológicas da evolução, escreve: "A partir destes fatos, conclui-se que a teoria da evolução é
impossível. Na realidade, a despeito das aparências, ninguém mais acredita nela; fala-se da evolução,
sem lhe dar qualquer importância para denotar uma certa ligação — mais evoluída, ou menos evoluída
no sentido de mais perfeita, menos perfeita, porque é linguagem convencional, admitida e quase
obrigatória no mundo científico. A evolução é uma espécie de dogma em que os padres não mais
acreditam, mas que mantêm para sua gente." Citado por Dewar em Transformist Illusion, p. 262.
218
"De là vient que l'évolutionisme repose tout entier sur une vaste pétition de príncipe: les fatis
paléontologiques sont utilisés pour prouver l'évolution et, à Ia fois, trouvent leur explication dans cette
théorie inventée pour eux. Cest un magnifique exemple de circulus vitiosus." Bounoure, Déterminisme
et finalité, pp. 80-1.
219
Para a crítica destas teorias que procuram fornecer uma resposta para a explosão de novas formas,
ver Bounoure, op. cit., pp. 65 e ss.
220
"Qu'il y ait eu, au cours des ages, une certaine gradation des formes, cela est certain, mais ne prouve
nullement un rapport de descendence entre les differents groupes, dont chacun, au contraire, surgit
brusquement, de novo, avec tous ses caracteres essentiels." Bounoure, op. cit., pp. 57-8.
221
"La majeure partie des types fondamentaux du règne animal se presentent à nous sans aucun lien au
point de vue paléontologique." C. Depéret, Les Transformations du monde animal: Paris, 1907, p. 76.
222
Ver Dewar, The Transformist Illusion, Capítulo XVII, "Some Transformations Postulated by the
Doctrine of Evolution"
84
228
Um destacado biólogo como D'Arcy Thomson é um exemplo
229
Sobre os problemas que dizem respeito à filosofia da biologia, ver E. W. P. Tomlin, Living and
Knowing: Londres, 1955, partes dois e três.
86
vive o homem, um ambiente cujo movimento é antes cíclico que evolutivo e que através
da modificação cíclica reproduz as mesmas formas permanentes.230 Talvez uma das
razões pelas quais o homem moderno, que acredita no progresso e na evolução, tenha
chegado a uma grave crise em seu confronto com a natureza é que suas crenças
evolucionistas, com tudo que elas implicam religiosa, política, social e
economicamente, não coadunam com a vida naquele domínio da realidade que o cerca
mas que ele não criou, a saber, a natureza virgem e todas as formas de vida que
florescem em seu seio.
Neste domínio a metafísica pode também prestar outro serviço de grande valor, a
saber, trazer à luz a verdadeira significação das ciências tradicionais da natureza que
perderam seu sentido devido à perda do conhecimento metafísico. Somente uma
redescoberta da doutrina dos múltiplos estados do ser, das correspondências cósmicas
da ciência do simbolismo pode novamente revelar o significado de ciências como
alquimia e astrologia. Não há validade na afirmação de que o homem moderno não
Consegue mais ver Deus no sol e no céu, exceto se se quer dizer com isso que o homem
fechou os olhos a este aspecto das coisas. Pelo contrário, a estrutura da realidade não
mudou. Somente mudou a visão do homem em relação à realidade.
230
Esta declaração não pretendeu, de modo algum, se opor à soli dificação e coagulação graduais do
ambiente cósmico asseguradas pelas doutrinas tradicionais, especialmente as doutrinas hindus dos
ciclos cósmicos.
231
No tocante à matemática, pode ser encontrado em R. Guénon, Les Príncipes du calcul infinitésimal,
Paris, 1946, um exemplo de como os princípios metafísicos podem ser aplicados e de como a
significação metafísica de um ramo da matemática pode ser elucidada.
87
existência. Além disso, este mesmo conhecimento ampliado das coisas materiais carece
do conhecimento cosmológico sintético fornecido pelas ciências tradicionais do cosmos.
A inteligência do homem é feita de tal modo que ele pode vir a conhecer com precisão o
Infinito e o Absoluto, não o indefinido e o relativo. O conhecimento que se ocupa
unicamente das coisas materiais está na verdade lidando com o indefinido, ou no
mínimo com seu aspecto quantitativo, com o que os hindus chamam de o labirinto
cósmico ou maya e os budistas, de samsara. Apesar de legítima como todas as outras,
esta forma de ciência só pode permanecer saudável quando cultivada segundo os moldes
de uma ciência que esteja centrada no Absoluto e no Infinito, podendo portanto, em
virtude de seu centro imutável, localizar e definir a periferia e o relativo com os quais
lidam as ciências modernas. Nesta tarefa, as ciências cosmológicas revitalizadas,
readquirindo sua significância através do conhecimento metafísico, poderiam ter um
papel vital como um elo entre as ciências modernas e as doutrinas puramente
metafísicas, como Uma ponte entre o moderno conhecimento científico da natureza e a
gnose que trata de realidades que se encontram além de todas as manifestações
cósmicas.
232
Os escritos de autores tradicionais como R. Guénon, A. K. Coomaraswamy, P. Schuon e T. Burckhardt
assim como as conhecidas figuras acadêmicas de H. Zimmer e M. Eliade são de especial significação
neste domínio
233
"O símbolo religioso traduz uma situação humana em termos cosmológicos e vice-versa; mais
precisamente, revela a continuidade entre as estruturas da existência humana e as cósmicas. Isto quer
dizer que o homem não se sente "isolado" no cosmo, mas que ele se "abre" para um mundo que, graças
a um símbolo, se mostra "familiar". Por outro lado, os valores cosmológicos dos símbolos o capacitam a
deixar de lado a subjetividade de uma situação e a reconhecer a objetividade de suas experiências
pessoais." M. Eliade, "Methodological Remarks on the Study of Religious Symbolism", em
M. Eliade e J. Kitagawa (orgs.) The History of Religions — Essays in Methodology: Chicago, 1959, p. 103.
88
realidade objetiva como coisa sagrada; na verdade tudo que é realidade objetiva é
sagrado e simboliza uma realidade que está além desta primeira.234
234
"Os símbolos religiosos são capazes de revelar uma modalidade do real ou uma estrutura do mundo
que não é evidente ao nível da experiência imediata. . ." "Para os primitivos, os símbolos são sempre
religiosos porque visam alguma coisa real ou uma estrutura do mundo. Posto que em níveis arcaicos de
cultura o cativo, o existente — é equivalente ao sagrado." Eliade, op. cit., pp. 98-9.
235
"A ciência dos símbolos — não simplesmente um conhecimento de símbolos tradicionais — procede
das significações qualitativas das substâncias, formas, direções espaciais... e outras propriedades ou
estágios das coisas; não estamos tratando aqui de apreciações subjetivas, dado que as qualidades
cósmicas são ordenadas tanto em relação ao Ser quanto de acordo com uma hierarquia mais real que
individual; elas independem então de nossos gostos, ou melhor, elas os determinam até o ponto em que
nós mesmos estamos submissos ao Ser; concordamos com as qualidades até o ponto em que nós
mesmos somos "qualitativos". O simbolismo, quer ele resida na natureza que seja afirmado na arte
sagrada, também corresponde a uma maneira de "ver Deus em toda parte", com a condição de que esta
visão seja espontânea graças a um conhecimento familiar dos princípios de onde procede a ciência dos
símbolos..." F. Schuon, Gnosis Divine Wisdom (trad. de G. E. H. Palmei): Londres, 1959, p. 110.
89
uma ciência ligada à raiz ontológica das coisas. A natureza simbólica da árvore ou da
montanha é uma parte tão íntima de seu ser quanto a casca da árvore ou as rochas de
granito da montanha. Um símbolo verdadeiro é tão criado pelo homem quanto o é a
casca ou o granito. É somente a esta luz, a de uma ciência das formas naturais que
complementa o conhecimento científico moderno, que a ciência dos símbolos pode ter
um papel vital na reintegração do homem ao seu lar no Universo. Além disso, esta
ciência também pode auxiliar a ampliar a compreensão daqueles símbolos específicos
que o Cristianismo, como todas as outras religiões, santificou, símbolos cujo
esquecimento forçou muitas almas inteligentes a buscar respostas às questões prementes
fora da Igreja.
Contudo, uma outra aplicação dos princípios metafísicos não diz assim tanto
respeito ao domínio do conhecimento, mas sim ao da ação. Diz respeito à aplicação da
ciência moderna quer seja na tecnologia, quer na guerra. Na verdade, a ansiedade de
muitos daqueles que por fim se tornaram interessados na questão da relação do homem
com a natureza, geralmente, brota não de considerações teóricas, mas da observação dos
inacreditáveis horrores da guerra que as aplicações da ciência moderna tornaram
possíveis. Neste domínio, infindáveis debates têm prosseguimento e, como acontece
com bastante frequência nestes dias, cria-se uma situação onde não se encontra
nenhuma resposta precisa, exatamente porque o terreno não foi preparado de maneira
adequada.
Alguns acreditam que há coisas pelas quais vale a pena lutar e mesmo morrer, e
outros para quem a vida terrena do homem é o fim último, não acreditando portanto que
valha a pena colocar em risco esta existência sob qualquer pretexto, mesmo que o preço
seja a perda da dignidade que faz o homem antes humano que animal. E mais: quando
não se considera a questão imediata desta alternativa que concerne à guerra, o foco da
atenção normalmente se volta para a extensão pacífica da tecnologia que é tida como
erradicadora de toda a miséria da terra, mas que geralmente traz consigo problemas
maiores que aqueles que conseguiu resolver. Em todas estas questões de natureza
política, social e econômica, os princípios metafísicos podem também lançar alguma
luz, não ao fornecer uma solução indolor a uma determinada dificuldade, onde tem-se
de aceitar a reação de uma ação cometida, mas ao revelar as causas principais que
geraram uma situação específica. Estes princípios podem acima de tudo dissipar a ilusão
acerca da existência desse ser puramente econômico cujo progresso material é tido
como a meta de toda organização social e política. Podem também ajudar a corrigir
alguns dos erros de outras ciências relacionadas ao homem e à sociedade que ainda
copiam cegamente os métodos da física do século dezessete e estudam o homem sem
saber o que ele realmente é. Podem ainda estipular fronteiras à aplicação da tecnologia
e, na realidade, à inexorável propensão de satisfazer os desejos animais do homem, e até
mesmo criar, quando possível, novos desejos e necessidades.
Este fato talvez não seja evidente para um cristão que vê sua religião como a
norma com a qual as outras religiões, mas isto se torna óbvio se se faz uma comparação
com as outras religiões monoteístas que procedem da "árvore abraâmica", a saber, o
Judaísmo e o Islam. Todas as duas têm uma Lei Sagrada, a talmúdica e a alcorâmica,
que são inseparáveis da revelação de cada religião. De fato, em ambos os casos a
vontade de Deus é vista como manifestada em leis concretas que teoricamente
governam todos os aspectos da vida humana e são o plano de uma sociedade humana
perfeita. A vida política, social e econômica do homem é governada pelas instituições
divinas contidas na Lei Sagrada.
237
"Por causa da verdadeira totalidade e centralidade do homem, ele tem a função quase divina de zelar
pelo mundo da natureza. Uma vez que seu papel seja ignorado ou desvirtuado, ele corre o risco de ver a
natureza lhe mostrar, no final, quem é na realidade o conquistador e quem é o conquistado. Poder-se-ia
também dizer que no passado o homem teve de se proteger das forças da natureza, enquanto hoje é a
natureza que tem de ser protegida da ameaça do homem." J. E. Brown, "The Spiritual Legacy of the
American Indian", Tomorrow, outono, 1964, p. 302.
238
"Este destronamento da natureza, ou esta cisão entre o homem e a terra — um reflexo da cisão
entre o homem e o Céu — produziu frutos tão amargos que não seria difícil mostrar como, hoje em dia,
a mensagem eterna da natureza constitui um viático de primeira ordem. Alguns talvez façam objeção ao
fato de que o Ocidente sempre soube — especialmente nos séculos dezoito e dezenove — como
retornar à natureza virgem, mas isto está fora de questão, já que não se trata aqui de um "naturismo"
que possa ser descrito como romântico e "deísta" ou até ateísta. Não é uma questão de projetar um
individualismo super-saturado e desiludido numa natureza dessacralizada — isto seria um ato de
profanação como qualquer outro — mas, pelo contrário, de encontrar novamente na natureza, nas
92
para todos aqueles que são capazes de compreender e apreender este conhecimento
metafísico que conduz ao amor e respeito pela natureza.
Ao final, o que podemos dizer com toda certeza é que não há possibilidade de
paz entre os homens, a menos que haja paz e harmonia com a natureza. E a fim de se ter
paz e harmonia com a natureza tem-se de estar em harmonia e equilíbrio com o Céu, e
por último com a Fonte e Origem de todas as coisas.239 Aquele que está em paz com
Deus também o está com Sua criação, tanto com a natureza quanto com o homem.
bases de uma perspectiva tradicional, a substância divina que lhe é inerente; em outras palavras, "ver
Deus em toda parte", e nada ver à parte de Sua misteriosa presença." F. Schuon, "The Symbolist
Outlook", páginas 55-6.
239
"A clara compreensão da virtude do Céu e da Terra é aquilo que se chama 'A Grande Raiz' e a
‘Grande Origem’; aqueles que a têm estão em harmonia com o Céu, e assim produzem todas as
medidas equânimes no mundo; são aqueles que estão em harmonia com os homens." The Sacred Books
of China, The Texts of Taoism” (trad. de J. Legge), vol. I, p. 332