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Fernanda Silveira
lideranças. Foi uma decisão que a associação tomou junto com os mo-
radores para proteger a todos. Mesmo o caminhão de mercadorias para
abastecer o mercadinho fazia seu serviço e voltava; n
território. As pessoas de fora não podiam comprar nesse mercadinho,
apenas os comunitários, com máscara, com higiene das mãos e todas as
medidas para manter o distanciamento. Com esse conjunto de práticas,
a comunidade não fechou, mas conseguiu controlar o número de casos.
Coletivamente, ficou estabelecido que a responsabilidade era
de cada um, e muitos informavam: “na minha casa eu mando”, “na
minha casa só entra quem eu quero”, “na minha casa eu recebo só
quem quero”, “na minha casa eu que vou ditar as regras”, “o quilom-
bo tomou uma decisão assim para todos, então todos vão cumprir,
não recebo visita, não visito”.
O agente comunitário de saúde (ACS) passava na rua dando in-
formes, mas também não entrava na casa de ninguém. Alguém da casa
ia à porta ou à janela, e repassava as informações aos demais familiares.
Mas sempre havia elementos discordantes. Muitas pessoas diziam: “Mas
eu não estou doente, por que o ACS não encosta na minha casa?”, en-
tão o diálogo se estabelecia: “Você não está doente, mas quem garante
que eu não estou? E quem garante que a senhora não está? Eu saí da
unidade, vim para cá, e como eu vou saber se a senhora está doente ou
se eu estou doente? Não é pela senhora. É por mim mesmo. Vai que
eu trago lá da unidade para sua casa?”. Os primeiros impactos foram
importantes porque os moradores viram que era difícil estar isolado da
família, não poder sair para visitas e as crianças brincarem apenas nos
seus quintais. Isso é especialmente difícil, pois as casas do quilombo são
muito próximas e as famílias muito grandes. Há dois campos de futebol
apreciados por crianças e adolescentes que não estão sendo utilizados.
O grupo de capoeira também foi suspenso, para a tristeza de muitos.
Os pais tomaram a decisão: “Não pode por esse motivo”.
Gradualmente, as pessoas foram se convencendo. “Não tem visita,
não tem praia”. A praia de Ajuruteua está sempre lotada de visitantes,
mas os quilombolas não vão. “Quer beber uma cerveja? Quer beber
alguma coisa? Bebe em casa”. “Quer fazer uma brincadeira? Faça em
casa, só para você com seus f ilhos”. Essas decisões, ainda que difíceis,
foram tomadas pelos próprios quilombolas, por reconhecerem que se
não se unissem para se proteger, nenhum governo iria fazer.
ter políticas de saúde que atendam suas necessidades, para ter o básico em
termos de infraestrutura: estradas adequadas, educação para crianças e
adolescentes, e agora, condições mínimas para sobreviver na pandemia.
Uma das primeiras ações do movimento quilombola de Salva-
terra foi organizar um grupo de trabalho por meio das redes sociais,
uma vez que todos sabiam da necessidade de isolamento por causa da pan-
demia, e começar a pensar e articular estratégias para combater a Covid-19.
A partir da organização coletiva pensou-se em produzir faixas e
colocá-las nas entradas quilombos, antes ainda de aparecerem os pri-
meiros casos nas comunidades, pedindo que pessoas de fora não fi-
zessem visitas em respeito à vida dos quilombolas, especialmente dos
cidadãos mais velhos, anciãos e anciãs, que são os mais frágeis diante
do vírus e os guardiões da memória e da história das comunidades.
Após o registro do primeiro caso, começou-se então a montar
as barreiras sanitárias. Foi um trabalho autônomo, pois nenhuma es-
fera governamental implementou qualquer política para a proteção
dos territórios. A alternativa foi cada comunidade se organizar para
garantir as próprias medidas. Em seguida, as associações contataram
as autoridades de saúde municipais para buscar o mínimo de apoio
oficial ao respeito às barreiras e à autonomia das comunidades.
Entretanto, assim como em outros locais, diversas circuns-
tâncias impedem o fechamento completo dos territórios no Marajó,
como o fato de os comunitários não estarem titulados e haver a in-
trusão de fazendeiros e grupos externos que, para chegarem às suas
terras, precisam passar por dentro das áreas quilombolas. Em alguns
dos territórios, como Caldeirão e Vila União, as rodovias estaduais
atravessam a área quilombola, sendo impossível fechar completamen-
te. Diante desses desafios, foi preciso trabalhar o convencimento das
pessoas para reduzir o acesso aos quilombos de Salvaterra.