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Dilmar Santos de Miranda* Musica e linguagem em ARGuMeNTos Rousseau e a estética musical do romantismo Revista de Flosofa "Dai se conclui, por evidéncia ndo se dever a origem das linguas ds primeiras necessidades dos homens; seria absurdo da causa que os separa resultasse o meio que 0s une. Onde, pois, estard essa origem? Nas necessidades morais, nas paixées. Todas as paixées aproximam os homens, que a necessidade de procurar viver forga a separarem-se. Néo ¢ a fome ou a sede, mas o amor, o édio, a piedade, a célera, que hes arrancaram as primeiras vores... Eis ae mais antigas palavras inventadas, eis ‘porque as primeiras linguas foram cantantes e apaixonadas antes de serem simples emetédicas.” Rousseau em Ensalo sobre a origem das linguas. RESUMO Este artigo ressalta a importancia do pensamento do filésofo Jean-Jacques Rousseau, no contrafluxo do pensamento iluminista de sua época, provocando uma profunda ruptura na estética musical da tradicao - do pitagorismo-platénico ao racionalismo modemo ~ sobr- etudo em duas questées bésicas que se articulam entre si: a dicotomia entre raz4o e sensi- bilidade e a auséncia de semanticidade na arte musical, o que iré estabelecer um profundo didlogo com o pensamento filoséfico do século XIX, abrindo caminho para a estética musical do romantismo, Palavras-chave: Origem das linguas; Razéo e sensibilidade; Semantica musical; Estética musical; Romantismo. ABSTRACT This paper emphasizes the importance of Jean-Jacques Rousseau, against the mainstream of Enlightenment thought of his time, causing a deep rupture in the musical aesthetics of tradi- tion - from Pythagoreanism-Platonic to modern rationalism — especially on two basic issues that they are mutually itself: the dichotomy between reason and sensibility and the absence of semantics in musical art, which will establish a close dialogue with the philosophical thought of the nineteenth century, paving the way for the musical aesthetics of romanticism. Keywords: Origin of language; Reason and sensibility; Musical semantics; Musical Aesthetics; Romanticism, * Docente da Graduagéo e do Programa de Pés-graduago em Flosotia da UFCY/ICA. 162 Tots As grandes viagens que marcaram a expansdo mercantil capitalista nos inicios da era moderna, colocando o colonizador euro-ocidental em contato direto com outras etnias e culturas flagrantemente diferentes das suas, ensejaram um enfrentamento da mentalidade do moderno homem europeu com 0 seu “outro”, com seus costumes “sel- vagens”, “exéticos” e “primitivos”. Um dos indicios desse insélito embate, visto poste- riormente como algo de cunho anedético, refere-se a certa concepeao crista que pre- gava a nao existéncia da alma no corpo ne- gro, e por nao possui-la, justificaria sua es- cravidao enquanto ser inferior. Mas 0 exemplo mais cléssico desse enfrentamento pode ser visto no texto Dos canibais, um dos mais importantes da obra Os Ensaios do escritor francés Michel de Montaigne (1533-1592) inspirado no encon- tro que teve, em 1562, com indios da tribo Tupinamba, levados do Brasil para serem exibidos em cortes europeias, A contrapelo da opiniéo de seus contemporéneos, que viam os indios como povos exéticos sem {é, sem lei e sem rei (ni foi, ni loi, ni roi), exclut dos da histéria, portanto excluidos da civili- zacdo, o que justificava e impelia reinos Igreja a acéo colonial e a catequese, Mon- taigne questionava a visdo de que os silvi- colas eram "barbaros" ou “selvagens”. Segundo ele, prefigurando uma espé- cie de critica avant Ja lettre ao etnocen- trismo, nada havia de bérbaro ou selvagem na nova nado brasileira(que recebera o nome de Franca Antartica na patria de Mos taigne), visto néo possuirmos outro critério de julgamento que vé além das opinides e costumes do pais onde vivemos. O canibal de Montaigne nao é exatamente o bom sel- vagem de Rousseau, entretanto sua concep- do demarca e constréi um campo de refle- Na vitada do sécu tema (cf, ROSEN, 2000:115) xéo que passa a ser constante entre pensa- dores ocidentais acerca do uso e costumes do “outro” do europeu. Dentre a tematica desse universo destaca-se a questo da ori- gem de seus idiomas bem como seus vincu- los organicos com a musica, encontrando no pensamento do filésofo Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), sua mais completa traducéo.! Se a tradicao da estética ocidental su- bordinou a miisica & hegemonia logocén- trica, ao julgé-la a partir dos pardmetros da poesia e da linguagem, regimes estéticos ¢ epistémicos dotados de racionalidade, o que faria da misica uma arte destituida de qualquer semanticidade incapaz de estrutu- rar sentidos as coisas, portanto incapaz de falar da vida e do mundo, tal fato sofre uma grande inflexio com a estética do roman- tismo europeu do século XIX, cujo aporte fundamental iremos encontrar no Essai sur Torigine des langues do filésofo suico, que, mesmo sendo usualmente inscrito na linha- gem iluminista francesa, jogou papel cru- cial na grande inflexéo roméntica na esté- tica musical que lhe segue. A polarizacao entre razéo e sensibili- dade na arte musical ~ entre o prazer da es- cuta e a mimesis racional da natureza, ques- téo com afinidades conceituais com a ques- tao da semanticidade musical -, foi algo que desafiou o pensamento euro-ocidental.? Como sabemos, durante séculos, a razéo teve seu lugar de honra na estética ociden- tal, desde a primazia do logos pitagérico- -platénico, passando pelos tratados medie- vais, pelo Renascimento, encontrando boa acolhida no racionalismo moderno, situacéo que comeca a se alterar no século XVIII, em plena época iluminista.? Mas quem, de certa forma, antecipa tal inflexao seré o compositor Jean-Philippe XIX, época de consideravel especulacao sobre a origem da linguagem, houve tantas monografias sobre o assunto que a Academia de Ciéncias de Berlim anu su que no iria mais aceitar trabalhos que tratassem do CO italiano Enrico Fubini, um dos pesquisadores mais dedicado & questio da estética musical, com vari livros volados para o tema, nos diz que a que seméntico” (1971:8) 140 do sentido da musica conlunde-ee com a estética musical. ‘A histéia da eatética ‘musical podia ser configurada [..] como a histéria das relagSes da musica com as artes, no que 1 ‘0 seu poder Em outro texto, o autor desenvalve a trajetéria histérica da queetéo da semantcidade musical no artigo “Razéo, sentido eatética musical” (MIRANDA, 2008) Bro 8-001 163 Rameau (1682-1764), grande tedrico da mii- sica que ird jogar papel crucial, junto como © compositor Johann Sebastian Bach (1685- 1750), na consolidagéo do tonalismo, sii tema fundamental que coroa todo o pro- cesso da racionalizacao da musica euro-oci- dental. A despeito da inspiragao cartesiana inicial, no Traité de I’harmonie réduite 4 son principe naturel (1722), Rameau tenta trans- por o fosso entre sensibilidade e racionali- dade, procurando compatibilizar arte e ra- zo. Para isso, recore velha concepcao pitagérica, que, como se sabe, se manteve viva durante séculos. A sensibilidade da arte musical, vista até entéo como algo me- nor, um “inocente luxo” por seu caréter ca- prichoso e falta de racionalidade, tera em Rameau um importante defensor, que tra- vara um combate acirrado, escolhendo as préprias armas do adversario e lutando no seu préprio campo. Se a musica, na tradicéo euro-ocidental, encontra-se fundada numa sdlida base cientifica fisico-matematica, como queriam os racionalistas, se seus princfpios sao racionalizaveis, se a esséncia da harmonia se funda num eterno principio racional, a arte musical néo pode mais ser vista como mero objeto de prazer incompa- tivel a razéo. Defendendo o primado da har- monia por possuir uma forca expressiva maior (aqui reside a grande diferenga entre ele e Rousseau), e, partindo das séries har- ménicas, através das regras pitagéricas das propriedades fisico-acisticas das ressonan- cias, ele constréi, com a triade maior (dé-mi- -sol), acorde perfeito. Dessa maneira, para Rameau, a harmonia representa o ideal pri- meiro donde derivam todas as demais qua- lidades da musica, inclusive o ritmo (FU- BINI, 1971), O francés nao renega os prazeres do ouvido, denegados pelos cénones do racio- nalismo. Nas pegadas do pitagorismo e da estética crista, ele vé no prazer da escuta musical, a justa expressdo da ordem univer- sal divina, através de sua harmonia cient Durante o periodo do absolutismo, as éperas be rela, 0 camarote central do pri disposigao cénica, para uma v 164 kava rigorosamente a uma perspective nobre, ou seja. ot cen fica. Assim, ao compartilhar da mesma har- monia, a miisica compartilha de uma espé- cie de natureza divina. Ao privilegiar a harmonia, Rameau visa priorizar os valores mais essenciais da musica, preparando a via para o reconhecimento da mtsica ins- trumental, ou pura, como dirdo os romanti- cos. Para ele, a musica era a linguagem pri- vilegiada da sensibilidade e da razéo, pois ela expressa, a um sé tempo, as emogées & os sentimentos, bem como a unidade divina e racional do mundo. Mas, sua compatibilizacéo das duas esferas - razéo e sensibilidade -, que o leva a defesa das propriedades racionais da har- monia, leva-o igualmente a se colocar em campos opostos a apreciacéo da musica feita por Rousseau. Este, em sua Carta so- bre a miisica francesa (1753), publicada em plena grande querelle des boufons, tem Ra- meau como seu alvo principal. Durante o célebre e grande debate setecentista sobre a opera, que tumultuou a cena lirica fran- cesa, assistiu-se a disputa de duas escolas distintas: a francesa mais elaborada e racio- nal e a italiana mais melédica e expressiva. As facgdes em luta se dividiam entre pro- gressistas amantes da épera italiana, que, no teatro construido apés a reforma cénica, sentavam-se a esquerda do camarote da rai- nha (coin de Ja reine), e os partidérios da 6pera francesa, conservadores que se sen- tavam a direita do rei (coin du roi), topica estética que antecipa a geografia ideolégica do periodo pés-revolucao francesa, quando 08 jacobinos e os conservadores girondinos dividiam-se, respectivamente, & esquerda e a direita na Assembleia Nacional. Na verdade, a grande querelle des boufons iré nos revelar e antecipar como miisica e linguagem sempre andaram jun- tas no pensamento de Rousseau, ao afirmar que, se a musica italiana é mais capaz de exprimir as paixdes que a francesa, é por- que privilegia a melodia, e no a harmonia e 0 contraponto, Tal diferenca, alias, para wm encenadas nos palécios, cuja montagem obedecia, ‘eram montados, partindo de um eix> que unia em linha ET) Rousseau, se deve aquilo que distingue os préprios idiomas desses dois povos: en- quanto 0 francés contém poucas vogais so- noras e esté cheio de consoantes, articula- goes e silabas mudas, 0 italiano é doce, s0- noro, harmonioso e acentuado. Subjaz a esta grande querela, uma ve- Iha questao sob nova forma: o texto (libreto), voltado para o intelecto e a razdo, versus a misica, destituida de forca seméntica, vol- tada de preferéncia, aos sentidos. Os enci- clopedistas tomardo partido na disputa, ini- ciando-se uma inflexdo importante, sendo Rousseau, dissidente do racionalismo vi gente, um importante marco de referéncia desse proceso, certamente, o maior teérico dos bufonistas, como eram conhecidos os defensores da misica italiana. Rousseau ndo aceita a dicotomia entre razdo e sensibilidade, pois reconhece o va- lor dos sentimentos e das emocées, enalte- cendo a volta & natureza e a um modo de vida regido pela simplicidade. Ele s6 con- cebea musica como canto, como linguagem original do coracao, como veremos adiante. Decorre dai sua preferéncia pela épera ita- liana, pois, para ele, sua naturalidade ex- pressa numa grande simplicidade melé- dica; aborrece-lhe a misica francesa, por avalié-la artificial; despreza a polifonia con- trapontistica da musica instrumental, por aché-la irracional e antinatural. Esse tipo de juizo critico j4 havia sido dirigido ao compositor Bach, por alguns de seus pares alemées, antecipando o juizo do enciclopedista francés no que se refere aquele estilo, porém com uma grande dife- renca. O racionalismo alemo condenara o contraponto "pomposo", “pesado” e “artifi cial” de Bach, em nome da reta razo. Rous- seau condena o artificialismo do contra- ponto em nome da espontaneidade dos sen- timentos. Para fundamentar sua nocao de misica como linguagem dos sentimentos, desenvolve a teoria sobre a génese da lin- guagem falada em Essai sur I'origine des langues, obra péstuma, publicada em 1781. Foram em versos as primeiras hietérias [1 Encontrou-se a poesia antes da prosa, e haveria assim de suceder, pois que as paixtes falaram antes da razéo, ‘A mesma coisa aconteceu com a miisica. principio néo houve outra misica além da melodia, nem outra melodia que ndo © som variado da palavra; os acentos formavam 0 canto, e as quantidades, a medida; falava-ce tanto pelos sors e pelo ritmo quanto pelas articulagées e pelas vozes. (1997, p. 308). Assim, teria existido nas protossocia- bilidades humanas, quando surge a palavra como sua “primeira instituicdo social”, uma unidade entre fala e musica. O que levou o homem primitivo a desenvolver sua lingua- gem intima e organicamente vinculada & miisica foi a necessidade de expresséo de seus afetos e sentimentos e ndo a necessi- dade de se comunicar, Essa indissolubili- dade permitia ao homem, em estado natu- ral, expressar suas paixdes de modo pleno. A civilizacao cinde essa unidade, As linguas, ab origine, eram acentua- das musicalmente, e por um perverso efeito da civilizacao, ficaram desprovidas daquela melodicidade original, tornando-se aptas apenas para expressar uma linguagem ra- cional. Através do canto, a misica recupera sua natureza original. A teoria enciclope- dista da musica como a primeira fala da hu- manidade, prestigiada nos séculos XVIII e XIX, ja era defendido na Scienza Nuova (1725) de Giambattista Vico (1668-1744). Para ele, a forma mais primitiva da fala era a miisica e a danca, o que poderia ser visto nos mais antigos testemunhos da lingua- gem, encontrados em verso, nos mitos e nao em prosa, ideia também defendida por outros pensadores da época. ‘Como vimos, Rousseau valoriza a me- lodia, a linguagem natural das emoc6es por imitar as paixdes, ainda que de forma indi- reta: as imita por forca daquela afinidade eletiva original com a linguagem, com a forma que expressam nossos sentimentos. Ele confere uma espécie de seméntica obli- qua a melodia. Esta nao representa direta- mente coisas, mas excita os mesmos senti- mentos que vivencia, vendo as mesmas coi- sas. Ele abandona assim o campo subjetivo do gosto, concepgao de certa estética da época, para inscrever a polémica da misica italiana e francesa no plano teérico. 7 8-0a 165, Confrontemos mais diretamente Ra- meau e Rousseau. Eles partem de um solo comum de avaliagdo: a natureza racional da harmonia. Rousseau interverte seu apreco pela harmonia. Ele a despreza, pois aquela racionalidade intrinseca confere artificiali- dade musica. Dai seu desprezo pelos fran- ceses. Jé Rameau busca o fundamento pe- rene e natural da musica, situado no princi- pio unitério que se encontra na base da harmonia; a misica, encarnando o papel de arte privilegiada e absoluta. Rousseau reva- loriza a musica, identificando-a como a lin- guagem por exceléncia do sentimento: a que fala diretamente ao coracdo. Para Ra- meau, a misica, investida de uma razao su- prema, una, igual em todos os tempos e para todos os povos, revela-se universal; para Rousseau, expressa e imita as infinitas variedades do coragéo humano, dai seu ca- rater mais culturalmente _particularista. Cada melodia difere de povo a povo, de tempo a tempo. Isso também explica as di- ferencas de linguas: segundo suas estrutu- ras internas, algumas sao mais melédicas, outras ndo; dai as diferencas culturais; dai o atributo relativo e nao universal da musica. Para Rameau, a musica esta dotada de uma compreensibilidade universal, porque todos os homens sao participes da razéo. E sua pétrea norma matematica que fundamenta a harmonia e estabelece sua universalidade e naturalidade, o que, para Rousseau, repre- senta um artificio intelectual que afasta a miisica da arte; para este, a compreenséo da misica é um fato histérico e cultural. A grande musica é fruto do génio, e este nao observa nenhuma regra: 0 génio é uma forca da natureza. Por isso, é forca liberta. Em fins do século XVIII, a grande que- relle chega 4 Italia, tomada com mais vigor pelos tedricos da reforma do melodrama: entre o valor da poesia e da melodia, e de- pois, entre mtsica vocal e instrumental. Preocupados com o processo de autonom: zacao da melodia em relacdo ao texto, vis vel na 6pera italiana, seus adversdrios ata- cam violentamente a musica instrumental e ‘0s que colocam misica e poesia, em pé de igualdade, o que, no fundo, favorece sua au- tonomia. Buscam preservar as prerrogativas 168 ana da poesia contra o que ajuizam ser uma pre- poténcia invasiva da musica. Dentre estes, destacam-se o espanhol Esteban de Arteaga y Lopes (1747-1799) e 0 ensaista italiano de épera Francesco Alga- rotti_ (1712-1764), Arteaga, jesuita expulso da Espanha e acolhido pela Itélia, avalia a exceléncia da dpera pelo libreto. Reforga a ideia de superfluidade da melodia, espécie de omamento gratuito do texto. Combate o impulso autonomizante da musica instru- mental, por corromper seu objetivo original de suporte da poesia. Algarotti, porta voz da reforma inspirada no racionalismo, retoma ao velho principio da supremacia da poesia, definindo o papel auxiliar da melodia ao texto, que sé ganha expresso se acompa- nhada pela palavra. jesuita espanhol Antonio Eximeno Pujades (1729-1808) e o compositor italiano Vicenzo Manfredini (1737-1799) so vozes discordantes. A despeito de sua forte forma- ao matemética ou precisamente por esta causa, o espanhol rousseauriano Eximeno tem como principal objetivo a defesa da auto- nomia da miisica, fundada no prazer auditivo. Em sua obra Da Origem e das Regras Musi- cais (1774), rejeita a associagéo feita desde os gregos entre miisica e matemética, conside- rando-a uma verdadeira linguagem “auté- noma’, Para compor bem, basta se entrega & Natureza e se deixar levar pelas sensacées que se pretende criar através da musica. Ao distinguir os dois mundos constitutivos da miisica (as regras das relacées fisico-mate- maticas e os sons), nega autoridade a tais re- gras para ditar o belo musical. De que serve ntimeros e férmulas que proibem um salto intervalar, quando este pode ser um som agradavel? Para ele, as regras musicais se fundam no prazer auditivo. Manfredini, par- tindo da ideia ilustrada de progresso aceita sem reservas, dominante em todos os trata dos da época, nao transige na defesa da mi- sica de entéo, sobretudo a instrumental. Um dos critérios mais recorrentes de julgamento, além da elegancia, racionalidade e prazer sensorial, era a ideia de progresso das artes, derivada da concepgdo de uma lei necesita rista inexorével da histéria, cujo telos era atin- gir patamares cada mais superiores. E a mii- Trot 8-302 sica néo podia contrarié-la. Assim, a arte mu- sical ndo cessaria de alcancar novos cumes em suas possibilidades expressivas. Gracas a.essa lei da histéria, polemiza com Arteaga, ao proferir que a emancipacdo da musica e da poesia seria um efeito ineliminavel do pro- gresso de ambas, legando-nos obras extraor- dinarias. (FUBINI, 1977). A heranga do racionalismo de diver- sos matizes, herdeiro da tradicao pitagérico- -platénica, atribuindo 4 musica a auséncia de uma linguagem capaz de atingir a razéo e averdade, nao é alterada. Kant havia colo- cado a musica como arte tributéria apenas do sentido auditivo, vendo na sua mudez & razdo, uma incapacidade essencial: mero divertissement da etiqueta cortesa, inessen- cial para o entendimento ea razao. Para ele, a miisica, como arte galante, era “mais goz0 do que cultura’. © romantismo interverte 0 posto da misica, conferindo-lhe a primazia estética. © pressuposto de sua assemanticidade néo 6 diretamente refutado pelo romantismo que o considera com olhos bastante distin- tos, ao fazer dessa “fraqueza”, sua maior vi tude, impulsionando-a para muito além de qualquer outro meio de comunicacao. A miisica é to mais significativa quanto mais livre da fala, A indeterminagdo censurada na musica instrumental agora ¢ atribuida & linguagem verbal. A linguagem musical pertence a outra ordem e se julga com nor- mas distintas. Onde a linguagem se mostra impotente, a musica capta o real num nivel bem mais profundo. No contrafluxo da no- do que vé na musica, mero manifesto de sentimentos particulares de um artista, esta concepcéo confere ao termo “expressdo”, a intencéo de agenciamento de sentido esté- tico, por meio de sons investidos da cond: 40 de signos, isto 6, de elementos com pos- sibilidades de construir formas estéticas significantes (NUNES, 1998: p. 77).5 “A mi- sica forma de certa maneira aquilo que ela expressa, estruturando como linguagem, 0s sentimentos que os signos de natureza ver- bal abstraem” (NUNES, Op. cit., p. 77). Os roménticos implodem a dicotomia da tradicao racionalista: raz4o versus sensi- bilidade. A musicalidade da lingua primor- dial nao é 56 sentimento ou imediaticidade da emocao versus reflexividade da razéo: a lingua original é, a um s6 tempo, razao e sentimento, reflexéo e imediaticidade, em estado rude e seminal; é criacao, onde to- das as faculdades humanas, anterior a toda distingao abstrata, estéo reunidas. A mi- sica instrumental pura est mais proxima deste ideal. Assim, a dimensao cognitiva banida da misica, vista como serva da sen- sibilidade, é agora reentronizada por outra via. Antes, afastada da razdo, é agora vista como a via de acesso por exceléncia para se chegar a verdades ineféveis por outras vias. Para os roménticos, a musica é tao mais significativa quanto mais livre da fala. A indeterminacéo censurada na mtsica instrumental agora é atribuida a lingua- gem verbal. A linguagem musical (eis a grande contribuicdo romantica) pertence a outra ordem e se julga com normas distin- tas: na misica se oculta a expresso mais auténtica e original do homem. Para o 1o- mantismo, onde a linguagem se mostra impotente, a mtisica capta o real_num ni- vel bem mais profundo, Trés pensadores notaveis jogarao papel fundamental na for- mulacéo da estética romantica oitocentista: Georg Fr. Hegel (1770-1831), Arthur Scho- penhauer (1788-1860) e Friedrich W. Nietzs- che (1844-1900). Para Hegel, situado entre 0 idealismo aleméo e 0 romantismo, a funcéo da mi- sica nao resulta em expressar emogdes particulares, mas a de revelar a alma sua identidade, enquanto puro sentimento, gracas @ afinidade de sua estrutura com a prépria alma. E quanto mais evolui, toma- -se expressao de todos os afetos, com to- dos os matizes “do jubilo, da serenidade, do bom humor, do capricho, da alegria e do Benedito Nunes nos chama a atengio para o esboco pioneiro de Hegel de noe propor uma interpretagio seméntica da como expreatéo de sentimentos (NUNES, Op. cit. nota $/77) Kremanes, no 8 DI 167 triunfo da alma, de todas as gradagoes da angiistia, do abatimento, da tristeza, da amargura, da dor, [...] assim como da ado- ago, [...] que se tornam objetos da ex- pressao musical” (1993, p. 499 e seguinte).¢ Encontramos talvez em Schopenhauer, © melhor elaborador de uma seméntica mu- sical de dimensao metatisica, Nele, a grande polémica entre semanticidade e assemanti cidade da musica é resolvida pelo encurta- mento, ou melhor, pela anulacdo da oposi- do das duas instancias — representante e representado, obtendo assim sua plena identificacao. Nao a existindo, nao ha por- que indagé-la da sua possibilidade. Scho- penhauer define a questao, partindo para o pleno reconhecimento, em outros termos, das possibilidades de expresso da misica, apresentando certamente a mais acabada sistematizacéo filosdfica da muisica se- gundo os ideais romnticos. Para ele, é pré- prio da arte provocar no homem o reconhe- cimento das Ideias, isto é, a objetivacao di reta da vontade, principio nouménico do mundo. Em sua obra maior, O mundo como vontade e representacdo (1819) 0 filésofo profere que 1a misica ndo 6, como outras artes, a manifestacdo das ideas ou graus de ob- jetivagdo da vontade, mas é diretamente a prépria vontade. (SCHOPENHAUER, sid. p.677) As outras artes possuem uma relagdo mediata com o mundo, na esfera de repre- sentacdo das Ideias. A priori, a misica é a prépria vontade. Expressao direta do real, ela revela sua esséncia primordial. Opondo- -se ao conceito, o dominio da miisica, como linguagem do sentimento, representa a vida mais intima, mais secreta, mais verdadeira da vontade. O conceito diz 0 mundo. A mi- sica 60 mundo. Ela pode expressar todas as manifestacdes da vontade, todas suas aspi- racées, bem como as satistacées e alvoro- gos do espirito. Por isso, pode expressar também todos os matizes dos sentimentos humanos. Ela nos dé a esséncia, oem sida vida e do mundo. Assim como para Hegel, conforme se viu acima, também para Scho- penhauer, a misica no representa senti- mentos determinados de alegria, dor, de- leite ou serenidade, Numa sinfonia de Bee- thoven, nés ouvimos, a um sé tempo, todas as paixdes e emogées do coragéo humano, a alegria, a melancolia, o amor, 0 6dio, 6 terrivel, a esperanga, com todos seus, matizes infindéveis, mas sempre, de qualquer maneira, in abstracto e sem particularismose especificagdes (SCHO. PENHAUER, Op cit. p. 681). A misica irrompe sem necessidade de acessérios e motivos, como um mundo de puros espiritos. Quando ela, forma pura do sentimento, empresta sua expresséo a certo texto que diz uma dada situagéo, o sentido da melodia entra em contradicéo imediata com o seu sentido, pois a musica jamais deve ser serva do particularismo do conceitual.. Na musica, as palavras so e serdo sem pre uma adigéo estranha e de um valor subaltemo, visto que o eleito dos sons 6, sem divida, incomparavelmente mais lenérgico, mais infalivel e mais direto que o das palavras (Id Ibider. p 678). Na apreciacéo da épera, profere o filésofo: a arte musical nos faré desvelar rapida mente seu poder e eua superloridade: ela noe aportard a interpretagéo mais profun, da, a mais perfeita ea mais escondida dos. sentimentoe expreseoe pelas palavras, ou pelas ages representadas pela épera. (dlbidem) Sao questées que nos remetem de imediato ao epicentro da estética de Nietzs- che da época do Nascimento da Tragédia (1872), quando o filésofo expressa em cores, fortes, o antagonismo entre conceito, ima- gem e misica, Para ele, a palavra inscre- ve-se na ordem conceitual, dai sua fraqueza © A obra Estétca, titulo da versio portuguesa, contém as ligbes de estética ministradas por Hegel e que foram sendo snpiladas pelos seus aluncs, 21, 1823-26 e 1828-29. 168 Frama \cipalmente HG. Hotto, nas cidades de Heidel erg e Berm, entre o periodo de 1820 312 face & expressividade musical da acao tré- gica, Para ele, a maravilha da arte grega dio- nisiaca reside justamente na total auséncia do conceitual. A misica dionisiaca desvela © ocullto, 0 néo revelado pelo conceito. A sa- bedoria da misica, enquanto pura melodia, 6 irreconciliével com 0 saber conceitual. Nao é a flauta, o instrumento musical por exceléncia de Dioniso, o que obsta o uso simultaneo das palavras do canto pottico, portanto 0 uso do conceitual? Para responder a questo acima, o jovem Nietzsche recone a Schopenhauer. Como jé vimos, para este, 0 mundo fenoménico natural e a miisica so duas expressées da mesma coisa. A miisica 6 uma espécie de duplo do mundo fenot nico. A adesao de Nietzsche a esta ideia ¢ tao forte que ele a explicita através de uma longa citago de Schopenhauer, donde extraimos um trecho, sintese de sua ideia central. La musique, considérée comme expression du monde, est donc au plus haut point un lan- gage universel qui est d la généralité des con- cepts 4 peu prés ce que les concepts sont eux- -memmes aux choses particuliére (SCHOPE- NHAUER apud NIETZSCHE, 1977, p. 111).” Todo sentimento humano pode expres- sarse pelas infinitas melodias possiveii Quando isso é feito adequadamente, isto é, quando se estabelece ce rapport étroit entre Ia musique et 'étre vrai des choses (Nietzs- che, Op. cit: p. 112)*-de alguma cena, acéo, acontecimento, - somos langados numa ex- periéncia estética total, onde a miisica nos parece revelar seus segredos e mistérios mais recénditos, a exemplo da execucdo de uma sinfonia, onde il nous semble voir défiler devant nous tous les événements possibles de Ja vie et du monde (Id., Ibidem.,p. 112).2 © préprio da miisica, com relagio as outras artes, nao é ser copia nem representa- 40 "semantica” do mundo fenoménico, sim, como se viu, ser reproducdo imediata da vontade, expressdo da imediaticidade e da efetividade do mundo e da vida. A melodia adequada faz aflorar toda a intensidade efe- tiva do mundo e da vida, no seu sentido mais sublime, Essa adequacao se dé quanto mais analoga for a expressdo da universalidade, contida na melodia, com o espitito interior de um fenémeno determinado, expresso da particularidade. A miisica, na sua busca pela suprema intensidade, isto é, na procura da excitagéo energética contida no interior da fonte sonora musical, busca também sua su- Prema figuracao, o que ocorre somente na sua sabedoria propriamente dionisiaca que Ihe é prépria. Nietzsche vé a arte como ex- presséo da vida, das forcas abissais mais profundas. E ai que reside seu contetido de verdade, néo da verdade conceitual, heranca do otimismo socratico. Esta verdade é ape- nas uma mentira bem contada. A verdade da linguagem musical é de outra ordem. A mi- sica, através da sua forga sonora, é capaz de ‘expressar uma poténcia de vida, um poder revitalizador. Et ot! irons-nous chercher cette expression, si ce n’est dans la tragédie ou, d'une fagon générale, dans la notion du tragi- que? (Id., Ibidem. p. 114).!° Assim, as novas tendéncias iro se fa- zer sentir no Drama na estética wagneriana da época, despojado do fundo racionalista. A aspiracdo a unio de todas as artes sub specie musicae, como iré querer Richard Wagner com sua Gesamtkunstwerk (obra de arte total), sem dividas, se inspira no con- ceito enciclopedista sobre a origem comum da misica e da poesia, A concepcao roman- tica da miisica, a saber, a aspiracdo 4 uniao convergéncia de todas as artes sob sua égide, recebeu certamente influxos rousse- aurianos sobre a origem comum da musica e da poesia.!! ‘Armisica, considerada como expresso do mundo, apresenta-te portanto come linguagem universal em seu ponto mals alo, © esté para a generalidade dot conceitos assim como os préprice conceitos eeldo er féticas”(tradugao livre do auter). n relagdo as individualidades Enla relagio eatreita entre a misica @ o verdadeiro ser das coleas” ((radugao livre do autor [Onde] nos parece ver deslardiante de nés todos os acontecimento possiveis da vida e do mundo” (tadugao lvre do autor). expressio, senso na tragédia, ou, de um modo geral, na nego do rsgico”(radugéo livre aut), Por fugir das intongSes ¢ limites deste texto, ndo é possivel abordar aqul cs motives que levaram Nietasche a romper posteriormente, tanto no plano teérico quanto no da amizade, sua relagao com o compositor Richard Wagner. Krcwnanes, Ane 8-200 169 Encontramo-nos no epicentro da con- sideragdo do romantismo sobre a miisica, a iinica capaz de dar conta de uma realidade inefavel, de desvelar os mistérios dos afetos humanos, por ser ela mesma constituida de inefabilidade, de sua linguagem expressar 08 “excessos préprios de sentidos” da exis- téncia humana. A musica é investida assim daquele atributo dionisiaco tao caro a esté- tica de Schopenhauer e Nietzsche, espécie de meta-semantizacdo referente a uma rea- lidade mais profunda e inefavel, inatingivel para a linguagem comum. Consuma-se assim um longo percurso da histéria da estética musical euro-ocidental: da insignificéncia seméntica ao pleno sentido do mundo, em outros termos, do déficit de significado da musica a sua explosao de sen- tidos, cuja linguagem nos fala de um mundo, muitas vezes inapreensivel por outros meios. Referéncias Bibliograficas FUBINI, Enrico. La estetica musical del si- 170 fea glo XVII a nuestros dias. Barcelona: Barral Ed. 1971. Estetica della Musica. Bologna: Il Mu- lino, 1995. HEGEL Georg W. F. Estética. Lisboa: Guima- 14es Editores, 1993. MIRANDA, Dilmar Santos. Razdo, sentido e estética musical. Revista virtual do I Encon- tro Nacional de Pesquisadores em Filosofia da Musica. Séo Paulo: FFLCH-USP 2005. NIETZSCHE, Friedrich. La naissance de la tragédie, Paris: Editions Gallimard, 1977. NUNES, Benedito. Crivo de papel. Séo Paulo: Ed. Atica, 1998, ROSEN, Charles. A geragdo romantica. So Paulo: Edusp, 2000. ROUSSEAY, Jean-Jacques. Ensaio sobre a origem das Iinguas. Colegao Sao Paulo: Edi- tora Nova Cultural, 1997. Os pensadores. SCHOPENHAUER, Arthur. Le Monde comme volonté et comme représentation. Perrin et Cie, Paris: Libraires-Editeurs, [s/d].

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