AULA 1
Ó Da tradução: Editora Filosófica Politeia, 2020
CDD 194
ISBN: 978-85-94444-10-3
GILLES DELEUZE
TRADUÇÃO
MARIO ANTUNES MARINO e IRACY FERREIRA DOS SANTOS JÚNIOR
NOTAS
MARIO ANTUNES MARINO
Muitos de vocês fizeram seus cursos em um momento ou outro, foram marcados por ele e o amaram.
Acredito que uma homenagem a ele, aquela que nos é possível fazer, é reler seus livros para avaliar sua
importância, desde o Nascimento da história.2 Pois acho que ele realmente realizou uma obra.
A partir de agora, começamos a segunda parte deste estudo sobre Foucault. A segunda parte é o
segundo eixo do seu pensamento. Esse segundo eixo diz respeito ao poder e era exigido pelo primeiro
eixo, que dizia respeito ao saber. Durante todo o trimestre anterior fomos levados a ver como o domínio
do saber exigia, em condições muito precisas, uma resposta que devia vir doutro lugar. 3 E apenas
pressentimos que, sem dúvida, essa resposta de outro lugar só podia vir de uma analítica do poder.
Eu vou resumir mais uma vez o que estudamos na precedente análise do saber. O primeiro ponto é
que as formações históricas se apresentam como estratos, como formações estratificadas. Veremos talvez
que, em relação ao problema do poder, essa noção de estrato ou estratificação, tal qual aparece muito
rapidamente no início de A arqueologia do saber, assume uma nova importância em relação ao problema
do poder. Vocês sentem imediatamente, em todo caso deveriam senti-lo imediatamente, que a pergunta
seria: e o poder? É estratificado? Mas ainda não estamos lá. Como essas formações estratificadas se
mostram? Elas são apresentadas como verdadeiras camadas sedimentares. Camadas de quê? De ver e
falar. Palavras se amontoam, visibilidades se amontoam. Camadas de ver e de falar.
Segundo ponto: essas camadas remetem a duas formas: ver e falar; mais precisamente, a forma do
visível e a forma do enunciável. E cada formação estratificada é feita do entrelaçamento dessas duas
formas. O visível e o enunciável, ou sua condição formal, a luz e a linguagem.
1
De outubro de 1985 a maio de 1986 Gilles Deleuze ministrou um curso sobre Foucault. As aulas foram gravadas e a
transcrição encontra-se disponível online no site da Universidade Paris-8. Deleuze dividiu o curso em três eixos, intitulados
As formações históricas, O poder e A subjetivação. As primeiras 8 aulas cobrem o primeiro eixo e compõem o curso que
intitulamos Michel Foucault: as formações históricas (online em: http://editorapoliteia.com.br/as-formacoes-historicas e em
https://n-1publications.org/aulas-1). As onze aulas seguintes cobrem o segundo eixo e compõem o presente curso, Michel
Foucault: o poder. As últimas 6 aulas abordam o terceiro eixo – A subjetivação. Elas serão publicadas futuramente pela
Editora Politeia.
2
Na gravação: “depuis la naissance de l’histoire”. Trata-se provavelmente de uma referência a La naissance de l'histoire: la
formation de la pensée historienne en Grèce de François Châtelet, morto em 26 de dezembro de 1985. Châtelet foi um dos
fundadores da Universidade Paris 8 em Vincennes, juntamente com Foucault e Deleuze.
3
Cf. DELEUZE, G. Michel Foucault: as formações históricas.
4
Terceiro ponto: embora essas duas formas se entrelacem para constituir as formações estratificadas,
há uma heterogeneidade entre ambas. São duas formas irredutíveis, sem medida comum. O visível não é
o enunciável. Falar não é ver. De modo que o entrelaçamento das duas formas é uma verdadeira batalha
e só pode ser concebida como abraço, corpo a corpo, luta. No fim das contas, praticamente, não é isso o
que interessa a Foucault e o que explica muito do seu estilo? Ou seja: tudo se passa como se para ele se
tratasse um pouco de ouvir gritos sob o visível e, inversamente, arrancar das palavras cenas visíveis.
Relâmpagos sob as palavras, gritos sob o visível, abraço perpétuo de ambos. Nós o vimos a respeito de
Raymond Roussel, é isso o que Foucault vai buscar em Roussel. Os relâmpagos escapando das palavras,
e em Brisset – outro autor insólito que Foucault comenta mais brevemente do que Roussel – vai buscar
gritos sob as palavras.4
Abro um parêntese muito rápido, porque falei pouco de Brisset e do texto sobre Brisset, mas...
Brisset, este livro sobre a linguagem, tem operações muito curiosas que não deveríamos tomar por
exercícios de etimologia fantasiosa. Há uma bela página de Brisset acerca da palavra saloperie
[imundice]. O que nos diz Brisset? Ele diz, bem, o que é a imundice? Está sujo, não limpo, sujo; eau
[água] – porque a água é a origem universal, de onde saem as rãs e nós somos todos rãs. É a grande ideia
de Brisset sal-o-pris, estar preso [être pris]. Isso significa que os cativos, na guerra, são colocados em
uma espécie de terreno úmido, são jogados na água suja, os cativos são colocados na água suja: sale-eau-
pris, preso na água suja. Vocês veem a abordagem? Se fosse etimologia, seria um truque miserável, mas
é melhor que isso, da palavra ele arrancará uma cena visível: o cativo que toma banho numa espécie de
poço com água suja. Então, nessa cena visível, ele solta um grito: os vencedores, em torno desse poço,
gritam repetidamente “imundice!”. Eles insultam os cativos. Novo retorno a uma cena visível: sale eau
pris torna-se salle aux prix [sala dos preços, leilão]. Os vencedores não se contentam em insultar os
cativos dizendo “presos na água suja”, eles os compram para fazê-los escravos. Eu me detenho porque
isso não tem fim em Brisset.
Mas em que sentido não é um exercício etimológico? Vejam que ele sempre começa com palavras,
extrai uma cena visual, sonoriza a cena visual. O efeito sonoro, o primeiro som da cena visual, induz
outra cena visual e operará os efeitos sonoros da segunda cena visual. É um processo poético muito
interessante que faz as mais belas páginas de Brisset, e há perpetuamente esse tipo de história animada
que salta de um grito para uma cena visual, uma visibilidade, da visibilidade para um grito, motivo pelo
4
FOUCAULT, M. “Sept propos sur le septième ange” 1970]. In: BRISSET, J-P. La grammaire logique. Reproduzido em
FOUCAULT, M. Dits et écrits v. I, p. 881.
5
qual Foucault não podia ignorar Brisset. Assim, heterogeneidade das duas formas que estão
perpetuamente em relação de captura, abraço, corpo a corpo, uma com a outra.
Quarto ponto: mesmo que se diga, são relações de batalha, o que torna possível o corpo a corpo,
como é possível o abraço, visto que ambas as formas são irredutíveis? A resposta, nesse quarto ponto,
não pode ser outra coisa: deve haver uma relação entre as duas formas sem relação, a visível e a
enunciável, luz e linguagem. É preciso que haja uma relação entre essas duas formas não relacionadas;
logo, a relação só pode vir de outra dimensão, a qual fará surgir a relação na não relação entre as duas
formas. Insisto porque será muito importante para nós, mesmo antes de entendermos do que se trata. Não
tenho escolha, é preciso que essa outra dimensão seja informal e não estratificada, caso contrário ela não
seria uma resposta para o problema. É preciso que essa dimensão seja diferente daquela do saber. E que
difira do saber, entre outras coisas, por isso: não será estratificada, não será formal. Em outras palavras
– escutem bem –, não pode haver forma do poder. É preciso entender abstratamente antes de ver
concretamente.
Por fim, último ponto, vimos por que e como o saber ultrapassou a si na direção de outra dimensão.
Esse foi o objeto da nossa última aula: como o saber vai além, para outra dimensão? A resposta foi a
análise de AZERT, com a qual terminamos [o curso anterior].5 E a análise desse exemplo insólito, AZERT,
foi a contribuição de Foucault ao lado dos exercícios de Roussel e de Brisset, aquelas páginas muito
curiosas de Foucault, em que ele se diverte com AZERT, dizendo: “pedem um exemplo de enunciado, eu
dou: AZERT. E vão se catar!”.
Pois bem, em minha opinião ele sabia para onde isso o levava: à ideia de que a fronteira, a distinção
a fazer, não é entre o enunciado e o que designa, nem entre o enunciado e o que significa, mas entre o
enunciado e o que o incarna, o atualiza. E o que o atualiza? O que é essa fronteira entre o enunciado e o
que o atualiza? O enunciado é definido por uma regularidade, ou seja, é análogo a uma curva. Mas o que
faz uma curva? Regulariza relações entre pontos singulares, regulariza relações entre singularidades. [Por
exemplo,] AZERT regulariza as relações entre pontos singulares, ou seja, as relações entre as letras na
língua francesa e os dedos, entre a frequência das letras, as vizinhanças das letras e as relações dos dedos.
Eis as relações entre singularidades. AZERT é o enunciado, como a curva que passa pelas vizinhanças
dessas singularidades. Em outras palavras, o enunciado AZERT remete a quê? Ele atualiza relações de
força. São relações de força entre as letras e os dedos na língua francesa.
5
Cf. Michel Foucault: as formações históricas, aula 8. AZERT refere-se à sequência das teclas na máquina de escrever
francesa. Em nosso teclado a sequência equivalente é QWERT.
6
Eu diria, precisamente: é assim que o saber ultrapassa a si na direção do poder. Por quê? Porque o
poder é relação, e a relação de poder é estritamente a mesma coisa que uma relação de força. Em Foucault,
relação de poder, no singular, e relações de força, no plural, são estritamente sinônimos. Se o saber se
ultrapassa na direção do poder, é porque as relações das duas formas (forma do visível e forma do
enunciado) ultrapassam a si na direção das relações de força elas encarnam. De modo que temos a
fórmula abstrata da relação saber-poder, antes de entendermos concretamente o que é o poder.
Vejam então a importância, para tudo o que virá, da observação de Foucault: o enunciado como
elemento do saber, o enunciado é sempre uma relação com outra coisa, embora essa outra coisa difira
infinitamente pouco dela. É exatamente como dizer: as relações [relations] de saber remetem
fundamentalmente a outra coisa que são as relações [rapports] de poder. Mesmo que as duas coisas,
relação [rapport] de poder e relações [relations] de saber, distingam-se infinitamente pouco. “Outra coisa
quase semelhante”. Só é um “quase”.6 Donde nosso problema torna-se: o que é poder? Já sabemos a
resposta fundamental de Foucault: o poder é relação. Assim como o saber é relação de forma, o poder é
relação de força. Vocês me dirão que não é muita coisa, poder é relação de força. Depende, depende,
vamos ver. Então devemos pensar que, se tivéssemos entendido o que significa relação de força, a
concepção de poder teria mudado radicalmente. Ora, vocês diriam com razão: mas Foucault não é o único
que definiu o poder como relação de força. Felizmente. Se existe originalidade de Foucault nesse nível,
está para além da concepção da relação de força.
Pronto, tentei reunir o que aprendemos. Agora lanço um forte apelo: há questões sobre o que
falamos no primeiro trimestre ou tudo vai bem? Outra pergunta: em sua leitura de Foucault, vocês
concordam com a maneira como o problema do conhecimento é representado? Mas vamos guardar isso
para o final do ano se... eu não sei. Enfim, agora é a hora de conversar, se quiserem... Sim?
PERGUNTA: O termo “formação discursiva” nunca esteve em sua análise. Você fala em formação
histórica... [inaudível na gravação].
DELEUZE: Isso não está errado. “Nunca” é talvez um pouco severo. Parece-me que falei sobre isso. Eu
prefiro, utilizei sobretudo a expressão “regime de enunciado”. Sim. Eu vou te dizer porque, eu acredito...
porque na verdade você está absolutamente certo. Mas, afinal, sempre fazemos nossa escolha na
terminologia. Por outro lado, Foucault raramente usa a palavra estrato, e eu dei uma importância essencial
6
Cf. DELEUZE, G. Michel Foucault: as formações históricas, aula de 17 de dezembro de 1985, p. 7. A colocação de Foucault
em A arqueologia do saber (p. 100) é: “uma série de signos se tornará enunciado com a condição de que tenha com “outra
coisa” (que lhe pode ser estranhamente semelhante, e quase idêntica como no exemplo escolhido) uma relação específica que
se refira a ela mesma – e não à sua causa, nem a seus elementos”.
7
ao estrato. Evidentemente, são pequenas escolhas que fazemos... assim. Mas tenho uma razão pela qual
falei muito pouco de formação discursiva: é porque temo um pouco a ambiguidade a esse respeito. Pelo
contrário, suponho que Foucault gostava muito da ambiguidade a esse respeito. Pois “discursivo” tem
um significado preciso em francês e em terminologia filosófica. É um certo sistema de dedução, um certo
sistema dedutivo, que define um discurso. Ele mesmo retomará a palavra “discurso”, por exemplo, em
seu livro A ordem do discurso. Escusado dizer que faz dos discursos uma concepção completamente nova.
Qual é a novidade da formação discursiva em Foucault? É que uma formação discursiva é uma família
de enunciados. Assim, uma vez dito, é uma concepção paradoxal e completamente nova do enunciado.
Desse modo, “discursivo” é em Foucault uma certa maneira de transmitir sua concepção do enunciativo.
Eu não tinha motivos para retomar o termo discursivo dele, porque é um termo enganador, é um tipo de
palavra relativamente neutra, onde se pode colocar muitas coisas e por meio da qual ele coloca suas
coisas, a saber, os enunciados, a família de enunciados, o regime de enunciados. Mas quase toda vez que
eu falei sobre “família de enunciados”, você poderia dizer “formação discursiva”. Procurei mostrar que
uma família de enunciados em Foucault – que não era de forma alguma definida por uma semelhança
entre os enunciados, mas quase pela possibilidade de prolongar séries de singularidade, o que é bem
diferente – foi uma concepção ainda mais original. Então, de fato, “formação discursiva” é “família de
enunciados”. Mas seu comentário está absolutamente certo. Em muitos outros casos, parece-me que sou
levado a fazer...
Cada um tem sua leitura. Sou levado a privilegiar certos termos... Eu não sei. Isso acontecerá
novamente para o poder, com certeza. Há uma página de Foucault na qual ele usa uma vez uma palavra
que parece tão importante para mim, tão esclarecedora para toda a sua teoria, é a palavra diagrama.
Insistirei enormemente no diagrama, embora essa palavra seja usada por Foucault apenas uma vez, em
uma página essencial. Então, tudo depende também, vocês sabem, cada um de nós é assim... Se somos
levados a privilegiar certos termos em comparação com outros quando lemos, é também na medida em
que concedemos a essa ou aquela página uma importância decisiva. Um livro nunca é homogêneo, um
livro é feito de tempos fortes e fracos, sendo os tempos fracos às vezes brilhantes. Falo ritmicamente,
batidas fracas no sentido rítmico. Logo, é óbvio que duas pessoas que leem apaixonadamente um livro,
basta que a paixão esteja lá, não tenho certeza de que a distribuição de destaques e de tempos fracos seja
a mesma em duas leituras. Pois as diferenças entre as leituras precedem muito os problemas de
interpretação. As diferenças entre as leituras, quando um livro é rico e bonito, já acontecem no nível do
ritmo da leitura. Você pode ler em voz baixa, não há leitura que não seja rítmica, ou seja, mesmo antes
8
de entender o que estava sendo discutido, há sinais que chegam até você e esses sinais são coisas que,
como pequenas luzes, acendem e você diz: “Oh, isso é algo importante”. É verdade, ler é todo um
exercício respiratório, um exercício rítmico, antes de ser um exercício intelectual. Daí o critério de
escolha de alguém, para dizer: “Ah, isso é essencial”, não é porque há frases em itálico, porque quando
o autor coloca em itálico, significa que é a leitura dele, significa que ele está lendo a si mesmo e
informando o leitor: “Isso é importante”. Então é preciso ouvi-lo, porque o autor tem um ponto de vista
privilegiado. Ele é quem sabe, hein? Mas muitas vezes você é levado a pular o itálico. Então há uma
questão sobre esse tema do ritmo, a distribuição dos altos e baixos dos tempos, o que faz com que,
novamente, a interpretação decorra dessa rítmica. É bem aqui que o leitor participa da criação do autor.
Vocês sabem, quando leem filosofia, ou mais ainda quando vocês leem literatura, é muito próximo
de quando se ouve música. A rigor, você não ouve música se não capta o ritmo. Ou até outra coisa. Tem
sido dito com frequência, e parece-me uma precisão óbvia: não ouvimos Mozart, rigorosamente não
ouvimos, se não somos sensíveis à distribuição dos acentos. Na literatura e na filosofia também é assim.
Penso em um autor como Leibniz, uma página de Leibniz. Mesmo antes de lê-la, você não pode deixar
de se perguntar qual é a altura, como na música, qual a altura e em que nível. Como um pensamento tem
sempre vários níveis, ele é exposto em vários níveis. Ler é atribuir a cada página um nível. Um
pensamento tem sempre vários níveis, ele se expõe em vários níveis. Ler é atribuir a cada página um
nível.
Retomo Foucault. “Formação discursiva”, eu a colocaria no nível mais baixo, não por ser má noção,
mas porque é uma noção armadilha. Concebo muito bem alguém que, pelo contrário, a poria no centro.
Seria uma distribuição inteiramente diferente de ritmos, altos e baixos. Por isso a única coisa que desejo
é não impor uma leitura, é realmente lhes oferecer uma, para que façam a sua. Neste momento não seria
pertinente dizer “mas ele está errado” (vocês foram gentis e nunca disseram isso [a meu respeito]) se os
acentos são distribuídos de modo diverso na leitura.
Obviamente existem leituras insustentáveis, sempre, são leituras que trivializam, são leituras que
transformam as coisas novas em coisas prontas, vejam o que os imbecis dizem hoje sobre Foucault. Nesse
momento deve-se dizer: nem são leituras insustentáveis, são não leituras. Eles nunca leram, não sabem
ler. Assim como existem pessoas que não sabem ouvir música, é um sentido que lhes falta. É irritante
fazer um livro sobre Foucault quando se carece de qualquer leitura. Mas, caso contrário, todas as
verdadeiras leituras são boas.
9
Bem, termino as observações gerais dizendo: tudo o que encontramos, de uma certa maneira, e aqui
também é uma questão de ritmo, tudo o que encontramos no nível do eixo do saber irá como que se
deslocar no nível do outro eixo, o eixo do poder, e assumirá novas ressonâncias. Ou seja, no nível do
eixo do saber, havíamos encontrado o que? Foram encontradas três coisas que diziam respeito às duas
formas do saber. Primeira coisa: há diferença de natureza ou heterogeneidade entre duas formas; segunda,
isso não impede que haja pressuposições recíprocas e abraços mútuos, o visível supõe o enunciável e
este supõe o visível, os dois, corpo a corpo, perpetuamente; terceira, há o primado do enunciado sobre a
visibilidade. Era necessário manter esses três acentos tônicos: heterogeneidade, pressuposição recíproca,
primazia. Primazia de um sobre o outro. Pois bem, esses três temas, esses três acentos, iremos encontrá-
los desta vez no nível das relações poder-saber. Para isso, será necessário que entre o poder e o saber haja
heterogeneidade, diferença de natureza e, de certa maneira, não relação. Também será necessário que
exista pressuposição recíproca: nenhum saber sem poder e nenhum poder sem saber. Ainda será
necessário haver primazia de um sobre o outro, quero dizer, que o poder seja determinante. Se há
heterogeneidade, vocês verão imediatamente o que isso significa: o poder em si mesmo não é conhecido
[n’est pas su], não é objeto de saber.
No primeiro trimestre fiz uma aproximação entre Foucault e Kant, precisamente no nível da
irredutibilidade da heterogeneidade de duas formas, que em Kant não são o visível e o enunciado, mas a
intuição e o entendimento. Aqui poderia também fazer uma conexão com Kant. Pois Kant foi sem dúvida
o primeiro a colocar uma diferença de natureza entre duas funções da razão. Uma heterogeneidade radical
entre duas funções da razão, as chamava de razão prática e razão teórica. Ambas são heterogêneas, mas
a razão prática tem primazia sobre a razão teórica. E a primazia da razão prática é fundamental para Kant.
Entretanto, a heterogeneidade das duas funções da razão (função prática e função teórica) leva a quê?
Que a razão prática não seja conhecida e não se dê a conhecer. A razão prática é determinada pela lei
moral, de acordo com Kant, mas a lei moral não é conhecimento ou objeto de conhecimento. Não há
nada a conhecer no campo da razão prática. Em Foucault é diferente porque tanto o saber quanto o poder
se referem a práticas. Para Foucault, existem apenas práticas. Ainda assim, as duas práticas, a prática do
saber e a prática do poder, são irredutíveis. Portanto, esse poder não pode ser conhecido. No entanto, há
pressuposição recíproca ou, pelo menos, o poder será indiretamente conhecido, será conhecido nas
relações de saber. É o saber que nos dará conhecimento do poder.
Bem, vocês veem que todos os termos que encontramos como relação entre as duas formas do
saber vão se deslocar seguindo o outro eixo. De modo que se eu tivesse que apresentar o pensamento de
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Foucault, por enquanto ele teria dois eixos, com deslocamento, um tipo de problema, de um eixo para
outro, eixo do saber, eixo do poder. O que acontece em seguida? Aparece um terceiro eixo. Foi necessário
que algo resultasse insuficiente para Foucault na distribuição dos dois eixos, que um problema mais ou
menos urgente se tornasse para ele cada vez mais urgente para que acrescentasse esse terceiro eixo e
remanejasse seu pensamento no final. Mas ainda não estamos lá. Eu gostaria que durante todo esse
momento em que permanecemos no problema do poder, vocês sintam se perfilar, ainda que de maneira
muito confusa, a necessidade de um terceiro eixo. Mas, no momento, lutaremos com os dois eixos, ou
seja, esse tipo de excrescência sobre o saber [excroissance sur le savoir]: o eixo do poder, que vem
recortar [recouper] o eixo do saber. Será mais e mais um pensamento em três dimensões, a partir do
momento em que Foucault encontrar três dimensões.
Bem, o que é poder? Gostaria que nos detivéssemos hoje, quase com o que Foucault não fez. Ou
seja, uma exposição dos princípios do poder. Por que ele não fez uma exposição dos princípios? Porque,
é evidente, de certa maneira, todo seu pensamento consiste em dizer: o poder não tem princípio. Ademais,
ele escolheu o ponto de vista da imanência na redação de seus livros. Isso quer dizer: o poder está
imbricado [le pouvoir est pris] nas relações de saber. Portanto, devemos compreendê-lo em sua
imanência ao saber. Mas, como sabemos desde o início, a imanência não impede a diferença de natureza
entre poder e saber. Portanto, vou considerar o outro aspecto, vou me concentrar na diferença de natureza
entre poder e saber. Nessa altura, tenho o direito de tentar extrair princípios de poder a partir dos textos
de Foucault. A única tarefa para mim será simplesmente não esquecer, a todo momento, que tudo isso é
muito bom, mas não impede que o poder exista apenas em relações de imanência com o saber. Vejam,
creio que Foucault privilegie em seus textos as relações de imanência com o saber, mas mantendo uma
diferença de natureza entre poder e saber. Para esclarecer o pensamento de Foucault, e apenas para esse
fim, gostaria de fazer o contrário: enfatizar a diferença de natureza, sem nunca esquecer que há imanência.
Bem, quando eu digo “princípio do poder”, o que é? O que é o poder é uma pergunta legítima?
Quero dizer, o poder é passível de se perguntar o que é, uma vez dito que poder é como o saber, é uma
prática? Em outras palavras, para levar a sério, o poder se pratica. O saber também é praticado, é ver e
falar, e nada preexiste ao ver e falar. O poder também é praticado, simplesmente são duas práticas que
diferem em sua natureza. Não basta dizer que a pergunta “o que é poder?” refere-se a uma prática. A
inspiração da pergunta deve ser ela própria uma prática. E o que isso significa? Significa: o que se passa
hoje?7 Aqui tocamos em algo do método de Foucault. De certa forma, Foucault nunca colocou nada senão
7
No original: “qu’en est-il aujourd’hui?”, que pode também ser traduzido por “o que é hoje?”. Cf. FOUCAULT, M. “Qu’est-
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problemas históricos. No entanto, ele nunca apresentou um problema histórico sem que o centro de seu
pensamento não fosse hoje, aqui e agora. Por que ele admira Kant? Sem dúvida pelo conjunto de sua
filosofia. Mas ele o admira particularmente porque Kant, segundo Foucault, foi sem dúvida um dos
primeiros filósofos a pôr a questão do sujeito nas coordenadas do aqui e agora. O sujeito transcendental,
o sujeito universal em Kant, é inseparável de um sujeito aqui e agora, isto é: o que é hoje, na época de
Kant, o que é o século das Luzes? Foucault opõe Kant a Descartes dizendo: Descartes se limitou a um
eu [moi] universal. O sujeito do cogito é um sujeito qualquer, ao passo que o sujeito kantiano será sempre
um sujeito do eu no século das Luzes.8 Por que o problema histórico de Foucault está fundamentalmente
relacionado à pergunta “o que é hoje”? Precisamente pela noção de prática. É a noção de prática, a prática
é a única continuidade da história até agora, até o presente. O encadeamento de práticas é a única
continuidade histórica. Dadas as rupturas, mudanças nas práticas etc., é o elemento prática que vai desde
os tempos antigos, que vai do passado ao presente.
Isso me permitiria responder a uma pergunta que me interessa muito: em que sentido o que não faz
explicitamente parte de uma obra – era uma pergunta que Foucault tinha colocado muito bem, e também
Klossowski,9 sobre Nietzsche –, de que maneira as cartas de Nietzsche, por exemplo, fazem parte da obra?
Elas fazem ou não parte da obra de Nietzsche? A pergunta que eu faria é: em que sentido as entrevistas
de Foucault fazem ou não parte de sua obra? Se surgisse o problema da publicação de suas entrevistas,
que sentido elas teriam? Parece evidente para mim. As entrevistas sempre desenvolvem o aqui-agora que
corresponde a um livro. O livro tratando de um período histórico. Portanto, existe uma correlação estrita
entre entrevistas e os livros, e é isso que eu gostaria de começar antes mesmo de desenvolver de fato
minha análise: desenvolver a importância dessas duas perguntas: o que aconteceu em tal época? E hoje?
Haverá continuidade, mas uma espécie de continuidade subterrânea, sendo que só a prática pode capturar
ce que les Lumières?”. In: Dits et écrits v. II, p. 1498. Esse texto foi extraído da aula de 5 de janeiro de 1983 do curso O
governo de si e dos outros, onde Foucault examina o tema da atualidade a partir do opúsculo de Kant Resposta à pergunta: o
que é o esclarecimento?.
8
Nos primeiros parágrafos de “Qu’est-ce que les Lumières?” Foucault diferencia o significado do presente para Descartes e
Kant. Ele afirma que, para Descartes, o presente é uma situação histórica na ordem do conhecimento e das ciências que orienta
suas decisões pessoais e de ordem filosófica. Porém, em Descartes não se encontra a questão kantiana, do que é precisamente
esse presente ao qual o filósofo pertence e que adquire sentido para a própria reflexão filosófica.
9 Deleuze refere-se provavelmente ao livro Nietzsche e o círculo vicioso, onde Pierre Klossowski vincula a biografia e o
pensamento filosófico de Nietzsche: a doença do corpo como sintoma e a cultura vivida, a saúde como trégua da luta, os
estados de depressão e o abandono às tonalidades da alma; em meio à efervescência de sua época, a Europa burguesa e cristã
da qual é sintoma e inimigo. Segundo Klossowski, “a euforia experimentada por Nietzsche ao sair de cada uma de suas crises,
de 1877 a 1881, o leva cada vez mais a escrutar as forças que se exprimem através das perturbações de seu organismo” (p.
35). É sabida a importância da noção de diagnóstico em Nietzsche (“de agora em diante, serei meu próprio médico”, diz ele
em carta à mãe), que guarda semelhança com a ideia foucaultiana da filosofia como diagnóstico do presente. Daí a referência
de Deleuze ao opúsculo kantiano.
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essa continuidade – não como continuidade reflexiva. É por isso que Foucault não fala sobre isso em
seus livros. Mas a atualidade de seus livros vem do fato de que o aqui-agora se impõe com toda evidência.
Por isso a coerência de Foucault do ponto de vista de sua vida e de seu trabalho me parece muito clara.
O que está acontecendo?
Consideremos o livro Vigiar e punir. Como vimos, essa obra lida com uma curta duração (do final
do século XVIII ao início do século XIX). Do que trata? Do direito penal e da prisão. Bom. Paralelamente,
nas entrevistas da época, do que Foucault se ocupa? Da prisão naqueles dias. Praticamente, Vigiar e punir
pode ser considerado o livro que diz respeito a uma prática. Qual? Nessa época, por volta dos anos 1970,
Foucault formou um grupo, chamado de “esquerdista”, que eu acho muito importante porque foi a única
formação depois do maio de 68, parece-me, que propôs um funcionamento muito particular – aqui
também é uma questão de prática. Trata-se do Grupo de Informação sobre as Prisões (GIP).10 Digo que é
o único grupo esquerdista que funcionou, talvez eu exagere. De todo modo, ele se espalhou, uma vez que,
no modelo do GIP, formou-se um Grupo de Informação sobre a Psiquiatria, grupos de informação sobre
os imigrantes, e naquele momento houve um grande florescimento.
Entre os que falam hoje do maio de 68, não é bom o que eles fazem, uma espécie de fenômeno
intelectual, esquecendo-se de que era um fenômeno mundial e de prática mundial. E que o maio de 68
foi a expressão na França de algo que aconteceu ou aconteceria na Itália, no Japão, nos Estados Unidos
etc., e que agora não podemos pensar nesse período sem globaliza-lo.
Ora, o que se passa depois de 68? Houve reformação de grupos relativamente centralizados.
Lembro que o grupo Gauche Prolétarienne era muito centralizado. Havia chefes lá (risos), chefes que
queriam sangue. O que Foucault fez naquela época? Falo das práticas, mas não creio que seja um modo
de abrir parênteses. É muito difícil entender, vivê-lo hoje, se você não tiver ao menos um pequeno
pressentimento de que isso sempre permaneceu para nós: um problema prático.
Tenho a sensação de que primeiro houve uma avaliação de Foucault, uma avaliação prática: algo
vai acontecer nas prisões. Bem, é uma avaliação política. Em minha opinião é muito difícil entender
alguma coisa em política sem ser percorrido por essas avaliações: o que vai acontecer, hein? A impressão
de que algo iria acontecer nas prisões... Vocês me dirão que não é difícil, que houve movimentos. Sim,
10
Cf. Manifesto do GIP, assinado por Foucault e outros e distribuído para a imprensa em 8 de fevereiro de 1971. O GIP
decidiu se dissolver em dezembro de 1972. Vigiar e punir foi publicado somente em 1975, mas Foucault já tratara do tema da
prisão em seu curso A sociedade punitiva em 1973. Foucault multiplicará suas intervenções em favor dos presos políticos
(sobretudo do grupo maoísta Gauche Prolétarienne) ao longo de 1971. Cf., por exemplo, “Manifeste du G.I.P.”, “Sur les
prisons”, “Enquête sur les prisons: brisons les barreaux du silence” e “La prison partout”. In: Dits et écrits v. I, pp. 1042, 1043,
1044 e 1061 respectivamente, todos do primeiro semestre de 1971.
13
os movimentos começavam. Mas retomo o mesmo discurso que fiz para a leitura: o difícil é dizer: isso é
importante, não vai abortar. Houve uma ótima avaliação de Foucault dizendo: há algo. Como se no torpor
do pós-68, estranhamente, um fogo fosse reavivado, desta vez nas prisões, precedido pelo grande
movimento de prisões nos Estados Unidos. Foucault trabalhava sobre as prisões, parecia trabalhar
teoricamente sobre a prisão nos séculos XVIII e XIX, ele era muito sensível ao movimento das prisões
nos Estados Unidos, era muito sensível ao caso Jackson, 11 que foi de grande importância, e ele
pressentiu... algo vai acontecer na França.
A ideia de Foucault sobre o GIP consistiu na formação de um grupo não centralizado. Bom. Sob
esse aspecto, é uma descendência do 68, pois o 68 apresenta-se como um movimento não centralizado,
tem em vista ser um movimento não centralizado. Digamos imediatamente: um novo tipo de luta.
Guattari, antes de 68, lançou uma interpretação das formas de luta que surgiram, 12 a ideia de lutas
transversais, em oposição às lutas centralizadas do tipo clássico (isto é, centralizadas em torno de um
sindicato, em torno de um partido – tratava-se obviamente do Partido Comunista e da CGT).13 Parece-
me que maio de 1968 foi a explosão de uma rede transversal onde as lutas deixaram de ser centralizadas.
Então, um novo tipo de luta, veremos como é importante quando voltarmos à teoria. E o GIP foi formado
como? O que é uma luta transversal em oposição às lutas centralizadas? É uma luta em que não há
representantes. Ninguém é representado. Ninguém pode dizer: eu represento estes aqui.
Vejam, se vocês acreditam em filosofia, nunca pensarão que falar de uma crítica da representação
hoje em dia seja uma questão de intelectuais. Não podemos criticar a representação se não formos
sensíveis à prática que a crítica implica. A prática de tais críticas é muito simples, significa “nunca falarei
pelos outros”, “nunca acreditaria no representante de alguém”. Isso era estranhamente novo. Foucault,
eu acho – há pessoas que não têm o direito de criticar a representação, porque quando elas criticam a
representação, é realmente da boca prá fora, pois elas criticam a representação fingindo representar algo
ou alguém. Eu diria que é a crítica acadêmica da representação. Não há crítica senão a prática. Se eu
critico a representação como filósofo, eu também me comprometo com algo: não fazer parte de nenhuma
11
George Lester Jackson foi um militante, ativista e autor de Soledad Prison. Preso aos 18 anos por roubar 70 dólares, passou
por diversos processos prisionais, até ser morto na prisão em agosto de 1971. Foucault prefaciou o livro de Bruce Jackson
Leur prisons. Autobiographies de prisonniers américains [In the Life: Versions of the Criminal Experience, de 1972], que
retrata o arquipélago carcerário estadunidense nos anos 1960 e 1970. Cf. “Préface” [1975]. In: Dits et écrits v. I, p. 1555.
12
Deleuze convidou Guattari para participar da última aula do curso, quando ambos discutem uma série de temas, dentre eles
o maio de 68, a história das lutas (anti)psiquiátricas na França e o caráter das lutas no 68. Cf. Deleuze e Guattari: um diálogo
sobre a subjetivação em Foucault. Online em: editorapoliteia.com.br/blog.
13
A CGT (Confédération Générale du Travail) é uma organização sindical próxima do Partido Comunista Francês. Note que
Foucault tem uma concepção diferente do significado de “transversal”, tanto do ponto de vista organizativo quanto epistêmico.
Cf. FOUCAULT, M. “Genealogia e poder”. In: Microfísica do poder, pp. 264 sq.
14
comissão. É simples assim: nunca representar nada, senão não funcionará. Como se pode dizer “a
representação não funciona, é preciso fazer uma filosofia que não seja uma filosofia da representação” e
depois continuar tranquilamente a representar? [risos] Não é muito sério. Quero dizer, se pomos a questão
da vida e da obra, não é que tenhamos que ser consistentes a todo custo, mas não podemos ter ideias
muito boas se não percebermos que ainda estamos na representação quando dizemos “abaixo a
representação”.
O que Foucault captou? Ele compreendeu algo de crucial estudando as prisões. Ele percebeu que
as pessoas continuavam falando em nome das prisões e que os prisioneiros nunca falavam. Mas é preciso
repor essa colocação. Esses fatos não são antigos, mas as coisas mudaram muito, em poucos anos, porque
agora não é mais verdade, existem os pequenos textos no [jornal] Libération, por exemplo. Os
prisioneiros falam por si mesmos. Bom. Mas vocês sabem, mesmo depois de 68 foi chocante! Na TV,
havia sempre programas sobre as prisões, porque já era um assunto da moda. Estritamente todos falavam:
os advogados de esquerda, os advogados de direita, os visitantes da prisão, eles eram incríveis, muitas
vezes eram senhoras maravilhosas e tudo isso, juízes, pessoas na rua, o porteiro... Qualquer um, exceto
os prisioneiros. E mais: exceto antigos prisioneiros. Havia só uma pessoa que não tinha permissão para
falar sobre a prisão: a pessoa que lá estava.
A crítica à representação significava: os presos não precisavam de representantes para dizer o que
tinham a dizer. Era preciso simplesmente organizar um grupo. Um grupo transversal. Um grupo não
centralizado. Eles começaram com uma hipótese de trabalho: Foucault e outros elaboraram um
questionário – quero dizer o que era uma prática para Foucault. Parece engraçado, mas não é, porque o
questionário, o que fazer com ele? Onde o colocaria? Primeiro, ele faz seu questionário, uma série de
hipóteses, e depois são os prisioneiros que respondem e reescrevem o questionário. Como é construída
uma rede? Não é segredo: teve que entregar o questionário às mulheres e pais que faziam fila para visitar
os prisioneiros. Eles se perguntavam o que as pessoas eram. É óbvio que os guardas entenderam
rapidamente, e assim que tiveram uma cópia do questionário, tudo começou a dar errado. Bem, era uma
prática e Foucault constituía a sua. Ela começou nas filas das prisões, nos desfiles de pessoas que faziam
fila e, muitas vezes, bem, são como todo mundo, não querem história, não entendem como, é estranho o
que lhes perguntam, e então, se lhes for pedido que passem o papel para os próprios prisioneiros ou que
eles mesmos respondam... Então, pouco a pouco, funcionou. Foram necessárias equipes... não foi
centralizado, não foi piramidal, havia um grupo, outro grupo, relação transversal, as pessoas que faziam
fila nas prisões. Bom e depois os grupos se espalharam, houve até um terceiro grupo, juntaram-se ex
15
detentos. Foi uma grande contribuição, com tensões, relações de poder, não foi fácil. Quando os ex
prisioneiros falavam, havia tensão entre eles, havia relações de poder – que já davam razão a Foucault!
–, houve relações de poder em todos os lugares. Havia um prisioneiro entrando, ele foi o primeiro a
chegar. Bom. Ele tinha prestígio e Foucault teve seu prisioneiro [risos] ao mesmo tempo em que foi o
grande desfile de tudo isso... o departamento de filosofia tinha seu trabalhador [risos] e havia o prisioneiro
de Foucault. Quando o segundo prisioneiro chegou, ficou com ciúmes do primeiro! E Foucault sabia
muito bem disso, organizou tudo. Mas foi muito cansativo. Nova relação transversal com um novo grupo,
ex detentos.
Em seguida era preciso procurar os advogados, os magistrados. Então, no sindicato da magistratura
a rede deslocava-se, com novas relações de força, relações de poder, tudo isso. Isso transbordou, houve
movimentos nos países vizinhos; e depois transbordou nas províncias. E não foi necessário restaurar uma
organização piramidal. Como fazer? como fazer, por exemplo, que o GIP em Lyon fosse absolutamente
senhor de suas iniciativas, da coleta de dinheiro, dos folhetos, tudo isso? E especialmente que fossem os
prisioneiros a falar. Não é fácil buscar prisioneiros nas prisões para que falem, não é nada fácil.
Houve uma inspiração de Foucault, que então fez os grupos de perguntas sobre asilos, asilos
psiquiátricos, nos hospitais psiquiátricos. Tudo isso se desenvolveu. Eu tenho a hipótese de que uma das
razões do silêncio de Foucault, do tipo de depressão, do declínio da esperança, mais tarde, muito mais
tarde, foi o que podemos chamar de o fracasso desse movimento, o fato de que, por volta de 1971-1972,
muitas pessoas sentiram que, como a pressão fora grande, algo mudaria no sistema penitenciário. E
depois que isso fez parte do pós-68, quando a tampa se fechou, foi, foi... houve mudanças, não podemos
dizer que elas não existiram. Acho que houve muito mais do que Foucault pensava, mas Foucault, que
teria gostado que houvesse mais, ficou bastante abatido com o que considerou (errado, em minha opinião)
como um fracasso. Mas num ponto, vou acrescentar – vocês vão ver para onde estou indo – tudo isso em
um ponto, gerou muito interesse em fazer uma conexão com os movimentos americanos. Se essa rede de
GIP cresce, leva uma espécie de transversal, sempre uma espécie de relação de transversalidade, com a
América. O que aconteceu? Aqui encontro metáforas espontâneas: estava quase sozinho, eis que surge
Jean Genet. Genet, que era muito próximo dos Panteras Negras, que não era um intelectual refletindo
sobre as prisões, mas uma experiência notória e sólida de prisioneiro, desempenha muito bem seu papel.
Genet não atua no GIP como um autor ou intelectual de prestígio. Sem dúvida houve prestígio,
obviamente, mas é ativo e não como intelectual. É como um intermediário com os Panteras Negras. Eu
quero chegar a isso: existem três problemas práticos do aqui e agora. E sem esse longo parêntese no GIP,
16
não conseguiria identifica-los. Primeiro, que novo tipo de luta, se houver, que novo tipo de resistência ao
poder. Vocês me dirão: mas você fala sobre resistência ao poder antes de falar sobre poder. Sim, isso não
importa. Existem focos [foyers] de poder, lugares de resistência ao poder, e viveiros de resistência ao
poder são viveiros de poder. É óbvio. Bom. Quando digo resistência ao poder, digo poder. Então: um
novo tipo de vida, hoje, aqui e agora, qualquer que seja o tempo. Segunda pergunta: Existe um papel
particular hoje, aqui e agora, para o intelectual? Outra pergunta: aqui e agora, o que significa ser um
sujeito? Por que digo que são essas as três perguntas? Deixe-me ir devagar. Se vocês olharem atentamente
para essas três perguntas, eu diria: uma obviamente diz respeito ao poder (qual novo tipo de luta, hoje?);
a segunda obviamente diz respeito ao saber (qual é o papel do intelectual?). E a terceira pergunta?
Tudo isso não está na cabeça de Foucault, assim como o maio de 68 não está na mente dos
intelectuais. O que é então? É preciso voltar muito no tempo, isso faz parte de nossa história. O que faz
parte da nossa história, penso – faço uma história muito breve, mas... –, tudo o que começa a se mover a
partir e em torno dos anos 1950. Em função de quê? Da experiência e do rompimento ocorridos na
Iugoslávia. Esta é a grande data do primeiro questionamento do centralismo, parece-me, nos países
comunistas. O que está presente neste momento é a experiência da autogestão iugoslava. Com um
teórico-praticante: Djilas, que naquele momento é companheiro de Tito, e que Tito poria na prisão mais
tarde. Foi a ruptura da Iugoslávia o grande detonador. Desde a ruptura Iugoslava a questão que sem
dúvida era subjacente explodiu na forma de uma nova política não centralizada, e da possibilidade de se
instaurar lutas de um novo tipo num país capitalista. O tema da transversalidade começa a surgir em 1950.
Se o ponto de partida – finalmente, a grande partida – foi a experiência iugoslava, por quais
caminhos ela se espalhou? Não foi por um movimento de cima para baixo, ela se espalhou por redes, por
linhas quebradas. Passou pela Itália, e a reinterpretação do marxismo pelos italianos, especialmente por
um italiano – veremos, porque está bastante ligado a Foucault – que eu acho muito importante chamado
Mario Tronti, que era membro do Partido Comunista e tentou uma reinterpretação do marxismo de acordo
com as condições italianas. Quais eram as condições italianas? As condições econômicas italianas eram
muito diferentes das da Iugoslávia, mas a existência de um tipo de mercado duplo na economia italiana,
um setor negro, trabalho temporário, trabalho negro etc. que havia tomado na Itália, muito cedo, uma
espécie de forma institucional, era fundamental para a formação do tema da autonomia. 14 Esse tema
14
O tema da autonomia italiana era muito presente para Guattari por sua relação próxima com o pensamento italiano,
notadamente Antonio Negri. Ele e Deleuze escrevem: “Um movimento de pesquisa marxista se formou a partir de [Mario]
Tronti (Operai e capitale), depois com a autonomia italiana e Antonio Negri, para analisar as novas formas de trabalho e de
luta contra o trabalho. Tratava-se de mostrar ao mesmo tempo: 1º) que esse não é um fenômeno acidental ou ‘marginal’ ao
capitalismo, mas essencial à composição do capital (crescimento proporcional do capital constante); 2º) mas também que
17
partiu de Tronti.15 Também foi atravessado pela ideia de uma nova forma de luta não centralizada. Ora,
desde o início, esse tema das lutas transversais, não centralizadas, inspiradas na autogestão da Iugoslávia
e em seguida na autonomia italiana, foi misturado a uma pergunta mais confusa e mais difícil, que era
algo como: rumo a uma nova subjetividade.
Somos sujeitos da mesma maneira que há 40 anos, 50 anos? O que significa ser sujeito? Podemos
tentar nos libertar da centralização sem que sejamos sujeitos de uma nova forma, sem que haja um novo
estilo de subjetividade? E Tronti foi muito longe ao reintroduzir uma nova subjetividade no marxismo.
Para ele o marxismo foi a promoção de uma nova subjetividade. Com Tronti, é claro, havia um certo
vínculo com a Escola de Frankfurt. Tudo isso é muito complexo. Mas, ao mesmo tempo que na Itália, e
um influenciando o outro, houve o equivalente na França com Sartre. Em torno de Sartre havia o tema
“em direção a uma nova classe trabalhadora”. Em particular com um próximo de Sartre, cujo um dos
pseudônimos era Gorz.16 Com Gorz surgia o tema “para uma nova classe trabalhadora”, um duplo sentido
de novas lutas, novas formas de luta e resistência ao poder e uma nova subjetividade.
Na própria França, outros grupos antes de 68 desenvolviam essas questões. Essa tripla questão:
novas formas de luta, novo papel do intelectual, nova subjetividade. Parece-me os três grandes polos do
que gira em torno de 68, do que eclodirá em 68 – e novamente essas são questões teóricas somente se
você não perceber que elas não esperam respostas teóricas, mas se fazem praticamente. Elas se
desenhavam praticamente na história. Na França, também serão as três perguntas. Havia Sartre, mas
também havia [a revista] Socialismo e Barbárie, que girava bastante em torno dessas três perguntas;
havia também o situacionismo e finalmente os dissidentes do PCF, a saber, A Via Comunista. Havia Félix
Guattari, que lançou seu tema da transversalidade e que já lançava seu tema de uma micropolítica do
desejo. Obviamente haverá um eco em Foucault quando ele lançar seu tema da microfísica do poder.17
esse fenômeno engendra um novo tipo de lutas, proletárias, populares, étnicas, mundiais e em todos os domínios. Cf.
Antonio Negri, passim, e notadamente Marx além de Marx; L'autre mouvement ouvrier en Allemagne; e os trabalhos atuais
na França de Yann Moulier, Alain e Danièle Guillerm, Benjamin Coriat, etc.”. Mil platôs v. 5. São Paulo: Editora 34, 1997,
p. 152, nota.
15
“É uma das teses essenciais de Tronti, que determinou as novas concepções do ‘trabalhador-massa’ e da relação com o
trabalho: ‘Para lutar contra o capital, a classe trabalhadora deve lutar contra ela mesma enquanto capital; é o estágio
máximo da contradição, não para os trabalhadores, mas para os capitalistas. (...) O plano do capital começa a andar em
sentido oposto, não mais como desenvolvimento social, mas como processo revolucionário”. Cf. Ouvriers et capital, p. 322;
e o que Negri chamou de a crise do Estado-plano [na obra homônima]”. Ibid., p. 153.
16
André Gorz (1923-2007), vinculado ao existencialismo sartriano, rompeu com ele em 1968 e passou a se interessar por
ecologia política. Foi autor de livros sobre a questão operária no capitalismo. É autor do belíssimo Lettre à D. Histoire d'un
amour.
17
Cf., por exemplo, FOUCAULT, M. “Verdade e poder”. In: Microfísica do poder, p. 35. É uma entrevista concedida por
Foucault em junho de 1976.
18
Vejam como precisamente as lutas transversais não centralizadas secretam um tipo de elemento que deve
ser analisado. Microfísico, uma micropolítica.
Pois bem, é aqui que eu queria chegar: com as devidas ressalvas, as três perguntas correspondem
às três famosas perguntas kantianas: o que posso saber? – Crítica da razão pura –, o que devo fazer? –
Crítica da razão prática –, O que posso esperar? É preciso admirar a perspicácia de Kant quando ele
pensou que essas eram as três questões fundamentais, pois muitos anos depois tornamos a elas. O que
devo fazer, ou seja, quais são os novos tipos de lutas hoje, quais são os novos focos de resistência ao
poder? O que posso conhecer ou saber, isto é, qual é o papel do intelectual? O que posso esperar, ou seja,
há uma nova subjetividade? Talvez vocês sintam que meu terceiro eixo está plantado aqui, ele está
nascendo neste terreno.
Então, o que Foucault fará? Não é de maneira alguma, eu acredito, diminuir a profundidade de sua
originalidade dizer que Foucault é o último a retomar todas essas perguntas para levá-las a um ponto em
que jamais haviam sido levadas. Mas essas questões têm sua origem em 1950 e cruzam o marxismo
italiano, iugoslavo, os círculos sartreanos e os do maio de 68. Foucault as ecoará após 68 e talvez na
primeira pergunta (novos tipos de lutas) ele não trará – ele expressará esse tema com muita força –
novidade muito radical. Será muito mais pelo fato de tê-la feito prática, ou seja, ter constituído o GIP sob
a forma de um novo tipo de luta. Mas as lutas transversais das quais Foucault, no final de sua vida,
recapitulará os caracteres principais, acredito que não seja o mais novo nele. Por outro lado, para as duas
outras questões (papel do intelectual e renovação), propôs o seguinte esquema que me parece de grande
valor histórico: terminou o tempo em que o intelectual era o guardião dos valores.18 Na verdade, não tinha
terminado porque a velha figura do guardião intelectual dos valores na forma do guardião intelectual dos
direitos humanos iria se despertar, ressuscitar. Mas Foucault pôde pensar em certo momento que essa
figura do intelectual desaparecera. E ele opôs a essa antiga figura do “intelectual universal” o que ele
chamou de “intelectual específico”. Ou que podemos chamar de intelectual singular se tivermos em
mente o tema da singularidade em Foucault. O intelectual não agia mais em nome da própria
universalidade, mas em nome de sua especificidade ou singularidade. O que isso significa?
18
Cf. ibid., pp. 45 sq., onde Foucault afirma que, assim como o proletariado, pela necessidade de sua posição histórica, “era
portador do universal”, havia a figura do intelectual “universal”, portador teorético da universalidade proletária e da qual
decorria o caráter da luta da classe proletária, igualmente universal. Porém, diz Foucault, há anos intelectuais “específicos”
estabeleceram “um novo modo de ligação entre teoria e prática”, não mais focada no “universal”, “exemplar” e “justo para
todos”, mas em campos específicos vinculados às suas condições de vida e trabalho. Assim, Foucault caracteriza as lutas de
sua atualidade como “transversais”: não se dão em nome de toda uma classe, mas de grupos específicos (tais como gênero,
raça), de questões específicas e num marco geográfico e temporal limitado.
19
Se vocês perguntassem quando o intelectual começa a ser portador de “universal”, seria preciso
fazer muito muito bem a história, e eu não sei. Pode-se já dizer que o intelectual do Renascimento é
portador de um tipo de universalidade? Não sei, porque a universalidade é em primeiro lugar o
catolicismo. Então o intelectual católico, o clérigo católico já é uma figura do intelectual do universal?
Talvez, eu não sei, é muito complicado, mas enfim... No século XVIII, se você considerar as intervenções
altissonantes de Voltaire na política, há algo como um intelectual portador de universalidade. Em nome
de quê ele se intromete em assuntos jurídicos? Das Luzes, da justiça. Se eu der um grande salto na história,
pulo para Zola, em sua famosa intervenção no caso Dreyfus, apresenta-se explicitamente como guardião
dos valores da universalidade: nenhuma razão nacional pode justificar um julgamento falso, o tráfico de
provas. Mas seria preciso seguir adiante, e eu considerar ainda aqueles que tiveram um grande papel
intelectual, André Gide, quando denuncia as condições de um júri em um famoso julgamento da época,
as condições da justiça, o trabalho colonial: são intervenções de grande intelectual, têm um grande
impacto e que nunca serão perdoadas: sua homossexualidade, ele teria sido perdoado mil vezes na época,
mas a história do Congo era mais difícil de lhe perdoar. E mais recentemente, Sartre. Não é errado nem
hostil afirmar que em Sartre havia algo relativamente próximo a Voltaire ou Zola. Que a coragem desse
homem passou... talvez em Sartre houvesse ambos: o nascimento de um novo papel do intelectual e a
manutenção e o acabamento da antiga figura do intelectual guardião dos valores do universal. Mas há
um momento da análise de Foucault em que ele se situa no nível da bomba atômica, quando os físicos
intervêm contra a bomba atômica. Seu ato foi muito curioso, não era em nome dos valores do universal,
era em nome de sua situação específica, de físicos: “nós, que sabemos do que estamos falando, afirmamos
que...”. O intelectual não reivindicou valores (justiça etc.), mas sua situação específica: “nós que fizemos
a bomba, sabemos disso e eis o que estão lhes escondendo”. Da sua situação singular, do fundo do
laboratório onde estavam... era uma nova figura do intelectual que Foucault capta muito bem. Quando
Genet ia falar sobre prisões, não era em nome da lei e dos valores eternos, mas em nome de sua
experiência singular, que podia estar ligada à experiência singular dos Panteras Negras na América, dos
franceses na prisão e assim por diante. Era em nome da singularidade, de sua própria singularidade
intelectual, que o intelectual podia falar. De certa forma, não era mais em nome de direitos, mesmo se
eram os direitos do homem, eram em nome da vida e de uma vida singular.
Então, eu realmente acredito que em Foucault as três perguntas estão reunidas. Pela última vez
agora, não pela última vez para sempre. Mas o momento atual é muito ruim, de modo que os problemas
se desuniram novamente em uma espécie de noite da não questão. Mas elas se reuniram pela última vez
20
da maneira mais forte em Foucault, e novamente não se tratava de reflexões abstratas. No horizonte da
questão “novos tipos de lutas” está a experiência do GIP. No horizonte de “existe alguma chance de uma
nova subjetividade”, certamente há a atração que sentia pelas comunidades americanas, o interesse por
formas tanto solitárias quanto comunitárias nas quais ficou muito claro que, para ele, de fato, o problema
da formação de uma nova subjetividade, concretamente, era uma maneira de se despir da identificação.
As formas de evitar a identificação eram tanto formas comunitárias quanto subjetividades de grupo. Os
grupos americanos hoje elaboram... Vocês sabem, as coisas são elaboradas na mediocridade, na nulidade
tanto quanto na grandeza, é, como disse aquele outro, ainda é uma porcaria [risos]... Nas comunidades
americanas de hoje, existe uma nova forma de subjetividade? Será muito esperto aquele que responder...
aqui também não são questões teóricas, é preciso ver.
Portanto, pode ser que, em sua própria vida, Foucault tenha passado de uma questão à outra, que
tenha descoberto muito tardiamente as questões práticas: as novas subjetividades. Ele tinha que entender
à sua maneira, e acho que ele entendeu mais profundamente a necessidade de uma nova situação dos
intelectuais. Daí as relações muito ambíguas entre Foucault e Sartre. Quero dizer, eram relações muito
boas, Foucault certamente tinha grande admiração por Sartre, mas nenhuma afinidade com o pensamento
de Sartre; ele tinha uma afinidade muito grande, veremos mais tarde, acho, com Heidegger, mas não com
Sartre; isso não o impede de nutrir respeito muito grande por Sartre, nem que entre eles tudo andasse
bem. Mas essa ambiguidade vinha de Foucault considerar Sartre a última figura do intelectual, e de que
Foucault pessoalmente tinha que viver sob outra imagem – não melhor, mas outra coisa – na medida em
que se considerava um intelectual, que aceitava ser considerado um intelectual.
PERGUNTA:[inaudível]
DELEUZE: Suponho que Foucault não queira dizer “em função de si” como indivíduo, a si mesmo como
pessoa. Não. Posso considerar que encarno singularidades, mas apenas as encarno. Então eu personifico
um pequeno número de singularidades, somos todos assim, hein? O que significa dizer um sujeito? Sem
dúvida, um sujeito é uma encarnação de singularidades. É a partir deste ponto que eu gostaria que vocês
intuíssem a presença do terceiro eixo, o eixo da subjetivação.
Então, finalmente estamos prontos. Volto a dizer que a única continuidade histórica dos tempos
passados para agora, qual é? É a prática. Em que sentido? Prática de luta, prática de saber, prática de
subjetividade. Isso estabelece a correlação entre as formações históricas e o aqui e agora. Pois, finalmente,
quando se faz a pergunta do aqui-agora, pode-se dizer: mas a história não foi perpetuamente feita por
lutas transversais? A história não era perpetuamente um tecido, uma rede de lutas transversais, antes que
21
essas lutas fossem centralizadas? O centralismo, a cada vez, não veio para recobrir sob sua pirâmide e
sufocar tudo o que tinha sido rico e o que havia sido criado em transversalidade, numa forma transversal?
Não quero convencê-los, apenas digo que, assim... não tenho simpatia pelo movimento surrealista, nem
pelo surrealismo porque vejo uma suja organização centralizada, com tribunal, excomunhão etc. O que
houve antes? Vemos a sucessão muito bem? Houve o Dada, houve o Dadaísmo, e o Dadaísmo é uma
rede. O dadaísmo é uma rede transversal que inclui todos os países, da Europa à América... O Dadaísmo
percorrerá o mundo todo, precisamente porque não é centralizado. Mas o que André Breton faz? Quem
ama André Breton que se corrija, hein? O que Breton faz? Recoloca a ordem, põe as coisas em ordem e
faz um movimento nacional, uma coisa bem francesa. O surrealismo cheira a francês. Ele cria seus
tribunais e lança suas excomunhões. Além disso, colocará todos em trabalho forçado para conhecer as
páginas da escrita automática e os joguinhos cretinos... e tudo mais. Bom. Ele coloca ordem. Ele faz disso
um centralismo francês. O Dadá não. Quero dizer, se houver uma política na arte ou na literatura, vocês
podem pegar este exemplo, porque foi realmente uma luta política. O Dadá se deixou comer, devorar
completamente, o Dadá não foi mais possível por causa da reordenação operada pelo surrealismo.
Bem, se é assim, podemos dizer que afinal as lutas transversais não datam de 68. Então damos um
grande salto na história. Ademais, trata-se de algo que Foucault pressentiu muito fortemente: na época
da Reforma, mas antes de Lutero fazer seu surrealismo, ou seja, sua centralização, antes que fizesse sua
reforma apoiado pelos senhores, houve todo tipo de lutas transversais envolvendo citadinos, camponeses
e assim por diante. O período da Reforma foi um grande momento de lutas transversais. 19 Então
descobrimos que talvez as três questões – os novos tipos de lutas, a situação do intelectual, os novos
modos da subjetividade – ocorreram sem cessar ao longo da história, e esta é a verdadeira continuidade
da história: somente a prática é a continuidade da história.
Podemos então dizer que tudo isso nos fornece as regras de precaução necessárias para pôr a
questão: quais são os princípios do poder em geral? Pois não mais corremos o risco de cair na resposta
baseada na centralização. O que procurei fazer... como se diz, qual a palavra para afastar o diabo?
LUCIEN GOUTY: exorcizar!
19
Foucault trata as lutas na época da Reforma como “revoltas de conduta” no contexto mais amplo do pastorado cristão (cf.
FOUCAULT, M. Segurança, território, população, aula de 1º de março de 1978) e dentro da chave analítica do poder que
chama de “governo”, desenvolvida pela primeira vez neste curso, na aula de 1º de fevereiro. O curso foi publicado
integralmente apenas em 2008, mas o texto da aula de 1º de fevereiro já fora publicado na coletânea italiana Microfisica del
potere [1977, trad. bras.: Microfísica do poder] com o título “La governamentalità”.
22
DELEUZE: exorcizar! Tentei exorcizar a resposta central para a pergunta “o que é poder?”. A única
resposta que pode convir é uma resposta transversal, que esmigalha o poder numa multiplicidade de focos
[foyers]. E qual será?
[interrupção na gravação. Provavelmente houve pergunta de um aluno]
... em Pierre Rivière que matou sua família... Como ele distribuiu o que concerne ao caderno –
imagem escrita ou sonora – e o próprio crime – imagem visual? Se haveria uma relação entre o enunciado
e a visibilidade, e saber se é possível encontrar uma solução original, sabendo-se que as soluções muito
originais foram encontradas no cinema para explicar as relações entre o visível e o enunciado. Sobretudo
porque, no caso do assassinato cometido por Pierre Rivière, assassinatos de Pierre Rivière... o caderno
em que ele narra toda a sua história tem um papel muito móvel, às vezes concebido como posterior ao
crime, às vezes como anterior etc. Há todos esses tipos de pergunta. Portanto, para o problema das
relações ver/falar, interessa-me muito rever o filme [de Allio], como Allio tratou cinematograficamente
as relações entre ver e saber? Mas para assistir ao filme é preciso que vocês não sejam muitos, senão não
haverá lugar [na sala].
ESTUDANTE: como assim?
DELEUZE: é assim, então vocês poderão ser numerosos. Bem, continuemos, é como se estivéssemos
voltando à questão: os princípios, o que é ... O que é poder? Bem, há princípios, obviamente serão
princípios de prática. Mas se existem princípios, o princípio que Foucault lembra o tempo todo, o que é?
Bem, estranhamente, nos textos de Foucault, não há muito estudo ao nível dos princípios, eu lhes dizia.
Existem algumas páginas... duas ou três páginas que vão muito rapidamente no início de Vigiar e Punir
páginas 30-33 e em A vontade de saber, páginas 108-112...20 Bem, vamos fazer o oposto, vamos nos
afastar do centro, mas apenas com a ideia de que sirva para sermos mais claros, e vamos dedicar mais
tempo a esta questão dos princípios sob os quais podemos pensar o poder.
Mas o maior desses princípios em Foucault, parece-me – ele lembrará o tempo todo em suas
análises concretas –, é: não devemos partir dos grandes conjuntos. O que é isso, grandes conjuntos? Bem,
no mundo moderno, são, por exemplo, as grandes instituições. Para avaliar o poder, não devemos tomar
20
FOUCAULT, M. História da sexualidade v. I: a vontade de saber. Trata-se das sessões IV.1 e IV.2. O curso de 1973, La
société punitive [2013] (trad. bras.: A sociedade punitiva), é rico em considerações de método. Cf. aulas de 10 de janeiro de
1973 e 28 de março de 1973. Nessa última Foucault afirma: “não creio que o poder possa ser descrito de um modo adequado
como algo que seria localizado no interior dos aparelhos de Estado. [...] Parece-me antes que o aparelho de Estado é uma
forma concentrada, ou ainda uma estrutura de apoio, de um sistema de poder que vai muito além e mais profundamente. [...]
Um sistema de poder que percorre a totalidade do corpo social. Ele não pode funcionar senão engrenado, ligado a poderes
distribuídos no interior das famílias (autoridade paterna), comunidades religiosas, grupos profissionais etc. E é porque
existiam essas microinstâncias de poder na sociedade que algo como esse novo aparelho de Estado pode efetivamente
funcionar”.
23
as instituições grandes e prontas do tipo: o Estado, a lei, as classes. Finalmente, Foucault é o único que
criou uma teoria esquerdista [gauchiste] do poder, eu acredito. Ele não foi o único a propor, mas foi o
único a realiza-la. Por que não partir dos grandes conjuntos? Sem dúvida, porque os grandes conjuntos
já se dão todos feitos. O que é preciso mostrar são a gênese e o exercício. A lei, o Estado, as classes já
são entidades, por assim dizer, grandes demais. Isso explica imediatamente seu recurso à microfísica já
desde o início de Vigiar e punir. Uma vez disse que a microfísica consistia em dizer, no campo da ciência
física, que, para além dos grandes conjuntos – que são estatísticos, se eu fizer um resumo muito
rudimentar da microfísica –, para além dos grandes conjuntos estatísticos era necessário alcançar e
constituir uma ciência das moléculas corpusculares.
O que são, então, corpúsculos? Devemos compreender o poder no nível das moléculas e
corpúsculos e não no nível das grandes instituições. É isso que “microfísica do poder” significa acima de
tudo, algo muito simples na aparência, mas o que é esse poder molecular? O Estado, as classes, a lei,
esses são poderes que chamaríamos de molares. Não e não! Para conceber o poder, precisamos ir às
moléculas. É uma metáfora. Eu leio A vontade de saber, página 120: “A análise em termos de poder não
deve postular como dados iniciais a soberania do Estado, a forma da lei ou a unidade global de uma
dominação”. Em outras palavras, a teoria do poder deve ser local, não global, deve ser molecular, não
estatística. “Estas (a soberania do Estado, a forma da lei ou a unidade global de um domínio) são apenas
formas terminais”. Não é que não haja Estado, lei, mas porque são expressões estatísticas de uma agitação
de outra natureza. O poder é agitação molecular antes de ser organização estatística. Portanto, mais uma
vez, justifico apenas a expressão “microfísica do poder”. Mas se a palavra microfísica deve ser levada a
sério, é porque nela encontraremos a grande unidade microfísica, a saber, onda, corpúsculo. O poder não
é uma questão de grandes conjuntos, é uma questão de ondas e corpúsculos. Existem ondas políticas e
corpúsculos. Portanto, ele deve nos lembrar de algo ou alguém de quem Foucault, no entanto, nunca fala.
Hoje conto uma história, uma série de histórias que nos ajudarão.
No final do século XIX e início do século XX, dois sociólogos travam uma guerra incessante.
Diabo! É isso, literalmente. É preciso acreditar que havia não apenas a questão de saber, mas a questão
de poder. Um será esmagado pelo outro, mas, como sempre, aquele que foi esmagado é o melhor. Trata-
se de Durkheim, o grande Durkheim e de Gabriel Tarde. Gabriel Tarde é o fundador da microssociologia,
que desaparecerá da França e irá para a América, de onde voltará para a França, sem que se saiba que a
América estava apenas nos devolvendo o que nos levou. Ó dor! Bem, o que estava acontecendo entre
Durkheim e Tarde? Quando digo que Durkheim esmagou Tarde, foi uma guerra real e foi uma conquista
24
que fez Durkheim vencer, conquistando a educação primária, a moral secular e a universidade. Os
decanos eram durkheimianos. Quero dizer, estatisticamente, o número de decanos de faculdades que
eram durkheimianos... eles eram grandes funcionários do Estado. Tarde não era acadêmico de formação,
era um juiz de paz. Felizmente ele foi acolhido pelo Collège de France – havia uma oposição muito forte
entre a Sorbonne e o Collège de France na época –, ministrava seus cursos, que deviam ser maravilhosos,
mas... bem, sua influência... seus discípulos não durkheimianos foram massacrados, a ponto de se
retirarem para o direito e, muito estranhamente – hoje estou cheio de anedotas –, os discípulos de Tarde
foram muito importantes na formação de movimentos europeus e também em disciplinas jurídicas. Por
exemplo, um grande jurista chamado Aurioux, não o Aurioux jovem, mas seu pai – que tinha muita
importância na época dos acordos de Matignon, que teve influência política – era um discípulo direto de
Tarde. Tarde agiu em duas direções, ao lado dos acordos de Matignon e ao lado da Europa. Muito estranho.
Ele era federalista, anunciou a Europa federal. Isso não importa!
O que Durkheim estava fazendo? Se houve uma sociologia de grandes conjuntos, é isso. E como
Durkheim fundou a sociologia como ciência? Ele dizia: é muito simples, existem dois tipos de
representações. Há a representação individual, que diz respeito à psicologia, que não vale nada, aliás,
uh... e há as representações coletivas. Ambas são de naturezas diferentes. A sociologia é a ciência das
representações coletivas. Eu simplifico muito, mas a noção de representação coletiva é fundamental em...
Posso dizer que ela é tipicamente sociologia molar. É a sociologia do grande conjunto. E foi maravilhoso,
é muito bonita a sociologia de Durkheim, quero dizer, para quem gosta dela.
Tarde, o que ele dizia? Que sim, o que Durkheim dizia é muito interessante, mas as representações
coletivas, esses conjuntos grandes não nascem todos prontos. De onde vêm? Então Durkheim ficava
colérico, a pergunta “de onde vêm?” não devia ser feita e talvez ele estivesse certo. Mas Tarde voltava à
carga dizendo: “não, não, tudo o que é feito socialmente, não pressupõe os grandes conjuntos. Sob os
grandes conjuntos há correntes de imitação e há momentos de invenção. E acrescentava: veja, o que me
interessa é a maneira como um funcionário do ministério... faz sua rubrica. Há um momento, por exemplo,
há uma época em que muda o tipo de rubrica de um funcionário do ministério. Esta coisinha é uma
pequena invenção social. A sociedade é formada por correntes de imitação e movimentos de invenção,
há sempre pequenas imitações e pequenas invenções”. Vocês veem que eu nem faço teoria, só digo o que
interessa a Tarde. Bem, e o que é tudo isso?
Sobre isso recai o julgamento inexorável de Durkheim e dos durkheimianos: “morte a Tarde! Ele
quer trazer a sociologia de volta à psicologia”. De fato, ele quer explicar representações coletivas, isto é,
25
fenômenos sociais, por imitações e invenções. Ou seja: ele quer explicar o social pelo indivíduo; um
indivíduo imita outro, um indivíduo inventa. Vocês veem? Tarde nunca se destacou na França. No entanto,
ele dizia algo que não tinha absolutamente nada a ver com o que Durkheim o fazia dizer, porque em
Tarde a imitação social não vai de um indivíduo para outro, e a invenção social não depende de um
indivíduo. Então o que ele chama de imitação e invenção? É aqui que fica muito bonito. Então, o que ele
quis dizer? Que a imitação é uma onda ou uma corrente de propagação. É uma corrente de propagação.
Bem, aceitemos, podemos entender vagamente, vamos ver o que acontece. É uma onda de
propagação. O que é a invenção? Ela é um encontro entre duas correntes imitativas diferentes. Bom.
Invenção, está sempre na encruzilhada de duas ordens. Portanto, a imitação é uma onda de propagação
qualquer; a invenção é o ponto de encontro entre duas correntes, duas ondas de propagação. Então, é
claro, a questão... isso ainda não é nada. A questão que se torna séria é: tudo bem, mas entre o que e o
que se faz a imitação? De onde parte a corrente de propagação, para onde vai? Nós esperamos a resposta,
mas Durkheim lhe diz: “bem, veja, isso vai de um indivíduo para outro, então você faz psicologia. Você
pode dizer: a imitação é uma corrente de propagação, essa corrente de propagação só pode ir de um
indivíduo para outro, pois você rejeita as representações coletivas”. Porém, Tarde dizia que uma corrente
de imitação ou de propagação não vai de um indivíduo para outro. Vai de um estado de crença para um
estado de crença ou um estado de desejo para um estado de desejo. O que é propagado é crença ou desejo.
Vocês veem onde quero chegar? Não se trata de fazer uma sociologia da representação, e sim
fazer uma sociologia do que há sob as representações e o que elas pressupõem. O que a representação
pressupõe é crença e desejo. Uma representação não se propaga, é por isso que é necessário para
Durkheim que ela já esteja toda pronta. Mas crenças e desejos são inseparáveis das ondas de propagação,
e fazer a verdadeira sociologia, isto é, a microssociologia, é estudar as ondas de propagação de crenças
ou desejos que percorrem um campo social. Isso torna-se uma grande ideia, que não tem nada a ver com
psicologia, tem muito a ver com microssociologia. Crenças e desejos são corpúsculos sociais. Vejam a
força da crítica contra Durkheim: ele permanece nas representações, ele não vê o que está sob a
representação... A representação é um grande conjunto, é uma instância molar. Sob as representações,
existem os corpúsculos de crença e desejo, e os corpúsculos de crença e desejo são inseparáveis das ondas
de propagação, e a onda de propagação de crença e desejo é a imitação. Então é secundariamente que se
pode dizer que o crente imita alguém. Trata-se da conversão. Alguém se converte ao Cristianismo nos
primeiros momentos da Igreja, isso significa que o cristianismo como crença, ou seja, como molécula,
como partícula social, se espalha ao longo de uma onda de propagação. Essa é a imitação. A invenção
26
será a formação de um novo desejo no ponto de encontro de duas correntes de propagação de crença ou
de desejo, ou a formação de uma nova crença.
Detenho-me aqui. Eu sonho em fazer um curso sobre Tarde... É muito bonito, muito bonito, Tarde.
É a verdadeira microssociologia, ou seja, os americanos, eles nunca chegaram a esse ponto da não
psicologia. Sim, só Tarde conseguiu manter uma microssociologia, especialmente seu grande tema: as
representações nunca são quantificáveis, ao passo que existe uma quantificação social de crenças e
desejos. Ele faz uma grande teoria da quantificação social que envolve toda uma lógica, refaz tudo a
partir de sua microssociologia porque reprovará a lógica por ser uma lógica de representação, em vez de
ser uma lógica de crença e desejo. Mas agora, se a lógica se tornar uma lógica de crença e desejo, devemos
introduzir novos quantificadores na lógica, e Tarde esboça uma surpreendente lógica de crença e desejo.
Então, isso é para dizer a importância... Não quero de modo algum dizer que houve influência,
que em Foucault21 existe frequentemente um verdadeiro tom “tardeano”. Eu diria precisamente que a
imitação e invenção em Tarde correspondem exatamente – vocês entenderão mais adiante o que quero
dizer – ao que Foucault chama de relações de força, porque, digo imediatamente para evitar um mal-
entendido, para Foucault – ele é formal a esse respeito – as relações de forças não têm nada a ver com a
violência, ou seja, não conduzem, elas não se reduzem à violência. Elas têm uma natureza diferente. Por
que chamá-las de “relações de força”, se não podem ser explicadas pela violência? Porque as relações de
forças excedem a violência de todos os lados. Vocês entendem que, se as relações de força excedem a
violência, posso muito bem dizer: a imitação é relação de força, a invenção é relação de força, é evidente.
A imitação implica relação de forças entre o que imita e o que é imitado. A invenção envolve relação de
força entre as correntes cujo encontro produz a invenção. Bom. Digo que, com muita frequência, o tom
de Foucault lembra estranhamente Tarde. Foucault tem um gosto extraordinário, por exemplo, pelo que
ele chama... uma vez... há uma passagem em Vigiar e punir na qual ele fala das pequenas invenções
sociais e ele diz: o carro celular [voiture pénitentiaire],22 nunca falamos sobre isso, ele diz, mas é uma
pequena invenção engraçada. É claro que falamos do alto-forno, de grandes invenções técnicas e não das
pequenas invenções sociais. Acho que Foucault conhecia Tarde, acho que ele devia conhecê-lo, mas
ainda que não o conhecesse, seria um encontro incrível. Porque, aí, é quase um texto que seria assinado
por Tarde. O carro celular é como uma pequena invenção social, ao contrário das grandes invenções
técnicas, bem, é puro Tarde. Então, tudo isso apenas como ponto de partida. Vejam, as relações de poder
21
Cf. DELEUZE, G. As formações históricas, aula de 5 de novembro de 1985. Existe uma única referência de Foucault a
Gabriel Tarde em “Linguistique et sciences sociales” [1969]. In: Dits et écrits v. 1, n. 70, p. 854.
22
Cf. FOUCAULT, M. Vigiar e punir, pp. 243 e 249.
27
são relações moleculares, microrrelações entre elementos que funcionam como corpúsculos. Bem, é com
isso que teremos que lidar.
Sendo assim, ao tentar classificar corretamente os textos de Foucault, eu diria que a partir da sua
microfísica de poder podemos extrair seis princípios. Seis, é muito. Esses seis princípios são igualmente
denúncias do que ele considera como postulados nas teorias clássicas do poder. Assim, pudemos
identificar seis postulados denunciados por Foucault.
O primeiro princípio chamaremos de postulado da propriedade. Foucault nos diz: as teorias
políticas agem como se o poder fosse propriedade de algo ou de alguém. Mas o poder não é propriedade
de ninguém. Propriedade de quem? Bem, por exemplo, mesmo os marxistas, à primeira vista, em todo
caso, fazem do poder propriedade da classe dominante. Vigiar e punir, p. 31: “o estudo desta microfísica
supõe que o poder nela exercido não seja concebido como uma propriedade, mas como uma estratégia”.23
É a primeira vez que encontramos essa palavra, que se tornará cada vez mais importante em Foucault.
Em outras palavras, existe um funcionalismo absoluto do poder. O poder não se possui, não é uma
propriedade, ele é exercido.
Se vocês entenderam tudo o que foi dito, não isso não deve surpreendê-los, porque se é verdade
que o poder é fundamentalmente relação, então não pode ser propriedade. Se o poder é relação e se
levarmos a sério a expressão “relações de forças”, e se alguém disser “o poder é a própria relação”, não
pode ser propriedade. É exercido, ou seja, o poder é uma estratégia.
Bom, Estratégia, estratégia... Essa nova palavra deve nos fazer pensar o que? Mas muito cuidado,
não confundir estratégia e estrato. Pois o conhecimento se refere a estratos e estratificações, mas o poder
se refere a estratégias. Além disso, a estratégia aparece onde não há estratificação, onde não há
propriedade. As camadas sedimentares podem ser possuídas, o poder não é possuído, é exercido. Como
Foucault definirá a estratégia? “definem inúmeros pontos de luta, focos de instabilidade comportando
cada um seus riscos de conflitos, de lutas e de inversão pelo menos transitória da relação de forças”.24 É
bem forçado, mas não usa “foco de instabilidade” por prazer ou esperteza, mas porque no campo
micrológico, no campo microfísico, não há equilíbrio, por natureza é uma área que repudia o equilíbrio.
Os estratos estão em equilíbrio, o não estratificado nunca está em equilíbrio. Não há equilíbrio
corpuscular. Não há equilíbrio ondulatório. Não há equilíbrio microfísico. Não há estabilidade. Há
23
Ibid., p. 29. Foucault acrescenta: “Temos em suma que admitir que esse poder se exerce mais do que se possui, que não é o
‘privilégio’ adquirido ou conservado da classe dominante, mas o conjunto de suas posições estratégicas – efeito manifestado
e às vezes reconduzido pela posição dos que são dominados”.
24
Ibid., p. 30.
28
estabilidade apenas [do ponto de vista] estatístico, isto é, o estável, é o grande conjunto. Os grandes
conjuntos sim, são possuídos, mas vocês podem intuir que o poder é fundamentalmente difuso, fluente,
instável, no nível da microfísica.
No nível de grandes conjuntos, é claro que ele é possuído, é claro que é estável, que está em
equilíbrio. Mas essa não é a fonte do poder. Não é isso, precisamos chegar a essa camada microfísica que
não se deixa sedimentar, que é pura estratégia, não estrato, inúmeros pontos de enfrentamento, focos de
instabilidade, o que isso significa? O que são esses inúmeros pontos de confronto, esses focos de
instabilidade? Como vimos anteriormente, são singularidades, não indivíduos psicológicos. Tarde diria:
são quantidades de crença e desejo, são corpúsculos de crença e desejo, fundamentalmente instáveis,
fluentes, levados por ondas etc. Inúmeros pontos de confronto, focos de instabilidade. Em outras palavras,
as relações de forças são relações entre singularidades, são as ondas de singularidades. Assim como a
microfísica nos fala sobre ondas corpusculares, isto é, ondas que pilotam um corpúsculo, as relações de
poder conduzem singularidades.25
Ora, você ainda não terá feito nada se se apegar aos grandes conjuntos que essa microfísica
formará. Não se trata de dizer que grandes conjuntos não existem; os grandes conjuntos serão
efetivamente constituídos por essa microfísica. Em outras palavras, a microfísica constitui uma
macrofísica. Os grandes conjuntos, nada mais são do que fatos compostos desses corpúsculos e dessas
ondas, mas, ao mesmo tempo, os estratificam, ou seja, fazem grandes conjuntos dos quais não
consideramos senão os efeitos gerais. Os grandes conjuntos são o efeito geral da microfísica.
Tudo bem até aqui? Abro um parêntese novamente, pela última vez. Há uma coisa da qual
Foucault nunca fala. Faremos um pequeno teste de confirmação usando um exemplo diferente daqueles
de Foucault. Ele nunca falou de sociedades que chamamos de primitivas. Por que? Por uma razão muito
simples. Não é porque não gostava da etnografia, da etnologia, mas porque queria operar em séries curtas
e bem definidas, como vimos.26 Foucault tinha tanto horror com a história universal que receava cair em
uma espécie de visão universal da história se não desse exemplos de séries bem ordenadas e bem
determinadas. Mas, se não temos medo, podemos sempre tentar, pois gostaria de encontrar na etnologia
moderna o mesmo que ocorreu entre Durkheim e Tarde, porque afinal as mesmas histórias se reencontram.
25
Nos termos de Foucault, as relações de poder se caracterizam como “agir sobre a ação dos outros” e “condução de condutas”.
Cf. FOUCAULT, M. “O sujeito e o poder”, pp. 291 e 294. A edição original deste livro em inglês é de 1982. Nesse texto
Foucault dá importantes indicações metodológicas sobre a análise do poder.
26
Cf. DELEUZE, G. Michel Foucault: as formações históricas, aula de 17 de dezembro de 1985.
29
Na etnologia moderna, é sabido que as sociedades primitivas são chamadas de sociedades sem
Estado. Foucault poderia dizer: sim, elas são talvez sem Estado, mas não sem poder. Bem, finalmente,
se as sociedades ditas “primitivas” não apresentam um grande conjunto que as exceda, elas ainda
apresentam grandes conjuntos. Quais são? São as grandes linhas de filiação. Como dizem os marxistas,
o parentesco substitui o Estado nas sociedades primitivas. Bem, as principais linhas de parentesco, as
principais linhas de filiação, que são chamadas precisamente de grandes linhagens. Eu diria que as
grandes linhagens nas sociedades primitivas são as representações coletivas de base ou, se vocês
preferirem, os grandes conjuntos. Nas sociedades modernas, os grandes conjuntos são o Estado e a lei,
para dizê-lo rapidamente.
Assinalo que uma obra tão admirável quanto a de Lévi-Strauss... Não falo de Mitológicas porque
neste livro talvez tudo mude, Mitológicas é uma história engraçada... Falo de As estruturas elementares
de parentesco, livro já antigo. No nível e no momento de As Estruturas elementares de parentesco, não
há dúvida de que Lévi-Strauss elabora um estruturalismo baseado em grandes conjuntos, e evidentemente
existem apenas estruturas molares.
Aqui, notem que estamos no ponto em que talvez possamos confirmar nossas análises da
diferença entre Foucault e o estruturalismo. As estruturas estão fundamentalmente em equilíbrio. Um
desequilíbrio estrutural, bem, acontece, acontece, mas um desequilíbrio é sempre a estrutura em questão.
A estrutura enquanto estrutura designa um estado de equilíbrio. Em outras palavras, Lévi-Strauss o diz
explicitamente quando afirma que disfunções, desequilíbrios são consequências, consequências de outra
coisa. Portanto, Lévi-Strauss faz no nível das sociedades primitivas uma macrossociologia fundada nas
grandes linhagens de parentesco, as grandes linhagens de filiação. E o que ele nos diz? Que existem
relações entre as grandes linhas de filiação. Essas relações são as alianças – cujo caso privilegiado são
os casamentos –, casamentos e formas de troca entre uma linhagem de filiação e outra. Por fim ele nos
diz que, se considerarmos a totalidade das trocas em um espaço social suficiente, perceberemos que há
uma troca generalizada – é isso que ele chama de troca generalizada, diferente da troca restrita a duas
linhagens, a relação de duas linhagens – e que a troca generalizada forma um ciclo fechado: ciclo fechado
= estrutura.
Vários etnólogos reagiram e, mesmo dizendo que o trabalho de Lévi-Strauss, no nível das
estruturas elementares do parentesco, era muito admirável na sistematização dos dados da etnologia, mas
na opinião deles nunca uma sociedade primitiva havia funcionado assim. Funciona assim na cabeça de
Lévi-Strauss, tudo bem, mas nunca uma sociedade primitiva pode funcionar assim. Aqueles que se
30
opuseram a Lévi-Strauss invocaram um funcionalismo, uma prática: quais são as práticas sociais reais?
Em outras palavras, eram ingleses e estadunidenses. Em particular, um dos maiores etnólogos, com Lévi-
Strauss, era um inglês chamado, que ainda é chamado Leach, um grande etnólogo. Então, assim como
houve uma controvérsia entre Tarde e Durkheim, houve outra controvérsia entre Leach e Lévi-Strauss na
qual cada um mostrava um certo gênio na arte de não entender o que dizia o outro.
O primeiro ponto de Leach é que a grande preocupação das sociedades primitivas consiste em
fazer com que aquilo que acontece não se pareça com uma troca. Este é o seu primeiro tema: não deve
parecer uma troca, e quando lhes falamos de troca não ficam felizes. Por exemplo, para eles, uma mulher
não é trocada, nunca. Uma mulher é dada ou roubada ou, às vezes, as duas coisas. Deve ser roubo ou
doação. Mas a troca não é... É doar e receber, é doar que obriga e assim por diante, todo o tema bem
conhecido que Leach retoma à sua maneira. O que Lévi-Strauss, de certa maneira, reconhece ao dizer: a
troca é inconsciente. E a força de Leach está em dizer: mas por que ela é inconsciente? Se fosse troca,
por que eles se importariam tanto em esconder? É estranho, não há vergonha no trocar. Então Lévi-
Strauss é forçado a dizer: é porque, se reconhecessem que é troca, entenderiam que o ciclo está fechado
e não querem que o ciclo seja fechado. Leach diz: mas se eles não querem que o ciclo seja fechado, pode
ser porque ele não está fechado, ou seja, porque não há estrutura.
Bem, isso se torna interessante. Por que o ciclo não estaria fechado? Porque toda a hipótese de
Lévi-Strauss supõe que as relações de aliança são deduzidas de uma linha de filiação e decorrem das
linhas de filiação. Há primeiro as linhas de filiação e depois elas trocam alguma coisa. Eles trocam
mulheres, trocam produtos, títulos, emblemas. A troca é entre duas linhas filiativas. Bom. A aliança é
uma troca? Sim, a aliança é uma troca se ocorrer entre linhas filiativas, entre linhagens. Mas nunca uma
sociedade primitiva funcionou com base na linhagem. Linhagens, ninguém acredita nisso. Esquematizo
um pouco aqui. Nunca, elas nunca funcionaram assim, diz Leach. Elas funcionam de maneira bem
diferente. Eles funcionam, de fato, por alianças. Mas as alianças não são trocas porque não pressupõem
as grandes linhas de filiação, são feitas de maneira diferente e noutros lugares. As alianças não podem
ser deduzidas das linhas de filiação porque são autônomas. De fato, elas são, literalmente, trucadas,
manipuladas por grupos que Leach chama de grupos locais, os grupos locais de Leach, em oposição aos
grupos de filiação.27 Os grupos locais não recobrem os grupos de filiação, e são os grupos locais que
organizam casamentos. São os grupos locais que decidem sobre doações e retribuições.
27
LEACH, E. Rethinking Anthropology. London: Athlone Press, 1961, p. 38. Trad. bras.: Repensando a antropologia. Leach
argumenta, por exemplo, que o “local de residência poder ser um fator mais fundamental de agrupamento social do que a
linhagem”.
31
Notem, muitos etnólogos tinham esse ponto de vista, mas é Leach que reúne tudo. Alianças dizem
respeito a uma prática. Há um etnólogo28 que dirá e que usará a palavra muito curiosa, ele dirá: não é
uma estrutura, é um processo [un procédé]. É uma questão de prática, de um processo. Digamos, de
passagem, uma estratégia. Uma sociedade estrategiza antes de se estruturar.
Diante disso Leach faz sua grande pergunta: a posição de um indivíduo no campo social deve-se
ao fato de ele pertencer à linhagem de seu pai ou à linhagem de sua mãe ou a ambas? Ou senão – o que
é completamente diferente –, a posição dele vem do fato do pai e da mãe serem aliados? É uma pergunta
muito boa, porque se vocês lerem atentamente As estruturas elementares do parentesco, verão que Lévi-
Strauss defende a primeira resposta. Se lerem Leach atentamente, o verão defender a segunda: a posição
do indivíduo no campo social advém do fato de seus parentes serem aliados, de modo nenhum porque
ele participa das linhagens do pai, da mãe ou de ambas.
Em outras palavras, o tema perpétuo de Leach é: as grandes linhagens formam uma estrutura
vertical. É indiscutível. Lévi-Strauss é imbatível neste ponto e deu o status dessa estrutura vertical de
maneira definitiva. Mas a rede de alianças não pode ser deduzida dessa estrutura vertical. A rede de
alianças e, aqui, cito Leach de cor, a rede de alianças é uma rede lateral 29 ou, dito doutro modo,
transversal. Perpendicular, diz Leach, a estrutura, a estrutura filial, irredutível a essa estrutura, organizada
por pequenos grupos locais e constituindo não uma troca de ciclo fechado, mas em permanente
desequilíbrio, ou seja, constituindo um microssistema físico em instabilidade perpétua. De fato, alianças
são constantemente quebradas em favor de outras alianças etc. É no nível das alianças que você encontra
a microfísica do poder. Eu diria, nas sociedades primitivas, qual é a relação de forças? A relação de forças
passa pela rede de alianças irredutíveis à estrutura, irredutíveis à estrutura filial. Ainda mais, existe tal
oposição entre os dois, há evidências de que a rede de alianças não pode ser deduzida e sempre questiona
as estruturas filiativas, a ponto de estas serem retrabalhadas de acordo com a rede de alianças a qualquer
momento. Haverá um efeito e, finalmente, as linhas, as linhas de filiação traduzirão sempre o estado da
rede de alianças. Existe uma microfísica da aliança trabalhando sob a macrofísica da filiação. Em outras
palavras, existem as séries sob a estrutura. Vejam como Foucault, que não tem nada a ver com este
exemplo, pode opor estratégia e estrutura e dizer que um campo social não se define por uma estrutura,
mas pelo conjunto de suas estratégias.
Numa sociedade primitiva, as redes de alianças são realmente as relações de forças, e isso pode
28
BERTHE, L. “Aînés et cadets: l’alliance et la hiérarchie chez les Baduj (Java Occidental)”. In: Homme, julho de 1965.
29
LEACH, E. Rethinking Anthropology, p. 122.
32
envolver violência, mas não a implica necessariamente. As relações de forças são outra coisa. Se lhes der
uma coisa, já é uma relação de forças. Nós o sabemos bem, mesmo em nossa sociedade. Se eu lhe der
algo, é todo o sistema de doação e contradoação, mas dentro de uma relação de forças, seria tolice medir
uma relação de forças com a violência. Dou-lhe um presente, você diz: oh la la, o que ele me pedirá em
seguida? Você diz: não não, eu não quero, você é muito gentil, demais. Ou você diz: faço questão. Mas
que relação de forças! Ponho na sua mão, enfio no seu bolso: sim! Fique com ele! Não, eu não quero
isso! É uma fantástica relação de forças, não há violência. Enfim, não há violência aparente. Se a relação
de força fosse um soco na cara, mas seria... o mundo seria tão claro! Mas, não é nada disso!
Compreendam, um homem e uma mulher, se relação de força fosse simplesmente o momento em que
dizem coisas duras, se batem... mas o mundo seria encantador! Então viva Tarde, viva a microssociologia
de Tarde! Porque fazer sociologia, precisamente, é isso, é compreender as relações de forças. Não tem
nada a ver com psicologia.
Tudo o que quero dizer é: vejam em que sentido Foucault pode dizer – e tomei esse exemplo de
sociedades primitivas, novamente, que não corresponde a nada em Foucault – que nas sociedades
modernas não é diferente. Aqui também, a rede de alianças excede infinitamente as principais instâncias
como o Estado etc. Se vocês considerarem o que chamaremos de família importante, a rede de suas
alianças, verão como isso vai além das instituições. É necessário usar eventos recentes, o que é mais
surpreendente e alegre do que o caso Boutboul? [risos] É uma maravilha, o caso Boutboul.30 É uma
maravilha, o que você vê? Lá você pode fazer sua rede transversal: esposa jóquei, então eu coloco aqui,
mulher jóquei. Um marido advogado, advogado, mas com raças mistas, então eu faço minha linha lá,
cruzo. Bom. Marido assassinado. Bem, com isso, uma sogra, advogada, estranha, expulsa da ordem, um
advogado deu o fora. Ahh, ela está em contato com... – então a rede tende a um ramo que vai ao infinito
– com as missões dos jesuítas. Eles são jesuítas, o que estão fazendo lá? Foram eles que cancelaram o
[registro de advogada]... Em seguida, o advogado está morto, então quem é? Foi a sogra que matou o
advogado ou é o jesuíta visto pela sogra, ela diz que os jesuítas são terríveis assassinos [risos]... Bom:
uma mistura. Arranjos sociais são misturas e têm estratégias de todos os lados. As declarações da sogra,
Madame Boutboul são declarações de alta estratégia, é evidente. Todo mundo estrategiza e depois nos
mostram na TV. É realmente o programa de variedades no estado puro... Ah! Esqueci o pai morto no
30
Famoso caso policial que culminou em 27 de dezembro de 1985 com a morte do advogado Jacques Perrot, marido de uma
jóquei, cuja mãe, Marie-Élisabeth Cons-Boutboul, advogada cassada pela Ordem, teria assassinado Perrot porque temia que
suas escroquerias com uma missão de jesuítas fossem denunciadas pelo genro. Anteriormente, Marie-Élisabeth se separara
do marido, pai da jóquei, mas forjaram a morte deste para manter as aparências.
33
canto dele! Então, por que ele estava [fingindo estar] morto? Ele faz sua estratégia, ele diz: ah, é porque
eu estava separado da minha esposa, então não era necessário que a menina sofresse. Isso é muito
estranho.
CLAIRE PARNET: Ele fez uma declaração ainda mais estranha, dizendo que aos 45 anos não dominamos
nossas ações como aos 73 anos, então não sabemos a que idade isso começa!
DELEUZE: oh sim, isso também é bom. Para não machucar a menininha ele fingiu estar morto, em vez de
fingir estar separado da esposa, é muito interessante! É uma alta estratégia. Bem, é assim que um campo
social funciona, uma sociedade. Isso é bom. Tudo isso para concluir: uma sociedade, sim, é estratégica.
Portanto, entendam, a consequência é realmente grande: o poder não é propriedade de ninguém, é o
exercício de todos. É isso que significa estratégia, o princípio estratégico. Começamos a entender como
a estratégia se opõe à estrutura, mas, de maneira mais fina e profunda, se opõe aos estratos.
Aqui Foucault é muito forte, tem evidentemente exemplos muito concretos. Ele diz: pegue uma
engrenagem no aparato estatal como a polícia. Bem, é óbvio. Uma engrenagem no aparato estatal como
a polícia... Seria fácil demais se tomasse instituições mais ambíguas. Mas, se algo pertence, parece
pertencer ao Estado e fazer parte de seu aparelho, é a polícia. Todos aqueles que definem o Estado como
monopólio da força assim o entendem. Bem, ele diz, não. Se olharmos concretamente para as técnicas
31
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado.
34
policiais, veremos que os processos de poder policial são por natureza, não por exceção, constantemente,
sempre e até mesmo na origem, cobertos pelo Estado, reutilizados pelo Estado, mas o Estado não é
absolutamente a origem. A polícia tem suas técnicas de poder, a polícia tem seus processos de poder.
Vocês me dirão: mas então, o que quer dizer a polícia? Bem, há focos de polícia que se revelam já no
nível das comunidades sem aparato estatal. Vocês dirão: sim, mas há a comunidade, sempre há outro
poder. Não necessariamente. De qualquer forma, mesmo quando existe outro poder, a polícia se define
por sua independência com relação aos outros focos de poder. Ela própria é uma fonte de poder
autônomo, sempre foi, é assim que ela afirma trabalhar. O Estado, de fato, pode globalizar o poder da
polícia ou pode se apropriar deles. Os poderes policiais não vêm do Estado. Da mesma maneira, Foucault
mostrará o porquê. Porque os poderes da polícia são poderes disciplinares e as disciplinas sempre
precederam o momento em que o Estado os apropriou. O Estado se apropria das disciplinas, não está na
origem das disciplinas. As disciplinas da escola, do exército, as disciplinas particulares, as disciplinas da
Igreja etc. sempre precederam o Estado. As técnicas disciplinares são recuperadas pelo Estado. Eles não
encontram sua origem no Estado.
Em Vigiar e punir Foucault mostrará a mesma coisa, especialmente sobre a prisão. Como vimos,
a prisão não faz parte do horizonte do direito penal, ela é irredutível ao poder jurídico, é relativamente
independente do poder jurídico. Ela tem seu próprio poder, poder da prisão, com o qual o juiz e a lei não
têm nada a ver. É o que Foucault chamará de “suplemento disciplinar”.32 Nessa técnica disciplinar, não é
tanto que a prisão seja uma engrenagem do Estado, mas sim que o Estado recobre a prisão.
Em outras palavras, observem, aqui o poder não se deixa localiza em um aparelho. É preciso prestar
atenção à palavra “local”, porque Foucault a usará em dois sentidos. Não há contradição entre esses dois
tipos de sentenças de Foucault: “o poder não pode ser localizado, ou seja, é difuso, significa que o poder
não pode ser localizado, é difuso, ou seja, se espalha no campo social” e “o poder sempre consiste em
focos locais”, a afirmação do caráter local do poder, o que significa, desta vez, que o poder nunca é
global. Ambas são perfeitamente coerentes. Não é localizado porque é difuso, mas é sempre local, pois
o global são os grandes conjuntos, e o poder, as relações de poder operam sob os grandes conjuntos.
32
FOUCAULT, M. Vigiar e punir, p. 257.
35
não se pode falar de relações de produção sem já colocá-las e sem entrelaçá-las com relações de poder.
Portanto, as relações de poder obviamente não decorrem das relações de produção, porque não existem
relações de produção definíveis independentemente do entrelaçamento que elas têm com as relações de
poder.
Quarto postulado: postulado de essência ou do atributo. O poder teria uma essência e seria um
atributo, e Como atributo, qualificaria aqueles que o possuem, os dominantes, distinguindo-os daqueles
sobre os quais é exercido, os dominados. A resposta de Foucault – aqui eu posso ir rápido – afirma que
o poder não tem essência, é funcional, operatório. Ele não tem essência nem interioridade, não é um
atributo, é uma relação. É por ser relação que não é um atributo. Em outras palavras, a relação de poder
é o conjunto de relações de força em um campo social e, portanto, o poder não passa nem pelas forças
dominadas nem pelas forças dominantes. Vejam: não é um atributo que distingue o dominante e o
dominado, é um relacionamento que relaciona o dominante com o dominado e o dominado com o
dominante. Eis um extrato de A vontade de saber ou de Vigiar e punir, não sei mais: “Esse poder, por
outro lado, não se aplica pura e simplesmente como uma obrigação ou uma proibição, aos que ‘não têm’;
ele os investe, passa por eles e através deles; apoia-se neles, do mesmo modo que eles, em sua luta contra
esse poder, apoiam-se por sua vez nos pontos em que ele os alcança”.33
Usei o exemplo da prisão para o postulado anterior. Eis agora um dos exemplos mais precisos
analisados por Foucault, o exemplo das lettres de cachet, das quais já lhes falei.34 As lettres de cachet –
33
Ibid., p. 29.
34
Cf. DELEUZE, G. Michel Foucault: as formações históricas, aula de 29 de outubro de 1985. Na França pré-Revolução, as
lettres de cachet eram cartas assinadas pelo rei e lacradas com o selo (cachet) real. As cartas continham ordem emitidas pelo
rei em resposta a um demandante, frequentemente para forçar ações, contra as quais não havia apelo. “Ao examinar as lettres-
de-cachet mandadas pelo rei em quantidade bastante numerosa notamos que, na maioria das vezes, não era ele que tomava a
decisão de enviá-las. Ele o fazia em alguns casos como nos assuntos de Estado. Mas a maioria delas [...] eram, na verdade,
solicitadas por indivíduos diversos: maridos ultrajados por suas esposas, pais de família descontentes com seus filhos, famílias
que queriam se livrar de um indivíduo, comunidades religiosas perturbadas por alguém, uma comuna descontente com seu
cura etc. [...] De forma que a lettre-de-cachet se apresenta, sob seu aspecto de instrumento terrível da arbitrariedade real,
investida de uma espécie de contrapoder, poder que vinha de baixo e que permitia a grupos, comunidades, famílias ou
indivíduos exercer um poder sobre alguém. [...] A lettre-de-cachet consistia, portanto, em uma forma de regulamentar a
moralidade cotidiana da vida social, uma maneira do grupo ou dos grupos – familiares, religiosos, paroquiais, regionais, locais
etc. – assegurarem seu próprio policiamento e sua própria ordem”. FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas, pp. 96-
36
que são realmente uma instituição própria da monarquia francesa, acredito que, segundo Foucault, não
havia equivalente no período – aparentemente indicam uma transcendência do poder. Elas são
frequentemente apresentadas como a expressão da pura arbitrariedade do rei, independentemente de
qualquer procedimento investigativo, o rei decide a prisão, a internação de alguém e, sem dúvida, isso é
verdade em alguns casos, isto é, no caso, em particular, de grandes senhores. Mas a técnica da lettre de
cachet é completamente diferente. O que ela mostra? Que o processo verdadeiro da lettre de cachet é
este: um membro da família, um vizinho, um colega, um colega de trabalho, qualquer coisa, envia uma
solicitação e diz: um tal é completamente louco, é preciso trancá-lo. Coloque-o na cadeia, meu Senhor.
Nesse caso, há investigação, não é a arbitrariedade do rei, é a maneira pela qual os dominados participam
da arbitrariedade do rei. O poder passa pelos dominados tanto quanto pelos dominantes. A lettre de cachet
é fundamentalmente requerida pelas famílias, vizinhos, para qualquer criatura que perturba um pouco,
ou seja, contra a qual não podemos opor um processo legal. Deve ser o pequeno problema, como em
Tarde, é um microproblema. Se fosse um grande problema, se houvesse crime, o procedimento normal
seria usado. O procedimento da lettre de cachet é feito para a microfísica do delito, para pequenas ofensas
que não são sancionáveis do ponto de vista da lei.
Foucault dá um exemplo muito comovente de lettre de cachet, a súplica enviada pela esposa de
Nicolas Bienfait, no século XVII. Aqui está: “Tomo a liberdade de representar muito humildemente ao
Monsenhor que o dito Nicolas Bienfait, cocheiro, é um homem muito dissoluto que me mata com socos
e que vende tudo, já tendo matado suas duas mulheres, a primeira das quais matou seu filho no corpo. A
segunda, depois de comer e de vender tudo, fez morrer com seus maus tratos. A terceira ele quer comer
seu coração assado, sem mencionar outras mortes que causou. Meu senhor, coloco-me aos pés de Vossa
grandeza para implorar vossa misericórdia; espero de Vossa bondade que me faça justiça, pois minha
vida está em risco a todo momento. Não cesso de rezar pela saúde do Senhor”. 35 Não havia nada
condenável perante a lei. O que a mulher podia fazer?
Como eu lhes dizia, o que se passa hoje quando se faz um internamento voluntário? Uma mulher
se faz massacrar pelo marido, o que pode fazer? Ela pede uma lettre de cachet ao rei, ou seja, ela pede
que o marido seja internado. Há uma investigação, a polícia vem falar com o zelador, há um psiquiatra,
tudo isso. O poder passa, é uma relação de força, passa pelos dominantes, pelos dominados não menos
do que pelos dominantes. É a denúncia do postulado do atributo: o poder não é atributo, é relação.
7.
35
Cf. FOUCAULT, M. “La vie des hommes infâmes” [1977]. In: Dits et écrits v. II., p. 237.
37
Quinto postulado: postulado da modalidade. Em muitas teorias clássicas o poder assume duas
modalidades: ou procede pela violência, ou se dá pela ideologia. Repressivo ou ideológico. Repressão
ou ideologia, sentimos que é uma alternativa muito pobre, porque Foucault nunca para de mostrar que o
poder pode agir sobre almas e corpos, mas mesmo quando age sobre almas, age de outra maneira que a
ideologia. Quando age sobre os corpos, age de outro modo que violência e repressão. Se esperássemos
que o poder fosse repressivo, vocês sabem... há muito tempo não haveria mais poder. Ele acontece de
maneira bem diferente. É repressivo em última instância, sim, quando não pode fazer o contrário, mas,
caso contrário, ele evita ser repressivo. Há meios mais sutis que não são nem ideologia nem repressão.
Por quê?
Esse talvez seja o ponto essencial, mas será necessário retornar a ele, agora eu o apresento muito
rapidamente. A relação de força não é a violência. Por que não é violência? Porque a relação de forças é
a relação da força com a força. Isso é muito importante, porque se eu disser: a força é essencial na relação,
significa que existe uma razão na noção de força para que a força nunca esteja sozinha, que a força
sempre faça parte de uma multiplicidade, cabe à força estar em relação com uma outra força. Logo, toda
força é relação de forças. Não há força, há relações de forças. O que é a violência? É uma relação de
forças? Não, a violência não é a relação de uma força com outra força. A violência é a relação da força
com um ser ou um objeto. Isso é fundamental, obviamente, na análise de Foucault, que nem sequer insiste
muito nisso, para ele é evidente, mas, enfim, devemos sublinhar. Quando eu sofro violência, não é a
minha força que sofre violência, é o meu corpo que é talvez a sede de uma força, minha, mas o que é
destruído pela força? Não é outra força, outra força não é destruída pela força, isso significa que uma
força destrói outra? Uma força é incapaz de destruir outra força. Por outro lado, uma força pode muito
bem destruir um corpo. A força de uma bomba destrói uma cidade como um corpo ou um corpo vivo. A
violência expressa a relação de uma força com uma coisa, um objeto ou um ser.
O que chamamos uma relação de forças? É a relação de uma força com uma força. O que é a
relação de uma força com outra força? Foucault dirá em uma entrevista – em seus livros ele não
desenvolve a ideia – que a relação de uma força com uma força, é uma ação sobre uma ação.36 Não é
uma ação sobre um corpo, é uma ação sobre uma ação, sendo a segunda ação real ou possível. É muito
valioso [inaudível na gravação] voltar a isso. Ação sobre uma ação não é violência, nunca a violência
agiu em uma ação, a violência é exercida no apoio de uma ação, no objeto de uma ação. A violência não
age sobre ação. Ele dá exemplos. É uma entrevista reproduzida no livro de Dreyfus e Rabinow sobre
36
É um “agir sobre a ação dos outros”. Cf. FOUCAULT, M. “O sujeito e o poder”, p. 291.
38
Foucault. Dá exemplos muito incomuns para nós, mas será uma oportunidade para investigarmos. Ele
diz: as relações de forças, não são do tipo “fazer violência” ou “reprimir”, são do tipo: incitar, suscitar,
combinar. Parece não ser nada, mas aqui teremos que pesquisar. Vejam o que ele quer dizer à primeira
vista: sim, uma força não provoca violência à outra força, mas uma força pode incitar outra. Uma força
pode combinar outras forças. Isso sim, isso são relações de forças.
Portanto, as relações de forças são do tipo incitar, suscitar, combinar. Deixemos isso, é muito
obscuro para nós quando ainda não temos meios para comentar; nós os teremos em breve. Eu pergunto:
em Vigiar e punir, quais são as relações de forças que Foucault estuda? Tomando o conjunto do livro,
tento fazer a lista. É organizar o espaço, do tipo do fazer fila na escola. Pôr em ordem [mettre en rang],
isto é, arrumar, fechar, esquadrilhar, serializar. Para fazer uma série, não é a mesma coisa que pôr em
ordem. Serializar é, por exemplo, fazer uma lista para a dissertação: primeiro, segundo, terceiro. Em
outras palavras, eis um primeiro aspecto: dividir o espaço As funções que Foucault enumera em Vigiar e
punir, o primeiro grande tipo de função: repartir o espaço, encerrar, esquadrilhar, organizar, serializar.
Segundo grande tipo de função: ordenar no tempo, subdividir o próprio tempo, hora, meia hora,
minuto, segundo, programar o ato, decompor um gesto. São funções de ordenação no tempo, não mais
repartição no espaço. Onde isso acontece? Bem, o lugar onde claramente isso acontece são as oficinas,
as primeiras fábricas. A decomposição do gesto, o trabalho mecânico. É uma função da ordenação no
tempo. Bem, pode haver uma intensa violência subjacente, não há chicotadas, não formamos os operários
com chicotadas. Em certo sentido, foi pior.
Terceira grande função: compor no espaço-tempo. O que é? É produzir um efeito dito “útil” maior
do que a soma das forças elementares, das forças componentes. Produz o chamado efeito útil maior que
a soma das forças, as forças componentes. Isso é a relação de forças, não é repressão nem ideologia.
Assim, isso se reconecta com A vontade de saber, lembrem-se de todo o nosso tema. O que havia em A
vontade de saber? Se ficamos nas palavras e nas frases, podemos sempre acreditar que a sexualidade foi
reprimida. Mas, se soubermos ler, depreender das afirmações da época, percebemos que, pelo contrário,
a sexualidade foi perpetuamente solicitada, convidada a se expressar e a falar. Sob qual condição?
Precisamente sob a condição de permitir distribuir-se no espaço, ordenar-se no tempo e compor no
espaço-tempo. Isso Foucault traduz dizendo em linhas gerais: as sociedades modernas não agem por
meio da ideologia ou da repressão, elas procedem pela normalização. O que é normalizar? Normalizar é
relação de forças por excelência, a saber, é repartir no espaço, ordenar no tempo, compor no espaço-
tempo. Eis a denúncia do quinto postulado. Finalmente, haveria um sexto postulado denunciado por
39
Foucault, o postulado da legalidade. O elo que a maioria das teorias faz entre o Estado e a lei. Como esse
é mais complicado que os anteriores, deixarei para a próxima aula. É o último.
40
GILLES DELEUZE
AULA 2
Aula 2: 14 de janeiro de 1986
Deleuze: George Comtesse deseja fazer uma intervenção. Suponho que ela diga respeito ao
ponto em que estamos. Vamos ouvi-lo. Eu continuarei em seguida.
George Comtesse: [dificilmente audível] parece-me que um fragmento de um texto de
Foucault, prefácio do livro sobre o panóptico de Bentham chamado L’œil du pouvoir,1 reúne os três
problemas colocados aqui, a saber, o problema da relação do poder com o princípio da visibilidade,
o da relação do poder com a violência e a relação do poder com a questão da multiplicidade, a qual
foi abordada a partir da distinção, da diferenciação entre três dualismos: dualismo estrito, dualismo
provisório e dualismo preparatório das multiplicidades.
Com relação ao primeiro ponto – a relação do poder com a visibilidade –, Foucault fala da
visibilidade no Antigo Regime, ou seja, aborda o que chamará mais tarde de poder da soberania, um
poder de proibição, de repressão, diferenciando-o do poder de normalização. Mas, precisamente no
Antigo Regime, o poder não importa em primeiro lugar. O poder, de certa forma, não está diretamente
relacionado à visibilidade, por quê? Porque existe uma potência anterior a ele: a potência de Deus.
Uma potência de luz que se transmitia ao poder de soberania e fundava então, o que Foucault chama
nesse prefácio de princípio de visibilidade do poder de soberania. A luz assegurava a visibilidade do
corpo do rei, do poder da soberania, e o castelo, o palácio e a igreja tornavam-se monumentos de
visibilidade, manifestações de visibilidade. Noutras palavras, sem o poder deslumbrante da luz, da
vida luminosa, não há visibilidade, não há reflexo nem manifestação de visibilidade. A potência da
vida era a identidade da luz e da palavra como fundamentos do princípio da visibilidade. Essa
afirmação “há luz” é do Antigo Regime, é a afirmação da vida de Deus que supunha, como qualquer
afirmação de vida, uma diferença. Não há afirmação da vida sem diferença; há aqui uma diferença
sagrada entre luz – a palavra clara – e noite, linguagem obscura.
Justamente, eis o cerne do prefácio de Foucault. A partir do século XVIII, o problema colocado
não é mais, de modo algum, o centro de visibilidade – real, por exemplo – como a radiação de uma
potência de luz e que se difunde por todo o espaço natural do reino, como um solo, um espaço dotado
de certas fronteiras. Pretende-se que a potência luminosa se irradie por todas as partes, que a
visibilidade se estenda por toda a sociedade, ao invés de se concentrar no centro, a visibilidade
ampliada, geral, estendida.
Foucault acrescenta que, antes da Revolução Francesa, existia um ódio, uma desconfiança
crítica do castelo, do convento, hospital, casa fortificada. Esse ódio era a mesma coisa que o medo.
1
FOUCAULT, M. “L’œuil du pouvoir” [1977]. In: Dits et écrits v. II, p. 190.
2
Medo de quê? Do que Foucault chama o espaço escuro, ou seja, o medo dos espaços noturnos ou do
que chama ainda de fragmentos da noite. A escuridão provoca medo, diz Foucault; a obscuridade e o
silêncio dos espaços constituem outros tantos obstáculos à radiação da luz, à plena visibilidade das
pessoas, das coisas, das verdades. Teme-se espaços escuros, salas escuras, escuridão e silêncio.
A partir daqui há duas direções: a crítica não é simplesmente crítica; ela pode literalmente
dissolver, remover, eliminar todos os espaços escuros, porque, neles, circula justamente o
insuportável, ou seja, a linguagem da obscuridade, do silêncio e do mal; linguagem que se afasta da
palavra luminosa e que continua a ser, apesar de tudo, o modelo.
Com relação a esses espaços, Foucault dá cinco ou seis exemplos: tiranos e padres urdem seus
sombrios complôs, a arbitrariedade política; as superstições religiosas são reforçadas, as ilusões da
ignorância são confirmadas e desenvolvidas; crescem as escolas do vício e do crime; corpos se
degradam, epidemias se espalham. O século das Luzes quer então dissolver os espaços escuros que o
assombram, ou seja, quer a todo custo não apenas eliminar os espaços escuros, mas sobretudo apagar
zonas de sombra, de opacidade humana; quer tornar o homem tão transparente quanto a sociedade,
restaurar o homem e a sociedade à sua visibilidade transparente, à sua transparência essencial.
Portanto, quer um homem sem área obscura, uma sociedade sem espaço escuro. Os espaços escuros
da sociedade atualizam as zonas de sombra e de opacidade do homem, intensificam a obscuridade
silenciosa de uma potência noturna enquanto poder de fazer o mal.
Eis o segundo ponto: a relação entre o mal e a violência. Não é necessário que a diferença de
identidade da palavra e da luz se anule para deixar voltar a potência do mal como potência de uma
violência móvel. Não é preciso que a diferença de vida se anule para deixar voltar o silêncio do tempo
e da eternidade. O poder se exerce para conjurar sua relação com a violência, para conjurar o momento
da violência, a violência móvel. Poder não é a violência porque não cessa de a conjurar, contê-la,
retê-la, impedi-la, inibi-la, freá-la, de romper a todo custo o movimento de sua força. Para impedir tal
movimento – da violência imóvel e que se fala, que encontra sua linguagem justamente no espaço
sombrio –, para impedir o movimento da força como força do tempo se prepara no espaço sombrio a
voz do controle da ordem dada, inicialmente ineficaz. Antes de mais nada, antes da voz do controle,
é necessário impor o olhar de vigilância, o qual absorverá a opacidade do homem, restituirá sua
visibilidade ou sua transparência, ou seja, cortará a força do tempo de seu movimento, comandará a
força inibindo seu movimento. Por isso, Bentham escreve que ser posto sob o olhar da vigilância é
perder a potência de fazer o mal, é quase abandonar o pensamento de desejá-lo. Existe um elo
essencial entre o olhar da vigilância e a inibição do movimento da força.
O poder do olhar impede o movimento da força, a controla ou a domina, a converte numa
intenção da qual esperamos o esgotamento, vontade esgotada que poderá talvez chegar até a boa
3
vontade do ser racional. Por meio desse efeito de poder a visibilidade garante a si. Ou ainda, por meio
da visibilidade o poder garante seu efeito. A obsessão de Bentham, como diz Foucault, é um olhar
onivisor [omniregardant]; Bentham reflete sobre a visibilidade a partir dessa obsessão. Ele pensa a
visibilidade organizada inteiramente em torno do olhar dominador dos vigilantes [surveillants].
Portanto, não é mais a voz da dominação e ainda não é a voz do controle, mas o olhar dominante
da vigilância temporariamente desconectado da voz do controle. Do olhar dominante da vigilância
que pode produzir uma visibilidade nova, uma visibilidade que conjura a violência, uma visibilidade
de inibição do movimento da força, que se poderia chamar: visibilidade de imobilização. Essa
obsessão pelo olhar precede e institui a invenção do dispositivo panóptico como tecnologia de poder.
A obsessão pelo olhar conjurador suscitará sua efetivação tecnológica no dispositivo e
procedimento óptico. Por meio desse dispositivo, o olhar que precede o panóptico será, neste
momento, inscrito no espaço social; sua instituição se tornará o que Foucault chama de efeito e apoio
a um novo tipo de olhar. Portanto, o dispositivo panóptico é a resposta tecnológica ao problema do
poder onivisor, ao problema do poder que vigia a imobilização do movimento da força. É um
dispositivo, como diz Foucault, de sujeição [assujettissement] por meio da luz, um dispositivo de
relação entre visibilidade e luz, que constitui então o foco de exercício de poder e é ao mesmo tempo
o local de registro de um saber.
Terceiro ponto: relação entre poder e multiplicidade. Toda a estratégia do dispositivo panóptico
torna-se nesse momento a estratégia do que Foucault chama de olhar centralizado, ou seja, o olhar do
vigilante na torre central, que deseja a total visibilidade dos corpos, dos indivíduos, de suas atividades.
É, precisamente, uma estratégia de imobilização da força. O poder da violência móvel é conjurado
pelo dispositivo óptico de exercício do poder. Por esta razão, separar o movimento de sua força,
imobilizar, é também isolar os indivíduos, separá-los uns dos outros, serializando-os. O dispositivo
óptico de conjuração imobiliza e separa indivíduos. O princípio do olhar de vigilância, que garante
uma vigilância – como Foucault diz, tanto global quanto individual –, é, agora, não mais o princípio
da visibilidade como o princípio do poder da soberania clássica, mas como um novo poder e uma
nova tecnologia de poder. Portanto, torna-se, segundo Foucault, o princípio desse novo poder, o
princípio da visibilidade isolante.
Assim, saindo do assustador espaço escuro, entramos em um espaço fechado, isolado, separado,
e nesse espaço – nessa cela onde trancamos um condenado, um louco, um doente, um trabalhador,
um estudante – precisamente a luz retorna através da visibilidade isolante, serial, nova. Cada um,
isolado dos outros, separado deles, sem contato com eles, torna-se visível novamente pelo olhar da
vigilância.
4
Nesse momento, a presença do olhar centralizado do poder não consiste de modo algum em
abertura para a multiplicidade; ao contrário, trata-se – eis um ponto essencial – de concentrar a
multiplicidade no próprio exercício do poder. Por isso, como Foucault disse, no final do século XVIII
foi preciso que os efeitos do poder circulassem até o nível das atividades diárias, até os corpos e os
indivíduos. Tornou-se necessário que o poder, mesmo diante da multiplicidade de homens para
governar [régir], fosse eficaz, como se se exercesse sobre um único homem.
Deleuze: perfeito, perfeito. De fato, você identificou uma diferença entre os regimes de
visibilidade dos séculos XVII e XVIII. Essa história é complicada porque teremos que ver – não
fizemos isso –, teríamos que ver no domínio da pintura, porque será preciso manter (em todo caso, já
vimos) o princípio no nível dos enunciados. Quero dizer: é importante não reintroduzir um princípio
de progresso, de aperfeiçoamento; uma era não aperfeiçoa outra, ou seja, não existe um regime de
visibilidade melhor que outro, hein? Alguns de vocês podem ter entendido, por exemplo, que no
século XVIII as sombras são banidas. Obviamente, não é isso o que significava uma repartição entre
sombras e luzes. O status da sombra em cada formação histórica é obviamente diferente. São regimes
qualitativos de visibilidade totalmente diferentes. Logo, no ponto onde estamos, parece-me muito
importante a ideia de que o poder é precisamente o que faz ver e falar. Como se as relações de poder
nos convocassem a ver e a falar. Mas as próprias relações de poder (veremos em que sentido) são
mudas e cegas. Isso é muito curioso. Então, será que elas fazem ver e fazem falar apesar de, em certo
sentido, serem mudas e cegas? Enfim... Essa intervenção veio a calhar.
Onde estávamos? No último encontro nos detivemos sobre esse novo elemento, não mais o
elemento do saber, mas o elemento do poder. Eu quase terminei um tema, podemos chamá-lo de as
questões de princípio [do poder]. Isolar questões de princípio já é arbitrário, mas o faço por clareza.
Essas questões de princípio, essa discussão em torno dos princípios, entendam bem, trata-se menos
de princípios explícitos que vocês encontrariam nesta ou naquela teoria do poder. São antes
postulados implícitos que, segundo Foucault, percorrem todas as teorias do poder, tanto as teorias
burguesas do poder quanto a teoria marxista. De modo que não se deve tomar esses princípios como
teses, mas como postulados que Foucault sente a necessidade de questionar. São postulados implícitos
subjacentes à maioria das teorias do poder.
Vimos cinco postulados na última vez. Havia o postulado da propriedade, segundo o qual o
poder pertenceria, por exemplo, a uma classe ou ao equivalente de uma classe. É marxista? Não, não
é marxista, já faz muito tempo que um marxista mostrou que essa concepção de poder como
propriedade de uma classe aparece tipicamente nas concepções burguesas do poder,2 especialmente
2
Deleuze refere-se possivelmente à carta de Marx a Joseph Weydemeyer de 5 de março de 1852, na qual diz: “não me
cabe o mérito de ter descoberto nem a existência das classes na sociedade moderna nem a sua luta entre si. Muito antes
de mim, historiadores burgueses tinham exposto o desenvolvimento histórico desta luta das classes, e economistas
5
em Guizot, no século XIX. A classe burguesa como proprietária de um poder de direito. Portanto,
não é especificamente marxista. Segundo postulado, o postulado da localização: poder localizado no
aparato estatal. Terceiro postulado, o da subordinação: poder subordinado a um modo de produção
como infraestrutura. Quarto postulado, o da essência ou atributo: o poder seria o atributo do
dominante, em oposição ao dominado. Quinto, postulado da modalidade, o poder atuaria pela
violência ou pela ideologia. Restava um último postulado muito importante, porque, sem dúvida, é
um dos pontos mais originais de Foucault em termos dessa discussão de princípios.
Se vocês pensarem nos cinco postulados denunciados, em que consiste a denúncia? Consiste
em afirmar que, para entender o que é poder, não se deve tomar como ponto de partida, não se deve
considerar em primeiro lugar o que se poderia chamar de grandes entidades. Ou, se preferirem, vamos
usar uma palavra mais técnica, entidades molares. Por que introduzo entidades molares aqui?
Precisamente porque gostaria de comentar a “microfísica” do poder. Foucault nos propõe uma
microfísica do poder ou, digamos, uma concepção molecular do poder.
Digo então, muito naturalmente, que há em tal concepção uma denúncia das grandes entidades
molares, que a maioria das teorias dá como prontas em sua concepção de poder. Se mantivermos as
entidades molares como ponto de partida, escusado será dizer que pensaremos no poder em termos
de oposição. As grandes entidades são organizadas de acordo com oposições molares. Quais são essas
oposições? Se vocês retomarem nossos postulados, estão por toda parte: infraestruturas-
superestruturas, dominante-dominado, oposição de classes etc.
O que Foucault quer fazer? É evidente que a microfísica pretende ultrapassar as oposições
molares na direção das complementaridades moleculares. Mas isso nos causará um problema. Vejam,
essa é a parte mais difícil, o ponto que precisa receber atenção desde já. Trata-se de passar de uma
dimensão macroscópica para uma dimensão, em geral, microscópica. Trata-se de mudar do macro ao
micro: microfísica do poder.
Pois bem, qual é a diferença entre o macro e o micro? Obviamente, se fosse uma simples
miniaturização não haveria interesse. Se fosse questão dizer: “temos que pensar de um modo pequeno
o que costumávamos pensar grande”, não haveria interesse. Se consistisse em dizer que no interior
do Estado existam mil pequenos Estados, também nenhum interesse. A transição de macro para micro
não deve, portanto, ser miniaturização. Vejamos a página 132 de A vontade de saber, onde Foucault
burgueses a anatomia econômica das mesmas. Noutro texto, Thierry e Guizot são citados por Marx e Engels como
historiadores burgueses. Em Foucault, Thierry e Guizot seriam autores de um novo tipo de “saber histórico” posto “no
ponto de articulação entre o poder e o saber da monarquia administrativa” em luta contra a nobreza. Cf. FOUCAULT, M.
Em defesa da sociedade, pp. 114 sq. Cit., p. 114.
6
diz muito apressadamente: o micro não é uma diferença de tamanho.3 Portanto, trata-se de uma
diferença de natureza.
Considerem a seguinte proposição macrofísica: o poder pertence aos dominantes e se exerce
sobre os dominados. Tomem a proposição microfísica: poder é uma relação que passa pelo dominado
não menos do que pelo dominante. Eu digo, para que vocês entendam bem o problema, que, nas duas
proposições, dominante e dominado não podem ter o mesmo significado. Mesmo se emprego a
mesma palavra, os termos mudaram quando passei de macro para micro, da macrofísica para
microfísica, caso contrário, não faria sentido. Está ainda muito obscuro, talvez porque seja muito
abstrato. Entretanto é uma tarefa para nós. Acima de tudo, não devemos cair na armadilha da mera
miniaturização; não se trata apenas de enxamear, de multiplicar pequenos Estados. Deve haver uma
real diferença de natureza entre os domínios micro e macrofísico. Vemos isso particularmente no
nível do último postulado, o que omiti no último encontro, o postulado da legalidade.
Na maioria das teorias do poder, o poder é pensado em termos da lei, da lei como uma instância
molar. Daí a oposição molar correspondente: lei-ilegalismo. Assim como há uma oposição molar
dominante-dominado, há uma oposição molar, uma grande oposição, uma relação de exclusão entre
lei e ilegalismo. O fato de pensarmos o poder a partir da lei é, sem dúvida, sinal de que a lei é uma
excelente noção molar para pensar o poder.
Desde quando? Segundo Foucault, a lei seria justamente o ato fundamental da monarquia.4
Curiosamente, não é a república; a república apenas o confirmará. É a monarquia que introduz a
forma da lei. Mas como? Em sua reação contra o feudalismo. O rei se elevará, e será diferente do
suserano, na medida em reivindica o direito e a lei para si como forma do direito. De modo que a
República, com a revolução de 1789, poderá recriminar o rei e a monarquia por não haverem levado
a termo o programa da lei, mas manterá a ideia da lei e do Estado de direito. A ideia do Estado de
direito é monárquica antes de ser republicana e, nesse sentido, a república sucede à monarquia. É
3
FOUCAULT, M. A vontade de saber, p. 95. Foucault não se refere aos níveis “macro” e “micro” nos mesmos termos
de Deleuze (que usa, por exemplo “organização molar e multiplicidade molecular” em O anti-Édipo, II.5.9). Colocado
diante desses dois termos deleuzianos numa entrevista, Foucault se esquiva deles sem, entretanto, recusá-los. Cf.
FOUCAULT, M. “Entretien avec M. Foucault” [1977]. In: Dits et écrits v. II, pp. 151-153.
4
Cf. FOUCAULT, M. “Soberania e disciplina”. In: Microfísica do poder, p. 280 sq. Trata-se da aula de 14 de janeiro de
1976, do curso Em defesa da sociedade, onde Foucault afirma que, no que se refere às relações entre direito e poder, nas
sociedades ocidentais desde a Idade Média, o edifício jurídico formou-se ao redor da personagem régia, a pedido e em
proveito do rei. Quando esse edifício escapou do controle régio nos séculos seguintes, serão discutidos somente os limites
a tal direito, não sua natureza.
Nesse curso Foucault apresenta uma genealogia do embate em torno da consolidação jurídica do poder estatal, na qual a
nobreza mobiliza a seu favor discursos históricos e narrativas de origem para se contrapor ao “saber jurídico” do rei, tanto
histórico quanto fabricado pela administração real. Trata-se portanto de uma “peça estratégica” de saber da nobreza contra
o “mecanismo de saber-poder” real. Este trecho do curso ilustra muito bem a colocação de Deleuze do imbricar entre
saber e estratégias de poder. Cf. ibid. aula de 11 de fevereiro de 1976. Cit., p. 109.
Lembremos que apenas as duas primeiras aulas desse curso (7 e 14 de janeiro de 1976) eram conhecidas por Deleuze,
pois haviam sido publicadas na coletânea italiana Microfisica del potere em 1977. O restante do curso permaneceu inédito
até 2001.
7
próprio da monarquia europeia no século XVII, e depois da república, pensar no poder em termos de
direito e fundar a noção de Estado de direito. Portanto, a lei como instância molar é definida no nível
da macrofísica; de uma macrofísica como o que suprime ou proíbe o ilegalismo. Oposição lei-
ilegalismo.
Para Foucault, o que significa fazer uma microfísica do poder? Como sempre, é descobrir algo
sob a instância macroscópica e sob a oposição molar. Temos que descobrir algo. O que será? Uma
relação diferencial ou, se vocês preferirem, uma complementaridade molecular.
Ora, não é preciso dizer que, quando passamos da oposição molar à complementaridade
molecular, quando passo da macroentidade para a relação diferencial, não serão os mesmos termos,
ainda que sejam as mesmas palavras. Essa é a condição sob a qual a microfísica é bem-sucedida ou
não. Evitar a miniaturização. O que substituirá a grande oposição entre lei e ilegalismo? Foucault
substituirá uma complementaridade tipicamente molecular... é como se ele pressentisse o perigo, isto
é, ele usa a mesma palavra em dois significados às vezes no nível macro, às vezes no nível micro. Ele
introduzirá explicitamente outro nome: não mais ilegalismo, mas ilegalidade. Ele dirá que é preciso
substituir a grande oposição lei-ilegalismo por uma fina complementaridade, uma
microcomplementaridade lei-ilegalidade.5
A ilegalidade, um conceito que me parece muito novo, é assunto de um capítulo de Vigiar e
Punir6 muito interessante, no qual Foucault diz precisamente que, no nível microfísico, se vê bem
que a lei não se opõe ao ilegalismo. Longe de se opor ao ilegalismo, ela é como a resultante das
ilegalidades.7 Entendam, precisamente aqui, Foucault faz microfísica, porque se eu disser “a lei é o
resultado do ilegalismo em uma formação social”, alguém imediatamente poderá me objetar: “mas
isso não significa nada! A ilegalidade – mesmo se usarmos essa palavra estranha, ilegalidade em vez
de ilegalismo – já pressupõe a lei. Como a lei seria o resultado de algo que a supõe?” Bem, não. É
5
Deleuze usa, respectivamente, os termos ilegalité e illégalisme. O primeiro referindo-se à perspectiva molar, o segundo
à molecular. Traduzimos ilegalité por “ilegalismo” e illégalisme por ilegalidade para seguir a tradução brasileira do
segundo termo em Vigiar e punir.
6
FOUCAULT, M. “Ilegalidade e delinquência”. In: Vigiar e punir. Op. cit., p. 243.
7
“Deveríamos então supor que a prisão e de uma maneira geral, sem dúvida, os castigos, não se destinam a suprimir as
infrações, mas sobretudo a distingui-las, distribuí-las, utilizá-las; que visam não tanto a tornar dóceis os que estão prontos
a transgredir as leis, mas que tendem a organizar a transgressão das leis numa tática geral das sujeições. A penalidade
seria então uma maneira de gerir as ilegalidades. Em resumo, a penalidade não ‘reprimiria’ pura e simplesmente as
ilegalidades; ela as ‘diferenciaria’. [...] E se podemos falar de uma justiça não é só porque a própria lei ou a maneira de
aplica-la servem aos interesses de uma classe, é porque toda a gestão diferencial das ilegalidades por intermédio da
penalidade faz parte desse mecanismo de dominação. Os castigos legais devem ser recolocados numa estratégia global
das ilegalidades”. Ibid. p. 258, trad. mod. Como se vê, Foucault não afirma que a lei seja resultante das ilegalidades (como
Deleuze parece sugerir), mas que são um uso novo e estratégico do mecanismo legal pré-existente. Note-se também, a
diferenciação, o espalhamento das marcações no detalhe do cotidiano, nos fatos não exatamente ilegais, mas limítrofes,
tais como as revoltas, resistências, abstenções, recusas à obediência, associações e lutas populares indesejáveis. Por fim,
note-se que Foucault não abandona as categorias “macrofísicas” do poder (classe, Estado, lei), ele aponta a insuficiência
de tal abordagem para a compreensão das relações de poder no Ocidente.
8
verdade, o ilegalismo já supõe a lei no nível macrofísico. No nível microfísico, de maneira alguma.
Por quê? O que Foucault quer dizer? Bem, ele quer dizer que a ilegalidade não é um acidente contra
a lei. A ilegalidade não é de forma alguma um acidente. Se a lei fosse feita para proibir, seria ainda
assim curioso como ela fracassa nesse ponto. Essa é uma observação muito simples: bem, sim, é
verdade, se a lei fosse feita para proibir, sua história seria apenas a história de seu eterno fracasso, o
que causaria perplexidade. Isso nos dá a ideia de que, talvez, afinal, a lei não seja exatamente feita
para proibir. Entretanto, macrofisicamente, ela é sim feita para proibir; mas no micro, seria ela feita
para proibir? Então vejam: se eu digo “no macro, é feita para proibir, mas, no micro, não é para
proibir, mas para outra coisa”, então não é exatamente a mesma lei. Foi necessário mudar o termo ao
mudar de domínio.
O que isso quer dizer? Retomando a analogia com a física, é óbvio que um corpúsculo, ou
mesmo uma molécula, não é um corpo miniaturizado. É outro mundo, é outro elemento. Não são os
mesmos elementos, os mesmos tipos de termos em microfísica e em macrofísica. Se você pensa no
átomo como uma coisa pequena em miniatura, é a única maneira de não entendê-lo.
Então, de fato, a lei talvez não tenha sido feita especialmente para proibir. Para que ela teria
sido feita? Não para impedir esse ou aquele comportamento. Se fosse questão de prevenir crimes,
roubos, fraudes... Bem, acho que deveríamos encontrar outros meios. A lei nunca impediu nada.
Suponhamos, se ela não foi feita para impedir, para que teria sido feita? Para diferenciar as maneiras
de contorná-la. De certo modo, alguém poderia dizer que todos já sabem dessa colocação de Foucault.
Sim, a lei é inseparável da maneira de eludi-la, ela mesma nos indica como. E as maneiras de eludir
a lei não estão fora da lei, estão na lei. Vejam as leis sobre as sociedades comerciais. É formidável.
O que significa quando falamos da lei? De fato, a lei é uma ficção, mas uma boa ficção; talvez
uma ficção que remeta precisamente ao regime monárquico e republicano. Que se refere primeiro ao
regime monárquico e com mais razão ao regime republicano, o qual deduz a forma pura da lei. O
Contrato social de Rousseau, dirá: a lei vai do todo a todos. Ora, todos sabem que não é assim, não
há a lei, existem leis. E sempre há uma lei que me dá a possibilidade de eludir outra lei. A
multiplicidade de leis é ao mesmo tempo a maneira pela qual, longe de impedir certo comportamento,
diz em quais condições o comportamento é permitido. Se você é uma empresa: como não pagar suas
dívidas, sendo que a lei diz: pague as dívidas. Sendo uma empresa, saber como não pagar dívidas é a
infância da arte, um dos meios mais simples é pôr a empresa em liquidação judicial. Portanto, existe
todo um sistema de leis. O que está incluído na pluralidade de leis? É claro, muito menos uma questão
de proibir uma ação. “Não matarás”, sim, mas existe a legítima defesa, ela diz em quais condições eu
posso matar legalmente.
9
Bem. Tudo isso são grandes evidências, todo mundo conhece. Mas ninguém as usou como
Foucault. Quero dizer, as ideias filosóficas são sempre assim, se apoiam em grandes evidências para
depreender algo improvável ou inesperado...
Portanto, trata-se de diferenciar as maneiras de eludir a lei e não se pode defini-la senão em
nível microscópico, microfísico, micrológico. Ou seja, como uma gestão de ilegalidades, uma
distribuição de ilegalidades no campo social e, como Foucault diz, existem ilegalidades que são
toleradas. Toleradas como? Como compensação para as classes dominadas. Há ilegalidades que são
permitidas como privilégio da classe dominante. Existe toda uma gama de ilegalidades. Cada um sabe
o que é proibido e tolerado por lei. O que é tolerado? Simplesmente tolerado em tais e tais e tais
condições e à sombra de outra lei. Tanto é assim que a lei poderá ser definida somente em função das
ilegalidades que caracterizam um campo social. Ou seja, são as ilegalidades e a distribuição das
ilegalidades que mudam radicalmente de um campo social para outro. A lei é apenas a própria
distribuição.
Tomemos um exemplo: como explicar a oposição radical da região da Vendéia à Revolução
Francesa? Não é simplesmente porque a Vendéia era muito mais reacionária, mais devota que outras
regiões da França. Não é somente isso. A lei monárquica beneficiava os camponeses e, em particular,
os do Oeste, com certo número de privilégios, de exceções à lei que a Revolução deixou de conceder.
Em outras palavras, o ilegalismo tolerado pela monarquia deixa de ser tolerável pela república. Bom.
Foucault mostra muito bem como, do século XVII ao XVIII, a natureza do ilegalismo muda.
Consequentemente, a lei muda conforme a distribuição das ilegalidades em ilegalidades proibidas,
toleradas, admitidas etc. De fato, a ascensão de novas ilegalidades vem de quê? De mudanças na
natureza dos crimes, ou seja, mais e mais crimes contra a propriedade, ascensão do proletariado
urbano e politização, antes e durante a Revolução. Isso definirá todo tipo de novas ilegalidades e um
novo tipo de lei.
Do ponto de vista macrofísico, volto-me em direção a essa entidade molar que resulta em sua
expressão mais pura na formulação de Rousseau “a lei vai do todo a todos”. Essa é a lei pura, a forma
pura da lei: tu deves. Ao contrário, do ponto de vista microfísico, uma microfísica da lei: um ponto
de vista em que a lei não é mais separável, mas de quê? Não é mais separável de seus decretos de
aplicação, não é mais separável de seus casos de interpretação. Seus casos de interpretação são... Não
há lei que não suscite problemas de interpretação.
A interpretação da lei será chamada jurisprudência. De um ponto de vista macrofísico, talvez a
lei possa ser pensada independentemente da jurisprudência. Escusado dizer, do ponto de vista
microfísico, a lei é inseparável da jurisprudência. Dada uma lei, a quais casos se aplica? Por mais
10
forte que a lei diga o caso em que se aplica, você sempre encontrará casos para os quais a aplicação
da lei é um problema.
Dentro dessas margens de aplicação se dá a complementaridade entre lei e ilegalidade. Assim,
como uma lei não é nada sem jurisprudência, ou seja, a determinação dos casos de aplicação, ela não
é nada sem os decretos de aplicação, ou seja, a determinação das condições sob as quais... Vejam,
jurisprudência é a determinação dos casos em que a lei se aplica, os decretos são a determinação das
condições sob as quais se aplica. Agora, se vocês consideram a lei inseparável dessas condições e
desses casos, isto é, de sua administração e jurisprudência, verão que a grande oposição molar lei-
ilegalismo substitui uma lei de complementaridade molecular lei-ilegalidades. Não estamos falando
da mesma lei nos dois casos. Leiam o capítulo sobre as ilegalidades em Vigiar e Punir, onde
encontrarão todos os tipos de análises concretas. Então é isso... Bem, terminamos essa primeira parte
do poder; era apenas a discussão dos princípios [do poder]. Eu queria enfatizar a necessidade de uma
diferença de natureza entre microfísica e macrofísica.
*
Se estiver tudo bem, podemos passar para a segunda parte. Como vamos definir... Se poder é
relação – vimos isso, acabamos de ver –, se poder é fundamentalmente relação, que tipo de relação?
Bem, a resposta de Foucault é muito simples. A relação de poder é a relação de forças. Escreveremos
relação de poder no singular e relação de forças no plural. Poder é relação e relação de poder é
relação de forças. Novamente, poder é relação de forças é uma proposição ininteligível ou banal
demais sem especificar o poder em sua essência. Sua única essência é ser relação. Ou seja, o poder
não é um atributo. É um atributo [em nível] molar, [mas] é uma relação molecular. Então, o que
significa dizer “poder é relação de forças e toda relação de forças é poder”? Essa é a primeira questão.
Bem, já sinto que quando digo “o poder é relação de forças”, há algo que não digo e excluo, a saber:
poder não tem forma, e a relação de poder não é uma relação entre formas.
O poder não é uma forma. Existe de fato uma forma Estado. A forma-Estado. Mas, como vimos,
a microfísica do poder penetra na grande instância: o Estado. Em outras palavras, o poder é informal.
Não passa por uma forma e a relação de poder não é uma relação de formas. Isso nos interessa muito:
relação de forças significa algo diferente de uma relação de formas. Isso deve nos interessar muito
porque estamos procurando algo que difere do saber em natureza, e vocês se lembram de nossa análise
anterior do saber: ele é uma relação de formas. Felizmente o poder não é uma relação de formas e
não pode sê-lo, ele é uma relação de forças.
O que significa relação de forças? A relação de forças adquire significado somente se for
inerente à força ou se estiver em relação. De fato, é inerente à essência da força estar em relação com
outra força. Logo, a força não existe no singular. Não há força no singular. Toda força está em relação
11
com outra força. A força é basicamente o elemento de uma multiplicidade e não pode ser pensada
fora do múltiplo. Não existe força una. Também nesse sentido, a força não tem outro objeto ou sujeito
além da força. Isso não significa que a força seja seu próprio objeto e seu próprio sujeito, mas que a
força tem por objeto outra força ou, o que é o mesmo, uma força tem como sujeito outra força.
Bem, tudo isso parece tão simples, mas é tão, tão delicado: que a força só possa ser pensada no
elemento do múltiplo. Em outras palavras, a força já é uma multiplicidade. Força é relação de uma
força com outra. O pensamento da força sempre foi a única maneira de recusar o uno. Pensamento da
força é pensamento do múltiplo. Existe algo além da força que seja de uma natureza tal que esteja
fundamentalmente relacionada a outra coisa? Sem dúvida não. Mas sempre se pode procurar. Qual
foi a bela tentativa do antigo atomismo? A bela tentativa de Demócrito, de Epicuro, de Lucrécio foi
forjar o conceito de átomo para explicar uma multiplicidade fundamental. Ou seja: a própria ideia de
um único átomo é noção sem sentido, o átomo está fundamentalmente relacionado a outro átomo. O
que não podia ser pensado, independentemente de sua relação com outro, era o átomo. Qual era a
relação do átomo com o outro átomo? É sabido, é isso que os epicuristas e Lucrécio designavam como
a declinação do átomo. O átomo não cai no vazio verticalmente, cai obliquamente. O oblíquo é
precisamente o caminho no qual cada átomo encontra outros átomos, isto é, está relacionado com
outros átomos. E quem não vê que era maneira de emprestar força à matéria e que o atomismo era a
tentativa de localizar a força na matéria? De fato, se emprestava ao átomo o que pertence à força. O
que se relaciona com o outro, em sua própria essência e seguindo sua essência, é a força.
Passo muito rapidamente pelo tema. Nietzsche o levou até o fim. A filosofia da força em
Nietzsche é muito simples. Em certo sentido, ela consiste em dizer: o atomismo sempre foi a máscara
de um dinamismo de outra natureza, e a força é precisamente a instância que se relaciona em sua
essência com outra força. Noutras palavras, há uma pluralidade essencial da força que testemunha a
noção nietzschiana de distância. Ou seja, a força é inseparável da distância a outra força. E o que
Nietzsche chama de vontade?8 Tem-se que se acostumar com uma concepção tão estranha da vontade.
Mas talvez vocês possam pressentir que é uma concepção rica e profunda. Bem, se força está
essencialmente em relação com força, a vontade será o elemento diferencial das forças. A força está
relacionada com força, essencialmente, ela não pode ser pensada fora duma diferença de forças. A
distância é a diferença das forças. Essa distância, ou diferença de forças, é chamada de vontade. Aqui,
Nietzsche é cuidadoso com sua terminologia, não confunde força e vontade, faz a diferença de duas
forças. De que forma? A vontade poderia ser definida, em Nietzsche, como o elemento diferencial
pelo qual uma força se relaciona com outra força, seja para obedecer, seja para comandar. Os
8
Cf. FOUCAULT, M. “Nietzsche, a genealogia e a história”. In: Microfísica do poder, p. 86.
12
interessados nesse ponto podem ver Além do bem e do mal, §19.9 Nessa obra se encontra uma análise
muito curiosa da vontade.
Abro um parêntese muito curto. Algo deve lhes parecer evidente: como e por que Nietzsche
rompeu com Schopenhauer. Schopenhauer acreditava na unidade da vontade. Os argumentos e os
comentários de Nietzsche são muito bonitos, muito fortes quando ele afirma: assim que acreditamos
na unidade da vontade, estamos suprimindo a vontade. Por que suprimi-la? É a própria história de
Schopenhauer. Ele se eleva até a unidade da vontade através de todas as suas manifestações. Unidade
da vontade em quem comanda e quem obedece. Unidade da vontade no carrasco e na vítima. Mas se
há unidade da vontade através do executor e da vítima, a vontade é necessariamente levada a negar a
si mesmo e a se suprimir. De que forma? Sob a forma de piedade. A vontade do carrasco, quando
apreende a unidade de sua vontade com a da vítima, é necessariamente levado a se suprimir na
piedade. Esse será todo o movimento da filosofia da piedade em Schopenhauer e da supressão da
vontade no ascetismo. Nietzsche diz: “você só poderia cair na piedade e no ascetismo, já que pôs a
unidade da vontade. Só pode negar a vontade, pois colocou sua unidade através de todas as suas
manifestações”. Ou seja, só se pode entender o que significa “vontade” atentando à multiplicidade
irredutível de forças, de modo que a vontade nunca pode ser senão o elemento diferencial das forças
presentes. Logo, a vontade é relacionamento de uma força com outra força, seja para comandar, seja
para obedecer. Pois se obedece com a própria vontade tanto quanto se comanda com a própria
vontade. Por que digo tudo isso? Porque se vocês entenderem esse ponto, é muito simples, a
concepção nietzschiana de força e de vontade lhes parecerá mais clara. E sem dúvida lhes impedirá
de formular interpretações estúpidas, por exemplo, sobre Nietzsche e o fascismo.
Mas, além disso, vejam de que modo Foucault é nietzschiano. Se ele vai tão rapidamente em
sua teoria do poder nesse ponto específico, é porque pode estimar que Nietzsche disse o essencial, a
saber: em que sentido a força não é violência. O que é violência? Sem dúvida, a violência é
relacionada à força. Pode-se até dizer: a violência é o efeito da força sobre algo ou alguém. De certa
forma, equivale a dizer que há apenas violência molar. É o efeito da força em algo ou em alguém...
Mas não buscamos o efeito da força em algo ou em alguém, buscamos a relação da força com a força.
A violência não diz nada sobre a relação de força com força. Talvez possamos dizer: a força é
inseparável da violência, isso significa que a força é inseparável do efeito que tem sobre algo ou
alguém. Mas a relação de força com algo ou alguém, isto é, a relação de força com um corpo ou uma
alma, não é a mesma coisa que a relação de força com força. O que define a microfísica é essa relação.
O que define a macrofísica é o resultado, ou seja, a relação de forças com algo ou alguém. Em outras
9
Cf. DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia. Trad. Mariana T. Barbosa e Ovídio de Abreu Filho. São Paulo: n-1, 2018,
cap. 1.3, intitulado “Filosofia da vontade”.
13
palavras, força não pode ser definida pela violência. É uma força sobre uma força ou, se vocês
preferirem, uma ação sobre uma ação.10 A violência é uma ação sobre alguma coisa. Sobre alguma
coisa, o que isso quer dizer? Dizem que a violência é um ato que consiste em deformar. Ora, como
se pode conceber que a força sofra deformação, se ela não tem forma?
Foucault vai muito rápido nesses pontos, o único texto em que ele se explica é uma entrevista
reproduzida no livro de Dreyfus e Rabinow sobre Foucault. Na verdade, o texto é do próprio Foucault.
Aqui está, na página 313. Leio lentamente: “aquilo que define uma relação de poder” – ou seja, uma
relação de forças, hein?, posso também dizer: o que define uma relação de forças – “é um modo de
ação que não age direta e imediatamente sobre os outros, mas que age sobre a ação deles. Uma ação
sobre a ação, sobre ações eventuais ou atuais, futuras ou presentes”.11 Uma ação sobre a ação, que é
uma relação de forças ou de poder. “Uma relação de violência age sobre um corpo, sobre as coisas:
ela força, dobra, quebra, destrói”.12 Tudo isso supõe uma forma. “Ela fecha todas as possibilidades;
não tem, portanto, junto a si, somente a passividade. Uma relação de poder, ao contrário, se articula
sobre dois elementos que lhe são indispensáveis para ser exatamente uma relação de poder: que ‘o
outro’ (aquele sobre o qual ela se exerce) seja reconhecido e mantido até o fim como sujeito de ação;
e que se abra, diante da relação de poder, todo um campo de respostas, reações, efeitos, invenções
possíveis. O exercício do poder [...] pode acumular os mortos e abrigar-se atrás de todas as ameaças
imagináveis. Ele não é em si mesmo uma violência que poderia, às vezes, se esconder. [...] É um
conjunto de ações sobre ações possíveis [...]; ele incita, induz, desvia, facilita ou dificulta, amplia ou
limita, torna mais ou menos provável”.13
Estou interessado nesse último ponto, se me entendem, pois Foucault nos oferece uma primeira
lista do que poderíamos chamar de categorias de poder. Eu retomo: incitar, induzir, desviar, facilitar
ou dificultar, ampliar ou limitar, tornar mais ou menos provável; eis uma lista que parece um pouco
estranha. Como isso nos interessa? Tomemos o texto ao pé da letra, não temos escolha, é a enunciação
das relações de forças, a relação da força com a força. Foucault nos diz: cuidado, a relação da força
com a força não consiste em violência, consiste em incitar – uma força não pode causar violência a
outra força; por outro lado, pode incitar outra força –, induzir outra força, desviar outra força, facilitar
outra força, tornar mais ou menos prováveis outras forças ou o exercício de outras forças. Eis uma
10
Cf. supra, aula 1, nota 35.
11
FOUCAULT, M. “O sujeito e o poder”. In: Michel Foucault, uma trajetória filosófica, p. 287. Foucault escreveu esse
texto em inglês na forma de perguntas e respostas, mas ele não é propriamente uma entrevista. Dreyfus e Rabinow o
incorporaram como apêndice na 1ª ed. de seu livro Michel Foucault, uma trajetória filosófica. A 2ª edição desta obra em
1983 traz um novo apêndice: “Michel Foucault entrevistado por H. L. Dreyfus e P. Rabinow”. Cf. ibid., p. 297.
12
Loc. cit.
13
“[...] no limite, coage ou impede absolutamente, mas é sempre um modo de agir sobre um ou vários sujeitos ativos, e o
quanto eles agem ou são suscetíveis de agir”. Ibid., pp. 287-288. Trad. mod., grifo nosso.
14
lista de categorias de poder. Portanto, a relação de forças é uma ação sobre uma ação, 14 ou seja, é um
tipo de ação muito particular. Não é qualquer ação que pode se exercer sobre uma ação. Chamemos
“ação de poder” as ações que não se exercem sem se aplicarem sobre ações potenciais ou reais. Vocês
entendem? Temos então todo um grupo: relações de força – multiplicidade essencial da relação de
forças –, comandar e obedecer como caráter da vontade, elemento diferencial das forças em relação,
exclusão da violência e, portanto, a lista de categorias de poder, todos os casos de relações de forças.
Esta é primeira lista que Foucault nos propõe.
Sim, a relação da força com a força se apresenta na forma... humm, não “na forma de”, ela se
apresenta sob as espécies induzir, desviar, facilitar ou dificultar, tornar mais ou menos provável. Por
enquanto, suponho que entendemos parcialmente, não entendemos muito bem, mas... aqui, sintam
que estamos descobrindo que as categorias de poder são de natureza diferente do saber. Induzir,
incitar, desviar não são categorias do saber.
Em que Foucault é nietzschiano? Respondemos parcialmente: sua concepção da força é
rigorosamente nietzschiana. Mais ainda, se houvesse em Foucault uma teoria da vontade, nesse nível
ela seria absolutamente nietzschiana, isto é, consistiria em dizer: vontade é relacionar uma força a
outra força, para comandar ou obedecer. Relacionar uma força a outra força, seja para comandar, seja
para obedecer, é o que Foucault designará, por sua conta, ali, com um termo que não é nietzschiano:
uma situação estratégica complexa. É uma expressão bonita, “situação estratégica complexa”, pois
para Foucault não há vontade senão numa situação estratégica complexa. “Complexo” não significa
“complicado”, significa “múltiplo”. Foucault adora situações estratégicas complexas. Toda situação
estratégica é complexa. Só posso querer em uma situação estratégica complexa. O que é uma situação
estratégica? Avançamos, damos passos gigantes! O que é uma situação estratégica? Uma situação
estratégica é uma multiplicidade de forças. Qualquer multiplicidade de forças em relação, de acordo
com a distância ou a vontade, a vontade que as distribui como obediência e comando – tudo isso é
definido dentro de uma complexa situação estratégica.
Bem, isso nos abre um novo horizonte, foi preciso chegar até aqui. A estratégia do poder, o
poder é uma questão de estratégia; o poder é fundamentalmente estratégia. Chamamos estratégia, de
fato, o campo de uma multiplicidade de forças em relação, sendo sempre comandar ou obedecer.
Situação complexa. Irredutível à unidade. O erro de Schopenhauer foi reduzir [a relação] ao um e,
portanto, ele não podia senão fazer desaparecer a vontade na piedade.
14
Lembremos essa colocação fundamental de Foucault: “O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas, os
indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer esse poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo
inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão”. FOUCAULT, M. “Soberania e disciplina”. In:
Microfísica do poder, p. 284. Trata-se da aula de 14 de janeiro de 1976, do curso Em defesa da sociedade. Nossos grifos
sublinham o fato de que, para Foucault, não é possível pensar em repressão, absolutamente, uma vez que os corpos a que
se refere não são matéria inerte, mas indivíduos, sempre e também focos de poder, ao menos potencialmente.
15
Então... estratégia de poder... deixemo-nos levar pelas palavras, veremos o que podemos extrair
da oposição [da estratégia] com os estratos do saber. O saber é fundamentalmente estratificado, ou
seja, formado. O poder é estratégico. Ah é? É estratégico, o poder? Então aqui tenho que opor o
estratificado e o estratégico. O estratégico é o manejo [maniement] do estratificado. O saber é
estratificado, o poder é estratégico. Com efeito, não se pode conceber o microfísico estratificado, pois
os estratos são como aluviões, são resultantes de conjuntos, existem apenas estratos molares, não há
estrato molecular. O molecular é estratégico. Entre partículas existe uma estratégia, de uma partícula
a outra, de um elétron a outro há estratégia, não há formação estratificada... O poder é o não
estratificado. Teremos que repetir isso com frequência antes de entender, para compreender o que
Foucault quer dizer. Ele diz: o poder é o não estratificado, porque obviamente é o estratégico. Ou
seja, é o manejo de multiplicidades de forças, ao passo que os estratos são empilhamento de formas.
O poder não tem forma.
Interessa-me muito essa primeira lista de categorias de poder. É como se Foucault nos dissesse:
eis uma lista qualquer de categorias de poder. Ela importa na medida que nos impedirá de crer que a
força pode ser definida como violência. A força não se define nunca pela violência, mas por sua
relação diferencial com outras forças. E, novamente, nunca uma força comete violência a outra força.
Essas são coisas muito, muito simples, isso é nietzschiano muito puro, parece-me que esse é o
enraizamento de Foucault em Nietzsche; nesse ponto ele é nietzschiano.
Apesar de tudo, ainda pedimos algo mais convincente do que essa primeira lista. É óbvio que
Foucault a lança assim: incitar, induzir, desviar, facilitar ou dificultar, tornar mais ou menos provável.
Haveria no trabalho de Foucault uma segunda lista, outra lista de categorias de poder mais justificada,
melhor explicada? Sim, em Vigiar e punir (vocês devem seguir com muita atenção), no capítulo I da
Parte Três, páginas 137 a 172.15 Eu falei sobre isso e, portanto, posso retomar com rapidez suficiente.
Desta vez, estamos diante de uma lista que define as categorias de relações de forças, relações da
força com a força. Retomo aqui: “A arte das distribuições” [repartir dans l’espace], é o primeiro
grande título da categoria da força, à qual corresponde: “enclausurar, quadricular, localizar,
serializar”. São relações da força com a força. Observem que a relação da força com a força faz
intervir somente um terceiro: o tempo-espaço. Por quê? Porque a relação da força com a força se
produz segundo distâncias. Logo, a multiplicidade da força, a multiplicidade inseparável da força
constitui um espaço-tempo. O poder é a força relacionada com o espaço-tempo, não é relacionada
com um objeto ou com um ser. Então temos um primeiro grande tipo de categorias: repartir no espaço,
com as subcategorias correspondentes.
15
Cf. FOUCAULT, M. “Os corpos dóceis”. In: Vigar e punir, p. 131.
16
Segundo grande título: ordenar no tempo. Desta vez, as subcategorias serão: subdividir o tempo
(é necessária uma força para subdividir o tempo), programar o ato, decompor o gesto. Observem: é
sempre uma força que se exerce sobre outras forças. Particularmente, onde isso é feito? Ainda não
sabemos, vocês podem sentir que essa ordenação no tempo, essa ordem das forças no tempo, é feita
antes de tudo na oficina, na fábrica. Esse é o começo da divisão do trabalho.
Terceiro grande título importante na categoria de poder: compor no espaço-tempo. Qual é a
definição estrita da composição? Vocês se lembram que, na física elementar, fala-se da composição
das forças. Bem, o que isso quer dizer? O que é compor forças? Compor forças no espaço-tempo é
constituir uma força produtiva, cujo efeito deve ser superior à soma das forças elementares que a
compõem. Ora, liberando essas categorias de poder, Foucault se perguntará: o que acontece na escola,
na prisão, na oficina, no hospital? Ou seja, quais são as categorias de poder mobilizadas por esta ou
aquela instância, por este ou aquele corpo macrofísico? Mas, se considero as categorias microfísicas
de poder em si mesmas, em seu estado puro, direi apenas e só terei o direito de considerar forças (no
plural) e espaço-tempo. Não terei o direito de supor nenhuma forma – veremos isso mais tarde –,
nenhuma finalidade, nenhuma qualidade.
Devo definir tudo em termos de forças, sem sujeito nem objeto, porque o único sujeito da força
é a força, e o único objeto da força é a força. Portanto, posso definir apenas as categorias de poder
em termos de força e de espaço-tempo. Se disser mais uma palavra, já estarei fora das categorias de
poder. Então posso dizer: enclausurar, quadricular, localizar, serializar, porque isso são relações da
força com a força. Mas não posso dizer mais nada. Não posso acrescentar ainda “a escola”, porque a
escola é uma forma. A forma “escola”, a forma “Estado” etc., e não conheço nada sobre isso para o
momento. Conheço apenas os elementos de uma microfísica, as forças em relação e o espaço-tempo.
Uma vez dito que o espaço-tempo é a relação de forças, o espaço-tempo é a vontade.
Assim, compreendam que se eu fizer um retorno à nossa história dos postulados mais tarde,
vocês entenderão por que, em primeiro lugar, o poder não é essencialmente repressivo, isto é, não age
por meio da violência. Ele não é objeto de uma propriedade porque não tem forma; ele não é possuído,
ser possuído requer uma forma. Sempre se é possuído sob uma forma. Ele se exerce sem ser possuído
e, finalmente, é essencialmente relação e não atributo, uma vez que passa pelos dominados não menos
do que pelos dominantes, porque a relação de forças coloca precisamente em relação uma força que
obedece e uma força que comanda, ou várias forças etc.
Ora, se entendem isso – porque é cansativo –, passo para um segundo ponto que vai por si
próprio, mas com surpresa! Que surpresa deveria ser para vocês este segundo ponto! Se a força está
em uma relação fundamental com outra força... podemos começar de novo, aqui, é preciso não se
cansar. Se a força está em relação fundamental com outra força e só existe por isso, é necessário dizer
17
que toda força tem dois poderes e se define por eles. A força está em relação com outra força e não
existe independentemente dessa relação. Por conseguinte, toda força tem dois poderes: poder de afetar
outras forças, poder para ser afetado por outras forças. Vejam, aqui é como uma espécie de pura
dedução, também não há mais escolha. Se a força é inseparável de sua relação com outra força, ela
se apresenta sob o duplo (duplicidade) não forma... poder de afetar outra força, poder de ser afetado
por outra força. Uma força não é nada mais do que isso, seu poder de afetar outras forças e seu poder
de ser afetado por outras forças. Mas, meu Deus, meu Deus, digo para mim mesmo! Como chamar
isso senão: receptividade da força e espontaneidade da força. A força como poder de ser afetado por
outras forças é a receptividade da força. A força como poder de afetar outras forças é a espontaneidade
da força.
Pronto, vimos que espontaneidade e receptividade se aplicavam muito bem às duas formas de
saber. A luz seria como uma forma de receptividade, a linguagem seria como uma forma de
espontaneidade, segundo Foucault.16 Agora, vemos que espontaneidade e receptividade também se
aplicam às relações de forças, ao poder. Espontaneidade da força: poder de afetar os outros;
receptividade da força: poder de ser afetado por outros. Simplesmente sabemos, e estamos certos
antecipadamente, que as palavras receptividade e afetividade, receptividade e espontaneidade não
têm o mesmo sentido nos dois casos, porque, em um caso, trata-se de formas e, no outro, não se trata
são formas. Não se trata de formas, então trata-se do quê? É o momento de dizê-lo.
Se a relação de força com outras forças define um poder de afetar e um poder de ser afetado,
diremos que ela, de toda maneira, determina afetos. A relação de forças não passa por formas, passa
por afetos. Por enquanto, é preciso dizer que há dois tipos de afetos. Se voltarmos à terminologia de
Nietzsche, falaremos de afeto ativo quando estiver relacionado à força que afeta outra força.
Falaremos de afeto reativo quando estiver relacionado, o afeto, à força que é afetada.17
As relações de forças são relações diferenciais que determinam as singularidades. Bem, tudo
isso é muito claro. Por conseguinte, ao contrário do saber, que estabelece relações entre duas formas,
a força nunca pode estabelecer senão relações entre dois pontos, e a microfísica não conhece as
formas, mas simplesmente as relações diferenciais entre singularidades, entre pontos singulares. Aqui
16
Cf. DELEUZE, G. Michel Foucault: as formações históricas, aula de 19 de novembro de 1985.
17
Deleuze retoma aqui o seu Nietzsche e a filosofia, cap. 2.11: “[...] a vontade de poder manifesta-se como um poder de
ser afetado. Esse poder não é uma possibilidade abstrata, é preenchido e efetuado a cada instante pelas outras forças com
as quais está em relação. Não nos espantaremos com o duplo aspecto da vontade de poder: ela determina a relação das
forças entre si, do ponto de vista da gênese e da produção das forças, mas é determinada pelas forças em relação, do ponto
de vista de sua própria manifestação. Por isso a vontade de poder é sempre determinada ao mesmo tempo que determina,
qualificada ao mesmo tempo que qualifica. Em primeiro lugar, portanto, a vontade de poder manifesta-se como o poder
de ser afetado, como o poder determinado da força de ser ela própria afetada. É difícil, aqui, negar em Nietzsche uma
inspiração espinozista. Espinoza, numa teoria extremamente profunda, queria que a toda quantidade de força
correspondesse um poder de ser afetado”.
18
é um foco, um nó, um ponto de viragem etc. Tudo isso é a linguagem das forças. Isso deve esclarecê-
los um pouco. Induzir, suscitar, dificultar, facilitar etc.
Bom, nos resta a parte mais difícil. Poder de ser afetado, poder de afetar. Eu dizia: o poder de
ser afetado é necessariamente uma receptividade da força. O poder de afetar é necessariamente uma
espontaneidade de força. Agora, chego à terceira observação: equivale a dizer que a força tem uma
matéria que lhe é própria, que já é força; uma pura matéria.
O que é isso? É o poder de ser afetado. A matéria da força é seu poder de ser afetado. Ela tem
uma função. A função da força é seu poder de afetar outras forças. Bem, aqui temos que ter muito
cuidado, é necessário que vocês façam um esforço, pela última vez hoje, mas um esforço fundamental,
porque, vejam bem, aqui estamos tocando o essencial. Porque no saber... Vocês me sinalizem se
tiverem compreendido o suficiente..., descansem senão... vocês estão cansados? Preciso de toda a sua
atenção.
Então, aqui devemos ter muito cuidado. Por quê? Por que devem estar atentos e eu necessitar
de vossa inteligência? Porque voltamos ao saber tal qual ele é distribuído em estratos. Bem, como o
saber é distribuído em estratos, ele me apresenta matérias e funções, eu diria mesmo, apresenta-me
matérias visíveis e funções enunciáveis. Então é preciso ser muito, muito cuidadoso, pesar cada
palavra. Apenas, nos estratos, são matérias formadas e são funções formalizadas. Os estratos – antes
mesmo de compreendermos o que isso significa – são constituídos de matéria formada e de funções
formalizadas.
O que é uma matéria formada? É o que se chama uma substância. Por exemplo, diria que o
estudante é uma substância, é uma matéria formada. O prisioneiro é uma substância, isto é, uma
matéria formada. Uma matéria formada por qual forma? Bem, é uma matéria formada pela forma
“prisão”. O trabalhador é uma substância formada pela forma “oficina” ou “fábrica”.
Sobre os estratos, vocês têm apenas matérias formadas, nunca têm uma matéria que poderia
chamar de, seguindo a tradição escolástica ou mesmo aristotélica, uma matéria nua, uma matéria
completamente nua. De fato, tudo é estratificado, não temos matéria nua, apenas matérias, como se
dizia, revestidas. É uma bela terminologia que distingue a matéria nua e a matéria revestida na Idade
Média, não é?
Para retomar esses termos que são convenientes, eu diria: há apenas matérias formadas no nível
do saber. Há saber da matéria nua e, sobre os estratos, há muitas funções, mas funções formalizadas.
O que são funções formalizadas? São ações apreendidas em relação ao seu fim. Formar, formalizar
uma função é finalizá-la. Uma função formalizada é uma ação reportada aos seus fins, seus meios,
aos obstáculos que ela encontra etc.
19
Bem, digo uma coisa muito simples: acerca dos estratos, temos apenas... todas as funções
enunciáveis são formalizadas e finalizadas, todas as matérias visíveis são já formadas ou, se preferir,
organizadas. Se entenderem isso, entenderão tudo. Eis uma lista de categorias: educar, punir,
trabalhar, cuidar. Minha pergunta: são categorias de poder? Resposta: não. Quero dizer, suponho que
não. Por quê? Porque educar, punir, cuidar implicam matérias formadas e funções formalizadas.
Educam-se crianças para a escola. A criança na escola é uma matéria formada. Não é a mesma coisa
a criança na família. Na família, a criança é outra matéria formada. Não é a mesma coisa. Quando
criança, volto da escola, entro na minha família e, literalmente, mudo de forma; e, enquanto era sábio
e disciplinado na escola, na família me via cheio de energia e gritando. Ou o contrário, sou uma
matéria que passa de uma forma à outra. Assim que acabei a escola, realizei meu serviço militar. É
outra matéria formada, mudo de forma novamente. Tomo a forma: soldado, em um local específico
que é o quartel. Ok, tudo isso está bem? Vocês vão notar que, posso dizer, educar, cuidar, trabalhar,
punir implicam dois saberes e são inseparáveis do saber.18
Eu definiria o saber por meio da, e como a arte de tratar; é uma definição que não poderia dá-
la quando me ocupava do saber, porque vocês sentem que essa definição aparece em contraste com o
que é o poder; eu diria: o saber é a arte de manejar matérias formadas ou mesmo a arte de formar
matérias e formalizar funções. A instância que formaliza funções é o enunciado. A instância que
forma as matérias é a visibilidade.
Ora, no nível do poder é completamente outra coisa. Tomem a lista: por que Foucault não nos
disse, quando falou das “categorias de poder”, disse “bem, é induzir, suscitar etc”. Ele não diz
“educar, cuidar”, o que se poderia esperar? Ele não o diz por uma razão muito simples: o que é o
poder? O poder é a relação entre matérias não formadas, matérias nuas e funções não formalizadas.
Então, o que isso significa? Concretamente, quer dizer que se vocês querem definir uma categoria de
poder, pouco importam os objetos ou os seres aos quais ela se aplica. O objeto ou o ser é uma matéria
formada. Pouco importam à categoria de poder os objetos e os seres aos quais ela se aplica, pois a
categoria de poder em si mesma é a relação da força com outras forças e não com objetos e seres.
Se quiser definir uma categoria de poder, convém, portanto, que eu não considere se se trata de
estudantes, de soldados, de prisioneiros ou de trabalhadores. Isto é, não devo levar em conta formas
sociais ou qualificações sociais. A categoria de poder é transqualitativa. Ela atravessa qualidades,
retém apenas matéria não formada, não qualificada. Matéria não qualificada que pode ser tanto uma
criança quanto um soldado, um prisioneiro, um doente.
18
Cf. o diálogo entre Deleuze, Foucault e Guattari em “Arrachés par d’énergiques interventions à notre euphorique séjour
dans l’histoire, nous mettons laborieusement en chantier des ‘catégories logiques’”. In: Dits et écrits v. I, p. 1320, onde
Foucault diz: “a educação produz produtores, ela produz requisitantes e ao mesmo tempo ela normaliza, classifica, reparte,
impõe regras e indica o limite do patológico” (p. 1323).
20
Vocês percebem? A categoria de poder concerne a uma função, sim, mas uma função não
formalizada, então isso não pode ser educar, cuidar etc. São funções formalizadas que, como tais,
remetem aos saberes. De modo que: qual será a fórmula... Não me apresso, não sei se há outras
categorias de poder, mas qual será um exemplo privilegiado de categoria de poder?
Eu a anunciaria assim: impor uma tarefa qualquer a uma multiplicidade qualquer. Posso apenas
dizer: a uma multiplicidade humana qualquer. Trata-se de um campo social. Impor uma tarefa
qualquer a uma multiplicidade humana – vejam que não digo nada, nem sobre a qualidade da matéria,
são crianças ou soldados? Não sei, nada tenho a saber. Não digo nada sobre os objetivos e os meios
de ação que seriam para educar ou para outros fins. Considero a ação como não finalizada; em outras
palavras, a microfísica é uma física da ação abstrata. Impor uma tarefa qualquer a uma multiplicidade
humana qualquer: eis uma pura categoria de poder.
Vocês me dirão: mas é inseparável das categorias de saber. Obviamente, sempre soubemos,
mas não é isso que nos interessa. Sabemos bem que o poder e o saber formam um conjunto concreto.
O que nos interessa agora é definitivamente outra coisa: é a possibilidade de definir em abstrato – é
do latim, in abstracto – a categoria de poder como tal.
Então, isso será muito importante para nós: impor uma tarefa qualquer a uma multiplicidade
humana qualquer. Mais uma vez, coloquei entre parênteses os fins, os meios e as substâncias
(substância aluno, soldado etc.). Retive uma matéria nua, não qualificada, multiplicidade humana
qualquer e uma função não formalizada e não finalizada: impor uma tarefa qualquer. Essa é a relação
de força com a força no estado puro. Impor uma tarefa qualquer a uma multiplicidade qualquer. A
matéria da força é matéria nua, multiplicidade humana qualquer. A função da força é uma função não
formalizada: impor qualquer tarefa. Eu diria: o poder é a física da ação qualquer.
Desse modo, vocês devem entender um texto muito estranho ao qual atribuo grande
importância, Vigiar e punir. Na página 207, Foucault nos diz sobre o panóptico, esse sistema bastante
curioso de vigilância. “O panóptico não deve ser entendido como um edifício onírico”, um edifício
de sonhos; “ele é o diagrama de um mecanismo de poder reduzido à sua forma ideal”. Vocês
concordam em excluir a palavra “forma”? Foucault, não tendo motivos para aplicar a distinção que
acabei de sublinhar, emprega “forma” no sentido de outra coisa, outro aspecto... “é o diagrama de um
mecanismo de poder reduzido à sua forma ideal. Seu funcionamento, abstraído de todo obstáculo, de
toda resistência ou atrito, pode muito bem ser apresentado como um puro sistema arquitetural e
óptico”.19
Atenção, o panóptico pode ser representado como um sistema arquitetural e óptico. Eu destaco
dois pontos: “ele é, de fato, uma figura de tecnologia política que se pode e se deve destacar de todo
19
Cf. FOUCAULT, M. “O panoptismo”. In: Vigiar e punir, pp. 228-9.
21
uso específico”. Se há um texto que me dá razão, é esse. É uma figura... vejam o que ele quer dizer
ou o que ele diz exatamente. O que isso significa? Lembram-se do que é o panóptico? Lembrá-los-ei
brevemente: é uma organização aparentemente arquitetural que consiste em organizar o espaço, de
tal maneira que, do ponto de vista de um centro, possa tudo ver sem ser visto. Essa arquitetura será
realizada particularmente em prisões, onde, em função de uma torre central, pode se ver tudo, desde
células periféricas, células circulares, enquanto os prisioneiros colocados nessas células não veem.
Então, tudo ver sem ser visto, em relação aos seres que são vistos sem ver. Esse é o panóptico que,
etimologicamente, significa: o sistema de ver tudo.
Bem, digo que o panóptico têm três definições sucessivas, cada vez mais profundas. Ligado à
prisão, pode-se defini-lo como um espaço de isolamento onde se vê os presos. Nessa definição, o
panóptico está vinculado a uma matéria formada – os prisioneiros – e a uma função formalizada,
punir. Segunda definição: digo que o panóptico é o sistema em que se vê tudo sem ser visto. Não me
refiro mais à prisão e, na verdade, seria essa a ideia de Bentham, podendo ser adequada para tudo,
para todas as matérias visíveis. Essa ideia convém para todas as matérias visíveis, matérias formadas,
seja a escola, a fábrica, o quartel, a prisão, e serve em graus variados para tudo isso. O panóptico se
torna um modelo. Para retomar a expressão de Foucault – arquitetura –, defino-o como “sistema
arquitetural e óptico” que pode se realizar na escola ou outro. É um grau na abstração. Isso ainda não
é suficiente. Terceira definição. Foucault acaba de nos dizer: atenção, não é apenas um sistema
arquitetural e óptico, é um puro funcionamento de poder. Sob essa forma, o que será? O panóptico é
a organização do espaço-tempo, ou a circunscrição de um espaço-tempo, no qual impomos uma tarefa
qualquer a uma multiplicidade humana qualquer. Observem que, aqui, não há mais nenhuma
referência à visão, nem à visibilidade; pouco importa, dei um passo a mais na abstração. Função não
formalizada para uma matéria não formada.
É a isso que se reserva o nome de “diagrama”. O diagrama, de acordo com esse texto de
Foucault, que, infelizmente, emprega a palavra apenas uma vez – posso extrair dele pelo menos o que
Foucault chama “diagrama” –, é a relação de uma matéria não formada e de uma função não
formalizada; ou seja, é a exposição de uma ação qualquer, de uma ação abstrata. Impor uma tarefa
qualquer a uma multiplicidade qualquer. Se atribuo importância à palavra diagrama, embora
reconheça que ela aparece apenas uma vez em Foucault, posso então dar três definições do diagrama,
segundo ele, no ponto em que estamos. Três definições que eu poderia concluir: o diagrama é o poder.
Ah, o diagrama é o poder, mas isso nos fará... permitirá reclassificações.
Essas três definições são as seguintes. Eu diria: chama-se diagrama a exposição de uma relação
de forças ou de um conjunto de relações de forças, essa é a primeira definição de diagrama,
considerando tudo que vimos anteriormente, não pretendo repetir. Segunda definição de diagrama:
22
chama-se diagrama toda repartição de poder de afetar e poder de ser afetado, ou seja, toda emissão
de singularidades, e nesse sentido o diagrama vai de um ponto a outro, de um ponto qualquer a um
ponto qualquer. Esses pontos sendo determináveis como singularidades. Terceira definição: chama-
se diagrama a mistura, essa é uma palavra oceânica, perfeito. Chama-se diagrama, sim, a figura que
movimenta, a mistura de matéria não formada e de funções não formalizadas. Exercício prático: como
as três definições se complementam perfeitamente, isto é, como cada uma pode ser deduzida da
anterior.
Novamente, se vocês não entenderam esse ponto, começarei tudo de novo porque esse é o
essencial. Traço as consequências antes de pergunta-lhes, com paixão, com súplica, se vocês têm
certeza de que entenderam corretamente, porque talvez sejam as consequências, as pequenas
consequências terminológicas que vão favorecer sua compreensão.
Posso dizer que o diagrama se distingue de quê? Bem, o diagrama se distingue do arquivo.
Como isso se dá? Todo arquivo é um arquivo do saber. Todo diagrama é diagrama de poder. Bom,
quais são as diferenças fundamentais entre o diagrama e o arquivo? Bem, posso dizer que, em todo
caso, diagrama – arquivo, eu poderia exprimir essa distinção, essa diferença fundamental sob outros
termos.
Eu poderia dizer: estratégias-estratos. Todo diagrama é estratégico. Todo arquivo é
estratificado. Diria mais: é a distinção micro-macro, todo diagrama é microfísico ou diferencial, o
que equivale à mesma coisa, do nosso ponto de vista. Todo arquivo é macroscópico. Volto sempre a
dizer: todo diagrama é poder, todo arquivo é saber. Estratégias-estratos. Em outros termos, o poder,
mais uma vez, não passa por formas, ele diz respeito a matérias não formadas, funções não
formalizadas. Um dentre vocês, na semana passada, disse-me: mas por que não chamar isso de
“microestrutura”? Sim. Poder-se-ia chamá-lo de microestrutura, mas correndo um perigo. Se o
chamarmos de microestrutura, cabe a nós mostrar que, no nível da microfísica, há uma diferença de
natureza entre as microestruturas e as macroestruturas. Mas podemos chamá-lo de microestrutura se
colocarmos uma diferença de natureza entre o micro e o macro. Portanto, é, talvez, mais cômodo
renunciar à palavra estrutura e dizer que, de fato, na microfísica não há estruturas. Longe vão os dias
em que se representava um átomo como uma estrutura, com núcleo e elétrons. Não, não é mais isso.
Considera-se hoje um átomo como um campo de forças, ou seja, como uma atividade de
estruturação que atravessa todas as estruturas estáveis que lhe correspondem, com uma pluralidade
de estruturas eventualmente possíveis. Por exemplo, se se fala da tetravalência do carbono, há muito
tempo Bachelard mostrou que o dinamismo na química moderna teria substituído o estruturalismo
das valências, a dinâmica das ligações. Bom, a dinâmica das ligações e não a estrutura das valências,
e isso quer dizer algo muito preciso, que o átomo é inseparável de uma atividade estruturante; em
23
outras palavras, só se pode pensá-lo em um campo de forças. Por isso a palavra estruturas não se
impõe. Bem, isso é necessário que vocês compreendam.
Disso decorre o texto que comecei no início do ano, mas agora, como o reencontraremos várias
vezes... esse texto que, possivelmente, exprime melhor a paixão de Foucault, mas que talvez não seja
o único grande texto literário. Provavelmente, agora, somos capazes de voltar a ele e compreendê-lo
melhor. É um texto retirado de um grande romance de Herman Melville, Pierre ou les ambiguïtés.
Eu li e reli lentamente esse texto.20
Bem, voltaremos a isso periodicamente. Foucault tem paixão suficiente em todos os seus textos,
mas suas paixões fazem estranhamente eco com três grandes textos literários. Em Pierre ou les
ambiguïtés, um dos mais belos romances do mundo, Melville escreve: “ele não havia ainda lançado
sua linha no poço de sua infância para saber qual peixe estava lá escondido. Quem de fato pensaria
em procurar peixes em um poço? Certamente é no rio do mundo exterior que nadam a tenca e o
robalo. Havia ainda milhões e milhões de coisas que não tinham sido reveladas a Pierre. A velha
múmia está enterrada sob várias ataduras.” “É necessário tempo para desatar o rei egípcio. Porque
Pierre começava a desvendar a primeira camada superficial do mundo, ele imaginava em sua loucura
que tivesse atingido a matéria não formada”. Porque Pierre começava a penetrar o primeiro estrato
do mundo, ele imaginava em sua loucura que tivesse alcançado a matéria não estratificada. “Mas, por
mais longe que os geólogos descessem às profundezas da terra, encontrariam apenas estrato sobre
estrato, pois, até seu eixo, o mundo é apenas superfícies sobrepostas e estratos sobrepostos. À custa
de um imenso esforço, abrimos uma via subterrânea na pirâmide. À custa de horríveis tentativas,
chegamos à câmara central. Para nossa grande alegria, descobrimos o sarcófago; levantamos a tampa
e... não há ninguém. A alma do homem é um vazio enorme e aterrorizante.” Aqui, compreendam: se
a literatura tem um sentido e justifica a vida, é em função de textos assim. Não há muitos como esse.
Bem, em que esse texto concerne a Foucault? Começamos de novo. Diz respeito a Foucault
pessoalmente. Pouco importa se Foucault o conhecia – seguramente sim –, Foucault certamente
gostava de Melville, mas... Em que nós, leitores desse texto independentemente de Foucault, podemos
dizer que ele diz respeito a Foucault? Esse texto é como um aceno a Foucault. “A velha múmia está
enterrada sob várias ataduras. Leva-se tempo para desenrolar esse rei egípcio”: é o arquivo. “Por
mais longe que os geólogos descessem às profundezas da terra, encontrariam apenas estrato sobre
estrato”: encontra-se apenas formação histórica sobre formação histórica, apenas estrato sobre estrato,
ataduras sobre ataduras, e essa situação do arquivo ou do arqueólogo – Melville diz “geólogo”, há
20
Deleuze já havia tratado dessa parte da obra de Melville numa aula anterior. Cf. DELEUZE, G. Michel Foucault: as
formações históricas, aula de 29 de outubro de 1985.
24
pouca diferença – o geólogo-arqueólogo vai de estrato em estrato. Até seu eixo, o mundo é apenas
superfícies sobrepostas.
Simplesmente, agora, não vamos de estrato em estrato sem também sermos levados por dois
movimentos. Esboço esses dois movimentos. Um movimento para afundar, mergulhar mais profundo
do que todo estrato, atingir um centro da Terra. Lá, neste tipo de geleia que há no centro da Terra.
Bem, vocês sabem que no centro da Terra existe uma espécie de cola e seria preciso ir até lá,
até esse não estratificado; o não estratificado do dentro. Aqui vamos nós... à força de desfazer as
ataduras... o que isso quer dizer em relação a Foucault? Mergulhar, mas como mergulhar? Vocês se
lembram que os estratos são divididos por uma fissura central, a grande fissura que divide, por um
lado, a luz e, por outro, a linguagem. Os estratos são partidos. Tenho apenas que me afundar no entre-
dois [l’entre-deux]. Entre a luz e a linguagem, nessa espécie de fissura, o poço. Quem pensaria em
procurar um peixe no poço? Bem, estou procurando um peixe no poço. Mergulho na fissura entre as
duas metades de estratos na esperança de encontrar o quê? A câmara central que as superfícies da
pirâmide escondem. As superfícies da pirâmide são os estratos. Desço na direção do fundo do poço à
procura da câmara central.
Foucault não cessa, desde o início e à sua maneira, de procurar a câmara central, mas, durante
muito tempo, tateando penosamente. Nada foi fácil para Foucault, vocês sabem. Horríveis tentativas,
indo de estrato em estrato. Não se tratava da teoria nem da história quando ele falava sobre o hospital
geral no século XVII, mas dos estratos que ele atravessava. Ou da prisão nos séculos XVIII e XIX...
Bem, ele procura a câmara central. Durante muito tempo, ele levanta a tampa, bate à porta da câmara
central e o que encontra? O vazio. “A alma do homem é um vazio imenso e assustador”. Não há
câmara central, há apenas a fissura que continua e cresce.
Muito mais tarde, Foucault mudará de opinião. Dirá a si mesmo que talvez exista algo na câmara
central, tão melhor tão mais fácil, porquanto algo que se coloca nela. Que, na câmara central, há algo:
sim, o que nós colocamos nela. Essa será a descoberta de seus últimos livros, havia algo na câmara
central. Ou seja, ainda não temos os meios para compreendê-lo... Mas, ao mesmo tempo que esse
movimento passa pelo vazio, deixa conhecer eventualmente que há, possivelmente, algo na câmara
vazia, que houve outro movimento. Nesse caso, não é mais mergulhar para buscar um dentro não
estratificado, mas sair dos estratos para descobrir um fora não estratificado. É a isso que Melville faz
alusão, na qual também há dois aspectos. Afundar-se nos estratos, em seu interior, e sair para fora
dos estratos. Quando Melville diz: “Certamente a tenca e o robalo dourado nadam no rio do mundo
exterior”. Observem que no rio do mundo exterior, que é um oceano, não nadam somente a tenca e o
robalo dourado, mas também nadam a terrível Moby Dick, a baleia branca e... Bom, sair dos estratos
25
para atingir a substância não estratificada. É o quê? Estamos mais seguros nós mesmos, temos mais
certeza de nós mesmos aqui.
Como ainda não sabemos a história da câmara central, ainda não temos meios de saber o que
ela seria para Foucault, poderemos fazer isso apenas progredindo, sendo somente capazes de ver as
linhas enquanto progredimos, mas, agora, temos pelo menos uma ideia sobre o exterior dos estratos.
Sim, o exterior dos estratos é o diagrama oceânico que não cessa de movimentar as relações de forças.
Esse exterior dos estratos é o elemento não estratificado, é o elemento estratégico global. Estratégia
global no sentido de que não são apenas os homens que têm uma estratégia, as coisas também têm
uma estratégia. Não importa quais coisas: partículas, elétrons, tudo isso, todos os campos de força. O
que define uma estratégia é um campo de forças, seja ele humano ou não. Então, eis os três
movimentos de Foucault: ir de estrato em estrato por durações bem atribuídas, delimitadas; mergulhar
eventualmente na fissura entre os estratos, à procura de uma câmara central, com tudo o que isso traz
de desespero: nada há na sala central; sair dos estratos para atingir o elemento propriamente oceânico,
não terrestre, o elemento não estratificado, estratégico.
É verdade que toda estratégia é oceânica. Vejam [Paul] Virilio. Então, é isso. Vocês
compreendem? Pedia-se dois eixos: saber-poder. Eis que, e não é a primeira vez em nossa análise,
temos um número a mais, temos três. Existe a história da câmara que deixamos de lado por enquanto,
mas recaímos em nossos dois eixos, saber-poder; e diferença de natureza entre o poder e seu diagrama,
por um lado, e o saber e seus arquivos, por outro. Não há arquivo do mar, há apenas arquivos
portuários. O poder é do mar. Bem, lanço-me. O que é isso? É molecular. A água é molecular. Então,
daí o meu apelo: é necessário que ela seja límpida. Se não estiver clara, começarei tudo de novo. Não
me importa. Se estiver claro... bem, vou continuar um pouco, mas talvez tenhamos o suficiente. Sem
problemas? Ainda me surpreende porque é muito difícil tudo isso. Ainda tenho uma suspeita... Bom.
Admitamos. Vocês sempre vão me surpreender...
Passamos por listas de exemplos, o primeiro exemplo tomamos emprestado da entrevista de
Foucault: induzir, suscitar etc. Seriam exemplos um pouco como esse, não situados. A segunda série
de exemplos mais sérios foi definida em função do espaço-tempo: repartir no espaço, ordenar tempo,
compor o espaço-tempo. Vejam que isso estava correto, elas são definições de categorias de poder,
por quê? Porque não levei em conta as formas, nem no nível das matérias, não levei em conta as
matérias formadas, nem as funções formalizadas. Considerei apenas forças e o espaço-tempo.
Eu disse: organizar, mas por que organizar? Serializar, mas por que serializar? Onde? Na escola
ou na oficina? Eu não o disse, afinal isso fazia parte do diagrama. Além disso, quando tentei dar uma
definição ainda mais geral, disse: impor uma tarefa qualquer a multiplicidade qualquer.
Compreendem? A dificuldade é essa: é necessário mesmo assim que meu diagrama seja variado. Ora,
26
como conciliar a variedade e a abstração? Por que é uma física de ação abstrata, como ela pode ser
variada?
A resposta é relativamente simples: a variação não pode vir de nenhuma forma, logo a variação
só pode vir do espaço e do tempo. É a maneira como a ação abstrata será no espaço-tempo abstrato
que poderá variar as figuras do diagrama. De modo que eu conceba que, em um diagrama, há sempre
várias figuras, isto é, várias relações de forças, várias relações de poder.
É por isso que A vontade de saber opera um progresso importante, quanto a esse problema do
detalhe, em relação a Vigiar e punir, pois esta obra, em minha opinião, estuda apenas um tipo de ação
abstrata: impor uma tarefa qualquer a uma multiplicidade humana qualquer, em qual espaço-tempo?
Em um espaço-tempo limitado, determinado, fechado, implicando que a multiplicidade seja pouco
numerosa. Com tudo isso, permaneço no abstrato e posso completar: impor uma tarefa qualquer a
uma multiplicidade humana qualquer, com a condição de que seja em um espaço-tempo fechado e
para uma multiplicidade pouco numerosa. Essa seria minha categoria de poder.
Vocês se lembram, vimos no primeiro trimestre, que A vontade de saber introduz uma segunda
ação abstrata: gerir a vida em uma multiplicidade numerosa num espaço aberto. Na verdade, é um
outro tipo de ação abstrata. No entanto, Vigiar e punir não considera esse outro tipo de ação abstrata,
é A vontade de saber que a acrescenta. Foucault nos dirá que há uma anatomia política, primeiro
aspecto, mas há também uma biopolítica: gerir a vida em multiplicidades numerosas e espaços
abertos. E as sociedades disciplinares se definem ou, pelo menos, o poder nas sociedades disciplinares
– segundo Foucault, desde aproximadamente meados do século XVIII – se define por estes dois,
chamá-los-ia de, traços diagramáticos; por esses dois traços diagramáticos: impor uma tarefa qualquer
a uma multiplicidade pouco numerosa em um espaço-tempo fechado; gerir a vida em uma
multiplicidade numerosa e um espaço aberto, controlar a vida biopolítica das populações. Em um
caso, a multiplicidade é o número daqueles que são reunidos em um espaço fechado; no outro, é uma
população que se distribui num espaço aberto ou num grande espaço, em todo caso. Aqui, eu diria:
por isso, define-se o diagrama por cujo nome poderemos chamá-lo de diagrama disciplinar ou
diagrama de poder das sociedades disciplinares.
De fato, são duas maneiras de ser no espaço-tempo muito diferentes uma da outra. Seria muito
interessante descobrir quais são as diferenças entre os dois espaço-tempos, o espaço aberto das
multiplicidades numerosas e o espaço fechado das multiplicidades pouco numerosas. Isso porque
poderíamos dar sentido preciso às palavras que Foucault parecia empregar vagamente. “Tornar
provável” – quando Foucault dá isso como um exemplo de relação de forças –, a biopolítica não deixa
de torná-la provável, ela pretende tornar prováveis aumentos de natalidade, por exemplo; pretende
vigiar, é uma gestão.
27
A biopolítica implica uma gestão de fenômenos probabilísticos, os nascimentos, as mortes, os
casamentos etc. Tornar provável, por exemplo, um aumento de casamentos é dar-lhes incentivos.
Hein? Pois nossos governantes, em sua sabedoria, vêm até aqui. Não, não em sua sabedoria... enfim...
delicado isso. Bom. Em um caso se poderia... bem, pouco importa. Poderia se fazer um estudo
comparativo dos dois espaços, o espaço de multiplicidades numerosas e o espaço de multiplicidades
pouco numerosas. Na minha opinião, são dois espaços que diferem em natureza, dois espaços-tempos
que diferem em natureza. Penso em uma distinção de Boulez que Foucault conhecia bem.21
Então, isso é um parêntese. Ele [Boulez] distingue para a música um espaço que ele chama de
espaço estriado [strié] e um espaço que ele chama de espaço liso [lisse]. O espaço estriado, ele diz, é
um espaço que é preciso contar para ocupá-lo; é um espaço que se define por grandeza e medida. Na
música, o que ele é? É a pulsão, uma unidade de base, e é o tempo, um certo número de unidades.
Vejam, a pulsão e o tempo definem um espaço estriado. O espaço estriado, sua ocupação é uma
questão de velocidade ou de lentidão; ele é percorrido por velocidades e lentidões. Há sempre um
índice de velocidade no espaço estriado e isso é muito importante para a música.
O espaço liso não é isso. É um espaço aberto que não tem unidade de medida, de tempo ou de
ritmo. Boulez o chamará de espaço-tempo não pulsado.22 Não há índice de velocidade, nem de
medida, mas há um índice de ocupação. Não que não haja números. Há um número ou números no
espaço liso; isso é muito importante, mas, no espaço estriado, os números existem e estão
subordinados a medidas. No espaço liso, pelo contrário, os números medem grandezas,
comprimentos. No espaço liso, musicalmente – vemos isso na música moderna – temos muitos
espaços lisos. Messiaen cria espaços lisos. É um espaço no qual se repartem os fenômenos de
probabilidade. Vejam, é um índice de densidade ou raridade. Não é um índice de velocidade. Para
Boulez, é um índice de ocupação, não de velocidade. O espaço liso é mais ou menos ocupado, mas,
de qualquer maneira, é ocupado sem contar, ou seja, sem medida. O número, aqui, é o que mede a
probabilidade de eventos surgirem no espaço-tempo, é um espaço de probabilidade.
É o espaço – volto a Foucault – da biopolítica. Eu diria ainda que o espaço aberto é um espaço
de tipo liso. Um espaço que comporta graus de densidade e de raridade, densidade de população,
densidade e raridade de casamento etc. É um espaço que se define por índices de densidade ou de
raridade, muito diferente do outro: um espaço mensurável, definido por índices de velocidade. Diria
ainda mais: em um caso, tem-se o espaço estriado das multiplicidades pouco numerosas com espaço-
tempo bem determinado, estriado. No outro, tem-se espaço-tempo liso para multiplicidades
numerosas que se repartem nele. Num caso, você distribui o espaço em elementos dados. No outro,
21
Cf. FOUCAULT, M. “Pierre Boulez, l’écran traversé” [1982]. In: Dits et écrits v. II, p. 1038 e “Michel Foucault/Pierre
Boulez. La musique contemporaine et le public [1983]”. In: ibid., p. 333.
22
Cf. BOULEZ, P. Penser la musique aujourd'hui [1963].
28
você distribui elementos em um espaço aberto. Haveria todo um jogo de natureza entre os dois tipos
de espaço. Bem, mas isso seria dizer: são dois traços diagramáticos diferentes. Entretanto, uma
pequena dificuldade nova, mas vamos parar por que... mas isso não é mais do que pequenas
dificuldades de nada.
Muitas vezes, tem-se a impressão de que Foucault... por um lado, ele só usa a palavra diagrama
uma vez. Mas enfim é assim, é isso; por outro, há a coisa em toda parte, parece-me, mas se tem a
impressão de que esse estatuto das relações de poder ou das relações de força, tais como o diagrama
as exprime, é reservado às nossas sociedades modernas, a saber, sociedades disciplinares. Portanto, a
questão é saber se essa remissão a um diagrama de poder é especial para nossas sociedades modernas
ou se ela convém a toda sociedade? Nossas sociedades de disciplina se formaram a partir de e contra
as sociedades que, Comtesse recorda muito bem, Foucault chamou de soberania. Bem, das duas
coisas, uma: ou, nas sociedades de soberania, deve-se dizer que não há diagrama porque o soberano
o supre, ou então deve-se dizer que, nelas, há perfeitamente um diagrama diferente do disciplinar, há
um diagrama de soberania.
Aqui é preciso escolher, uma vez que Foucault não nos dá uma resposta e não coloca esse
problema. Nós não hesitamos muito e podemos dizer: evidentemente toda formação social remete a
um diagrama de poder. Simplesmente, não é o mesmo e nada tem de surpreendente, porque uma das
características fundamentais do diagrama é seu caráter fluente e flutuante. O diagrama é sempre
instável. Por definição, as relações de forças são instáveis, nunca há equilíbrio de relações de forças.
O que está em equilíbrio são os estratos; estes, sim, estão em equilíbrio. Nas relações de forças, a
estratégia nunca está em equilíbrio. O diagrama é fundamentalmente instável, por isso é óbvio que
ele não está reservado às nossas sociedades. Simplesmente, o diagrama não cessa de atravessar
mutações. Ele é fundamentalmente mutante e Foucault o sugerirá, verdadeiramente, por extenso
várias vezes, falando de um lugar de mutação; veremos isso mais tarde.
Indico até aqui que, de fato, o diagrama será completamente diferente. Qual será o diagrama
das sociedades de soberania? Procuramos aqui, em contrapartida, para ir mais rápido, ponto por
ponto. Como vimos, qual é o primeiro traço diagramático da disciplina? Construir uma força
produtiva maior do que as forças componentes, isto é, combinar as forças, compô-las; isso é um
diagrama de disciplina: dividir o trabalho para aumentar o desempenho, por exemplo. Bem, diagrama
de soberania: não será mais isso.
Ação sobre a ação, qual é a ação sobre a ação em uma formação de soberania? É extrair. Uma
força que extrai [prélève] de uma outra força é uma ação sobre a ação, não menos do que no caso da
disciplina, mas isso é uma ação de soberania, uma economia de extração, um diagrama de extração e
não mais de composição de forças. Uma força que extrai de outras forças é o diagrama da soberania.
29
Por exemplo, ela extrairá do produto na forma de impostos, da produção na forma das tarefas. Em
toda parte, extração ao invés de composição. Esse seria o primeiro traço diagramático das sociedades
de soberania, do diagrama de soberania. Outro traço: não se trata de gerir a vida, que seria o outro
traço da disciplina, mas de decidir sobre a morte. Uma força que decide sobre a morte, ao invés de
controlar a vida – isso também implica um espaço-tempo completamente diferente –, é também um
traço diagramático das sociedades de soberania.
Segunda observação. Portanto, avanço em minha resposta: sim, as sociedades de soberania
também se referem a um diagrama. O diagrama não é de forma alguma algo próprio das sociedades
disciplinares. O diagrama é tão instável que, finalmente, está em perpétua mutação, em um estado de
transformação perpétua. Por isso, ele nunca é, não pode ser reservado a uma formação. Praticamente,
é necessário dizer: ele é sempre intermediário entre duas formações. O diagrama é sempre
intermediário, instável e, portanto, intermediário entre duas formações sociais. Por conseguinte, ele
não é estratificado; é sempre interestático; entre dois estratos. Foucault dá um exemplo explícito
disso, em Vigiar e punir, p. 219, Napoleão.23 Há um diagrama napoleônico que é tipicamente
intermediário entre a antiga soberania e a disciplina nascente; um diagrama que é ao mesmo tempo
soberania e disciplina. Além disso, foi Napoleão quem inventou o diagrama disciplinar.
Terceira pequena observação. Isso são exercícios de devaneio... Hoje, ainda estamos sob um
diagrama disciplinar? Por exemplo, pode-se dizer que, de acordo com os defensores do pós-moderno,
isso equivaleria a afirmar que a informática e as disciplinas afins mudaram; elas representam uma
mutação do diagrama e nos fazem passar a um outro tipo de sociedade que não é mais disciplinar,
embora ela seja não menos cruel, não menos dura, mas cujas relações de forças não passam mais pelo
diagrama disciplinar.
Reflitam com cuidado... Isso me parece bem interessante. Bom, é necessário ver se os métodos
atuais de controle ainda tomam emprestado o antigo modelo de disciplina ou se tomam emprestado
novos modelos, e quais seriam eles? Além disso, última observação, igualmente insignificante.
Arrisquemo-nos em outro sentido, se vocês lembrarem reagrupo isto aqui, a saber, há um diagrama
correspondente às sociedades ditas primitivas. Novamente, esse problema que não é absolutamente
abordado por Foucault, mas queria dizê-lo, pela última vez, se vocês considerarem o que se chama
de sociedades primitivas; há um diagrama que é irredutível a uma estrutura molar.
Existe um diagrama molecular que é o quê? Que é constituído pelas relações de forças nessas
sociedades, e as relações de forças são a rede de alianças que não se deixa... na medida em que essa
rede de alianças forma uma microfísica das sociedades primitivas, na medida em que não se deixa
deduzir das linhas de filiação. As alianças entre duas linhas de filiação não se deixam deduzir dessas
23
Cf. FOUCAULT, M. “O panoptismo”. In: Vigiar e punir, p. 240.
30
mesmas linhas, mobilizando uma dimensão diferente, uma dimensão transversal por oposição... por
distinção com as linhas verticais de filiação. E mais, posso dizer que uma rede de alianças nas
sociedades primitivas realmente constitui a microestrutura, ou melhor, a estratégia dessas sociedades.
Enquanto suas linhas de filiação constituem sua estrutura de parentesco. Mas você nunca deduzirá da
estrutura de parentesco as redes de alianças. Ora, será um acaso se as relações de forças passarem
pela rede de alianças?
Agora, então temos um conjunto... reúno... ah, sim, último ponto. Diagramas, em última análise
é necessário dizer, creio, se não for um contrassenso para com o pensamento de Foucault, há quantos
vocês quiserem. Tudo depende de onde vocês fazem passar os estratos. De qualquer forma, há
diagramas desde que haja uma estratégia nova. Por exemplo, em entrevistas, especialmente no final
de sua vida, Foucault insiste no que chama de importância do poder pastoral, dizendo-nos que é um
poder muito curioso porque foi inventado.
Então, aqui também há uma relação de forças, mas inventada, uma nova relação de forças que
aparece com a Igreja Católica. O poder pastoral. “Nós os pastores!”. O modelo seria platônico, dado
que não seria a primeira vez que o cristianismo toma emprestado o grande texto de Platão sobre poder
pastoral: “O político”.24 Quando o político é confrontado com aquele que pastoreia ou apascenta as
ovelhas, o rebanho. Pastorear um rebanho: ah... bem, aqui está um traço diagramático. Pastorear um
rebanho qualquer, sejam vacas, ovelhas ou homens: esse é um belo diagrama. E eis o que nos dizem:
homens, vocês são o rebanho, o rebanho do bom Deus, portanto, o pastor do rebanho exerce sobre
vocês um poder natural, ou seja, o homem de Deus, ou o padre.
A questão de Nietzsche “qual novo poder o padre inventa?”, Foucault a responde: ele inventa
o poder pastoral. Resposta que Nietzsche não previu, pois ele dá outra resposta. O padre inventaria
essa coisa extraordinária: o poder pastoral. O que há de extraordinário no poder pastoral? Mas pensem
sobre isso. Rebanho, rebanho... de acordo. Mas é um poder individualizante. O que é próprio do
pastor? Isso ele não considera. O homem que conta é o dos espaços estriados. Foi necessário esperar
o século XVIII para que o poder passasse pelo cálculo e pela medida. Não, o pastor, ele não conta.
No entanto, o que ele faz? Apenas evita que sua apreciação quantitativa do rebanho lhe permita
individualizar seus súditos. Se, no rebanho de ovelhas, a Biquette se perde, ele a verá à primeira vista;
24
Na aula de 15 de fevereiro de 1978 de Segurança, território, população, Foucault afirma que a história do pastorado
no Ocidente como modelo de governo dos homens é indissociável do cristianismo. Em sua leitura de Platão, ele afirma
que o governante não é pastor. Por isso, Foucault atenta para a necessidade de uma história geral do pastorado, levando
em conta o problema das relações entre o poder político e o poder pastoral no Ocidente. Cf. FOUCAULT, M. Segurança,
território, população, pp. 181-216. Na conferência “La philosophie analytique de la politique” (Dits et écrits v. II),
Foucault afirma que “esse poder é um poder de origem religiosa, é aquele que pretende conduzir e dirigir os homens ao
longo de toda a sua vida e em cada uma das circunstâncias dessa vida, um poder que consiste em assumir a
responsabilidade pela existência dos homens em seu detalhe e em seu desenvolvimento desde seu nascimento até sua
morte, e isso para lhes impor certa maneira de se comportar, para sua salvação. É o que se poderia chamar o poder
pastoral”. (p. 548)
31
se a vaca Blanchette se perde do rebanho de vacas, ele a perceberá à primeira vista e dirá: a raposa a
comeu.
Em outras palavras, o poder pastoral é um poder que se exerce sobre uma multiplicidade
assimilada a um rebanho... vejam, é um traço diagramático muito, muito original. Ele não se reduz
nem às multiplicidades poucas numerosas de que falei, nem às multiplicidades numerosas anteriores,
é ainda outra coisa. Assimilado a um rebanho, no interior do qual o poder produz individualizações,
ou seja, é um poder do detalhe. A saber, a Blanchette é bem penteada etc., um poder do detalhe, do
cuidado, do cuidado cotidiano.
Notem que na mesma época o soberano não se importa com o cuidado diário de seus súditos!
O que isso lhe importa? O que ele pede é um confisco. Ele pede apenas que seus súditos sejam
saudáveis o suficiente para que haja algo a lhes subtrair. Mas o fato de que eles estejam bem
penteados, com as unhas cortadas, nada disso interessa ao soberano. O pastor é o contrário. É
necessário que, em sua apreciação individual de cada membro do rebanho, o chifre da vaca não
chegue aos olhos, que ele seja lixado a tempo. Pois é uma imagem abominável, não? Mas o que você
quer que a vaca faça? Ela tem apenas que esperar pela morte mais horrível. Se o pastor não chega...
não lima o chifre. Ou quantas, quantas ovelhas morreram por não conseguirem se reerguer, já que
essas bestas estúpidas não sabem se pôr de pé!
Então, se quiserem matar uma ovelha, cheguem a passos de lobo, literalmente “à maneira de
um lobo”, por trás, façam-na sentir medo, ela vacila, essa cretina se encontra de costas e vocês sabem
que ela é incapaz de se levantar. Então ela morre se o pastor não vier, ela permanece lá até morrer de
fome se o pastor não vier pô-la de pé. As outras ovelhas não cuidam da primeira ovelha e não tentam
colocá-la de pé. Do mesmo modo os cordeiros.
Bem, tudo isso resume o que é um pastor. “Eu cuidarei de você no rebanho até o último detalhe”.
Que poder aterrorizante, esse do padre. Aterrorizante, sim. É um tipo muito novo de poder. O
soberano não se propunha a isso, o padre sim. O poder pastoral da igreja. Portanto, será necessário
que eu examine minha consciência em cada detalhe para reportá-la ao meu pastor e dizer-lhe: “veja,
sou sua ovelha”, ele me dirá: “sim, sim, mas você é uma boa ovelha” ou “é má ovelha”. Eu direi:
“não sou uma boa ovelha”, ele me dirá: “não importa, pois o acesso ao rebanho está aberto, mas você
não continuará a ser uma ovelha má” etc. Um poder surpreendente, o poder pastoral.
Ora, a maravilha se dá quando Foucault mostrará que uma das grandes originalidades
diagramáticas do poder pastoral é, assim, a individualização dos sujeitos, um poder que individualiza.
Eis que será necessário esperar o poder disciplinar das sociedades laicas para que emprestem da igreja
pastoral esse projeto diabólico: individualizar os cidadãos. Nesse momento, um dos aspectos do poder
pastoral se tornará a coisa do poder do Estado e se proporá a individualizar seus cidadãos. Sob qual
32
forma? Sob a forma de disciplinas. As disciplinas devem incidir sobre o detalhe, os alunos sabem
algo sobre isso.
Bem, então tudo isso para dizer – aqui concluo apenas até o ponto em que estamos –, sim,
acredito que a pergunta deve ser respondida: toda formação social se refere a um diagrama ou a vários
diagramas por uma simples razão: todos os diagramas são instáveis e fluentes, ao passo que as
formações sociais estão em equilíbrio relativo, e não há sociedade que não se refira a uma microfísica
do poder. Portanto, há em toda parte diagramas entre os estratos.
33
GILLES DELEUZE
AULA 3
AULA 3: 21 DE JANEIRO DE 1986
Vamos começar voltando [ao trimestre anterior]. Tínhamos deixado um vazio e agora temos
meios para preenchê-lo. Voltemos ao momento que tentávamos ver com clareza a dualidade
ver/falar ou visível/enunciável. 1 Se vocês se lembram, dizíamos que a dualidade era muito
interessante porque coincide com uma aventura do cinema contemporâneo. E dissemos: sim,
talvez seja isso que explique, entre outras razões, porque Foucault se interessava muito pelo
cinema contemporâneo. Essa aventura comum consistiu nisto: o cinema contemporâneo, sob
algumas de suas formas, rompeu com uma complementaridade que caracterizava o chamado
cinema “clássico”, a qual, resumindo, é a complementaridade entre campo, por um lado, e fora
do campo e uma voz em off, por outro. Em proveito de que o cinema contemporâneo, em suas
formas mais avançadas, rompeu com essa complementaridade? Não há mais
complementaridade entre campo e fora do campo dublado por uma voz em off, mas sim
disjunção entre dois campos: o sonoro e o visual.
Vocês encontram essa forma, com realizações muito diferentes, em autores como os
Straub, Marguerite Duras e Syberberg. A esse respeito, não me parece arbitrário que esses
autores sejam aproximados com frequência. Eles têm em comum o rompimento com certa
forma de cinema clássico a fim de instaurar um novo modo de exploração, exploração
propriamente audiovisual, sob a forma da disjunção da imagem visual e da imagem sonora.2
Nos Straub, essa disjunção aparece sob a forma de uma imagem que propus chamar de
estratigráfica [stratigraphique] no curso sobre cinema que fizemos no ano passado, 3 ou seja,
uma imagem do espaço terrestre vazio que vale pelo que a terra recobre e que não será mostrado.
Ao invés disso, será mostrado o caráter sedimentar, o caráter estratificado do espaço tectônico.
E a voz, por sua vez, evoca o que a terra recobre, isto é, faz subir o que a terra sepulta, de modo
que, para usar as palavras de um comentarista de Straub e Duras, estamos diante da história que
não tem lugar, do lugar que não tem história. A imagem visual mostra um lugar vazio, um
espaço vazio, um lugar sem história. A imagem sonora narra uma história que não tem lugar.
1
Cf. DELEUZE, G. Michel Foucault: As formações históricas. Op. cit., aula de 26 de novembro de 1985.
2
No veio pop do cinema, a disjunção entre ação dramática e diálogos foi explorada por Quentin Tarantino, por
exemplo, em Cães de aluguel (1992) e Pulp Fiction (1994).
3
Cf. DELEUZE, G. Aula de 28 de maio de 1985 do curso Cinèma/pensée. Online em: http://www2.univ-
paris8.fr/deleuze/article.php3?id_article=301. Deleuze realizou cursos sobre cinema na Universidade Paris 8 entre
1981 e 1985. É um impressionante conjunto de 92 aulas distribuído em três temas: imagem-movimento, imagem-
tempo e imagem-pensamento. Dois deles são tratados em livros (Cinema 1: a imagem-movimento e Cinema 2: a
imagem-tempo) publicados pela Editora 34.
2
Isso é todo o espaço das cavernas, o espaço das fissuras dos Straub, seu espaço telúrico,
enquanto a voz levanta o que a terra recobre. Em Duras, em India Song,4 é outro caminho, outra
forma, mas que pode ser agrupado sob a mesma rubrica: essa grande falha, essa grande
disjunção audiovisual. India Song, por exemplo, é a expressão mais pura disso, mas não me
lembro da data de India Song.
[intervenção]: De 1974.
[DELEUZE]: É de 1974? Já veremos por que isso me interessa. Em India Song, a imagem visual
nos apresenta um baile que não tem outra função senão a de recobrir um baile mudo, pois,
mesmo quando os personagens falam, eles mantêm a boca fechada, garantindo a disjunção
visual-sonora. Assim, o filme nos apresenta um baile mudo que vale para outro baile que
ocorreu alhures e noutro momento. Portanto, há algo de análogo. Não é o processo telúrico dos
Straub, mas um processo dramático pelo qual o que nos é mostrado recobre o antigo baile, no
qual acontecem as vozes. De modo que há disjunção pura entre a imagem sonora, que evoca o
antigo baile, e a imagem visual, o baile atual que é mostrado, baile mudo, cuja única função é
recobrir e sepultar o antigo baile que as vozes, ao contrário, exumam. Logo, disjunção ver-falar.
Syberberg tem ainda outros procedimentos que culminarão com Hitler, 5 mas que já se
encontram em O cozinheiro de Ludwig6 e se distribuem também segundo essa grande disjunção
imagem visual/imagem sonora.
Posso então dizer que aquilo que constituiu, de certa maneira, a exploração do cinema
clássico muda completamente. O cinema clássico não era realmente audiovisual, pois
subordinava a imagem sonora à visual. O cinema se tornou verdadeiramente audiovisual só
muito recentemente, pois só pode estabelecer uma igualdade estrita entre imagem sonora e
visual suprimindo a subordinação de uma à outra e, por conseguinte, passando por uma
disjunção do sonoro e do visual. Não há mais fora do campo, não há mais voz em off, há dois
campos que rivalizam um com outro e nenhum cada um é suficiente. É a grande disjunção
ver/falar.
Ora, eu dizia que, assim como o cinema moderno rompe com a complementariedade
entre ver e falar em favor de uma disjunção ver/falar, Foucault rompe por sua vez com a
4
India Song, longa-metragem (1975) com roteiro e direção de Marguerite Duras.
5
Hitler, ein Film aus Deutschland (1978), escrito e dirigido por Hans Jürgen Syberberg.
6
Theodor Hierneis, oder Wie man ehem (1972), com roteiro e direção de Syberberg.
3
complementariedade ver/falar tal como se desenvolve na filosofia clássica, tal como a
fenomenologia ainda a conserva; isso porque, de certa maneira (veremos quando falarmos de
Heidegger ou de Merleau-Ponty), falar se encadeia com ver. Com Foucault – nesse aspecto ele
sucede a Blanchot – não há mais encadeamento do falar com o ver, há disjunção. Nesse sentido,
o encontro de Foucault com o cinema moderno me parece muito normal, um mesmo problema,
uma mesma preocupação.
Deixamos aqui um vazio acerca do qual eu dizia ser interessante rever o filme de René
Allio, de 1976 – aqui as datas são muito importantes –, baseado no trabalho de Foucault Eu
Pierre Rivière 7 . Por quê? Porque se enquadrava plenamente no nosso problema. Por qual
motivo Foucault se interessou por esse filme? De antemão, por que se interessou pelo caso de
Pierre Rivière, assassino de seus pais no século XIX? Por uma razão da qual já falamos, porque
Rivière faz parte daqueles a quem Foucault chama, em um sentido muito particular, de os
homens infames. Rivière é um jovem infame. Bem, isso já vimos, 8 não retornarei ao tema. Mas,
mais profundamente, [o caso interessa a Foucault] porque o assassinato de Pierre Rivière põe
um problema muito particular. Pode-se encontrar um equivalente. Ele expõe de um modo
particularmente agudo a relação entre o ato e a narrativa, entre gesto e sua narração. Dir-se-ia
também: ver e dizer, visível e enunciado. O visível é o ato criminal, o enunciado, o diário escrito
por Rivière. Qual o vínculo entre assassinato e narrativa, ou seja, entre gesto visível e texto
enunciável? Muito antes de ser tema do filme, Foucault colocara a questão, pois, em seu curso
e em seu próprio comentário ao caderno de Rivière (que Foucault promoveria a publicação),
em seu curto comentário, ele diz: a relação entre o texto e o assassinato é muito complexa. “O
texto não relata o gesto”.9 Vejam, a questão lhe interessa porque é verdadeiramente um caso
exemplar da relação entre o visível e o enunciável. O texto não relata o gesto, da mesma forma
que, como vimos, o enunciado não narra o visível.
7
VV. AA. Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão. Trad. Denize L. de Almeida. Rio
de Janeiro: Graal, 1977. Foucault conduzia seminários de pesquisa em paralelo com seus cursos no Collège de
France. Em 1973, realizou o curso A sociedade punitiva. O seminário deste ano foi consagrado à preparação do
dossiê Pierre Rivière. O livro homônimo resultou então do trabalho coletivo desenvolvido durante o seminário.
Foucault coordenou os trabalhos e redigiu “Os assassinatos que se conta” e a “Apresentação”, onde se lê:
“Queríamos estudar a história das relações entre psiquiatria e justiça penal. No caminho encontramos o [dossiê
médico-legal do] caso Rivière. Este caso estava relatado nos Annales d'hygiène publique et de médecine légale de
1836. Como todos os outros dossiês publicados por essa revista, compreendia um resumo dos fatos e perícias
médico-legais”. Ibid., p. IX. Foucault retomará este e outros casos semelhantes no curso Os anormais, nas aulas de
29 de janeiro e 5 de fevereiro de 1975.
8
Cf. DELEUZE, G. Michel Foucault: As formações históricas. Op. cit., aula de 10 de dezembro de 1985.
9
FOUCAULT. M. “Os assassinatos que se conta”. In: VV. AA. Eu, Pierre Rivière..., op. cit., p. 212.
4
Mas, de um ao outro, há toda uma trama de relações que se sustentam, se arrastam em
relações que, aliás, não cessam de se modificar. Com efeito, trata-se duma relação movente,
modificável, variável entre o texto enunciado e o gesto visível, pois, num primeiro tempo,
Rivière, o assassino, havia concebido uma espécie de entrelaçamento entre o caderno e o
assassinato. Um fragmento do caderno seria escrito antes do assassinato, outro depois, em
seguida o caderno seria enviado. Vocês veem que o gesto visível e o caderno escrito 10 se
entrelaçariam. Mas de toda maneira subsistem os demais problemas, pois Rivière diz
efetivamente que pensou tanto em seu caderno que praticamente as palavras já estavam feitas,
as frases já estavam escritas em sua cabeça.
Bem, vocês veem: o que pode interessar tanto ao cineasta quanto a Foucault no projeto
de encenar Pierre Rivière era essencialmente como o cinema distribuiria o caderno e o
assassinato, ou seja, o visível e o enunciável. Nesse sentido, a filmagem de Pierre Rivière podia
tomar dois caminhos: ou ter uma preocupação comercial – a qual seria de pouco interesse, seria
a história de um assassinato – ou uma preocupação cinematográfica real. Esta última somente
podia acontecer a partir do momento em que o cinema tivesse tomado consciência da disjunção
possível entre ver e falar. Com isso, encontraria em Pierre Rivière um material privilegiado,
visto que todo o documento Pierre Rivière tomava seu interesse na repartição entre o caderno
escrito pelo assassino e o assassinato praticado.
Nesse sentido, o que acontece em 1976 do ponto de vista do cinema? Por isso que lhes
perguntei a data. Teríamos que verificar, mas de toda maneira não muda nada, se os três autores
que nos ocupam, Straub, Duras e Syberberg, já haviam começado. Peço desculpas, não pude
verificar porque não tinha um dicionário à mão. Creio que Moses und Aron,11 já antigo na obra
dos Straub, é de 1975. O colega nos recorda de que India Song é de 1974; logo, um pouco antes.
Desse mesmo ano seria também Ludwig, de Syberberg. Esse cinema audiovisual é muito
recente.
René Allio – até então conhecido por fazer um cinema muito clássico, me parece, muito
interessante, mas muito clássico – encontra-se diante de um tipo de problema que me parece
novo. É muito simples – tecnicamente, trata-se de técnica –, como distribuir a história do
caderno e a do assassinato? Como distribuir o enunciável e o visível, uma vez que o recurso à
10
Deleuze acrescenta: “et le cahier scriptible”.
11
Moses und Aron, 1975, libretto de A. Schoenberg e direção de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub.
5
voz em off está descartado? Vocês me perguntariam: por que não recorrer à voz em off? Porque
seria recorrer a uma solução já feita e que não daria conta da especificidade do caderno, seria
uma voz em off tendo somente a função de guiar a visão da imagem visual, o que subordinaria
os dados do caderno aos dados da visibilidade. A rigor pode-se fazer assim, mas não há interesse
cinematográfico.
O que eu quero dizer? Creio que vocês compreenderão de imediato, inclusive aqueles
que não viram o filme. Sua primeira imagem me parece impressionante, mas justamente ela
mostra quase os limites do filme, pois é muito perfeita, tem-se a impressão de algo sistemático.
É tão sistemático que o mesmo procedimento não poderia aparecer com tanta crueza. O
primeiro plano-sequência do filme mostra uma árvore centralizada que divide um prado. É na
Normandia, há um prado e uma árvore no centro. É um espaço vazio, o único do filme, como
uma homenagem a esse novo cinema: um espaço vazio à lá Straub. Ao mesmo tempo, ouve-se
os ruídos e os ritos de um tribunal. Compreendem? Não há uma voz em off nem ruídos em off.
Há contaminação, confrontação da imagem visual e da imagem sonora heterogêneas. Ouve-se
três golpes que se parecem com aqueles que anunciam a abertura de uma peça teatral, mas trata-
se da abertura do processo, como a sequência do filme indica: “senhores, a sessão está aberta”,
ou então “todos de pé, a corte vai entrar”. Não me lembro... Enfim, há uma fórmula jurídica.
Aqui é tipicamente a disjunção da imagem sonora. Não é a voz em off, é a confrontação de dois
campos: campo sonoro e campo visual; uma imagem tão pura da disjunção visual-sonora que é
muito perfeita. Não sei quanto aos que assistiram ao filme, mas, quanto a mim, ele me
incomodou, e pensei: há alguma coisa que não vai, é antológico, como se diz, é um virtuosismo,
não poderá continuar assim. De fato, Straub, Duras e Syberberg nunca procedem assim. Parece
6
um pouco “aplicado”. O filme não podia continuar assim, com a fonte dupla sonoro-visual, os
expectadores iriam embora. Em seguida, felizmente, Allio joga com toda uma série de
deslocamentos entre imagem visual e sonora de maneira que o caderno não funcione jamais
como voz em off. É preciso que o caderno inspire e preencha uma imagem sonora suficiente
enquanto a visão investe uma imagem visual em si mesma suficiente, sem que as duas
coincidam.
Tomei algumas notas durante a exibição do filme. Muito mal porque não enxergava
nada... Leio rapidamente para que fique mais claro. O que parece ser uma voz em off diz nalgum
momento algo como: “minha mãe não parava de dizer e falar”, e a imagem visual mostra a mãe
sozinha, muda, com a boca fechada. Noutro momento a voz, que novamente parece uma voz
em off, diz: “meus pais brigavam o tempo todo”, e a imagem mostra Pierre Rivière menino
trabalhando em um campo cultivado, sem os pais e sem ruídos de briga. Em seguida a imagem
nos diz que Pierre Rivière era estranho, que fazia coisas grotescas com os animais, maltratando-
os enquanto se divertia com isso. Entre outras coisas, nos é mostrado Pierre Rivière forçando
um cavalo de tiro a subir num monte de esterco e em seguida o cavalo perde o equilíbrio e rola,
rola, uma catástrofe. Rivière ri bastante. Mas será somente muito adiante no filme que a imagem
sonora descreverá essa cena que é mostrada inicialmente de forma visual somente. Há todo um
sistema de deslocamentos.
Resumindo, digo que isso torna o filme interessante, a maneira pela qual Allio soube
tomar consciência deste problema: a disjunção entre ver e falar, do visível e do enunciável, ao
longo de todo o filme com meios diferentes, sendo o mais puro aquele do primeiro plano-
sequência. E seguramente isso correspondia à intenção de Foucault. Eu imagino Foucault
dizendo para Allio: bem, você é o cineasta, que vai usar para dar conta desse duplo jogo visual-
sonoro? E que Foucault tinha em mente as soluções de Duras, de Syberberg, de Straub, e sem
dúvida de Allio também. Se isso é o interessante do filme, o que constitui, ao mesmo tempo,
talvez, sua limitação? Em minha opinião, em minha impressão de expectador recente, é o fato
de o procedimento ser um tanto sem relevo, um tanto aplicado artificialmente. Não surge,
talvez, como acontece no caso dos outros cineastas, da própria exigência da obra. Eis o que eu
queria dizer sobre preencher o vazio que havia deixado, a relação de Foucault com o cinema
em função de seu problema do visível e do enunciável ou de seu problema da disjunção
ver/falar. Têm algo a acrescentar? Sim?
7
[inaudível]
[inaudível]
Quanto ao cinema, [a questão da heterogeneidade] não tem a ver com o primado, porque
este, parece-me, pertence a uma espécie de reflexão filosófica sobre os dois termos irredutíveis.
Pode-se dizer que no cinema do audiovisual haja primado do enunciado? Parece-me que não.
Suponho que no cinema não haja primado, ou melhor, não há nada o que fazer com a questão
da primazia, não é questão para o cinema, não é questão que lhe interesse. Bem, como não
querem dizer nada, esqueçam tudo isso e vamos continuar.
No último encontro avançamos na questão do poder da seguinte maneira: uma vez dito
que o poder é o conjunto das relações de forças que correspondem a uma formação, o poder se
apresenta como diagrama. Dou muita importância a esse termo, empregado por Foucault uma
só vez. Por quê? Porque me dava um motivo, ou melhor, uma palavra cômoda para bem marcar
que não estávamos mais no domínio do arquivo. O arquivo é o arquivo do saber, o qual não se
opõe, mas se distingue do diagrama de poder.
8
Vimos na última vez – era nosso objetivo principal – que que havia como que dois
caráteres do diagrama enquanto exposição das relações de forças. Sua definição geral seria:
exposição das relações de forças. Mas quais são as características do diagrama?
A primeira característica: ele põe em presença matérias não formadas e funções não
formalizadas. Por isso se distingue do arquivo do saber. No último encontro, vimos justamente
que o poder se distingue do saber na medida em que os dois caráteres do diagrama devem ser
duas diferenças entre poder e saber. Logo, o poder seria o conjunto de matérias não formadas e
funções não formalizadas, em contraste com o saber, que apresenta matérias formadas e funções
formalizadas, finalizadas. Todo saber implica uma matéria já formada e uma função já
formalizada, já finalizada. Percebam, todo saber implica matéria formada e função formalizada,
vocês devem já compreender por que o visível e o enunciável intervêm no nível do saber. É
porque as matérias formadas se distinguem pela visibilidade – no sentido que Foucault atribuiu
à “visibilidade”, que não é simplesmente a visão, como estudamos no primeiro trimestre –,
enquanto as funções formalizadas se distinguem por meio dos enunciados.
Vocês dirão: como é abstrato! Espero que seja menos abstrato do que no último
encontro. Precisamente, é abstrato. De fato, matérias não formadas e funções não formalizadas,
é pura abstração, é a matéria enquanto matéria ou a função enquanto função.
9
Multiplicidade humana qualquer, num espaço fechado, tal multiplicidade sendo pouco
numerosa. Multiplicidade pouco numerosa num espaço fechado. Eis um traço diagramático:
impor uma tarefa, uma tarefa qualquer, impor uma tarefa qualquer a uma multiplicidade pouco
numerosa num espaço fechado. Eu direi: eis uma categoria de poder. É um traço diagramático,
um traço de diagrama. Se digo: controlar os eventos [événements] principais – não especifico
quais – numa multiplicidade numerosa situada num espaço aberto, [também] estou definindo
um outro traço diagramático. 12 Logo, a abstração do diagrama não impede suas variedades
eventuais, porque disponho de uma variável espaço-tempo que é amplamente suficiente. E há
todo tipo de multiplicidades. Elas variam segundo o espaço que ocupam e também segundo a
maneira pela qual o ocupam. o espaço. Tenho então uma grande variedade diagramática de um
diagrama a outro.
Vejam, quando digo “impor uma tarefa a uma multiplicidade pouco numerosa num
espaço fechado” ou quando digo “controlar os eventos principais duma multiplicidade
numerosa num espaço aberto”, apresento categorias de poder. Por outro lado, quando digo:
punir, educar, fazer trabalhar, ensinar etc., não são categorias de poder, são categorias de poder-
saber, as quais, é claro, implicam poder, mas são categorias de saber. Por quê? Notem que todos
esses termos mobilizam funções formalizadas e matérias formadas. Matérias formadas: escolar,
operário, prisioneiro. Impor uma tarefa qualquer a uma multiplicidade pouco numerosa num
espaço fechado é a categoria de poder, mas agora estou no concreto, não há matéria que não
esteja formada. E essa multiplicidade qualquer, o que é? Uma multiplicidade de crianças, e
nesse caso a função será não mais impor uma tarefa, mas ensinar. Ensinar a uma multiplicidade
de crianças num espaço fechado que nomearemos liceu ou escola. Mas, na porta ao lado, “impor
uma tarefa qualquer a uma multiplicidade pouco numerosa num espaço fechado”, é nesse caso
a matéria formada que se torna o prisioneiro, não mais o estudante, e impor uma tarefa qualquer
não é ensinar, é punir. Surpreende-nos que haja punições na escola e escolas nas prisões? Não,
respondem ao mesmo traço diagramático. Compreendem?
Por outro lado, se abstraio o poder, dado que é uma abstração, vocês me dizem: nunca
está separado! Evidentemente, [o poder] nunca está separado, Foucault é o primeiro a dizê-lo.
12
Deleuze está descrevendo formalmente dois mecanismos (para usar o termo de Foucault) de poder: disciplina e
controle, ou dois conjuntos de tecnologias de poder características da sociedade disciplinar e da sociedade de
controle, respectivamente. Cf. DELEUZE, G. “Post-scriptum sobre as sociedades de controle”. In: id.,
Conversações: 1972-1990.
10
Se faço uma análise, é para distinguir o que não está separado na realidade. O que devemos
chamar de poder é o diagrama, que consiste em manejar [brasser] matérias não formadas e
funções não formalizadas. Eu distinguiria assim os arquivos do saber, eles começam a partir do
momento no qual as funções são formalizadas e finalizadas, ou seja, quando não se trata mais
de impor uma tarefa qualquer, trata-se de ensinar, punir, fazer trabalhar na fábrica, etc. Não é
mais questão de um espaço fechado qualquer, mas de uma escola, uma prisão, uma oficina, um
quartel. Eis a primeira característica do diagrama.
No último encontro, vimos a segunda característica pela qual o poder irá se distinguir
do saber. O saber – vimos ao longo de todo o primeiro trimestre – procede sempre no interior
de uma forma. Ele procede segundo a forma do visível, a luz, segundo a forma do enunciável,
a linguagem. Melhor ainda, procede de uma forma a outra, ou seja, entrelaça o visível e o
enunciável, ao passo que o poder vai de um ponto a outro. O poder é um conjunto de relações
pontuais e não formais. Há um texto em que Foucault emprega uma expressão um pouco
estranha: estado de poder.13 Aquilo que chamamos de estado de poder, segundo Foucault, é o
ponto, uma vez que o poder não cessa de estabelecer relações entre pontos, pontos no plural. O
que é então um ponto ou um estado de poder? É preciso levar essa questão a sério porque será
muito importante para nós. Lembrem-se do que eu dizia: o diagrama é a exposição das relações
de forças. Ora, a relação de forças não se agrega à força, não há a força, de um lado, e sua
relação com outras forças, de outro. A força é fundamentalmente plural, não há força senão no
plural. Ou seja, a força é, em sua essência, relação com outra força. Com a força, a palavra um
perde todo sentido. Não há força que não seja relação com outras forças. Nietzsche fundou seu
pluralismo das forças com base nessa colocação. As forças não são unificáveis. Era uma ideia
muito simples, mas perfeitamente confirmada pela física das forças. Muito importante.
Pois bem, dizer que uma força está fundamentalmente em relação com outras forças
significa que uma força não tem essência. Ela se define pelo fato de que afeta outras forças e é
afetada por outras forças. Vejam, ela não tem essência, somente afetos. O fato de uma força
sempre afetar outras, eu chamarei de sua espontaneidade. Mesmo se a força é determinada a
afetar outras forças, mas o aspecto sob o qual ela afeta outras forças é sua espontaneidade. O
aspecto sob o qual ela é sempre afetada por outras forças é sua receptividade. Em outras
palavras, uma força tem afetos ativos e afetos reativos. Seus afetos ativos exprimem a maneira
13
FOUCAULT, M. História da sexualidade v. I. Op. cit., p. 89.
11
pela qual ela afeta outras forças, seus afetos reativos exprimem a maneira pela qual ela é afetada
por outras forças. Chamarei esses afetos ativos de pontos de espontaneidade e os afetos reativos
de pontos de receptividade, procurando estabelecer um vocabulário.
O que é então um ponto? Voltemos ao traço diagramático que exprime uma relação de
forças, uma força que age sobre outras. Impor uma tarefa qualquer a multiplicidade restrita,
impor uma força que impõe uma tarefa a uma multiplicidade pouco numerosa de outras forças.
Eu dizia que se pode variar segundo os aspectos considerados de um espaço-tempo. [O ponto
será] ordenar, uma força que ordena outras, e ser ordenado; ordenar do lado da força que afeta,
que ordena as outras forças; ser ordenado do lado das forças afetadas. Não há apenas ordenar,
há o serializar: uma série hierárquica, primeiro, segundo, terceiro; isso também é um traço
diagramático, uma categoria de poder, uma força que serializa outras. Aqui, haveria novamente
dois afetos, serializar/ser serializado; ser ordenado é um efeito reativo, ordenar, um efeito ativo.
Dou todo tipo de exemplos.
Observem que não se deve crer que os afetos reativos sejam o simples simétrico. Há
uma especificidade do afeto “ser ordenado” com relação ao afeto “ordenar”. Afetos reativos
não são a simples repetição do afeto ativo. Ser ordenado responde a ordenar, sim, é uma relação
de forças. Na escola, por exemplo, os alunos esperam à porta sem fumar [risos]. O mestre chega
e eles se ordenam em fila, dois a dois. A força do mestre é ordenar; a dos alunos, ser ordenado,
pois é preciso de uma força para suportar a força. Ser ordenado é um afeto reativo da força,
assim como ordenar é um afeto ativo da força. Ser ordenado é um afeto de receptividade. Mas
não são a mesma coisa do que os resultados da composição, estes são uma serialização
(primeiro, segundo, terceiro). O percurso da série se dá em dois sentidos porque há dois tipos
de professores: os que entregam os resultados dos trabalhos a partir do fim [da lista de alunos]
e os que o fazem a partir do começo. Eles não percorrem a mesma série, não são os mesmos
afetos que se distribuem na classe, as jovens forças passivas que recebem o ensinamento do
mestre não sentem de forma alguma os mesmos afetos.
Posso então definir o poder como toda relação de um ponto com outro, se compreendo
bem o que significa ponto. Aqui, sugiro apenas a compreensão de ponto como o equivalente
estrito de afeto. Um ponto de força não é a origem de uma força, é um afeto, ou seja, sua relação
com outra força que o afeta ou que ela afeta. Eu diria então que o poder, a relação de poder, vai
12
de um ponto a outro. Trata-se do desenvolvimento da simples ideia: toda força é plural, há
apenas pluralidade de forças.
Retomo agora um tema que havíamos esboçado. Dentre os diagramas, Foucault atribui
muita importância, no final de sua vida, ao poder pastoral, ao poder eclesiástico. Por quê?
Porque ele vê ali o primeiro poder que se propõe a individualizar seus sujeitos [sujets]. Mas
como definir o poder pastoral, esse poder de igreja? Foucault o define à sua maneira, que para
mim evoca algo que partilho com vocês. Procurei lhes dizer que toda essa concepção de
Foucault é muito nietzschiana. É tão nietzschiana que, literalmente, ele não tem necessidade de
dizê-lo. Para o que nos diz respeito, é muito mais importante afirmar que Nietzsche foi
seguramente o primeiro a colocar a questão em termos frios e cínicos. Em que consiste o poder
do padre? É talvez uma das coisas mais novas em sua filosofia: o que é o poder do padre? Não
digo “cínico” de forma alguma, digo que ele reclama uma teoria positiva do poder do padre.
Donde vem esse estranho poder? E Nietzsche pode exclamar, também no fim de sua vida: “sou
o primeiro a ter feito a psicologia do padre”.14 Logo, Foucault será o segundo.
14
Cf. NIETZSCHE, F. Ecce homo.
13
difícil mostrar, mas não importa. As duas definições dizem estritamente a mesma coisa, nos dão
duas diferenças do poder com o saber. O saber passa pelas formas e opera nas formas. O poder
estabelece relações de um ponto singular a outro ponto singular. O saber considera matérias
formadas e funções formalizadas, o poder só considera matérias não formadas e funções não
formalizadas.
Essa colocação nos leva a outro problema importante. Já o vimos no último encontro,
agora quero acrescentar algo que irá preparar nosso futuro. Eu lhes disse que antes de nossas
sociedades havia, segundo Foucault, as sociedades de soberania. Trata-se de outro diagrama
que não é o disciplinar. “Disciplinar” designa certo conjunto de relações da força com a força,
mas não é a única relação. Eu repito, no diagrama da soberania, não se trata de compor as forças,
como na disciplina, de compô-las entre si, trata-se de extrair das forças. O soberano é uma força
que extrai das outras forças. É uma potência de extração.16 Extrair é um afeto ativo, assim como
15
Foucault reconsiderou esse ponto quando fez um “giro”, um acréscimo: além do dispositivo “disciplina”, a ação
sobre uma multiplicidade pouco numerosa num espaço restrito, como disse Deleuze acima, trata-se também do
controle por meio dos dispositivos de segurança, a ação sobre uma multiplicidade numerosa num espaço aberto.
Cf. Segurança, território, população, p. 63: “[...] disse em algum lugar [em Vigiar e punir] que não se podia
compreender a implantação das ideologias e de uma política liberais no século XVIII sem ter bem presente [...]
que esse mesmo século XVIII, que havia reivindicado tão alto as liberdades, as tinha no entanto lastreado com
uma técnica disciplinar que, pegando as crianças, os soldados, os operários, limitava consideravelmente a liberdade
[...] Pois bem, creio que me equivoquei [...] Creio que o que está em jogo é algo bem diferente. É que essa liberdade,
ao mesmo tempo ideologia e técnica de governo, [...] nada mais é do que o correlativo da implantação dos
dispositivos de segurança”.
16
No original: prélèvement. Deleuze está provavelmente lendo “Soberania e disciplina” (op. cit.). Como dissemos,
esse texto de Foucault apareceu primeiramente em Microfisica del potere (1977). Foucault não usa o termo
diagrama nesse texto nem em textos futuros sobre o tema; usa mecânica do poder e mecanismos de poder. Em
sua analítica do poder, Foucault descreve não dois, mas três mecanismos: soberania ou “sistema jurídico-legal”,
mecanismos disciplinares e mecanismos de segurança. Ele sublinha que não se trata de “uma série na qual os
elementos vão se suceder, os que aparecem fazendo seus precedentes desaparecerem”. Não há a era do legal
seguida pela era do disciplinar e a da segurança, mas sim “uma série de edifícios complexos [...] O que vai mudar,
14
“ser extraído”, ou melhor, “ser a força sobre a qual se extrai alguma coisa” é um afeto reativo.
Há então outra distribuição das singularidades nas sociedades de soberania, outras relações de
forças, mas há um diagrama. É preciso dizer: o diagrama não é exclusivo das sociedades
disciplinares, há um diagrama disciplinar assim como há um diagrama de soberania. Então, no
entusiasmo, eu disse que, em última análise, são coisas das quais Foucault nunca se ocupou –
há nas sociedades ditas primitivas um diagrama, é o diagrama das alianças, que é um diagrama
muito particular do qual subsistirão algumas características no diagrama da feudalidade, por
exemplo, com sua rede de alianças, embora constituídas de outra maneira.17 Por esses motivos,
pode-se multiplicar os diagramas, vocês podem conceber tantos quantos quiserem. Sobretudo
porque há interdiagramas. Por fim, seria preciso dizer – veremos a que tipo de problema isso
nos levará – que os diagramas são sempre intermediários. Mais ainda, que eles não pertencem
a um campo social. Os diagramas são sempre intermediários entre um campo social em
desaparecimento e um campo social que está nascendo. Por quê?
Vejam bem onde quero chegar com isso. É algo que concerne a uma instabilidade
fundamental do diagrama. As relações de forças no campo social são fundamentalmente
instáveis. O que é estável? São os estratos, é a própria formação. Mas o diagrama é o motor da
formação [histórica], ele é fundamentalmente instável. Logo falaremos a respeito. Por esse
motivo, de acordo com Foucault, poder-se-ia falar de um diagrama napoleônico, no qual
Napoleão está exatamente no ponto de conversão da sociedade de soberania em sociedade
disciplinar. Ele se apresenta como a ressureição do antigo soberano, do grande imperador, mas
a serviço de uma sociedade completamente nova, que será a sociedade de organização do
rebanho, uma espécie de pastor laico, a vigilância do rebanho. E o diagrama napoleônico será
a conversão da sociedade de soberania em sociedade disciplinar.
Para fixar melhor a noção de diagrama – há por todo lugar, muito diferentes uns dos outros –,
eu poderia lhes passar alguns exercícios. Seriam como problemas de geometria: construam o
diagrama da feudalidade. Se me falarem do cavaleiro, faço uma cruz e lhes dou zero [risos],
não compreenderam o que é o diagrama, é preciso descrevê-lo somente em termos de afetos de
principalmente, é a dominante ou, mais exatamente, o sistema de correlação entre os mecanismos jurídico-legais,
os mecanismos disciplinares e os mecanismos de segurança”. Cf. FOUCAULT, M. Segurança, território,
população, p. 11. Esse curso permaneceu inédito até 2008, exceto a aula de 1º de fevereiro de 1978, publicada
como “La governamentalità” em Microfisica del Potere
17
Foucault trata das diferenças entre o dispositivo de aliança – “arcaico” – e o dispositivo da sexualidade –
“moderno” – em História da sexualidade v. I, pp. 100 sq.
15
singularidades e de relações de forças. Entendem que lhes dou uma tarefa? Em seguida, outro
tema seria: em sua opinião, estamos ainda no diagrama disciplinar ou já vivemos numa
sociedade que apela para outro diagrama? No último encontro, eu lhes falava dos partidários da
ideia de uma era pós-moderna, na qual teríamos ingressado. Segundo eles, isso significa antes
de tudo que o diagrama sofreu mutação. Posso também perguntar: a cidade grega tinha um
diagrama? Isso me interessa porque Foucault, no final de sua vida, encaminhou parte de sua
reflexão para a cidade grega, que adquire uma importância particular em um de um de seus
últimos livros, do qual ainda não falamos, O uso dos prazeres.18
Vocês me perguntarão: mas o que são forças livres? Bem, sem dúvida, isso se refere a
diagramas preliminares, obviamente, refere-se aos cidadãos gregos. Vocês dirão: ah sim, mas
aí eu caio no erro que denunciei, não posso pôr o cidadão grego, o homem livre, pois ele não é
diagramático. Não que ele não exista, mas não é diagramático. Por isso tenho que usar outra
18
FOUCAULT, M. História da sexualidade v. II: o uso dos prazeres. Trad. Maria T. da C. Albuquerque. Rio de
Janeiro: Graal, 1984.
16
palavra. Não é apenas uma distinção de palavras, eu diria que são agentes livres, que
supostamente ainda não foram determinados por uma relação de poder prévia; isso é uma
abstração que posso fazê-la muito bem. Uso “agente livre” em oposição aos agentes que já são
determinados por relações de poder anteriores, por exemplo, os escravos.
A grande ideia de Foucault sobre os gregos é a de uma rivalidade entre homens livres.
Penso que é isso o que ele diz, e isso me parece muito forte... retomaremos tudo isso, não há
pressa. Essa ideia admite que os gregos fizeram uma invenção política que não deixou de
inspirar a democracia posteriormente. Nesse sentido, eles são democratas porque os homens
livres estão em estado de livre rivalidade. Por que é diagramático? Porque eu não especifico
qual domínio. Trata-se da rivalidade em qualquer domínio. Portanto, não é de se surpreender
que as cidades gregas continuassem guerreando entre si, elas basicamente viveram como rivais.
Não são os bárbaros: para um grego, os bárbaros não são seus rivais. O grego rivaliza com o
grego. O mundo grego é a rivalidade dos homens livres. Mas vamos suprimir “homens”, já que
não posso mais dizer isso. É a rivalidade dos agentes livres, com os efeitos correspondentes.
Platão, é impressionante o quão bem ele apreende isso. Não que Platão esteja de acordo, afinal
de contas ele afirma que por causa disso a cidade grega morrerá. Por isso digo “em todos os
domínios,” por exemplo, na política, é uma questão de rivalizar: homens livres, cidadãos, se
definem assim; são agentes que podem e são capazes de rivalizar entre si. Daí o tema do grego:
ser o melhor. Qual é melhor? E a questão socrática está completamente ligada à pergunta “qual
é o melhor”? Então Sócrates se vangloria dizendo: sim, mas em qual domínio? Tratando-se de
uma corrida, o melhor é o mais rápido, ele diz. Para correr a pé, é o mais rápido. Há uma
pergunta simples e uma resposta simples. Mas isso pode se aplicar à política ou à medicina? O
melhor médico é quem cura mais rápido? Então um outro diz: “não, Sócrates, não é quem cura
mais rápido, mas quem cura bem”. “Ah, sim, mas correr rápido não é correr bem?” O outro
responde: “bem, Sócrates, não compreendo mais.” Sócrates diz: “bem, vamos recomeçar. Então
o melhor médico não é o mais rápido, então o bem [le bien] não é [ser] o mais rápido?” O outro
diz: “não é o rápido?” Qual será a rivalidade aqui?
Há um diálogo que considero o mais bonito de Platão, O político. Esse texto inspira todo
o poder pastoral em Platão. Ele chega a dizer: o político é o pastor dos homens, e nisso vemos
que é um grande teatro, muitas pessoas entrando e dizendo: sou eu! Sou eu! Vejam, sou eu!
Tudo se encena. O pastor dos homens é quem cuida do homem como um rebanho. Então o
17
açougueiro diz: quem cuida do homem tanto quanto eu, que forneço a carne? O tecelão diz: ah
não, sou quem os veste, dou-lhes sua própria lã. Sem mim, eles seriam ovelhas nuas. E todos
se batem, é a cidade grega. No império da China, não há rivalidade entre agentes livres. Haverá
homens livres, perfeitamente, mas eles não entram em competição, em pura e direta rivalidade.
Eles não vão competir. Eles podem competir em segredo, mas que essa rivalidade esteja
precisamente aí, a relação pela qual as forças passam... E não pode ser a corrida a pé, a
rivalidade nos Jogos Olímpicos, é por isso que eles inventam os jogos. Eles inventam as
Olimpíadas, é claro, mas também inventaram a democracia. A democracia não é liberdade,
tampouco igualdade, é o poder de rivalizar. O poder de rivalizar é um afeto. O diagrama da
cidade grega é a rivalidade, assim como se dizia que o diagrama primitivo é a aliança. Não
surpreendente que eles tenham inventado a eloquência? A rivalidade, eu diria, implica a forma
do bem adaptável a cada domínio. A forma do bem, enquanto adaptável a cada domínio, define
a rivalidade. Qual é a forma de bem no domínio da fala? É a eloquência. Os gregos terão,
portanto, instituições de eloquência. A forma de bem no campo do exercício físico é, digamos,
a velocidade. Por conseguinte, os gregos terão as Olimpíadas. Assim como há um diagrama
disciplinar, um diagrama de soberania e milhares de outros diagramas, eu diria que o diagrama
da cidade grega é a rivalidade dos agentes livres. E, novamente, em uma sociedade despótica,
em uma sociedade imperial, não pode haver rivalidade entre agentes livres.
Bom, vejam nosso problema: agora não estamos, como acreditávamos no início, diante
de um único diagrama, mas de uma multiplicidade aberta de diagramas. E lembrem-se de que
cada diagrama é em si mesmo uma multiplicidade, multiplicidade de relações de poder, de
singularidades, de afetos. Cada diagrama é uma multiplicidade e há uma multiplicidade de
diagramas. Mas, então, de onde vêm os diagramas? É uma questão importante. O que os
percorre? O que é essa matéria [matière] diagramática? Sem dúvida, não há começo nem fim.
Não há origem nem fim das forças. Há apenas avatares das forças, metamorfoses de forças. A
questão da origem e do destino são desqualificadas pelo ponto de vista das forças. Quer dizer,
não há apenas mutações de um diagrama para outro, mas que todo diagrama é um local de
mutação, isso que define o diagrama, ser lugar de mutação.
Como vocês definem uma mutação? Um pequeno texto de Foucault dirá, em As palavras
e as coisas, “mutações que fazem com que de súbito...” Isso nos interessará, porque prepara
nosso futuro. “essas mutações que fazem com que de súbito as coisas não sejam mais
18
percebidas, descritas, enunciadas, caracterizadas, classificadas e sabidas do mesmo modo...”19
De repente, não falo mais, eu não percebo mais... Suprimamos o “eu”. De repente, não se
percebe mais da mesma maneira. De repente, vê-se algo que não se via antes. De repente,
dizem-se coisas que não se diziam antes”. Vocês me dirão: estamos no reino do visível e do
enunciável. Certamente, é claro, estamos no reino do visível e enunciável, mas houve mutação.
Para que haja mutação, é preciso que o diagrama tenha passado por lá. O que garante a mutação
é o diagrama. O diagrama é a própria mutação. As relações de forças estão em perpétua
mutação. Não existe mais, não posso nem mesmo falar de sociedade atual. A chamada
sociedade atual é apenas a conjunção daquela que ainda está desaparecendo e da que ainda está
nascendo.
Abro um parêntese: Gramsci disse coisas extremamente profundas sobre isso, sobre o
caráter provisório de qualquer sociedade.20 Isso nos leva a um ponto muito, muito delicado.
Basicamente, eu diria: de onde vem o diagrama, considerando que, como vimos, ele não
pressupõe nenhuma forma. Não consigo invocar nenhuma forma. Ele é primeiro em relação às
formas, estas derivam dele. Ainda não sabemos como, mas ele é primeiro em relação às formas.
É o primeiro em relação ao saber, precede todo saber. Sem dúvida, nada poderia ser conhecido
[su] se não houvesse o diagrama, mas o este não é do domínio do saber. Então, de onde vem o
diagrama? Veremos a resposta de Foucault. Por enquanto, contentamo-nos com o que temos.
Há duas respostas que devem ser consideradas uma após a outra. [Primeira resposta]: para mim,
o diagrama sempre vem de fora. Mas o que isso significa? Ou não significa nada ou pede uma
análise dessa noção de fora [dehors]. Podemos ter certeza de que a análise é necessária e
teremos que explicar essa noção de fora em Foucault. Ela aparece com mais importância quando
levamos em conta seu artigo em homenagem a Blanchot, intitulado “O pensamento de fora”.21
Reafirmo: o diagrama vem de fora, mas não sabemos o que Foucault pode entender por fora.
Segunda resposta: o diagrama sempre vem de um outro diagrama, porque todo diagrama
é mutação. Todo diagrama é mutação de um diagrama precedente que já era mutação. Ele é
fundamentalmente mutante, exprime as possíveis mutações numa sociedade. Bom. Como reunir
19
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. Op. cit., p. 298.
20
A crise consiste exatamente no fato de que o velho morre e o novo não pode nascer: nesse interregno ocorrem
fenômenos mórbidos dos mais variados”. GRAMSCI, A. Quaderni dal carcere, III.
21
“Esse pensamento, com relação à interioridade de nossa reflexão filosófica e com relação à positividade de nosso
saber [savoir], constitui o que poder-se-ia chamar, numa palavra, ‘o pensamento do fora’”. FOUCAULT, M. “La
pensée du dehors” [1966]. In: Dits et écrits v. I, p. 549.
19
os dois [diagramas] Se vocês seguiram tudo o que eu lhes disse, se quiserem uma definição do
diagrama, é muito simples, é lançar os dados [l’émission d’un coup de dés].
O que é pensar? Pensar é jogar um dado. Nós somos Mallarmeanos. O que são os pontos
nos dados? São afetos ou singularidades. São pontos singulares. Pensar é jogar os dados. Assim
que você pensa em algo, você joga um dado. Seu cérebro molecular emite um lance de dados e
você diz: eu penso. Hum... O que permite a Descartes dizer eu penso é que seu cérebro fez um
lance de dados. Sempre que pensa, você, ou pelo menos seu cérebro, lança dados. Eu emitir um
jogo de dados consiste em produzir uma repartição de singularidades. Estão de acordo? Vocês
produziram essa combinação. Isso é um diagrama, uma repartição de singularidades, um lance
de dados. Desse modo, entenderemos tudo, pois todo diagrama vem de um diagrama anterior.
E sim, existem os lances. Existem lances sucessivos. Então vocês se põem – porque não pode
remontar ao infinito – um primeiro lance de dados, chama-se diagrama 1. Depois, um segundo,
diagrama 2. Qual é a relação entre esses diagramas 1 e 2? Vocês podem conceber vários casos.
Os sorteios são completamente independentes uns dos outros, é a independência dos casos que
concerne à estatística pura. Cada lance é considerado radicalmente independente do outro. Esse
é o caso extremo. Segundo caso: o lance precedente fixa condições sob as quais o próximo
lance será feito. Isso não elimina o acaso, mas faz um misto que chamaremos de mistura de
acaso e dependência. Nós falamos sobre isso, no trimestre passado, sobre o cinema, creio que
isso deve ser chamado de ressequências e não sequências.22 Quando há uma sucessão de dois
lances, o segundo depende parcialmente das condições produzidas pelo primeiro, das condições
determinadas pelo primeiro. Quem conhece um pouco sobre esse domínio, sabe que estou
descrevendo a mistura de aleatoriedade e dependência ou a cadeia de Markov,23 o cientista que
estudou esse tipo de encadeamento ou reencadeamento. Acredito que a relação de um diagrama
com outro diagrama, de um diagrama com o diagrama seguinte é tipicamente uma cadeia de
Markov, ou seja, cada diagrama é um dado, mas o segundo diagrama se reconecta com o
anterior, porque este define as condições sob as quais o segundo lança, a segunda transmissão
é feita. Cadeia típica de Markov. Nos detivemos bastante sobre esse assunto no trimestre
passado. Não tenho tempo para retomar; os interessados vejam livros estatísticos, de
22
Cf. aula de 7 de novembro de 1984 do curso Cinèma/pensée. Online em: www2.univ-
paris8.fr/deleuze/article.php3?id_article=374.
23
Cf. DELEUZE, G. As formações históricas, op. cit., aula de 17 de dezembro de 1985.
20
probabilidade, um capítulo sobre cadeias de Markov, que atualmente desempenha na
matemática e na física um papel muito importante.
Além disso, acrescento, é óbvio que esse pensamento implica – embora não se reduza a
– uma concepção que já se apresenta como uma cadeia de Markov. A mão de ferro de
necessidade, é o quê? Qualquer lance de dados prévio determina condições. Isso é o necessário,
é o copo. O que é o copo quando você joga dados? O copo parece ser um copo, mas não é nem
um pouco. O copo é o lance anterior. Esse é o copo. Os lances anteriores determinam certas
condições, a partir das quais é feito novo lance. O novo lance é aleatório, sim, mas em uma
mistura de acaso e necessidade, em uma mistura de acaso e dependência. Ele depende das
condições definidas por lances anteriores, logo tenho uma corrente de Markov. Eu diria que, de
um diagrama a outro, há relançamento e redistribuição de acordo com o segundo lance. De
modo que, digamos, das sociedades primitivas às sociedades imperiais, às sociedades imperiais
arcaicas antigas, das sociedades arcaicas à cidade grega, da cidade grega ao mundo romano, de
24
“Ó céu acima de mim [...] que sejas para mim a mesa dos deuses, dados divinos e divinos jogadores”.
NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra, parte III. Cf. tb. Aurora, 130: “Essas mãos de ferro da necessidade que
agitam os dados do acaso continuam seu jogo indefinidamente: é, pois, necessário que sejam produzidos golpes
que pareçam totalmente conformes à finalidade e à sabedoria”.
25
Cf. FOUCAULT, M. Nietszche, la genealogie, l’histoire. In: Dits et écrits v. I, p. 1016, em que Foucault afirma:
“não se deve compreender esse acaso como simples sorteio [tirage au sort], mas também como o risco sempre
relançado da vontade de poder que a toda aparição do acaso opõe, para dominá-lo, o risco de um acaso ainda
maior”.
21
Roma ao feudalismo, do feudalismo às sociedades de soberania, das sociedades de soberania
às sociedades disciplinares etc., é necessário conceber uma multiplicidade de relançamentos em
que o estado das forças, os pontos singulares, os afetos, se redistribuam em cada nível, em cada
estado diagramático.
[interrupção na gravação]
26
Médico e educador, Deligny trabalhou na Clínica La Borde com Guattari, em especial com adolescentes
especiais e com autistas. Sobre seu trabalho, cf. DELIGNY, F. Oeuvres, Paris: L’Arachnéen, 2007.
22
Pois bem, chego às conclusões dessa segunda parte [da análise do poder]. Na primeira
parte, discuti postulados muito gerais. Na segunda parte, vimos as diferenças entre poder e
saber; nesses termos, o poder é a estratégia, em contraste com os estratos; o poder é o diagrama
em contraste com o arquivo; é a microfísica em contraste com a macrofísica ou física molar.
27
Deleuze lê de maneira livre um trecho de Pierre; or, The Ambiguities de Melville. Cf. DELEUZE, G. As
formações históricas, Aula de 29 de outubro de 1985.
23
geral, virtual sem ser fictício ou irreal. Último caráter: tudo isso gira em torno da mesma coisa,
nunca deixa de ser objeto de lances reencadeados, cadeias de Markov.
[pausa na gravação]
...azert, ele disse: “quando digo azert, eu enuncio; é o enunciado da série de letras no teclado de
uma máquina de escrever francesa, A, Z, E, R, T”.28 Se digo azert, enuncio a sucessão de letras
no teclado de uma máquina de escrever francesa. Ele dizia: mas essas próprias letras não são
um enunciado. Por quê? É diferente do enunciado e, no entanto, algo quase semelhante. É quase
um enunciado e não o é. Vocês se lembram. Agora, esse texto de Foucault deve se tornar claro,
porque devemos distinguir dois níveis. Primeiro nível: um lance de dados não é simplesmente
ao acaso, pois vimos que, em uma cadeia de Markov, não havia puro acaso. Não é puro acaso,
é uma emissão de singularidades e, cada letra sendo uma singularidade, um ponto singular,
azert é uma emissão de singularidades, mas não é de acordo com o puro acaso... Eu poderia
fazer uma emissão de letras de acordo com o puro acaso: b, e, k, p. Acabo de fazer uma emissão
ao acaso. Podem me pedir para fazer outras vinte. É preciso que seja pessoas diferentes porque
meu primeiro lance já terá sido predeterminado para mim. Então alguém faz um outro lance e
assim por diante. O AZERT não é uma emissão aleatória, mas já é de acordo com as leis
estatísticas da frequência na língua francesa, com leis da frequência combinadas com as leis
relativas aos dedos da mão, relações digitais. É uma mistura de relações de frequência literal e
relações dinâmicas digitais. É complexo. Posso dizer que é tipicamente uma mistura de
necessidade e acaso.
Bem, vocês fizeram uma emissão de singularidades, ainda não é um enunciado, mas se
disserem azert, então enunciarão. Por quê? Foucault nos disse que é como a curva, como se
vocês tivessem desenhado uma curva que passa nas proximidades dos pontos singulares. E eu
lhes disse: na teoria das equações, não importa se a conhecemos ou não, essa não é a questão.
Assim, os que não sabem também precisam entender o que digo. Na teoria das equações
diferenciais em matemática, vocês têm a distinção entre dois níveis de existência matemática.
Repartição de pontos singulares. Por exemplo, os pontos singulares são, na matemática,
vértices, nós de curva, focos de curva, cúspides. A singularidade é uma noção matemática em
si mesma. Bem, eis um primeiro domínio de existência. A repartição de singularidades em um
28
Cf. DELEUZE, G. As formações históricas, Aula de 19 de novembro de 1985, nota 99.
24
campo vetorial. É extraordinário porque, acreditem, vocês não precisam saber uma palavra
matemática para entender isso.
Segundo nível de existência: vocês desenham a curva que passa nas proximidades
dessas singularidades, já não se referem simplesmente ao campo vetorial, supõem o que
chamaremos de integração. As curvas são curvas integrais, logo vocês têm o domínio das
singularidades distribuídas no campo vetorial (1 e 2); o traçado das curvas integrais que passam
nas proximidades das singularidades; e, é claro, em matemática, os dois são inseparáveis. Mas
o fato de serem inseparáveis não impede que difiram em natureza. São duas operações distintas.
Bom, esse é exatamente o problema do poder-saber. O poder é a emissão de singularidades, a
distribuição de singularidades, como vimos. Os estratos, o saber são os traços das curvas que
passam nas proximidades. Bem, é obvio que os dois são inseparáveis e, no entanto, são distintos.
Os dois são inseparáveis porque os pontos singulares permanecem indeterminados, ou seja, não
sabemos se são pontos de cúspides ou pontos de inflexão, ou nós ou focos. Vocês conhecem
sua existência, mas ignorarão sua natureza enquanto não tiverem as curvas integrais que passam
nas proximidades. Somente elas dirão qual é sua natureza. Portanto, a emissão de singularidades
não é separável das curvas integrais. Inversamente, as curvas integrais são inseparáveis da pura
distribuição de singularidades no campo de vetores. Bem, é a mesma coisa. As relações de
forças se atualizam nas relações de formas que constituem o saber. É uma questão de
atualização.
29
Na gravação: “o estratégico se atualiza no estrato”.
30
Cf. ibid., Aula de 17 de dezembro de 1985.
31
Dada a importância desse trecho, damos sua transcrição exata: “Quand les rapports de forces s’actualisent, eux
25
dizendo é que, para se atualizar, é preciso que as relações de forças precisam se integrem.
Portanto, é muito simples e muito complicada, essa ideia.
Então vocês podem escolher: o mais simples ou o mais complicado. O mais simples está
muito bem, é muito claro. Foucault nos dirá: não se deve nunca partir das instituições para
entender o campo social. Porque instituições são integrações, são curvas integrais. São as curvas
de integração das relações de forças. Relações forças que são micropoderes [que] se integram
em grandes instituições. As instituições são molares. As instituições molares, ou seja, as
instituições de conjunto [d’ensemble] são integrações de relações de forças de toda essa
microfísica do poder. Por isso que não se deve partir do Estado nem da instituição para entender
o poder. O Estado e muitas outras coisas são processos de integração de. Do quê? De muitas
relações de poder que serão relações diferenciais. É simples, é isso o que significa microfísica
do poder. Como ele diz: o Estado é um estado terminal, é forma terminal. Instituições são
formas, são formas que integram microrrelações de poder. De modo que, se fosse necessário
designar por meio de um nome as relações de poder, as relações de força, o nome Estado não
seria de modo algum adequado.32
Qual seria então o nome conveniente? Foucault o diz num seu artigo publicado no livro
de Dreyfus e Rabinow sobre Foucault. Ele diz muito claramente que seria necessário ressuscitar
a antiga palavra governo,33 tomando-a em seu sentido mais geral, para designar, ao pé da letra,
todas as relações de forças, quaisquer que sejam. O pastor governa o rebanho. A nurse governa
as crianças, ela é chamada de governanta. O governo é a força, qualquer força que governa, que
impõe uma tarefa a uma multiplicidade qualquer. Ou seja, governo, nesse caso, é micropoder.
qui sont évanouissants, instables, etc., ça veut dire quoi? Beh, ça veut dire qu’ils ont une matière fluente, une
matière informe. Ils ont des fonctions diffuses, les foncions non-formalisées. S’actualiser c’est fixer la matière,
dès lors la former, et c’est finaliser la fonction, dès lors, la formaliser. Tout ce que je dis est que pour s’actualiser,
eh bien, il faut que les rapports de forces s’intègrent”.
32
“As formas e os lugares de ‘governo’ dos homens uns pelos outros são múltiplos numa sociedade: superpõem-
se, entrecruzam-se, limitam-se e anulam-se, em certos casos, e reforçam-se em outros. É certo que o Estado nas
sociedades contemporâneas não é simplesmente uma das formas ou um dos lugares — ainda que seja o mais
importante — de exercício do poder, mas que, de um certo modo, todos os outros tipos de relação de poder a ele
se referem. Porém, não porque cada um dele derive. Mas, antes, porque se produziu uma estatização contínua das
relações de poder (apesar de não ter tomado a mesma forma na ordem pedagógica, judiciária, econômica, familiar).
Ao nos referirmos ao sentido restrito da palavra ‘governo’, poderíamos dizer que as relações de poder foram
progressivamente governamentalizadas, ou seja, elaboradas, racionalizadas e centralizadas na forma ou sob a
caução das instituições do Estado”. FOUCAULT, M. “O sujeito e o poder”. In: DREYFUS, H.; RABINOW, P.
Michel Foucault: uma trajetória filosófica, p. 247.
33
Cf. FOUCAULT, M, Segurança, território, população, p. 162 sq. Foucault inicia neste curso suas análises do
poder a partir das noções de governo e de governamentalização do Estado.
26
Toda relação de forças, tal como uma força impõe uma tarefa a uma multiplicidade de outras
forças distribuídas em um espaço limitado, é um governo. Podemos ser governantes de crianças,
governantes de cidadãos... tudo isso dá no mesmo. O governo precede o Estado. Porque governo
diz adequadamente relações de forças, enquanto o Estado somente as encarna. Vejam, o
governo exprime as relações moleculares que constituem poder. Enquanto o Estado e outras
instituições são as curvas integrais que atualizam essas relações de forças.
Tanto é assim que Foucault dirá de maneira surpreendente: mas o Estado, vocês sabem,
não há essência do Estado. Por que as pessoas se perguntam qual é a essência do Estado? O
Estado é um processo, não há Estado, há processos de estatização. 34 E, novamente aqui, é
necessário generalizar essa observação de Foucault, porque se dirá a mesma coisa da família.
A microfísica do poder não é uma operação que consistiria em buscar nos pequenos conjuntos
o segredo dos grandes conjuntos. Não faremos microfísicas se explicarmos o Estado a partir da
família.35 A microfísica recorre a uma diferença de natureza entre o instituído, o domínio do
que é instituído, e relações de outra suposta força..., de outra natureza suposta por tudo o que é
instituído. De modo que a família também é uma instituição molar. É preciso dizer: não há
família, há um processo de familialização que varia e se define ao passo que se integra a certos
tipos de relações de poder. Integra certos afetos, integra certas singularidades no campo social.
O Estado integrará outras, e dependendo dos campos sociais... [inaudível], depende. Coisas que
estavam em outro campo, integradas pela família, poderão muito bem ser integradas pelo
Estado. Pode ser que uma instituição prevaleça sobre outras, isso varia a todo momento. Logo,
os estratos são perpetuamente retrabalhados [remaniées] pelas as relações de poder
incorporadas neles numa época dada.
34
“[...] renunciar a fazer uma teoria do Estado significa não começar por analisar em si e por si a natureza, a
estrutura e as funções do Estado [...] O Estado não tem essência. O Estado não é um universal, o Estado não é em
si uma fonte autônoma de poder. O Estado nada mais é que o efeito, o perfil, o recorte móvel de uma perpétua
estatização ou de perpetuas estatizações, de transações incessantes que modificam, que deslocam, que subvertem,
que fazem deslizar insidiosamente, pouco importa, as fontes de financiamento, as modalidades de investimento,
os centros de decisão, as formas e os tipos de controle, as relações entre as autoridades locais, a autoridade central
etc. Em suma [...] o Estado não é nada mais que o efeito móvel de um regime de governamentalidades múltiplas”.
Id. Nascimento da biopolítica, pp. 105-106.
35
“Assim como, para examinar as relações entre razão e loucura no Ocidente moderno, procuramos interrogar os
procedimentos gerais de internamento e segregação, passando assim por trás do asilo, do hospital, das terapias e
das classificações [...], para tentarmos descobrir a economia geral de poder, será que, no caso do Estado, é possível
dar a mesma virada? Será possível passar ao exterior? [...] Será que se pode falar de algo como uma
‘governamentalidade’, que seria para o Estado o que as técnicas de segregação eram para a psiquiatria, o que as
técnicas da disciplina eram para o sistema penal [...]?”. Id. Segurança, território, população, pp. 161-162.
27
Por exemplo, vocês poderiam se perguntar qual tipo de relações de poder uma instituição
como a família integrava no século XVI. E o Estado e a igreja? Hoje não seriam as mesmas
respostas. Coisas que, como se diz, eram da alçada da família e que passaram para o Estado. E
os processos de familialização, a ecclesia... a pastorização, os processos de pastorização, de
estatização variam de acordo com os estratos considerados, mas qualquer que seja o estrato
considerado, não há famílias nem sequer estrutura... Vejam como Foucault nunca é
estruturalista. Há processos de familialização, de estatização e são exatamente integrações, ou
melhor, não exatamente, são o equivalente do que os matemáticos chamam de integração. Pois
bem, o que seria muito interessante em Foucault, em nossa leitura de Foucault, seria dizer:
instituições são exatamente instâncias molares que atualizam, que integram relações de forças
moleculares. Então, o que é interessante é seguir a história... Eu disse que há um devir de forças,
mas há uma história das formas, portanto há uma história de instituições. Seria necessário fazer
uma história de cada grande instância molar que integra, de maneira muito variável de acordo
com as épocas, tais e tais relações de forças. Vejam, isso abre um campo enorme para a história.
O que são essas instâncias molares? No caso de uma família, o pai é a instância molar.
A integração como um processo institucional ocorre de acordo com uma grande instância molar,
o pai para a família. Hum. Para a política, pode ser o soberano, o rei, grande instância molar.
Nas sociedades de soberania as relações de forças se integram politicamente em torno da pessoa
do soberano. A integração jurídica ocorre em torno da instância molar, a lei. Isso deve
surpreendê-los ainda menos. Vimos em nossa primeira parte sobre o poder a grande crítica à lei
em Foucault, na qual ele nos disse que a lei é apenas resultado dos ilegalismos e nos propôs
essa noção incomum de ilegalismo. Vimos que o ilegalismo é válido somente no nível
microfísico.
Percebam, ele queria dizer que a lei é uma forma de integração. É uma forma de
atualização. Do mesmo modo, posso dizer que existe um grande corpo molar econômico, pois
economia, política, família etc., serão distintos no nível molar, no nível das formas. Por
exemplo, existe um corpo econômico, uma grande instância econômica. Qual é? Bem, digamos
que seja o dinheiro. Consigo identificar quais instâncias molares têm uma história. História do
dinheiro nos campos sociais. A história do pai nos campos sociais. Bom, e para a sexualidade,
há uma instância molar? Sim, há! A instância molar em torno da qual todas as relações
microssexuais e microssexuadas se atualizam, se integram. É o que chamamos de sexo.
28
Portanto, uma das teses fundamentais de A vontade de saber, livro no qual Foucault começa
sua história da sexualidade, é reivindicar uma sexualidade sem sexo. Está no final do livro, é
esplêndido.36
Vocês não entenderão nada sobre sexualidade se não a liberarem da grande instância
molar que apenas a atualiza ou atualiza seus efeitos, a saber, o sexo. Uma microfísica da
sexualidade deve ignorar essa instância molar. Mas o que é sexualidade sem sexo? Agora seria
o momento certo de fixar novamente tanto a diferença quanto a complementaridade entre molar
e o molecular. Micro e macrofísica. O que podemos chamar de sexualidade sem sexo? Sinto
que Foucault é muito apegado a isso, que para ele pensar em sexualidade a partir da noção de
sexo é uma maneira muito ruim. Não funciona assim. Sim, sim, a sexualidade se integra ao
sexo, mas, se vocês a confrontam com essa instância, não é bom. Uh... que acerto de contas
com a psicanálise, aqui! Está no final de A vontade de saber.
Então vamos tentar, devemos correr riscos... felizmente não são grandes riscos. O que
Foucault tinha em mente com essa história de sexualidade molecular e da sexualidade sem
sexo? Uma vez que essa formulação – eu não a invento – é... O recurso à sexualidade sem sexo
é objeto de toda a parte final d’A vontade de saber. Bem, Foucault estava pensando em algo
muito, muito específico. Hum, quero dizer, foi um aceno para um grande autor que depreendeu
essa questão maravilhosamente: Proust. Não quero dizer que Foucault se inspirou em Proust,
quero dizer [inaudível] ele reencontrava. Porque eu vou lhes contar... tenho a impressão de que
não a entendemos com a devida evidência. Qual é a curiosa concepção de sexualidade de
Proust? Vocês verão como isso nos abre [o horizonte] para uma compreensão desse problema
[da relação] sexualidade molecular – sexo molar.
Quando digo moça, rapaz, eu falo em termos molares, falo basicamente em termos
estatísticos. Meninas e meninos existem estatisticamente, moça é uma criatura estatística,
homem é uma criatura estatística. Sim. A propósito, eu poderia parar aqui. Mas Proust, em
36
Nas últimas páginas de A vontade de saber, trata-se de um verdadeiro programa de pesquisa: “Portanto, não
referir uma história da sexualidade à instância do sexo; mostrar, porém, como ‘o sexo’ se encontra na dependência
histórica da sexualidade. Não situar o sexo do lado do real e a sexualidade do lado das ideias confusas e ilusões; a
sexualidade é uma figura histórica muito real, e foi ela que suscitou, como elemento especulativo necessário ao
seu funcionamento, a noção do sexo. Não acreditar que, dizendo-se sim ao sexo, se está dizendo não ao poder; ao
contrário, se está seguindo a linha do dispositivo geral de sexualidade. Se, por uma inversão tática dos diversos
mecanismos da sexualidade, quisermos opor os corpos, os prazeres, os saberes, em sua multiplicidade e em sua
possibilidade de resistência às captações do poder, serão com relação à instância do sexo que deveremos liberar-
nos. Contra o dispositivo de sexualidade, o ponto de apoio do contra-ataque não deve ser o sexo-desejo, mas os
corpos e os prazeres”. FOUCAULT, M. A vontade de saber, pp. 148-149.
29
Sodoma e Gomorra (não é por acaso que ele usa esse título), explicará que existem três níveis.
Ele explica isso de uma maneira tão, tão bonita que não podemos mais seguir. É lindo demais.
Existem três níveis. Há o nível de grandes conjuntos molares. E pode ser uma releitura de todo
o conjunto de Em busca do tempo perdido, hein? Há grandes conjuntos molares. Em um campo
social, o conjunto de amores heterossexuais são distribuídos nesse campo. Essa é a ideia de
Proust. É um conjunto estatístico. Se vocês lerem Em busca do tempo perdido, verão que os
amores heterossexuais se apresentam dessa forma. Uma espécie de primeira camada, um
conjunto que atravessa todo o campo social. Mas esse conjunto tem tantos acidentes que
dizemos a nós mesmos... há tanta pena para que esse conjunto de amores heterossexuais
funcione normalmente que dizemos: é obscuro, existe algo embaixo. E o que há sob esse
conjunto horizontal? Esse conjunto horizontal (na música, diríamos um conjunto melódico).
Sob esse conjunto horizontal de amores heterossexuais distribuído em uma sociedade, há uma
descoberta que emociona com horror: duas séries verticais homossexuais. E, sob os tecidos dos
relacionamentos em que o homem se refere à mulher e a mulher ao homem, há duas séries
pontilhadas, verticais, uma pela qual o homem se refere apenas ao homem e o outra na qual a
mulher se refere apenas à mulher. Uma chamada Sodoma, para homens, outra chamada
Gomorra, para mulheres. Essas duas séries homossexuais independentes uma da outra, frente a
frente, estão sob predição abominável: cada um dos sexos morrerá de seu lado. É o domínio da
vergonha e da culpa, em todo caso o domínio do segredo. É o que Proust diz. E, muitas vezes,
nós leitores paramos por aí porque sempre queremos que nossos grandes autores sejam autores
de culpa. Então dizemos: bem, sim, então não há nada além. Mas ainda assim, para Proust, não
é o caso, porque a culpa existe, mas ele faz seu trabalho com certa facilidade.
E há um terceiro domínio, não é horizontal nem vertical. É preciso dar-lhe nome, ele é
transversal.37 Então, hoje eu gostaria que terminássemos aqui, para que vocês possam refletir.
O que é esse novo domínio, esse terceiro domínio? Sou esquemático... teríamos que fazer o
seguinte quadro para entender [Deleuze desenha na lousa]. Eis um homem global, global ou
molar. Eu o chamo H1. E Proust nos diz: vocês sabem, ele é globalmente um homem, por
predominância de um polo, mas ele tem os dois sexos. Tem ambos os sexos...
Predominantemente H, mas tem H e tem F. Vocês me seguem? Simplesmente, essa é a miséria
de nossa condição, temos ambos os sexos, mas eles são compartimentados [cloisonnés]. Essa é
37
Cf. DELEUZE, G. Proust e os signos [1964]. trad. Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2003.
30
uma ideia fundamental em Proust: tudo é sempre compartimentado. Ou seja, nunca se
comunica. Em Proust, as coisas estão sempre dentro de caixas, hein? É preciso abrir a caixa e
retirar o que lá está, e será sempre uma espécie de diabos de jardim japonês [inaudível]. Então
meu homem H1 tem ambos os sexos compartimentados. Isso significa que ele não será capaz
de se arranjar sozinho. Nós somos caracóis. O caracol é hermafrodita, mas não pode se fecundar
sozinho. Ele deve encontrar outro caracol que também é um hermafrodita. E incrível, não há
razão para invejar os caracóis. Vejam, aqui já existe o virtual, mas, para se atualizar, é preciso
passar pelo outro. O caracol é um hermafrodita, sim, mas virtual. No entanto, é real, mas não é
atual. É real, ele tem ambos os sexos. Mas não é atual. Só pode ser atualizado se envolver o
relacionamento com outro caracol. É o que chamaremos de o saber dos caracóis.
Agora eu posso pensar, hum... é a mulher 1, ela também tem dois sexos. Com
predominância do polo feminino. Ela é mulher-homem, mas é globalmente, molarmente
mulher. Mas vocês pressentem que isso não é suficiente. Se eu quiser fazer uma verdadeira
combinação de todas as situações possíveis, não posso fazê-la em pares. Preciso de pelo menos
quatro termos. De fato, por que o homem necessariamente se uniria à mulher e a mulher ao
homem? É condenável, mas é possível um homem se unir com outro homem e uma mulher com
outra mulher. Eu preciso de um H2 que, em si, seja homem e mulher, e de uma F2, que, em si,
seja mulher e homem. Entendem? Assim eu tenho a base molecular mínima. Vamos tentar as
combinações. Combinatória molecular. Notem que, enquanto eu permanecer com H1, H2, F1,
F2, estarei no domínio do sexo. Quando estou no h, f, com a combinatória possível, passo para
o molecular. Vamos tentar combinar. Começo com H1 e digo H1h. O homem considerado a
partir do seu polo homem, pode se relacionar com o quê? Pode se relacionar com: com H2h ou
com H2f. Globalmente, eu diria que é homossexualidade. Molecularmente, não é o mesmo.
Proust atribui grande importância a isso. Bom, descrevemos esse relacionamento.
31
os lados. Obviamente, é o terceiro nível que lhe interessa; é sua grande ideia, seu grande tema
da sexualidade vegetal, sexualidade inocente, sexualidade vegetal e inocente que ultrapassará
as séries de culpa.
Por isso, parece-me tão irritante quando paramos nas duas grandes séries de Sodoma e
Gomorra, séries ainda estatísticas. Assim, nesse nível, é de fato uma sexualidade sem sexo.
Sexualidade sem sexo que se apresenta apenas como as seguintes variáveis: o corpo e seus
prazeres. Essa expressão surge constantemente em Proust, e quando Foucault fala de uma
sexualidade sem sexo, não é surpreendente que se encontre correntemente, sob sua pena,
exatamente os termos corpo e prazer. Se Foucault recusa a noção de desejo, creio, é
precisamente porque ele se apega a essa ideia do corpo e de seus prazeres como sendo a única
expressão direta de uma sexualidade sem sexo. Vejam, chegamos aqui a uma sexualidade
molecular, enquanto os outros dois níveis estavam nos âmbitos estatísticos, molares ou globais.
Muito mais, Proust chega a dizer: prazeres locais; local se opondo a global em todos os sentidos
da palavra. Escutem, lembrem-se bem de onde estamos, pois acredito que não podemos mais
continuar, em todo caso, eu não posso.
32
GILLES DELEUZE
AULA 4
Aula 4: 28 de janeiro de 1986
PERGUNTA: [dificilmente audível] de modo que as mudanças das quais eu falava [...] o problema
dos representantes não está completamente resolvido aqui. Ou ainda não.
DELEUZE: os representantes... sim, se entendi direito é o marxismo e é o existencialismo. Mas
em qual sentido você os chama de representantes?
RESPOSTA: [dificilmente audível] eu os chamo representantes porque oficialmente e atualmente
são os representantes. [risos] O problema do marxismo não foi ainda removido [dégagé] [...]
em [...] as trocas entre poder e saber [...] Foucault [...] são perfeitamente traduzidas.
DELEUZE: Bom, sim, compreendo. Então, bem, como na última vez, começamos com um
parêntese; o que você diz vem a calhar, gostaria que vocês refletissem sobre isso mais tarde.
Então, farei aqui, não uma elaboração, como da última vez, em relação a algo que já tínhamos
visto no passado, mas um esclarecimento, uma espécie de advertência que só adquirirá seu
sentido posteriormente. Abro um parêntese sobre como pôr esse problema se, por exemplo, nos
perguntarmos quais são as relações do pensamento de Foucault tanto com o marxismo, quanto
com a fenomenologia ou o existencialismo? Compreendam, esta é uma história que não passa
simplesmente por teorias. Não se trata apenas de teorias, acredito muito mais que se vocês não
estão cientes de certo problema prático – uma vez dito que a filosofia de Foucault sempre se
reivindicou como prática –, não é possível entender como ele se situou em relação ao marxismo
ou à fenomenologia. Qual é o problema prático? Volto a um tema muito simples, mas
podemos... é mais um programa de trabalho pelo qual começo hoje. Um programa de trabalho
que, além disso, tentaremos cumprir mais tarde detalhadamente.
Nesta sala há um certo número de pessoas que são jovens demais para ter vivido em
1968; é lamentável porque... Não queria de modo algum conservar a nostalgia dessa época, mas
ao ver como certos autores – às vezes até se dizem filósofos – tratam dessa época, digo que algo
está errado em suas cabeças. Ao lê-los, teríamos a impressão de que 1968 foi uma história que
aconteceu nas mentes dos intelectuais parisienses. Uh... não é isso, compreendam! 1968 é um
efeito local, na França, de uma série de eventos [événements] mundiais e de correntes de
pensamentos internacionais. Sendo assim, como hoje existe provisoriamente um tipo de deserto
que entristece a todos, é difícil conceber um período recente que tenha sido um período de
florescimento. Mas se quisermos compreender o que aconteceu em 68, acho que devemos
considerar uma longa história na qual eventos mundiais e correntes de pensamento
2
internacionais se entrecruzam. Por isso, penso que, já respondendo à sua pergunta, não se trata
de confrontar, de modo abstrato, o pensamento de Foucault com o marxismo ou com a
fenomenologia, mas trata-se de ver como tudo isso se relacionou e como as relações entre tudo
isso são inseparáveis de eventos que aconteciam ou de correntes que se desenhavam no
pensamento. Pergunto-lhes: o que aconteceu de fundamental em todos os níveis? Foi, parece-
me, um questionamento do centralismo; seja o centralismo prático na ação política, seja o
centralismo no nível dos centros de pensamento... Como se exprimiram tais questionamentos?
Se eu fizer a sucessão dos eventos, se considerá-los, direi que, para não voltar muito no tempo,
de uma certa maneira, a base dessa crítica do centralismo é a experiência iugoslava. A
experiência iugoslava teve uma importância muito determinante: a ruptura de Tito com Stalin
e todo o tema vindo da Iugoslávia de autogestão. Foi um momento essencial. Segundo grande
evento... O que digo é muito sumário. Peço àqueles, a quem tudo isso diria algo, para refletir
sobre esses pontos, pois os encontraremos num nível mais detalhados ou mais... descobriremos
isso mais à frente.
Segundo momento: atribuo aqui espécies de singularidades na história. Digo:
experiência iugoslava; segunda singularidade: a dupla repressão, a repressão estalinista na
Hungria e depois na Tchecoslováquia. O movimento tchecoslovaco foi essencial. O terceiro
fator muito importante, acredito, foi o desenvolvimento de movimentos na América – tudo isso
bem antes de 68! – que se opuseram ao centralismo sindical. Todo um movimento operário que
questionava o centralismo no nível dos sindicatos. Na América, alguém chamado Romano foi
muito importante nessa fase na elaboração de estratégias, ele as apresentava como estratégias,
uma nova estratégia ou a de uma classe trabalhadora; o tema de uma nova classe trabalhadora.
É importante porque, na Europa e na França, desenhava-se também a ideia de um novo
sindicalismo agrícola. O tema: a classe trabalhadora se define hoje da mesma maneira que na
época de Marx? Na França, o tema de um novo sindicalismo agrícola se desenvolve com um
pensador chamado Serge Mallet e o tema de... ou o problema de “uma nova classe
trabalhadora”, com uma nova estratégia de luta, se cristaliza [inaudível], estranhamente, em
torno de Sartre. Especialmente com um autor próximo de Sartre, [André] Gorz, que escreve
artigos e um livro intitulados Vers une nouvelle classe ouvrière? Portanto, necessidade de
redefinir a classe trabalhadora. Tudo isso agitava muito. Aqui, considero praticamente apenas
os eventos: novo tipo de luta... A ideia de que um novo tipo de luta se formava, do qual temos
pouca noção, mas, se eu vos falar disso, mais uma vez, é porque estou convencido de que o
3
reencontraremos mais tarde... esbocei um certo número de eventos [inaudível] se entrelaçarem
com correntes de pensamentos, quais seriam?
Creio que, na origem de tudo, para lhe prestar homenagem, há o jovem Lukács. Digo “o
jovem” porque sua grande obra, História e consciência de classe,1 é um livro de juventude, e
ele fará uma autocrítica em seguida. Mas, em História e consciência de classe, já aparece o
problema de novas formas de lutas de uma maneira muito aguda, o qual veremos a importância
disso, devo dizer, da produção de um novo tipo de sujeito histórico, isto é, de uma nova classe
trabalhadora. Novo tipo de luta e produção, ao pé da letra, de um novo sujeito histórico, de uma
nova subjetividade. Digo que é no interior do marxismo de Lukács que esse problema aparece
mais claramente.
Segunda etapa, eles conhecem muito bem Lukács, a Escola de Frankfurt. Ela insiste
enormemente sobre um novo tipo de subjetividade e reinterpreta o marxismo em função de um
novo tipo de subjetividade. Há aqui quem conheça bem a Escola de Frankfurt. Posteriormente
acredito que é bastante ligada a Foucault, ao seu pensamento. Mais tarde, teremos que
especificar qual seria o tipo de sujeito [type de sujet] esboçado na Escola de Frankfurt.
Terceira etapa, creio que foi importante: o marxismo italiano, a reinterpretação do
marxismo por alguns italianos e o que já constitui os germes daquilo que, mais tarde, será
nomeado de autonomia. Um livro importante a esse respeito é o de Tronti, Ouvriers et capital,2
traduzido em francês. Essa obra também, em função e tendo por inspiração o que houve de
muito especial na economia e na política italianas, coloca muito bem o problema das novas
lutas, novas formas de lutas e o problema de uma nova subjetividade operária. Bom, aqui
também no contexto do marxismo. Simultaneamente, na França, um novo momento em torno
de Sartre, entre outros, se faz... Entre o marxismo italiano e a tentativa de Sartre em
existencializar o marxismo, se preferirem, está inteiramente [inaudível], precisamente sob essa
rubrica geral: produção de um novo tipo de sujeito. Insisto no elo que se constituiu, de fato, nas
práticas entre as ideias das novas formas de lutas e a produção de um novo sujeito. Se
observarem melhor esse elo, qual seria sua natureza? Antes de 68, o que é denunciado no
centralismo, por exemplo no centralismo sindical? É o caráter quantitativo da reivindicação. O
novo tipo de luta se define por ou se apresenta como promovendo um novo tipo de
1
LUKACS, G. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes,
2003.
2
TRONTI, M. Operai e capitale [1966]. Trad. port. Operários e capital. Porto: Edições Afrontamentos, 1972.
4
reivindicação, ou seja, a reivindicação qualitativa relacionada à qualidade de vida e não à
quantidade de trabalho, se quiserem, basicamente é [inaudível] bem resumido o que procuro
colocar aqui. Ora, se levarem a sério o tema da reivindicação qualitativa, relacionado à
qualidade de vida, vocês já têm o germe dos ecologistas, têm todos tipos de germes cujo
desenvolvimento continua agora, mas compreendam como se ligam os dois: novo tipo de luta,
isto é, lutas transversais e não mais centralizadas, produção de uma nova subjetividade; a
reivindicação qualitativa no cruzamento das duas: novo tipo de luta, produção de uma
subjetividade nova. Compreendem? Bem.
Ao mesmo tempo, na França, é sobre isso que, antes de 68, se constituem os grupos, os
grandes grupos que se encontraram em 68, seja para rivalizar, seja para se unir, mas, em uniões
que nunca pareciam unificações, eram como relações transversais. Era muito, muito
complicado: o que aconteceu à previdência [mutuelle] dos estudantes?3 Quem tomou assumiu
o poder dessa organização? Não era simplesmente uma história de estudantes, a organização
mutual dos estudantes administrava um orçamento colossal! Quando, em Estrasburgo, por
exemplo, os situacionistas ocuparam essa organização, era essencial que reclamassem,
instaurassem ou impusessem regulamentos orçamentários inteiramente heterodoxos em relação
à gestão centralizada de orçamento, que era... Não estava planejado que tudo isso acontecesse
de determinada forma, era verdadeiramente ações, ações... Ora, se [inaudível] me perguntarem
quais eram os grandes grupos? Bem, houve, em torno de Sartre, um primeiro grupo... nesse
relato dos eventos, esqueço o essencial. Voltarei ao passado, evidentemente, à guerra do Vietnã,
da Argélia, onde também compreendemos melhor o que significa “novas formas de luta”, uma
vez que nada foi previsto, não foram os sindicatos quem organizaram a luta contra a guerra da
Argélia, e mais, a luta contra a guerra da Argélia implica em quê? Obviamente em novas formas,
designadamente formas de redes que, por natureza, não podiam ser centralizadas.
Assim, se levarem em conta um primeiro grupo (primeiro não na ordem do tempo, eles
são simultâneos), distingo um grupo em torno de Sartre bastante ligado ao problema da guerra
da Argélia: o que era preciso fazer? O que não era preciso fazer? Quais redes? Como conceber
uma rede de ajuda ao FLN? Sob qual forma? Etc. Bom. Um grupo que vinha de uma ruptura
com o trotskismo, Socialismo ou Barbárie. Um grupo que se denominava Situacionismo. Um
grupo de oposição ao Partido Comunista centralizado que se chamava A Via Comunista, no
3
Trata-se de um fundo de previdência estudantil, cuja gestão em comum trouxe novas experiências e questões.
5
qual Guattari já estava bem antes de 68. E assim por diante... Mas acho que foram os principais,
antes de 68, na França. Esses grupos tinham algo de comum e de diferente, eles foram tomados
nesse duplo problema: produção de uma nova subjetividade, que não era um problema teórico,
mas algo que era feito, como se houvesse surgimento de uma nova subjetividade ao mesmo
tempo que constituição de novas relações estratégicas, ou seja, surgimento de novas formas de
lutas. Novamente, vejam que a ideia de uma luta qualitativa dá conta do laço entre os dois.
Agora, para responder-lhe um pouco, quero dizer, concretamente, isso atravessou e passou pelo
marxismo, pelo existencialismo e para questionar os dois. Isso acontecia ao mesmo tempo no
interior e no exterior. No interior, foram todas as reavaliações do marxismo, tanto na Escola de
Frankfurt quanto no marxismo italiano e no existencialismo sartriano.
Assim, creio que a questão que você coloca... concretamente a fronteira não está entre
o pensamento de Foucault, por um lado, e o marxismo e o existencialismo, por outro. O
pensamento de Foucault só pode ser compreendido em uma agitação interior que afetou o
marxismo, o existencialismo e o conjunto do pensamento dessa época. Desse modo, como
Foucault se situa dentro [là-dedans] desse quadro? Acredito que havia seguramente um
pensamento político e posições políticas de Foucault antes de 68, mas elas ainda não me
pareciam expressas filosoficamente. Depois de 68, o que acontece com Foucault? Bem,
obviamente, se fiz esse longo parêntese é porque não se pode compreender, não se pode pôr o
problema da filosofia política de Foucault independentemente desse contexto original. Também
não se pode ver, nem se perguntar qual é a novidade de Foucault, se não for sensível ao estado
da questão antes dele. Ora, não posso dizer que a originalidade de Foucault seja ter introduzido
o tema das lutas transversais, nem o tema da produção de um novo sujeito. Mais uma vez, esses
são os dados para o que foi chamado de, em sua forma mais geral, esquerdismo [gauchisme].
Não considero que seja uma história acabada, deve, ao que me parece, definir-se da seguinte
maneira: [? Unicamente] o esquerdismo é a prática e a teoria de um duplo problema. Assim, há
o esquerdismo marxista e o não marxista, há o esquerdismo existencialista e o não
existencialista. De todo modo, o esquerdismo é o cruzamento de dois problemas: há atualmente
novas formas de lutas? Há surgimento de uma nova subjetividade? Quer aconteça em um
contexto marxista, quer aconteça em um contexto existencialista, isso é o esquerdismo. Essa
dupla questão, antes de ter uma resposta a essas duas perguntas, vocês sentirão que, se as coloco
aqui, a resposta implicada já é “sim”; ainda que ela seja difícil dar à luz a essa nova
subjetividade, mesmo que essas novas formas de lutas sejam frágeis, sim, há uma nova forma
6
de lutas. Então, em qual medida é nova? Nessa altura, não é por acaso que o esquerdismo
buscará os grandes ancestrais, isto é, ele os encontrará provavelmente na Revolução Russa,
antes do esmagamento dos sovietes, dos conselhos dos operários, pois os conselhos soviéticos
recusavam precisamente a centralização e promoviam as relações transversais de um conselho
local com outro. De modo que os teóricos dos conselhos dos operários na época da Revolução
Russa serão como que ressuscitados pelos esquerdistas, que apontarão em Lenin o
esmagamento dos conselhos e a operação de centralização.
Bem, volto a Foucault. Quando encontrarmos o tema em Foucault, novamente, tema que
ele retoma integralmente, de novas formas de lutas e da produção de um novo tipo de sujeito,
não diremos que essa é a novidade em Foucault; pelo contrário, é a marca na qual Foucault se
insere nos eventos e nas correntes de pensamento na França, em 68, e em outros países, outros
acontecimentos em datas muito próximas. Significa afirmar o quão tudo isso está longe, longe
de discussões de filósofos; pelo contrário, estes que estão envolvidos com [?], mas não são
discussões teóricas. Assim, retomo a pergunta: o que aconteceu com Foucault? Bem, ele
desenvolve sua filosofia política após 68, na qual se insere completamente nessa, se podemos
dizer, problemática – chamando de “problemática” a soldagem de dois problemas, as lutas
transversais, a produção de um novo sujeito. Mas como ele o faz? Aqui também não acontece
de modo teórico [dans sa tête]. É quase... Com Foucault, é depois de 68. Bem, o que acontece?
Já sublinhei que são estritamente contemporâneos o trabalho de Foucault, Vigiar e punir e a
organização por ele de um grupo pós-68, cujo nome era Groupe d’Information sur les Prisons
[GIP], que participou ativamente no movimento das prisões desenvolvido depois de 68 e feito
sob forma... Mais uma vez, compreendam, na prisão é difícil pensar que possa haver um
movimento muito centralizado... pode se centralizar no nível de uma prisão preventiva [maison
d’arrêt], sim, mas centralizar no nível de um conjunto de prisões, é muito difícil. Então, um
tipo de luta que, por natureza, parece mais um rastilho de pólvora. Isso começa em Toul e depois
aparece subitamente em Rouen. Por que tomou esse caminho? E mais, quando a repressão se
abate aqui, explode em outro lugar. Bem, GIP – já falei um pouco sobre ele4 – desenvolveu-se
sob o impulso de Foucault. Eu lhes dissera que, em minha opinião, após 68, foi um dos únicos
grupos de esquerda que efetivamente funcionou, que não reintroduziu centralização nem
hierarquia.
4
Deleuze tratou do GIP na primeira aula do presente curso.
7
Os grupos pós-68, como o AGP, restabeleceram seu estalinismo, sua centralização; isso
sempre foi um perigo, pois aqui também não é um caso de teoria, é de prática; como um grupo
pode funcionar sem que haja líderes que se reconstituam? O AGP tinha seus líderes, eles eram...
bom, isso é tudo. No caso do GIP, todos sabiam que era Foucault e dele vinham as ideias.
Acontece que ele soube não se comportar como líder, que os grupos GIP constituídos na
província não estavam centralizados em Paris, tudo isso. Na verdade, tinha muitos
inconvenientes, mas havia também vantagens, e isso é um aspecto. Foucault chegou ao ponto
no qual se encontra nele termos que já eram caros à... após 68, que já eram os de Guattari antes
de 68. Por exemplo, Guattari, por volta de 68 ou antes disso, empregava o termo
“transversalidade” para indicar o caráter dessas novas lutas, as lutas transversais, e
encontraremos, após 68, em Foucault, esse tema das lutas transversais. Guattari lançou um tema
que chamava de micropolítica do desejo, e após 68 encontramos em Foucault a microfísica do
poder. Acredito que a microfísica do poder em Foucault é muito diferente do que Guattari
concebia sob o termo micropolítica do desejo, mas não deixa de haver neles uma afinidade.
Ora, Foucault não concebe a micropolítica do poder apenas teoricamente e nas relações que
acabei de dizer com correntes de pensamentos anteriores, mas, praticamente, a concebe em
relação com o GIP, instaurado por ele mesmo. Esse é um aspecto.
Agora, muito curioso... vocês sabem, quando alguém renova problemas, os faz num
certo ritmo. Os problemas, se não têm referências práticas, não são bons problemas. Nada
acontece na cabeça. Jamais. As coisas acontecem sempre no mundo, inclusive as ideias. As
ideias são mundanas, não cerebrais. Ou são cerebrais porque o mundo é um cérebro. Mas, nesse
aspecto, Foucault se detém, parece-me, nas novas formas de lutas. A prática era o grupo de
Informação Sobre as Prisões, a teoria era Vigiar e punir. Ele precisou de muito, muito tempo –
mas isso valeu a pena – para chegar ao outro aspecto do problema: a produção de uma nova
subjetividade, problema que se colocará no mesmo período em que ele escreve seus últimos
livros, ou seja, não muito antes de sua morte. Então, gostaria de insistir nisso. Vocês me dirão:
mesmo assim demorou muito tempo, apesar desses dois problemas – pelo que acabei de dizer
– estarem ligados. Sim, levou tempo porque ele necessitava de tempo, certamente, para não
descobrir abstratamente o elo entre os dois problemas – não havia mérito nisso –, mas para
organizá-los de acordo com seu próprio pensamento, para renová-los e para vivê-los na prática
assim como para pensá-los teoricamente, para trazer essa renovação dos dois problemas em um
período que não era particularmente favorável, porque já havíamos começado a entrar no
8
deserto atual, do qual não saímos... portanto, e fundar historicamente esse problema: as lutas
políticas e sociais, por um lado, a produção de uma nova subjetividade, por outro. Tudo isso
para inovar e dizer algo importante, ele levou muito tempo.
Mas posso dizer que toda sua filosofia política – sob seu duplo aspecto, as novas formas
de luta, que encontram uma expressão em Vigiar e punir, e a produção da subjetividade, que
encontra uma expressão em um dos livros finais, O uso dos prazeres –, encontra seu princípio
concreto nessa história, na época de 68, sem que se reduza a ela. De tal forma que a verdadeira
questão finalmente seria, se quisermos compreender corretamente (são todos os grupos, os quais
acabei de mencionar, a Escola de Frankfurt, o marxismo italiano, o jovem Lukács), como esses
grupos conceberam as novas lutas e a produção de subjetividade. Somente se compreende isso,
por exemplo, nesse nível, que [a revista] Socialismo e Barbárie não era a mesma coisa que o
situacionismo etc., não era a mesma avaliação, nem a mesma concepção do que significa ser
sujeito; foi um tempo rico no sentido de que tudo isso pululava bastante.
Bom, é quase isso. Então, talvez pareça que não respondi à sua pergunta, mas, para mim,
a respondo dizendo: não há necessidade de confrontar o pensamento de Foucault com, por um
lado, o marxismo, por outro, o existencialismo. A rigor, deve-se ver toda uma – a palavra é
conveniente – microagitação que ocorre no marxismo, no existencialismo, e o pensamento de
Foucault nunca será independente nem separável de tudo o que aconteceu como renovação ou
reinterpretação do marxismo, desenvolvimentos do existencialismo, mesmo que seu contexto
específico seja bem diferente daquele do marxismo e do existencialismo. Desse modo, quando
considero as estruturas teóricas, posso dizer que Foucault está muito longe do marxismo ou do
existencialismo, mas se considero as microestruturas, ou seja, toda essa agitação que renovou
o marxismo de dentro [du dedans] ou que desenvolvia o existencialismo, digo que nesse
momento Foucault se enraíza nessa agitação. Ele extrairá dela novos efeitos à sua maneira.
Após a mudança do semestre, retomamos isso. Há alguns dentre vocês que conhecem
particularmente bem, eu acredito, essas correntes do marxismo Italiano, a Escola de Frankfurt,
e talvez Lukács. Faremos uma ou duas reuniões em torno de Foucault, mas centradas nesses
temas que são comuns a toda essa época.
Questão: Inaudível.
Resposta: sim, sim, há o manifesto! Eric sabe disso melhor do que eu. Quais são as datas, Eric?
As datas, os grandes manifestos, as grandes organizações em torno de... precedem a autonomia
[italiana]... O livro de [Mario] Tronti, você se lembra qual o ano?
9
[Deleuze]: Ah sim! Muito antes! Operai e Capitale de Tronti é de 66. Então o que há antes de
68?
Resposta: [inaudível]
[Deleuze]: nesses grupos..., tenho a sensação de que já havia, que estavam em relação com
Sartre... já havia sartrianos. Aliás, Tronti deve conhecer Sartre, não acha?
Resposta: [inaudível]
[Deleuze]: sim, entre os situacionistas, já que quando tomaram, por um golpe surpreendente,
quando conquistaram a organização mutual de Estrasburgo, entre eles haviam italianos. Havia
a corrente italiana, como dizíamos, sim, sim.
Questão: O pensamento político de Foucault e, principalmente, a ideia da política como arte
do cinismo e não como arte da mentira, não como a ideologia – sua colocação “vê-se tudo o
que se pode ver” – não está ligado a uma situação conjuntural da Europa, ou seja, o engajamento
da classe operária com o imperialismo? Pois a partir disso torna-se cínico, isto é, não há mais
razão para lutar? A questão da luta de classes é superada, mas uma superação que não é apenas
no nível intelectual, é superada pela conjuntura; a própria classe trabalhadora engajada no
imperialismo e, a partir disso, tem-se uma concepção de política como arte do cinismo: vê-se
tudo que se pode ver, mas nada se faz porque não há interesse em mudar...
Deleuze: Essa posição nunca foi a de Foucault. Quero dizer, o que você disse, tanto o cinismo
quanto não haver razão para agir nunca foi a posição de Foucault.
Interlocutor: Não, mas a ideia que ele tem da política, sempre como... os políticos não são
mentirosos, não mentem, dizem a verdade...
Deleuze: sim.
Interlocutor: é verdade, mas não se pode explicar isso a partir do engajamento da classe
trabalhadora com o imperialismo, porque, em um país como o Brasil, por exemplo, onde os
políticos não dizem tudo o que se diz aqui, não penso que devamos compreender a política da
mesma maneira. Penso que em países como o Brasil, os focos de resistência são muito mais
evidentes. Não se vê tudo o que se pode ver, isto é, as noções de ideologia têm alguma chance
de existir, mas não na França, na Europa, porque não se vê o interesse de mudar.
Deleuze: Eu temo que essa formula não seja uma fórmula literal de Foucault, que essa fórmula
que propus para tornar as coisas mais claras, “numa época na qual sempre se vê o que se pode
ver e sempre se diz tudo o que se pode dizer”, possa resultar em mal-entendidos muito graves,
porque, pelo menos na minha opinião e certamente no pensamento de Foucault, ela é válida
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sempre e em todo lugar. Quero dizer: não há dois tipos de política, uma onde se diria [tudo] e
outra onde não se diria.
Se eu pegar exemplos recentes, tanto na França quanto em qualquer país de um outro
continente. Peguem a plataforma eleitoral de hoje, publicada na íntegra, podemos lê-la e lhe
asseguro que Chirac e Lecanuet dizem tudo. Eles dizem tudo. Não podemos dizer que são
mentirosos e hipócritas que fazem promessas que não manterão. Eles fazem promessas e as
cumprem. Basta ler o texto: eles dizem tudo. Não podemos dizer: ah, fomos enganados. Quando
eles falam de liberalismo, explicam muito bem em que consiste, dizem tudo. Então, isso é
específico de países cínicos? Mas não há nenhum cinismo em dizer tudo... Essa noção de
cinismo, pessoalmente não a compreendo absolutamente, não há cinismo. Dizemos tudo que se
pode dizer, mas não há cinismo. Ora, pergunto-lhe: na África do Sul, eles mentem? Eles não
mentem de modo algum. Eles enganam? O Apartheid consiste em esconder? Mas eles não
escondem nada. É muito simples: não é por cinismo que se diz tudo, mas porque não se pode
fazer de outro modo. Mas o que vocês querem que eles escondam... Nunca há nada a esconder,
nada atrás da última cortina, nada. Eles o dizem. Simplesmente, vocês me dirão: eles o dizem
a quem? Esse começa a ser o problema interessante. Uma vez dito que eles nada escondem, a
quem eles o dizem? Respondo: àqueles que se dão ao trabalho de ler. Então é muito raro, é
nisso que eles jogam.
Tomo outro exemplo: o Chile. Não digam que Pinochet esconde alguma coisa. Ele
nunca escondeu nada. Quando ele diz: defendo a civilização cristã, não se esconde. Se lhe
perguntam “como você define a civilização cristã?”, as definições que ele oferece sobre a
civilização cristã são perfeitamente claras. São assustadoras, mas, bom, ele não esconde nada.
Então, não é de modo algum um princípio que se aplique à velha Europa, é um princípio
absolutamente de política universal, eles não escondem nada porque não podem, não têm
nenhum motivo para esconder. Novamente, se coloco a questão: sim, mas a quem eles dizem?
Respondo: àqueles que sabem ler. Logo, numa civilização isso quer dizer algo, nem todos
sabem ler. Desse modo, vocês poderiam me dizer: ah, sim, mas, precisamente, nos países
chamados de Terceiro Mundo, há muitas pessoas que, a rigor, não sabem ler. Logo, obviamente
algo está escondido deles, ou então, eles não ouvem o discurso, não podem ouvir o discurso
dominante.
No começo do ano, vimos esse ponto, quando estávamos interessados no que Foucault
chamou de enunciado, vimos que quem pronuncia o enunciado, o sujeito, e aqueles a quem se
11
endereçava o enunciado eram variáveis do próprio enunciado. Naturalmente, se eu disser
“decreto a mobilização geral”, estarei louco, porque apenas o presidente da república tem o
poder de dizê-lo. “Decreto a mobilização geral” é um enunciado que tem como variável interna
o presidente da república, único habilitado para isso. Dito por mim, esse enunciado é uma
proposição vazia que não implica nenhuma consequência, exceto a de me prenderem se eu
andar pelas ruas gritando: “decreto a mobilização geral”. Nesse sentido, o fato de que o que é
dito nos enunciados dirigir-se apenas a alguns destinatários, não é de modo algum limitação do
enunciado; ele remete a variáveis internas ao enunciado perfeitamente determináveis. A quem
ele se endereça? É uma variável interna do enunciado, segundo Foucault. Bom. Então, fecho
esse longo parêntese. Mas novamente gostaria de que não esquecessem, por que isso se
encontrará no final de nossa pesquisa. Lá, voltaremos sobre esses pontos quando abordaremos
a questão “o que é uma nova subjetividade?”.
Comtesse: Há ao menos uma coisa que todos os partidos políticos, os sindicatos, sem nenhuma
exceção, escondem atualmente de todos, que o desemprego é um problema [inaudível] e a nova
tecnologia produzirá novos trabalhadores e aumentará o número de trabalhadores. Hoje, é a
coisa mais mascarada por todos sindicatos e partidos políticos.
Deleuze: Tenho medo, Comtesse, de que você “decrete a mobilização geral”. [Risos]. Talvez,
eu concordo.
Comtesse: O que não se diz é que quase todos os trabalhadores serão eliminados nos próximos
anos, e que no ano de 2000 restará apenas aproximadamente 10% de trabalhadores que
trabalharão ainda com informática e escritórios, novas tecnologias em geral. O que ninguém
diz, hoje em dia, é sobre o que acontecerá com todas as pessoas que não trabalharão mais.
Deleuze: Isso porque eles não sabem... Quando você diz: ninguém disse, escuta, você exagera,
hein?
Comtesse: [Eu discuti sobre esse tema publicamente com o segundo de] Edmond Maire [da
CFDT]. [No congresso do Partido Socialista, ele declarou que as tecnologias produziriam [um
aumento no mercado de trabalho nos próximos anos... Isso é uma absoluta conversa fiada
[baratin].
12
Deleuze: Bem, veja, você o diz. Então, escute-me, vou repetir um discurso que muitos ouvem,
por exemplo, da boca de Raymond Barre.5 Esse discurso – desde a época em que Raymond
Barre era, já no final de seu momento como ministro, mas com mais razão agora – ganhou ainda
mais amplitude. Ele consiste em nos dizer, vocês sabem: a ideia de um estatuto, de uma garantia
estatuária do trabalho é algo que se refere a um certo momento do capitalismo. E acrescenta:
eu não faço demagogia, digo-lhes: o estatuto, a garantia estatuária do trabalho é uma coisa cada
vez mais a ser revista e questionada, e será necessário conceber e dar muito mais importância
ao trabalho primeiramente parcial; segundo lugar, ao trabalho provisório; terceiro lugar, a todas
as formas de trabalho sem estatuto. Haverá uma flexibilidade de emprego, fazendo com que a
própria noção de estatuto de garantia seja uma noção para alguns privilegiados, cujos interesses
consistirão em fechar suas bocas porque serão cada vez menos numerosos.
Concorda comigo, Comtesse, de que é o discurso de Raymond Barre e não acrescento
nada. Não podemos pedir a alguém para dizer isso de maneira melhor. Então, quando você faz
esta descoberta importante, creio que não seja o único. Podemos apenas dizer que Raymond
Barre toma a dianteira, isto é, ele nos prepara, sim, todo mundo compreende muito bem o que
ele quer dizer. Ele quer dizer: sindicatos, hein? Sindicatos, parem de irritar porque vocês
militam por um trabalho garantido por um estatuto. Vocês já estão obsoletos no capitalismo
atual. Aqui, eu reencontro meus temas: se houve uma reinterpretação importante do marxismo
na Itália, por que ela se deu? Porque de todos os países europeus, antes mesmo de 68, a Itália
foi precursora. Ela era precursora com e porque um vasto setor do mercado negro se integrou à
sua economia muito antes da crise atual. A crise italiana... o que tornou a Itália muito importante
em toda essa história que tento refazer é que um amplo setor... era realmente, fazia parte de sua
economia, e já as formas de trabalho parcial, de trabalho provisório se afirmaram na Itália muito
antes de aparecerem nos países europeus. Acredito que esse setor muito curioso da economia
italiana, do qual a economia italiana teve necessidade por razões específicas, antes de que isso
acontecesse em outros países da Europa, fez com que, na Itália, houvesse todos os fermentos
para um tipo de agitação ou de autonomia para a descoberta de um novo setor de autonomia.
Compreendem? Bom, reencontraremos tudo isso [mais tarde].
5
Vinculado ao gaullismo, Barre foi Primeiro-ministro de Giscard d’Estaing de 1976 a 1981. D’Estaing foi
considerado por Foucault um dos introdutores de políticas neoliberais na França. Cf. FOUCAULT, M. Nascimento
da biopolítica. Op. cit., aula de 7 de março de 1979.
13
Bom, voltemos ao nosso problema. Definimos essas relações de poder segundo Foucault
e nossa questão era: elas são fluidas, pontuais, multipontuais, difusas etc., como elas irão se
fixar? Como vão se fixar essas relações de poder extraordinariamente móveis,
extraordinariamente difusas? Como vão se fixar, se globalizar? Equivale a dizer: aqueles que
não tem forma, como eles tomarão forma? De fato, o poder vai de um ponto a outro, de todo
ponto a todo ponto, mas em si mesmo é informal, a relação de poder é informal. Bem, como
tomará forma, ou seja, como vai se fixar e se estabilizar? Ou então: ele é estratégico, mas com
irá se estratificar? Ou então: como irá se atualizar, uma vez que as relações de poder em si
mesmas surgem, desaparecem? A rigor, elas são virtuais. Como elas irão se atualizar? Ou, o
que dá no mesmo, como elas tomarão forma, como se estratificarão e se atualizarão? É
passagem – como vimos da última vez – do molecular ao molar.
A primeira resposta de Foucault afirma que as relações de poder são informais, mas elas
se integram nas formas. As formas, as grandes formas sociais são integrações das relações de
poder múltiplas. Em outras palavras, essa primeira resposta – insisto nisso, ela é apenas a
primeira resposta, veremos o porquê – consiste em nos dizer: a atualização é uma integração.
As relações de poder são relações, se podemos dizer, moleculares, microrrelações, que se
integram nas formas globais, integração global. Essas formas sociais de integração são o que
chamamos de instituições.6 Disso decorre a inversão operada por Foucault, na qual não é a
instituição que explica o poder, é o contrário, o poder explica a instituição na medida em que
as relações de poder se integram nas instituições. Diante disso, qual é o papel da instituição?
Não é de modo algum produzir poder, mas dar ao poder o meio de se reproduzir. Na instituição,
o poder se reproduz, isto é, estratifica-se, torna-se estável e fixo. Desse modo, é uma passagem
do micro ao macro ou, segundo o que vimos, do molecular ao molar.
6
“As relações de poder são relações diferenciais que determinam singularidades (afetos). A atualização que as
estabiliza, que as estratifica, é uma integração: operação que consiste em traçar ‘uma linha de força geral’, em
concatenar as singularidades, alinhá-las, homogeneizá-las, coloca-las em séries, fazê-las convergir. Ainda assim,
não há integração global imediatamente. Há uma multiplicidade de integrações locais, parciais [...]. Os fatores de
integração, agentes de estratificação, constituem instituições: o Estado – mas também a Família, a Religião, a
Produção, o Mercado, a própria Arte, a Moral... As instituições não são fontes ou essências, e não têm essência
nem interioridade. São práticas, mecanismos operatórios que não explicam o poder, já que supõem as relações e
se contentam em ‘fixá-las’”. DELEUZE, G. Foucault. Op. cit., p. 83. “A genealogia não interpreta simplesmente,
ela avalia. Até agora apresentamos as coisas como se lutassem e se sucedessem em relação a um objeto quase
inerte. Mas o próprio objeto é a força, expressão de uma força. E é por isso que há mais ou menos afinidade entre
o objeto e a força que dele se apodera. Não há objeto (fenômeno) que já não seja possuído, visto que, nele mesmo,
ele é, não uma aparência, mas o aparecimento de uma força”. DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia. Op. cit., p. 6.
14
E invoquei isso porque me parecia particularmente interessante e, sobretudo, muito belo
no texto de Foucault, no fim de A vontade de saber, em que ele invoca o que chama de uma
sexualidade sem sexo. Uma sexualidade sem sexo, eu diria, é uma sexualidade molecular. Se
tento definir a sexualidade como conjunto de relações de poder, como conjunto de relações de
forças, no plural, eu diria: é sexualidade molecular. Estávamos aqui, eu tropecei da última vez,
porque... não me encontrava mais em minha combinatória. Eu diria: sim, temos que nos ajudar,
para tentar compreender, vamos correr riscos.
O que significa uma sexualidade sem sexo, uma sexualidade molecular, os amores
moleculares. Existem amores moleculares? Sim, seguramente temos amores moleculares, mas
em que consistem? O que se vê são amores globais, mas os amores moleculares são, talvez,
necessariamente inconscientes. Como vejo basicamente quem eu gosto, mas o que gosto em
quem gosto, isso já é mais obscuro, é molecular “o que gosto em quem gosto”. Quem eu gosto,
é molar. É uma pessoa, e uma pessoa é uma instância molar. Mas o que gosto nela? Esse
pequeno gesto? Bem, é isso que gosto, gostaria! Talvez seja outra coisa, mas vejam que não é
o mesmo domínio, o dos microamores. Nos amores molares, há sempre molecular. Uma
pequena mecha! Em outras palavras, são sempre traços, não formas. As formas fazem parte do
amor molar: ah, ela é linda! Como ela é linda! Tem um nariz grego! Bom, isso são formas. Mas
os traços dinâmicos....7 Quando ela, uh, [risos], ah, não estou em forma... quando ela joga seus
cabelos para trás é formidável, não é uma forma, é molecular. Ou como a maneira que ela
encolhe os ombros! Bem, bem... e outro não vê nada, e pergunta: ela encolhe os ombros? Estes
são nossos amores moleculares.
Eu dizia bem, vamos nos ajudar em tudo que pudermos para compreender essa
sexualidade sem sexo. Parece-me evidente que – ele não disse, mas não importa – ele pensa em
Proust, pois este é realmente quem fez um panorama dos amores moleculares e, caso contrário,
não se pode compreender Proust. Então é perfeito, com isso podemos entender Proust e
Foucault: é mais do que pedimos. Vejam o que ele faz: Proust está antes de tudo em Sodoma e
Gomorra. Minha combinação para chegar ao limiar, pois se mergulharmos nos amores
moleculares, aí será terrível. Mas se nos mantivermos no limiar, o limiar molecular... Se tomo
instâncias molares, tenho homem e mulher. Mas, para reservar um direto a todas as anomalias,
devo desdobrar porque as relações amorosas podem ser: homem-homem, mulher-mulher, tanto
7
Deleuze parece fazer uma brincadeira enquanto dava continuidade ao seu pensamento.
15
quanto homem-mulher. Então tenho dois homens: H1 e H2, duas mulheres, F1 e F2. Logo, o
limiar molecular é muito simples; se eu disser: mantenho uma macrossexualidade, equivale a
dizer que, sim, há centralização sob a forma deste ou daquele sexo, homem-homem, mulher-
mulher. Como passo ao limiar molecular? Suprimo a centralização. Observem, ao mesmo
tempo que vocês me seguem, é necessário que digam a si mesmos o que nos interessa no nível
do problema em que estamos atualmente, é o caminho inverso. Como surge a centralização?
Sou forçado a tomar um outro sentido.
Bem, cada um tem os dois sexos ao mesmo tempo. Vocês perguntarão: então, são ainda
sexos? Não, chamá-los-emos de polos. Cada um tem dois polos. Na verdade, ele tem apenas
um único sexo, mas dois polos: polo-homem e polo-mulher. H1, homem, tem dois polos, (h) e
(f). H2 tem dois polos, (h) e (f). Foucault tem dois polos (f) e (h). Obtenho o sexo global de
alguém em virtude do polo prevalecente. E mais, são necessárias outras operações, mas pouco
importam, não devemos complicar. Então, na última vez que procurei as combinações
possíveis, não sei o que me acontecia, eu via sete, não sei o porquê. Obviamente não são sete.
Aliás, esqueci a regra. Não é difícil: com quatro termos, dos quais cada um é dividido em dois,
não me lembro da regra, muito simples, tanto que devo refazer empiricamente. Ora, obviamente
que, se parto de um termo, terei quatro relações, se tomo o segundo terei três, se tomo o terceiro
terei duas e se tomo o último terei apenas uma relação, já que os outros estão cobertos. Assim
eu tenho 4 + 3 = 7; 7 + 2 = 9; 9 +1 = 10; tenho 10 relacionamentos possíveis que serão relações
de força ou relações de poder na micro-sexualidade, logo tenho minha lista dessa vez. Partindo
de H1h, terei H1h em relação com H2h (um); em relação com H2h (dois); em relação com F1f;
em relação F1h. Essas são minhas quatro relações. Não há necessidade de dizer F2f e F2h
porque é a mesma coisa do ponto de vista H1h. Vocês concordam que há quatro relações? (H2h,
H2f, F1f, F1h), quatro microrrelações.
Passo para Foucault, F1f. Desta vez tenho três relações, necessariamente, porque haveria
quatro por direito, mas há uma delas que é tomada por minhas séries precedentes. Logo, só
posso ter três. Então F1f estará em relação com H1f, F2f, F2h. Quanto à relação F1f-HIH, ela
é obtida na série anterior. Assim, tenho apenas três, e isso me faz sete (4+3 = 7). Se tomo agora
H1f, pela mesma razão terei mais que dois, pois, por direito, haverá 4 relações, mas uma será
tomada na série H1h, e a outra na série F1f. Portanto, para H1f, teria: H2f e F1h. São exercícios
práticos, é uma aula de sexologia. Não vejo qual uso vocês podem fazer deles, mas não se sabe
[risos]. Finalmente, se tomo F1h, tenho apenas uma única relação com F2h. Logo, tenho 10
16
relações moleculares. Isso define a série de amores moleculares. Disso decorre os textos
extraordinários de Proust em Sodoma e Gomorra, em que ele diz: mas vocês sabem que
“homossexualidade” não quer dizer grande coisa, porque um homem pode ter com uma mulher
os prazeres que espera de um outro homem. De fato, considerem a combinação H1h em relação
com F1h. É claro. Nesse nível, há uma multiplicidade de relações; é uma micro-sexualidade.
Pergunto-lhes: se me concederem essa micro-sexualidade, vocês conseguem ver nossa junção
com o problema de Foucault, como ela se integra? Essa micro-sexualidade se integra de dois
modos. Eu diria que há uma integração. Vamos colocar desse modo: ela se integra primeiro
verticalmente em duas séries homossexuais. A série HH é geralmente homossexual masculina.
E há outra série homossexual feminina FF. Ora, entre minhas dez combinações, essas duas
series se baseiam em seis combinações. Seis em cada dez. Na verdade, três para HH, três para
FF. Assim, tenho outra integração, que a nomeio de horizontal. Desta vez, são quatro séries
remanescentes que se integram nos amores heterossexuais, ou seja, na serie HF. Em que isso
diz respeito a Proust? Concerne a Proust porque eu lhes disse: se seguirem o esquema de amores
em Sodoma e Gomorra, talvez compreenderão desse modo o caminho de Proust. Há alguns
notórios homossexuais em Em busca do tempo perdido e há amores heterossexuais, por
exemplo, o narrador e Albertine, o narrador e Gilberte. Ele parte de uma espécie de conjunto,
este constituído pelos amores heterossexuais, o que fará toda a concepção [?]. Assim, desses
amores, ele obtém com angústia e horror duas séries homossexuais. O narrador gosta de
Gilberte e depois gosta de Albertine. Ele perceberá que, provavelmente, provavelmente,
Albertine é culpada, ela amou e amará outras mulheres. Ele extrai de um amor heterossexual
uma série homossexual.
Por outro lado, é a mesma extração. Charlus, série homossexual. Como Albertine se
refere em segredo a outras mulheres, Charlus se refere em segredo a outros homens. Lembrem-
se de que a ideia de Charlus é homossexual, por mais evidente que seja, só é descoberta pouco
a pouco pelo narrador, Charlus é estranho, parece louco, e só mais tarde que o narrador
compreende: ah, o segredo de Charlus era esse. Ele deixa de perceber que o segredo dele não é
[?] essa homossexualidade... enfim, pouco importa. Assim, ele extrai do conjunto de amores
heterossexuais duas séries homossexuais, e, aí estão as grandes páginas de Proust sobre a culpa,
a culpabilidade original dos amores culpáveis a priori. Por que culpáveis a priori? Porque
Albertine remete necessariamente a outras mulheres. É a abominável profecia: cada sexo
morrerá do seu lado, os sexos são separados.
17
Eu dizia que seria uma falta do leitor, ater-se a isso. É o nosso gosto pelo trágico, disse
isso da última vez. Mas para os grandes autores, geralmente, o trágico é sempre um mau
momento para passar e precisamos nos dirigir a margens mais felizes. Dizemos: sim, o que
Proust chama de raça amaldiçoada – na verdade, há duas raças malditas: a de Sodoma e a de
Gomorra, a raça da homossexualidade masculina e a raça da homossexualidade feminina – e,
vejam bem, o conjunto de amores heterossexuais se decompõe conforme essas duas séries
amaldiçoadas. Mas, eu lhes disse: Proust não permanece aí. A culpabilidade, mais uma vez, ele
faz dela seu caso, mas sob qual forma? Ele percebe que essas duas séries não são a última
palavra da sexualidade e elas estão imersas num tipo de conjunto, de multiplicidade de natureza
completamente diversa do conjunto dos amores heterossexuais, dos quais partimos. Ou seja,
em um tipo de sexualidade molecular em que não há mais sexo em sentido estrito, mas há polos;
em que não há mais duas séries, mas dez relações de um polo com outro, isto é, de um ponto
ao outro; em que, aqui, não são duas formas homem e mulher que estão em relação – seja para
unir, seja para separar –, mas na qual todos os tipos de relações se tendem entre dois pontos: o
ponto h e o ponto f estão contidos nas grandes formas H e F. Aqui, temos dez relações que
constituem a sexualidade molecular.
Bem, passo para Foucault. A sexualidade sem sexo é essa sexualidade polar, esse
conjunto das dez relações que acabamos de ver é a multiplicidade molecular, o conjunto das
relações forças ou de poder que definem uma sexualidade molecular. Sobre isso, vejam, é como
um virtual, que cada vez a questão mais simples da sexualidade molecular não é se um homem
gosta de uma mulher, mas um homem amando uma mulher, qual polo dele está em relação com
o polo da mulher? Meu polo masculino está em relação com o polo masculino da mulher? Ou
com o polo feminino? Ou o contrário, meu polo feminino está em relação com... Isto é, quatro
relações só para mim, quatro para o outro. Isso se complica e pergunto então: como se atualiza
essa sexualidade molecular, tão virtual, difusa, impossível de localizar? Como ela produz algo
de estável? Um amor estável e fixo? Um amor instituído e institucional? Precisamente, eu diria
que as duas séries homossexuais são integrações, primeiras integrações da sexualidade
molecular, mas os amores heterossexuais são como uma segunda integração.
Digo isso porque me serve muito, em matemáticas, na teoria do integral, distinguimos
as integrações ditas locais e as integrações globais. Eu diria: as duas séries homossexuais são
as integrações locais da sexualidade molecular e os amores heterossexuais são a integração
global dos amores moleculares. A sexualidade sem sexo se integra no sexo, seja sob a forma
18
dos dois sexos separados, estrutura bissexual, seja sob a forma do sexo como grande
significante. O sexo não é a sexualidade, mas a integração desta. Por isso digo: sexualidade sem
sexo. Isso deve fazer lembrá-los de algo: quando falávamos de postulados, bem no início dessa
análise da noção de poder, eu dizia: para Foucault, o que é a lei? A lei não se opõe ao ilegalismo
[l’illegalité], a lei não pode ser pensada fora de sua correlação com as ilegalidades
[illegalismes], o que Foucault chama de “ilegalidades”.8 É exatamente a mesma coisa, acredito
que é o mesmo raciocínio que se encontra aqui, a saber: a lei é uma integração do conjunto das
ilegalidades que vigoram em um campo social. De modo que, talvez, simples ideia seguinte
tome um pouco mais de consistência: as relações de força ou de poder se atualizam por
integração, elas se integram nas instituições. Assim, elas assumem uma estabilidade e uma
fixidez que não têm por elas mesmas. Desse modo, retomo as instituições, em sua ordem quase
cronológica de nossa passagem por elas: família, escola, exército, fábrica, prisão, até acabar sua
vida. Bem, se seguirmos essa ordem exemplar, vejam: eu diria que cada uma dessas instituições
é uma integração de um conjunto de relações de forças. Elas são integrações locais. Nesse caso,
o que seria o Estado? O Estado, em nossas sociedades – sem dúvida, na medida em que ele
tende a somar um número relativamente grande de instituições locais, por exemplo, quando se
encarrega da escola ou de uma grande parte da escola, na medida em que apropria das prisões
–, é o próprio modelo de uma integração global e contínua. Tanto que para toda instituição
perguntarei em torno de qual instância molar a integração ocorre. Qual é a instância molar que
produz a integração de relações moleculares? Por exemplo, para a família, a instância molar
por um longo tempo foi o pai. Para a sexualidade, a instância molar é o sexo. Para o direito, a
justiça, a instituição, a instância molar é a lei. Para o corpo político, a instância molar é o
Soberano. E não surpreende que entre todas essas instâncias molares haja ecos: o Soberano é
um pai? O sexo é do pai. Portanto, talvez compreendam melhor o texto a seguir de A vontade
de saber: “deve-se, ao contrário, supor que as correlações de força múltiplas que se formam e
atuam nos aparelhos de produção, nas famílias, nos grupos restritos e instituições, servem de
suporte a amplos efeitos de clivagem que atravessam o conjunto do corpo social. Estes formam,
então, uma linha de força geral que atravessa os afrontamentos locais e os liga entre si”.9 Em
outras palavras, a integração das relações de poder nas instâncias molares produzirá o quê? Um
alinhamento das forças, uma homogeneização, uma serialização das forças, a integração fará
8
Cf. a 2ª aula do presente curso.
9
FOUCAULT, M. A vontade de saber, p. 90.
19
tudo isso. A integração das relações de força produzirá um alinhamento, homogeneização,
serialização das forças.
Daqui podemos compreender, se voltarmos a algo que vimos há um tempo, minha
história de “azert” e da curva... Retomo rapidamente: AZERT, é uma emissão de pontos, de
singularidades. São cinco letras e elas são os pontos do alfabeto. Digo: são cinco singularidades,
cinco termos singulares retirados do alfabeto. Então, AZRT é uma emissão de singularidades.
Posso dizer, defini-los fonologicamente; vejam bem, são alturas, características de acordo seu
som fonético. [Deleuze escreve no quadro] Bom, suponha que 1, 2, 3, 4, 5 seja uma combinação
de singularidades qualquer. Entre esses pontos nunca há senão relações de forças que expressam
relações de poder. O que isso significa no nível das letras? Como vimos, significa relações de
frequência de agrupamento, relações de força entre as letras. Mesmo entre as letras há relações
de forças. E mais, não apenas entre as letras, mas entre as letras e os dedos. [?] Então, é isso.
Esse é o nível molecular. Digo “azert”. Enunciado. Um enunciado a partir do momento em que
enuncio: a ordem das letras.
Em outras palavras, dizia que na teoria das equações analíticas, vocês encontram a
distinção de dois domínios. Primeiro domínio: a repartição dos termos, pontos singulares em
um campo de vetores, corresponde à minha primeira operação e, em segundo lugar, a curva
integral, o aspecto da curva integral, dita “integral”, curva de integração, que passa na
proximidade das singularidades. E os matemáticos dizem bem: um é inseparável do outro, mas
os dois não têm de modo algum a mesma realidade matemática. É exatamente isso. Vejam,
distingo sempre o microdomínio “repartição de singularidades”, a “relações de forças de uma
singularidade à outra” e as “relações de poder”; é a repartição de singularidades em um campo
de vetores e, por outro lado, integração, isto é, o aspecto da curva passa na proximidade dessas
singularidades e constituirá, por sua vez, um enunciado, esse é o caminho da integração. Repito,
então deve ficar claro como as relações de forças ou de poder se estratificam na medida que se
integram. Elas se integram nas formas sociais. As formas sociais são as integrantes das relações
de poder, são as integrações da microfísica; são a passagem da microfísica às instituições
estáveis, ou seja, uma macrofísica do campo social. Se compreendem isso, praticamente
resolvemos nosso problema, a saber: como o poder toma forma, estratifica-se? Como se passa
das relações de poder às formações estratificadas?
Questão: [inaudível]
20
Deleuze: Você me antecipa. Acho que podemos dizê-lo, mas não é fácil. Então, Foucault o
pensou? Aqui, parece-me surpreendente, veremos os textos de Foucault admitindo o que há de
ambíguo, de difícil neles. Durante muito tempo Foucault não apenas acreditou, mas não o quis,
porque ele precisava do espaço em toda parte, eram apenas dois tipos de espaços. Talvez no
final ele tivesse dito [sim?]. Logo, sua questão é bem complexa. Retomando... entendem que
não deixamos de tratar do “poder-saber”. As formas estratificadas são o objeto do saber. O que
é saber? Toda forma estratificada é saber. A família, a escola, a fábrica são um saber. A fábrica
é o saber trabalhar. A escola é o saber aprender. A família é o saber criar. Categorias de saber:
criar, instruir, trabalhar; saberes como práticas, práticas de saber. As relações de poder se
integram nas formas estratificadas, essas formas estratificadas e integrantes que constituem
saberes.
Então, nenhum poder sem saber e nenhum saber sem poder,10 por quê? Nenhum poder
sem saber porque o saber é a integração de uma coisa diversa dele. Todo saber integra relações
de forças ou de poder. Desse modo, nenhum saber sem poder: não haveria nada a integrar. Ora,
o saber é a forma de integração. Mas, pelo contrário, nenhum poder sem saber, por quê? Dessa
vez não tem o mesmo sentido, mas vale tanto quanto. Nenhum poder sem saber porque
independentemente do saber, isto é, das formas estratificadas que o integram, o poder seria
evanescente, fluente, em desequilíbrio perpétuo, indeterminável, perpetuamente mutável,
inominável. E são necessárias formas estratificadas do saber para localizá-lo, atribui-lo, fixá-
lo, transmiti-lo etc. Em um texto que me parece importante – já disse que em um livro intitulado
Michel Foucault, por Hubert Dreyfus e Paul Rabinow,11 havia dois textos de Foucault. Um
10
Essa colocação é fundamental. Foucault a repetirá diversas vezes. Cf., por exemplo, no curso Em defesa da
sociedade, de 1976: “ [...] o poder, quando se exerce em seus mecanismos finos, não pode fazê-lo sem a formação,
a organização e sem pôr em circulação um saber, ou melhor, aparelhos de saber que não são acompanhamentos ou
edifícios ideológicos”. Ibid., pp. 29-30. Ou ainda: “Eu procuro fazer aparecer uma perpétua articulação do poder
sobre o saber e do saber sobre o poder. É preciso não se contentar em dizer que o poder requer tal ou qual
descoberta, tal ou qual forma de saber, mas que exercer o poder cria objetos de saber”. Id., “Entretien sur la prison”.
[1975] In: Dits et écrits v. I, p. 1620. A partir de 1974, Foucault passa a se referir à articulação entre poder, saber
e estratégia como uma “tecnologia”: a prisão é uma “tecnologia penal” (Ibid., p. 1614.) que, por seu turno, está
dentro de um âmbito maior, a “tecnologia política do corpo”. Cf. “Prisons et asiles dans le mécanisme du pouvoir”.
[1974] In: Ibid., p. 1391.
11
FOUCAULT, M. “O sujeito e o poder”. Op. cit., pp. 291-292. Esses cinco pontos estão dentro de uma sessão
intitulada “Como Analisar as relações de poder”. Antes de elencá-los, Foucault diz: “concretamente, a análise das
relações de poder exige que estabeleçamos alguns pontos”. No curso Em defesa da sociedade, Foucault apresenta
cinco “precauções de método” acerca da análise do “como do poder”: 1ª: trata-se de analisar o poder “em suas
extremidades”. 2ª: estudar o poder em seu objeto, em seu ponto de aplicação, onde produz efeitos reais. 3ª: não
tomar o poder como “fenômeno de dominação maciço e homogêneo”, pois o poder transita pelos indivíduos. 4ª:
deve-se fazer “uma análise ascendente do poder”. 5ª: em nível micro, o poder não se explica pela ideologia. Cf.
Ibid., pp. 24-30.
21
deles nos interessa particularmente – porque Foucault nos diz precisamente, vamos lá... Ele
distingue cinco aspectos de quê? Veremos, evidentemente, de acordo o contexto cinco aspectos
da atualização das relações de forças.
Começo pelo segundo, vocês me perguntarão o porquê, mas é porque quero guardar o
primeiro para o fim. No segundo, ele nos diz: ora, precisa-se considerar o tipo de objetivo. Tipo
de objetivo perseguido por aqueles que agem sobre a ação dos outros. Vocês se recordam do
que era “ação sobre ação”? A ação sobre ação, a relação de poder, a relação da força com a
força não é o efeito da ação sobre um objeto, mas a relação de uma ação com uma ação. É ação
sobre ação! É necessário considerar o tipo de objetivo perseguido por aqueles que agem sobre
a ação dos outros. E Foucault fornece uma lista: é a manutenção de privilégios, a acumulação
de lucros, a implementação de uma autoridade estatutária, o exercício de uma função ou de uma
profissão. Então, primeiro fator: o tipo de objetivo; segundo fator: a modalidade instrumental.
O segundo, a modalidade instrumental do poder, e Foucault fornece a lista inteiramente aberta:
conforme o poder é exercido pela ameaça das armas, pelos efeitos da palavra, através das
disparidades econômicas, por mecanismos mais ou menos complexos de controle, ou mesmo
que impliquem técnicas, instrumentos – pode-se estender a lista –, portanto, modalidade
instrumental é a segunda característica. Terceira característica: as formas de institucionalização.
Já a desenvolvemos, eu passo. Quarta característica: os graus de racionalização. O que significa
tipo de objetivo, modalidade instrumental, forma de institucionalização, graus de
racionalização? São fatores de integração. O que isso quer dizer? As relações de forças ou as
relações de poder, lembrem-se, expressam ações sobre ações, mas elas não consideram nem a
finalidade nem a substância sobre a qual incidem.
De fato, as relações de poder, tais como são apresentadas por um diagrama, apresentam
matérias não formadas e funções não formalizadas. O que isso significa? Aqui também é
importante se recordar. Não digo qual é a substância nem qual é a finalidade. A relação de poder
é, como vimos, impor uma tarefa qualquer a uma multiplicidade restrita qualquer, eis uma pura
relação de poder. Desse modo, isso não impede o poder de variar, unicamente em função das
coordenadas espaciotemporais, isto é: impor uma tarefa qualquer a uma multiplicidade restrita,
isso pode ser por armazenamento, serialização, arranjamento, pôr em série elementos da
multiplicidade, pôr em série composição etc. Vimos que havia uma grande variedade.
Observem que indico variáveis espaço-tempo, não indico nenhuma substância precisa,
multiplicidade qualquer e não indico nenhuma finalidade precisa: impor uma tarefa, mas por
22
quê? Com qual objetivo? Impor uma tarefa qualquer a uma multiplicidade qualquer, essa é a
relação de forças que, mesmo no nível da abstração, subdivide-se, pois “impor uma tarefa
qualquer” novamente significa: organizar, mas não digo o que organizo e nem qual finalidade.
Isso significa pôr em série, serializar, já não digo o que serializo. Nesse caso, a integração dessa
relação de poder ou dessas relações de poder, relações de forças, e somente ela nos dirá qual é
a substância, a finalidade, a substância da ação, a finalidade da ação, quais são os meios de
ação? Isso aparece apenas com a integração.12
Por exemplo, a escola é instituição, integra relações de forças. Então posso dizer: não
se trata mais de uma multiplicidade qualquer, mas da multiplicidade dos estudantes – estudante
substância formada, matéria formada. E ao virar a esquina, não é mais a escola, é a fábrica. Sim,
uma fábrica é outra matéria formada, outra substância formada. Não mais um estudante, mas o
trabalhador. E na outra esquina, é a prisão, outra substância formada, não mais um estudante
ou um trabalhador, mas um delinquente. São matérias formadas. Enquanto que a relação de
poder considerava a matéria não formada, uma multiplicidade qualquer que lhe impusesse uma
tarefa. Então, é no nível dos integrantes que distingo as matérias formadas. De fato, a relação
de poder não podia distingui-las porque considera apenas a matéria não formada. Ela só podia
fazer distinções em função do espaço e do tempo e não em função de qualidades. Do mesmo
modo, a relação de poder não podia determinar os fins a que forças iriam servir, pois elas apenas
perseguem o fim no nível e em relação às grandes formas que as integram. A função formalizada
ou finalizada será não mais impor uma tarefa qualquer a uma multiplicidade qualquer, mas
“instruir” para a escola, “trabalhar” para a fábrica, “cuidar” para o hospital, e tudo isso se
constituirá saberes.
Compreendem por que, afinal, não podemos falar de poder sem falar de saber, nem falar
de saber sem falar de poder? A integração é um processo insensível e contínuo, existe desde o
início; é somente por abstração que se pode distinguir relações de poder e relações de saber;
12
Nos termos de Foucault, a finalidade seria, por exemplo, a extração de força física, mas também – exemplo mais
raro – de saber. “Finalmente, há uma quarta característica do poder que, de certa forma, cruza e anima esses
poderes. É um poder epistemológico: poder de extrair um saber dos indivíduos e extrair um saber sobre esses
indivíduos submetidos ao olhar e já são controlados por esses diferentes poderes. Isso acontece, então, de duas
maneiras. Em uma instituição como a fábrica, por exemplo, o trabalho operário e o conhecimento do operário
sobre seu próprio trabalho, as melhorias técnicas, as pequenas invenções e descobertas, as microadaptações que
ele pode fazer durante o trabalho são imediatamente anotadas e registradas, portanto extraídas de sua prática,
acumuladas pelo poder que é exercido sobre ele pela supervisão. Dessa forma, o trabalho do trabalhador é
gradualmente levado a um certo saber da produtividade ou a um certo saber técnico da produção que permitirão o
reforço do controle”. FOUCAULT, M. “La vérité et les formes juridiques”. In: Dits et écrits v. I, p. 1487.
23
simplesmente é uma abstração necessária, mas o concreto sempre me apresenta mistos de poder
e de saber. O concreto nunca pode me apresentar senão relações de poder já engajadas em
formas estratificadas, isto é, tomadas em suas formas finalizadas, em matérias formadas. O
poder não cessa de se integrar no saber, as estratégias de forças não cessam de se integrar nas
formas estratificadas.
Compreendem? Bom, se sim, devem, ao mesmo tempo, intervir dizendo: mas isso não
funciona! Ou, ao menos, dizer que falta metade. Pois, se se lembram do que fizemos
anteriormente: seguramente, o saber era forma estratificada, mas nosso problema consistia em
que não era apenas uma forma estratificada. Havia duas formas estratificadas: o visível e
enunciável, ver e falar. Se é verdade que as relações de poder explicam as formas estratificadas,
no sentido de que estas são a integração daquelas, como explicar que as formas estratificadas
sejam atravessadas por essa fissura que separa o visível e o enunciável? Por isso anunciei a
explicação. Vocês podem tanto concordar comigo quando expliquei que as relações de poder
se integram nas suas formas estratificadas em geral, quanto devem me refutar de ter
minimamente explicado por que essas formas estratificadas têm dois polos: ver e falar, o visível
e o enunciável, e por que elas são necessariamente atravessadas por essa disjunção, por essa
fissura? E como as relações de poder podem dar conta da fissura entre ver e falar, e o fato de
que, malgrado a fissura, ver e falar sejam postos em relação pelas relações de poder? É
necessário que as relações de poder expliquem por que as formações estratificadas, por um lado,
sejam atravessadas por uma fissura que estabelece uma não relação entre as duas partes do saber
– ver e falar – e, por outro lado, malgrado essa não relação, a relação de poder seja capaz de
explicar que essas duas partes do saber estejam mesmo assim em relação. Se não expliquei, isso
não funciona, compreendem?
Em outras palavras, se é verdade que as relações de forças se atualizam nas formações
estratificadas, é necessário que eu encontre meio de mostrar que a integração é apenas um
aspecto da atualização; há outro aspecto, que considerará a fissura que atravessa as formações
estratificadas, colocando em relação duas partes apesar ou por cima da fissura. É preciso que o
problema, aqui, esteja claro. Está luminoso? Se não estiver claro eu recomeço, porque senão
não terá nenhum sentido para a investigação seguinte. Preciso de algo que seja diferente da
integração. Devo dizer: sim, as relações de poder se atualizam por integração, mas por outra
coisa também. É necessário que haja uma operação diferente da integração. Essa operação, mais
uma vez, deve considerar as duas metades das formações estratificadas, isto é, considerar ao
24
mesmo tempo a irredutibilidade das duas formas de saber e o fato de que, apesar da
irredutibilidade formal, há ainda assim relação. Entendem como isso funciona? Estamos
comprometidos em relatar isso, logo seremos forçados a dizer: não, não há resposta ao problema
que Foucault nos deixa, ou precisamos encontrar uma resposta [corte na gravação]. Aqui, isso
se torna delicado.
Comtesse: [parte inaudível] apesar de tudo, há um elemento diferencial da relação de força,
cujo nome é a vontade [volonté]. Então, a questão é dupla a partir daí. Dizer que o elemento da
relação de força que se refere a matérias não formadas é a vontade, significa dizer que é um
nome arbitrário, e há um arbitrário nessa denominação? Em segundo lugar, a vontade de saber
é a mesma vontade desse elemento diferencial?
Deleuze: a relação diferencial da força com a força pode se chamar vontade. O que isso quer
dizer? É uma referência a Nietzsche que reserva a palavra vontade para designar esse elemento
diferencial pelo qual a força se refere à força. Isso aparece em Foucault? Que eu saiba, não! Ele
não emprega a palavra vontade,13 exceto, como você disse muito bem, em “vontade de saber”,
o que é bastante curioso por que o livro intitulado A vontade de saber não se trata mais do saber,
do qual Foucault se ocupou nos livros precedentes, trata-se do poder. Por que ele o nomeia A
vontade de saber? E bastante paradoxal ao meu ver, porque, como vimos, ele estuda não apenas
as características do poder, relação da força com a força, mas a maneira que as relações de
forças se integram nas formas de saber. Então, que ele tenha falado de vontade de saber nesse
contexto já é muito interessante. Quanto à questão: se já chamamos vontade a relação
diferencial da força, isto é, o elemento diferencial pela qual a força se refere à força, se
13
Em seu primeiro curso no Collège de France Foucault põe a questão: “o que se deve entender por vontade?
Como diferenciá-la do que se entende por desejo em expressões como desejo de saber [désir de connaissance] ou
desejo de saber? [...] Essas questões semânticas, como na maior parte das pesquisas desse gênero, somente serão
resolvidas completamente, sem dúvida, ao termo dum percurso”. FOUCAULT, M. Lições sobre a vontade de
saber. São Paulo: Martins Fontes, 2018, p. 4. Logo em seguida, Foucault afirma que a vontade é vista pela filosofia
em geral como amor pela verdade, exceto em Espinosa, no conhecido trecho da Ética, no qual afirma que não
desejamos aquilo que julgamos positivamente, mas julgamos uma coisa positivamente porque a desejamos.
Foucault retoma essa formulação num debate com Chomsky em 1971. Já em sua “false” da genealogia do poder,
Foucault afirma: “Parece-me que a questão da vontade possa ser posta em termos de luta, ou seja, de um ponto de
vista estratégico para analisar um conflito quando se desenvolvem diversos antagonismos”. Ibid., “La
méthodologie pour la connaissance du monde: comment se débarrasser du marxisme”. In: Dits et écrits, v. II, p.
605. Finalmente, há Deleuze: “O conceito de força é portanto, em Nietzsche, o de uma força que se relaciona com
outra força. Sob este aspecto, a força é denominada uma vontade. A vontade (vontade de saber) é o elemento
diferencial da força. Daí resulta uma nova concepção da filosofia da vontade, pois a vontade não se exerce
misteriosamente sobre músculos ou sobre nervos, menos ainda sobre uma matéria em geral, ela se exerce
necessariamente sobre uma outra vontade”. DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia. Op. cit., p. 6. Trata-se da sessão
intitulada “Filosofia da vontade”.
25
chamamos vontade a mesma coisa que a vontade de saber, eu diria não. Ou melhor, é a mesma
vontade, ora tomada no conjunto das relações difusas que ele traça entre as forças, ora tomada
já no nível de sua própria atualização. Não se deve dizer que são duas vontades, é preciso dizer
que são dois estados de poder muito diferentes. Enfim, é assim que vejo as coisas.
Vejam bem, resumo esse problema porque aqui devemos ter muito cuidado. [ele escreve
no quadro]. Faço um pequeno desenho. Basicamente estamos aqui. Mostrei até o momento que
as relações de poder se atualizam em formas estratificadas que são formas de saber. A rigor,
isso daria, se permaneço por aqui, o seguinte esquema: a multiplicidade difusa das relações de
poder com suas singularidades, entre as quais há relações de forças, sendo afetos, afetos de
forças... Em seguida tenho meu grande bloco estratificado que já penetra aqui dentro... Vejam,
tudo isso é processo contínuo. Aqui, as relações de poder, em uma pequena nuvem acima, se
atualizam no bloco estratificado do saber. Se permaneço na análise anterior, não posso dizer
outra coisa. Mas, na verdade, tenho um problema totalmente diferente. Anunciei, desde o início,
que esse problema precisa ser resolvido. Meu problema vem disso, na verdade não tenho um
bloco estratificado, tenho dois. Meu verdadeiro esquema está partido. Felizmente, veremos isso
mais tarde. E se não tivesse partido, seria muito ruim. Ele está partido, atravessado por uma
grande fissura central: que é a arqueologia. Arqueologia do saber. Por um lado, há formação
estratificada do visível, por outro, a formação estratificada do enunciável. Há o bloco do ver e
o do falar. Assim, é necessário que na atualização, quando digo “as relações de forças se
atualizam”, não basta dizer: elas se integram ao bloco estratificado do saber, é necessário...
estou condenado a ter de mostrar que sua atualização, a das relações de forças, deve dar conta
ao mesmo tempo, em primeiro lugar, da fissura entre os dois blocos e do fato de que – apesar
da fissura, da não relação dos blocos entre si – há ainda uma relação entre um e outro.
Compreendem? Essa é a tarefa. Então vamos lá! Bem, aqui estamos um pouco perdidos.
Felizmente, Foucault nos oferece uma indicação muito valiosa. Tomo dois textos.
Primeiro, Foucault nos diz, em A vontade de saber, “as relações de poder são as condições
internas dessas diferenciações”.14 Retorno ao meu texto em Dreyfus e Rabinow, os cinco
critérios de integração, os cincos critérios de atualização dos quais citei quatro e deixei de lado
o primeiro. O primeiro é assim enunciado por Foucault: “o sistema de diferenciações que
permite agir sobre a ação dos outros: diferenças jurídicas ou tradicionais de estatuto e de
14
FOUCAULT, M. A vontade de saber. Op. cit., p. 90.
26
privilégio; diferenças econômicas na apropriação das riquezas e dos bens; diferenças de lugar
nos processos de produção; diferenças linguísticas ou culturais; diferenças na habilidade [know-
how] e nas competências etc. Toda relação de poder opera diferenciações que são, para ela, ao
mesmo tempo, condições e efeitos”.15 Se há uma solução, é por esse caminho. Nesse sentido,
poderia acrescentar que não posso dizer mais. O que seria? A ideia de que a atualização não
opera somente por integração, mas por diferenciação. Bom, vocês me dirão: mas nos exemplos,
não é uma questão de ver ou de falar? Não. Porque, nessa altura, Foucault está preso num
problema totalmente diferente. Assim, cabe a nós, leitores, ver se isso nos convém; somos
forçados a propor uma interpretação baseada em... para me basear, tenho somente duas coisas.
O problema, como definimos, parece-vos um verdadeiro problema para o pensamento
de Foucault? Quer dizer, há ou não uma questão da dualidade ver-falar? Dentre vocês, aqueles
que pensam que coloquei um problema não essencial em minha leitura de Foucault não podem
sequer participar do problema. Talvez estejam certos: naquele momento eu estava enganado.
Ou enrijeci o pensamento de Foucault numa direção que não era a dele. Ao meu ver, não há
resposta, não há alguém que tenha razão ou... é questão de leitura.
Se vocês concordam comigo que a grande divisão ver-falar é fundamental no
pensamento de Foucault, nesse momento o problema se coloca. O problema é explicitamente
resolvido por Foucault? Digo que não, porque quando Foucault chega às relações de poder, ele
praticamente não se ocupa mais da grande dualidade ver-falar. Não é seu problema, ele tem
muitas outras coisas para fazer. Nós, leitores, podemos fazer a conexão? Digo que há uma
conexão a se fazer. Parece-me que Foucault nos dá todos os meios quando diz: a atualização
não procede apenas por integração, ela implica também uma diferenciação. O que isso
significa? Na verdade, a firme distinção – por firme, quero dizer “estável”, “reproduzível” –
começa no nível da atualização. As relações de forças são transitórias, móveis, difusas,
evanescentes, reversíveis etc. Atualizando-se, elas assumem uma fixidez, uma orientação, uma
irreversibilidade. Em outros termos, as grandes diferenciações governantes-governados, muito
mais homem-mulher – e haverá muitas outras, só aparecem com a integração. A sexualidade
sem sexo ignora as formas. As relações de poder, as relações de forças ignoram as formas. A
diferenciação das formas só pode surgir com as próprias formas, isto é, com a atualização. A
sexualidade sem sexo ignora a diferença formal homem-mulher. Ela conhece somente
15
FOUCAULT, M. “O sujeito e o poder”. Op. cit., p. 291. Foucault escreveu esse texto em inglês.
27
diferenças polares, apenas polos. Ela não conhece nem pessoa nem coisa, mas apenas forças.
Desse modo, a firme distinção governante-governado, homem-mulher e muito mais só aparece
com os processos de integração. Dito de outro modo, os processos de integração têm como
oposto os processos de diferenciação. Por quê? A resposta é simples. Eu lhes disse no início, o
importante na palavra virtual é que não seja a mesma coisa que a palavra possível. O possível,
podemos dizer que ele se realiza, quando se realiza. O virtual não se realiza porque já é real,
mas ele se atualiza; o que o virtual perde não é realidade, é atualidade.
Então, digo que o real se atualiza. Mas o que quer dizer “se atualizar” para um virtual?
Invoco aqui muitos outros filósofos, é preciso. Todos os filósofos que atribuíram importância à
ideia de virtualidade em oposição ao possível – dizendo: o virtual não é um possível, é outra
coisa – disseram que o virtual é o que se atualiza. Tenham cuidado, o “atualizar-se” quer dizer
não apenas “diferenciar-se”, porque se atualizar para um virtual é necessariamente se atualizar
criando vias divergentes. As vias de atualização são diferenciações, porque a ideia de
atualização de um virtual tem uma origem biológica. Um potencial que se atualiza, em que
consiste? Em uma atualização de um potencial ou de um virtual biológico? É uma
diferenciação. Como se atualiza o óvulo? Por diferenciação do potencial. São zonas
diferenciadas, as divisões do óvulo: um óvulo fecundado entra em um mecanismo chamado
mecanismo de divisão. O óvulo tem dois polos. Vocês sabem, aqui, teríamos que retomar tudo
de novo no nível da embriologia, digo o mínimo indispensável. Há um polo vegetal e um polo
animal. Esse seria o potencial do óvulo, o virtual do óvulo, relação de forças entre os dois polos.
Quando o óvulo fecundado se desenvolve, isto é, se atualiza, ele se atualizará em um embrião.
Quais são os primeiros passos de um óvulo fecundado? Processos de divisão que vão organizar
a diferenciação. Atualizar-se para um virtual é sempre se diferenciar em, no mínimo, duas vias.
Diferenciar significa traçar dois caminhos. Assim, em cada um dos dois caminhos terá um
mecanismo de divisão. [ele escreve no quadro]. Mecanismo de diferenciação, cada ramo se
divide por sua vez, cada ramo. Vejam? Está claro o desenho? Enquadro-o. Bom, diferenciar-se.
A rigor, não ultrapasso o texto de Foucault. A atualização implica uma diferenciação.
As diferenciações são múltiplas. Tomei dois casos: as relações de forças em um campo
social não se atualizam sem se diferenciar segundo duas vias divergentes governantes-
governados, homem-mulher e outras. Bem, suponha que haja uma diferenciação
particularmente importante: a diferenciação ver-falar. Nessa altura, tenho minha solução. Para
o momento ela é completamente arbitrária. Eu diria, do mesmo modo e com mais forte razão,
28
que a virtualidade das relações de forças se atualiza criando as diferenciações governante-
governado, homem-mulher, ela se atualiza criando a diferenciação fundamental, principal, ver-
falar. Seria a primeira grande diferenciação que condicionaria todas as outras.
Então tudo bem nesse primeiro momento. Por quê? Porque com isso eu responderia às
minhas duas perguntas. Por que há uma divisão no nível da formação estratificada entre ver e
falar? A resposta seria: há uma divisão porque as relações de forças só podem se atualizar
criando essa divisão. Por outro lado, malgrado a divisão das duas formas estratificadas, forma
do ver e forma do falar, há uma relação apesar de sua não relação, uma vez que as relações de
forças se atualizam dos dois lados. Então, tudo iria bem. Mesmo assim, o que acabei de dizer
parece completamente arbitrário. Por que haveria uma diferenciação principal passando por ver
e falar? A rigor, compreendo quando me dizem que as relações de forças se atualizam somente
por via de diferenciação, ou seja, criando as vias divergentes ao longo das quais o virtual se
integra, atualiza-se, de modo que haverá duas integrações. Integração tanto do lado do ver
quanto do lado do falar.
Se eu disser: toda atualização é uma diferenciação, basta, por exemplo, pensar em um
autor como Bergson16: o elã vital é um potencial, ele se atualiza criando caminhos divergentes.
O que Bergson nos disse? Uma coisa muito bela. Faço um novo esquema para que vocês
compreendam [escreve na lousa]. Vocês têm o potencial, elã vital. Bergson nunca disse que [o
potencial] existia dessa forma, é um virtual puro. Como definir esse potencial biológico,
potencial da vida? Vocês verão que ele o definiu absolutamente como uma relação de forças.
Para ele, esse potencial ou essa virtualidade – nós o definiremos assim como virtualidade, duas
coisas ao mesmo tempo – ambos são relações de forças; armazenar energia, detonar um
explosivo. São relações de forças. Para Bergson, isso é a vida e ponto final. É o potencial
biológico, é uma pura virtualidade. O elã vital se atualiza, quer dizer, ele se incarnará em novas
formas viventes; ele é sem forma, é um elã, uma força, se vocês quiserem. Por isso funciona
bem. O que eu disse? Duas relações de forças que definem a virtualidade. Nesse caso, quando
essa virtualidade se atualiza, ela o faz criando uma grande diferenciação, uma grande
divergência. Atualizar-se é diferenciar-se. E como isso será? Tudo acontece como se o virtual
fosse muito rico. Logo, ele não pode se atualizar em um bloco.
16
Deleuze trata do elã [impulso] vital e do movimento de diferenciação em seu estudo sobre obra de Bergson,
especificamente na seção V, intitulada “O impulso vital como movimento de diferenciação”. Cf. DELEUZE. G.
Bergsonismo. São Paulo: Editora 34, 1999.
29
Quero dizer: [o elã] é muito rico para se reduzir ao Um. Então é forçado a se dividir e,
meu elã vital, minha virtualidade, quando ela se atualiza nas formas – forma sendo sempre uma
forma de atualização –, deve se atualizar nas duas. Será necessária uma direção divergente que
integre a primeira relação de forças – armazenar o explosivo –, mas essa não poderá ser a mesma
força que atualiza a outra relação de forças – fazer detonar a explosão. Será preciso que uma
forma atualize a primeira relação – armazenar o explosivo – e que uma outra forma atualize a
segunda – fazer detonar a explosão. A atualização não pode fazer as duas coisas ao mesmo
tempo.
O que acontece [com esse esquema] no nível da vida? Bem, ele fornece as duas grandes
formas principais da vida: a vegetal e a animal. Não mais como força, mas como forma. A
forma vegetal armazena o explosivo, é o mesmo papel da chamada função clorofiliana. A forma
animal detona o explosivo, não o armazena. O que detona o explosivo? É o mover-se,
movimentar-se. A forma animal só é pensável em movimento, a vegetal só é possível quando
imóvel. No entanto, não haveria plantas que se movimentam e animais imóveis? É um outro
problema... a saber, os cruzamentos. O que subsiste de uma forma a outra.
Basicamente, posso dizer que o vegetal é antes de tudo imóvel e o animal móvel. Mover-
se é detonar um explosivo, na verdade é utilizar energia. Mas armazenar energia é o caso do
vegetal. Então, como o ser vivo [le vivant] pode detonar a energia se não a armazena? Não é
por acaso que o ser vivo se alimenta do vegetal. Comendo-o, ele obtém a energia que não soube
armazenar por si mesmo; sua propriedade sendo detonada, o ser vivo está condenado a comer
um outro ser vivo, que ele mesmo terá finalmente – haverá um fim – se alimentado do vegetal.
Os carnívoros vivem sobre os herbívoros, estes comem o vegetal, absorvem dele a energia, mas
o ser vivo, o animal – seja ele herbívoro ou carnívoro –, é aquele que detona o explosivo,
explode a energia. Ele transforma a energia em movimento, isso que a faz detonar. Graças a
uma energia, produz-se um movimento de translação. Esse é o animal. Enquanto o vegetal, com
suas raízes toma energia da matéria. Mas a vida não poderia reunir em uma única e mesma
forma as duas relações de forças. Ela não poderia se atualizar... É necessário que um se atualize
de um lado, o outro do outro lado. Bem, esse brilhante exemplo [risos] deve nos fazer dizer que,
talvez, nossa resposta pareça um pouco menos arbitrária. Embora isso não impeça que
permaneça um pouco de arbitrariedade. Por que ver-falar seria a grande diferenciação segundo
a qual as relações de forças se atualizam? Foi convincente no caso de Bergson, vegetal-animal,
mas, aqui, no caso de Foucault, por que essa diferenciação passaria pelo ver-falar, uma vez dito
30
que as relações de forças não veem e não falam. Só falamos e só vemos no nível das formações
estratificadas?
Bem, basta dar um passo de volta que, creio, teremos uma solução. Vocês se lembram
que as forças são inseparáveis de uma multiplicidade? Multiplicidade de forças, ou seja, a força
está em relação com outras forças, seja para afetar outras forças, seja para ser afetada por outras
forças. Em outras palavras, a força é inseparável de um duplo poder: poder de afetar e poder de
ser afetado. Toda força afeta e é afetada por outra, mantendo um dualismo. Esse dualismo está
a serviço da multiplicidade; na verdade, está completamente subordinado à multiplicidade das
forças. Para que toda força tenha um poder de afetar e um poder de ser afetado depende
estritamente do fato de que as forças são várias, ou seja, de que toda força esteja em relação
com outras forças. O dualismo é apenas um momento ou um aspecto do múltiplo. Essa seria a
grande diferença entre duas concepções de dualismo: há filósofos para quem o dualismo é o
produto de uma divisão do um e há aqueles para quem o dualismo é apenas um estado transitório
do múltiplo.
Portanto, a força tem dois poderes. Isso está inscrito na força e na virtualidade. Poder
de afetar e de ser afetado. Digo: quando as relações de forças se atualizam, necessariamente
consiste em dizer que as formas nas quais elas se atualizam correspondem ao duplo poder de
forças. É preciso que as formas nas quais elas se atualizam retomem, à sua maneira, o duplo
poder das forças que se atualizam: poder de afetar e de ser afetado. No entanto, não será a
mesma coisa. Dito de outro modo, o poder de afetar da força, chamá-lo-emos de
“espontaneidade da força”. O poder de ser afetado da força, chamá-lo-emos de “receptividade
da força”. Quando as relações de forças se atualizam, elas devem se atualizar segundo duas vias
divergentes: uma constitui uma forma de receptividade e outra constitui uma forma de
espontaneidade. As forças não tinham formas. Elas tinham uma espontaneidade e uma
receptividade, mas eram não formais. Quando se atualizam, elas devem se atualizar segundo
uma forma de receptividade, que corresponde à sua própria receptividade, e segundo uma forma
de espontaneidade, que corresponde ao seu próprio poder de espontaneidade.
Bem, estávamos à procura e a luz se fez, acabamos. Porque são aquisições anteriores;
demoraria muito tempo se tivéssemos que retomar tudo isso, é todo nosso primeiro trimestre.
O visível tem por condição formal a luz, não como um lugar físico, mas a luz indivisível à
maneira de Goethe. Como vimos [no primeiro trimestre], a luz define a forma de receptividade.
O enunciado tem por condição a linguagem, o há linguagem, que se conjuga com o há luz. E a
31
linguagem define uma forma de espontaneidade. São coisas de que já falamos, não há
necessidade de retomá-lo.17
Temos a nossa solução. Respondemos à pergunta por meio de três proposições. Retomo.
Em que podemos dizer – com ou sem razão, não sei – se nosso problema foi bem fundamentado
em relação à filosofia de Foucault, ou pelo menos respondeu ao problema que parecia se colocar
nessa filosofia? Primeira proposição: as relações de poder dão conta [rendent compte] das
relações de saber. Em qual sentido? Num sentido muito simples: as relações de forças se
atualizam nas formações estratificadas que são o objeto do saber. Segundo ponto: mas as
formações estratificadas são duplas, têm duas faces irredutíveis, são atravessadas por uma
fissura, ver e falar, luz e linguagem, visível e enunciável. As relações de forças podem dar conta
dessa diferenciação das duas formas estratificadas? Sim, facilmente, pois as relações de forças
só se atualizam criando precisamente duas vias divergentes, isto é, diferenciando-se. Por que a
grande diferenciação é ver e falar? Porque ver constitui uma forma de receptividade e falar uma
forma de espontaneidade, e as relações de forças operam a diferenciação que as atualiza de
acordo com a receptividade e com a espontaneidade. Terceira questão: disso resulta, para as
duas formas estratificadas, irredutíveis uma a outra, uma relação indireta? Sim, porque a mesma
multiplicidade de forças que se atualiza diferenciando-se segundo uma e outra direção. Vocês
refletirão, verão, enfim, que é assim que considero as coisas. Vocês têm todo o direito de ter
outra leitura de Foucault.
Haveria um último problema sobre o qual eu gostaria de concluir hoje, muito
rapidamente. Tenho, por conseguinte, dois níveis: nível do poder puro e nível do saber na
medida que ele atualiza as relações de forças ou de poder. Concretamente, nunca tenho senão
relações de forças atualizadas, é uma distinção de razão – ou seja, distinção por abstração – que
me permite distinguir o poder e o saber. Mais uma vez, o concreto apenas me apresenta mistos
de poder-saber. Isso não impede que eu possa distinguir o puro diagrama e as formações
estratificadas e dizer: sim, as formações estratificadas atualizam, integram e diferenciam, as
três ao mesmo tempo, as relações de forças que nos foram apresentadas pelo diagrama. Estas
são emissões puras de singularidades, enquanto aquelas são as curvas que passam em
proximidade. As relações de forças expostas pelo diagrama são matéria não formada e funções
não formalizadas e as formações estratificadas são matérias formadas, substância e funções
17
Cf. DELEUZE, G. Michel Foucault: as formações históricas. Op. cit. Sobretudo a aula de 5 de novembro de
1985.
32
formalizadas, finalizadas. Tudo isso se mantém. Mas, vejam, tenho novamente dois polos. Na
medida em que um misto concreto me é dado, posso fazê-lo tender para um polo ou para outro.
Se, no fundo, permaneço nas formações estratificadas, observo como as coisas são bem
separadas! Quanto mais tendo para elas, mais as coisas se distinguem e se separam. O que é
isso? As instituições. As formações estratificadas – posso dar-lhes o nome agora, de acordo
com Foucault – acredito que as formações concretas sejam aquilo que Foucault chama de
dispositivos. Eu dizia: a escola, a prisão, a sexualidade – a sexualidade integrada – são
dispositivos concretos; ora, quanto mais tendo para os dispositivos concretos, mais posso dizer
que são bem separados.
De fato, começamos pela separação. Nossa vida é uma sucessão de separações, há muito
tempo observamos que o ato do nascimento era uma separação; separamo-nos da mãe, muitos
dentre nós a superam [risos]. Um primeiro corte. Em seguida, somos crianças, é o dispositivo
familiar; o que o pai furioso dirá à criança quando ela não é sábia? Ele dirá: você não está mais
no ventre de mamãe! Poucos pais dizem isso, mas muitos pensam assim. Em seguida, isso
aparece mais nitidamente quando a criança vai à escola. A professora diz à criança: você não
está mais em casa, nem com sua família, onde pensa que está? Não é o teu lugar. Nova
separação. Em seguida, isso não melhora, vamos para o exército. Lá, eles dizem: você não está
na escola, onde acha que está? Não está mais no ensino médio, você verá! Dizemos para nós
mesmo: bom, acreditávamos estar no fim das dores, mas, em seguida: a fábrica. “Onde você
pensa que está?”, cada vez nos dizem isso; para acabar, a prisão: “onde você pensa que está?
Na casa de sua mãe? Você verá! Na escola? Aqui não é a escola! No exército? Ah! no exército,
aquilo não foi nada! Você verá, nós iremos treiná-lo”.
Bom, ao pé da letra, deve-se dizer que os dispositivos concretos são tomados um a cada
vez, formam seguimentos divididos, diferenciados, o qual podemos chamar de uma
segmentaridade dura.18 Se quiserem fazer a experiência de uma segmentaridade dura, procurem
o escritório de um organismo, por exemplo, a segurança social. Não é uma crítica, é terrível, a
burocracia é um exemplo de uma segmentaridade dura, todas as burocracias. Vocês podem
telefonar para pedir informação, qualquer que seja a informação solicitada, eles dirão: qual é a
18
Deleuze e Guattari usam o conceito de segmentaridade em Mil platôs [1980]: “a noção de segmentaridade foi
construída pelos etnólogos para dar conta das sociedades ditas primitivas, sem aparelho de Estado central fixo,
sem poder global nem instituições políticas especializadas. Os segmentos sociais têm neste caso uma certa
flexibilidade, de acordo com as tarefas e as situações, entre os dois polos extremos da fusão e da cisão”. DELEUZE,
G. GUATTARI, F. Mil platôs v. 3. São Paulo: Editora 34, 1996, p. 77.
33
primeira letra de seu nome; logo, dizemos: não é nesta repartição. Eu digo: mas a informação
que quero não depende da primeira letra, não, não, não! Aliás, eles talvez tenham razão, são
mistérios muito profundos... ah, não, então eu digo: é a letra D, eles me dizem: ah sim,
infelizmente não, aqui é a repartição das pessoas com letra F. Essa é uma segmentaridade dura.
É terrível. É absolutamente como a segmentaridade das minhocas; vocês podem cortar, há uma
parte que se move sempre. Estamos segmentarizados assim: família, escola, exército, fábrica,
prisão. Tudo isso é muito compartimentado, uma segmentaridade compartimentada.
Se vocês tenderem para o outro polo, não mais os dispositivos concretos de saber-poder,
mas o diagrama de poder, será completamente diferente e, no entanto, vocês passarão
imperceptivelmente de um ao outro. Aqui tudo é flexível. Por quê? São as mesmas relações de
forças; desta vez, vocês não mais considerarão formas compartimentadas, mas matérias não
formadas. Impor uma tarefa a uma multiplicidade estreita, restrita, e isso também vale para a
escola, a fábrica, a prisão. O diagrama não especifica as matérias. Ele está completamente
difuso, uma segmentaridade inversa, flexível e difusa. No nível do diagrama, não posso dizer
que um seja mais verdadeiro do que outro, porque os dois são evidentes, simplesmente apelam
a duas experiências, aos dois níveis de experiência. Pois, no nível do diagrama, vocês ficarão
impressionados com o quanto as escolas já se assemelham às prisões. Quanto às fábricas, quero
dizer, é menos verdade agora, houve progresso, mas, vocês sabem que há pouco tempo, tinha
que ser esperto para distinguir uma prisão, uma escola. Se quiserem uma experiência de prisão,
vão ver a entrada dos trabalhadores na Renault. Essa entrada, no início da manhã, não é uma
prisão até que eles entrem na fábrica. Se podemos conceber uma prisão diurna, há muitos
hospitais psiquiátricos diurnos, hospitais “gerais” diurnos; isso significa que os doentes chegam
pela manhã e depois vão dormir em casa. A fábrica da Renault é uma prisão diurna, as pessoas
vão pela manhã... bom, vamos voltar ao cinema.
O que há de sublime em Roma 51, de Fellini?19 Para aqueles que viram e se recordam:
a [mulher] burguesa que descobre as favelas e depois a fábrica. Nunca havia visto uma fábrica
e, uma vez, ela a vê. Uma fábrica de mulheres, ela as vê entrar na fábrica pela manhã. Está
assim, com a boca aberta ela olha, não acredita em seus olhos, e tem a grande frase: pensei ter
19
Trata-se na verdade de Europa 51, filme de Roberto Rossellini, de 1952. Ingrid Bergman interpreta uma senhora
burguesa que descobre a pobreza e a injustiça social. Deleuze retomará a frase da heroína do filme em “Post-
scriptum sobre as sociedades de controle. In: DELEUZE, G. Conversações. Op. cit., p. 223.
34
visto condenados. Ela apreendeu algo sobre a identidade estrutural da escola, da fábrica, da
prisão.
Pois bem. Quanto mais vocês se aproximam do diagrama de forças, mais vocês dizem
que é tudo a mesma coisa, as diferenças são mais flexíveis, mais difusas. Quanto mais descem
nos dispositivos concretos, mais vocês têm escritórios separados. Mas os dois não se
contradizem de modo algum, não cessam de oscilar de uma segmentaridade flexível a uma dura.
Vocês não deixam de ir dos estratos ao diagrama e do diagrama aos estratos. Nem deixam de ir
de uma estratégia difusa em todo o corpo social a uma estratificação, ao contrário, compacta
através do corpo social e vice-versa. Vocês errarão se não mantiverem os dois pontos de vista
quando fizerem sociologia. Perderão as clivagens fundamentais. De modo que, em certa
medida, esse seria o método de Foucault para a exploração do campo social. Vocês tomam um
dispositivo concreto qualquer em um campo social e pensam: qual é seu o grau de afinidade
com o diagrama geral? Há um diagrama geral que é o estado das forças no campo social. O
dispositivo concreto é mais ou menos próximo, ou seja, efetua o diagrama ou uma região do
diagrama com mais ou menos, digamos, potência ou eficácia. Então, se o dispositivo efetua o
diagrama não muito bem, ele terá um baixo coeficiente de efetuação, portanto será muito
separado dos outros dispositivos. Se ele o efetua com um alto nível de eficácia, terá um alto
coeficiente de eficácia e será muito mais próximo do diagrama.
O método de Foucault me parece muito interessante. Tomemos, por um momento, um
dispositivo concreto: a prisão, em uma formação social, nossa formação disciplinar.20 É
provável que um mesmo dispositivo mude na evolução de um campo social, nas pequenas
transformações desse mesmo campo, que um mesmo dispositivo concreto mude de coeficiente.
A prisão, se retomarmos as análises de Foucault em Vigiar e Punir, atravessa três coeficientes
de efetuação do diagrama disciplinar. Primeiro estado: a prisão como dispositivo não é um
termo de referência para a evolução do direito penal. Essa evolução se faz inteiramente
independente do regime penitenciário. Dizer que a prisão está à margem é dizer que ela não
20
Deleuze refere-se à sua atualidade, caracterizada aqui como sociedade disciplinar. Em “Post-scriptum sobre as
sociedades de controle”, como o nome sugere, Deleuze afirma a partir de Foucault que “encontramo-nos numa
crise generalizada de todos os meios de confinamento, prisão, hospital, fábrica, escola, família. [...] São as
sociedades de controle que estão substituindo as sociedades disciplinares”, assim como estas teriam sucedido as
“sociedades de disciplina”. (Ibid., pp. 223-4). O termo deleuziano “controle” é equivalente a “segurança” em
Foucault. Note-se que em Segurança, território, população Foucault chama a atenção de seus auditores de que
não há exatamente uma sucessão soberania-disciplina-segurança, mas sobretudo sobreposições e uma “dominante,
ou, mais exatamente, o sistema de correlações” entre lei-disciplina e segurança. Cf. FOUCAULT, M. Segurança,
território, população. Op. cit., p. 14 e p. 11.
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efetua bem o diagrama. Por exemplo, ela não efetua bem o diagrama da justiça, está à margem.
Segundo estado do mesmo campo social: ela está presa ao direito penal. No momento em que
ela entra, efetua o diagrama com um coeficiente mais forte. Terceiro estado: o direito se coloca
a questão: eu não poderia garantir minhas punições para mim por meios mais seguros que a
prisão? Crítica da prisão: talvez a punição deveria prescindir da prisão. A prisão que atravessou
limiares de coeficientes, subiu na escala de coeficientes, no início efetuou muito pouco o
diagrama. Depois ela sobe, está presa ao direito penal, efetua o diagrama cada vez melhor. Em
seguida cai: uma crítica da prisão aparece cada vez mais, não apenas entre os revolucionários...
Por exemplo, se quiserem compreender a evolução da pena de morte, verão que ela é
considerada por um momento pelo campo da justiça, e depois como a crítica se fez já no século
XVIII. A crítica às prisões também já foi feita completamente – isso é terrível, não estamos
progredindo. Se quiserem uma crítica radical às prisões, não há necessidade de procurar em
textos recentes, vocês a encontram em Victor Hugo, assim como a pena de morte. Vocês têm
um mesmo dispositivo que mudará de coeficiente. Compreendem? Para que, perpetuamente, eu
pudesse dizer agora: então as formações estratificadas e os diagramas são como dois polos e,
finalmente, as formas concretas não deixam de subir em direção a um, de descer em direção ao
outro, de se aproximar de um, de outro, subindo e descendo nesse tipo de transformação ou de
evolução internas.
Finalmente, minha última observação. É preciso considerar este ponto. Quando falamos
de técnica, temos que chegar a um acordo: a técnica, no sentido estrito da palavra, são as
ferramentas, as máquinas etc. Há uma observação que Foucault faz em Vigiar e punir,21
dizendo: quando falo da prisão, da viatura [voiture] celular, de tudo isso, me dirão que não são
invenções famosas, são invenções vergonhosas ao lado de altos fornos de eletricidade, estes
sim, invenções propriamente tecnológicas. Esse livro tem uma página que o estilo de Foucault
é inteiramente perceptível, na qual ele termina dizendo: diria que a pequena invenção da viatura
celular pode ser muito menos, mas também pode ser muito mais que a maioria das grandes
invenções técnicas. Quer dizer, ao meu ver, isso significa que a tecnologia permanece
incompreensível se for tomada nela mesma, isto é, que a história dos instrumentos e das
máquinas não existe por si só. Por quê? Assim como disse: porque toda época vê tudo que o
pode ver e diz tudo o que pode dizer, segundo seus meios. Cada época tem todos os instrumentos
21
Cf. FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Op. cit., p. 292.
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e todas as máquinas que seus dispositivos e seu diagrama – os dispositivos sendo apenas as
atualizações do diagrama – exigem e suportam. O que isso significa? Que toda técnica material
pressupõe uma técnica social. Era uma ideia que Marcel Mauss,22 grande sociólogo da escola
francesa, desenvolveu muito bem.
Insisto sobre essa última consequência: como Foucault se insere e renova esse tema?
Não há técnica material que não suponha uma tecnologia social. O que isso significa? Recolho
apenas exemplos para lhes mostrar que, neste ponto, Foucault está de acordo com análises de
historiadores, de especialistas. Cito os seguintes casos: uma série tecnológica foi
particularmente estudada por especialistas em Ásia, a propósito de uma cultura do arroz; é a
sucessão do bastão, da enxada e da charrua, linhagem tecnológica em que se apreende, em um
mesmo território, a sucessão: o bastão escavador, a enxada, charrua. Aqui, vocês encontrarão
uma referência – para aqueles que se interessam por referências cruzadas – a isso em Braudel:
Civilisation matérielle et capitalisme.23 É o volume 1, na página 128. Este é conduzido a dizer
que o instrumento é consequência e não mais causa. É uma ideia muito boa. Quer dizer, não se
vai do bastão à enxada e da enxada à charrua por aperfeiçoamento técnico, para ir de um estágio
é necessário haver variações consideráveis. O fator decisivo dessa mudança é a densidade da
população e o tempo de pousio. Ou seja, a enxada aparece apenas no momento de uma certa
densidade da população e de tempo de pousio. Isso significa que o instrumento só pode aparecer
na medida em que é exigido e selecionado por um dispositivo coletivo.
Desta vez, um segundo exemplo, tento pegar emprestado de casos muito diferentes. Há
uma grande revolução nos armamentos, nos tipos de instrumentos, nas armas, na época da
cidade grega, chamada de reforma hoplítica. Um historiador da Grécia Antiga, Detienne
estudou de perto as armas hoplíticas. Ele chegou à conclusão de que tudo que há de novo nessas
armas é inseparável de um novo dispositivo social que se opõe ao anterior nos gregos, de modo
que as armas não poderiam aparecer antes desse novo dispositivo social. Qual seria esse
dispositivo? O soldado camponês. Este se opõe à forma arcaica do exército grego, a saber, uma
casta de guerreiros mantida pelo camponês. O novo sistema do soldado cidadão camponês é
um dispositivo coletivo. O cidadão, o camponês, será soldado para que as armas hoplíticas
sejam possíveis. Por exemplo, uma das mais originais armas hoplíticas é um instrumento puro:
22
MAUSS, M. Les techniques du corps". In: Sociologie et anthropologie. Paris: PUF, 1950.
23
BRAUDEL, F. Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII. Vol. I: Vol. II: Os jogos da
troca. Vol. III: O tempo do mundo. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
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o escudo tem duas alças, o que faz dele uma arma que pode fazer estremecer. Quer dizer, se
fujo, sentencio meu companheiro à morte. O escudo com duas alças é a melhor maneira de
solidarizar soldados uns aos outros. Então, essa arma implica que a casta de guerreiros acabou,
surgindo o soldado camponês. Nessa casta, o escudo com duas alças é ininteligível, impossível.
Trata-se de unir as fileiras de soldados da infantaria, enquanto as castas de guerreiros estão a
cavalo ou em carruagens, e essa união material do camponês com o camponês indica
precisamente o fim dos grandes guerreiros arcaicos e a ascensão do soldado cidadão. Mas,
vejam bem, é o dispositivo social, a tal ponto que Détienne inverteu uma bela fórmula, que diz
exatamente o que Braudel disse, quando afirma: “o instrumento é consequência e não mais
causa”. Détienne diz: “a técnica é de certa maneira interior ao social e ao mental”.
Outro exemplo se dá com a charrua. Os tecnólogos fizeram diversas pesquisas sobre a
charrua na Idade Média, sua aparição. Ela substitui uma espécie de pré-charrua, que era muito
menos eficaz e chamada de arado, um pedaço de madeira com uma relha e com uma lâmina.
Por isso, perguntamo-nos: é um aprimoramento técnico que faz passar do arado à charrua?
Todas as pesquisas dos historiadores, que são muito interessantes desse ponto de vista,
confirmariam esse aspecto de uma tecnologia, a necessidade de uma tecnologia um pouco mais
filosófica do que aquela que se faz normalmente. Observem que o arado tem, sobretudo, seu
efeito e sua extensão em um regime de terra seca e de campos quadrados. Poderia lhes contar
sobre isso, funciona bem especialmente no sul. Vocês sabem por quê? Porque esse pedaço de
madeira com relhas arrastado por uma vaca é o arado, e tem uma desvantagem: o modo como
revolve a terra faz com que o entressulcos seja necessariamente muito grande, ao contrário do
que acontecia com a charrua. Entre dois sulcos há um grande espaço; portanto, vocês veem a
necessidade de esquadrilhar, é necessário arrastar o arado ao mesmo tempo longamente e em
profundidade, implicando, de fato, na forma ideal do campo correspondente ao arado, um
campo quadrado. De qualquer forma é uma terra seca e o entressulcos é menos consistente se a
terra estiver seca; se ela for pesada será um desastre. No entanto, há muito tempo os tecnólogos
observaram que a charrua emerge em terras com campos alongados e solo pesado.
Vejam, quando digo “o instrumento”, vocês não podem pensá-lo independentemente de
um dispositivo coletivo. Sim, já no nível mais evidente, o arado não é separável de uma estrutura
territorial “campo quadrado, terra seca”. A charrua, ao contrário, será no “campo alongado,
terra pesada”.
38
Ademais, a charrua remeterá ao cavalo, e ainda é necessário que haja a descoberta do
cavalo como animal de tração, o que implica, aliás, descobertas técnicas, isto é, a coleira do
cavalo usada sobre o ombro e a ferradura. Muito complexo. Assim, a charrua implica uma
economia comunal. Bem, resumo muito, a investigação é longa e muito bela. Digo: a charrua
remete a um dispositivo do qual posso marcar, praticamente, as singularidades: campo
alongado, cavalo como animal de tração, coleira carregada sobre os ombros, ferradura,
economia comunal; é um dispositivo com cinco ou seis singularidades. Novamente, o
instrumento técnico é incompreensível e inseparável de um dispositivo coletivo. Um outro
exemplo, para terminar, é o estribo. Ele é interessante porque leva um certo momento, demora
um pouco nos exércitos europeus, o estribo se difunde por volta do século IX. É bastante curioso
porque a generalização do estribo nos exércitos coincide com as reformas profundas de Charles
Martel, com suas reformas do exército. A reforma de Martel implica no confisco de terras da
Igreja. Vocês me dirão: isso é muita coisa para um estribo! Sim, mas por que muitas coisas? O
que é um estribo? Um estribo, se vocês o definirem como relação de forças (é surpreendente
isso), é o apoio lateral do cavaleiro, ou seja, o cavaleiro tem um equilíbrio ou um apoio lateral
e não mais apenas um apoio na frente e atrás da sela. Quer dizer, o risco de ser desmontado é
muito menor, acarretando na mudança do modo como ele manuseia sua lança.
Com isso, entramos com o animal em um novo dispositivo. O que mudou é o dispositivo
homem-cavalo. Ele segura a lança debaixo do braço e a deixa em paz, podendo ir cada vez mais
rápido. Quando o cavalo se torna capaz de ir mais rápido, o golpe não será dado mais com a
força do braço, mas com a força do conjunto homem-animal, com a força do cavalo também.
Como um cavalo é muito mais forte, nesse momento, a lança adquire um papel sagrado. Antes
disso, o que os cavaleiros faziam quando não tinham estribos, o que pode ser mais grotesco?
Mas eles não o sabiam, não poderiam saber. Recomeço. Eles viam tudo que podiam ver, diziam
tudo que podiam dizer. Foram a cavalo ao campo de batalha, e desmontaram e batalharam a pé.
O cavalo era tratado como um animal de tração e não como animal de combate. O rei da
Inglaterra perdeu uma famosa batalha porque seus cavaleiros desceram do cavalo enquanto que
os outros permaneceram a cavalo. Aqui, ele deve ter descoberto que não era um jogo, pois,
naquela época, seus cavaleiros a pé, no chão, nada podiam fazer. É a batalha de Hastings.
Sempre me lembro dela quando vejo um inglês [risos].
Bom, mas o que é necessário para centrar o exército em cavaleiros a cavalo e não mais
em lutadores a pé? É preciso pagá-los – mercenários – ou lhes dar meios para pagar pelo seu
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armamento e seu cavalo, e isso custa caro; para isso, é preciso lhes oferecer terras. Para um
cavalo, necessita-se de forragem etc. Ao mesmo tempo, o estribo aparece e desempenhará um
papel determinante nas batalhas do feudalismo. Mas aparece sob qual forma? Vejam que ele é
selecionado por um dispositivo coletivo que implica a terra distribuída aos senhores – por meio
da qual estes mantêm cavalos e pagam seus armamentos – a mudança da estratégia de batalhas
– etc. Eu diria que os instrumentos nunca são senão pontas de dispositivos coletivos. Portanto,
faz sentido inteiramente Foucault afirmar que um dispositivo coletivo, em certo sentido, é uma
pequena invenção em relação às grandes invenções tecnológicas. Mas, por outro lado, é uma
invenção muito maior, pois os instrumentos e as máquinas são selecionados, como que pré-
selecionadas pelos dispositivos coletivos que, literalmente, os requisitam. Concluo aqui. Espero
que o que fizemos seja suficiente para vocês refletirem e, na próxima vez, colocar-me questões.
Com esse tema, praticamente já terminei de tratar das relações poder-saber.
40
GILLES DELEUZE
AULA 5
Aula 5: 25 de fevereiro de 1986
Passou muito tempo desde a última aula. Por isso é necessário recapitular sobre as
relações poder-saber em Foucault. Relações que, se vocês se lembram, organizam-se como dois
eixos: o eixo do saber e o eixo do poder. Bem, como podemos recapitulá-las? É evidente que,
na experiência, encontramo-nos sempre diante de mistos poder-saber. Isso em nada impede que
a análise filosófica tenha todo direito de delinear dois eixos heterogêneos: um eixo do poder e
um do saber, sendo que a experiência concreta nos apresenta sempre mistos. É exatamente como
se eu colocasse o poder em ordenada e o saber em abcissa.
Vimos anteriormente como Foucault começou estudando as formas do saber. É fácil, na
lista de seus livros, designar: até a obra Vigiar e punir. Não que ele ignore o poder, mas apenas
o coloca implicitamente, presumido. Já vimos que Foucault precisa implicitamente de uma certa
concepção dos focos de poder. Desde a teoria do enunciado, ele não pode formar os corpos de
enunciados sem referência a focos de poder. Vimos tudo isso, mas permanece que o eixo de
poder, até o livro Vigiar e punir, não é tratado em si mesmo, nem considerado explicitamente.
Vigiar e punir marca o primeiro corte na obra de Foucault e vai passar do eixo do saber ao eixo
do poder.
Havíamos começado no primeiro trimestre pelo estudo do eixo do saber, assim tínhamos
seguido o caminho cronológico da obra de Foucault; em seguida abordamos o eixo do poder.
Na recapitulação necessária, creio que é preciso, de antemão, colocar que entre o poder e o
saber, entre os dois eixos, há diferença de natureza. Recordo quais são os grandes pontos, como
se organiza essa diferença de natureza.
Primeiro aspecto: o poder mobiliza essencialmente pontos ou afetos. Pontos de
dominação ou, se preferirem, vai dar no mesmo, os afetos sendo pontuais, afetos que remetem
aos dois aspectos do poder: poder de afetar, poder de ser afetado. De fato, vimos que o poder
era as relações de forças e que a força se apresentava ao mesmo tempo como poder de afetar
outras forças e como poder de ser afetada por outras forças. Assim, esses afetos são pontos
singulares. O poder, por conseguinte, apresenta-se como repartição, como distribuição de
pontos singulares, pontos de dominação, ao passo que o saber não mobiliza pontos e repartições
de pontos, mobiliza formas e as organiza. O poder é informal, o saber é organização de formas,
é fundamentalmente formal e formalizador. Há formas do saber, enquanto há apenas pontos de
poder, dito por Foucault muito bem em A vontade de saber: “o poder vai de um ponto a outro”.
Segundo aspecto: o poder consiste em relação de forças (no plural); vimos que a força
existia apenas no plural, ela se diz no plural. Por quê? Porque a força é inseparável de sua
2
relação com outras forças. A força é o nome genérico, abstrato, de uma multiplicidade.
Lembrem-se que quando digo: “poder é relação de forças”, significa dizer que a força dominada
não pertence menos ao poder do que a força dominante ou, se preferirem, o poder de ser afetado
não é menos constitutivo do poder do que o poder de afetar. Logo, como o saber é relação de
formas, não se confundirá uma relação de forças com uma relação de forma. Vimos quais
seriam essas formas, as grandes formas do saber, suas duas formas fundamentais: ver e falar, o
visível e o enunciável. Há forma do enunciável, há forma do visível. A forma do enunciável é
a linguagem e a forma do visível é a luz, tais como Foucault as concebe.
Terceiro aspecto: sempre que distinguimos poder e saber trata-se de uma abstração, uma
vez que o concreto me apresenta apenas mistos. Do ponto de vista da abstração, tenho o direito
de dizer, em terceiro lugar, que o poder diz respeito a matérias não formadas e a funções não
formalizadas, enquanto o saber envolve e implica matérias formadas e funções formalizadas e
finalizadas. É sem dúvida o ponto mais importante. É por aqui que podem distinguir o que
propus chamar de categorias de poder em sua diferença com categorias de saber. Recordo-lhes:
para Foucault, o que são categorias de poder? Ele nos diz muito bem. Por exemplo, nas ditas
sociedades de soberania, categorias de poder serão: extrair [prélever] de uma atividade qualquer
– o “qualquer” é essencial – a operação do soberano é extrair de uma atividade qualquer e
decidir sobre a morte. O soberano decide sobre a morte em geral. Seja a morte na guerra, seja
a morte do condenado, seja uma morte qualquer, uma extração qualquer. Enquanto vocês
puderem elevar uma categoria ao coeficiente “qualquer”, manterão uma categoria de poder. O
que é uma categoria de poder nas sociedades disciplinares, isto é, nas sociedades modernas?
Bem, ele diz: impor uma tarefa qualquer a uma multiplicidade restrita qualquer. Impor uma
tarefa qualquer é a disciplina. A disciplina como poder; há disciplina como poder desde que
vocês imponham uma tarefa qualquer a uma multiplicidade pouco numerosa. Eis uma primeira
categoria de poder nas sociedades disciplinares. E, finalmente, quando o poder gere a vida.1
Vejam que as sociedades disciplinares se distinguem das sociedades de soberania
porque [o poder], ao invés de extrair de uma atividade qualquer, impõe uma tarefa a uma
multiplicidade pouco numerosa; ao invés de decidir a morte, gere a vida em uma multiplicidade
numerosa. Ninguém diz que é uma categoria de poder, precisamente porque não precisa dizer
de quê ou de quem se trata, qual é a atividade. Impor uma tarefa a uma multiplicidade pouco
1
Este duplo aspecto do poder na idade moderna, Foucault chamou de, respectivamente, anátomo-política e
biopolítica. No primeiro, o foco são os corpos individuais de uma multiplicidade pouco numerosa num espaço
restrito e esquadrinhado; no segundo, trata-se dos aspectos vitais de uma população que se desenvolve num espaço
aberto. Cf. infra, nota 23.
3
numerosa qualquer, a uma multiplicidade qualquer, contanto que ela seja pouco numerosa.
Gerir a vida relativamente a uma multiplicidade qualquer, desde que ela seja numerosa. São os
dois aspectos do poder disciplinar. Portanto, digo que o poder concerne e mistura matérias não
formadas – multiplicidades quaisquer – e funções não formalizadas – impor uma tarefa
qualquer.
Por outro lado, quais serão as categorias do saber? As categorias de saber concernem a
matérias formadas e funções formalizadas. Serão, por exemplo: educar, um saber educar, punir,
um saber punir, fazer trabalhar, um saber fazer trabalhar. Serão todas as maneiras formalizadas
de impor tarefas precisas, tarefas qualificadas com uma multiplicidade determinada. Quem será
punido? Serão os prisioneiros; quem será educado? Serão as crianças, e tudo isso sem dúvida é
subsumido [subsumé] pela categoria de poder “impor uma tarefa qualquer a uma multiplicidade
restrita qualquer”, mas, no nível das categorias de saber, educar, punir, fazer trabalhar etc. não
são, evidentemente, a mesma coisa. Então, aqui talvez entendamos melhor porque o concreto
me apresenta por definição apenas mistos de poder e de saber, pois a experiência nunca
apresenta algo tão estranho como “impor uma tarefa qualquer a uma multiplicidade restrita
qualquer”. Na experiência, todas as multiplicidades são qualificadas, é isto ou aquilo; são
estudantes, prisioneiros, trabalhadores, soldados. Ou seja, é sempre qualificado e a própria
tarefa, a tarefa imposta é sempre determinada: trata-se de educar, de punir, de fazer trabalhar
etc. Por isso Foucault afirma, por exemplo, que as categorias de poder são do tipo “incitar,
suscitar etc.”, isto é, elas não dizem a qualidade daquilo a que se aplicam e não dizem a forma
na qual elas entram, pois, quando entram numa forma, constituem saberes. Acredito que esse
seja o ponto mais importante para avaliar a diferença entre o poder e o saber.
Haveria ainda outro aspecto, e todos esses aspectos se encadeiam. O poder é constitutivo
de uma microfísica, o saber é constitutivo de uma macrofísica. Por isso o poder não é forma e,
por definição, vai de um ponto a outro. [O poder] é um conjunto de relações infinitesimais,
fluentes e evanescentes. O saber lhe dá estabilidade. E, finalmente, o poder é o objeto de uma
estratégia, o saber é objeto de uma estratificação. O saber é objeto de uma estratificação; sendo
assim, a estratégia é o manuseio ou a distribuição de uma matéria não estratificada.
Evidentemente, isso pressupõe o que vimos anteriormente, mas estou disposto a
retornar, caso vocês considerem necessário, a este ou aquele ponto.
Tento fazer uma aproximação mais geral: o saber é uma questão de arquivos, o arquivo
sendo audiovisual, isto é, arquivo do ver e o do enunciar, arquivo do visível em cada época,
arquivo do enunciável em cada época. O saber é uma questão de arquivo, o poder não é uma
questão de arquivo. O poder é uma questão de cartografia, de uma cartografia movente, um
4
mapa estratégico, sempre reformulável, fluente. Tanto que as duas palavras de Foucault
poderiam ser estas, no ponto em que estamos: até a obra Vigiar e punir, sou um arquivista; com
Vigiar e punir e A vontade de saber, sou um cartógrafo. O mapa estratégico é milimétrico. O
mapa milimétrico do poder é de uma outra natureza diferente da dos arquivos do saber. E nos
arquivos, há que sobrepor estratos aos arquivos; nos arquivos de formações estratificadas, há
que sobrepor aos mapas estratégicos, os mapas milimétricos que enunciam relações de forças
ou de poder numa época, relações de forças ou de poder que correspondem a esta ou aquela
formação estratificada. Há relações de forças que correspondem a cada formação estratificada,
mas as duas diferem em natureza, como o poder e o saber também diferem em natureza.
Diferem em natureza, mas não impedem que a experiência concreta nunca me dê senão mistos
de um e do outro. Eis o primeiro aspecto: há diferença de natureza entre o poder e o saber.
Segundo aspecto, a existência da diferença de natureza não impede que haja necessariamente
pressuposição recíproca entre os dois. Ou seja, um pressupõe o outro e vice-versa, mas
evidentemente de duas maneiras diferentes. Primeira maneira: o saber é fundamentalmente
formal, é organização de formas, de duas formas: ver e falar, variáveis no nível de cada
formação, isto é, no nível de cada época histórica. No entanto, sem as relações de poder, sem
as relações de forças, o saber nada teria a atualizar, suas formas seriam vazias. Nesse sentido
ele pressupõe o poder. Mas, inversamente, sem as formas do saber, o poder permaneceria
pontual, fluente, evanescente, instável e não poderia se conservar nem se reproduzir.
Quarto e último aspecto: não há somente diferença de natureza entre poder e saber, nem
pressuposição recíproca entre os dois, mas há primazia do poder sobre o saber. Em qual sentido
há este primado? As relações de forças ou de poder (recordo-lhes que é preciso escrever sempre
“relação de forças”, “forças” no plural, ou relação de poder no singular; a relação de poder é a
relação das forças) são causa imanente das formas, das formações históricas que constituem o
saber. De modo que o poder implica necessariamente o saber, mas o saber supõe
necessariamente o poder.
PERGUNTA: o poder implica ou explica o saber?
DELEUZE: os dois. Quer dizer, implicar e explicar nunca se opuseram. Implicar, a rigor, é
envolver; explicar é desenvolver. É óbvio que o que envolve desenvolve. Com efeito, podemos
dizer que o saber envolve as relações de forças ou de poder, assim como ele as desenvolve.
Quero dizer: não pensem que implicar e explicar estejam em relações de contrariedade. Estão
em relações de complementaridade. Se eu disser que B implica A, significa dizer também que
B explica A. Envolver e implicar são um conjunto e o termo contrário a estes seria complicar.
Então posso dizer de fato: a relação de forças complica o saber, ou seja, ele a compreende. O
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que se opõe a implicar e explicar é compreender, isto é, complicar. Daí, posso responder, após
essa recapitulação, ao menos duas questões que dois de vocês me colocaram.
Primeira questão: admitir que o poder seja, de uma certa maneira, causa do saber ou, se
desejarem, que as relações de forças ou de poderes sejam causa imanente das formas do saber,
não é restaurar uma espécie de unidade? Vimos anteriormente em qual sentido Foucault, em
minha opinião, realizava uma teoria das multiplicidades na qual a unidade desapareceu em
benefício de um novo estatuto do múltiplo. Um estatuto de multiplicidades que poderia ser
pensado sem a referência a algo funcionando como unidade. Como pensar o múltiplo em estado
puro? Desse ponto de vista, seria muito importante que a ideia de causa imanente não
restaurasse uma espécie de unidade. Penso que temos a resposta para essa questão: há
restauração de uma unidade a partir do momento em que o que desenvolve o papel de causa
imanente existe apenas num estado de dispersão radical, isto é, sob a forma das relações de
forças, e a força sendo irredutível a uma unidade qualquer, porque ela existe apenas na
multiplicidade que relaciona a força com a força, sob a forma de um poder de afetar outras
forças ou de um poder de ser afetados por outras forças. A força apresenta uma irredutível
multiplicidade e só pode ser pensada como múltipla que não há nenhuma restauração de
unidade.
Segunda questão: se há diferença de natureza entre poder e saber, não seremos remetidos
ao infinito? A questão queria dizer isso. Vocês devem se lembrar de nossos aprendizados
quando analisamos o domínio do saber. Reencontramos o mesmo fato de uma diferença de
natureza entre as duas formas de saber: o ver e o enunciar, o visível e o enunciável. Deparamo-
nos com o seguinte problema: como pode haver concordância entre o visível e o enunciável se
eles são heterogêneos e diferem em natureza, a ponto de nunca vermos o que se diz e de nunca
dizermos o que se vê? Então, a diferença de natureza entre as duas formas do saber nos força a
sair do saber para encontrar uma razão ou uma causa segundo a qual, apesar dessa diferença,
essas duas formas sejam coadaptáveis. E a encontramos no nível das relações de poder. As
relações de poder explicam como as duas formas do saber são coadaptáveis. Por quê? Porque
as relações de poder são informais e não estão sujeitas às duas formas do saber. Logo, elas
podem explicar a coadaptação de uma forma à outra. Mas, desse modo, a questão seria esta: se
há uma diferença de natureza entre poder e saber, não se é remetido a um terceiro, a uma nova
causa que explicaria a coadaptação? Não. Não somos remetidos a uma nova causa, a uma causa
da causa, desde que compreendamos como a causa imanente age, isto é, em qual sentido as
relações de poder ou as relações de forças são, na verdade, causa imanente das formas do saber.
Bem, em qual sentido? Se eu tentar adotar uma fórmula mais geral, diria que as formas do saber
6
atualizam as relações de forças ou de poder. Em outras palavras, o efeito atualiza sua causa e
próprio efeito é o que atualiza. Em qual sentido? Na verdade, como vimos, as relações de forças
por si mesmas, de acordo com a análise de Foucault, permaneceriam completamente fluídas
instáveis, evanescentes, se não se atualizassem em seus efeitos, sendo estes uma forma estável.
Assim, direi que o efeito atualiza a causa imanente e, de fato, essa é uma causa inseparável de
seu efeito, uma causa que permanece inteiramente virtual se a separarmos de seu efeito.
Primeiramente, mas em que consiste a atualização? Vimos sobre isso recentemente. A
atualização segundo Foucault não é fácil, mas observando cuidadosamente os textos, pareceu-
me que a atualização das relações de forças ou de poder consiste em duas operações
simultâneas. Por um lado, o efeito atualiza à medida que integra. A atualização é uma
integração. Eu diria: o saber integra as relações de forças, as formas integram as relações de
forças. Parece-me que Foucault nos diz isso em A vontade de saber,2 quando afirma: nas formas,
as relações de forças constituem então uma linha de força geral que atravessa os confrontos
[affrontements] locais e os liga, eles procedem sobre eles... por sua vez, as formas vão proceder
a redistribuições, a alinhamentos, a homogeneizações, a ordenamentos, a convergências. Dito
de outro modo, as formas alinham, homogeneízam, integram as relações de forças ou de poder.
Recordo-lhes que, concretamente, seguimos uma análise bem precisa; tentamos chegar a uma
análise muito precisa na qual pudemos invocar as matemáticas para dizer: na teoria das funções,
distinguimos dois elementos diferindo em sua natureza. Distinguimos a repartição de
singularidades, de pontos singulares, de pontos de inversão, cúspides, nós, focos... Distinguir
uma repartição de singularidades é uma coisa, distinguir a aparência da curva, que é
precisamente chamada de “curva integral”, curva de integração, curva integral que passa nas
proximidades das singularidades. Ora, a repartição de singularidades em um campo de vetores
é o que chamaremos de, não mais em matemáticas, segundo Foucault, emissão de
singularidades correspondente a relações de forças, repartição de singularidades em um campo
de vetores; mas é inteiramente diversa dela, ou melhor, é de outra natureza matemática, a
aparência da curva integral passa na proximidade dos pontos singulares e opera uma integração.
Então, aqui, vemos muito bem por que o efeito integra a causa imanente; as relações de
forças são uma repartição de singularidades, mas o efeito integra, ou seja, as formas do saber
vão traçar as curvas que passam na proximidade das singularidades do poder. Está muito claro.
Segundo aspecto no texto de Foucault é a integração. Vejam, poderemos defini-la de
muitos modos. Digo: integrar é alinhar, homogeneizar etc. Além disso, integrar é traçar a curva
2
FOUCAULT, M. A vontade de saber, pp. 88-90.
7
que passa na proximidade das singularidades. As singularidades sendo os pontos de poder. A
curva que passa na proximidade [dos pontos] constituindo as formas do saber. Eu diria também
que, com Foucault, integrar é institucionalizar. As instituições são inseparáveis das formas de
saber, institucionalizar é finalizar – como acabamos de lembrar; as relações de forças ou de
poder consideram apenas funções não formalizadas e não finalizadas; quando vocês atribuem
uma finalidade, já estão no domínio do saber. Impor uma tarefa qualquer a uma multiplicidade
qualquer é uma categoria de poder, mas educar é uma função formalizada e finalizada. Assim
como trabalhar, punir. Para Foucault, integrar é institucionalizar, finalizar, tecnologicizar e
também racionalizar. De fato, essas são as quatro grandes espécies principais, parece-me, sob
às quais as funções recebem uma forma e uma finalidade. Ao mesmo tempo gostaria – pois
parece necessário fazer essa recapitulação e me parece muito abstrato – que vocês se
lembrassem um pouco do que fizemos antes, do aspecto integração.
Eu diria que o efeito integra a causa, isto é, as grandes formas de saber integram as
relações de forças e de poder, as relações informais de forças e ou de poder, confere-lhes uma
forma. Mas, mas... não é suficiente pra mim! Mais uma vez, é necessário que atualizar não seja
somente integrar, mas também diferenciar. O efeito não integra a causa imanente, isto é, as
relações flutuantes, as relações de forças flutuantes para estabilizá-lo; o efeito não integra as
relações de forças flutuantes que constituem a causa imanente sem, ao mesmo tempo, introduzir
uma diferenciação. Atualizar-se é sempre se atualizar seguindo por vias divergentes, como se
o conjunto da causa não pudesse ser atualizada de uma só vez. Ele deve ser atualizado pelo
menos em duas direções divergentes. A própria ideia de que se atualizar é se diferenciar, por
exemplo, foi fundamentalmente e muito... tão bem desenvolvida por Bergson, a atualização
implica necessariamente um processo de diferenciação. Não retornarei a Bergson, mas vocês
devem guardar na memória os exemplos concretos. De fato, em Foucault, a atualização das
relações de forças implica sempre grandes diferenciações. É no nível da atualização das relações
de forças, ou seja, a maneira cujas relações de forças se encarnam (se incorporam) nas grandes
formas, nas grandes formações estratificadas, que aparecem as grandes diferenciações dos
sexos...3 É o tema de Foucault no nível das relações pontuais, a sexualidade sem sexo. A
diferença dos sexos aparece no nível da integração da sexualidade. Diferenciação sexual,
política, social de classes etc., tudo isso aparece no nível das formações estratificadas. As
relações de forças não podem se atualizar sem seguir vias de atualização divergentes. Atualizar-
se consiste em criar a diferenciação das vias pelas quais a atualização ocorre. Ora, para nós é
3
Cf. DELEUZE, G. Michel Foucault: As formações históricas. Aulas de 21 e 28 de janeiro de 1986.
8
essencial, pois nos permite responder, mais uma vez, à questão na qual permanecemos no nível
do saber. Vejam, há uma forma do visível e uma forma do enunciável, e há um vazio [béance]
entre os dois. Não digo o que vejo, não vejo o que digo. Toda análise de Foucault chegou a esse
resultado. Não há acordo entre ver e falar, há uma batalha entre os dois, e todo o tema de uma
batalha entre o que vejo e o que digo foi desenvolvido por Foucault de modo magistral. Bem,
estávamos aqui quando estudamos o saber: como ele pode falar de batalha? Porque batalha
entre ver e falar implica que haja, ao menos, um mínimo de relação, mas no ponto até onde nos
conduziu sua análise, não há relação. Por um lado, vejo, por outro, digo. Mas não vejo o que
digo e não digo o que vejo. Bom, parece que estamos, como Blanchot disse, diante de uma não
relação do ver e do falar, e terminamos nossa análise do saber dizendo: como explicar que há
coadaptação entre ver e falar? Por que toda análise do saber leva à não relação entre os dois?
Agora temos condições para responder.
Ver e falar constituem duas linhas fundamentais de diferenciação. É nesse sentido que
eles estão em não relação. Ver e falar divergem. Por que, no seio de sua não relação, eles ainda
estão em relação? Como explicar uma relação que surge da não relação, a ponto de uma batalha
entre os dois se tornar possível? Vejam a resposta: a diferenciação, a divergência das duas
formas é, de fato, a atualização do mesmo elemento informal, as relações de forças ou de poder.
É justamente porque essas relações são informais que elas podem se atualizar em duas formas
divergentes, que, por conta própria e em si mesmas, estão em não relação, mas que
necessariamente entram em uma relação indireta uma com a outra em virtude do que elas
atualizam. Por isso, última questão: mas por que a diferenciação fundamental ver-falar convém
à atualização das relações de forças? A resposta seria a seguinte: a força está sempre em relação
com outras forças. Em outras palavras, a força é múltipla, mas cada força como elemento de
uma multiplicidade já possui dois aspectos: ela tem um poder de ser afetada por outras forças e
um poder de afetar outras forças. O poder de uma força de afetar outras forças se chamará
espontaneidade da força – essas não são palavras de Foucault, mas pouco importa, já que é para
tornar as coisas mais claras.
A variação da relação de uma força com outras forças: tanto ela é afetada por outras
forças quanto as afeta. Mas, se recordarem do que aprendemos no primeiro trimestre, quando
analisávamos o saber, o visível nos parecia a forma da receptividade. Desta vez, a forma e não
o poder. O visível era forma de receptividade sob a condição da luz. O enunciado era a forma
de espontaneidade sob a condição da linguagem. Por conseguinte, compreendemos que os dois
poderes da força, poder de espontaneidade e de receptividade, atualizam-se em duas formas
diferenciadas, de modo que uma seja forma de receptividade e a outra, forma de
9
espontaneidade. Então, não é por acaso que as relações de poder se atualizam no ver e no falar.
Não que o poder, que consiste em relações informais, veja a si mesmo e fale de si mesmo, mas,
como Foucault diz muito bem, o poder faz ver e faz falar. Propriamente, o que é poder? Em si
mesmo, a concepção que Foucault tem acerca do poder é muito análoga a um tipo de concepção
kafkiana da toca [du terrier]. O poder é uma toca, uma galeria que vai de um ponto ao outro.
O poder é a toupeira [taupe]. A galeria, a toca, a toupeira que vai de um ponto ao outro.
Em última análise, o poder é cego e mudo. Mas ele faz ver e faz falar. Como diz Foucault em
textos muito emocionantes, em A vida dos homens infames: “[o poder] nos atrai à luz, breves
instantes e nos força a falar por vezes”.4
Uma queixa é apresentada contra mim. É muito kafkiano, pense em O processo. Em
minha existência obscura, a rigor, em minha existência infame, sem reputação, sou atraído à
luz, como se costuma dizer: estou preso sob o holofote. Faço meu pequeno tour e em seguida
me vou. Esse é o poder, ele nos atrai, nos lança sob um projetor de luz e depois, bom, vá! Você
já teve seu tempo. Essas são as relações de forças. O poder me obriga a falar. “Você falará na
terça das nove às dez” [risos], e, depois, sou conduzido à minha existência muda. Uma pessoa
que tem sede de poder é alguém que gostaria de estar no centro das atenções a todo tempo,
sempre levado a falar. Então criaram isso, os colóquios... ou a vida noturna, o neon, você é
atraído para lá. O poder faz falar, faz ver, não vê a si mesmo, ele mostra; não fala de si mesmo,
ele força a falar.
Assim, interessa-me saber se respondemos bem à nossa questão, se reuni tudo o que
vimos desde o início. Demos uma resposta ao problema que levantamos, a saber, quais são as
relações entre ver e falar e se, em si mesmos, estão em uma não relação. Era necessário
ultrapassar o eixo do saber, instalar-se no eixo do poder, descobrir o conteúdo do eixo do poder
para compreender como as relações de poder, atualizando-se nas formações estratificadas,
criam necessariamente duas formas divergentes, o ver e o falar, e como essas formas, por
conseguinte, estavam em uma relação indireta, embora diretamente não haja relação. Diante
disso, quando eu falava de uma espécie de kantismo de Foucault, recordo-lhes que, em Kant,
não havia o mesmo problema, mas um problema análogo. Kant determinou uma forma de
receptividade: o espaço, mas pouco importa que, em Foucault, seja a luz e não espaço. E Kant
determinou uma forma de espontaneidade: o conceito, espontaneidade da força. Pouco importa
que, em Foucault, seja enunciado e não o conceito. Importa para mim que, em Kant, a forma de
4
Cf. FOUCAULT, M. “La vie des hommes infâmes”. In: Dits et écrits v. II, p. 240: “il a fallu pourtant qu'un
faisceau de lumière, un instant au moins, vienne les éclairer. Lumière qui vient d'ailleurs” [“foi preciso, entretanto,
que um facho de luz, um instante ao menos, viesse iluminá-los. Luz que vem doutro lugar”].
10
espontaneidade – conceito – e a forma de receptividade – espaço-tempo – difiram em natureza.
Kant se deparou com a questão: por que, por um lado, o espaço-tempo e, por outro, o conceito
diferem em natureza, como explicar que conceitos se apliquem ao espaço e ao tempo? Como
explicar, apesar da diferença de natureza, a existência da coadaptação entre forma de
espontaneidade, conceito, e forma de receptividade, espaço-tempo? Kant disse: é um grande
mistério.5 Que conceitos possam se aplicar ao espaço-tempo quando há diferença de natureza
entre conceitos e espaço-tempo é realmente misterioso. Para Kant, só é possível porque há uma
terceira instância.
Mas vocês compreendem imediatamente que essa terceira instância não pode ser uma
forma. Kant a chamou de o esquema da imaginação.6 Para ele, o esquema da imaginação está
em nossa alma, a faculdade mais misteriosa, pois esse esquema é, por um lado, homogêneo ao
espaço e ao tempo, por outro, homogêneo ao conceito. Disso decorre que espaço-tempo e
conceito são heterogêneos, são duas formas heterogêneas, mas há uma instância não formal que
é homogênea a cada uma das duas. Vejam, esse esquema é muito curioso. O que se compreende
por esquema? Não é a mesma coisa que uma imagem, é uma determinação espaciotemporal,
um dinamismo espaciotemporal em conformidade com um conceito. Vocês podem fazer a
experiência para ter esquemas da imaginação, é muito divertido. Sim, havia uma escola de
psicologia, não foi há muito tempo, que se referia a Husserl e fazia, todo o tempo, aquilo que
eles denominavam experiências de pensamento, que consistiam basicamente em empregar
frequentemente o mesmo termo: esquema. Oferecia-se um conceito e, em seguida, tentava-se
obter não uma imagem correspondente ao conceito, mas um esquema do conceito. Isso é
engraçado.
5
“Para explicar como a sensibilidade passiva entra em acordo com o entendimento ativo, Kant invoca a síntese e
o esquematismo da imaginação que se aplica a priori às formas da sensibilidade em conformidade com os
conceitos. Mas, assim, o problema está apenas deslocado: pois a imaginação e o entendimento diferem eles
mesmos em natureza, e o acordo entre essas duas faculdades ativas não é menos “misterioso” (da mesma forma, o
acordo entendimento-razão)”. DELEUZE, G. Para explicar Kant. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves
Editora, 1976, p. 36. O termo mistério é de Kant: “Ora, é sobre estes princípios sintéticos, isto é, extensivos, que
assenta toda a finalidade última do nosso conhecimento especulativo a priori, pois os princípios analíticos [...]
apenas servem para alcançar aquela clareza de conceitos que é requerida para uma síntese segura e vasta que seja
uma aquisição verdadeiramente nova. Há aqui, pois, um certo mistério, cujo descobrimento tão-só pode fazer
seguro e digno de confiança o progresso no campo ilimitado do conhecimento intelectual puro; a saber, descobrir
[...] o fundamento da possibilidade dos juízos sintéticos a priori [...]”. KANT, I. Crítica da razão pura, introdução
(B), IV. Trad. M. dos Santos e A. Morujão. Lisboa: Fundação Kalouste Gulbenkian, 2001, p. 70. O trecho marcado
por nós em itálico é do prefácio da 1ª edição da crítica. Ele foi suprimido da edição de 1787.
6
“O esquema da imaginação é a condição sob a qual o entendimento legislador formula juízos com os seus
conceitos, juízos que servirão de princípios a todo conhecimento do diverso. Ele não responde à pergunta: como
os fenômenos são submetidos ao entendimento? mas a esta outra: como o entendimento se aplica aos fenômenos
que lhe são submetidos?”. DELEUZE, G. Id., p. 32. Cf. tb. Crítica da razão pura, B 176 (“Do esquematismo dos
conceitos puros do entendimento’).
11
Por exemplo, conceito de leão, essa é a definição de leão numa classificação de história
natural: mamífero com juba e longos dentes etc., observem, é um conceito. Uma imagem de
leão também o é. Mas o que é um esquema de leão? Qual dinamismo espaciotemporal colocam
sob a palavra leão? Pode variar de acordo com... humm..., não sei em qual medida pode variar,
é muito engraçado, se posso assim dizer. Para que conheçam melhor, é necessário fazer do
esquematismo diferencial, pois este é diferencial. Comparem o esquema do piolho e o do leão.
O piolho em si mesmo tem um conceito, pois não há objeto por menor e mais nocivo que seja
na natureza que não tenha seu conceito. Mas o esquema, qual é o dinamismo espaciotemporal
do piolho? Qual é sua maneira de ser no espaço e no tempo? Isso não faz parte de seu conceito.
Por mais que tentem retomar todos os sentidos do conceito de leão, vocês não verão sua maneira
de ser no espaço e no tempo, ou seja, o leão dorme o dia todo, certo. Bom. Então ele acorda
quando a noite chega, cinco horas da tarde, o leão abre o olho, fareja o ar e observa se há
antílopes. É a leoa que caça. Até aqui tudo bem. Tentem suprimir o que resta das imagens aqui
dentro, mantenham apenas o dinamismo puro, dinamismos espaciotemporais: o esquema. Estão
se aproximando do esquema, direções puras no espaço-tempo. Vocês não evocam um leão
particular, tampouco evocam características conceituais, mas, sim, puras orientações ou
direções, dinamismos. Há um dinamismo do leão que é o mais belo retrato do leão.
Outro exemplo, vocês evocam o polvo e a águia. Vocês podem pensar neles como
conceitos, oferecer uma imagem. Um polvo que lhes é familiar, do qual vocês gostam
particularmente. Em seguida, uma águia. O esquema não é nem conceito nem imagem. O
esquema, o dinamismo espaciotemporal, será ao mesmo tempo: o modo como a águia voa, que
é diferente do modo como o falcão e o gavião voam. A maneira como a águia desce, pois o que
conta, nas aves de rapina, é sempre a descida, nunca é a subida, é evidente, é o modo como elas
pairam ou como se precipitam. Eis um esquema. Vocês imaginam uma águia e retêm o puro
dinamismo espaciotemporal. Já o polvo é completamente diferente. Vocês não podem
confundir o dinamismo da águia com o do polvo. O polvo não tem o gesto da ave de rapina. Se
pensarem no movimento de uma ave de rapina em estado puro, sem saber, terão o esquema da
ave de rapina. Um movimento voraz que vem do alto é um esquema de aves de rapina. Excluam
o máximo possível as imagens para extrair o esquema puro, isto é, uma maneira de ser no
espaço-tempo, assim vocês terão um esquema. Compreendem?
12
Quem fez isso para o polvo e para a águia? Quem sempre definiu os animais por
esquemas dinâmicos? Lautreámont.7 Ele nunca descreve um animal, ele enuncia o gesto
dinâmico. Nunca é agradável, já que sempre ocorrem catástrofes, mas é um esquema.
O que estou lhes dizendo não está em Kant. É para lhes fazer compreender o que Kant
entende por esquema. Quando ele nos diz que um esquema da imaginação não é uma imagem
nem um conceito, e sim outra coisa, é um conjunto de determinações espaciotemporais que
correspondem ao conceito. Eu diria que o esquema é homogêneo ao espaço e ao tempo porque
consiste em dinamismos espaciotemporais, mas, por outro lado, é homogêneo ao conceito, dado
que corresponde ao próprio conceito.8 De modo que o conceito, por um lado, e o espaço-tempo,
por outro, diferem em natureza; eles são heterogêneos um com o outro e, no entanto, o esquema
da imaginação é homogêneo ao espaço-tempo, por um lado, e ao conceito, por outro. Essa é a
admirável teoria do esquematismo kantiano. Entretanto, estou apenas dizendo que, em
Foucault, temos algo de semelhante. O visível e o enunciável são heterogêneos, estão em uma
não relação. São duas formas em não relação. Mas há um elemento informal que agirá como
causa de sua conexão.9 Simplesmente, em Foucault, não será o esquema da imaginação, mas as
relações de forças ou de poder, e a relação de forças será ao mesmo tempo homogênea à forma
7
LAUTRÉAMONT. Os cantos de Maldoror. Trad. Joaquim B. Fontes. Campinas: Editora da Unicamp, 2015.
8
Aqui já se tornou clara a substituição que Deleuze-Nietzsche operam no esquema kantiano. Tal substituição tem
como pano de fundo a própria noção de crítica em Nietzsche. Segundo Deleuze, para Nietzsche a tradição teria
permanecido presa à remissão ao mesmo, ao já-aí: a elucidação, ora fenomenológica, ora realista, de como os
estratos – usando o vocabulário deleuziano – estão placidamente assentados, valendo em si e por si: “A filosofia
crítica tem dois movimentos inseparáveis: conectar toda coisa, e toda origem de algum valor, a valores; mas
também conectar esses valores a algo que seja como que sua origem, e que decida sobre o seu valor. Reconhece-
se a dupla luta de Nietzsche. Contra aqueles que subtraem os valores à crítica, contentando-se em inventoriar os
valores existentes ou em criticar as coisas em nome de valores estabelecidos: os “operários da filosofia”, Kant,
Schopenhauer. Mas também contra aqueles que criticam ou respeitam os valores, fazendo-os derivarem de simples
fatos, de pretensos fatos objetivos: os utilitaristas, os “cientistas”. Nos dois casos, a filosofia boia no elemento
indiferente daquilo que vale em si ou [...] para todos. Nietzsche se levanta de uma só vez contra a elevada ideia de
fundamento, que deixa os valores indiferentes à sua própria origem, e contra a ideia de uma simples derivação
causal ou de um começo insípido, que põe uma origem indiferente aos valores. Nietzsche forma o conceito novo
de genealogia. O filósofo é um genealogista, e não um juiz de tribunal à maneira de Kant, nem um mecânico à
maneira utilitarista. O filósofo é Hesíodo. Nietzsche substitui o princípio da universalidade kantiana, bem como o
princípio da semelhança, caro aos utilitaristas, pelo sentimento de diferença ou de distância (elemento
diferencial).” DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia. Op. cit., pp. 16-17.
9
Em termos kantianos, tal conexão é a síntese: “O conceito de síntese está no centro do kantismo, ele é sua
descoberta própria. Ora, sabe-se que os pós-kantianos, de dois pontos de vista, reprovaram Kant por ter
comprometido essa descoberta: do ponto de vista do princípio que regia a síntese, do ponto de vista da reprodução
dos objetos na própria síntese. Reclamava-se um princípio que não fosse apenas condicionante relativamente aos
objetos, mas verdadeiramente genético e produtor (princípio de diferença ou de determinação interna); denunciava-
se em Kant a sobrevivência de harmonias milagrosas entre termos que permaneciam exteriores. A um princípio de
diferença ou de determinação interna, reivindica-se uma razão não apenas para a síntese, mas para a reprodução
do diverso na síntese enquanto tal. Ora, se Nietzsche se insere na história do kantismo, é na maneira original pela
qual ele participa dessas exigências pós-kantianas. Ele fez da síntese uma síntese das forças; pois, falhando em ver
que a síntese era uma síntese das forças, desprezava-se o seu sentido, a sua natureza e o seu conteúdo. Ele
compreendeu a síntese das forças como o eterno retorno, e então encontrou no coração da síntese a reprodução do
diverso”. Ibid., p. 64. Grifo nosso.
13
do ver e à do enunciar, embora ambas as formas sejam disformes, ou seja, não são homogêneas,
mas heterogêneas.
Nesse sentido, o problema ao qual nos deparamos no fim de nosso estudo sobre o saber
em Foucault encontra aqui sua solução: são as relações de poder que explicam a coadaptação
das duas formas de saber. Essa é a recapitulação que gostaria de fazer, e vou lançar um apelo
bem solene: está claro? Há algum ponto no qual queiram voltar? Porque, praticamente,
acabamos. Digo praticamente porque na verdade ainda teremos um pouco mais, vocês
entenderão o porquê. Basicamente terminamos nossa análise do poder em Foucault. Portanto,
o que há ainda de obscuro? Era necessário que essa nossa recapitulação fosse clara, do que não
estou muito seguro. Cabe a vocês dizerem se devo voltar ou se posso avançar. É essencial
porque não retornaremos a esse assunto depois. É agora ou nunca.
PERGUNTA: [inaudível].
DELEUZE: de imanência?
PERGUNTA: [inaudível].
DELEUZE: [eu falo de imanência] no sentido geral da palavra, o sentido que pessoa usando o
termo “causa imanente” deve estar de acordo sobre esse ponto, não há discussão. É causa
imanente quando não tem necessidade de sair de si para produzir seu efeito e este permanece
nela. Vejam, distinguimos basicamente, há uma lista infinita de causas que faz parte das belas
coisas da filosofia. Mas geralmente mantemos grandes tipos de causa: causa eficiente,
emanativa e imanente. Porque a filosofia é como as matemáticas, você não conseguirá fazê-la
se não aprender e se não aprendeu... quero dizer: não podemos dizer qualquer coisa, então, é
tão preciso quanto definições matemáticas, e é necessário distinguir em filosofia o que é
suscetível de discussão e o que é indiscutível. Esse é o domínio, não se discute, é assim.
A causa eficiente se define como uma causa que precisa sair de si para produzir seu
efeito, e seu efeito lhe é exterior, ou seja, é realmente distinto. Por exemplo, Deus é a causa do
mundo. Deus sai de si para produzir o mundo e este é exterior a Deus. Ele é a causa eficiente
do mundo. A causa emanativa é uma causa cujo efeito é exterior, mas não necessita sair de si
para produzi-la. Essa causa permanece em si para produzir seu efeito, mas o efeito é exterior à
sua causa. Diremos que o efeito emana da causa. A causa imanente, vejam, é uma escala, uma
escala de progressão. Ela permanece em si para produzir e o efeito que ela produz lhe é interior,
permanece na causa. Entre esses três tipos de causa, vocês têm todas as transições possíveis,
tornando possível multiplicar os tipos de causas infinitamente. Por exemplo, Deus e o mundo,
a seu gosto [do aluno]; Deus é uma causa eficiente? Vejamos, por exemplo, um caso de uma
causa emanativa: direi que aliás, não é seguro, mas à primeira vista, direi: também Deus não é
14
o mundo, que, do ponto de vista do cristianismo, é uma causa eficiente ou transitiva, mas Deus
cria o mundo. Um exemplo de causa emanativa: a aranha e a seda, mas como dizia o grande
filósofo Hume, quem me prova que Deus não é uma aranha?10 É uma questão importante,
porque se Deus fosse uma aranha, o mundo não seria objeto de uma causa eficiente, mas o
objeto de uma causa emanativa. A seda emana da aranha. De fato, a aranha permanece em si
para produzir – permanece em si mesma, não é isso? Permanece nela mesma para produzir a
seda, mas a seda permanece na aranha, ela forma a teia. A aranha é causa emanativa da teia.
Vejam, a causa imanente apenas permanece em si para produzir, mas o efeito permanece
nela. Espinosa é o maior filósofo que desenvolveu a ideia de que entre Deus e o mundo haveria
uma relação de imanência, isto é, Deus permanece em si para produzir o mundo e este
permanece em Deus.11 Plotino, filósofo da emanação, diria, simplificando muito, que Deus é
causa emanativa, isto é, que o mundo emana de Deus, significando que o mundo não permanece
na causa. O cristianismo diz, ao contrário, que Deus é causa eficiente, ou seja, Deus não
permanece em si para produzir o mundo e este não permanece em Deus. Esse será chamado, do
ponto de vista criacionista e, geralmente, de causa imanente. E a causa imanente, cada vez que
usarem essa palavra, verifiquem se ela está em conformidade com essa definição, pois, caso
contrário, a palavra “imanente” não se adequará. No sentido de Foucault, mas ao mesmo tempo
retiro o que disse porque ele não usa palavra imanência,12 poder e saber estão um no outro [sont
l’un dans l’autre]. Traduzir essa afirmação em termos de imanência não me parece um exagero.
Poder e saber estão um no outro, e dei as razões pelas quais pensei que pudéssemos dizer que
as relações de forças ou de poder eram causa imanente das formas de saber. E, de fato, significa
que as relações de força, isto é, a causa... quer dizer um pouco mais do que minha definição
geral, obedece ao caráter de definição geral, e acrescento que, nesse caso específico, deve-se
compreender a causa imanente como causa cujo efeito a atualiza, ou seja, a integra e a diferencia
10
Cf. HUME, D. Dialogues Concerning Natural Religion, VII.
11
“Segundo Espinosa, Deus não é causa de si em um outro sentido de que é causa de todas as coisas. Pelo contrário,
é causa de todas as coisas no mesmo sentido em que é causa de si. [...] Descartes reconhece que, se a essência de
Deus é causa de sua existência, é no sentido de causa formal, e não de causa eficiente”. DELEUZE, G. Espinosa
e o problema da expressão. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2017, p. 133.
12
Na verdade, Foucault usa imanência precisamente no sentido empregado por Deleuze. Por exemplo: “Há,
portanto, ao mesmo tempo, pluralidade das formas de governo e imanência das práticas de governo em relação ao
Estado, multiplicidade e imanência dessas atividades, que se opõem radicalmente à singularidade transcendente
do príncipe de Maquiavel”. Segurança, território, população. Op. cit., p. 124. Trad. mod. E também: “Toda relação
de força [sic] implica, a todo momento, uma relação de poder [...], e cada relação de poder remete como que a seu
efeito, mas também à sua condição de possibilidade, a um campo político da qual ela faz parte. Dizer ‘tudo é
político’ é dizer esta onipresença das relações de força e sua imanência a um campo político [... é] desvelar esse
entrelaçamento indefinido”. “As relações de poder passam pelo interior dos corpos” [1977]. In: Dits et écrits v. II,
p. 233. Ambos os textos já estavam publicados em Microfisica del potere (op. cit.) quando Deleuze deu este curso
em 1986.
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ao mesmo tempo. Assim, eu diria: é preciso ter em conta, nesse momento, a qualidade e o
caráter geral que acaba de determinar a causa imanente e, além disso, acrescentar-lhe um caráter
mais original, que é essa ideia de uma causa em vias de atualização no seu efeito. Sua questão
foi respondida?
PERGUNTA: a pergunta que coloquei ainda continua, é a mesma pergunta, mas não estou de
acordo quando você diz que o poder inclui o saber. [Você diz que A implica e explica B. Não
se pode fazer isso se não há um tipo de dialética gramsciana na qual o saber seria autonomia e
a causa da estrutura, pois] ou há imanência ou há uma dialética com a autonomia do saber, ou
seja, Gramsci.
DELEUZE: perdoe-me, não o compreendo, você está recomeçando? Em que você vê dificuldade?
Você diz que não está de acordo, com o que não concorda?
PERGUNTA: Gramsci. Gramsci com a autonomia relativa da superestrutura, a qual, em analogia
com Foucault, seria o saber.
DELEUZE: se digo que poder e saber estão ambos em pressuposição. Sim, se eu disser isso?
PERGUNTA: não, não é isso. Se você diz que o poder implica o saber, diz que o poder implica e
explica o saber. Se assim o faz, é justamente isso que não compreendo. [É como propor uma
dupla causalidade, uma autonomia relativa do saber].
DELEUZE: escuta! Você toma uma palavra que usei, altera-a por conta própria, você é maduro
o suficiente, é apenas verbal. Eu disse “implica” por comodidade, não a tomo no mesmo sentido
que você. Não tem nenhuma importância.
PERGUNTA: não se trata de disputar uma palavra. É para compreender se há uma relação causal
do tipo “o poder explica o saber” ou se há dupla causalidade, como no caso de Gramsci, [onde
haveria uma autonomia]. Eu fazia a pergunta para chegar a este ponto.
DELEUZE: de acordo, mas ambos... para mim, ao mesmo tempo, há autonomia dos dois eixos,
saber-poder, pela simples razão de que são dois eixos e, além disso, diferem em natureza. Ao
mesmo tempo, não posso fazer nada, as coisas são complicadas, depende de qual ponto de vista
vemos... Se você me pergunta: há diferença de natureza? Digo-lhe que sim, há diferença de
natureza entre poder e saber. Por conseguinte, há autonomia. Se alguém me pergunta: em qual
relação eles estão um com o outro? Afirmo que estão em uma relação de causa e efeito, só que
há toda uma esfera de autonomia do efeito, havendo, no entanto, imanência. Então, o que isso
significa? Há heterogeneidade entre os dois eixos, há diferença de natureza, portanto,
autonomia de cada eixo. Mas, ao mesmo tempo, o eixo do poder permaneceria virtual se não se
encarnasse, se não se atualizasse nas formas do saber. As formas do saber são efeito que atualiza
a causa – o que não impede que esses efeitos tenham uma autonomia, uma vez que integram e
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diferenciam sua própria causa. Logo, é tudo ao mesmo tempo. É complicado, tudo depende, há
um nível em que há autonomia estrita e outro em que há causalidade. Destarte, acredito que
nenhum ponto de vista suprima o outro.
Há uma frase que me pareceu bastante típica em A vontade de saber: “entre técnicas de
saber e estratégias de poder, nenhuma exterioridade.”13 Nenhuma exterioridade significa que
há imanência, “mesmo se elas tiveram seu papel específico”. Essa última afirmação é a
diferença de natureza; “... e que elas se articulem um sobre o outro”, significa pressuposição
recíproca; “a partir de sua diferença.” Há em tudo... há imanência, contudo, autonomia; a função
específica de cada um, a exterioridade... não, a articulação – cuidado – a partir de sua diferença
de natureza. Creio que, para responder sua questão, que agora compreendo, partiremos do que
poderíamos chamar de focos de poder-saber.
PERGUNTA: [Parece-me contraditório haver dupla relação e imanência. Uma dupla relação é
sempre dialética. Ou não?]
DELEUZE: É contraditório para você? Bom, você tem todo o direito de pensar que não funciona,
eu acho que funciona. Então, se você pensa desse modo, há duas coisas: sou eu quem não
procedo bem no que afirmo sobre o Foucault ou é Foucault quem não procede. Eu preferiria
que você pensasse... Acredito que você tenha o direito, mas, nesse ponto, poderíamos conversar
longamente e não ficaríamos convencidos. Não é claro para mim onde você vê contradição e,
então, mesmo que haja uma pequena contradição, seria mais para saber se tudo o que dissemos
leva em conta mistos concretos. Se em seguida há contradição, as contradições nunca são coisa
grave. Eu não vejo nenhuma. Se você vê uma contradição, é porque, em sua cabeça, ainda que
não esteja claro, você gostaria de que as relações poder-saber fossem colocadas de outro modo,
porque tem a ideia de uma outra posição do problema. Dito isto, é óbvio que Foucault não
esgota todas as maneiras de colocar as relações poder-saber. Você tem uma outra maneira de
colocar o problema, mas que, nesse momento, esquiva-se da nossa. Sinceramente, não vejo
nenhuma contradição.
Se há para você uma contradição, também se aplicaria a Espinosa ou contra todo
pensamento da imanência, porque a imanência nunca pretendeu que o efeito não tivesse
especificidade. Para Espinosa, por exemplo, o mundo permanece em Deus. Deus o produziu,
mas é uma produção de imanência, logo o mundo permanece em Deus que o produz. Isso não
impede que entre o mundo e Deus haja uma diferença de natureza, só que não é, diz Espinosa,
uma distinção real. O mundo não é distinto, não se confunde com Deus, mas não é realmente
13
FOUCAULT, M. A vontade de saber, p. 93-94.
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distinto de Deus. Espinosa dirá que, em seus próprios termos, há uma distinção modal entre o
mundo e Deus, não há distinção real. Então, não sei, você leu Espinosa? Um pouco? Você vê
contradições em Espinosa?
PERGUNTA: não, nada.
DELEUZE: e então?
INTERLOCUTOR: em Espinosa, Deus não implica o mundo, ele explica o mundo.
DELEUZE: não, não é o mesmo! O que você quer dizer? É o mundo que implica e explica Deus.
Mais uma vez, retomo meu termo porque não sou o inventor dele: Deus complica o mundo e o
mundo implica e explica Deus.
PERGUNTA: você responde a partir de Espinosa, não é a questão.
DELEUZE [rindo]: você me atira de repente um argumento covarde.
PERGUNTA: concordo com teu livro sobre Espinosa. É a relação entre a explicação e a
implicação.
DELEUZE: é muito estranho o que você me diz aqui. Complicar [compliquer], por definição, é
manter-se unido. Só Deus pode complicar o mundo, não?
PERGUNTA: sim.
DELEUZE: Deus complicans, essa foi uma fórmula de alguns autores da Idade Média; é bela.
Deus complica tudo! Mas cada um de nós, ou o mundo, implica e explica Deus; ou diremos que
Deus se explica através do mundo. Então Deus não explica, ele se explica. Bom, tudo bem? Ele
se explica, mas não explica, Deus. Ele se explica através do mundo e o que explica Deus é o
mundo. Digo-lhe isso porque, de fato, para aqueles que não me entendem, você tem, sobretudo
em torno do Renascimento, mas desde o neoplatonismo, uma trindade de noções extremamente
interessantes: implicare, explicare e cumplicare. Desde a Idade Média até ao Renascimento, há
toda uma tradição que desenvolve uma teoria da complicação, da explicação e implicação que
se tornou muito importante para uma lógica da Idade Média e do Renascimento, é muito bonito.
Bom, há outros pontos?
PERGUNTA [parcialmente audível]: por que há primazia do indizível sobre o enunciado?
DELEUZE: de fato, aí está. Necessariamente, quando falo de Foucault, sou conduzido a avançar
um pouco mais. Não posso lhes indicar um texto em que Foucault diga que há primazia. Por
isso, posso perguntar se tudo acontece como se houvesse primazia em Foucault do enunciado
sobre o visível? Várias coisas. A principal é esta: há um livro, A arqueologia do saber, no qual
Foucault não fala, como em seus livros anteriores, do visível e do enunciável. Pelo contrário,
ele faz a mais pura e a mais completa teoria do enunciado nessa obra, e o visível desapareceu,
ao invés de uma dualidade – enunciar-ver, enunciável-visibilidade –, há uma dualidade meio
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discursiva, formação discursiva (à qual responde ao enunciado) e meio ou formação não
discursiva. Portanto, posso dizer que n’Arqueologia do saber, há colocação entre parênteses da
visibilidade como forma positiva e aquilo que não é enunciado é simplesmente designado de
maneira negativa: âmbito não discursivo. Eu me questiono, como explicar que A arqueologia
do saber ignora o visível e se apega a uma teoria do enunciado, se é verdade que o saber tem
dois polos? Avanço um pouco mais. Em minha opinião, acontece porque, em todo momento, o
enunciado teve a primazia. Se o enunciado tem a primazia, podemos conceber que, em um livro
que trata do enunciado, o outro polo não seja mais designado senão negativamente, uma vez
que não é o polo essencial do saber. Obriga-me a dizer que, pelo menos depois de ter formulado
essa hipótese que considera um problema real em Foucault, se for verdade que o enunciado tem
primazia, porque haveria um primado? Por que o enunciado na linguagem teria primazia sobre
o visível na luz?
Sou forçado a avançar um pouco mais. Sim, haveria uma maneira de responder: afinal,
o visível é uma dependência do enunciado, vê-se apenas o que se diz. Essa seria uma primeira
hipótese a ser verificada. Isto é, o visível é um simples produto da linguagem. Bom, talvez
alguns de vocês digam que essa hipótese é suficiente, é boa, adequada. Para mim, ela não é
adequada porque nesse ponto teríamos que suprimir os textos, o número infinito de textos de
Foucault, nos quais é sempre colocado uma irredutibilidade do visível ao enunciável. Essas são
duas formas irredutíveis e não vejo um meio... Foucault nunca retornou a esses textos. Alguns,
como o texto sobre Magritte, Isto não é um cachimbo, são textos tardios. É impossível fazer o
visível depender do enunciável. Por outro lado, quando digo que o enunciado tem a primazia
sobre o visível, não significa que o visível se reduza. Ter a primazia sobre não significa se
deixar reduzir. Na medida em que, por outro lado, a função da linguagem é a produção de
enunciados, trata-se de produzir enunciados, posso dizer: o enunciável é a forma de
espontaneidade da linguagem. Daí a importância da diferença feita por Foucault – foi o objeto
de nossa análise no início –, o enunciado difere em natureza, não é a mesma coisa que uma
frase ou uma proposição, pois, ao diferenciar o enunciado da frase e da preposição, Foucault
quer chegar à forma na qual a linguagem exerce uma espontaneidade. Então, se me permitem
isso, mas é pedir muito, estou consciente de que não há muitas dificuldades. Se o enunciado
tem a primazia, é porque ele é forma de espontaneidade, enquanto o visível é apenas forma de
receptividade, e compete à forma de espontaneidade determinar a forma de receptividade.
Forma de espontaneidade, em que consiste a espontaneidade? É o ato de determinação, ao passo
que a receptividade é a forma do determinável. Portanto, dizer que o enunciado tem a primazia
é dizer que o enunciado é determinante e que o visível é apenas o determinável. Isso esclarece?
19
PERGUNTA: não compreendo por que o poder de afetar tem a primazia sobre o poder de ser
afetado?
DELEUZE: essa é uma nova dificuldade, mas eu diria que no nível das relações de forças, não
pode haver primazia; a primazia é de uma forma sobre a outra, as relações de forças não passam
pelas formas. Logo, não há primazia, ou, ao menos, veremos que existe uma primazia, mas é,
nas relações de forças, para um terceiro elemento que não é nem o poder de afetar e nem o de
ser afetado, será outra coisa. Está claro?
Contudo, penso que esta pode ser a impressão de muitos de vocês, de que o que estamos
fazendo desde o início do ano pareça, às vezes, extremamente abstrato. Isso me incomoda
muito, obviamente, porque é desagradável e não deve ser assim. Gostaria de acrescentar uma
receita para aqueles que pensam assim. Não posso discutir uma impressão, para tornar tudo isso
concreto é necessário criar marcos. O primeiro marco, o primeiro ponto de referência quanto
ao saber é a necessidade de as coisas lhes dizerem algo. Elas têm que significar algo para vocês.
Se não dizem nada... Quando afirmo isso, quero dizer: nem tudo acontece por meio da
compreensão, a compreensão é abstrata. Mas se elas lhes dizem algo, estamos no concreto. O
que deveria lhes dizer algo no nível da análise do saber é: em qual situação percebemos,
compreendemos que ver e falar não são a mesma coisa? Aqui está o concreto. É um ponto
concreto. Falar não se encadeia com ver, mas entre ver e falar há batalha, há diferença de
natureza, a ponto de, novamente, ver o que não falo e falo do que não vejo. Esse é um ponto
muito concreto, temos a impressão de que considera o estatuto do audiovisual. E dizia-lhes:
todo o esforço do cinema contemporâneo, sob um de seus aspectos, é escavar essas diferenças,
essas divergências entre ver e falar.
Então, me preocupo com isso. Se houvesse uma fonte concreta de todas as análises que
propus aqui sobre o saber, isto é, sobre o entrelaçamento ver-falar, essa seria uma fonte
concreta. O que acontece entre ver e falar? Pelo que fizemos sobre o poder, então... se isso não
lhes diz nada, é porque ou eu falhei ou vocês não responderam ao tema. Pode acontecer que, a
rigor, um tema possa não dizer nada a você. Diante disso sou impotente, posso fazer algo apenas
na medida em que haja cumplicidade, quando o tema significa algo para vocês.
No nível do poder, eu diria a mesma coisa. O que é muito concreto, a fonte concreta de
todas as análises do poder seria essa ideia de que, em todas as nossas experiências, mesmo
quando não as percebemos, deparamo-nos com o poder, ou seja, o poder é sempre um conjunto
de micropoderes e são estes que Foucault afirma analisar.
Mas a ideia de que nos confrontamos com o poder constantemente... é muito simples.
Sim, a ideia de que não posso atravessar a rua ou de que não posso estacionar meu carro sem
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que haja um possível policial com sua multa. Basta-me algo tão simples para que tudo se torne
concreto. Continuamos a nos confrontar com o poder. Então, se nossa vida é balizada por
micropoderes que exercemos e se exercem sobre nós, poder de afetar e poder de ser afetado,
em que consistem essas relações de poder?
E por fim, um terceiro ponto concreto: é verdade que essas relações de poder são como
um tecido que dá conta, em nós, das relações entre ver, quando vemos, e falar, quando falamos?
Pois então, tenho a impressão de que esses temas, os três temas concretos, são muito simples...
Não é da filosofia, são como indicadores de nossa experiência vivida. Se não houver
cumplicidade com a essa experiência vivida, vocês até poderão compreender tudo o que eu
disse, mas permanecerá abstrato. Esses três pontos de cumplicidade vividos, se me sinto em
afinidade com Foucault é porque participo deles, não da mesma maneira que ele, certamente,
mas de uma outra maneira. Se não tivesse participado desses três pontos em nome de um tipo
de experiência vivida, obviamente estaria fazendo algo diferente do que oferecer um curso sobre
Foucault.
Portanto, tentarei repetir: na sua experiência vivida, é preciso que vocês tenham um
certo problema, mesmo espontâneo, involuntário; por exemplo, o que acontece entre ver e falar?
Concebo muito bem: vocês podem ser extremamente inteligentes, criativos, tudo o que
quiserem, e ainda assim seus problemas não passem por este. Seguramente, Foucault não foi o
único, mesmo na arte, porque todo o cinema contemporâneo joga com essa lacuna entre ver e
falar, esse “entre”, o que há entre ver e falar?
Por exemplo, se você tomar um outro filósofo considerável: Merleau-Ponty. Nele, vocês
nunca encontrarão um problema desse tipo; para ele, falar se entrelaça ao ver. É uma tomada
de consciência bastante específica de algumas situações de visão e de fala. Se vocês me
perguntam: por que Foucault valoriza essas situações de visão e de fala, na qual há um hiato
entre ver e falar? Digo-lhes: porque ele é o Foucault, não sei o porquê, era o que ele precisava
e queria dizer. Logo, a primeira cumplicidade deve ser essa.
A segunda cumplicidade: são os micropoderes que formam um tecido com o qual
constantemente nos deparamos em nossa vida. É o que Foucault chama de experiência do
homem infame. O homem infame é aquele que, como uma mosca ou uma borboleta, confronta-
se sem cessar; é bem próximo da experiência kafkiana dos escritórios em O castelo, sempre um
escritório ao lado do outro. Todo um sistema de micropoderes.
Bem, se tento traduzi-lo em minha experiência, não é uma experiência pessoal.
Experiência vivida não significa experiência pessoal, mas, sim, o que observamos na vida.
Estou impressionado... aqui eu me distancio de Foucault. Na experiência da vida mais cotidiana,
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vocês saltam de um micropoder ao outro. Eu lhes dizia que em um agregado familiar, há
distribuição de micropoderes. Quando um homem [bonhomme] ou uma mulher chega em casa
à noite: “que rosto é este”, diz um ao outro. Um deles indaga: “que rosto?”. É engraçado, o
rosto é convocação à fala ou a se mostrar, explique-se! Eu lhes disse no ano passado, porque
assim como vivi, é necessário que vocês vivam também, ou é abstrato o que eu disse? O que
mais me impressiona na vida, não são pessoas que não conseguem se exprimir, mas como são
forçadas a se exprimir quando não têm nada a dizer. Isso é o poder. Qual é o poder da TV, dos
jornais? Ele telefona para um infeliz [un pauvre type] e lhe diz: “se expresse, diga um pouco
sua opinião”. É algo assustador, somos convidados nas sociedades disciplinares, de manhã até
à noite, a dar nossa opinião, mas sobre coisas... ou não frequentemente em todo caso, não sob
a forma dessa questão; bem, é um micropoder. Quando lhes digo: o poder faz ver e faz falar,
estou lhe forçando a falar nesse momento. Não é apenas a TV. De fato, nas famílias, somos
forçados, e não digo que seja algo ruim. Como fazer de outro modo? Calar-se não é bom, acaba
sendo pesado.
É um beco sem saída, mas é a desordem [bouillie] da experiência vivida. Se chego em
casa cansado, reivindico meu direito de não falar. Não falar é delicioso. Mas não ter opinião é
fantástico. Ah, é uma alegria! Então, o que são pessoas de poder? São aqueles que não sabem
o quanto é uma alegria não ter opinião. “Não ter opinião” não significa ser como aqueles que
nas pesquisas dizem: “não tenho opinião”. Esse tem opinião. É outra coisa. Também não é para
guardar uma interioridade. Não ter opinião é espairecer, desanuviar. E cultivar o vazio é
precisamente – chegamos ao que ainda tenho para dizer – uma manifestação de resistência.
Quando não ter uma opinião é simplesmente não ter uma opinião, é lamentável, são
interrogatórios. Mas quando não ter opinião consiste em “neste ponto estou vazio, porque isso
não me concerne ou não me interessa”, infelizmente, pode também ser ruim, pode ser
completamente entregar-se ao poder, tudo depende, por isso apelo às experiências.
Portanto, se há alguém dentre vocês que não tem ou não se comunica com esse tipo de
experiências vividas, que me parecem ser a base da filosofia de Foucault, de fato, asseguro-lhes
que este curso não servirá muito. Acontece, mudamos de assunto todos os anos. Pode ser que,
em um ano, eu tenha algo a lhes dizer e, no outro, não lhes diga nada. Entretanto, estou tentando
explicar que há duas operações sempre, duas operações simultâneas quando você tem a
paciência de ouvir alguém. É preciso compreender de acordo com os conceitos, além de ter uma
esfera de experiência vivida que emoldure aquilo de que tratam os conceitos.
PERGUNTA: [inaudível].
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DELEUZE: eu não sei. Não há relação específica, mas Foucault faz parte daqueles inúmeros que
têm admiração. Obviamente, Foucault foi levado a cruzar Artaud em muitos níveis, porque ele
necessariamente o encontrou em História da loucura e em todo o período no qual tentou se
perguntar o que significava a loucura. Sim, sim, absolutamente, há uma relação. O que interessa
a Foucault? Quem são os grandes autores do fim do século XIX e... quem ele admirou? Há todo
um grupo: Raymond Roussel, Brisset, os loucos da linguagem: Artaud, Mallarmé, estes são os
grandes autores de Foucault. Além de Heidegger, veremos o porquê. Sim, Foucault conhecia
Artaud admiravelmente, mas penso que este não influenciou Foucault. Mas havia um amor,
uma admiração por Artaud, parece-me óbvio.
PERGUNTA: [inaudível].
DELEUZE: sim, mas desse modo você me traz de volta a noções muito complicadas, como a que
Artaud chamará de vazio, enquanto eu queria dizer precisamente uma coisa muito simples da
experiência vivida, sem justificar as palavras. Ou seja, eu só queria dizer: bem, se quiser
compreender do que se trata por meio da noção, é sempre necessário lhe acrescentar
cumplicidades vividas. Se você não tem as cumplicidades vividas, não é sua culpa, sua
experiência está estruturada de outra maneira, e nesse momento tudo o que eu lhe disser
parecerá extraordinariamente abstrato. Acredite. Sendo assim, você sempre terá que se soltar
quando escuta alguém. É complicado, requer uma dupla atenção com os conceitos, é preciso se
referir perpetuamente a um vivido qualquer, senão não funciona. As noções devem ser sempre
muito difíceis. O vivido correlativo deve ser de uma simplicidade de criança. Por isso que os
exemplos são sempre coisas muito simples.
COMTESSE: pode-se inverter esse tema, uma vez que é possível que quanto mais um homem de
poder é surdo, cego e mudo, mais é possível fazê-lo falar. É muito interessante.
DELEUZE: Sim, Comtesse, você sabe, é normal. O que você diz é muito verdadeiro, o homem
de poder não se esgota em relações de poder. E mais, as relações de poder não ocorrem entre
homens: quando há homem, há forma. Ou seja, o homem de poder é forçosamente levado a
falar de si mesmo, a se mostrar ou a se ver; ele é forçosamente conduzido porque participa com
efeito, participa inteiramente do saber. O homem de poder fala e vê na medida em que sabe. De
fato, concretamente, há apenas mistos de poder-saber. O homem político invoca um saber. Ele
não invoca o fato de ter o poder, invoca um saber: [nesse momento] poder e saber se tornam
estritamente inseparáveis no concreto. Por isso e na medida em que o homem político
inevitavelmente participa do saber, como você diz, ele é necessariamente também aquele que
fala e que vê. “Eu lhe vejo”. Veja os cartazes [políticos]. Ele nos olha para um futuro brilhante,
ele vê e não preciso dizer que ele fala. Mas, se eles veem e falam, não é enquanto são termos,
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elementos tomados em relações de poder, mas enquanto também são formas – eles cuidam de
sua forma como se diz –, formas tomadas nas relações de saber.
PERGUNTA: [inaudível].
DELEUZE: Como isso ocorre? Bem, escute-me, assim eu desmorono, você me dá um golpe fatal
[risos], porque pensei que tivesse deixado de explicar por que poder e saber eram estritamente
indissociáveis. Isso acontece porque poder e saber são indissociáveis.
PERGUNTA: [?] um exemplo?
DELEUZE: não apenas no concreto, mas no abstrato, de dois modos diferentes. No concreto,
porque a experiência apresenta apenas mistos de poder-saber. No abstrato, porque, se relações
de poder são causas, são causas imanentes, e seus efeitos – isto é, as formas do saber – são
interiores às próprias relações de poder, não há nenhuma exterioridade. Logo veremos o
contrário, mas tudo bem! Ele [Foucault] diz: não há nenhuma exterioridade porque há apenas
exterioridade, logo não podemos dizer que haja exterioridade. Enfim, veremos isso em seguida
para completar [a sua resposta].
PERGUNTA: [inaudível].
DELEUZE: o quê?
PERGUNTA: o poder do qual falamos nunca é o meu, ele é sempre exterior.
DELEUZE: depende do que você entende por “meu”. Se isso significa “o de uma pessoa que sou
eu”, não, o poder nunca é meu. Se o compreende como “de uma singularidade que está em
mim”, então o poder é seu. Na verdade, ainda não abordamos esse ponto porque será necessário
que seja concreto, a pessoa – ou o indivíduo, já não é a mesma coisa –, mas iremos identificá-
los. A pessoa ou o indivíduo, por um lado, os pontos singulares, as singularidades, por outro,
são duas instâncias completamente diferentes.
[Deleuze escreve no quadro]. Por exemplo, eis um nome. É um homem. Isso é uma forma.
Digamos que seja um indivíduo. Ele diz: “eu”. É uma forma. Suponho que essa forma contenha
singularidades. Estas não existem fora dele, pertencem-lhe. Mas é outro domínio. Quais são
essas singularidades? Por exemplo, você vê alguém e diz para si mesmo: oh, é estranho, este
todo está organizado em torno de sua nuca; aqui você já tem as singularidades da percepção.
Ao mesmo tempo, e você não compreende, vê uma enorme raiva. Com todas as características
de uma raiva, digamos, paranoica. Um cara estanho. Tomo um exemplo de propósito, uma outra
característica, que não é física, mas psíquica. Coloque “outra singularidade”, anote-as, faça um
quadro das singularidades de alguém, é um jogo inocente, desinteressado e inocente. “Nuca”,
“raiva explosiva”, em seguida, após a raiva, ele lhe diz “adeus” e você diz para si mesmo “que
maneira divertida de estender a mão”. Vejam, é estranho. Esse gesto pertence apenas a ele.
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Amamos ou odiamos as pessoas nunca por causa de sua forma, mas por causa das
singularidades que reparamos nelas.
Terceira singularidade: temos uma forma que pode se chamar ao mesmo tempo de...
enquanto indivíduo, temos uma forma corporal, chamo-a de forma orgânica. Temos uma forma
psíquica, física, moral. Enfim, os melhores de nós têm uma forma metafísica. Muitas formas.
Em função dessas formas que digo: meu corpo, minha alma, eu etc. É o domínio das formas.
Mas há outra coisa. As formas são pacotes ou envelopes de singularidades, envolvemos pontos
singulares que existem apenas em nós e que, no entanto, não são nós. Então há singularidade.
Ah, ela vem do meu avô. Ela se plantou aqui em mim. Somos um pacote. Gostaria que
compreendesse: ou isso lhe dirá algo, mas é preciso viver assim e não se forçar. Se você não
vive assim, viverá de um outro modo, isso também é ótimo. Pacotes de singularidades, de
corpos estranhos. Eu me vejo assim: sou um pacote de corpos estranhos. Tenho um ar de um
“eu” educado, mas é absolutamente um envoltório de corpos estranhos, e só isso. Assim,
envolvemos um certo número – não temos um infinito dele – de corpos estranhos.
Pensem, por exemplo, a maneira que Proust descreve o barão de Charlus é uma, quando
ele diz, em uma página inesquecível: “a voz de Charlus envolvia um aninhado de moças”
quando ele, de repente, se colocou a falar estridente. São as singularidades de Charlus. Doze,
vinte, quarenta moças assombram a voz de Charlus. Há animais em nós, não animais como
formas, mas como singularidades em nós. Não é mesma coisa que uma forma, ninguém nunca
é uma vaca dentre os homens, mas há homens que têm singularidades bovinas.
Digo o conjunto de singularidades que abrigo em meu seio, é de uma natureza diferente
das minhas formas, meu corpo, minha alma etc. Aqui encontraríamos o domínio das formas e
o domínio das relações de forças. As relações de forças e as relações de um ponto singular a
outro. Qual relação há entre esta singularidade – a nuca – e aquela – raiva explosiva? Há uma
relação de forças. Isso seria o poder.
A rigor, quem é você? Tudo depende do que chama de “você mesmo”, do que chama
de “eu”. Sim, podemos sempre dizer “eu”, não se deve se indignar, nem evitar, você tem que
falar como todo mundo. Dizemos: “o sol nasce”, mas o sol não nasce, é a terra que gira, e
continuamos a dizer que o sol nasce. Não há nenhuma razão para mudar, nem para dizer menos,
mas isso não tem importância. Algumas pessoas sabem que não há “eu”, mas continuarão a
dizê-lo, porque é precisamente um hábito. Mantemos nossos hábitos. Não que estejamos
habituados a dizer eu, é o eu que é um hábito. Habituado comigo mesmo, logo o eu é habitual.
Bem, mas o que eu sou? Podemos viver assim, mas o que eu sou? Sou um tecido de
singularidades e, depois, minhas formas físicas ou psíquicas são as curvas que unem essas
25
singularidades. Se você viver assim, de antemão a vida se tornará muito mais agradável. Se
viver como uma curva integral, que anda livremente e envolve singularidades de outra natureza,
sim, você pode decidir... enfim, não deve se forçar. O que eu disse significa alguma coisa para
você ou não significa nada e você pensa: ele está delirando. É um bom critério. Se você diz que
estou delirando, não é uma crítica, afinal você pode não ter essa cumplicidade vivida. O
próximo ano posso falar de outra coisa com a qual terá uma cumplicidade vivida. O que estou
dizendo lhe parece algo muito confuso, porque falo apenas dessa estrutura do vivido. Se isso
diz algo pra você, então tudo o que dissemos desde o início é bom, isto é, você não pode mais
considerar que seja abstrato, não é abstrato. Só é preciso ser sensível.
Do ponto de vista dos conceitos, torna-se uma grande questão: dar um estatuto às
singularidades, um estatuto às integrais que passam na proximidade das singularidades. Enfim,
a curva integral terá como produto: eu. E a curva envolve algo diferente do eu. Ela identifica as
singularidades constitutivas. Vejam, nela pode haver uma [singularidade] que venha de um avô,
isto é, pertencem a uma linha genética. Uma outra que vem, por exemplo, de uma relação com
um amigo, essa será uma singularidade adquirida. Ou uma outra que eu criei, mas qual eu? De
qualquer forma, somos constituídos de singularidades. O que chamamos de caráter é a média
das singularidades de alguém. Fazemos sempre uma média das singularidades. Dizemos: sim,
ele tem o hábito de ficar com raiva, essa não é uma singularidade; a singularidade é
circunstância precisa de uma única raiva que, de certo modo, contém todas as outras, essa é
singularidade. Se você fizer uma média e chegar à conclusão “sim, sou irascível”, estará no
domínio das formas, não no domínio das singularidades pontuais. Mas, eu repito, se isso não
lhe diz nada, é excelente. Se lhe diz algo, é bom, viva assim. Se não lhe diz, é bom também,
viva de outro modo.
PERGUNTA: [inaudível].
DELEUZE: sim, eu lhe responderei imediatamente. Porque suponho que sua observação é muito
correta; suponho que o outro aspecto é um pouco óbvio, pois, para todas as pessoas, o poder
consiste em afetar os outros. Mais original é a ideia de Foucault de que o poder de ser afetado
pelos outros faz igualmente parte do poder. Isso aqui corresponde exatamente (para responder
a alguém que falou comigo antes) à ideia de Nietzsche, de que ser dominado não é menos
vontade de potência do que ser dominante. É exatamente... é a transcrição de Foucault da ideia
nietzschiana.
PERGUNTA: [inaudível].
DELEUZE: completamente! Consideremos as duas vertentes, uma vez dito que elas formam uma
espécie de distinção dual apenas aproximadamente, pois o que conta muito mais são as mil
26
maneiras de ser dominado e de ser dominante, ou seja, é a multiplicidade que conta muito mais
que o dualismo.
PERGUNTA: [poder-se ia falar de um eu fechado e de um eu aberto, que remeteriam] ao eu
burguês [e ao eu radical? O eu fechado ou burguês] não leva em consideração certas
singularidades [inaudível].
DELEUZE: sim, eu compreendo. Eu distinguiria, não diria “eu aberto” e “eu fechado”, pois, no
nível aberto, não há mais “eu”. No nível do aberto, há lançamentos e repartições de
singularidades, já não há nada que pareça a um eu. Aqui há algo que não entendo. Quando
fazemos da filosofia nacional, da filosofia como nacionalidade. Há apenas Nietzsche... Oh, sim,
os alemães, é estranha a filosofia deles, eles pensam assim, são as grandes características, senão
todos os outros [?]. Somente Nietzsche sabe falar sobre o pensamento inglês, alemão, francês
sem cair no grotesco. Sem dúvida, ele tinha um método. Uma das coisas que me parece
importante nessas características nacionais dos filósofos é que os franceses sempre se deram
mal. Não, estou errado em dizer tropeçar porque parece pejorativo e não é isso. Eles sempre
evoluíram no “eu”, fazem dele uma categoria filosófica. Sempre nos dizem: isso começa com
Descartes – “eu penso” – e, seguramente, não é um “eu” ordinário, não é um eu comum.
Estranhamente, exprime-se sob a forma “eu penso”. Os alemães não permanecem no “eu
penso”, eles não acham claro, precisam de uma forma pura: o eu. A diferença entre le moi e je
é que o primeiro é, à rigor, constituído, mas o segundo é o puro constituinte. Os alemães se
elevam até ao fundamento, só conseguem respirar no nível do fundamento.
Os ingleses são muito curiosos. Sabe como reconhecer um pensador inglês? E me
pergunto o porquê. No caso dos franceses e dos alemães haveria meios de responder. Mas os
ingleses [?], porque são filósofos e você os reconhece imediatamente por isso. Para estes, o
“eu” [je] não quer dizer estritamente nada e [não] é por acaso que são os mesmos que tomam
como método de filosofia a experiência vivida. Quando digo certa palavra, perguntam qual
experiência vivida ela representa. Esse foi o ato fundador da filosofia inglesa: digo uma palavra:
(disso decorre a ligação com a linguagem desde o início de sua filosofia) qual experiência vivida
posso exibir, mostrar como correspondente a essa palavra? Então dizemos a eles: “eu”: o que
isso quer dizer? Explique-me melhor, mostre-me! Obviamente o que corresponde ao “eu” não
pode ser mostrado. Os ingleses dizem: não nos importamos mais; interrompem a conversa.
Observem, não há discussão.
Para o eu [moi], eles são ainda mais espertos. Não que eles digam que é uma palavra
vazia de sentido, mas dizem: sim, “eu”, podemos dizê-lo, aí está, só que é um hábito, um
27
costume.14 Vocês percebem, enquanto operação? Como são indisponíveis? O que para os
alemães é o fundamento mais sagrado... Os ingleses dizem “sim, o eu [moi] é uma maneira de
falar, é sim, uma coleção de estados que estão associados uns aos outros segundo algumas
regras. Podemos sempre dizer “eu”, mas apenas se não o virmos diferente de um hábito.
É muito curioso tudo isso. É um modo que filosofia francesa nunca digeriu. Nunca,
nunca pôde se fazer. Por isso, o mais divertido, nos colóquios, é o encontro entre um filósofo
francês e um inglês. Os filósofos ingleses são mestres na arte do: “o que você acabou de dizer?
Não me diz nada”, “o que você diz é contrassenso”, ao passo que para um alemão ou francês
não é um argumento dizer “um contrassenso”. Os alemães têm outros argumentos. “Você se
contradiz” é um argumento francês. Os alemães teriam outros argumentos, não saberia dizer
quais. “Você se contradiz” é um grande argumento francês, ao passo que “o que você disse é
um contrassenso” é outra coisa. Há características nacionais dos filósofos.
Ah, sim, então acredito que não existe eu no nível do “aberto”. O aberto implica a
dissolução do eu. Podemos chamar de “eu” aberto o eu que, abrindo-se, abandona suas
singularidades, logo, o que morre. É absolutamente como uma flor, como uma semente, quando
ela libera seus esporos. Quero dizer, nós somos sementes cheias de esporos. Então, nos bons
tempos...
PERGUNTA: eu entendo de outro modo, apreendo-o como [?] aberto, enquanto incide sobre o
mundo.
DELEUZE: se você quiser, mas podemos acrescentar algo a mais para variar um pouco [risos].
Estamos nos divertindo. O que significa “se divertir”? “O eu que se diverte”? Certamente, ele
se diverte de maneiras muito ruins, porque só haveria uma maneira de se divertir que é a
filosofia. Algumas singularidades de Foucault passam pelo que estou falando. Ainda que se
misture com outras singularidades, não importa. Mas, de qualquer modo, avancemos. Isso é
tudo que queria dizer sobre as condições para encontrar um pouco de [?], porque corre-se o
risco de ficar bem depois.
PERGUNTA: [inaudível].
14
Deleuze refere-se a Hume: “[...] falar do sujeito é falar de uma duração, de um costume, de um hábito, de uma
expectativa. A expectativa é hábito, o hábito é expectativa: essas duas determinações, a pressão do passado e o
impulso em direção ao futuro, são os dois aspectos de um mesmo dinamismo fundamental, presente no centro da
filosofia de Hume. E não é necessário forçar os textos para encontrar no hábito-expectativa a maior parte das
qualidades próprias de uma duração, de uma memória bergsoniana. O hábito é a raiz constitutiva do sujeito e, em
sua raiz, o sujeito é a síntese do tempo, a síntese do presente e do passado em vista do futuro. Hume mostra isso
precisamente quando estuda as duas operações da subjetividade, a crença e a invenção”. DELEUZE, G. Empirismo
e subjetividade. Ensaio sobre a natureza humana segundo Hume [1953]. Trad. L. B. Orlandi. São Paulo: ed. 34,
1993, pp. 84-85.
28
DELEUZE: [risos] não sabemos! De repente, talvez já não se torne difícil um ponto importante
que é, creio, a necessidade de distinguir, no nível da terminologia, dois termos que encontramos
frequentemente em Foucault. São os termos: por um lado, o fora [dehors], por outro, o exterior,
a exterioridade. Nesse nível, Foucault nunca fornece definição rigorosa, por isso somos nós,
leitores, que devemos ver como esses termos se repartem. Pois, tenho o sentimento – e será
decisivo em relação a tudo que nos resta fazer –, o sentimento vivo de que esses dois termos
não se equivalem, e Foucault não os emprega em um sentido idêntico. De que se trata-se quando
ele fala do exterior? Acredito que a palavra exterior ou exterioridade, nele, refere-se sempre a
formas. Ao mesmo tempo, há formas de exterioridade e exterioridade das formas, entre as
formas. As formas são exteriores umas às outras e, ao mesmo tempo, cada forma é uma forma
de exterioridade. Por exemplo, em Arqueologia do saber, Foucault explica em qual sentido a
história é forma sistemática de exterioridade. O que quer dizer forma de exterioridade? Para
Foucault, e é um dos pontos originais de seu pensamento, toda forma é de exterioridade, mas
que isso significa? Quer dizer, não há como em Kant, que distingue forma de exterioridade – o
espaço – e forma de interioridade – o tempo; em Foucault, não há forma de interioridade, toda
forma é de exterioridade. Por quê? O que são as formas? Como vimos, é a luz como forma do
visível, a linguagem como forma do enunciado. Em qual sentido são formas de exterioridade?
É porque nenhuma forma contém o que é a forma. Nessa perspectiva, elas não são formas de
interioridade. O papel da forma é que o que ela informa, ao que ela remete se dissemina, sou
forçado a dizer, nela; de fato, é preciso falar, torna-se tão complicado. Se as formas são sempre
de exterioridade, é porque aquilo a que elas se referem existe apenas como disperso,
disseminado, sob essa forma. A forma é de exterioridade porque é fundamentalmente de
dispersão ou de disseminação.
Por exemplo, a linguagem como forma contém frases, preposições e palavras. Mas não
contém os enunciados. Foucault nunca diz que “a linguagem contém os enunciados”, mas diz
que “os enunciados se disseminam”, dispersam-se na linguagem. Em outras palavras, a
linguagem é a forma de interioridade das palavras, frases e proposições, mas não é a forma da
interioridade dos enunciados, é uma forma de exterioridade em relação aos enunciados, pois é
na linguagem ou sob a linguagem que os enunciados se dispersam ou se disseminam. Do mesmo
modo, pode-se dizer que a luz contém as coisas, as qualidades, os estados de coisas, mas ela
não contém as visibilidades. Vimos as diferenças entre coisas e estados de coisas etc., ela não
contém as visibilidades. Estas são, afirma Foucault, uma luz segunda, composta por cintilações,
reflexos etc., e que só existem como dispersadas sob a luz primeira; é a concepção goethiana
29
de estado puro. Dito de outro modo, a luz é uma forma de dispersão, de disseminação e, por
conseguinte, uma forma de exterioridade.
Portanto, para Foucault, toda forma será uma forma sob a qual se dispersa ou se
dissemina o que ela condiciona. Vejam, disso decorre o uso da palavra exterioridade ligada à
forma. Acrescento: as formas não são apenas formas de exterioridade, mas há exterioridade
entre as formas. As formas não são interiores umas às outras, mas a forma do visível é exterior
à forma do enunciável. Falar e ver diferem em natureza, há uma lacuna, um hiato entre os dois,
em suma, as duas formas são exteriores. Pronto. Isso nos permitiria estabelecer o uso da palavra
exterioridade. É necessário dizer que vejo ao exterior, falo ao exterior e entre ver e falar, há
exterioridade. Que toda forma seja de exterioridade, Foucault a resume dizendo: a história,15
sendo fundamentalmente história das formas, é a forma sistemática da exterioridade.16
Uma outra palavra que você encontra em Foucault é o fora [le dehors].17 Essa palavra é
emprestada de Blanchot. Não tem relação com o que Heidegger, segundo Rilke, chamou de o
Aberto, com a maiúsculo. É bom ressaltar que um filósofo francês, na mesma época que
Heidegger, desenvolvia fundamentalmente um tema sobre o aberto: Bergson. Se houvesse uma
comparação possível entre Heidegger e Bergson, acredito que seria no nível da concepção de
aberto nos dois. Em todo caso, Foucault mantém o tema do fora, não aquele do aberto, mas são
dois temas bem próximos. Algo que me preocupa é a diferença entre o fora e o exterior em
Foucault. Por exemplo, ele dirá e nomeará um artigo em homenagem a Blanchot, intitulado O
pensamento do fora,18 e você já sente de imediato o tema “o pensamento do fora”. Não há ainda
necessidade de ler o artigo, no ponto em que estamos, mas nele você pressente imediatamente
que será um texto tentando explicar que o pensamento não se define em nada por interioridade,
mas que este existe apenas em relação com o Fora, F maiúsculo, pensamento do Fora. Bem, no
entanto o que é isso que chamo de o fora? Deve-se considerá-lo como simples sinônimo de
exterioridade? De modo algum, e isso será decisivo para tudo o que veremos a seguir. Em
primeiro lugar, parece-me que, de acordo com todos os usos da palavra “fora” em Foucault, o
fora diz respeito não mais à forma – a exterioridade concerne às formas –, mas às formas. Sob
qual aspecto? As forças vêm do fora. Não somente do fora, mas entram em relação umas com
15
Desse modo, seria contraditório, em Foucault, haver um sujeito da história.
16
Cf. DELEUZE, G. Michel Foucault: as formações históricas, aula de 10 de dezembro de 1985.
17
Cf. ibid., aula de 5 de novembro de 1985.
18
FOUCAULT, M. “La pensée du déhors” [1966]. In: Dits et écrits v. I, p. 546. A partir de Blanchot, Foucault se
refere a uma experiência da dessubjetivação: “Avançar na direção da linguagem, de onde o sujeito está excluído,
elucidar uma incompatibilidade talvez sem recursos entre a aparição da linguagem em seu ser e a consciência de
si em sua identidade, é hoje uma experiência que se anuncia em vários pontos bem diferentes da cultura”. Ibid., p.
548.
30
as outras do fora. O fora é o elemento da força, enquanto que o exterior é a substância da forma.
É o elemento da força. Uma força vem sempre do fora. Uma força sempre afeta uma outra ou
é afetada por ela do fora. As forças não têm outro elemento a não ser o fora, elas têm apenas o
fora e não interioridade da força. Talvez haja uma interiorização da força posteriormente, em
um percurso muito complexo, mas não interioridade da força. No entanto, para designar essa
não interioridade da força, Foucault se servirá da palavra “fora”. De modo que esse fora não se
confunde com a exterioridade das formas.
É aqui onde fica complicado. Porque posso dizer: o fora... posso dizer numa primeira
aproximação: o fora qualifica a relação de forças, a relação de uma força com uma outra força.
Equivale a dizer novamente: uma força afeta outras de fora e é afetada por outras de fora. Não
está errado, veremos, mas é insuficiente. Se já permaneço nesse nível, posso dizer algo: o poder
vem do fora e retorna ao fora. Não confundirei o fora com o mundo exterior, por isso é uma
declaração solene, pois, de aula em aula, a partir de agora, seremos levados a cruzar essa ideia
de que o fora não se reduz, não se confunde com nenhuma exterioridade. Se encontrássemos
uma fórmula, mesmo que apenas para se lembrar, eu diria que o fora é mais distante do que
qualquer mundo exterior. A forma da exterioridade designa a disseminação ou a dispersão em
Foucault, mas o fora expressa o distante puro. O distante puro, a distância mais distante do que
o mundo exterior, será chamado o fora. Se vocês me perguntam: mas que diabos é isso? Para o
momento, não sabemos absolutamente nada. O que Foucault irá fazer? Como ele se utilizará
dessa noção, o fora? Procuro apenas situá-la, quem, situá-lo em uma [?]. O fora é mais distante
do que todo mundo exterior, sendo assim não poderia dizer de um mundo exterior qualquer ou
de uma forma de exterioridade qualquer; não poderia dizer “é o fora”. O fora é além de toda
exterioridade. Mais longe do que a exterioridade, existe o fora. Torna-se misterioso. O fora já
era misterioso em Blanchot. Se não partirmos dele, de toda maneira não poderemos
compreender. No entanto, digo que não basta somente isso para compreender, mas sim que a
exigência do fora é ser mais distante do que todo mundo exterior e do que toda exterioridade.
Pois bem, vimos que a relação de forças, em que as forças vêm sempre do fora e se
afetam umas às outras desde o fora, vimos em que consistia, ela se expressa num diagrama.
Recordem-se que o diagrama é a exposição de uma relação de forças correspondentes a uma
formação estratificada. Se as formas, formas estratificadas são formas de exterioridade, o
diagrama mergulha no fora, a relação de forças. A relação de forças é o fora de uma formação
estratificada, de uma formação histórica. Quer dizer, uma formação histórica não tem nada para
fora dela, tampouco abaixo dela; é preciso ter muita precaução, ela não tem nada abaixo dela,
nada para fora, por quê? Ela é a própria forma de exterioridade; como uma forma de
31
exterioridade teria algo de exterior? Ela nada tem para fora, mas ela tem um fora. O fora da
formação é o conjunto de relações de forças que a regem, que regem essa formação, isto é, que
se encarnam nela. O conjunto das relações de forças se encarnam, atualizam-se em uma
formação histórica. Por exemplo, o diagrama disciplinar que se atualiza nas sociedades
modernas, nas formações modernas, é tal como o diagrama que é o fora da formação; ele não
está para fora da formação, vejam que salvo minha imanência, mas ele mesmo constitui o fora
da formação. Então o diagrama mergulha no fora.
Vamos olhar mais de perto. Talvez nos leve a avançar nessas camadas do fora. Um
diagrama é uma exposição de relações de forças. Por exemplo, o diagrama de nossas formações
modernas, o diagrama disciplinar. Vimos que diagramas haviam tanto quanto quiséssemos, que
não deveríamos nos deixar prender ao texto de Foucault, que fala do diagrama como reservado
às sociedades disciplinares. Há quantos diagramas quiserem. Lembro-lhes que em nossas
análises (eu gostaria que fossem concretas) vimos vários diagramas – até inventamos, por nossa
conta e risco, um diagrama das sociedades primitivas – que são relações de forças tais como
apresentadas nas redes de alianças. As alianças das sociedades primitivas, as redes de aliança
das sociedades primitivas eram um diagrama. Em seguida, eu anunciei que Foucault, em seus
últimos livros, descobriu um diagrama grego. O diagrama grego é, estranhamente, as relações
de forças das quais as formas da cidade grega dependerão, resultarão; ele é, segundo Foucault,
relação agonística, isto é, relações de rivalidade entre agentes livres, um diagrama de poder.
Dele dependem, de certa maneira, as formas da cidade grega. Há um diagrama feudal, um
diagrama de soberania, este foi analisado [por ele]. Há um diagrama de disciplina, como vimos,
que se define assim: impor uma tarefa qualquer a multiplicidades pouco extensas e gerir a vida
de multiplicidades extensas.19 É um diagrama de forças. Daí decorrem nossas sociedades
modernas ditas sociedades disciplinares em oposição às sociedades de soberania.20 Eu diria que
19
Mais precisamente, seria: impor uma tarefa qualquer a multiplicidades pouco numerosas num espaço restrito e
vigiado, agindo diretamente sobre os corpos, seus gestos e movimentos de acordo com critérios externos e
definidos previamente; gerir a vida de multiplicidades numerosas num espaço aberto, agindo indiretamente no
ambiente onde esta vida se desenvolve, deixando o fenômeno vida se desenvolver “livremente”, intervindo
(sempre indiretamente) apenas quando determinada característica do fenômeno em questão (por exemplo, taxa de
natalidade, preço do alimento, taxa de infecção) se encontrar fora de limites estabelecidos observando a própria
naturalidade e “normalidade” do fenômeno em questão. Cf. FOUCAULT, M. Segurança, território, população,
aula de 11 de janeiro de 1978, na qual Foucault distingue três “mecanismos de poder”: o “sistema jurídico-legal”,
o “mecanismo disciplinar” e o “mecanismo” ou “dispositivo de segurança”. Segundo Foucault, o poder sobre a
vida desenvolveu-se no Ocidente a partir de dois polos interligados: o primeiro surgiu aproximadamente no século
XVII centrado no corpo individual, considerado como máquina produtiva, o segundo formou-se um pouco depois,
“em meados do século XVIII”, centrado no corpo-espécie, na população, seus fenômenos intrínsecos e seu
desenvolvimento dentro de um meio.
20
Muito esquematicamente, temos a série lei/disciplina/controle, correspondendo às sociedades de soberania/de
disciplina/de controle ou segurança. Deleuze usa o termo “controle”, Foucault usa “segurança”.
32
as sociedades disciplinares na Europa sucederam às de soberania, a articulação se estabelecendo
em torno de Napoleão. E a passagem das sociedades de soberania e das sociedades de disciplina,
ou seja, a mutação diagramática, a mudança de diagrama ocorre em torno de Napoleão.21
Bem, se compreendem isso, direi que o diagrama, ou seja, a exposição das relações de
forças só pode ser apreendida em uma dupla relação com outra coisa. Por um lado, um diagrama
de forças está em relação com a formação estratificada que dele decorre ou, se preferirem, que
é a causa imanente, isso não é um grande problema. As relações de forças disciplinares se
encarnam nas instituições formais, nas instituições formalizadas, que vimos anteriormente
(prisão, fábrica, escola etc.). Portanto, um diagrama de forças está sempre em relação com a
formação estratificada que dele decorre ou, se quiserem, o mapa, o mapa estratégico está sempre
em relação com os arquivos que dele resultam. Entretanto, ao mesmo tempo, um diagrama está
em relação com o diagrama anterior, em relação ao qual marca uma mutação; isto é, não há
nada abaixo dos extratos, mas, por debaixo dos estratos, um diagrama comunica com o
diagrama anterior. Isso acontece porque, como vimos, todo diagrama é uma repartição de
singularidades que se encarna na formação. Logo, não há primeiro diagrama, tampouco último
diagrama. Todo diagrama é sempre a mutação de um diagrama anterior, ou seja, é um segundo
lance de dados.22 Todo diagrama é por definição um segundo lance de dados ou um terceiro ou
quarto. Não há um primeiro lance de dados. Não há primeiro diagrama. Tanto é assim que todo
diagrama está em relação com aqueles que dele resultam, mas em relação também com o
diagrama anterior que opera a mutação, ou em relação ao qual ele opera uma nova repartição
de pontos singulares. As relações de forças correspondentes às sociedades de soberania não são
as mesmas que as relações de forças correspondentes às sociedades disciplinares. É necessário
assimilar os diagramas com dois lances de dados que oferecem soluções, combinações
diferentes.
Agora talvez compreendam melhor: todo diagrama vem do fora, isto é, um diagrama
não decorre do anterior, mas está sempre em relação com o anterior, como em estado de... Como
lhes dizia: não é um encadeamento dos diagramas, eles são separados um dos outros pelas
formações que cada um determina. Não há encadeamento dos diagramas, mas há perpetuamente
o segundo... o terceiro diagrama se vincula com o segundo pelo próprio fato de que ele opera
21
Notemos certa dificuldade em datar o “nascimento” da sociedade de “disciplina”. Para Foucault, como
indicamos, elas nasceriam no século XVII. Sua noção de “corpo-máquina” correspondendo bem ao grande
mecanicismo desse século. Fixar em Napoleão o “nascimento” aproximado da disciplina parece inexato.
Acreditamos que Foucault o associa principalmente ao desenvolvimento dos meios de produção e à necessidade
de governar o proletariado nascente, inserindo-o nos meios produtivo e urbano em expansão.
22
Cf. DELEUZE, G. As formações históricas, aula de 17 de dezembro de 1985.
33
uma nova repartição das singularidades. O quarto se vincula com o terceiro. É uma série de
encadeamentos em que os dados são como que relançados, um novo lance de dados. São
encadeamentos parciais. O fora é o elemento das emissões dos lances de dados, estes vêm do
fora. Portanto, basta dizer-lhes, como o fiz no início, as três proposições fundamentais sobre o
fora para compreender essa noção tão estranha. Primeira proposição: o fora é algo diferente de
todo mundo exterior e de toda forma de exterioridade. O fora está mais longe, é o distante em
estado puro, isto é, um distante que jamais pode ser aproximado, não é um distante relativo,
mas absoluto. Então, o fora é mais distante do que todo mundo exterior. Segunda proposição:
o fora é o elemento das forças e das relações. A força vem do fora, as forças se afetam do fora
e consequentemente é o elemento do diagrama; o diagrama é o fora das formações históricas.
Ele não está fora da formação histórica, ele é o fora da formação histórica que lhe corresponde
ou que dele deriva. Terceira proposição: o próprio diagrama vem do fora, pois o diagrama é
múltiplo. Cada diagrama corresponde a uma impressão, cada diagrama é uma reimpressão, visto
que não há primeiro diagrama e os diagramas não cessam de ser produzidos no fora.
No momento essa história é muito abstrata, mas, recordem-se, voltemos a esse exemplo
sempre: emissão de singularidades, curva integral que passa na proximidade das singularidades,
dos pontos singulares. Vocês se lembram de nossa famosa questão sobre AZERT como exemplo
de enunciado? O enunciado azert, isto é, o enunciado da séria das letras, singularidades, na
ordem em que elas estão dispostas numa máquina de escrever francesa. Foucault dizia: AZERT
não é um enunciado, mas é um enunciado quando enuncio a ordem das letras nessa máquina, e
vimos que equivaleria exatamente a dizer: a emissão de singularidades não é o enunciado, mas,
por outro lado, a curva que passa em sua proximidade é um enunciado. Por conseguinte,
Foucault dizia que o enunciado está sempre em relação com outra coisa ou com um fora. O fora
do enunciado são singularidades pelas quais o enunciado passa. Assim, todos os diagramas são
produzidos pelo fora. O fora é mistura dos diagramas que faz com que, um diagrama sendo
dado, haverá sempre um outro diagrama nascendo, em uma espécie de mutacionismo que é
evidente em Foucault. O diagrama é agitado de mutações, estas vêm do fora. De modo que,
vejam, não posso mais manter – o objeto de minha terceira observação – a identidade do nível
fora / relação de forças.
Minhas três observações: primeira, há identidade de nível entre exterioridade e forma;
segunda, há identidade de nível entre o fora e a relação de forças ou o diagrama; terceira,
devemos acrescentar que, em alguns aspectos, não há identidade de nível, pois os diagramas
são tirados do fora. O fora é ainda mais distante do que o diagrama. Os diagramas são resultantes
do fora. O que é isso? Lembrem-se, não é uma forma, as formas são de exterioridade, o fora
34
não é uma forma, é dele que as singularidades emanam. Devemos dizer, portanto, que as
singularidades ultrapassam até mesmo as relações de forças e isso nos manterá muito distantes,
e complica as coisas. Até agora identificamos singularidades e pontos, relações de forças: não
podemos mais dizer assim. Diremos então – e será ainda muito mais bonito: as singularidades
são tomadas nas relações de forças no nível dos diagramas. No entanto, enquanto puras
emissões elas vêm do fora. Vocês dirão: não avançamos em nada. Mas, de tanto repetir essa
palavra, talvez possamos tirar algo dela. Aceitemos. É necessário ir bem devagar.
As singularidades vêm do fora. Aqui, há uma espécie de romantismo do fora em
Foucault que é muito importante, essencial. Não se surpreende que, se ver e falar encontram
seu estatuto no nível das formas de exterioridade, pensar não encontra seu estatuto no nível das
formas de exterioridade, mas no nível e na relação com o fora. Pensar é a relação com o fora.
Bem, mas o que isso significa? Antes de saber, procedo sempre com o mesmo método, temos
todo o interesse em tirar uma consequência. Se tudo isso quer dizer algo que tem uma
consequência severa, é porque as singularidades excedem as relações de forças, as
singularidades entram nas relações de forças, sim, mas apenas na medida em que são tomadas
em um diagrama. Enquanto as singularidades não vêm de fora, elas não são ainda tomadas em
uma relação de forças. Vejam, haveria três estágios: primeiro, emissão de singularidades [?];
segundo, essas singularidades são tomadas nas relações de forças; terceiro, elas são encarnadas,
atualizadas nas formas, nas formas de exterioridade. Sim, é muito claro. Não acham? Querem
que eu repita? Vocês se arrependerão desse breve momento de clareza [risos].
Qual é a consequência essencial? No diagrama, haverá singularidades estranhas,
singularidades tomadas nas relações de forças, sim, serão: poder de afetar e poder de ser afetado.
Poder de afetar e poder de ser afetado estão presos nas relações de forças. Mas haverá algumas
singularidades um pouco flutuantes, que testemunham um potencial superior ao diagrama. Ao
passo que o diagrama vem do fora, ele capta singularidades que não consegue captar nas suas
relações de forças. De modo que, de fato, as forças têm não dois aspectos, mas três. Não
podíamos dizê-los antes. Primeiro aspecto: poder de afetar; segundo: poder de ser afetado;
terceiro: poder de resistir. Resistir é o potencial da força, se quiserem, na medida em que não
se deixa esgotar pelo diagrama, ou, é mesma coisa, é o potencial da singularidade na medida
em que não se deixa esgotar por uma relação de forças dada no diagrama. Há resistências.
Há resistências. E é o grande texto de Foucault em A vontade de saber, leio: “as relações
de poder não podem existir senão em função de uma multiplicidade de pontos de resistência”.
Pontos de resistência: há singularidades de poder, seja de poder ser afetado, seja de poder afetar,
mas há também singularidades de resistência que explicam que, de fato, há algo que excede o
35
diagrama. “Elas [as relações de poder] não podem existir senão em função de uma
multiplicidade de pontos de resistência que representam, nas relações de poder, o papel de
adversário, de alvo, de apoio, de saliência que permite a preensão. Esses pontos de resistência
estão presentes em toda a rede de poder. Portanto, não existe, em relação ao poder, um lugar da
grande Recusa, alma de revolta [...] mas sim resistências [singularidades] que são casos
únicos”23, e Foucault oferece uma lista.24 As resistências são o outro termo nas relações de
poder, isto é, são o fora das relações de poder. Estas são o fora das formações estratificadas,
mas há ainda um fora das relações de poder. As resistências são o outro termo nas relações de
poder. Sobretudo, haveria um contrassenso que devem tomar cuidado, que seria dizer: o outro
termo é poder ser afetado, é o outro termo em relação poder afetar. Não é de modo algum. Poder
ser afetado não é uma resistência. Poder ser afetado e poder afetar são dois aspectos de toda
relação de poder, mas há algo mais do que as relações de poder, é a resistência ao poder.
De onde vem essa resistência ao poder? Ela seria ininteligível se não houvesse
singularidades de resistência e essas singularidades só podem ser compreendidas se o diagrama
não fecha o fora, mas ele mesmo é produzido pelo fora. Tanto que pode haver pontos de
resistência irredutíveis ao diagrama, compreendem um pouco? E será aqui que Foucault
sugerirá, em um texto que não faz parte de um livro, algo que veremos mais profundamente, a
saber, a própria resistência, em certo sentido, é primeira em relação ao que ela resiste. É um
tema que me parece muito importante.
Sendo assim, a relação de poder é o que combate uma resistência prévia. A resistência
não é segunda, mas primeira. Essa ideia, embora pareça estranha, explica-se ao menos
abstratamente para nós, caso vocês compreendam os diagramas ou as relações de poder como
não sendo a última a palavra. Os diagramas eram, novamente, repartições de singularidades,
enquanto estas entravam nas relações de forças, mas, nesse sentido, todo diagrama emanava de
um fora. O fora testemunha sua irredutibilidade ao próprio diagrama, inspirando, em cada
diagrama, pontos de resistência irredutíveis. Compreendem? E por que perpetuamente os
diagramas estão em mutação? Qual é a força que os obriga a se transformarem, a entrar em
mutação? Obviamente que se o diagrama não fosse repleto de pontos de resistência, não haveria
mutações. Os pontos de resistência forçam e implicam uma mutação do diagrama, isto é, uma
segunda impressão vem do fora, mão menos que o anterior, e terá também seus pontos de
resistência, e uma terceira impressão, etc... quem então determinará, não determinará,
23
FOUCAULT, M. A vontade de saber. Op. cit., p. 91.
24
“possíveis, necessárias, improváveis, espontâneas, selvagens, solitárias, planejadas, arrastadas, violentas,
irreconciliáveis, prontas ao compromisso, interessadas ou fadadas ao sacrifício”. Loc. cit.
36
desencadeará as mutações. Quando os pontos de resistência se globalizam, nesse momento
haverá inversão do diagrama em favor de um novo diagrama. A rigor, eu poderia dizer que
acabamos agora. Pois, o que é essa resistência, de onde vem tudo isso? Temos que tentar vê-lo,
mas, basicamente, terminamos o eixo do poder, uma vez que já o ultrapassamos.
Vimos que, de certa maneira, havia o que deve ser chamada agora de uma linha do fora,
a terrível linha do fora! Quem falou dessa linha do fora? Por que uso essa palavra
propositadamente? A linha nas duas extremidades livres que circunda toda a embarcação, ou
seja, toda a formação estratificada, que envolve todo o bote e, quando ela vai, a linha do fora
corre o risco sempre de carregar um marinheiro, é terrível a linha do fora. É a linha à baleia de
Melville em Moby Dick. Inútil dizer que Moby Dick é o fora absoluto. A linha da baleia é a do
fora. Duas extremidades livres, mas ela envolve tão bem todo o bote que, quando sob pressão
da baleia em fuga, a linha se estica e, na sua tensão, corre o risco de cortar a cabeça ou o braço
de um marinheiro, ou de carregá-lo, de fazê-lo esguichar água... a linha do fora que vai... E
Foucault imaginou que exista essa linha do fora. O que é essa inspiração? Coloco a questão
seriamente: ele deve algo a Melville? Quem mais falou da linha do fora ou algo equivalente?
Michaux. De modo muito independente de Melville, Michaux tem páginas esplêndidas sobre a
linha que se torce como as correias de um condutor furioso. Bom, é o equivalente à linha de
Melville. Devemos chamá-las então de a linha de Michaux e a linha de Melville?
PERGUNTA: a linha de Proust também...
DELEUZE: olhe, não creio que seja a mesma coisa, não sei. Eu preciso entendê-lo melhor. Por
enquanto, fiquemos por aqui. Além dos diagramas, há ainda algo que é essa linha do fora, do
qual os diagramas vêm, resultam; é a linha que lança os dados, se assim posso dizer, nesse
sentido, era a linha de Nietzsche. Poderíamos fazer nós sobre essa linha: Melville, Michaux,
Nietzsche, Proust, se desejarem. Bem, talvez estejamos indo rápido demais. Vamos nos ater à
capacidade de alterar o diagrama. Essa capacidade de alterar só se explica pela linha do fora.
Estamos de acordo, mas não devemos ir muito depressa e, para tentar desvendar este mistério,
a linha do fora, temos que dar um passo atrás e perguntar: é apenas uma mutação diagramática,
uma mudança de relação de forças? Iremos nos debruçar sobre um tema célebre em Foucault –
é necessário ir e ver claramente porque dizemos tantas besteiras sobre ele –, nas Palavras e as
coisas, o tema da morte do homem. O que significa “o homem está morto”? Pouco importa que
esse tema suscitou ora indignação ora aprovação. O que significa? Qual é a relação entre
Foucault e Nietzsche? De certa maneira, vocês pressentem que isso significa que estamos no
meio de uma mutação do diagrama.
37
Na próxima aula, veremos o que significa o tema da morte do homem n’As palavras e
as coisas. Ainda será sobre a análise do poder, mas serão as conclusões. Será útil se puderem
ler o último capítulo dessa obra.
38
GILLES DELEUZE
AULA 6
Aula 6: 4 de março de 1986
Chegamos então ao fim da análise do eixo do poder, o segundo eixo. Esta conclusão diz
respeito ao tema da morte do homem em As palavras e as coisas. Evidentemente, esse é um
assunto muito delicado, porque tratar da morte do homem significa que há sempre o risco de
ser chamado de fascista. De fato, isso ocorreu, mas Foucault não foi o primeiro: a morte do
homem foi anunciada por Nietzsche, em relação com o conceito de super-homem, e a acusação
de um genuíno fascismo de Nietzsche era frequente. Desde a publicação de As palavras e as
coisas, há a mesma acusação de fascismo. Na mesma época do lançamento de As palavras e as
coisas, um psicanalista publicou um grande livro em que analisou, em mais de cem páginas, o
que considerou uma semelhança alucinante entre essa obra e Mein kampf. Em seguida, houve
numerosas críticas justamente em nome dos direitos do homem: “o que acontece com os direitos
do homem quando ele morre?”. Recentemente, logo após a morte de Foucault, essas críticas
foram retomadas com grande virulência com uma questão hipócrita: como Foucault podia
pretender participar em lutas políticas se já havia anunciado a morte do homem?
A questão é complicada porque, desde o início, perguntamo-nos (e se aplicaria também
a Nietzsche): o que morre exatamente? Ou, para usar um termo menos trágico, se algo
desaparece, o que é? Quem desaparece? Se penso na morte do homem e no super-homem em
Nietzsche, há duas grandes interpretações: a interpretação BD e a U. A primeira seria a
interpretação “história em quadrinhos” [bande dessinée], o super-homem como Superman.
Supõe-se que quem desaparece seja o homem existente em benefício de novo existente. Muitas
vezes, Nietzsche foi interpretado como produção de um novo existente. A segunda seria a
universitária: o que desaparece não é o homem existente, mas o conceito de homem. Nesse
caso, seria um desaparecimento mais suave. E isso gera novas críticas: com que direito falar da
morte do homem, quando o que desaparece é apenas o conceito de homem? Creio que nenhuma
dessas interpretações está certa, nem para Nietzsche nem para Foucault. Não é homem existente
que desaparece nem o conceito de homem. Então, o que é? O que torna possível falar em termos
tão dramáticos da morte do homem?
É aqui que retornamos ao nosso problema, quase como um resumo, como uma
verificação das relações poder-saber. Quero dizer, vimos anteriormente que as relações de
forças eram o lugar de mutações perpétuas, que poderíamos chamar “diagramáticas”. As forças
estão em mutação. Não sabemos ainda o que significa mutação, mas nos lembramos de que ela
2
é uma aventura das forças. As formas estão em constante mudança e, de acordo com nossa
análise precedente do poder/saber, podemos dizer imediatamente: as mutações de forças
determinam as mudanças de formas. Eis que a morte do homem – avançamos um pouquinho –
refere-se a uma forma. Por isso posso dizer que não se trata do conceito de homem nem do
homem existente. Trata-se da forma “homem”; a forma homem desaparece em benefício de
outra coisa.
Mas o que é a forma homem, visto que não se deixa reduzir ao homem existente nem
ao conceito de homem? Ainda não sei o que é a forma homem; posso dizer que toda forma é
composta, não há forma simples. E, se todas as formas são compostas, o que são os elementos
da forma? Como vimos, toda forma é um composto de forças. É uma concepção curiosa da
composição, pois vemos que esta implica que os elementos componentes não são da mesma
natureza nem do mesmo nível que o composto. Para encontrar os elementos de uma forma
composta, é necessário pular fora do nível da composição. Para encontrar os elementos
componentes de uma forma, é preciso atingir elementos informais, que são as forças. Toda
forma é composta de forças.
Há um autor, na história da filosofia, que explicou muito bem que – não digo que esta
ideia se impõe: quero assinalar que ela é original – as componentes nunca estão no mesmo nível
do composto, não estão no mesmo plano. Leibniz, no início de A monadologia, explica muito
bem que, se permanecermos no plano e no nível de uma forma composta, nunca encontraremos
senão o composto até o infinito. Para encontrar os elementos componentes, é preciso realmente
se instalar num outro nível. Nesse sentido, pode-se dizer que toda forma é um composto de
forças. Vejam, por exemplo, em biologia – não sei é verdade, mas posso dizer assim para tornar
a ideia mais simples –, uma forma orgânica é um composto de forças. Logo, a forma homem
seria um composto de forças. Avancemos por este caminho. Eu diria que há forças componentes
no homem, ou seja, forças que se exercem no homem. Mais à frente veremos o que pode ser;
no momento, trabalhamos no abstrato para tentar compreender uma possibilidade: há forças
componentes no homem.
Observem que digo “no homem” e não “do homem”. Se eu dissesse: “há forças
componentes do homem”, já estaria pré-julgando o composto. A afirmação “forças
componentes do homem” implicaria que o que é composto é o homem. Não sei. Não posso
dizer nada ainda. Posso dizer: “há forças componentes no homem”, isto é, há forças que se
exercem no homem. “Forças componentes no homem”, eis a primeira proposição para tentar
desvendar um problema tão complicado. Segunda preposição: essas forças componentes no
3
homem entram necessariamente em relação com forças do fora [du dehors]. Vejam, tenho muita
necessidade da noção de fora, tal como a analisamos da última vez. Essas forças componentes
no homem [dans l’homme], essas forças interiores ao homem, entram necessariamente em
relação com forças do fora. De qualquer modo, minhas duas primeiras proposições consistem
no fato de que há forças componentes no homem; de qualquer modo, essas forças entram em
relação com forças do fora.
Eu gostaria que vocês já compreendessem nesse ponto uma pequena coisa, a partir da
terceira proposição, terceira hipótese. A terceira hipótese que levanto é uma pergunta: em que
caso o homem deriva como composto? Quer dizer, primeira proposição: [ele escreve no quadro]
forças componentes no homem. Evidentemente, é muito abstrato, o que são forças
componentes? Não sabemos nada ainda sobre isso. Segunda proposição: essas forças
componentes no homem entram necessariamente em relação com outras forças, forças do fora
em relação ao homem. Terceira proposição: da combinação das forças componentes com forças
do fora nasce um composto? Qual? É necessariamente o homem? Não, não necessariamente.
As forças componentes no homem podem entrar em relação com forças do fora, de tal modo
que o composto não será o homem, mas outra coisa. Mas o quê? Pode ser o homem, tudo
depende das forças do fora. De qualquer maneira, vocês terão forças componentes no homem
que entram em relação com forças do fora. Assim, o composto pode ser o homem, mas pode
ser algo totalmente diferente. São hipóteses. Não poderia ser Deus? Mas então Deus é um
composto? Tal como Deus existe, seguramente não, mas a forma “deus”. A forma é um
composto, não um Deus existente. Haveria uma forma Deus que seria um composto, e um
composto de quê? Obviamente de forças componentes no homem e de forças do fora. Não está
claro, hein? Não está claro.
Mas, enfim, o composto poderia ser Deus e não o homem. Segundo caso: forças
componentes entram em relação com outras forças do fora, aí o composto seria o homem. Mais
um esforço. Terceiro caso: forças componentes no homem com ainda outras forças do fora e o
composto não seria mais o homem, seria algo que podemos chamar de – uma nova forma
novamente – super-homem. Vocês me dirão: tudo isso é ininteligível. Sim, por enquanto. Em
outras palavras, o que muda é a forma, a forma composta. Não se trata de dizer “o homem não
existe mais”. A morte do homem anuncia que o homem deixou de ser a forma composta pelas
forças em presença. Em outros termos, o que muda é a forma, e a forma muda quando há
mutação das forças. Quando ocorre mutação das forças? É prodigioso o que estamos fazendo.
4
Há mutação das forças quando, precisamente, as forças componentes no homem entram em
relação com novas forças do fora. Essa será uma mutação.
Dito de outro modo, a forma que muda, poderíamos defini-la como uma função. É por
isso que não é um conceito nem um existente. A forma que muda é a função. A forma composta
é a função. E os elementos componentes, ou seja, as forças, são as variáveis. A função muda
quando as variáveis sofrem mutações. A mutação das variáveis são novas forças do fora. É a
chegada de novas forças do fora, estas que entram em relação com as forças componentes no
homem de tal modo que o próprio composto muda. Assim, nós temos... Quero dizer, não temos
dele o aspecto porque o mantivemos abstratamente. Pensem. O ideal seria que fôssemos pura
inteligência e tudo bastaria, estaria acabado. Seria bom. Tudo isso porque temos um corpo que
é [?]. Mas falo como um clássico. Veremos por que falo como um clássico.
Bem, consideraremos três casos, no fim das contas nossa história é curta. Vamos
imaginar três casos. Defino o primeiro como a era em que forças componentes no homem
entram em relação com forças do fora, de tal modo que o que elas compõem não é ainda o
homem, mas Deus. Chamaremos essa era de idade clássica. Em seguida, consideraremos um
segundo caso em que forças componentes no homem entram em relação com novas forças do
fora, de tal forma que o composto desses dois tipos de forças não mais compõe Deus, mas o
homem; será o advento da forma “homem”. Em outras palavras, na idade clássica, há um
conceito de homem; percebam que estamos, mesmo assim, libertando-nos de todos tipos de
contrassenso, tanto em Foucault quanto em Nietzsche. Apesar de o que estou dizendo aqui
esteja centrado em Foucault e não em Nietzsche, as mesmas conclusões valeriam para este
último. Para o pensamento clássico, obviamente, há um conceito de homem enquanto animal
racional, como preferirem. Além disso, os homens existem. Não faz sentido dizer que na época
clássica os homens não existiam. Bem, eles existem, é óbvio. Aqui, o importante é que não há
forma homem que determina uma função. Há uma forma Deus que determina uma função e,
fundamentalmente, a função saber.
O século XIX será a segunda era em que forças componentes entram em relação com
forças do fora, de tal forma que o composto das forças é o homem, e não mais Deus. Assim, o
século XIX estará sob a forma: “Deus está morto”; o que significa menos que Deus não existe
e mais que o conceito de Deus não existe. É muito minucioso. Em seguida, uma terceira era que
podemos pensar: as forças componentes no homem entram em relação com forças do fora, do
tipo três. Repito porque essa nova formulação traz muita clareza. Idade clássica: forças
componentes no homem entram em relação com forças do fora do tipo um. O composto é Deus
5
como forma, a forma Deus. Em segundo lugar, o século XIX, forças componentes no homem
entram em relação com forças do fora tipo dois e, apenas nesse caso específico, o composto é
o homem, a forma homem. E três: nossa modernidade? Não sei, colocamos na condicional
porque é mais prudente, não temos certeza de nada. Forças componentes no homem entram em
relação com forças do fora do tipo três. E o composto, vamos chamá-lo de super-homem,
embora esse termo seja nietzschiano e não tenha lugar em Foucault. Compreendamos ao menos
negativamente uma forma que não seria mais a forma Deus nem a forma homem.
Em um texto muito interessante, que se encontra na discussão que se seguiu a sua
conferência O que é um autor?, Foucault diz: a morte do homem, não há motivo para chorar.
Nesse momento ele foi novamente mal compreendido: ele não só quer matar o homem, mas
não quer chorar pelo homem. Foucault afirma: sim, é uma mudança de forma – não faz ninguém
morrer, hein? Evidentemente, não. O século XVII prescindiu da forma homem, segundo a
interpretação de Foucault, e isso não impediu os homens de existirem.1 Assim, o que há de
interessante aqui? Vocês verão que isso muda muita coisa. Não impediu os homens de
existirem, mas eles existiram de outro modo. A forma não diz respeito à existência, mas ao
modo de existência; não concerne à existência nem às forças; a forma concerne particularmente
aos modos de existir. Então, é errado dizer que não existimos no modo clássico, que não
existimos no modo romântico, que existimos de uma outra maneira hoje?
Bem, avançamos um pouco. Eu dizia: o que desaparece ou não desaparece é a forma.
Da forma passamos à função e da função passamos à ideia de uma maneira de existir ou modo
de existência. Não sei se o que digo é muito interessante, mas é óbvio que qualquer outra coisa
é idiota, logo não temos escolha; pensar que o homem engendra um super-homem é uma ideia,
de fato, digna das histórias em quadrinhos, é um domínio, mas não é o da filosofia; dizer que o
conceito de homem muda também não é suficiente. A interpretação pela história em quadrinho
é excessiva; a interpretação pelo conceito é insuficiente; portanto, estamos na verdade porque
estamos no justo meio [risos]. Então, eu desejaria que vocês já tivessem uma espécie de
pressentimento abstrato do que significa a morte do homem. As forças em relação umas com
as outras não constituem mais o homem ou ainda não o compõem; e, em um momento, elas
compuseram o homem.
1
Para Deleuze, o século XVII pertence à idade clássica, o que é compatível, esquematicamente, com Foucault,
para quem a “idade clássica” corresponde aproximadamente aos séculos XVII e XVIII, ao período entre Descartes
e Kant, e a “idade moderna” corresponde ao século XIX. Kant marca a passagem entre as duas e o século XIX.
Este “duplo empírico-transcendental a que se chamou homem”, marca da modernidade, irá aparecer como
problema, no século XIX, para as ciências humanas: psicologia, sociologia, análise das linguagens e a própria
filosofia.
6
Em outros termos, há forças componentes no homem, e elas só se tornam forças
componentes do homem se entrarem em relação com forças do fora, capazes de produzir o
composto homem. Vou repetir isso dez vezes, de várias formas, para que vocês se familiarizem
com essa ideia, para que se ela se torne muito simples como um método. Vejam, é nosso método
obrigatório. Ele será para nós somente um método porque, por razões altamente pedagógicas,
não vou lhes oferecer um resumo de As palavras e as coisas, cabe a vocês ler essa obra. Gostaria
que meu papel fosse apenas este: disponibilizar pressupostos que, talvez, possam enriquecer
sua leitura; não lhes direi o que Foucault diz, vocês precisam ir até ele. Interessa-me tudo o que
há como pressupostos que Foucault não se propôs a dizer, porque os pressupostos são por
natureza implícitos. Eu assinalarei cada vez que retornar ao texto do Foucault. Mas voltarei a
ele muito pouco, porque não é o que me interessa. O texto literal vocês têm que ler.
Vejam, temos, então, três grandes partes nesse estudo da morte do homem. A primeira
é a idade clássica: forças componentes no homem entram em relação com forças do fora de tipo
um, de maneira que o que é composto não é o homem, mas Deus. É isso que é preciso tornar
concreto. Pois bem, se considerarem o pensamento do século XVII – aqui falo por minha conta
para justificar, parece-me, o ponto de partida de Foucault, o que nem ele mesmo sente a
necessidade de dizer –, se vocês leram um pouco dos filósofos do século XVII, vocês devem
estar convencidos. Por quê? Em quem vocês reconhecem um pensamento do século XVII? Se
buscarmos a característica desse pensamento, podemos citar várias, mas, parece-me, em todo
caso, que a primeira foi muito bem dada por Merleau-Ponty. Há uma espécie de livros que, às
vezes, tendemos a menosprezar e são muito ricos.
[...] um livro muito bonito, muito notável, por isso vale a pena abrir o livro. E, quando
se trata do pensamento clássico, Merleau-Ponty faz uma introdução, algumas páginas sobre o
pensamento clássico, como caracterizá-lo segundo ele. Ele afirma uma coisa que sempre me
impressionou e nunca me esqueci desse texto que é tão belo. Diz ele: os clássicos, eles se
reconhecem nisto: uma maneira inocente de pensar o infinito.2 Penso que é, ao mesmo tempo,
convincente e, de certa maneira, a fórmula é muito bela, porque inocente não é seguro. Quero
dizer, é certamente falso se o termo inocente significar “calmo e tranquilo”, pois é uma maneira
singularmente angustiante de pensar o infinito. Mas o fato é que eles não pararam de pensar o
infinito e isso é ser clássico. Derivo de Merleau-Ponty, o que é ser clássico? É pensar o infinito.
Por que o pensamento sobre o infinito é angustiante? Eu gostaria de abordar [?], quais são os
2
Cf. DELEUZE, G. Michel Foucault: o saber. Op. cit., aula de 19 de novembro de 1985.
7
textos fundamentais, os marcos do século XVII? O texto sobre os dois infinitos em
Pensamentos, de Pascal, a famosa carta XII de Espinosa a Louis Meyer, em que Espinosa
distingue quatro ou cinco infinitos. Posso então corrigir: talvez seja inocente, mas por que é
singularmente angustiante? O pensamento clássico descobre o universo infinito. É muito
simples. O homem perdeu seu centro, ele não tem mais centro. Não há centro no infinito ou,
como dizemos, o centro está em toda parte e a circunferência em lugar nenhum, ou vice-versa.
O homem clássico é fundamentalmente descentrado. Ele lamenta os belos dias. Quais
eram os dias belos antes do homem clássico? Era quando se discutia para saber quem girava
em torno de quem: a Terra girava em torno do Sol ou o Sol girava em torno da Terra. Por que
eram belos dias? Porque, aqui, havia um centro, qualquer que fosse. Ter-se-ia preferido, talvez,
que fosse o Sol que girava em torno da Terra e ela fosse o centro, mas, em todo caso, mesmo
se a Terra gira em torno do Sol, é ainda um centro. É reconfortante, tranquilizador. Mas,
compreendam, se o universo é infinito, é a ruina dos centros. Há apenas centros locais.
Por vezes, fizeram de Pascal um precursor da modernidade. Por que não? Mas invoca-
se a angústia pascaliana para torná-lo uma espécie de pré-existencialista. Não é verdade. A
modernidade de Pascal está na perfeição com a qual ele encarna a idade clássica; por uma razão
muito simples, qual seja, toda angústia pascaliana é uma angústia do infinito, enquanto a
angústia existencialista é angústia da finitude. Há essa conversão radical que faz com que Pascal
não seja especialmente precursor a esse respeito; ele é plenamente homem do século XVII. Ora,
eu gostaria que vocês compreendessem que se há uma angústia no pensamento clássico, é
porque, finalmente, esse pensamento pensa não apenas o infinito, mas pensa a multiplicidade
de infinitos. Não apenas um único infinito seria suficiente para fazer o homem perder seus
centros, mas, de fato, o homem não deixa de estar encurralado entre ordens de infinitos
múltiplos. Tudo é infinito. Há ordens de infinito e creio que, verdadeiramente, um dos
pensamentos-chave de todo o século XVII é essa ideia de ordens do infinito; não por acaso citei
dois textos fundamentais, mas poderia ter citado mil. Eu tomei como texto emblemático Os dois
infinitos pascalianos, duas ordens de infinito: o infinito de grandeza e o de pequenez, e o homem
está encurralado entre essas duas ordens do infinito.
Eis um problema pascaliano em Os dois infinitos, como fixar o finito, se é verdade que,
por um lado, ele é sobrepujado pelo infinito de grandeza, tal como aparece no universo (não se
trata nem mesmo de Deus) e, por outro, mergulha no infinito de pequenez, na medida em que
cada átomo contém em si mesmo um infinito no sentido do infinitamente pequeno? Como
estabelecer o finito se ele é tomado no curto-circuito entre duas ordens de infinito: o
8
infinitamente grande e o infinitamente pequeno? Daí decorre a ideia de um tipo de errância do
homem em um mundo que não tem centro.
Na carta de Espinosa a Meyer, fica evidente que finalmente tudo é infinito, o que não
significa que tudo se confunde, uma vez que há ordens de infinito. Mas como o homem pode
se reconhecer enquanto criatura finita? Espinosa diz: há um primeiro infinito, é infinito por si
mesmo, ou seja, Deus. No entanto, há uma segunda ordem de infinito, não mais o infinito por
si mesmo, mas o que é infinito por sua causa, nesse caso é o mundo. Em seguida, há uma terceira
ordem de infinito, que está no infinito por sua causa, ou seja, no infinito do segundo tipo; no
infinito por sua causa, vocês podem sempre abstrair uma porção finita, apenas isso: todas essas
porções finitas que vocês separaram no conjunto infinito comunicam com um terceiro infinito,
qual é? É um infinito muito curioso, que não pode ser igualado a nenhum número, embora
compreendido entre dois limites, e Leibniz, matemático, felicitará Espinosa por ter encontrado
a fórmula do terceiro infinito. No entanto, ele foi mesquinho nos elogios a Espinosa, devido seu
pânico de ser comprometido pela frequentação de Espinosa, que era muito comprometedora.
Leibniz não pôde esconder sua admiração e disse: sim, [Espinosa] soube ver que qualquer coisa
que tinha um máximo e um mínimo apresentava, mesmo assim, uma forma de infinito, uma
ordem de infinito, a saber: aquilo que não pode ser igualado por nenhum número, embora seja
compreendido entre dois limites. Se quiserem, é o equivalente do infinitamente pequeno.
Mais ainda, no nível desse terceiro infinito, o século XVII lida já completamente com
paradoxos que irão surgir em seguida, serão retomados no pensamento moderno com os
números transfinitos, designadamente a ideia de um infinito que é o duplo de um outro infinito;
simplesmente esse terceiro infinito é definido como grandeza que não pode ser igualada a
nenhum número. Essas grandezas podem ser o dobro ou metade daquelas de uma outra quando
os limites são a metade dos limites da outra. Bom, enfim, eu gostaria apenas de lembrá-los da
variedade das ordens de infinito para o pensamento do século XVII. Agora, passo para outro
ponto.
Já que apenas tentei definir o elemento do pensamento clássico, do século XVII, pensar
o infinito e, por conseguinte, como são imediatamente tomados no problema fundamental das
ordens de infinito, não é surpreendente, na verdade, que esse seja o século do cálculo
infinitesimal – agora passo a um outro problema que não é mais qual é o elemento do
pensamento clássico, mas como procede o pensamento clássico? Ora, parece-me que quaisquer
que sejam as diferenças entre os grandes pensadores do século XVII – seja Pascal ou Descartes,
seja Malebranche, Espinosa ou Leibniz –, há algo de comum entre eles, uma espécie de método:
9
toda coisa criada é um misto. Um misto de realidade e de limitação. Um princípio da lógica
clássica é que toda realidade é perfeição. Toda realidade é perfeição e [esse princípio] vem da
lógica da Idade Média, mas esses pensadores se servem dele de modo inteiramente especial.
Tornar-se-á verdadeiramente o método do pensamento clássico. Uma coisa sendo dada, o que
é real nela? O que é a limitação? O que é realidade e o que é limitação? Por exemplo, um corpo.
Nele, o que é realidade em seu interior, dentro de um corpo, e o que é limitação? O que é
realidade é perfeição, o que é limitação é imperfeição. Será necessário lidar um com o outro, é
este o problema do século XVII: em um corpo, o que é realidade e o que é perfeição? Por outro
lado, o que é limitação, ou seja, imperfeição? No espírito ou numa ideia, o que é realidade?
Qual... eles irão forjar a noção de realidade ou de perfeição. Qual quantidade de realidade ou
de perfeição? Um corpo é divisível? Um corpo é divisível, a divisibilidade é uma limitação,
imperfeição. Então, o que é real em um corpo divisível? Talvez a força, dirá Leibniz, porque a
força é indivisível e a indivisibilidade é uma perfeição. Nesse momento, é necessário ascender
do corpo à força. A alma é indivisa, significa que ela tem mais realidade do que o corpo, não
tem a imperfeição do corpo.
Não vou longe, quero dizer que são verdadeiramente coisas, se ouso dizer, tão infantis
do século XVII, e este é um pensamento que se tornou tão estranho para nós. Mas, de fato,
pode-se encontrar sua novidade, até mesmo sua eternidade nesse pensamento clássico, se se for
sensível não às grandes teses muito belas que eles desenvolveram, mas ao tipo de lógica
cotidiana que essas teses colocam em jogo. Creio que o próprio nervo do pensamento do século
XVII é desenredar o que é imperfeição ou limitação e o que é perfeição ou realidade. Pode-se
compreender o problema da extensão no século XVII, se se parte de coisas muito simples. Eles
se deparam com um problema fantástico: é necessário atribuir extensão a Deus ou não? Deus é
pensamento, é obvio, mas Deus é extensão? Atribui-se a ele o pensamento, sem dificuldade.
Vocês me dirão: por que se atribui a ele o pensamento? Enfim, para eles nem é preciso dizer,
pouco importa. Mas para a extensão, eles tropeçam. Vejam que esse problema compromete, é
necessário se convencer de que não é um problema que caiu na indiferença, agir como se
atormentasse a questão de saber se pode atribuir extensão a Deus. Eu até gostaria que houvesse
alguns deles aqui para que esse problema permanecesse urgente. Vejam, se a sala fosse bem-
feita, alguém se levantaria e diria: para mim, é um problema urgente. Mas nada! Nada!
Isso nos leva a quê? A extensão é divisível, se tenho motivos para atribuir extensão a
Deus, é porque, sob a extensão do visível, posso pensar pelo menos um núcleo, um algo
indivisível, uma matriz de extensão que não seria divisível e se poderia atribuir a Deus. Ou
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então seria necessário dizer: o que é divisível é a extensão sensível, mas, além dessa extensão
sensível, há uma extensão inteligível. Trata-se de Malebranche, que elabora uma teoria da
extensão inteligível; ou se trata de Espinosa, que considerará a extensão um atributo de Deus,
mas, enquanto atributo, ela é indivisível, e é somente divisível como modo desse atributo; ou
se trata de Leibniz, que distinguirá a extensio, a extensão e o spatium, a extensão sendo
divisível, mas o spatium sendo de uma outra natureza. Bom. Deus tem um corpo? A questão é
bastante simples, significa: há no corpo algo que eu possa designar como realidade ou perfeição
ou o corpo é inseparável de sua imperfeição ou de sua limitação?
Bem, basicamente só nos resta tirar conclusões. O pensamento clássico busca apreender
aquilo que possa ser elevado ao infinito. Há algo nessa coisa que possa ser elevado ao infinito
ou nada? Em um corpo, há algo que possa ser elevado ao infinito? Não importa qual ordem de
infinidade, haverá certamente graus de perfeição. Mas o real, isto é, o perfeito, pode ser elevado
a uma ordem do infinito. Elevável ao infinito, é isso. E vocês me dirão: o século XVII confundia
o indefinido e o infinito? Obviamente que não. Mas essa questão é irrelevante. O indefinido era
uma ordem última do infinito. O indefinido, por exemplo a sequência dos números, isto é, a
possibilidade de adicionar sempre uma unidade ao último número, por mais elevado que seja,
esse indefinido que, hoje, opomos ao infinito – mas, precisamente, será o problema de saber
como chegamos a opor o infinito e o indefinido. Para o século XVII é o inverso; o indefinido
está incluído no infinito e é apenas a última ordem da infinidade. O que é elevável ao infinito
em uma coisa? Se não há nada, é porque essa coisa se confunde com sua própria limitação. Se
há algo elevável ao infinito, bem, é preciso fazê-lo, e a partir desse momento, a realidade ou
perfeição assim alcançada pertencem a Deus. O elevável ao infinito relaciona-se, por natureza,
a Deus.
O que significa tudo isso? Temos nosso problema. Quais são as forças componentes no
homem? Vejam novamente um texto de Espinosa como o Tratado da reforma do intelecto. Ele
colocou esta pergunta abertamente: “quais são as forças componentes no homem?”.
Novamente, não confundamos com as forças componentes do homem. As forças componentes
do homem. Em quase todo o século XVII, com algumas variações, dirão: as forças componentes
no homem são o entendimento e a vontade. Mas, precisamente, o entendimento humano é finito,
compreendemos apenas poucas coisas. Finitude do entendimento humano, que é limitado. Mas
há uma realidade no entendimento que, mesmo assim, participa de uma ordem de infinidade.
Apesar de ser limitado, participa da ordem da infinitude, caso contrário não teria realidade ou
perfeição. Em qual ordem de infinidade? Comparem com a imaginação. Qual diferença há entre
11
imaginar um triângulo e pensar um triângulo, concebê-lo? Não é difícil, imaginar um triângulo
é sempre visar um triângulo particular. Mas quando vocês dizem: “o triângulo tem seus três
ângulos iguais a dois direitos”, formulam uma proposição do entendimento, isto é, que vale
para todo triângulo possível. Vocês imaginam sempre um triângulo particular, mas concebem
a infinidade dos triângulos. A infinidade de triângulos possíveis. É muito simples. O
entendimento participa de uma ordem de infinidade. Por isso mesmo ele é elevável ao infinito,
e o entendimento de Deus é o entendimento infinito. O entendimento finito é apenas parte do
entendimento infinito.
Como Leibniz – estou acumulando exemplos – prova a existência de Deus? Ele diz: não
basta definir Deus como ser infinitamente perfeito. Porque não estou certo de que tal noção não
implique contradição; e Leibniz continua: há noções que implicam contradição, por exemplo a
de maior velocidade. A maior velocidade implica contradição porque, se defino velocidade
como afetando um móvel que percorre uma circunferência – [Leibniz] dá todas as razões físicas
para definir a velocidade sob essa figura –, não há a maior velocidade porque posso sempre
aumentar o raio do círculo e terei, na ocasião, um móvel que percorre ainda mais rápido que o
anterior. Em outras palavras, a maior velocidade só pode se compreender na ordem do
indefinido, isto é, a última ordem do infinito. Mas ele nos diz: o infinitamente perfeito não é
isso, é muito diferente. O ser mais perfeito é muito diferente da maior velocidade porque, o ser
possui todas as perfeições elevadas ao infinito, sem limitação; e ele nos diz: esse ser não pode
ser contraditório, pois a contradição é uma limitação. Bem, pouco importa tudo isso. É para que
vocês se familiarizem cada vez mais com essa forma de pensamento. A partir daí posso realizar
uma melhor conclusão, a que me interessa.
Vejam, as forças componentes no homem – por exemplo a vontade, o entendimento –
vão entrar em relação com forças do fora de um certo tipo; é aqui que precisamos do concreto.
Qual tipo de forças do fora? Uma força que não pertence ao homem, que não está nele, e este é
o mistério do século XVII: como há no homem algo que não lhe pertence? O que é? Eu diria
que é a força de elevação ao infinito. De onde decorre que nosso pensamento tem o poder de
elevar alguma coisa ao infinito? É o problema do século XVII, se podemos resumir uma época
num problema. Vejam imediatamente a resposta, é a prova que Deus existe. Se Deus não
existisse, não poderíamos elevar algo ao infinito, justamente porque nós, homens, somos finitos.
É uma prova da existência de Deus que é, em minha opinião, subjacente a todas as provas
explícitas que o século XVII desenvolve. Observem, a prova seria exatamente a de que nosso
pensamento tem um poder que não lhe pertence, poder de elevar algo ao infinito. Esse poder
12
não lhe pertence, portanto deve depender de um ser em si mesmo infinito. Um ser finito não
pode dar conta do poder que ele tem de elevar algo ao infinito.
Pois bem, eis minha resposta. Na idade clássica, as forças componentes no homem
entram relação com forças do fora que podemos definir como: forças de elevar ao infinito, posso
até mesmo dizer que elas são plurais, pois há várias ordens de infinitude. Mas, assim, as forças
componentes no homem são em si mesmas elevadas ao infinito. O entendimento finito do
homem elevado ao infinito é o entendimento infinito de Deus. Em suma, quando as forças
componentes no homem reencontram, como forças do fora, a força de elevar ao infinito, elas
formam um composto – todas juntas, elas formam um composto –, isto é, as forças componentes
do homem, por um lado, e a força do fora, força de elevar ao infinito, por outro; elas formam
um composto e este é Deus, a forma Deus. Em outras palavras, o século XVII não pensa o
homem, pensa Deus. E por que ele não pensa o homem? Ele não pode pensar o homem porque
as forças componentes no homem entram em relação com forças tais que o composto não é
homem, é Deus. De modo que, obviamente, o século fala do homem, mas não faz do homem a
forma que deriva da composição das forças. O composto é Deus e todas as ordens do infinito
que dele derivam.
Chego então ao texto de Foucault. Volto agora ao texto de Foucault sobre a idade
clássica em As palavras e as coisas. Sua tese literal consiste em dizer que não há precursor, em
uma formação histórica dada, não procure seus precursores na formação histórica anterior. Por
exemplo, no século XVII e no XVIII, vocês procurariam em vão o equivalente do que nos
parece evidente hoje e que chamamos de economia política, de linguística ou mesmo de
filologia, assim como de biologia. Por outro lado, o pensamento do século XVII fala e apresenta
outras formações.3 Quais são elas? É a análise das riquezas, a gramática geral e a história
natural. E Foucault diz: não pensem que a história natural prepara a biologia, ou que a análise
das riquezas prepara a economia política. Será preciso uma verdadeira mutação, para uns e
outros, desde a formação de saber do século XVII às formações de saber do XIX: economia,
linguística, biologia. Em outros termos, a economia política, por exemplo, será fundada na
aparição de algo que não pôde aparecer no saber do século XVII. Então, deve-se dizer que a
biologia é melhor? Não sabemos se é melhor, ser melhor ou não pouco importa. Quando
3
Foucault localiza a mudança da “epistéme” da “Idade Clássica” (aproximadamente, séculos XVII e XVIII) para
a epistéme da “Idade Moderna” na segunda metade do século XVIII. Tendo em vista o problema do “homem” –
nos termos expressos por Deleuze – e da finitude, Foucault analisa os modos como os homens trocam, vivem e
falam. Por este motivo, centra sua análise das epistémes a partir dos saberes ligados ao trocar, falar e viver. Na
epistéme clássica, trata-se da análise das riquezas, da gramática geral e da história natural; na epistéme seguinte,
da “Idade Moderna”, trata-se da economia política, da linguística ou filologia e da biologia.
13
descobrirem o que o século XVII diz, aí então vocês estarão, talvez, em melhor condições de
compreender as análises literais de Foucault.
Foucault diz em primeiro lugar: o que é a análise das riquezas do século XVII? Bem, é
das duas coisas uma, ou a análise da moeda como meio de troca e é, basicamente, bem
conhecido sob o nome de tese mercantilista; ou a análise do trabalho agrícola como fundamento
da riqueza e é, grosso modo, o polo dos fisiocratas. Na verdade, a análise das riquezas no século
XVIII se divide segundo estas duas grandes correntes: a corrente mercantilista e a dos
fisiocratas. No entanto, creio que haja algo em comum entre as duas. Na moeda, o que interessa
aos mercantilistas? A novidade do século XVII e do XVIII, do ponto de vista da moeda, é não
mais buscar definir a moeda por qualidades intrínsecas, mas compreendê-la em função da troca.
A troca explica a moeda, esta enquanto signo universal que constitui a permutabilidade das
riquezas. Ou, se preferirem, a moeda faz circular as riquezas e, por conseguinte, as aumenta.
Bem, é uma ordem do infinito. Seria preciso desenvolver, isso me parece muito importante,
mas não podemos perder o fio; na Idade Média, a maior parte das teorias da moeda se dedica
às qualidades intrínsecas da moeda. A verdadeira novidade do mercantilismo é ter libertado
[dégagé] da moeda algo de elevável ao infinito, por meio da troca e da circulação. Sem dúvida
é uma ordem de infinidade muito baixa, mas, novamente, conta o fato de que seja uma ordem
de infinidade.
A partir daí os mercantilistas poderão desenvolver [déployer] um quadro de riquezas –
donde o sucesso surpreendente dessa noção no século XVII, fazer um quadro de algo – é
precisamente desenvolver. Encontramos todo o tempo, em As palavras e as coisas, a propósito
da idade clássica, essa noção de desenvolver – insisto nisso, porque, mais tarde, será uma noção
essencial de Foucault. A análise das riquezas desdobra, desenvolve todo um quadro. O
pensamento do século XVII será o pensamento do desdobramento, do desenvolvimento. A
moeda desdobra a riqueza, a desenvolve. A análise das riquezas será precisamente esta operação
pela qual a troca não ocorre sem um desenvolvimento, um desdobramento das riquezas pela
moeda, isto é, uma elevação potencial ao infinito. Em outras palavras, o mercantilismo, à sua
maneira, serve-se da moeda para elevar a riqueza ao infinito. Vocês me dirão: claro que não em
fato. Não, mas em direito! O infinito da riqueza é pensável em direito, ou seja, a riqueza é uma
quantidade crescente. O quadro é o meio de um desenvolvimento indefinido, no sentido do
século XVII, segundo uma ordem de infinidade.4
4
Na verdade, a ideia do quadro, em Foucault, é um sistema de equivalências que se vai do mesmo ao mesmo
indefinidamente, por meio de semelhanças e diferenças, um sistema de desdobramentos sucessivos dentro de um
14
Por outro lado, o que os fisiocratas objetam aos mercantilistas? É muito interessante.
Uma das objeções principais que os fisiocratas fazem aos mercantilistas é a de que estes não
veem que a própria troca, o comércio e a circulação das riquezas são em si mesmas
dispendiosas. Vejam, eles dizem: não pode ser a moeda nem a troca nem o comércio porque
são dispendiosos. Há exatamente, usando termos que empreguei, entre os mercantilistas e os
fisiocratas, uma espécie de polêmica típica do século XVII e se prolonga durante todo o século
XVIII, a saber: o que é real, isto é, perfeição e, portanto, elevável ao infinito? A resposta dos
mercantilistas é que a moeda eleva ao infinito a riqueza, pela troca e pelo comércio. Os
fisiocratas dizem: o comércio e o dinheiro ainda estão sobrecarregados de uma imperfeição
radical, não podem ser elevados ao infinito. Mas, trata-se de toda maneira de fazer um quadro
que se baseia em algo de elevável ao infinito. A resposta dos fisiocratas é que, de fato, o
comércio é dispendioso, a própria indústria também é dispendiosa. Logo, a ordem de infinidade
que implica a análise das riquezas deve ser buscada alhures. Onde se pode encontrá-la? Bem, o
que realmente corresponde a uma ordem de infinidade, não é o comércio nem o dinheiro nem
a moeda, mas a terra.5 Por quê? São as propriedades da terra. Pode-se fazer todas as objeções
que se quer, mas a terra é elevada ao infinito, em direito. Obviamente que a terra se esgota, mas
é necessário ver em quais condições, e mais, em qual ponto se pode renová-la com quaisquer
precauções do trabalho agrícola, mas a terra é a verdadeira potência de elevação ao infinito, o
comércio assim como a indústria a supõem; em outras palavras, o que é primeiro..., o quadro
das riquezas, por exemplo, é constitutivo do pensamento do século XVII.
Eu diria que é a mesma coisa para a gramática geral. Nesse caso, trata-se de chegar, para
os gramáticos do século XVII, a elementos últimos que, senão infinitos, seriam ao menos
universais. A gramática geral é inseparável da língua universal, ou seja, trata-se de fazer um
quadro dos elementos últimos, estes que são, ao infinito, línguas concretas. Que é o infinito?
Também aqui é potência de elevar ao infinito o trabalho de linguagem segundo o pensamento
do século XVIII. O que serão essas características últimas ao infinito ou ao indefinido das
línguas? Serão as raízes. E a gramática geral será toda uma gramática de raízes, descoberta de
quadro, de uma riqueza a outra, a moeda fornecendo a unidade de equivalências. Em sentido epistêmico – e não
histórico, como Deleuze coloca aqui –, o quadro representa um sistema fechado ou circular de remissões
coplanares, mesmo que em número indeterminado.
5
Em questão está: o que propicia o aumento da riqueza? Para os fisiocratas, é a terra, o solo, a abundância da
natureza. Há aumento da riqueza no ciclo natural da agricultura, a única atividade realmente produtiva. Nos ciclos
sucessivos, comércio, manufatura, governo etc., há dispêndio gradual e racional do incremento extraordinário de
riqueza propiciado pela atividade agrícola. O tableau économique – quadro econômico – do fisiocrata François de
Quesnay ambicionava sintetizar o ciclo econômico anual de um país justamente num quadro, permitindo ao
soberano econômico uma visão sobranceira do processo.
15
algo não elevável ao infinito, mas de quando se eleva ao infinito, e a gramática geral fará o
quadro de raízes e desdobrará, desenvolverá – é sempre um pensamento do desenvolvimento,
do desdobramento.
Vejam, estou esquecendo o terceiro saber. O que é história natural? Ela é o
desenvolvimento de um quadro de seres vivos que se proporá classificá-los segundo a ordem
das semelhanças e das diferenças, incluindo diferenças infinitamente pequenas, isto é, a ordem
das semelhanças e das diferenças prolongáveis até o infinito. Assim como a gramática geral
reivindicava raízes, a história natural reivindicará características. Donde Foucault poderá
definir o pensamento do século XVII como um pensamento da ordem; mas vejam que na ordem
ele entende exatamente o que propus definir como elevação ao infinito, isto é, a ordem aparece
quando as coisas são integradas em um quadro que extrai o que é elevável ou distribuível ao
infinito. Portanto, tento concluir: o homem nunca é pensado. O homem tem seu lugar no quadro.
O homem falante, vivente, caminhante e que trabalha a terra tem seu lugar, é óbvio, mas a forma
sob a qual se pensa o homem não é homem, é Deus, pois a forma que domina no século XVII
é a forma composta por forças componentes no homem, por um lado, e por forças do fora que
são a elevação ao infinito, por outro. Agora, as forças componentes no homem entram em
relação com forças do fora de elevação ao infinito e compõem Deus e não o homem. De modo
que Deus é infinitamente rico, infinitamente falante; a voz de Deus, o logos, não é o
infinitamente que trabalha, mas o que cria, que produz, tanto que a terra é apenas uma ordem
do infinito inferior à infinidade de Deus. Portanto, eis a questão: o que acontece? Em meados
do século XVIII, isso se move. E o que irá explodir no século XIX? Um encontro.
Talvez vocês entendam melhor. As forças componentes no homem vão entrar em
relação com forças do fora de uma outra natureza diferente. Acontece como se a força de
elevação ao infinito terminasse. Ela se dissipa exatamente como muda a atmosfera. A força de
elevação ao infinito nos abandonou. O que pode ter acontecido? Eis que outras forças, como
um céu que muda, chegaram até nós. Nossas forças componentes uniram-se a outras forças, que
não são mais as de elevação ao infinito, mas praticamente o contrário. A partir disso, não é mais
Deus que será o composto das forças, será outra coisa e talvez essa outra coisa, outra forma
composta, merecerá o nome de homem. Mas, vejam, tudo depende com qual tipo de forças as
forças componentes no homem se encontram. Eu gostaria que refletissem sobre o que lhes disse,
vou dar uns minutos de descanso, em seguida passarei para o segundo estágio.
Bom, deixo claro que é realmente apenas uma introdução à leitura de As palavras e as
coisas, na qual vocês verão como Foucault analisa a história natural, a análise das riquezas, a
16
gramática geral... Eu apenas esbocei dizer os fundamentos do texto, mas não o texto
propriamente, porque é de uma clareza absoluta. Alguma questão? Vamos para a segunda parte!
Veremos o que há de muito importante no método de Foucault: uma comparação das forças.
Vou tentar explicar a novidade em Foucault, como ele parece retomar uma tese bem conhecida,
mas a retoma de modo diferente, e cabe a nós, leitores, encontrá-la. Qual é a tese bem
conhecida? É a de que, no final do século XVIII, ocorreu uma inversão fundamental que
chamamos, geralmente, de inversão kantiana ou de revolução copernicana, porque Kant
anuncia que fará na filosofia uma revolução análoga àquela que Copérnico operou na ciência
da natureza. Assim, em que consiste a revolução kantiana ou nova revolução copernicana? Um
livro de Jules Vuillemin, intitulado L'héritage kantien et la révolution copernicienne,6 excelente
para a história da filosofia moderna. Nele, por meio dos neokantianos, o autor aponta a
revolução fundamental na filosofia operada pelo kantismo. E se eu resumisse esse livro em uma
frase, seria mais ou menos assim: com Kant, a finitude se torna constituinte, quer dizer,
fundadora. Para o século XVII e para a idade clássica, seria uma proposição absolutamente
ininteligível; o finito, por natureza, é constituído. O que é constituinte é necessariamente o
infinito. Além disso, são as ordens de infinidade que constituem tudo o que está em cada nível
do ser. Para todo o século XVII, por definição, o finito é o derivado. Apenas o infinito é
originário. Para que haja uma finitude originária, supõe-se uma inversão, um basculamento de
todas as noções. Nesse momento, o indefinido particularmente será arrancado das ordens do
infinito, das ordens da infinidade e se tornará a reiteração de um ato do sujeito finito, a reiteração
do ato de um eu [moi] finito. Noutros termos, é nesse momento que o “eu penso” kantiano
assumirá o valor de fundamento.
Ora, qual é a diferença fundamental entre o eu penso kantiano e o eu penso cartesiano?
O eu penso cartesiano mantinha o primado do infinito sobre o finito. Como diz Descartes, na
terceira meditação, o infinito é primeiro em relação ao finito. Ele o afirma a propósito do cogito
e do próprio “eu penso”. A operação do cogito só é possível sobre o fundo do infinito. Com
Kant, o eu penso, como dizemos, envolve, recolhe-se [se rabat] – veremos que essas palavras
serão muito importantes para Foucault –, dobra-se [se replie] sobre sua própria finitude.7 O eu
6
VUILLEMIN, J. L'héritage kantien et la révolution copernicienne; Fichte, Cohen, Heidegger. Paris: PUF, 1954.
7
“O lado de fora não é um limite fixo, mas uma matéria móvel, animada de movimentos peristálticos, de pregas e
de dobras que constituem um lado de dentro: nada além do lado de fora, mas exatamente o lado de dentro do lado
de fora. As palavras e as coisas desenvolve esse tema: se o pensamento vem de fora e se mantém sempre no lado
de fora, por que não surgiria no lado de dentro, como o que ele não pensa e não pode pensar?”. DELEUZE, G.
Foucault. Op. cit., p. 104.
17
penso kantiano é diferente do cartesiano, como vimos no primeiro trimestre,8 quando tentei
mostrar que aquele se referia à forma do tempo. Referindo-se à forma do tempo, precisamente,
o eu penso kantiano se colocava como ato de um eu finito. Em outras palavras, a promoção da
finitude é o ato do pensamento dito moderno do fim do século XVIII e do início do XIX.
Ademais, no detalhe, se vocês lerem Kant, verão que a relação do entendimento infinito e do
entendimento finito se reverte, uma vez que o entendimento finito não é mais um derivado do
infinito, mas apenas o inverso. O entendimento infinito é uma diferencial do entendimento
finito, que é derivada do finito. Pouco importa tudo isso. Vejam então que, na filosofia, creio
que foi dito frequentemente, embora seja dito de maneira particularmente brilhante por
Vuillemin, o pensamento moderno, tal como se forma no século XIX, define-se por certa
promoção da finitude, a ponto de a finitude se tornar constituinte. É verdade que todo século
XIX começará a questionar o infinito, não apenas no nível de Deus, mas nos níveis de todas as
ordens de infinidade. Notadamente no final do século XIX, mas o questionamento é preparado
por toda história das matemáticas durante o século XIX, cito apenas um caso muito típico:
arrancar o cálculo infinitesimal, o cálculo diferencial de toda hipótese de infinito e torná-lo um
método da finitude.
Todas as noções que são correntes nas matemáticas do século XVII: “tender para, tender
ao infinito”, “aproximar-se de um limite”, “limite”, “infinitamente pequeno”, são conjuradas e,
além disso, um matemático do século XIX as chamará de hipótese gótica, ele dirá “a hipótese
gótica do infinitamente pequeno”. Dito de outro modo, há uma reinterpretação finitista
[finitiste] do cálculo infinitesimal. É um exemplo entre outros. Mas é uma espécie de conversão
ao finito que é constituinte. O eu finito é constituinte. É uma mudança fundamental. Portanto,
a interpretação ordinária consiste em dizer: o homem toma consciência de sua própria finitude,
obviamente há razões pelas quais ele toma consciência de sua própria finitude nesse momento.
O homem, como vimos, não se pensava infinito, mas pensava a partir de Deus, ou seja, a partir
do infinito. O que Foucault retoma dessa interpretação? Dela, ele retoma o resultado:
substituição da ordem do infinito pelo ponto de vista do finito.
Interessa-me a grande novidade, se considerarmos o detalhe do que ele disse em As
palavras e as coisas, pois ele não diz, de modo algum, que no século XIX o homem toma
consciência de sua finitude. Gostaria que vocês vissem uma pequena diferença que é, ao mesmo
tempo, decisiva e compromete todo seu método. Vejamos. Nessa obra, Foucault diz – eu retomo
8
Cf. DELEUZE, G. Michel Foucault: o saber. Op. cit., aula de 19 de novembro de 1985.
18
ao pé da letra – no século XIX, o homem – subentendido as forças componentes no homem –
entra em relação com forças que não são as suas, entra em relação com forças do fora que, ao
invés de ser elevação ao infinito, são forças de finitude. As forças componentes no homem
entram em relação com forças exteriores de finitude. Esse é o segundo tipo de força do fora.
Observem, ele não diz que o homem toma consciência em si mesmo de forças que seriam forças
de finitude e de sua própria finitude. Foucault afirma: as forças no homem encontram forças de
finitude. É em um segundo momento – há então dois momentos – que o homem se apropria
dessas forças de finitude e as descobre como sua própria finitude. Quero dizer, Foucault
decompõe em dois momentos a tese original. Parece-me típico da maneira como ele procede.
Veremos o porquê. Mas, de antemão, é necessário ver esse ponto: toda a originalidade de As
palavras e as coisas sobre este ponto, a diferença entre a idade clássica e o século XIX, repousa
sobre estes dois momentos que Foucault distingue. Primeiro momento: as forças no homem
entram em relação com forças exteriores de finitude que não são as suas. Segundo momento:
ele torna suas essas forças.
Vocês veem os dois momentos? Aqui, é necessário ler, por que e em que sua análise do
século XIX distingue dois momentos. Mas, ao final, quando retoma sua análise e a resume nas
páginas 380-81: “E supõe-se que, a partir daí, estendeu-se a historicidade descoberta no homem
aos objetos que ele fabricara, à linguagem que falava e, mais longe ainda, à vida”. Vejam, aqui
ele ataca explicitamente a interpretação corrente: o homem tomaria consciência de sua finitude,
a entenderia e a aplicaria à linguagem, à vida e à produção. Ele continua: “o estudo das
economias, a história das literaturas e das gramáticas, afinal de contas, a evolução do vivente,
nada seriam senão o efeito de difusão, sobre áreas do conhecimento, de uma historicidade
descoberta de antemão no homem”. Essa é a interpretação corrente. E Foucault faz, por sua vez,
sua viragem, como ele gosta tanto de fazê-las: é o ponto muito interessante em As palavras e
as coisas, “Na realidade, foi o contrário que se passou. As coisas receberam primeiro uma
historicidade própria que as liberou deste espaço contínuo lhes impunha a mesma cronologia
que aos homens”.9 É o espaço contínuo que se chama de elevável ao infinito. As coisas
receberam de antemão uma historicidade própria que as liberou desse espaço contínuo do século
XVII, isto é, desse espaço serial. “De sorte que o homem se achou como que despojado”, quer
dizer, a história não aconteceu por meio do homem, ela aconteceu primeiro às coisas. As coisas
produzidas pelo homem, as palavras pronunciadas por ele, a vida foram históricas antes que o
9
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. Op. cit., p. 510.
19
próprio homem se descobrisse como histórico. Se o século XIX é a descoberta da história, a
história foi primeiro descoberta fora do homem antes de ser descoberta no homem.
E depois? O homem, neste primeiro momento, descobre a história como história das
coisas, da vida, da linguagem, mas então, diz Foucault, “o homem não é, ele próprio, histórico:
uma vez que o tempo lhe vem de fora dele mesmo, ele não se constitui como sujeito da História
senão pela superposição da história dos seres, da história das coisas, da história das palavras.
Está submetido aos puros eventos dessas, logo, porém...”. Aqui começa o segundo tempo,
“Logo, porém, esta relação de simples passividade se inverte: pois o fala na linguagem, o que
trabalha e consome na economia, o que vive na vida humana é o próprio homem; e, por esse
motivo, também ele tem o direito a um devir tão positivo quanto o dos seres e das coisas, não
menos autônomo – e talvez até mais fundamental [...]”.10 Não é uma historicidade própria ao
homem e inscrita profundamente em seu ser que lhe permite se adaptar etc. Vejam aqui os dois
momentos e explicitamente marcados. Primeiro momento: o homem, ou melhor, as forças no
homem entram em relação com forças que afetam não o próprio homem, mas as coisas, as
palavras, os viventes, portanto, forças do fora. O homem entra em relação com forças exteriores
de finitude.
Segundo momento: o homem se apropria dessa finitude.
Por que esse desvio? Qual é seu interesse? Veremos que esse desvio será essencial.
Deixo de lado a questão: é historicamente verdadeiro?
Resumamos a tese de Foucault. Quais são as forças de finitude? Ele afirma: é a vida, o
trabalho, a linguagem. Agora, talvez compreendamos melhor como essas forças irão, digamos,
destronar o infinito. Tripla raiz da finitude. O homem não é a raiz da finitude, mas as forças que
ele enfrenta e encontra: forças da vida, da linguagem, do trabalho; são elas que irão destronar
as ordens do infinito. E por que no século XVII não havia biologia? Porque esse século não
podia reconhecer a vida, dado que a vida é uma força finita. Logo, ela não entrava no esquema
“realidade = perfeição”. A vida é tanto mais real, e toda sua potência vem de sua finitude, como
10
Ibid., p. 511. Foucault prossegue na página seguinte: “Assim aparece, por trás da história das positividades,
aquela, mais radical, do próprio homem. História que concerne agora ao ser mesmo do homem, pois que evidencia
que não somente ele ‘tem’, em torno de si, ‘História’, mas que ele mesmo é, em sua historicidade própria, aquilo
pelo que se delineia uma história da vida humana, uma história da economia, uma história da linguagem. Haveria,
pois, a um nível mais profundo, uma historicidade do homem que seria, por si mesma, sua própria história, mas
também a dispersão radical que funda todas as outras. É justamente essa erosão primeira que o século XIX buscou
na sua preocupação de tudo historicizar, de escrever, a propósito de cada coisa, uma história geral” Na idade
clássica, o mundo e o homem “num só movimento, se incorporavam numa história única”. A partir do século XIX,
vem à luz uma forma nua de historicidade humana: “o fato de que o homem enquanto tal está exposto ao
acontecimento”.
20
dirá Bergson mais tarde: o elã vital é finito. Finitude do elã vital, da potência da vida. Finitude
da linguagem, do trabalho. De modo que o trabalho não é de modo algum considerado nesse
momento como uma potência do homem, é uma força à qual o homem se confronta exatamente
como quando a física fala do trabalho. O trabalho de uma força. É encontrando, portanto, as
três figuras da finitude, as três forças da finitude que tudo mudará, que se operará a mutação.
Assim, será invertida a força de elevação ao infinito. Quais serão os dois momentos? O que
significa dizer que a biologia substitui a história natural? Significa dizer que a série indefinida
de seres vivos substituirá a ideia de que a vida é uma força finita que procede por uma espécie
de produção comparável, mas não alinhada [non-alignable]. Isso significa que haveria planos
de organização da vida. Por exemplo, os artrópodes e os vertebrados não entram mais em uma
série alinhável, na qual, no limite, pode-se passar por semelhança e diferença de um extremo
ao outro. Mas artrópodes implicam uma espécie de plano de vida irredutível e heterogêneo ao
plano de vida que produz o vertebrado. Haverá como que planificações heterogêneas,
irredutíveis umas às outras, que marcarão cada vez um impulso da vida nesta ou naquela
direção. É o que a biologia do século XIX, já no fim do XVIII, identificará sob o nome de
ramificações [embranchements]. Haverá ramificações irredutíveis. Portanto, descoberta de uma
força de finitude da vida que não se deixa totalizar nem alinhar numa série indefinida.
Em outras palavras, não há mais ciências gerais, é a época das ciências comparadas. Por
exemplo, para a linguagem, ao mesmo tempo, haverá planos de organização da linguagem que,
cada vez, atualizam uma força finita que é a da linguagem, e marcam, como planos de
organização, este tipo de línguas, aquele outro tipo de línguas. A implicação disso é a
substituição da raiz, tal como ela foi estudada no século XVII, pelo estudo das flexões. E a
filologia se apresentará como estudo das flexões e as próprias raízes serão subordinadas às
flexões. Do mesmo modo o conceito fundador, se o conceito fundador da filologia é a flexão,
o da biologia é a organização, são os planos de organização.
E, por fim, o trabalho fundará a economia política. Com isso significa dizer que o
trabalho foi ignorado pela análise das riquezas do século XVII? Evidente que não, o trabalho
não era ignorado, mas não era considerado como unidade de medida irredutível. O tratamento
do trabalho como unidade de medida irredutível será o ato criador da economia política. Aqui,
Foucault, sem dúvida, vai ao encontro de textos famosos e belíssimos de Marx, quando este
coloca a questão de quando começa a economia política. Marx diz: supõe-se que ela começa
com Adam Smith, porque este descobre um trabalho que não é mais caracterizado ou
qualificado como este ou aquele, mas como trabalho qualquer; o trabalho abstrato como unidade
21
de medida de toda produção. E ele diz que os fisiocratas do século XVIII já produzem um
conceito de trabalho muito firme, seguro, mas é ainda um trabalho qualificado como o trabalho
agrícola. Mas o trabalho puro, trabalho abstrato como unidade de medida irredutível da
produção, é o ato de base da economia política clássica, que fez Marx dizer a Engels: Adam
Smith é o Lutero da economia política, pois, do mesmo modo que Lutero ultrapassou a religião
exterior em direção à religiosidade, isto é a religião subjetiva, Smith ultrapassou as riquezas
exteriores na direção do trabalho subjetivo, o trabalho puro, que não é mais qualificado como
este ou aquele em relação ao seu objeto: o trabalho abstrato. Portanto, todas essas análises de
Foucault tratarão de mostrar como a biologia vem destituir e substituir a história natural, como
a filologia vem destituir e substituir a gramática geral e como a linguagem vem destituir e
substituir... bem, vocês completam. Então os dois momentos são sempre: a força da finitude é
encontrada primeiro pelo homem fora do homem; depois, segundo momento, o homem se
apropria, interioriza essa força de finitude e, por conseguinte, constitui sua própria história.
O que é importante para nós? Se você quiser, tento fazer um esquema assim,
simplificando muito. Tomemos a história natural, há sempre constituição de quadro, isto é, uma
série que digo quase elevável ao infinito, de direito podemos prosseguir ao infinito situando
seres vivos por semelhança e diferença. Há um esquema linear da série. Ao contrário, a finitude
da vida no século XIX engendra uma figura da diferenciação, a partir do núcleo ou do elã finito
da vida, haverá diferenciação entre linhas heterogêneas. A cada linha... quatro grandes linhas,
pois há quatro grandes cruzamentos, segundo Cuvier e depois segundo seu sucessor, Von Baer,
em que não haverá continuidade, mas ruptura. Como se a vida se engajasse numa via, em outra
via e outra... Por exemplo, algo como a embriologia, notadamente na forma de uma embriologia
comparada – o que ela foi desde o início com Von Baer. Ele traduz em embriologia os grandes
trabalhos de Cuvier sobre as ramificações que consistem em mostrar que, nessa embriologia, o
desenvolvimento do embrião se dará, dependendo das espécies e dos gêneros aos quais ele
pertence, por uma via de tal ou tal ramificação. Quatro ramificações principais que serão como
quatro planos de vida, e vocês não poderão alinhar os viventes em uma série linear que
prossegue ao infinito.
Então, digo, vejam para onde irei com esse esquema, mas já estou cansado, tenho a
impressão de que não está ficando muito claro. Vocês me dizem. Vou imediatamente para a
solução: as forças componentes no homem, na formação histórica do século XIX, não entram
mais em relação com forças de elevação ao infinito, mas com a tripla força ou as três forças de
finitude: vida, trabalho no sentido físico e abstrato, linguagem.
22
Então, essas forças componentes no homem entram em relação com forças de finitude.
O que elas irão compor? Naquele momento, elas compuseram o homem, a forma homem. O
século XIX é precisamente a idade dessa forma, isto é, o século em que a forma homem é
composta. Sim, tenho a impressão de que... não aguento mais. Está um pouco claro ou não?
Vamos tentar concluir, avançar um pouco mais porque em seguida será simples.
É necessário aceitar essa maneira de colocar o problema. Por isso insisti tanto no início
sobre minha apresentação abstrata, se vocês não compreenderem a ideia de forças componentes
no homem que entram em relação com forças do fora, tudo isso perde seu sentido. A história
do homem consiste nisso. Estamos na idade em que as forças componentes no homem
enfrentam e entram em relação e se entrelaçam com forças do fora de um novo tipo. Bom, vou
dizer uma coisa mais simples. Por exemplo, quando as forças do homem enfrentam e se
entrelaçam com forças finitas da vida, o que são essas forças finitas da vida? Podemos dizer ou
tentar dizê-lo cientificamente; é, entre outras coisas e principalmente, a força do carbono. O
sucesso da vida é o sucesso do carbono e dos compostos carbônicos. Por que o carbono teve
tanto sucesso no universo? Por que a vida é feita de carbono? Nesse caso, ele assume um papel
concreto, um lado muito concreto. O homem se casou com o carbono. Vocês me dirão: não,
porque se não houvesse esse elemento, não haveria vida nem homem. Não é isso. Vejam, um
homem enquanto forma composta está em relação com uma força de finitude: o carbono.
Qual nova força o homem enfrenta? É bem conhecido, assim que vocês tocam um
computador. Vamos falar de computadores já que todos estão falando sobre eles. Bem, quando
vocês tocam um computador, as forças componentes em vocês entram em relação com uma
força de novo tipo, não é o carbono, é o silício. O silício que retransmite o carbono, com as
ditas máquinas, justamente! Maravilha! Com as chamadas máquinas de terceira espécie. Pois
as máquinas de primeira espécie referem-se à idade clássica, do tipo polia, mecanismo de
relojoaria etc.; as de segunda espécie, ditas energéticas, referem-se ao século XIX, máquina a
vapor. E hoje dizemos que é a idade das terceiras máquinas, as do tipo três, máquinas
informáticas, de calcular etc.
As forças componentes no homem entram em relação com um novo tipo de forças, o
que será composto? Não será mais Deus nem o homem. Não é nossa culpa, não há problema
algum dizer isso. É a morte do homem. Evidentemente, é a morte do homem em proveito de
outro composto. Há mudança de forma. Hoje não falamos mais de homem como sujeito; o
sujeito (ou o composto) é o sistema chamado “homem-máquina”. O sistema homem-máquina
é outra coisa. A máquina energética não formava com o homem um sistema homem-máquina.
23
O que a forma é uma máquina de terceira espécie, nossas máquinas, as máquinas de nossa
época, a era do silício.
Bom, o que isso significa? Compreendam, ninguém se indigna com a proposição “Deus
está morto”, justamente porque estamos acostumados. Podemos muito bem salvar Deus e dizer
que o fato de que a morte está em Deus é precisamente a razão pela qual Deus supera a própria
morte, e isso é simples. “Deus está morto” quer dizer: o homem tomou o lugar de Deus. É uma
história bastante conhecida. Ela foi realizada do ponto de vista do pensamento por Feuerbach,
que coloca o homem no lugar de Deus. Ele afirma: Deus não é originário e o homem derivado,
mas o homem é originário e Deus derivado. Deus é uma inversão do homem. Dizer “Deus está
morto” é pôr o homem no lugar de Deus, é o reverso da inversão. Vejam o livro admirável de
Feuerbach chamado Essência do cristianismo. Feuerbach é, como dizem, um hegeliano de
esquerda, um dos maiores filósofos da esquerda hegeliana.
Então, a substituição de Deus pelo homem é realmente um... tornou-se uma verdadeira...
enfim, algo óbvio. E muitas vezes acontece que creditemos ou debitemos a Nietzsche, dizendo:
Nietzsche, ah sim, o pensador da morte de Deus! Nada mais! Por uma razão muito simples, no
momento em que Nietzsche escreve: mas, mas morte de Deus, é uma espécie de obviedade.
Acreditam que um pensador como Nietzsche retomaria alguma coisa já dita mil vezes?
Nietzsche não precisou citar Feuerbach. Se quiserem compreender um pouco Nietzsche, a morte
de Deus não é absolutamente seu tema. Em todos textos de Nietzsche em que ele fala muitas
vezes da morte de Deus, está achando extremamente engraçado. São textos da grande comédia
de Nietzsche que tem uma potência cômica enorme. Isso só o faz rir... não porque Deus morre,
é uma coisa muito triste, mas porque é algo que se falava tanto em sua época que ele sente a
necessidade de redizer, trata-se, como ele próprio diz, de acrescentar-lhe algumas versões
inéditas. Então ele inventará versões, sete ou oito. Uh, acabamos.
Se houver tempo, eu gostaria de tratar das aproximações possíveis de Foucault com
Nietzsche. Consideraríamos essa questão da morte de Deus em Nietzsche. É muito bom. Deus
morre, mas como? Nietzsche dirá: esta versão, uma outra versão, uma outra... são perfeitas as
versões que ele propõe. Podemos dizer que traz algo novo sobre o cômico das versões. Ele faz
rir, e Nietzsche é aquele que não anuncia de modo algum a morte de Deus, ela já está anunciada,
é uma notícia muito antiga, vocês sabem, é aquele que varia ao infinito as versões da morte de
Deus.
Bem, algo muito importante em Nietzsche é que, antes dele, a morte de Deus era o
anúncio que o homem tomaria o lugar de Deus. Nietzsche inverte a colocação. O que lhe
24
interessa não é a morte de Deus, é a morte de seu sucessor, a morte do homem. Isso porque a
ideia de Nietzsche, desenvolvida admiravelmente por Klossowski em seu livro Nietzsche e o
círculo vicioso, é que Deus é o fiador da identidade e, se Deus morre, não há mais fiador da
identidade, isto é, o homem não pode mais ser identificado. Então, a morte de Deus já contém
a morte de seu sucessor, a morte do homem. É justamente aqui que Nietzsche é novo. Acontece
exatamente a mesma para a história com Marx. Os historiadores burgueses do século XIX
inventam a noção de classe, mas, estranhamente, paralisaram as classes em um determinado
momento. Toda história do século XIX é construída sobre a luta entre duas classes: aristocracia
e burguesia. São autores que não têm nada de revolucionário, como Guizot, que faz uma história
da luta de classes. Quando também dizemos que a luta de classes é uma ideia dos marxistas, é
absolutamente falso. É uma ideia dos historiadores burgueses do século XIX. No século XIX,
a Revolução francesa foi inteiramente interpretada como a vitória da classe burguesa sobre a
aristocrática. Simplesmente que, quando tais historiadores chegam à classe burguesa, estimam
que ela seja o universal, a classe universal. É a classe dos direitos do homem, logo é classe do
universal, não há outra classe; os burgueses se encontram diante desses seres estranhos que
dizem: somos uma classe que assumimos uma posição de classe, a saber, os proletários. E as
grandes discussões importantes do século XIX são: pode-se considerar os trabalhadores como
uma classe? Guizot quer que a burguesia seja uma classe e que haja luta de classes, na qual a
burguesia triunfe sobre a aristocracia, ele não quer que haja uma classe trabalhadora.11 E não é
apenas em função de seus próprios interesses que ele bloqueia as classes, mas também bloqueia
neste local porque a burguesia é portadora do universal. Como haveria uma classe após, ou
acima ou abaixo?
O que não só Marx, mas todo o movimento socialista, fizeram no século XIX? Mostrar
que a luta de classes não se encerra com a burguesia, há uma terceira classe: a do proletário. E
mais, a classe proletária ou trabalhadora – e a mesma história recomeça –, de certa maneira,
porta o universal. E vai tão longe que, nos textos do período romântico de Marx, há
perpetuamente o tema: quem é homem e nada mais do que homem? E a resposta de Marx é
necessariamente o proletário, porque ele não tem família nem pátria, é alienado etc. O proletário
não tem, portanto, nenhuma qualidade, é submetido ao trabalho abstrato, à lei do trabalho
11
Foucault retoma esses discursos históricos, mas afirma que eles se transformaram numa “contra-história” de
caráter racista visando anular a força do discurso revolucionário do campo proletário: “E é assim que, no momento
em que se forma uma contra-história de tipo revolucionário, vai-se formar uma outra contra-história, mas que será
contra-história na medida em que esmagará, numa perspectiva biológico-médica, a dimensão histórica que estava
presente nesse discurso. E assim que vocês veem aparecer algo que vai ser justamente o racismo”. FOUCAULT,
M. Em defesa da sociedade. Op. cit., p. 94.
25
abstrato, ele é o homem e nada mais do que homem. Por isso ele é portador do universal. Vejam,
todo o problema é que, após a burguesia, desponta um terceiro sujeito, uma terceira posição de
classe. Eu diria: é a mesma coisa na história: a morte de Deus / a morte do homem.
Para Feuerbach, as mudanças de formas terminam no homem, o homem é portador do
universal. Logo, em uma luta que é a da própria história, o homem substitui Deus. Em Nietzsche
há o protesto, um equivalente do protesto marxista, mas em sentido diferente – não quero dizer
que seja a mesma coisa de maneira alguma. Ele disse: a morte de Deus não é muito grave nem
muito importante, porque quando o homem toma o lugar de Deus, enfim, retoma-se à mesma
coisa, e, de fato, a morte de Deus já contém a morte do homem porque não há mais identidade
ou identificação possível quando Deus está morto.
Então, o que aconteceu? Ir em direção a uma nova era, a do super-homem, não significa
coisas extraordinárias, mas que forças componentes no homem enfrentam ou vão enfrentar
forças do fora de uma outra natureza. Esse confronto, esse afrontamento comporá uma forma
nova que não será a de Deus nem a do homem. Qual será? O que acontece nesse terceiro nível?
Quais são essas forças? Vimos que, para idade clássica, era a força do infinito. Para o século
XIX, forças da finitude. O que há além do infinito e o finito? Temos a impressão de ter esgotado
o percurso, como no caso da relação da aristocracia com a burguesia, de que não há mais nada.
Após o homem, há... ou o nada, ou é necessário que o homem dure. Em Nietzsche, há uma
espécie de aposta, ele pensa que pode haver outras formas. Ele dirá algo sobre essas outras
formas, sobre o que é esse super-homem? Super-homem é, por enquanto, um nome vazio para
designar a outra forma. O que são essas forças, que não são aquelas da elevação ao infinito nem
as da finitude, quais são? Quem superaria forças que não correspondessem mais à dualidade
finito-infinito? Não poderíamos nem mais dizer se é finito ou infinito, porque seria de outra
natureza. Sintam que a física também não parou de buscar nesse caminho: há pouco lhes falei
do silício. É muito curioso como isso está em sintonia a evolução das ciências; todas as
tentativas para constituir uma espécie de finito ilimitado. Misturo tudo: o eterno retorno, em
Nietzsche, é uma maneira de dizer algo que não é mais finito nem infinito.
Bom, essa terceira forma seria, portanto, o super-homem. Retorno a Foucault: as forças
componentes no homem se unem às forças do fora de um novo tipo, de um terceiro tipo. Posso
dizer melhor agora: as forças da idade clássica eram acumuláveis ao infinito. As forças do
século XIX são, essencialmente, de difração, de diferenciação: diferenciação dos cruzamentos
da vida, das famílias de línguas – por isso a ciência se tornou ciência comparada –, diferenciação
dos modos de produção. Bem, as forças de finitude são de difração, de divergência, de
26
diferenciação; as forças do infinito são de acumulação e de seriação, de serialização. Quais são
as novas forças? Como as forças componentes no homem constituiriam algo diferente do
homem? Bom, escutem, vamos parar por aqui porque tenho a impressão de que não dá pra ir
mais.
27
GILLES DELEUZE
AULA 7
Aula 7: 11 de março de 1986
1
Por formação deve-se entender, formação histórica, ou episteme.
2
Para Foucault, na idade clássica existe uma coerência entre a teoria da representação e as positividades (saberes
sobre a vida, a riqueza e a linguagem). Ela é o “fundamento geral de todas as ordens possíveis”, ordem dos seres
vivos, ordem das riquezas e das trocas, ordem das línguas. Aqui, Deleuze chama a idade clássica de pensamento
do século XVII, embora a idade clássica, para Foucault, como vimos, compreenda, aproximadamente, o período
entre o meado do século XVI e a segunda metade do XVIII; grosso modo, de Descartes a Kant.
3
alguma coisa ao infinito. Ou apreender algo que, desde então, representa-se como elevável ao
infinito.
Não há uma força única de elevação ao infinito porque há diversas ordens de infinito.
Vimos na última aula que há um infinito em si mesmo, por exemplo, que não deve ser
confundido com o que é infinito somente por causa sua. Há o infinitamente grande, mas há
também o infinitamente pequeno. Há ordens de infinitude, e elas não são quaisquer, são
hierarquizadas. Por quê? Porque elas tendem ao infinito mais perfeito, ou seja, o infinito por si
mesmo. Eu disse que esta me parece ser uma definição do pensamento do século XVII. O
pensamento do século XVII pensa fundamentalmente o infinito e as ordens do infinito. E o
problema nesse século é: o homem está perdido nas ordens de infinito [ordres d’infini]. Isso
salta aos olhos com Pascal.
Eu lhes dizia que – e, de fato, veremos que no método de Foucault é muito importante
romper as linhas falsas de descendência – qualquer que seja a grandeza de Pascal para nós hoje,
não há nenhum motivo para construir uma linha [de continuidade] de Pascal até certos autores
contemporâneos, seria ilegítimo. A angústia pascaliana é a angústia relacionada ao infinito e às
suas ordens. Onde está o homem em todas essas ordens de infinito? Onde encontrar um lugar
para o homem, se a cada vez que se lhe atribui um lugar, este se desfaz no infinito? Para Pascal,
o homem está descentrado porque, fundamentalmente, está preso nas ordens de infinito: o
infinitamente grande, o infinitamente pequeno.
Por esse motivo, quando digo que as forças no homem entram em relação com forças
de elevação ao infinito – que são muito diferentes umas das outras, mas que convergem todas
para Deus –, a forma composta por esse conjunto de forças (forças no homem e forças de
elevação ao infinito) não é o homem, é Deus. A forma composta por esse conjunto de forças é
Deus. Por isso há a ideia de que na idade clássica a forma homem não tem estritamente nenhum
lugar. Pela simples razão de que o infinito é sempre primeiro com relação ao finito. A forma
homem tem tão pouco lugar que as forças no homem só se compõem para compor uma coisa
que não é ele, já que elas mesmas entram em relação com forças que o elevam ao infinito. As
forças no homem são o intelecto [entendement] e a vontade. E os filósofos do XVII nos dirão:
sim, mas o intelecto humano é finito; se o elevamos ao infinito para mostrar sua perfeição, a
partir do momento em que a perfeição é elevável ao infinito, temos o intelecto divino, que é
infinito. E o intelecto humano é apenas uma limitação do intelecto divino.
Assim, o que será o pensamento do século XVII em todos os níveis? E é aqui talvez o
que eu não soube mostrar na última aula, ou seja, mostrar o que era o conceito essencial ou o
4
que irá se revelar como o conceito essencial. O que significa dizer que forças no homem entram
em relação com forças de elevação ao infinito? Significa que tudo o que se apresenta vai se
desenvolver, vai se desdobrar ao infinito e de maneira contínua. O saber do XVII vai constituir
quadros. Quadros nos quais cada ser tomará seu lugar, numa espécie de desdobramento ao
infinito. O pensamento do XVII será fundamentalmente do desdobramento, do desenvolvimento.
Por isso a análise das riquezas vai se desenvolver numa espécie de quadro: o quadro das
riquezas. A análise do [ser] vivo vai se desenvolver numa espécie de quadro dos caráteres
orgânicos que formarão uma série contínua; a série continua segundo a qual cada ser vivo ocupa
seu lugar. E a continuidade da série é um caráter fundamental porque é a sua própria ordem ao
infinito. Eu insisto nesse ponto que, talvez em toda a obra de Foucault, recaímos sobre uma
palavra que reencontramos constantemente: a ideia ou a hipótese de um desdobramento [dépli]
das coisas e dos seres. Desdobrar [déplier], desenvolver. O desdobramento retorna
constantemente.3
Mas, no ponto em que estamos, como ele se inscreve no pensamento do século XVII? O
pensamento clássico desdobra as coisas e os seres segundo séries contínuas que marcam a
ordem de infinidade própria às criaturas. Notou-se frequentemente que, por exemplo, a história
natural no XVII não se limita a ser sistemática. Por sistema é preciso entender a repartição das
identidades e das diferenças no ser vivo. O que é idêntico, o que é diferente etc.? Mas o próprio
sistema se desenvolve em série, e a série é algo diferente que consiste em ordenar os vivos numa
ordem tal que, por meio de pequenas diferenças, passa-se dum ao outro segundo uma ordem da
continuidade, que é uma ordem da infinidade da criatura. Daqui decorre que o tema da análise
das riquezas, a história natural, a análise do discurso ou gramática geral procederão por meio
dos tais quadros contínuos, prolongáveis ao infinito. O pensamento do XVII é um pensamento
da disposição [déploiement] e do desdobramento [dépli]. Desdobra-se as coisas e os seres e,
desdobrando-os, forma-se a série contínua das coisas e dos seres.
Não quero dizer mais, pois tudo o que eu disse a esse respeito na aula passada me parece
válido. Essa noção do desdobramento me parece fundamental. Por quê? Ainda não o sabemos.
Eu constato simplesmente que, se a ideia do desdobrar aparece quando Foucault analisa o
3
Cf., por exemplo: “Do início do Renascimento até o final do século XVIII, o saber da vida estava preso no círculo
da vida que se volta [replie] sobre si mesma e se observa. A partir de Bichat, ele é deslocado com relação à vida,
separado dela pelo limite intransponível da morte”. FOUCAULT, M. O nascimento da clínica [1961]. Trad.
Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 167. Trad. mod. Note-se que, desde muito cedo em Foucault
há essa ideia do saber do homem sobre si mesmo marcado pelo duplo “empírico-transcendental”, o homem é ao
mesmo tempo objeto do conhecimento sobre si e condição desse mesmo conhecimento.
5
pensamento do XVII, é por acaso que a mesma palavra aparece em ocasiões completamente
outras e percorre toda a obra de Foucault?
Antes de passar para a outra formação,4 eu diria que a fórmula da idade clássica, segundo
Foucault, seria que as forças no homem entram em relação com forças da infinitude. O que elas
em conjunto compõem? A ideia de Deus, não a forma homem. Vocês me perguntarão: mas
como se pode afirmar que Deus é composto? Então me corrijo dizendo: a ideia de Deus. Sem
dúvida, como nos lembram todos os autores do XVII, Deus é unidade insondável. Mas,
justamente, unidade insondável que não impede que sua ideia seja composta. E o que compõe
a ideia de Deus para um autor do XVII? São todas as perfeições eleváveis ao infinito. Pode-se
relacionar com Deus tudo o que é elevável ao infinito.
Deus é composto, ou melhor, a ideia de Deus é composta por todas as formas tomadas
absolutamente – é uma expressão de Leibniz –, ou seja, independentemente de seus limites. Daí
aparece um problema para o século XVII. É interessante saber por que algo era um problema
para uma dada época e por que não o é mais hoje. O problema para o século XVII: a extensão é
uma propriedade, um atributo de Deus. A resposta é simples. Depende, depende
necessariamente. Se vocês podem extrair da extensão algo de infinito, então, sim, a extensão é
atributo de Deus. Mas se não podem, isto é, se a extensão é inseparável de sua limitação, se
pertence somente a ordens de infinitude inferiores, ela não pode ser infinita em si mesma, logo
ela não é atribuível a Deus. Por isso, seria tolo dizer que no XVII certos autores atribuem a
extensão a Deus e outros se recusam a fazê-lo. No século XVII, todos os autores que pensam
que há algo de infinito na extensão propriamente dita, atribuem-na a Deus; todos aqueles que
pensam que a extensão é inseparável de sua própria limitação, recusam a atribuição a Deus.
Descartes a recusará, mas Malebranche e Espinosa – de maneiras muito diferentes – descobrem
na extensão algo de infinito por si, de primeira ordem, e a atribuem necessariamente a Deus.
Nesse momento, trata-se de uma extensão indivisível, infinita, que, por esse motivo, faz parte
dos atributos de Deus.
Vocês têm dúvidas?
[PERGUNTA] Não compreendo quando se pensa nas forças no homem. Você disse que com as
forças no homem, em relação com as forças de fora, elevadas ao infinito, pode-se obter uma
4
“O essencial é que, no começo do século XIX, constituiu-se uma disposição do saber em que figuram, a um
tempo, a historicidade da economia (em relação com as formas de produção), a finitude da existência humana (em
relação com a raridade e o trabalho) e o aprazamento de um fim da História — quer por afrouxamento indevido
quer por reversão radical. História, antropologia e suspensão do devir se pertencem segundo uma figura que define
para o pensamento do século XIX uma de suas redes maiores”. FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. Op. cit.,
pp. 360-61. Cf., em geral, As palavras e as coisas., cap. IX, sessão III, “a analítica da finitude”.
6
forma composta que é a ideia de Deus. Mas não se poderia ter também outra forma, a forma do
homem?
[DELEUZE] Não, não nesse caso. Numa outra formação [histórica] sim.
[Pergunta] De acordo, numa outra formação.
[Deleuze] E com outras forças.
[Pergunta] E quando pensamos a força no homem, deve-se também pensar a forma homem? É
isso que eu não entendo...
[Deleuze] Não, não, senão tudo [o que eu disse] estaria perdido. Não pressupomos. Sim, o
fazemos porque tudo está misturado, é claro que podemos supor, mas não é isso que conta, e
sim a diferença de natureza entre o nível das forças e o das formas. Vimos isso desde o início.
As forças são informais. Por isso, quando eu digo “as forças no homem”, parece que se
pressupõe a forma homem. Mas não. Eu não pressuponho nada da forma homem, considero
apenas forças que, enquanto tais, são ditas humanas. Se são ditas humanas, você me diria, então
pressupõe-se o homem. Por que elas não existem nos animais. Encontram-se como num lugar
do espaço das forças. Por exemplo, digo intelecto, vontade. Não pressuponho nenhuma forma
do homem, assumo o intelecto como força, e digo que é uma força no homem devido ao fato
de que não se encontra nos animais. Logo, se vocês me dizem que isso pressupõe o homem, eu
respondo que não. Defino o homem como um tipo de força e unicamente um tipo de força. E
essas forças, por exemplo, o intelecto e a vontade, que chamo de forças no homem ou forças
humanas, porque elas não se apresentam nos animais, porque elas são distintas, ocupam certa
região no campo de forças; eu digo: com quais outras forças elas entram em relação? No século
XVII, com as forças de elevação ao infinito, donde o intelecto será apenas uma limitação do
intelecto infinito. E, nesse momento, o composto não é o homem, é Deus. Vejam, forças no
homem + forças de elevação ao infinito resultam no composto Deus, a forma composta Deus.
E se me disserem que Deus não é composto, eu concordo: Deus não é composto, mas sua forma,
sim, ou seja, sua representação é composta. Se eu resumisse tudo, diria que o século XVII éa
idade da representação.
Passemos à formação seguinte, o século XIX. O que acontece, qual é a mutação? Vimos
que toda relação de forças implicava uma espécie de diagrama. O diagrama é o enunciado das
relações de forças, e isso não implica ainda nenhuma forma. Houve mutação do diagrama. O
diagrama do pensamento clássico são, repito, forças do homem que abraçam as forças de
elevação ao infinito. Na formação do século XIX, as forças do homem irão se chocar e abraçar
forças de finitude. O que são essas forças da finitude? Segundo Foucault, são três: a vida, a
7
linguagem, o trabalho. E vocês me dirão: mas a vida, o trabalho e a linguagem já existiam no
XVII. Não é essa a questão. Elas existiam, sim, mas o trabalho estava dissolvido [dissous] na
série das riquezas, no quadro das riquezas. A vida era como que desenvolvida, desdobrada na
série contínua da história natural. É isso o que conta. Vocês pressentem imediatamente onde
quero chegar: estamos diante do fenômeno inverso, da categoria inversa. Todo o pensamento
do XIX será um pensamento do finito, do dobrar-se [repli]. As forças no homem se dobram
sobre as forças da finitude. Elas se rebatem sobre as forças de finitude. Produz-se uma dobra,
um dobramento [pliure, plissement]. As forças no homem se redobram [se replient] sobre as
forças da finitude. Se insisto nesse ponto, é porque encontramos, não com menos frequência na
obra de Foucault, a palavra desdobramento [dépli]. Em toda a obra de Foucault, encontramos
também a palavra dobra [pli], dobradura [pliure], dobramento [pliage]. É um outro polo. Mas,
sem dúvida, como é constante em todos os seus livros, é a base de todas as suas metáforas.
Creio que as metáforas têm como matrizes o desdobramento e a dobra.5
Isso é importante por razões que não podemos ainda compreender. Pois vocês
pressentem que haverá um momento necessário de confrontação: quais são, precisamente, as
relações de Foucault com Heidegger? Pois há muito tempo que o pensamento heideggeriano se
apresentou como um pensamento da dobra. O que é o ser segundo Heidegger? O ser é
precisamente a dobra, é a dobra do ser [être] e do ente [étant]. O ser é indissociável, inseparável
da dobra que ele forma com o ente. O que é isso? Em Heidegger, está fundamentalmente ligado
à descoberta de uma finitude constituinte. Logo, temos aqui, pela primeira vez, a ocasião de
marcar a importância em Foucault desses termos, dobra e desdobramento. Sem dúvida,
pressentimos que seu enraizamento em Foucault é muito diferente do ponto de partida do que
acontece em Heidegger. Pouco a pouco seremos levados a fazer uma confrontação, mas não é
nosso assunto no momento.
Detenho-me nesse ponto: o pensamento do XIX seria caracterizado assim: as forças
humanas, ao invés de se desdobrarem à medida em que entram em relação com forças de
elevação ao infinito, dobram-se, redobram-se, rebatem-se quando entram em relação com forças
de finitude: vida, trabalho, linguagem. A tripla raiz da finitude, a força do homem circunda
como uma hélice essa tripla raiz da finitude.
5
“Doravante, as coisas só virão à representação do fundo dessa espessura recolhida em si, emaranhadas talvez e
tornadas mais sombrias por sua obscuridade, porém fortemente enlaçadas a si mesmas, reunidas ou divididas,
agrupadas sem recurso pelo vigor que lá, naquele fundo, se oculta. As figuras visíveis, seus liames, os brancos que
as isolam e contornam seu perfil não mais se oferecerão a nosso olhar senão totalmente compostos, já articulados
nessa noite subterrânea que as fomenta com o tempo”. FOUCAULT, M. As palavras e as coisas, p. 345.
8
Tudo ia bem até esse ponto na aula passada. Eu insistia sobre a importância de bem
considerar que, para Foucault, as forças da finitude se apresentam como exteriores ao homem.
Assim como a força de elevação ao infinito não era uma força no homem, mas exterior a ele,
as forças da finitude, a vida, a linguagem, o trabalho, são exteriores ao homem. Nessa formação,
elas se impõem ao homem de fora. O trabalho é o penar e o tempo, é uma força imposta ao
homem. A linguagem é uma força involuntária, uma força imposta ao homem. Como relação à
vida, isso é evidente.
Eu dizia que essa é a novidade de Foucault, no nível dessa formação do XIX, pois
encontramos em todo lugar – e isso é anterior a Foucault – a ideia de que a revolução do século
XIX, a revolução do pensamento do XIX, foi ter substituído o infinito pela ideia de finitude
constituinte. Não é o infinito que é originário, é a finitude constituinte. Eu dizia que é a
revolução kantiana. O intelecto humano não é simples limitação do divino, que seria originário.
O intelecto humano, enquanto finito, é constituinte. Logo, posso dizer que, segundo um
esquema clássico, definimos a revolução do século XIX por essa substituição.
Por que Foucault não se contenta com esse esquema clássico e o renova? Tenho a
impressão de que esse esquema – substituição do infinito originários pela finitude constituinte
– é muito interessante, mas é carente neste ponto: o que é que traz essa revolução nesse
momento da história? Por que, de repente, o homem toma consciência, não de sua finitude –
ele a tinha, mesmo no século XVII, era até a sua angústia e seu mal-estar –, mas de que sua
finitude é constituinte? Noutras palavras, que ela não é a limitação do intelecto divino, mas, ao
contrário, é o fundamento do mundo habitado pelo homem e do conhecimento produzido pelo
homem.
Eu creio que a razão seja muito simples. É precisamente a que Foucault indica. Mas,
compreendam bem, é por isso que era preciso a todo preço, necessariamente, mostrar que as
forças de finitude não estavam no homem, mas que ele as encontrava como forças vindas de
fora. O homem, no final da idade clássica, depara-se com forças de finitude, ou seja, ele
descobre a vida, o trabalho, a linguagem. Por esse motivo, ele tomará consciência de “sua”
própria finitude, enquanto homem. Foucault dá uma explicação para o que o esquema clássico
deixava sem explicação. Para isso, ele distingue dois momentos: em primeiro lugar,6 as forças
6
“[...] podem-se, porém, reconhecer, em cada um dos domínios estudados, duas fases sucessivas que se articulam
uma à outra, mais ou menos por volta dos anos 1795-1800. Na primeira dessas fases, o modo de ser fundamental
das positividades não muda; as riquezas dos homens, as espécies da natureza, as palavras de que as línguas são
povoadas permanecem ainda o que eram na idade clássica: representações duplicadas — representações cujo papel
consiste em designar representações, analisá-las, decompô-las e compô-las, para fazer nelas surgir, com o sistema
de suas identidades e de suas diferenças, o princípio geral de uma ordem. É somente na segunda fase que as
9
no homem se chocam com a tripla raiz da finitude, as forças de finitude exteriores, vida,
trabalho, linguagem. Em segundo lugar,7 o homem faz sua essa finitude.
Notem que era muito importante para Foucault distinguir dois momentos na análise da
formação século XIX para explicar por que, nesse momento, a finitude do homem se torna
constitutiva. Isso quer dizer: quando o homem, quando as forças no homem encontram como
que forças exteriores, forças vindas de fora, forças de finitude, e não mais de elevação ao
infinito, então, e somente então, a forma composta se torna o homem. Não é mais Deus, é o
homem. O composto que corresponde a essa nova combinação, a esse novo diagrama, é a forma
homem.
Tenho a sensação de que isso é difícil. Não sei se é difícil, mas na última aula fizemos
coisas abstratas. Peço-lhes um último esforço.
Quero verificar essa história do desdobramento e da dobra por meio de um exemplo
privilegiado: o livro O nascimento da clínica. Vou apenas resumi-lo: ele trata da distinção de
duas formações: a clínica, que corresponde à idade clássica, e a anatomia patológica, que
corresponde ao século XIX. Como se define a clínica? É a constituição, para as doenças, que são
tratadas como espécies, a constituição de um quadro contínuo que organiza a série dos signos
e dos sintomas. Desdobramento, colocação de um quadro dos signos e dos sintomas na
superfície do corpo. E o tema da superfície do corpo é fundamental em toda a clínica. É preciso
palavras, as classes e as riquezas adquirirão um modo de ser que não é mais compatível com o da representação”.
Ibid., p. 303. “Numa primeira fase — a que cronologicamente se estende de 1775 a 1795 e cuja configuração se
pode designar através das obras de Smith, de Jussieu e de Wilkins — os conceitos de trabalho, de organismo e de
sistema gramatical foram introduzidos — ou reintroduzidos com um estatuto singular — na análise das
representações e no espaço tabular onde esta até então se desenrolava. [...] Todavia, nem o trabalho nem o sistema
gramatical nem a organização viva podiam ser definidos ou assegurados pelo simples jogo da representação se
decompondo, se analisando, se recompondo e assim se representando a si mesma numa pura reduplicação; o espaço
da análise não podia, pois, deixar de perder sua autonomia [...] A ordem que se dá ao olhar, com o quadriculado
permanente de suas distinções, não é mais que uma cintilação superficial por sobre uma profundeza”. Ibid., pp.
344-45.
7
“Então — e esta é a outra fase do acontecimento — o saber, em sua positividade, muda de natureza e de forma.
[...] razão. O que mudou, na curva do século, e sofreu uma alteração irreparável foi o próprio saber como modo de
ser prévio e indiviso entre o sujeito que conhece e o objeto do conhecimento; se se começa a estudar o custo da
produção, e não mais se utiliza a situação ideal e primitiva da permuta para analisar a formação do valor, é
porque, ao nível arqueológico, a produção como figura fundamental no espaço do saber substituiu-se à troca,
fazendo aparecer, por um lado, novos objetos cognoscíveis (como o capital) e prescrevendo, por outro, novos
conceitos e novos métodos (como a análise das formas de produção). Do mesmo modo, se se estuda, a partir de
Cuvier, a organização interna dos seres vivos, e se, para tanto, se utilizam métodos da anatomia comparada, é
porque a vida, como forma fundamental do saber, fez aparecer novos objetos (como a relação do caráter com a
função) e novos métodos (como a busca das analogias). Enfim, se Grimm e Bopp tentam definir as leis da
alternância vocálica ou da mutação das consoantes, é porque o Discurso como modo do saber veio a ser substituído
pela Linguagem, que define objetos até então inaparentes [...] e prescreve métodos que não haviam ainda sido
empregados”. Ibid., pp. 346-47.
10
que as doenças se declarem na superfície do corpo, postas num quadro que marca a continuidade
dos signos e dos sintomas. A clínica é fundamentalmente o desdobramento das doenças.
O que acontece no século XIX? Descobre-se tecidos, a noção de tecido domina, será a
grande noção sobre a qual se fundará a anatomia patológica, que substituirá a clínica. E a
anatomia patológica dá ou restitui a profundidade ao corpo, graças ao dobramento [plissement]
dos tecidos. O tecido é o que se dobra. A rigor, é quase o nascimento de uma espécie de
topologia médica. Os tecidos se dobram, e os dobramentos, o dobrar-se dos tecidos restitui
profundidade ao corpo e volume à doença. E Foucault aponta dois momentos muito diferentes
do olhar médico: o olhar em superfície da clínica que constitui os seus quadros e o olhar em
profundidade do anatomista patológico, que segue os dobramentos de tecidos de tal maneira
que ele vasculha a profundeza do corpo. É a pergunta de Foucault: o que se quer com a autópsia?
Não é que não se conhecesse a autopsia. Ela era conhecida, existia há muito tempo, mas era
desvalorizada, secundarizada pela clínica. Ela retomou toda a sua força e adquiriu novos
poderes com a anatomia patológica. Para vasculhar a profundidade do corpo, era preciso que
houvessem tecidos capazes de se dobrar e, por conseguinte, desdobrar-se.
Sublinho que a maior parte de O nascimento da clínica é construída sobre metáforas e
conceitos de dobra e desdobramento. O pensamento do desdobramento que caracteriza a
formação do século XVII e o pensamento da dobra que caracteriza a formação do século XIX.
Há portanto dois momentos necessários na formação século XIX. Primeiro: o encontro
terrível, o terrível encontro do homem com forças da finitude. Segundo: a maneira pela qual o
homem se apropria dessas forças de finitude e erige a si mesmo em finitude constituinte. Insisto
nesse ponto, pois o esquema tradicional dizia apenas que a finitude constituinte substitui o
infinito. Foucault o transforma distinguindo os dois momentos. Creio que essa transformação
seja muito importante; veremos suas consequências.
Está bem esse segundo ponto? Pois bem. Então vejamos o que acontece quando as forças
do homem envolvem [s’enroulent] as forças da finitude, quando elas se rebatem sobre as forças
da finitude, a vida, a linguagem etc. O que acontece, quais problemas essa mudança introduz
no pensamento do XVII?8 Por que o pensamento do XVII, em sua especificidade, não pode
sobreviver a essa prova?
8
Embora Deleuze repita “pensamento XVII” e “pensamento do XVII”, tenhamos em mente que os dois momentos
de mudança ocorreram, como dissemos, da segunda metade do século XVIII até a primeira metade do XIX. Por
exemplo, com relação à “força” chamada trabalho por Deleuze, correspondendo à mutação da análise das riquezas
para a economia política, trata-se, dentre outros, de François de Quesnay (e sua obra O quadro econômico, de
1772), de Adam Smith (Riqueza das nações, de 1776) e David Ricardo (Princípios de economia política, de 1817).
Foucault diz: “a mutação que, por volta do final do século XVIII, se produziu em toda épistemê ocidental”. (Ibid.,
11
Aqui, não seguirei Foucault em certos pontos, usarei autores que Foucault não cita –
embora seja certo, seja evidente que ele os conhece muito bem – porque não pretendo fazer um
resumo. Foucault não os cita, ele não diz tudo o que sabe.
Veremos três pontos. O XIX será o século do nascimento da biologia – força finita da
vida, a descoberta da força finita da vida –, da economia política – descoberta da força finita do
trabalho – e da filologia, descoberta da força finita da linguagem. Foucault explicita que no
século XVII não podia haver biologia, mas apenas a história natural; não podia haver economia
política, mas apenas análise das riquezas; e não podia haver filologia, mas somente gramática
geral.9 No ponto em que estamos, vocês já podem compreender isso. De fato, se chamo de
biologia a ciência que se funda sobre a finitude da vida, creio que é uma definição correta. Se
chamo de economia política a ciência que se funda sobre a finitude do trabalho, tudo isso não
podia aparecer no século XVII, que, ao contrário, desenvolvia, desdobrava quadros ao infinito:
quadro das riquezas, quadro dos caráteres orgânicos etc. Havia lugar para a história natural,
mas não para a biologia.
Procuremos identificar esses dois momentos decisivos no nascimento da biologia. O
primeiro momento se dá com Jussieu, célebre especialista em plantas, entre outros. O que
acontece? De uma certa maneira, eles pensam ainda em termos do século XVII, ou seja, em
séries de plantas, a grande série contínua das plantas – ou a grande série animal –, na qual se
passa de uma espécie a outra, dum gênero a outro, duma classe a outra etc., por meio da
transição contínua. Quadro dos seres vivos que se desenvolve ao infinito. Imediatamente vem
esta questão: o que os impede, no [pensamento] século XVII,10 de serem evolucionistas, de
afirmar que há uma história que nos faz passar de um termo da série ao termo seguinte? É
preciso até inverter a questão, ela nem se coloca. É a própria série que os impede de serem
evolucionistas. Não há história do vivo, há a história natural, história da natureza. E no que ela
p. 284). Segundo Foucault, enquanto a mutação da história natural e da gramática geral “se fez bruscamente”, o
domínio das riquezas sofreu mutação mais lenta: “o modo de ser da moeda e da riqueza, porque ligado a toda uma
práxis, a todo um conjunto institucional, tinha um índice de viscosidade histórica muito mais elevado. Os seres
naturais e a linguagem não necessitaram do equivalente da longa operação mercantilista para entrar no domínio da
representação, submeter-se às suas leis, dela receber seus signos e seus princípios de ordem”. Ibid., p. 247.
9
“Seria falso — sobretudo insuficiente — atribuir essa mutação à descoberta de objetos ainda desconhecidos como
o sistema gramatical do sânscrito, ou a relação, no ser vivo, entre as disposições anatômicas e os planos funcionais,
ou ainda o papel econômico do capital. Nem seria mais exato imaginar que a gramática geral tornou-se filologia,
a história natural, biologia, e a análise das riquezas, economia política, porque todos esses modos de conhecimento
retificaram seus métodos, se acercaram mais de perto do seu objeto, racionalizaram seus conceitos, escolheram
melhores modelos de formalização — em suma, porque se teriam desprendido de sua pré-história por uma espécie
de autoanálise da própria razão. O que mudou, na curva do século, e sofreu uma alteração irreparável foi o próprio
saber como modo de ser prévio e indiviso entre o sujeito que conhece e o objeto do conhecimento”. Ibid., p 346.
10
Trata-se sempre da “épistemê do século XVII”, já que, com Jussieu, estamos na 2ª metade do século XVIII.
12
consiste? Consiste no desenvolvimento [développement] de uma série onde cada elemento, cada
termo da série tem seu lugar e cada lugar tem um termo. A própria ideia de que um termo possa
passar a outro [tornar-se outro] é uma ideia estritamente desprovida de sentido do ponto de vista
da série. A disposição dos seres vivos em séries contínuas exclui toda história na qual um
vivente evoluiria ou uma espécie se transformaria em outra. A série é a ordem dos lugares de
cada espécie na continuidade, na continuidade da natureza; não há nenhum lugar para uma
história, é um ponto de vista que a exclui.
Ora, o que acontece com Jussieu? Dá-se cada vez mais importância para dois fatos (não
que não fossem conhecidos antes, já eram conhecidos por Lineu, representante da história
natural clássica): os caráteres orgânicos, numa mesma espécie, são coordenados uns com os
outros e hierarquizados, ou seja, há um caráter, numa dada espécie, mais importante do que os
outros, e que, de certo modo, determina os outros. Por exemplo, introduzindo o ponto de vista
das funções, o mais importante nas plantas é a função de reprodução. Ela se exprimirá no caráter
orgânico chamado cotilédone, na ausência de cotilédone ou na presença de dois deles. Pois bem,
podemos pôr esse caráter em série, mas ele, sendo mais importante do que os outros,
determinará outros caráteres que lhe são correlativos. Haverá ao mesmo tempo correlação dos
caráteres no nível da espécie, e primado de um caráter sobre os outros. Correlação e hierarquia.
Para o animal, alguns pensam que a função essencial, o caráter dominante, seja a alimentação.
Se a função alimentar é dominante, os dentes serão um caráter principal. Entretanto, não é
qualquer caráter que se liga a outro. Um tipo de dentes implicará um tipo de musculatura, de
estômago, de intestino. Há, portanto, coordenação e subordinação dos caráteres no nível das
espécies. Vejam: à medida que esse ponto – que já era conhecido, eu repito, na série do XVII –
passa para o primeiro plano, a série é fraturada. Ou seja, tudo se passa como se os termos da
série fossem (aqui eu peso minhas palavras) atraídos por uma profundidade, e a série se
encontrasse fraturada a cada momento. Não temos mais ou tendemos a não ter mais uma série
de caráteres em continuidade uns com os outros e sem evolução; se cada ser tem um lugar e
cada lugar tem um ser bem fixo, não há história. Aqui, ao contrário, os caráteres, numa espécie,
se coordenam e se hierarquizam, formam uma espécie de peso que fratura a série e carrega cada
ser vivo – mas o que significa cada ser vivo? – para uma profundidade que não é mais serial.
Se eu fizesse um desenho [escreve no quadro], eu faria a minha série, assim, e em
seguida, a cada momento em que valem a coordenação e a subordinação dos caráteres, há uma
espécie de salto que irá fraturar a série, fazer descer o vivente em profundidade, ou seja, que
revelará uma nova dimensão. Dessa forma, num certo sentido, a ideia de uma continuidade
13
desenvolvível em série é fundamentalmente ameaçada nesse primeiro momento. A série de
superfície se opõe ou começa a se opor uma abordagem do vivente completamente diferente,
no qual ele deixa a superfície e mergulha em virtude do peso de seus caráteres coordenados e
hierarquizados. Ela escapará da série. São as palavras usadas por Foucault. Jussieu fratura a
série.11
Há, entretanto, um paradoxo importante: haverá muitos esforços para salvar a série
contínua. A época de Jussieu – e ele mesmo – imagina séries ramificadas, ou seja, séries com
descontinuidades, ramos. Logo, a série se torna infinitamente mais complexa. Há outra maneira
prodigiosa de tentar salvar a série: introduzir a história. Esse ponto da análise de Foucault é
muito importante porque diz respeito ao seu método, a todo seu método de análise, notadamente
seu método relativo aos enunciados. Veremos isso mais tarde. A série repelia fundamentalmente
a história. Repito, cada ser tinha nela seu lugar fixo, cada lugar era determinado por um ser e
não havia passagem de um a outro. Quando a série sofre fraturas, o estranho modo de salvar a
série será introduzir nela a história. De qual modo? Descobrindo uma força de vida que se
definiria como tendência à composição cada vez mais diferenciada, uma tendência da vida a
compor organismos cada vez mais diferenciados, ou seja, organismos nos quais os caráteres
apresentem um máximo de correlações e de subordinações.
A força organizadora da vida percorre a série para produzir organismos mais e mais
complexos, ou seja, caráteres coordenados e subordinados. O que é isso? É Lamarck. Passo
rapidamente, pois não quero de modo algum resumir o pensamento dele. Interessa-me a maneira
pela qual Foucault situa Lamarck, como a primeira aparição real, a primeira aparição
incontestável do evolucionismo. Lamarck ainda pensa o ser vivo sob a forma das espécies
postas em desenvolvimento em série. Nesse sentido ainda é um homem do século XVII, da idade
clássica. Diante dos perigos, das ameaças que pesam à sua época sobre a ideia de série, o homem
a salva fazendo da vida uma força histórica, definindo-a como força organizadora que não cessa
de produzir organismos mais e mais diferenciados, reunindo, cada um em seu lugar, um máximo
11
“A partir de Jussieu, de Lamarck e de Vicq d’Azyr, o caráter, ou antes, a transformação da estrutura em caráter
vai basear-se num princípio estranho ao domínio do visível — um princípio interno, irredutível ao jogo recíproco
das representações. Esse princípio (ao qual corresponde, na ordem da economia, o trabalho) é a organização. Como
fundamento das taxinomias, a organização aparece de quatro modos diferentes. [...]”. Ibid., p. 313. “Classificar,
portanto, não será mais referir o visível a si mesmo, encarregando um de seus elementos de representar os outros;
será, num movimento que faz revolver a análise, reportar o visível ao invisível, como à sua razão profunda, depois
alçar de novo dessa secreta arquitetura em direção aos seus sinais manifestos, que são dados à superfície dos
corpos”. Ibid., p. 315. “Vê-se como, fraturando em profundidade o grande quadro da história natural, alguma coisa
como uma biologia vai tornar-se possível; e como também poderá emergir nas análises de Bichat a oposição
fundamental entre a vida e a morte”. Ibid., p. 319.
14
de caráteres coordenados e subordinados. De modo que – sim, é curioso, é preciso dizer isso a
respeito de todo pensador – ele pertence a uma idade, por um lado, e a outra, por outro. Lamarck
pertence plenamente à história natural e, entretanto, introduz na história natural o que esta mais
repugnava: um processo histórico. Por que ele introduz esse processo? Para salvar a série.
Tanto que Foucault se sobressai, é constante nele. Aqui, ele excele no seguinte ponto, e
isso faz parte de sua teoria dos enunciados: é fora de questão estabelecer uma linha de Lamarck
até Darwin, pois eles não pertencem à mesma formação. Isso pertence à sua concepção de
enunciado, porque enunciados aparentemente semelhantes pertencem de fato a famílias
completamente diferentes. De fato, veremos que Darwin é um outro solo. Como diria Foucault,
um outro solo arqueológico.12 Só se pode compreender o lamarckismo a partir do solo da série
contínua. Ora, esse solo vem diretamente do século XVII e o lamarckismo, assim como, doutra
maneira, Jussieu, exprime simplesmente os abalos que a série continua experimenta num
primeiro momento.
Resumindo o primeiro momento, com relação à biologia, eu diria que a série tende a se
fraturar em benefício de uma profundidade na qual o ser vivo se redobra, se rebate. Faço um
esquema muito simplificado: eis a minha série contínua [escreve na lousa] que excluía a
história, pois cada ser da série estava fixo; em seguida, à medida que a coordenação e a
subordinação dos caráteres ganham mais importância no nível de um termo [da série], no nível
de uma espécie, a série será fraturada; haverá como que uma reorganização em profundidade,
descoberta da profundidade, e a vida não é mais procurada no movimento que percorre a série
contínua, ela é procurada em profundidade no movimento pelo qual o ser vivo se redobra, se
rebate nessa e sobre essa profundidade. Noutras palavras, esse momento introduz o conceito
fundamental de organização. A organização sendo a correlação e a subordinação dos caráteres.
Eis o primeiro momento.
Segundo momento: o grande Cuvier. O que faz o grande Cuvier? À primeira vista, não
muito: substitui a organização pelo plano de organização. O ato fundamental de Cuvier, o
enunciado de base do qual depende, talvez, todo o resto de seu trabalho, é a ideia de que há
planos de organização da vida. O que é esse plano? É o segundo momento. Não se descobrem
mais centros de organização que ameaçam a série, mas planos de organização que fazem com
que não haja mais série, que toda série seja impossível. Cuvier descobre o que chama de
ramificações [embranchements], as grandes ramificações da vida.
12
Cf. Ibid., p. 506.
15
À primeira vista, poderíamos afirmar que ele se move sempre numa generalidade
crescente; ou seja, para além da espécie há gêneros, para além dos gêneros há classes etc. Mas
ele vai além, ele identifica ramificações. De modo algum, seria um contrassenso, pois a
ramificação é um conceito de natureza completamente diferente, é um conceito que não está de
modo algum na mesma linha que os outros, pois, ao contrário, ele tornará inúteis as
classificações e colocará em questão a classificação. E o que é a ideia de ramificação? É a de
que a vida é inseparável de planos de organização que se excluem uns aos outros. Isso é
importante, significa dizer que a vida não é apenas uma força organizadora, como disse
Lamarck, mas uma força dispersiva. A finitude da vida é sua força dispersiva. A vida procede
segundo um pequeno número de planos de organização irredutíveis e excludentes uns em
relação aos outros. Cuvier distingue quatro planos (isso variará bastante, mas quatro é o número
consagrado): vertebrados, moluscos, articulados, zoófitos. Os critérios das ramificações
também irão variar ao longo de sua obra. No final dela, Cuvier pensa que o caráter fundamental
que define as ramificações é o sistema nervoso, mas este é suscetível, justamente, de quatro
organizações, de quatro planos de organização. No caso dos vertebrados, são o cérebro e a
medula selados em envoltório ósseo. Segundo plano: as massas nervosas esparsas,
disseminadas entre as vísceras e reunidos uns aos outros por filetes [filets]. Massas reunidas por
filetes. É uma organização completamente diferente da vertebrada. Terceiro plano: dois cordões
ganglionares unidos a duas glândulas principais acima do esôfago. Quarto: a massa nervosa é
pouco distinta do resto, [indicando] tendência à indistinção.
Bem, a ideia de Cuvier é a de que não se passa de um plano ao outro. Isso é importante
para mim. Como se define o ser vivo? Pela maneira pela qual ele se dobra segundo tal ou tal
plano. Isso é surpreendente em Cuvier, é um artista da dobradura. Vocês verão as consequências
disso na biologia nascente. O ser vivo se define pela maneira como ele se dobra segundo este
ou aquele plano de organização. Essa é a finitude da vida, não há vida senão dobrada ou, noutras
palavras, não há mais séries. As ramificações não se acrescentam às séries como conceitos mais
gerais, elas tornam obsoleta toda colocação em série contínua. Vocês, embriões de vertebrados,
não são dobrados, não são orientados na sua embriogênese da mesma maneira que o embrião
do inseto. Entre esses diferentes planos, há um fosso irredutível, ou seja, cada ser vivo está
imerso na profundidade de seu próprio plano e redobrado sobre ele. A série fica completamente
rompida. Esse é o segundo momento no qual começará um período da biologia, do nascimento
mesmo da biologia, de uma riqueza extrema e muito feliz e, embora vista com maus olhos, era
16
uma biologia cheia de polêmicas – isso ainda não acabou hoje. São polêmicas que ainda nos
tocam e não devemos considerá-las ultrapassadas.
Vocês veem imediatamente onde quero chegar quando lhes conto todas essas histórias
de dobras. Tenho segundas intenções: fundamentar a comparação entre Foucault e Heidegger,
é claro, mas também, talvez, não se espantem se chegarmos à conclusão de que, por exemplo,
os problemas fundamentais de hoje que concernem ao código genético e à microbiologia são a
maneira pela qual as cadeias do código genético se dobram e se desdobram. O dobrar e
desdobrar parecem ser as figuras constitutivas da vida, o que não quer dizer que, no caso do
código genético, seja a mesma coisa, será certamente outra formação biológica. Mas talvez
toquemos em um problema sobre o qual vale a pena se deter.
Cuvier tinha um inimigo, era Geoffroy Saint-Hilaire,13 grande biólogo. Eis que Saint-
Hilaire diz: há unidade de composição. É um enunciado dele, há unidade de composição para
todos os seres vivos, quaisquer que sejam. Logo, ele opõe a unidade de composição à
pluralidade finita dos planos de organização. Há um único plano de composição, enquanto
Cuvier defendia a pluralidade determinada de quatro planos de organização. Alguém me diria:
isso significa que Cuvier é fixista, não crê na evolução e que Saint-Hilaire tem razão. Não,
nenhum dos dois crê na evolução. Veremos que a evolução será ainda outra coisa. Esse ponto
é preciso explicar. Quando Saint-Hilaire diz que há unidade do plano de composição, temos
vontade de dizer: ele retorna à série contínua. Não, não é isso, diríamos, no estilo de Foucault,
que Saint-Hilaire está plenamente na mesma idade de Cuvier, estão na mesma formação. Saint-
Hilaire diz que Cuvier distingue quatro planos de organização, mas, por meio da força da dobra,
pode-se sempre passar de um plano ao outro. Aqui a coisa fica muito interessante. Há uma
página muito bela e cômica de Saint-Hilaire em que ele diz: vou lhes mostrar como se passa do
vertebrado ao cefalópode. Não lhes digo o que é o cefalópode, mantenhamos o mistério, vão
consultar o dicionário Larousse. O cefalópode não é grande coisa, mas passar do vertebrado ao
cefalópode, alguém dirá que é exagero. Eis a sua receita, cito apenas o início do texto: “basta...”
– Geoffroy tem muito humor – “basta levar a cabeça na direção dos pés e a bacia na direção da
nuca”. Ele faz dobras, é surpreendente: com relação às dobras de Cuvier, Saint-Hilaire vai
buscar sob quais condições se pode dobrar um ser vivo para obter os eixos e as orientações de
um outro plano.
13
Étienne Geoffroy Saint-Hilaire. Princípios de filosofia zoológica. Paris: 1830.
17
Nesse ponto explode a polêmica e Cuvier fica furioso. Por quê? Compreendam, estamos
diante de algo fundamental para nós, ou que deveria ser central para Foucault, que é o mesmo
argumento, a existência de dobraduras, que permite a Cuvier dizer que não se passa de um plano
de organização a outro, cada tipo de ser vivo se dobra sobre seu plano de organização, e que
permite a Saint-Hilaire dizer que se passa de um plano de organização a outro fazendo
dobraduras tanto quanto forem necessárias. Ao final de N dobraduras, teremos mudado as
orientações e passado do vertebrado ao cefalópode. Pode-se interpretar a mesma coisa nos dois
sentidos. São as dobras irredutíveis que impõem quatro planos de organização, ou então, é por
meio da dobradura que se passaria de um plano de organização a outro. Evidentemente, não são
as mesmas dobraduras, senão não seria uma ideia séria. De fato, Saint-Hilaire é surpreendente,
faz dobraduras sobre elementos anatômicos, notadamente sobre elementos ósseos; ele é um
anatomista, faz dobraduras em esqueletos.
Von Baer responde imediatamente a Saint-Hilaire afirmando que não se pode fazer
dobraduras em tecidos, mas apenas em elementos sólidos. Não há um único tecido que suporte
essas dobraduras. Logo, a teoria de Saint-Hilaire só funciona reduzindo o ser vivo ao seu
esqueleto. Se considerarmos o entorno do esqueleto, suas cinturas, os músculos e os tecidos,
evidentemente não poderemos fazer uma dobradura, rasgaríamos os ligamentos.
Logo, para falar como Foucault, Saint-Hilaire e Cuvier pertencem ao mesmo solo
arqueológico, à mesma família de enunciados, apesar de dizerem o contrário, pois têm em
comum o procedimento de rebater e de não cessar de rebater o ser vivo sobre... ou de dobrá-lo
sobre planos de organização ou sobre planos de composição. De todo modo, o ser vivo é
redobrado em profundidade ao invés de se espraiar em superfície ao longo de uma série. É o
que há de comum em Cuvier e em Saint-Hilaire. Ademais, há em comum a recusa de qualquer
evolucionismo, pois, para Saint-Hilaire, não se pode passar de um modo de dobradura a outro
completamente diferente, mas esses modos sucessivos, esses diferentes modos de dobrar
marcam o grau de desenvolvimento. Ora, cada tipo de animal tem um grau de desenvolvimento
assinalado e ele não o ultrapassará, ficando condenado a certo plano de organização. O que
Cuvier chamava de plano de organização são, para Saint-Hilaire, os graus de desenvolvimento
de um único e mesmo plano de composição. Vejam que, nesse ponto, cada um dos dois toma
uma parte do outro, é muito bonito. Ambos recusam toda evolução. E mais: assim como Cuvier
e Von Baer fundaram uma ciência fantástica, a embriologia, Saint-Hilaire fundará uma ciência
fantástica que fará plenamente parte da biologia: a teratologia ou ciência dos monstros. Pois, se
cada plano de organização é apenas um grau de desenvolvimento para um mesmo e único plano
18
de composição (na perspectiva de Saint-Hilaire), pode sempre haver um ser vivo que seja
capturado em seu desenvolvimento por circunstâncias exteriores, por acidente ou doença. E o
que é um mostro? Na grande definição de Saint-Hilaire, trata-se de um ser fixo ou retardado em
seu desenvolvimento, ou seja, que não atingiu seu desenvolvimento, impedido por uma causa
exterior.
Por exemplo, há uma monstruosidade muito interessante em Saint-Hilaire, ele diz que
um ser permaneceu no estágio crustáceo quando não ultrapassou o grau de desenvolvimento do
crustáceo. O crustáceo tem muitos enunciados e fórmulas muito espirituosas. Ele, em geral,
consiste em possuir a pele sobre os ossos. De fato, há um tegumento muito fino sobre a sua
carapaça, e a carne está no interior. Logo, parar o desenvolvimento no estágio crustáceo, é ter
a pele sobre os ossos, é uma doença, uma monstruosidade conhecida. Ou então, em embriologia,
sabe-se que as mãos se desenvolvem antes dos braços. Suponha que um embrião se desenvolve
e que desenvolve suas mãos normalmente, e que, em seguida, haja um acidente no momento
em que está fabricando seus braços: ele terá mãos perfeitamente normais e braços atrofiados. É
uma monstruosidade conhecida. Pois bem, é a ilustração mesma de Saint-Hilaire: em seu
desenvolvimento, o embrião permaneceu fixo no estágio da formação das mãos.
Abro um parêntese inútil, relativo à epistemologia. Quando uma disciplina célebre
inventa ou diz que inventa as noções de fixação e de regressão, explica as neuroses por meio
dos fenômenos de fixação e de regressão, é preciso dar a cada um o que lhe pertence, ou seja –
o que já é plenamente original –, é a aplicação ao domínio das neuroses de conceitos tipicamente
teratológicos que datam de Saint-Hilaire, a saber, a regressão, a interrupção do
desenvolvimento, a fixação do desenvolvimento são, segundo Saint-Hilaire, as duas formações
principais do monstro. Ora, é bem conhecido que os neuróticos são monstros.
Bem, vejam, em torno desse tema da dobradura, posso afirmar: com certeza, eles
conhecem as dobraduras, as dobras, as redobras [replis] da finitude. É a finitude, a dobra, que
se desdobra, redobra-se, me dobra. Enquanto a elevação ao infinito é o que desdobra, se
posiciona [déploie], não mais difícil do que isso, o pensamento do século XVII é um pensamento
do desdobramento, por quê? Porque esse pensamento reage contra o Renascimento e a Idade
Média. Mas não havia nesse período um pensamento da dobra, era outra coisa. De todo modo,
o século XVII afirma o desdobrar como a lei do pensamento claro e distinto, como a lei da ordem.
Se quiserem compreender a ordem, desdobrem as coisas. Considerem o método cartesiano, caro
ao século XVII, e verão nele, a cada vez, a formação de séries, de cadeias, a busca de
continuidades. Tudo isso é um pensamento do desenvolvimento, do desdobrar. Com o XIX,
19
sobrevém o pensamento obscuro da dobra. É preciso dobrar as coisas. Descobre-se então a
finitude. Dobrar o ser vivo sobre o plano de composição ou dobrá-lo sobre um plano de
organização, tudo isso é semelhante.
Meu último ponto: Darwin. Vocês sabem, ele justamente não representa a série. Quando
ele afirma e introduz a história, ou seja, a evolução na biologia, traz algo de novo, ao mesmo
tempo contra Cuvier e Saint-Hilaire. Mas em que Darwin, Cuvier e Saint-Hilaire formam uma
trindade no horizonte de nossa biologia? Quando Lamarck introduziu a história na série para
salvar a ideia de uma série animal, foi um primeiro momento da biologia. O problema de
Darwin era outro, quer dizer, ele aceitava os termos de Cuvier. E quais eram esses termos? A
série procede por meio de pequenas diferenças, mas há grandes diferenças entre planos de
organização. Noutras palavras, há diferenças insuperáveis que rompem todas as séries
possíveis. Compreendem?
Estão cansados? Vou parar um pouco. Vou terminar com Darwin antes de parar, senão
não seremos bem-sucedidos. O que digo terá um ar grotesco para aqueles que leram um pouco
Darwin. Para ele, as pequenas diferenças não contam, ele nunca pensou em restabelecer a série
que procede por pequenas diferenças. Isso pode parecer estúpido, porque é bem sabido que
Darwin, ao contrário do que digo, invoca sempre as pequenas diferenças entre a criança e seus
pais. Sim, ele precisa disso para poder responder à questão: por que as grandes diferenças
aparentemente insuperáveis prevalecem na vida? Por que a vida, que não cessa de produzir
pequenas diferenças, procede, entretanto, por meio de grandes diferenças? Notem que é um
problema que não se podia pensar antes de Cuvier ou de Von Baer.
A resposta de Darwin é uma grande novidade. Ela tem dois passos, consiste em dizer:
se vocês tomarem, não um meio em geral – por exemplo, a água –, mas um território
determinado, uma região determinada dentro de um meio, sob qual condição um máximo de
viventes pode sobreviver? Eis a nova questão de Darwin, que não tem equivalente em Cuvier e
Saint-Hilaire. Entretanto, a resposta reencontrará estes dois. Ela consiste em dizer: os viventes
terão tanto mais chances de sobreviver quanto maior forem sua divergência, quanto mais seus
caráteres divergirem.
Suponham uma região determinada e, nela, duas espécies muito vizinhas, o que significa
que sua alimentação é idêntica ou semelhante. Há uma espécie que triunfará sobre a outra,
liquidando-a. É todo o tema da seleção natural que se apresenta. Elas não poderão coexistir.
Mas se elas forem muito diferentes, terão chances de coexistir e de sobreviver, pois não buscam
o mesmo alimento. É à força de divergências que um máximo de seres vivos pode viver no
20
mesmo território. Noutras palavras, a vida se definirá como tendência a produzir grandes
diferenças por acumulação de pequenas diferenças. É a condição de sobrevivência: tendência a
produzir grandes diferenças. Ou seja, a vida não é mais considerada como força de dispersão,
mas de divergência. Por essa razão Darwin dirá que não é de se surpreender que a vida seja
atravessada por esses tipos de falhas entre planos de organização.
O segundo aspecto da tese darwiniana é a resposta à pergunta: como pode haver história,
transformação? É precisamente a criação de grandes divergências. E como elas podem surgir,
tendo em vista que todo vivente parece já supor planos distintos, planos de organização
distintos? A resposta de Darwin será: não se pode inferir a evolução da espécie a partir da
evolução do embrião. Não se pode aplicar as leis da embriologia porque, nela, as formas já
estão dadas. Somos sempre embriões de uma forma. Por exemplo, o embrião de um lobo
resultará num lobo, mesmo com pequenas diferenças, ao passo que no nível da evolução das
espécies, as formas não são fixas, elas são em si mesmas fluentes. Não há uma espécie que seria
o lobo e em seguida outra. Darwin revolve tudo. Se as espécies são o produto de evolução
operando por meio de divergências acentuadas, não se pode oferecer previamente as espécies,
as formas prévias. A verdadeira revolução de Darwin não é de modo algum o evolucionismo,
mas ter pensado a vida em termos de população e não de formas.14 População qualquer num
dado território. Não há formas prévias. A evolução, precisamente, é que essa população
somente poderá sobreviver na medida em que ela se divide e produz formas divergentes que
permitem aos seus membros sobreviver no território. O evolucionismo de Darwin não tem nada
a ver com o de Lamarck. Pois o de Lamarck é tipicamente um evolucionismo serial que injeta
a história na série, ao passo que o evolucionismo de Darwin sacramenta o desmoronamento das
séries em proveito do redobrar do vivente sobre uma força de vida, força de divergência e de
acusar a divergência. Ora, tudo isso, qualquer nível que seja – seja Cuvier, seja Darwin ou Saint-
Hilaire –, dá-se ao preço dessa dobra do vivente sobre a finitude da vida se faz sempre em
proveito de pôr a vida na morte.
À sombra da morte, a profundidade se cria dessa maneira: teoria das catástrofes em
Cuvier, teoria da seleção em Darwin, teoria das monstruosidades e da suspensão em Saint-
Hilaire. A finitude da vida a colocará em relação fundamental com a morte que o XVII ignorava.
Em outras palavras, o século XVII só podia pensar na morte de modo sábio. O que significa esta
14
“No século XIX, a ideia evolucionista é uma escolha que não mais remete à constituição do quadro das espécies,
mas sobre as modalidades de interação entre um organismo no qual todos os seus elementos são solidários e um
meio que lhe oferece suas condições reais de vida”. FOUCAULT, M. “Sur l'archéologie des sciences. Réponse au
Cercle d’épistémologie”. In: Dits et écrits v. I, pp. 745-46.
21
sabedoria? É a velha sabedoria que nos diz: do que te lamentas? Enquanto não estás morto, não
deves te lamentar. Uma vez morto, não poderás te lamentar. Logo, a morte é um instante. Mas
o que resume essa ideia como sabedoria ou como moralismo é a impossibilidade de pensar na
morte, que é um evento instantâneo. Isso valia para a medicina da época, tinha a sua versão
epistemológica e sua versão científica: a morte é instante decisivo e indivisível. E, mais uma
vez, creio ter dito acerca doutra coisa: quando encontramos em Malraux – retomada por Sartre
– a fórmula célebre “a morte é o que transforma a vida em destino”, longe de ser fórmula
moderna, o que não tira a sua beleza, é plenamente expressão do pensamento clássico, é a morte
como instante que, precisamente, opera essa espécie de transvaloração da vida, a transforma
em destino.
Mas o pensamento do XIX, e talvez ainda o nosso, tem uma concepção da morte
completamente diversa. Assim como o vivente se redobra sobre a finitude, a vida, de alguma
maneira, redobra-se sobre a morte. O que isso quer dizer? O grande livro sobre a morte, em
minha opinião, ainda é um que Foucault gostava e admirava imensamente, Recherches
physiologiques sur la vie et la mort.15 Este livro propôs uma definição célebre da vida, definição
que faz rir, mas somente os imbecis: a vida é inseparável das funções que resistem à morte. Na
época de Bichat, os imbecis – eram numerosos, hoje há ainda mais – diziam: grande círculo
vicioso; definir a vida como o conjunto das funções que resistem à morte supõe, para eles, que
se possa definir a morte independentemente da vida. Bem, a objeção é idiota, ela só valeria se
Bichat mantivesse a concepção clássica da morte. A morte supõe a vida, sim, se a morte é
concebida como instante decisivo que termina a vida, então não vale a definição de Bichat. Mas
ele nos propõe em seu livro, creio, a primeira grande concepção moderna da morte. São dois
pontos: primeiro, a morte não é um instante decisivo que marca o fim da vida, a morte é
coextensiva à vida; segundo ponto que explicita o primeiro: o ser vivo é inseparável das mortes
parciais que o acometem. O que se chama de morte, longe de ser instante decisivo, é sempre o
efeito global de diversas mortes parciais. Há três mortes parciais: a do cérebro, a do pulmão, a
do coração. E a própria vida não cessa, o vivente, ao menos o animal, vive raramente; não há
apenas o sono, mas sonos parciais. O vivente não para de atravessar sonos parciais que são
verdadeiras mortes. E o sono parcial, em Bichat, vem ecoar a morte parcial. A morte tanto é
coextensiva à vida quanto há pluralidade de mortes. Em nenhum desses dois sentidos a morte
não pode ser considerada como instante decisivo e indivisível.
15
BICHAT, M. Recherches physiologiques sur la vie e la mort. Paris: 1801.
22
Biologicamente, o ser vivo só pode ser rebatido sobre a força da vida, sobre sua força
finita na medida em que a morte se inscreve no mais profundo do próprio ser vivo. E isso é algo
que perturbará Foucault profundamente... Creio que vocês encontrarão, em O nascimento da
clínica,16 cinco ou seis páginas sobre Bichat e sua teoria da morte. Tenho o sentimento de que
é, seguramente, uma análise epistemológica do pensamento de Bichat extremamente
interessante. Mas há algo mais, Foucault exprime sua relação com a morte e uma espécie de
adesão a Bichat.
Resumindo, vimos que, com relação à formação da biologia, há dois tempos. Ambos se
agrupam sob a fórmula: quando as forças no homem encontram as forças da finitude. Primeiro
tempo: encontramos a força organizadora da vida, esta que é marcada pela finitude e que
compromete as séries do século XVII. Segundo tempo: essa força se redobra em profundidade
ao mesmo tempo que os viventes se redobram sobre seu plano de organização etc. São as duas
etapas. Ora, Foucault mostra em As palavras e as coisas que aquilo que ocorre no nível da
biologia, também ocorre no nível da economia política e de seu nascimento no século XIX e no
da filologia e de seu nascimento no XIX.
A hipótese de partida, não muito interessante, que eu lhes propus é que, quando
chegarmos a uma confrontação de Foucault com Heidegger, tentarei explicar um pouco o que
Heidegger chama de a dobra. Constataremos que o tema das dobras e do desdobramento é muito
profundo em Foucault. Seremos levados a concluir rapidamente que a origem dessa noção em
Foucault não vem do alemão – o que me parece ser evidente, tendo em vista a utilização muito
diferente que ele faz. Há este encontro entre Foucault e Heidegger, mas a noção de dobra e de
desdobramento tem em Foucault uma origem diferente, qual seja, o desdobramento e a dobra
como duas funções do pensamento, uma que consiste em desenvolver ao infinito segundo o
modo de pensamento clássico, outra que consiste em rebater sobre a finitude conforme um
pensamento que se elabora no século XIX. Eis o primeiro ponto. A esse respeito nos faltaria ver,
mas vocês estão cansados, o equivalente do que vimos para a biologia, na formação século XIX,
a respeito da economia política e da filologia ou da linguística.
Vou muito rápido, apenas para lhes dar pontos de referência. O que acontece na
economia política? Bem, no século XVII, mais uma vez, não há economia política, há análise
das riquezas e o quadro das riquezas que se desenvolve ao infinito ao mesmo tempo que as
16
Trata-se do capítulo VIII, “Abram alguns cadáveres”.
23
necessidades [besoins].17 É claro, trata-se aqui do infinito que não passa dum indefinido. Mas
vimos que o indefinido era uma ordem do infinito, era sem dúvida a ordem mais baixa do
infinito; mas era um infinito, o século XVII é incapaz de pensar fora das ordens do infinito.
“Incapaz” é um elogio e não uma crítica. Na análise das riquezas, é claro, a noção de trabalho
já existe e é utilizada. O trabalho tem importância, mas, tal como é empregado no século XVII,
liga indissoluvelmente duas coisas: o que se poderia chamar de trabalho produção e de trabalho
mercadoria. As duas ideias estão ligadas, não estão separadas, por isso há um grande equívoco
na noção de trabalho no século XVII.
O trabalho é mercadoria. De fato, ele é remunerado, o pagamento do trabalho se chama
salário. Na medida em que o trabalho recebe um salário, ele é mercadoria. Mas, enquanto
produção, é outra coisa, é unidade de medida, unidade de medida do produto. Isso quer dizer
que, nesse estágio da noção de trabalho, ele é essencialmente qualificado: trabalho
manufatureiro, comercial ou agrícola. O trabalho é isso, isso, aquilo. E, finalmente, a função do
trabalho é ser unidade de medida relativa que vincula a troca à necessidade. Vou rapidamente,
hein? O que é a fratura? Assim, há um quadro das riquezas, uma série de riquezas em que o
trabalho, tal como é concebido, assegura a circulação das riquezas no quadro.
A grande fratura se dá com Adam Smith.18 É o primeiro momento da formação século
XIX.19 Aqui também haverá dois momentos. Smith dissocia os dois aspectos do trabalho,
17
“De sorte que, em última instância, a necessidade — o alimento, o vestuário, a habitação — definia a medida
absoluta do preço de mercado. Ao longo de toda a idade clássica, é a necessidade que mede as equivalências, o
valor de uso que serve de referência absoluta aos valores de troca; é o alimento que afere os preços, dando à
produção agrícola, ao trigo e à terra o privilégio que todos lhes reconheceram”. As palavras e as coisas. Op. cit.,
p. 305.
18
Adam Smith não inventou, portanto, o trabalho como conceito econômico, porquanto já o encontramos em
Cantillon, em Quesnay, em Condillac; nem mesmo lhe faz desempenhar um papel novo, pois dele também se serve
como medida do valor de troca [...]. Desloca-o, porém: conserva-lhe sempre a função de análise das riquezas
permutáveis; essa análise, entretanto, não é mais um puro e simples momento para reconduzir a troca à necessidade
[...] ela descobre uma unidade de medida irredutível, insuperável e absoluta. Desde então, as riquezas não
estabelecerão mais a ordem interna de suas equivalências por uma comparação dos objetos a trocar, nem por uma
estimação do poder próprio a cada um de representar um objeto de necessidade [...] elas se decomporão segundo
as unidades de trabalho que realmente as produziram. As riquezas são sempre elementos representativos que
funcionam: mas o que representam finalmente não é mais o objeto do desejo, é o trabalho”. Loc. cit.
19
Na verdade, neste primeiro momento representado por Smith, o que Smith separa são o motivo da troca (a
necessidade) e a medida permutável: “Em relação aos seus predecessores, a análise de Adam Smith representa um
desfecho essencial: ela distingue o motivo da troca da medida da permuta, [distingue] a natureza do que é trocado
das unidades que permitem sua decomposição”. Ibid., p. 308 (trad. mod.). Troca-se, é verdade, diz Foucault,
“porque se tem necessidades: sem elas, o comércio não existiria. [...] As necessidades e a troca de produtos que
podem responder a elas são sempre o princípio da economia: são seu primeiro motor e a circunscrevem; o trabalho
e a divisão que o organiza não passam de seus efeitos. Mas, no interior da troca, na ordem das equivalências, a
medida que estabelece as igualdades e as diferenças é de natureza diversa da necessidade”. Ibid., pp. 307-8, grifo
nosso. Smith deixa claro como é o seu giro de perspectiva: “As quantidades iguais de trabalho são sempre iguais
para aquele que trabalha” (SMITH, A. apud. FOUCAULT, M. Op. cit., p. 305). Ou seja, Smith põe o valor do
ponto de vista de quem trabalha, e não dos objetos da produção e da troca (cujo motivo é a necessidade). A mesma
hora de trabalho de um mesmo indivíduo pode ser empregada para produzir um ou muitos alfinetes, conforme os
24
aspecto salariado e aspecto unidade de medida.20 De modo que o texto mais importante de Smith
consiste em nos dizer que o trabalho, seja bem ou mal pago, a unidade de trabalho permanece
idêntica. Isso implica no que Marx chamará de o golpe [coup] genial de Adam Smith, ou seja,
ter definido o trabalho como essência subjetiva da riqueza, ter liberado o trabalho abstrato como
não sendo qualificado como este ou aquele.
Em textos célebres, Marx nos diz: a economia política começa com Smith, pois ele
trouxe à luz o trabalho abstrato e, portanto, a força de trabalho tout court.21 E aqui, acrescenta
Engels num texto muito interessante, Adam Smith é o Lutero da economia política, pois a
concepção da força de trabalho simplesmente [tout court], ou a essência subjetiva da riqueza, é
aproximadamente a mesma operação que Lutero fez com a religião. Ele substituiu a religião
exterior pela religiosidade interior, que é, de certa maneira, uma religiosidade qualquer, a
essência subjetiva da religião. Do mesmo modo, a ruptura de Smith com o século XVII, segundo
Marx, é a da riqueza objetiva. Smith desprendeu da riqueza objetiva a essência subjetiva sob a
forma do trabalho abstrato, do trabalho simplesmente. Em outras palavras, com Smith, graças
à dissociação dos dois aspectos do trabalho: trabalho assalariado e atividade de produção,
trabalho mercadoria e trabalho produtor, o trabalho torna-se unidade de medida... [interrupção
na gravação]
Aqui também há uma operação de dobradura. Há páginas de Marx nas quais ele explica
muito bem, chama isso poder de fada [féerie], o poder mágico por meio do qual o capital se
apropria do trabalho. A fantasmagoria. Essas espécies de redobramentos do trabalho sobre o
meios e técnicas de produção empregados. O trabalho “entendido como jornada, esforço e fadiga, é um numerador
fixo: só o denominador (o número de objetos produzidos) é capaz de variações”. Loc. cit., grifo nosso.
20
Na verdade, Smith não distingue trabalho assalariado do trabalho produção, ele ainda está preso ao primado da
representação: “Na análise de Smith, o trabalho devia seu privilégio ao poder que se lhe reconhecia de estabelecer
entre os valores das coisas uma medida constante: permitia fazer equivaler, na troca, objetos de necessidade cujo
aferimento de outro modo teria sido exposto à mudança ou submetido a uma essencial relatividade. No entanto, só
podia assumir tal papel à custa de uma condição: era preciso supor que a quantidade de trabalho indispensável
para produzir uma coisa fosse igual à quantidade de trabalho que essa coisa, em retorno, pudesse comprar no
processo da troca. Ora, como justificar essa identidade, em que fundá-la a não ser sobre uma certa assimilação,
admitida na sombra mais que esclarecida, entre o trabalho como atividade de produção e o trabalho como
mercadoria que se pode comprar e vender? [...] Essa confusão, em Smith, tinha sua origem no primado concedido
à representação: toda mercadoria representava certo trabalho, e todo trabalho podia representar certa quantidade
de mercadoria. A atividade dos homens e o valor das coisas comunicavam-se no elemento transparente da
representação. É aí que a análise de Ricardo encontra seu lugar e a razão de sua importância decisiva”. Ibid., pp.
347-8.
21
MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos, terceiro manuscrito: “Propriedade privada e trabalho”. Nesse
mesmo trecho, Marx acrescenta que se deve à economia política, a Smith, reconhecer que o capital não reside na
particularidade natural das coisas, mas é abstrato, genérico, e que a propriedade não é essência externa ao homem,
mas é trabalho. Online em: marxists.org/portugues/marx/1844/manuscritos/cap03.htm.
25
capital são, nesse momento, a diferença fundamental entre Ricardo e Marx?22 Do mesmo modo
como Saint-Hilaire e Cuvier, assim como Darwin e Cuvier pertencem ao mesmo solo
arqueológico, Marx e Ricardo pertencem ao mesmo solo arqueológico. Pois Marx fará a
operação inversa, fará a dobradura inversa, dobrar o capital sobre o trabalho, reinterpretando a
distinção trabalho assalariado e trabalho produtor, trabalho mercadoria e trabalho produção.
Marx dirá que a distinção é completamente outra. Ricardo via sim uma distinção, mas a
verdadeira distinção é outra diferente da qual Ricardo acreditava. Ela consiste no fato de o
trabalhador assalariado receber salário apenas por uma parte de seu trabalho abstrato. Ele recebe
um salário igual à subsistência necessária para ele e sua família. Mas ele trabalha sempre, por
definição, mais do que o tempo pelo qual é pago. Em outras palavras, Marx não faz mais uma
diferença trabalho-mercadoria, trabalho-produtor, mas uma diferença – essa é a novidade –
entre trabalho assalariado e trabalho não pago, trabalho mercadoria e trabalho não pago, este
último irá, de fato, pertencer ao capital. Ao pé da letra, ele faz a dobra inversa.
Tenho vergonha porque o que digo é muito sumário. Mas creio que não seja falso, pelo
menos o que eu disse sobre as duas dobraduras. Vocês compreendem como a economia política
também aparece quando as forças no homem se redobram sobre a força de trabalho com as duas
operações complementares: ou o trabalho dobrado sobre o capital ou o capital dobrado sobre o
trabalho. A parte do capital que se dobra sobre o próprio capital é o que Marx diz se tratar do
mais-valor. Quando lhe perguntaram como ele podia distinguir no tempo a parte de trabalho
assalariado pago e a parte de trabalho extorquida, já que não se distinguem, Marx não terá
dificuldade em responder que o mais-valor é a própria condição do trabalho assalariado. Logo,
não se pode, evidentemente, dizer que isto é trabalho pago, aquilo é trabalho explorado,
22
Em termos ricardianos, diz Foucault, o valor não pode ser definido como na idade clássica a partir do sistema
de equivalências, cuja base é a ideia de que as mercadorias têm a capacidade de se representarem umas às outras,
numa continuidade. Na episteme moderna, o “valor deixou de ser signo, tornou-se produto”, pois está na proporção
do trabalho nele empregado. Para Ricardo, “se as coisas valem tanto quanto o trabalho que a elas se consagrou ou,
pelo menos, se seu valor está em proporção a esse trabalho, não é porque o trabalho seja um valor fixo, constante
e permutável sob todos os céus e em todos os tempos, mas sim porque todo valor, qualquer que seja, extrai sua
origem do trabalho. [...] Circulado nos mercados, trocando-se [...] os valores realmente têm ainda um poder de
representação. Extraem esse poder, porém, doutra parte [...]”. As palavras e as coisas, p. 349. Smith ainda
confundia o fato de o trabalho ser analisável em jornadas de subsistência (o trabalho assalariado pago) com o valor
posto nas mercadorias pelo trabalho produção, e afirmava existir uma equivalência entre o primeiro e o valor de
troca da mercadoria. Preso ao quadro da representação, Smith via uma continuidade entre a necessidade do
trabalhador e a necessidade que se expressa na troca. Noutras palavras, projetava esta última (que se assemelha,
de fato, a um sistema de equivalência dotado de continuidade) na primeira. No que diz respeito às condições de
possibilidade do pensamento, diz Foucault, Ricardo dissociou formação do valor e sua representatividade. Cf. ibid.,
p. 351. Em termos marxianos, Smith não distingue a porção da jornada de trabalho que é alocada para reproduzir
a força de trabalho (o sustento do trabalhador e de sua família) da porção da jornada que é apropriada pelo dono
dos meios de produção para remunerar o capital neles investido (o mais-valor ou mais-valia).
26
extorquido. Há dois modos de dobradura. Bem, digo tudo isso para levá-los a ler os trechos
sobre Smith e Ricardo em As palavras e as coisas.23
Por fim, o que acontece com a filologia? O pensamento do XVII era verdadeiramente um
pensamento, como dizer, da ciência geral ou universal, do saber geral ou universal. Análise
geral das riquezas, gramática geral, série geral dos seres vivos, o termo geral indica aqui uma
ordem de infinidade. Com o século XIX, o geral é substituído pelo comparado. Os planos de
organização são comparados, seja porque se colocam como irredutíveis, seja o contrário,
redutíveis. A anatomia torna-se comparada. A economia, comparada. Os modos de produção e
a filologia se tornam comparados.
Como se constitui, então, a filologia? Se retomarmos nossos dois tempos, no primeiro
tempo, o que romperá a gramática geral e seu quadro? O quadro da gramática geral é fundado
no século XVII com base na determinação das raízes. São as raízes que constituem o quadro que
se desenvolve, o quadro que se desdobra das línguas e que permitirá obter uma gramática geral.
A inversão do fim do século XVIII se dá com o primado das flexões sobre as raízes. A futura
linguística apresenta seu primeiro ato de origem: o estudo das flexões. Isso tem consequências
imensas, é o estudo das flexões que fratura a gramática geral, em proveito de uma filologia
comparada.
No segundo tempo, com Bopp ou Schlegel,24 aparece o redobramento em profundidade
indicado pelas flexões. As flexões são elementos formais que não podem ser definidos nem
pelo que significam, nem pelo que designam, enquanto toda a gramática geral era uma
gramática das designações, das significações. A flexão é elemento formal gramatical puro, do
qual derivam, também nesse caso, planos da língua, e por esse motivo a linguística já é
comparada. Distingue-se dois planos fundamentais em que a linguagem pode se dobrar: as
línguas sem flexão, sem afixos, e as línguas com flexões. Nas línguas afixas, há combinações
de átomos linguísticos que podem ser muito, muito numerosas. Mas, como não há átomos e
cada elemento já é flexional ou flexionado, talvez haja mais combinações. É um problema que
abordaremos em breve. Em todo caso, o primeiro aspecto dessa filologia é a introdução de
elementos formais que não são nem significantes nem designativos, ou, pelo menos, nem
significativos nem designativos.
Disso deriva um segundo ponto: se há tais elementos formais que não designam nem
significam, eles só têm valor na relação de uns com outros. Por exemplo, a flexão dos verbos
23
Cf. Ibid., p. 303 sq. e p. 347 sq.
24
Cf. Ibid., p. 319.
27
[latinos] que terminam com M, S, T, indicadores da primeira, segunda e terceira pessoa, não
valem pelo que indicam, mas pela sua posição distintiva. Valem uns com relação aos outros.
Os elementos formais são indissociáveis das relações nas quais são tomados, esse é o
povoamento dessa nova profundidade. Em outras palavras, faz-se uma dissociação da
linguagem e da letra [lettre]. O século XVII ligava fundamentalmente a linguagem, a gramática
geral, com a letra. Ora, a letra é um átomo autônomo. Aqui, ao contrário, há liberação do som
com relação à letra. Estamos a caminho do fonema, um conjunto de posições, de oposições
distintivas e se define não pelo que representa nem pelo que significa, mas pelas posições
distintivas nas quais entram M, S, T, como flexões. Logo, isso implica na liberação do som com
relação à letra e será condição para a descoberta do que se chamará mais tarde de fonema.
Terceiro aspecto: no século XVII, na gramática geral, a linguagem se definia
verdadeiramente pelo que designava e significava. Agora, a linguagem será apreendida de uma
maneira completamente diferente, não mais como designação ou significação, mas como ação
e, mais profundamente, como querer [vouloir]. Toda a filologia romântica desenvolverá a ideia
do querer de um povo que se exprime na língua. Haverá, ao mesmo tempo, a dispersão das
línguas segundo planos de composição dos elementos formais e o querer finito. Em suma, toda
a linguagem se redobra sobre a força da finitude, em profundidade. O dobrar das línguas
segundo os planos de organização substitui o desdobrar da idade clássica, de tal maneira que
tudo converge em um querer finito que se exprime em línguas diferentes, segundo este ou
aquele povo. Os quereres do povo são bases da linguagem. Schlegel, por exemplo, vai muito
longe nessa direção.
Peço-lhes desculpas por ter ido tão rápido. Quase terminamos o que eu planejava
completar hoje. Concluo rapidamente esse ponto sobre a formação século XIX. Resumindo, eu
diria que ela é exatamente a formação na qual as forças no homem encontram e abraçam as três
forças da finitude e se rebate sobre elas, apropriando-se delas. Então, a combinação de forças
no homem e de forças de finitude dá um composto que é a forma homem. É claro, repito, os
homens já existiam, mas, se vocês compreenderam bem, não é essa a questão. Os homens
existiam, sim, mas não havia a forma homem no século XVII. E deverá durar em seguida? Não
é certeza. Por que não haveriam outras formas? Podemos dizer que haverá outras formas se
houver uma outra formação. Haverá outra formação se as forças no homem entrarem em relação
com novas forças vindas de fora, que não seriam mais as da elevação ao infinito, nem as da
finitude. Nesse momento, se houver ainda outras forças vindas de fora, definir-se-ia uma
terceira formação que não será a forma homem. Então, por comodidade, poderíamos chamá-la
28
de super-homem, porque esse termo tem a autoridade de Nietzsche. Mas isso não quer dizer
que seja realmente Nietzsche. Como diria Foucault, Nietzsche era ao mesmo tempo muito mais
e muito menos do que lhe fizeram dizer. Nem as propostas fascistas atribuídas a ele nem... hum,
era uma coisa muito, muito simples, certamente muito nova, mas muito simples, que consistia
em dizer que, de fato, a forma homem implica e supõe certa relação de forças; se essa relação
muda, não há motivo para a forma homem subsistir. E a prova disso, acrescenta Foucault, era
que na idade clássica ela ainda não existia.
Logo, se ela ainda não existia na idade clássica, por que haveria hoje, ou por que não
dizer que ela não existe mais? Mas não é preciso exagerar, a forma homem não foi grande coisa.
Não falo do homem existente. A morte do homem significa que os homens existentes não se
reconhecem mais na forma-homem. Mas o que isso significa? Mesmo em Nietzsche, o que pode
significar? É a respeito desse ponto que eu estava errado em querer sistematizar Foucault
demasiadamente. É uma série de indicações, é preciso tomar as coisas assim, uma série de
indicações, de evocações, como: “isto lhes diz alguma coisa ou não”? É o que nos resta fazer.
Haveria ainda duas questões: quais novas forças intervêm? Quais novas forças de fora?
Aqui lhes comunico minha perplexidade, vejo uma versão textual de Foucault e outra menos
textual que me parece mais fácil. Há algo que não compreendo, dada a indicação principal que
Foucault nos dá: a filologia no XIX dispersou a linguagem segundo famílias de línguas. É a
filologia comparada. Mas, ao mesmo tempo, ele diz que há um caso especial, o caso exclusivo
da filologia. Preciso lhes dar a referência para que verifiquem sozinhos: é a página 306 e as
seguintes de As palavras e as coisas.25 Ele acrescenta que essa dispersão da linguagem suscitará
como que uma contrapartida. Se a filologia dispersa a linguagem em famílias irredutíveis, a
literatura adquire nova função, e o que chamamos de literatura no sentido moderno do termo é
uma operação que consistem em reunir [rassembler]26 a linguagem. É o termo que ele usa. A
literatura é concebida como a contrapartida27 da linguística.
Meu problema é: por que Foucault diz isso da linguagem e somente dela? Pois, à
primeira vista, vale igualmente para a vida e para o trabalho. Para a vida, vimos que há a força
dispersiva dos planos de organização, não menos do que famílias de línguas. É também
verdadeiro para a economia, a dispersão dos modos de produção e das condições de produção
25
Cf. Ibid., p. 408, “A linguagem tornada objeto”.
26
A tradutora usa ora “reúne” (p. 421), ora “congrega” (p. 535).
27
Foucault usa o termo contestation: “A literatura é a contestação da filologia (de que é, no entanto, a figura
gêmea): ela reconduz a linguagem da gramática ao desnudado poder de falar, e lá encontra o ser selvagem e
imperioso das palavras”. Ibid., p. 415.
29
irredutíveis uns aos outros. Foucault se explica dizendo que, nos dois outros casos, há tal
dispersão sob a influência de circunstâncias exteriores, enquanto, no caso da linguagem, há
razões internas. Mas não me parece... Desculpem-me por assim dizer, não é uma objeção, mas
algo que não entendo. Se vocês compreendem, tanto melhor, digam-me... Não vejo por que ele
põe aqui a linguagem e a literatura, pois elas parecem definir, ao contrário, a formação século
XX ou XXI. O que acontece? [Por isso eu gostaria de propor um esquema muito mais simples].
É verdade que a formação século XIX só reconhece as forças de finitude dispersando os
produtos. Por isso faz uma ciência comparada: famílias de línguas, planos de organização,
modos de produção. Se pergunto agora: com quais novas forças, vindas de fora, as forças no
homem entram em relação? Eu diria que produzir uma reunião não é específico da linguagem.
Empregando a mesma palavra que Foucault, reunião [rassemblement] da vida, reunião do
trabalho, reunião da linguagem. Não vejo por que Foucault insiste em separar a linguagem...
Sobretudo porque isso complicará, em seguida, a história, a questão do super-homem.
Suponho como hipótese que a vida se reúna sob a forma do código genético. A vida se
reúne no código genético, que é o lugar de dobramento ou de dobradura fundamental. É um
novo modo da dobra, maneira completamente diferente de dobrar. O trabalho se reúne nas
máquinas ditas de terceira espécie, máquinas cibernéticas, máquinas de computação. Ou, de
acordo com o que eu lhes dizia na última aula, se reúne no silício.28 A vida é carbono, mas há
a revanche do silício. A partir do século XIX, perguntamos: por que a fórmula água-carbono
triunfou? É o problema da vida. Se há um problema da vida, é o sucesso surpreendente da
fórmula água-carbono, ou melhor, hidrogênio-carbono. Isso não é evidente, porque não
aconteceu doutro modo? Foi por razões muito próximas [das cadeias genéticas], do código
genético. Era preciso cadeias carbonadas para haver estabilidade, as relações desejadas com o
calor etc. Mas por que o carbono e a relação carbono-hidrogênio? Tudo isso era muito
favorável, mas não exclui outras formas vitais. Há muito tempo os microbiologistas, a química
biológica, se perguntam: por que não o silício? Então, eles dão explicações que são
convincentes estatisticamente, até certo ponto. Sim, o carbono representava maiores chances
para o vivente, para que ele se forme e se desenvolva. E o silício? Ele seria viável sob outra
combinação, mas seria difícil, ou seria preciso pressões fantásticas para combinar o silício com
o hidrogênio. Mas houve tais pressões na formação do mundo. A chance do silício, ela pode
28
O silício é empregado na fabricação de compostos chamados semicondutores, usados largamente em
componentes eletrônicos (transístores etc.), incluindo aqueles usados em computadores.
30
não ser... Quando perguntamos se há outras formas de vida, não significa “há marcianos”, mas
há formas vitais fundadas em algo diferente do hidrogênio-carbono?
O que há de interessante hoje nas novas máquinas é a revanche do silício. É incrível, o
silício retorna. Preferiu-se o carbono, mas em seguida: bum! [risos] Devido a um expediente
tecnológico, é a revanche do silício. Não construímos memórias com carbono, mas com silício
e creio que isso seja fundamental. Eu diria que o trabalho se reúne nas máquinas de terceira
espécie, ou, em termos gerais, reúne-se no silício. A linguagem se reúne naquilo que hoje
chamamos de literatura. Mantenhamos essa ideia de Foucault, mas acrescentando-lhe os dois
outros saberes.
O que é essa força de reunião? É o que poderíamos chamar de finito ilimitado. Na falta
de um termo melhor, hein? Seria preciso encontrar outra palavra, mas não se trata do finito nem
do infinito. E o vemos muito bem, mesmo ao nível do código genético. Qual é a fórmula do
finito ilimitado? Os componentes nunca são do mesmo nível e de mesma natureza que o
composto. É a base do código genético. Se vocês compreenderem isso, verão como um número
finito de componentes pode resultar num número praticamente ilimitado de compostos. Pois,
de fato, se os componentes são doutra natureza e doutro nível que o composto, podemos analisar
o composto numa infinidade de maneiras, mesmo que seus componentes sejam em número
finito. É o que se chama de combinatória. É próprio de uma combinatória operar com elementos
finitos no certo nível A para produzir compostos ilimitados de nível B; é próprio do código
genético, da linguagem, de... bem.
Bom, a vida se reúne no código genético, até aqui não há problemas, há unidade de
composição do código genético. Ele se distingue por seus dobramentos etc. O que nunca se
exclui das pesquisas genéticas de hoje? Que um código genético qualquer capture um fragmento
de código doutro vivente. No exemplo sempre admirável da vespa [guêpe] e da orquídea, esta
captura um fragmento de código genético daquela, há mesmo captura recíproca, o que se
poderia chamar de reunião da vida no código genético. E isso está mudando toda a concepção
de evolução hoje, essas capturas recíprocas de código.
Suponham então que as forças no homem entrem em relação com esse novo tipo de
forças que chamo por comodidade de “finitas ilimitadas”, reunião da vida no código genético.
Reunião do trabalho no silício, da linguagem na literatura. Qual seria o composto? Pois bem,
não é Deus nem o homem. No fim das contas, a forma homem só se desenhava na medida em
que havia a morte nela. Nós vimos isso. Ela somente se desenhava com a união de forças de
finitude.
31
Bem, então podemos sempre chamar isso convencionalmente de super-homem, mas é
uma palavra tão corrompida – não é culpa de Nietzsche – que seria melhor encontrar outra.
Como definir o super-homem? Creio que é preciso dizer três coisas. É aquele que se une ao
silício, ou seja, aquele que cuida das próprias rochas. Por que as rochas? Vocês sabem que o
silício domina o mundo inorgânico, assim como o carbono domina o dos viventes. Isso nos traz
o outro aspecto: ele cuida dos animais. Quem clamou por uma espécie de homem para além do
homem que cuidaria dos animais? É Rimbaud. Cuidar dos animais mesmo.29 Ao pé da letra,
parece-me que – aqui não faço ciência, trago um pouco de poesia – é a captura de um fragmento
de código. Cuidar dos animais não significa se tornar coelho, mas capturar fragmentos de
código exatamente como a orquídea captura um fragmento de código da vespa. Nesse ponto,
vocês veem que os caminhos da evolução mudaram completamente, não se dão por filiação. A
evolução se fará por meio de captura de código, é o que dizem os geneticistas de hoje.
Portanto, meus três aspectos são muito coerentes: responsável pelas rochas, pelos
animais, pela literatura. O super-homem se encarregará dessas coisas, sob a condição de
perguntar o que é a literatura hoje. Foucault nos dá uma definição dela. Eu paro por aqui.
Procurem ver como ele define a literatura em As palavras e as coisas, nas páginas 59, 394 e
397.30 Para ele, a literatura é precisamente uma operação pela qual se encarrega da linguagem.
É essa tríplice reunião que permitiria dar um vago perfil para essa noção imprecisa de super-
homem.
29
“[...] Portanto, o poeta é realmente ladrão de fogo. | Ele é encarregado da humanidade, dos animais mesmo; ele
deverá fazer sentir, apalpar, escutar suas invenções; se o que ele traz de lá possui forma, ele dá forma; se é disforme
(informe) ele dá a não-forma (informe) [...]”. RIMBAUD. A. Carta a Paul Démeny, 15 de maio de 1871.
30
As palavras e as coisas., p. 59, 531, p. 535.
32
GILLES DELEUZE
AULA 8
Aula 8: 18 de março de 1986
[...] Sim. Sobre esta sucessão de três formas: “Deus”, “homem”, “super-homem”, é
preciso ver que não é limitativo. Quero dizer: ela acontece em uma duração muito restrita e
localizada, europeia, uma vez que consideramos o pensamento clássico do século XVII com a
forma-deus, o do XVIII com a forma-homem e, em seguida, a forma super-homem no final do
XIX e início do xx (podemos colocar alegremente o XXI). Mas, mesmo com uma duração restrita,
é-nos revelado que essas formas dependem do que poderíamos chamar de uma arqueologia ou,
melhor ainda, de uma geologia do pensamento. Com efeito, essas formas dependem de certas
operações do pensamento e é interessante para o futuro, para o que nos resta fazer: tentar definir
estes movimentos geológicos do pensamento que produzem as formas que acabei de enumerar.
Eu dizia que, de certa maneira, a forma “Deus” é o produto de um movimento
arqueológico ou geológico do pensamento, que pode se chamar de desdobramento [dépli]. O
desdobrar. E a forma “homem”, se me acompanharam na última aula, é o produto de um
movimento arqueológico ou geológico do pensamento, que pode se chamar de dobra [pli].
Logo, lendo Foucault, não se surpreendam ao observar até que ponto o desdobramento e a dobra
constituem duas espécies de matrizes, mesmo no nível do estilo. Eu diria que a obra As palavras
e as coisas é uma espécie de canto muitas vezes lírico, baseado nestas duas operações: o
movimento de desdobrar [déplier] e o de dobrar [plier], de redobrar [replier]. Tentei mostrar
na última aula como a forma Deus depende de um desdobramento generalizado; como a forma
homem depende de um redobrar-se [repli] generalizado. Como se o pensamento encontrasse
algo que lhe fosse essencial quando se lançou nestes exercícios que consistem em desdobrar ou
dobrar algo. Faltar-nos-ia então um terceiro movimento arqueológico ou geológico do qual
dependeria a forma super-homem.
Pouco importa se falta o termo em Foucault, podemos sempre inventá-lo apenas por
comodidade, e o que deve voltar normalmente ao super-homem não é a dobra, nem o
desdobramento, mas o superdobramento [surpli]. Assim, teríamos nossa trindade conceitual de
movimentos geológicos: desdobrar [déplier], dobrar [plier], superdobrar [surplier]; o
desdobramento, a dobra, o superdobramento [le surpli]. Mas não seria uma totalidade, e sim
movimentos geológicos que corresponderiam a três períodos distribuídos por uma duração curta
e localizada. Desse modo, minha questão – a que gostaria de insistir – para acabar, por hoje, é
justamente a da morte do homem e do super-homem, uma vez que essa história da morte do
2
homem e do super-homem não são coisas assustadoras, mas muito mais simples do que se
dizem.
Além disso, o que Foucault quer dizer no texto O que é um autor? quando afirma:
“vamos conter então nossas lágrimas”?1 Não há motivos para chorar pela morte do homem, por
isso contenhamos nossas lágrimas. Essa afirmação é central para o pensamento de Foucault, já
que, pouco após sua morte, há tantos imbecis que voltam ao fato de que ele acreditava na morte
do homem, que não acreditava em nada. Não se deve exagerar porque a primeira coisa a se
perguntar, quando se fala da morte do homem e a compreende como desaparecimento da forma
homem em proveito de outra forma, é se a forma homem foi assim tão boa. Enfim, a forma
Deus e a forma homem são consistentes, mas, mesmo que falemos de bom ou mau, a forma
Deus foi tão boa para o pensamento, para a maneira de pensar o que existe...
E a forma homem foi tão boa assim? Tudo que pode se desejar para a forma super-
homem, se há uma nova forma nascendo, é que, pelo menos, ela não seja pior do que as duas
anteriores. Ora, há todas as chances para que não o seja; [essa nova forma] terá seus
inconvenientes, mas deve-se lidar com isso de modo calmo. Então, eu retorno ao nosso
princípio geral, porque essas sucessões de formas e de operações geológicas correspondem ao
que gostaria de praticamente consagrar em nossa aula hoje. Tentarei dar consistência a este
movimento do superdobramento, ou seja, esse movimento formador do super-homem,
supondo-o distinto do desdobramento e da dobra.
Nosso princípio geral consiste em que toda forma, seja ela qual for, é um composto de
forças. Se não compreendermos isso, não podemos entender nada do problema que nos ocupa.
Toda forma é um composto de forças, um composto de relações de forças. As forças são
extrínsecas, isto é, não têm interioridade, relacionam-se de fora com outras forças, logo as
relações de forças são extrínsecas. De modo que devemos considerar, no caso da sucessão Deus,
homem, super-homem, o composto das forças no homem, por um lado, e forças do fora, por
outro. As forças no homem entram em composição com forças do fora. Essa é a proposta geral
e, dela, surgem dois problemas: primeiro, de acordo o período considerado, com quais forças
de fora as forças no homem entram em relação? Segundo, considerando forças de fora que
entram relação em tal momento com forças no homem, qual forma deriva dessa relação? Não
será necessariamente a forma homem.
1
FOUCAULT, M. “Qu’est-ce qu’un auteur?” (1969). In: Dits et écrits v. I. Op. cit., p. 845.
3
Tento responder melhor à objeção feita por um de vocês na última vez, a de que “forças
no homem” já pressupõe o homem ou uma forma homem. Não, não se eu tomar forças no
sentido próprio de forças. Posso falar, por exemplo, de forças no animal. O que significa dizer
forças no animal? Bem, tomo observações comuns. Por exemplo, no século XIX, dizem que o
animal se define pela motilidade – força de se mover – e a irritabilidade – força de receber
excitações. Se eu disser que as forças no animal são motilidade e irritabilidade, ainda assim não
tenho nenhuma forma animal. Posso falar de forças no animal significando apenas uma região
do existente, ou seja, uma sede das forças, um ponto de aplicação das forças. A motilidade e a
irritabilidade são forças que têm seu ponto de aplicação no animal, numa região do existente, e
ainda não pressuponho nenhuma forma.
Vejam, não há nenhuma petição de princípio, parece-me, para falar de forças no animal
ou de forças no homem, num momento em que não temos ainda nenhuma forma animal ou
humana. Portanto, do mesmo modo que afirmo “forças no animal”, por exemplo, mobilidade,
motilidade, irritabilidade etc., posso afirmar que “forças no homem” são a força de conceber,
de imaginar.
Tudo bem? Alguma questão? Ótimo. Vou recapitular o que vimos sobre a formação
histórica do século XVII, também chamada de clássica. Este é o esquema que julgávamos
identificar em Foucault: as forças no homem, no sentido do que acabo de dizer, que não
pressupõem qualquer forma, entram em relação com forças do fora. Propus chamar essas forças
do fora de forças de elevação ao infinito. Isso levanta uma série de problemas que resolvemos
vagamente. Primeiro problema: por que as forças de elevação ao infinito são forças do fora,
exteriores às forças no homem? A resposta é simples. O homem é uma criatura finita, se ele
descobre dentro de si uma força de elevação ao infinito, esta não pode vir dele. Observem,
encontro aqui, a rigor, uma das provas da existência de Deus, que é célebre no século XVII sob
a forma: o homem tem o poder de conceber o infinitamente perfeito, isto é, de elevar a perfeição
ao infinito. Ele mesmo não pode dar conta desse poder porque é finito, logo há um ser infinito.
Essa prova é muito bonita, implica adesão unânime, perfeita, mas ela repousa precisamente
nisto: se é verdade que há uma força de elevação ao infinito, o homem não pode dar conta dela,
é uma força de fora, logo Deus existe.
Acabei de explicar rapidamente por que as forças de elevação ao infinito não podem ser
ditas forças pertencentes ao homem: são forças de fora. Segundo problema: por que forças no
plural? Porque se fosse necessário caracterizar o pensamento clássico, creio que seria necessário
fazê-lo afirmando que é um pensamento que não deixou de se propor a distinção de ordens do
4
infinito. O Classicismo é como o grande choque com o infinito, e a única maneira para o
pensamento pensar o infinito é pôr a ordem e distinguir ordens de infinidade. Bom, não vou
voltar a esse assunto. Essas ordens de infinidade serão baseadas em quê, simplesmente? De
acordo com o pensamento do XVII, toda coisa é como um misto de realidade e de limitação, ou
seja, toda realidade iguala à perfeição. É um misto de perfeição e de limitação. Toda perfeição
enquanto tal é elevável ao infinito. Mas, segundo a natureza da limitação que a limita, nem
todas serão eleváveis à mesma ordem de infinito. Daí, mais uma vez, as distinções entre ordens
de infinito: infinito por si mesmo, infinito pela sua causa, infinito entre limites etc. Essas são as
três grandes ordens de infinito que caracterizam o século XVII.
Então pensar será realmente elevar ao infinito que convém. A resposta à pergunta “o
que pensar?” é uma das mais belas que existe. É uma grandiosa resposta que funda a filosofia
do século XVII: pensar é elevar algo ao infinito que lhe convém, de tal modo que pensar Deus é
pensar o infinitamente perfeito ou o infinito por si. Mas pensar o mundo é pensar o infinito por
sua causa, pensar as coisas, o infinito compreendido entre limites. É uma bela concepção do
pensamento.
Observem, se voltarmos sempre ao problema do XVII, ele multiplica as provas da
existência de Deus, e não é de se surpreender que haja tantas provas, uma vez que podemos
supor antecipadamente que há uma prova da existência de Deus para cada ordem de infinidade.
Há uma prova – a mais célebre, nobre e a mais alta – chamada de “prova ontológica” que parte
do infinito por si mesmo. Eu concebo um ser infinitamente perfeito, logo ele existe. Essa é uma
prova que procede do infinito por si mesmo. Mas tem também a “prova cosmológica” que vai
do mundo até Deus. Essa é uma prova que repousa sobre o infinito por sua causa. Tem também
uma prova nomeada classicamente de “físico-teleológica” que repousa sobre o infinito
compreendido entre limites. A cada ordem de infinidade corresponderá uma prova da existência
de Deus.
Posso dizer que, em uma tal concepção do pensamento, em que pensar é elevar ao
infinito, o movimento, a geologia desse pensamento será o desdobramento. Elevar ao infinito é
desenvolver, é desdobrar. Um dos grandes autores do pensamento clássico se chamava Nicolau
de Cusa e era cardeal. E o cardeal de Cusa diz uma fórmula muito clássica, muito frequente:
Deus é a explicação universal. A fórmula só se entende em latim se levarmos a sério, a rigor, a
explicação. Explicar é desdobrar. Se desenrolo um tapete, explico-o, isto é, desdobro-o. É um
pensamento do desdobramento [dépliement].
5
Ora, é por isso que – aqui retomo ao pé da letra o texto de Foucault onde ele se interessa
pela última ordem do infinito, isto é, o infinito das coisas criadas, das criaturas – o pensamento
do século XVII, como mostra Foucault em As palavras e as coisas, procede por desenvolvimento
de quadros de acordo com o continuum, sendo este precisamente a última ordem do infinito. E
será o quadro das riquezas com um continuum de riquezas; o quadro dos seres vivos, o contínuo
da história natural. As séries no nível da criatura serão um pensamento por continuum e por
série: a série das riquezas e o quadro da [sua] circulação, a série dos seres vivos, a série das
raízes sobre a linguagem. Em toda parte, desenvolver-se-ão, desdobrar-se-ão quadros. Então
não se trata de dizer que, nessa formação histórica, o homem não existe. Muito mais, partimos
das forças existentes no homem – forças de conceber, de imaginar etc. – às quais correspondiam
ordens de infinito. Há um infinito de imaginação que não é o mesmo que o infinito do intelecto.
Só o infinito do intelecto é um infinito por si.
Bom, é isso. Não podemos recomeçar. Não é uma questão de dizer que o homem não
existe, mas que, no século XVII, na formação clássica, as forças no homem entram em relação
com forças de elevação ao infinito, sob o movimento ou sobre o movimento geológico ou
arqueológico do desdobramento, do desenvolvimento. Questão: qual é a forma que decorre
desse composto de forças? As forças no homem se compõem com forças de elevação ao infinito.
Qual forma decorre desse composto em particular? A resposta, como vimos, não é a forma
homem; não há forma homem. Este é um aspecto da tese de Foucault que, para a idade clássica,
não há forma homem, porque a forma composta que decorre da relação das forças no homem
com forças de elevação ao infinito é, evidentemente, a forma Deus, e o homem será colocado
apenas como a limitação de Deus, que é o intelecto infinito. O infinito é sempre primeiro em
relação ao finito, como na fórmula de Descartes.
Assim, o que decorre do composto das forças é a forma Deus. Essa afirmação equivale
a dizer que o pensamento do XVII tem por missão suprema desdobrar-se, desenvolver-se. Ora,
o desenvolvimento supremo, ou, como diz Nicolau de Cusa, a explicação universal, o
desdobramento universal, é Deus. Deus não cessa de se desdobrar, não suporta as dobras,
porque é o mais prodigioso desdobramento. Ele não suporta as dobras porque é abrigo dos
ímpios; sob as dobras, há sempre Caim.2 Deus se desdobra, é sua maneira de perseguir os
ímpios. Ele sonda e sondar é se desdobrar, desenvolver-se.
2
Personagem bíblica que indica a impiedade.
6
Em um outro livro – isto assombra Foucault, esta ideia do desdobramento como
movimento geológico do pensamento clássico, nesse livro que precede As palavras e as coisas
–, encontramos constantemente o tema da clínica como invenção da idade clássica, na história
da medicina. O que faz a clínica? Ela desdobra os sintomas em praias bidimensionais. Deus faz
a clínica. Sob o olhar de Deus, estamos desdobrados. Então, isso é um clássico, é assim que se
reconhece um clássico. Agora talvez vocês compreendam a história dos solos arqueológicos em
Foucault...
Um pensamento pode ser muito próximo e muito moderno – penso em Pascal – e, por
mais próximo e mais moderno que seja, a questão “a qual solo arqueológico pertence?” só pode
ser resolvida, creio, na medida em que se mostra em qual sentido esse pensamento pertence à
idade clássica. Com efeito, parece-me sempre imprudente, por exemplo, fazer de Pascal um
tipo de moderno. Se ele está tão perto de nós é justamente por ser tão clássico e porque a idade
clássica tem algo a dizer. Mas é muito imprudente, em nome de uma espécie de angústia
pascaliana, transformá-lo em um moderno. Pois, novamente, a angústia de Pascal é a do infinito,
que é estritamente oposta às formas modernas da angústia. É uma angústia do infinito, e mais,
é uma angústia das ordens de infinidade. Pascal é um pensador clássico, no sentido da distinção
das ordens de infinidade; ele é, realmente, o esforço angustiado, o esforço aterrorizado para
sobreviver e encontrar um caminho nas ordens de infinidade. Assim, se definirmos desse modo
o pensamento clássico, estaremos aptos a compreender, por exemplo, que, longe de ser um
pensamento da medida, é um pensamento do qual o estrito avesso, o complementar é o barroco.
Não há nenhuma razão para opor o clássico e o barroco; um é estritamente o oposto do outro,
mas ambos pertencem ao mesmo solo arqueológico.
Vimos na última vez que há uma mutação quando passamos ao século XIX. Pensem e
compreendam que seria estúpido perguntar: o que é melhor? Nunca há nada que seja melhor.
Acontece que o pensar muda de orientação, já não é o mesmo movimento. É um pensamento
curioso [que surge] a partir do XIX; foi isso que tentei desenvolver, e quero insistir, na esperança
de que possa lhes dizer algo. Tudo acontece como se pensar fosse, todo o tempo, dobrar. Eles
vão dobrar. Os grandes pensadores do XIX não param de dobrar e redobrar [replier]. O que isso
significa? Reencontramos o estilo de Foucault. Cada vez que ele fala “dobra”, invoca
igualmente a espessura, fazer espessuras. Pensar é fazer espessuras, tornar-se espesso. Ou então,
diz Foucault, a palavra que remete à “espessura” volta sempre n’As palavras e as coisas, mas
diz respeito à formação do século XIX. Este, diz Foucault, descobre a espessura da vida, da
linguagem. Trata-se de constituir espessuras. Pensar não é mais aplainar [mettre à plat], nem
7
desenvolver, desdobrar, mas dobrar, fazer nascer uma profundidade. Do mesmo modo que ele
emprega constantemente a palavra “espessura”, empregará quase como um sinônimo a palavra
“cavo” [creux]. Há uma espessura da linguagem, assim como há um vazio da linguagem; e a
espessura e o vazio funcionam, em Foucault, como sinônimos, porque são ambos resultados da
dobra. Dobrar é tornar espesso. Vejam, é bastante simples: eu dobro, aqui, [Deleuze dobra uma
folha] e penso [risos] da maneira admirável dos clássicos [desdobra a folha], e vocês não deram
conta, mas acabei de provar a existência de Deus [risos]. Assim, o século XIX será um
pensamento fundamental do dobrar e do redobrar, o que significa, como vimos, as forças no
homem. Essa é a mutação.
A mutação acontece quando as forças no homem entram em relação com novas forças
do fora. Nesse momento, afirmamos que há mudança de solo arqueológico, mutação. Em torno
da metade do século XVIII e com o início do XIX, as forças no homem entram em relação com
forças de finitude e não mais com forças de elevação ao infinito. É um novo composto e, mais
uma vez, é claro, as forças de finitude existiam no século XVII, mas eram compreendidas no
pensamento do XVII como simples forças de limitação. Ora, as forças de limitação não
impediam de modo algum o desdobramento ao infinito ou a elevação ao infinito. Ao passo que,
aqui, há encontro das forças de finitude que não se deixam compreender como simples
limitações, mas que são verdadeiras forças de oposição teimosas, espessas. Já não é mais
limitação, são oposições. É a descoberta da oposição real ao invés da limitação lógica.3 Segundo
o vocabulário do jovem Kant, é a descoberta das grandezas negativas ou das quantidades
negativas, as forças de finitude. Do mesmo modo que havia anteriormente ordens de infinidade
no XVII, há forças de finitude diferentes com as quais as forças no homem vão se compor.
Vimos que há três forças de finitude fundamentais: a vida, o trabalho e a linguagem.
Então, posso dizer que as forças no homem, em vez de se desdobrarem elevando-se ao infinito
– por elevação ao infinito –, de se desenvolverem ao infinito, envolvem-se, dobram-se sobre as
forças de finitude. Compondo-se com as forças de finitude, as forças no homem seguirão uma
dobra, irão constituir uma espécie de hélice em torno das forças de finitude e mergulharão
segundo as forças de finitude em horríveis casamentos, que substituem os casamentos com
Deus. Agora, o homem vai casar-se com o trabalho em sua finitude, com a linguagem em sua
finitude, com a vida em sua finitude. Em toda parte não é nada mais do que dobra.
3
“Kant foi quem melhor marcou a correlação entre conceitos, dotados de uma especificação somente indefinida,
e determinações não conceituais, puramente espaço-temporais ou oposicionais”. DELEUZE, G. Diferença e
repetição (1968). Trad. L. Orlandi e R. Machado. São Paulo: Paz e Terra, 1998, p. 22.
8
Como lhes dizia a respeito de Ricardo e Marx, o trabalho se dobra sobre o capital ou,
vice-versa, como o capital se dobra e se redobra sobre o trabalho extorquido. E insisti da última
vez, mas agora lhes recordo, porque me parece evidente que a biologia nascente do século XVII,
um ponto sobre o qual Foucault tem ainda mais razão do que ele diz, se olharmos de que se
trata, a rigor, esse nascimento da biologia a partir de Cuvier, no final do XVIII e início do XIX.
É sempre uma questão a respeito do ser vivo, das dobras possíveis e impossíveis, de operações
de dobragem. Se eu tomar, novamente, talvez não tenha dito o suficiente, uma polêmica que
percorreu o início da biologia, saber se se pode ou não, passar de um vivente para outro, de uma
organização para outra dobrando-se. Uns dirão que não, outros, dirão que sim, é possível passar
de uma forma animal para uma outra dobrando-se. É um grande pensamento da dobragem
[pliage]. As coisas se dobram e se redobram sempre. Pensar é dobrar.
Novamente Foucault tem razão. Por que Cuvier e Geoffroy Saint-Hilaire pertencem ao
mesmo solo arqueológico? Porque a proposta fundamental de Cuvier afirma que há planos de
organização da vida irredutíveis uns aos outros, de modo que não se pode passar de um plano
para outro, justamente porque cada plano se define por uma forma de dobragem irredutível. E
a de Saint-Hilaire afirma que se pode sempre passar de um plano a outro, de modo que há um
único e mesmo plano de composição através de todos os planos de organização; porque, por
dobragem, pode-se sempre passar, e a polêmica culmina. Como todas as polêmicas, ela tem
seus lados sérios e depois seus lados divertidos, não se pode explorar um século sem cair nas
coisas que são muito ou relativamente divertidas.
Há um livro extraordinário, Filosofia geológica de Geoffroy Saint-Hilaire, onde este
autor reuniu toda sua controvérsia com Cuvier.4 E trata-se de saber se se pode passar do
vertebrado – que tem um plano de organização, da vida – ao cefalópode, que tem um outro
plano de organização da vida. Exemplos de cefalópodes para que vejam a complexidade do
problema: o choco [seiche] ou o polvo. O polvo é um belo cefalópode, um dos maiores. O choco
também. À primeira vista, não é fácil, e agora Saint-Hilaire dá sua receita de dobragem para
passar... Sabem qual problema está em questão? Definir o vertebrado por um plano de
organização é o grande conceito de organização vital que aparece no século XIX. Se defino um
vertebrado por um plano de organização, o cefalópode por outro, então esses planos de
4
“A grande polêmica entre Cuvier e Geoffroy-Saint-Hilaire diz respeito à unidade de composição: haveria um
Animal em si como uma Ideia de animal universal – ou as grandes ramificações introduziriam falhas
intransponíveis entre tipos de animais? Poeticamente, a discussão encontra seu método e sua prova na dobradura
[pliage]: pode-se, por dobradura, passar do Vertebrado ao Cefalópode? Pode-se dobrar o vertebrado de tal modo
que as duas partes da espinha dorsal se aproximem a tal ponto que a cabeça vá em direção aos pés, a bacia em
direção à nuca, e a tal ponto que as vísceras se disponham como nos Cefalópodes?”. DELEUZE, G. Ibid., p. 203.
9
organização são irredutíveis ou não? Posso falar de um único plano de composição da vida ou,
pelo contrário, a vida está fragmentada em planos de organizações irredutíveis? Saint-Hilaire
oferece uma receita de dobragem para passar do vertebrado ao cefalópode. Há um texto de
Cuvier que me parece um dos mais cômicos da história da biologia, no qual ele afirma: “eu
tentei, não é verdade, ele mente! A receita que oferece não nos faz passar de modo algum...”.
Então Saint-Hilaire, em apuros, diz: “sim, não funciona em fato, mas funciona na lei. E não
funciona em fato porque é preciso distinguir outros planos de organização da vida, os graus de
desenvolvimento. O polvo e o vertebrado não têm o mesmo grau de desenvolvimento, não se
podem passar por dobragem. Então, ele reconhece que sua dobragem não funciona, mas
sustenta que esta funciona se os graus de desenvolvimento forem os mesmos em dois planos de
organização. Portanto, é muito complicado, mas interessante. É um método de dobragem.
Eu diria a mesma coisa sobre a economia política, que é um grande redobramento [repli]
das riquezas sobre o trabalho. As riquezas deixarão de constituir um quadro ao infinito, um
continuum das riquezas, como no século XVII, para se redobrar na fonte de sua finitude. E a
própria terra – Foucault mostra esse processo muito bem em uma bela página sobre Ricardo –,
que era para o século XVII uma ordem de infinidade (evidentemente, uma ordem derivada, um
infinito por sua causa), define-se agora, ao contrário, por sua finitude radical, sua avareza. A
terra não se tornou a rica, mas a avara. Disso decorre o pessimismo de Ricardo e de toda a
economia política. Vejam, não quero repetir todas as análises que fizemos da última vez, mas
só digo que vocês devem fixar o que eu gostaria, ou seja, que há confirmações em toda parte de
que a fórmula do XIX será: as forças no homem entram em relação com as três forças de finitude,
a vida, o trabalho e a linguagem, e não mais com forças de elevação ao infinito, como, por
exemplo, os três infinitos do XVII. A operação que compõe as forças entre elas já não é o
desdobramento, mas a dobra; o homem se dobra sobre essas forças de finitude.
QUESTÃO: qual a forma que emerge desse novo composto?
DELEUZE: vimos que é a forma homem. A forma homem, portanto, nasce e aparece quando as
forças no homem entram em composição com forças de finitude e não mais com forças de
elevação ao infinito. Eis por que o século XIX pensa o homem e, finalmente, pensa tudo sob a
forma homem.
Então, quero voltar também nesse ponto rapidamente. Percebam que não é uma fórmula
fácil. No ponto em que estamos, se seguiram nossa análise, verão que não é uma fórmula fácil
ou livre afirmar: “para o século XVII, pensar é desdobrar e, para o XIX, pensar é dobrar. De tal
forma que, mais uma vez, isso me interessa, por isso retorno a Foucault. Na minha opinião,
10
dobra e desdobramento são palavras, também conceitos, ou, talvez, metáforas? Não é para ser
interpretado literalmente, não são exatamente metáforas. Por exemplo, quando se trata de saber
se se pode passar, por dobragem, do vertebrado ao cefalópode, isso não é uma metáfora. O
desdobramento e a dobra terão usos metafóricos, notadamente no estilo de Foucault, todo o
tempo, serão invocados aqui. Dobra, desdobramento, a dobra com a formação de espessuras ou
a descoberta dos vazios, tudo isso anima muito um material metafórico de Foucault, mas é
muito mais do que metáforas. São operações, movimentos geológicos, arqueológicos.
Exatamente como se falasse de dobramento [plissement] de uma cadeia de montanha. Fala-se
todo o tempo de dobramentos, mas a geologia não se restringe a dobrar, ela também desdobra.
Os platôs, os desdobramentos dos platôs, o dobramento das correntes. Há uma geologia do
pensamento.
Então, por essa razão, explode em As palavras e as coisas este manuseio da dobra e do
desdobramento, o retorno obsessivo desses dois termos em Foucault. Mas é interessante
procurar antes. Eu dizia, no Nascimento da clínica, vocês já encontram plenamente o exercício
do dobrar e do redobrar. O desdobramento sendo posto do lado da clínica, arte médica do XIX,
e a dobra – com a constituição de uma espessura mórbida, de um volume doentio, de um vazio
da doença – sendo posta do lado do que sucede à clínica, a saber, a anatomia patológica do
século XIX. Nessa obra, há todo este jogo entre dobra e desdobramento.
Tanto é assim que quero reinsistir sobre o ponto seguinte: creio que o tema dobra-
desdobramento [pli-dépli] não deixou de assombrar Foucault, mas houve um outro filósofo que
o precedeu e que parecia ter sido obcecado por esse tema da dobra e do desdobramento:
Heidegger. Só que Heidegger é obcecado por uma espécie de um duplo [doublet] dobra-
desdobramento em um contexto completamente diferente.5 Veremos quando falarmos um
pouco e tentarmos fazer um paralelo entre Foucault e Heidegger, de onde esse tema vem para
Heidegger, mas de maneira alguma do mesmo solo. Em Foucault, vem essencialmente de uma
concepção arqueológica dos movimentos do pensamento, tais como se distribuem numa história
do pensamento. Essa história do pensamento refere-se à idade clássica para o desdobramento e
à idade do XIX para a dobra. Desse modo, quando formos fazer o confronto, não voltarei a esse
5
Deleuze diagnostica seu tempo como: o duma “orientação cada vez mais acentuada de Heidegger na direção de
uma filosofia da Diferença ontológica”; do estruturalismo como exercício fundado numa distribuição de caracteres
diferenciais num espaço de coexistência” – e nesse sentido, Foucault seria um estruturalista; de sinais que “podem
ser atribuídos a um anti-hegelianismo generalizado: a diferença e a repetição tomam o lugar do idêntico e do
negativo, da identificação e da contradição”. Cf. DELEUZE, G. Ibid., p. 8.
11
ponto, ele será pressuposto. E já gostaria de mostrar por que Foucault parte doutro horizonte
que Heidegger.
Como vimos há pouco, dobra e desdobramento dependem de combinações de forças.
Em Heidegger, dobra e desdobramento são inseparáveis de uma posição do ser. Em Foucault,
eles são inseparáveis de uma combinatória de forças. Isto é, as noções de dobra e
desdobramento – eu diria que Foucault as devolve a Nietzsche, que, no entanto, nada falava
sobre elas, mas as inscreve em uma combinatória de forças, o que é totalmente estranho a
Heidegger. Mas não é estranho a Nietzsche. Na verdade, está escrito numa combinatória de
forças, já que o desdobramento é a operação pela qual as forças no homem entram em relação
com forças de elevação ao infinito; e a dobra é a operação segundo a qual as forças no homem
entram em relação com forças de finitude. Portanto, dobra e desdobramento remetem a uma
combinatória de forças.
Segunda diferença: posso dizer basicamente, de maneira rudimentar, porque nosso
problema não é o Heidegger neste momento, que dobra e desdobramento em Heidegger têm
por função fundar os seres, os entes; em Foucault, essas noções têm outra função, que é dar
forma aos seres e aos entes, uma forma. Vejam, os dois [autores] vão juntos, porque dobra e
desdobramento nascem e remetem a uma combinatória de forças que, a partir daí, a sua forma
não é fundar seres ou entes, mas simplesmente lhes conferir uma forma – forma Deus, no caso
do desdobramento, forma homem, no caso da dobra. É necessário ainda acrescentar: para lhes
dar uma forma precária, uma vez que, de fato, toda forma é precária na medida em que não dura
mais do que a combinação de forças da qual deriva. Se as forças em relação mudam, se há
mutação, essa será outra forma. Toda forma é precária.
Há um trecho na página 291 de As palavras e as coisas que me interessa muito: “só há
ser porque há vida. A experiência da vida apresenta-se, pois, como a lei mais geral dos seres, o
aclaramento dessa força primitiva a partir do que eles são [...] essa ontologia, portanto, desvela
menos o que funda os seres do que o que os leva, por um instante, a uma forma precária.”6
Sobre um texto como este, haveria muito a dizer e precisaria conseguir dizê-lo. Se tomarmos a
letra do contexto, diríamos a nós mesmos: não exagere, é um texto sobre Cuvier, um texto que,
a rigor, vem para concluir a análise de Cuvier. Eu diria que ele vale para a biologia do século
XIX ou, ao menos, não do mesmo modo, para a biologia de Cuvier. No entanto, acrescento, é
verdade, não se trata de negá-lo, mas, ao mesmo tempo em que um texto tem sempre várias
6
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. Op. cit., p. 383.
12
espessuras, trata-se de dizê-lo. Como não ser sensível, nesse texto, a um piscar de olhos, em
que tudo se passa como se Foucault dissesse: atenção, estou afirmando minha diferença com
Heidegger. Pois não é por acaso que ele emprega palavras que suscitam no espírito do leitor a
confrontação direta com Heidegger. “Só há ser porque há vida, e nesse movimento fundamental
que os vota à morte, os seres dispersos e estáveis por instantes formam-se, detêm-se,
imobilizam-na”.7
A experiência da vida se dá como a lei mais geral dos seres, mas essa ontologia desvela
menos do que funda os seres. Não é para Cuvier que a ontologia desvela o que funda os seres,
é uma expressão sumária da filosofia de Heidegger. Mas essa ontologia desvela menos o que
funda os seres do que o que os leva, por um instante, a uma forma precária. Ora, muito além de
Cuvier, é o próprio pensamento de Foucault, ou seja, há uma ontologia, mas, muito
estranhamente, creio fortemente que há subjacente em Foucault – pouco perceptível e, contudo,
perceptível em muitos aspectos – uma espécie de vitalismo. Esse vitalismo é muito estranho. A
fórmula do vitalismo, se ela convém a Foucault, seria muito simples: toda forma é um composto
de forças, fórmula de um energetismo ou de um vitalismo. Equivale a dizer que a vida é
realmente a lei dos seres. É verdadeiramente um deslocamento, por isso que não é de modo
algum heideggeriano.
Vejam, dessa análise decorre imediatamente: há uma ontologia, mas o sentido ontologia
não é fundar os seres, mas determinar a forma precária à qual são elevados por um momento.
Essa forma é precária porque depende da combinação de forças em mutação perpétua. Bastam
que as forças mudem para que a forma anterior desapareça e surja uma nova. A forma será
precária porque a combinação das forças será ela mesma variável. Vocês compreendem? Toda
forma é precária. A forma Deus é precária – seguramente, o próprio Deus, em sua existência,
não é precário, mas eterno. A forma Deus é muito precária, não dura muito tempo no nosso
Ocidente. Então, por que querem que a forma homem seja menos precária? Não há nenhuma
razão. Falo dessas pessoas que querem sempre que isso acabe, por exemplo, os historiadores
do século XIX. Se dissermos que a forma “homem” surgiu no desaparecimento da forma “Deus”
porque o composto das forças tinha mudado, logo diremos que a forma homem implica, envolve
a morte de Deus. No entanto, basta considerar a forma homem para ver que ela mesma envolve,
em suas dobras, a morte de Deus. A forma homem é tanto mais precária quanto está entre dois
mortos: a morte de Deus e a do homem. Eu disse: é óbvio, evidente! Um péssimo esquema
7
Loc. cit.
13
histórico, do ponto de vista da história do pensamento, falar da morte da Deus e depois do
surgimento do homem, da substituição da forma Deus pela forma homem.
Eu dizia, uma coisa evidente em Nietzsche é que ele não é pensador da morte de Deus.
Para aqueles que são leitores de Nietzsche, suplico que reflitam sobre isso. Não concordem
necessariamente comigo, mas pelo menos considerem o que digo. É evidente, a morte de Deus
– mas quando Nietzsche escreve – é uma velha história. Mas é de quem? É um lugar comum.
Então, é preciso confiar nos pensadores, afinal de contas, eles não retomam lugares comuns.
Feuerbach foi quem levou a ideia da morte de Deus e de sua substituição pelo homem, isto é,
quem fez a substituição das formas. Mas isso já fora preparado por Hegel. A esquerda hegeliana
faz a substituição da forma Deus pela forma homem. Se quisermos resumir livro de Feuerbach,
A essência do cristianismo – evidentemente com palavras que ele não emprega, mas diz respeito
ao seu pensamento –, eu diria que sua tese é: uma vez que Deus desdobrou o homem, é tempo
para que o homem dobre e redobre Deus; tempo para que a forma homem, o homem recupere
suas próprias forças que elevou ao infinito na forma Deus; tempo para que ele se reaproprie
delas sobre o fundo de sua própria finitude, ou seja, substituir a forma Deus pela forma homem.
No entanto, atrevo-me a dizer vulgarmente, Nietzsche não quer saber desse assunto da
morte de Deus. Digo, a rigor, porque a sensação é a de que tenho razão. Esse tema o faz rir. Por
essa razão, ele nos oferece versões cômicas. Quanto mais antigo for um fato, mais variantes
podem se apresentar. Uma lenda tem variantes e aconteceu há muito tempo. Vocês querem uma
variante? Querem dela uma outra? Vocês a terão. Isso é exatamente o que para Nietzsche tem
a ver com a morte de Deus. Irei lhes contar as variantes. Querem saber como ele morreu? Uma,
duas, três, quatro, cinco..., doze versões da morte de Deus. Tudo o que precisamos saber.
Estamos cansados de falar sobre isso. Por que Nietzsche é assim? É um contrassenso
fundamental, histórico e filosófico apresentar Nietzsche como o pensador da morte de Deus.
Por outro lado, é justo – e creio que seja sua grandeza – dizer que ele é o primeiro a ter anunciado
a morte do homem. Porque, para Nietzsche, a morte de Deus não é um acontecimento ou, pelo
menos, um antigo acontecimento, tão antigo que nem sequer devemos mais falar sobre ele. Por
sua vez, o que permanece vivo, para Nietzsche, é a maneira inevitável com que a morte de Deus
deve se encadear com a do homem. Nietzsche não pensa a morte de Deus, pensa o
encadeamento da morte de Deus adquirida com a morte do homem se fazendo num único
acontecimento que deve ter sequências futuras. Quais serão essas sequências futuras?
Começamos a vê-las na última vez: o surgimento, o acontecimento da terceira forma, a saber,
não mais a forma Deus, nem a forma homem, mas a forma “super-homem”. Se vocês
14
compreenderam alguma coisa do que estou dizendo, verão que a forma super-homem é uma
besta, um animal que não seja o homem, simplesmente o produto de uma nova combinação das
forças no homem com forças do fora. Por isso não há razão para fazer disso uma doença. É tudo
muito simples, e depois nem tudo é bom no super-homem. Há erva daninha também, mas vamos
ver o porquê, não está resolvido. Todavia, do mesmo modo, na forma Deus, vocês deveriam
identificar as forças no homem que compunham com forças de elevação ao infinito. Do mesmo
jeito, na forma homem, deveriam identificar forças no homem que se combinavam com forças
de finitude; na forma super-homem, devem identificar forças no homem que combinam com
um terceiro tipo de forças de fora, de tal maneira que dela decorre a forma super-homem.
Retorno à questão: por que a forma homem já compreendia a morte do homem? Por três
razões. Primeira: aparece muito claramente em Nietzsche, sobretudo nos textos póstumos, e foi
maravilhosamente trazido à luz por Klossowski em seu livro Nietzsche e o círculo vicioso.
Equivale a dizer: o princípio de identidade não pode funcionar independentemente de uma
garantia ou de um fundamento, que é Deus. Irei resumir muito o texto de Klossowski e a
maneira como ele o inscreve no pensamento de Nietzsche. A morte de Deus implica o colapso
do princípio de identidade. Em outras palavras, com Deus morto, o homem perde toda
identidade. Um tema interessante e acredito, de fato, que é muito profundo em Nietzsche, esta
relação entre Deus e identidade. E a perda da identidade com a morte de Deus é um tema que
vocês encontram bastante em Klossowski.8
Há uma segunda razão pela qual a forma homem inscreve a morte no próprio homem.
Eu já tentei dizê-la várias vezes e, neste caso, gostaria de dizer melhor, na esperança de que
vocês leiam ainda um grande texto do século XIX. Evidentemente, o XVII, a idade clássica, não
ignora a morte e a relação do homem com a morte. Mas sob qual forma essa idade reconhece a
questão da morte no homem? Creio que ela o reconheça dum certo ponto de vista, o da essência:
o homem é mortal e, quanto à existência, ele o reconhece sob a forma de uma espécie de
potência indivisível, insecável, instantânea da morte. A morte pertence à essência do homem
sob a forma “o homem é mortal” e sobrevém à existência em um ponto insecável, indivisível,
8
“A grande ideia de Nietzsche é fundar a repetição no eterno retorno, ao mesmo tempo, sobre a morte de Deus e
sobre a dissolução do Eu”. DELEUZE, G. Id., p. 20.
“Em dois artigos que renovam a interpretação de Nietzsche, Pierre Klossowski pôs em evidência este elemento:
‘Deus está morto não significa que a divindade cesse como explicitação da existência, mas que o fiador absoluto
da identidade do eu responsável desaparece no horizonte da consciência de Nietzsche, que, por sua vez, se
confunde com este desaparecimento... Só resta (à consciência) declarar que sua própria identidade é um caso
fortuito arbitrariamente mantido como necessário, mesmo que ela se torne a si própria por esta roda universal da
fortuna, mesmo que ela englobe, se possível, a totalidade dos casos, o próprio fortuito em sua totalidade necessária.
O que subsiste é, pois, o ser e o verbo ser, que nunca se aplica ao próprio ser, mas ao fortuito’”. (ibid., p. 65).
15
instantâneo. Essa é a concepção da morte. Por isso, o século XVII ainda está ainda cheio do que
já sobrecarregara a idade greco-romana, a saber, consolações da morte.
Se a morte no existente é o ponto insecável, indivisível etc., a morte escapa ao
pensamento enquanto não se está morto. E uma vez morto... Bom, mas entre os dois, o momento
da morte é precisamente inapreensível em que sentido? Eu lhes dizia que uma frase como a de
Malraux (que agradou tanto a Sartre, que a retoma): “a morte é o que transforma a vida em
destino”, em minha opinião, para falar como Foucault, pertence tipicamente ao solo
arqueológico do XVII. É curioso porque atingiu muito os modernos, mas parece realizar
plenamente a concepção clássica da morte. A morte é instante indivisível, insecável que, quando
surge, provoca uma transmutação, uma transformação qualitativa da vida em destino. Já é um
tema de consolação na idade dos gregos. Eles dizem que não se pode afirmar que um homem
seja feliz antes de sua morte. Porque, até sua morte, tudo pode mudar. Ele é feliz, mas pode lhe
acontecer algo que reflita sobre o passado e faça com que sua vida tenha sido nada mais do que
um erro, precipitação para este infortúnio final. Só se pode dizer que uma vida foi feliz quando
a morte aconteceu. Em outras palavras, ela transforma a vida em destino.
Nesse caso, tenho uma primeira constatação. Em Nascimento da clínica, Foucault
analisa o pensamento de Bichat, grande médico do século XIX. Dessa análise, eu diria um pouco
do que acabei de dizer acerca do texto de Cuvier. Parece um texto epistemológico, Foucault
expõe a concepção da morte e da vida em Bichat. Mas, se forem sensíveis ao tom e ao estilo,
penso que nada pode nos impedir de sentir que, sob o pretexto de Bichat, haja algo mais e que
Foucault, também, não se limita apenas a falar do médico, mas fala por conta própria. E se,
também eu, falo de Foucault e tento falar por minha conta, diria que o livro Investigações
psicológicas sobre a vida e a morte, de Bichat, é o primeiro livro moderno sobre a morte.
Mais uma vez, não digo que o moderno seja melhor do que o clássico, mas que não são
iguais. É um livro de filosofia e não apenas de medicina, o primeiro grande enunciado que
expressa uma profunda mudança na concepção médica e filosófica da morte. Vocês irão
encontrar uma morte moderna em Bichat, neste livro surpreendente. Mas o que ele diz? Eu
precisaria de uma aula inteira para falar desse livro. Vou apenas demarcar alguns pontos. Bichat
afirma que a vida tem dois aspectos: a vida orgânica e a animal. Ele os define – eu gostaria
alguns de vocês vissem o livro porque há tantas fórmulas que de fato anunciam nossa idade
[moderna]. Como ele distingue a vida orgânica e a vida animal? De uma maneira muito simples.
Basicamente, ele afirma: a vida orgânica consiste em existir no interior [au-dedans], ou, se
preferirem, em habitar um lugar, que é comum ao animal e à planta. Na minha vida orgânica,
16
eu habito um lugar e existo no interior de mim mesmo. Na minha vida animal – cito Bichat
textualmente: “habitar o mundo” e já não “habitar um lugar” –, eu habito o mundo e existo fora
de mim.9 O centro da vida animal não é o sistema nervoso. Aqui está o primeiro ponto forte.
Segundo ponto forte: a vida orgânica é dotada de continuidade – é engraçado porque
quase eu teria vontade de traduzir: isso é o que a idade clássica apreendeu antes de tudo, a vida
orgânica. A vida orgânica é contínua. Mas a vida animal é estranhamente intermitente. E Bichat
tem páginas esplêndidas que prefiguram descobertas muito posteriores a ele sobre a
multiplicidade dos sonos, os sonos parciais. Ele afirma que o animal não deixa de ser
atravessado por sonos parciais. E o que se chama de sono enquanto se dorme é uma resultante
de sonos parciais, mas há vários tipos de sonos que atravessam o animal. Seu sono, por assim
dizer, é uma resultante de todos esses sonos parciais. Em outras palavras, a vida animal nunca
deixa de ser intermitente, atravessada por sonos e, no sono, voltamos à única vida orgânica.
Terceiro ponto: é necessário distinguir dois tipos de morte, mas, desta vez, é mais do
que a morte orgânica e a animal, complica-se. Trata-se de distinguir a morte natural e a morte
violenta. Pelo que sei, é o primeiro autor que faz uma diferença de natureza entre as duas mortes
e faz passar o homem sob o regime da morte violenta, o que é muito curioso. Pois há um texto,
em Bichat, que não consigo explicar. Asseguro-lhes que o li bem, é um livro que adoro, eu o li
e reli, no entanto, ainda não consigo compreender. Ele afirma: os animais têm mais
frequentemente... sua morte é uma morte natural após a velhice. Então, não compreendo, como
todo mundo, tenho vontade de dizer: não, mas os animais se devoram, não param de se devorar;
é raro, pelo contrário, se não são devorados, os animais na exploração (na fazenda) são abatidos
pelo homem, mas enfim, na natureza, não muda a situação. Então, o que ele quer dizer?
Ao mesmo tempo, apresentar meu pensamento como uma objeção, envergonha-me de
antemão, porque significaria dizer que Bichat é realmente um estúpido por não ter pensado o
óbvio, que os animais se alimentam uns dos outros. Então essa é a minha curiosidade. Ele chega
a dizer: “de certa maneira, não importa, as mortes dos animais são mortes naturais?” É muito
estranho. Não compreendo. Exceto algo que seja uma ideia muita bonita, surpreendente. Sua
ideia é o que falta na sociedade. E por que a sociedade? Ele não cai nas facilidades do tipo
insegurança. Não é isso. Ele quer dizer: a sociedade consome enormemente nossa vida animal,
porque ela a solicita, faz-nos mover bastante, provoca-nos excitações uma após a outra, assim,
9
“O animal é o habitante do mundo, e não como o vegetal, do lugar onde nasceu. Ele sente e percebe seu entorno,
reflete suas sensações e se move voluntariamente segundo sua influência”. BICHAT, F. Recherches
physiologiques sur la vie et la mort. Op. cit., p. 3.
17
muito pior do que na natureza. De modo que, na natureza, a vida animal pode durar, ao menos
na lei, muito mais tempo. Mais uma vez, tenho minhas dúvidas. Quando se vê um pobre coelho,
mesmo quando ele para e repousa, não deixa de estar atento, e nos perguntamos: será que é
mesmo descanso? Temos que pensar: ele também não está errado, não sabia, mas agressão
social é terrível. Pessoas que falam demais são uma agressão. As luzes de neon – Bichat não as
conhecia – são uma agressão aos olhos de qualquer maneira. A televisão também é pura
agressão.
É verdade que a sociedade consome minha vida animal. Vejam, Bichat é muito
inteligente, ele não definirá uma esfera da vida suplementar. Ele afirma: a sociedade é uma
aceleração de todas as funções da vida animal. Ora, a vida animal é, pelo contrário, uma vida
que tem muita necessidade de intermitência, de repouso, dos seus sonos parciais. Mas, nós, já
não sabemos, temos um sono pesado e, mesmo assim, doentio, não temos esses sonos parciais.
Nossos órgãos dos sentidos estão sempre investidos por uma fonte qualquer. Isso é o que Bichat
quer dizer. Como nossa vida animal é tão consumida num ritmo muito veloz, logo
evidentemente o regime de nossa morte tende a se tornar cada vez mais morte violenta.
Esse é ato de entrada da morte moderna na cena do pensamento. Não passem diante do
hospital Bichat sem ter um pensamento sensibilizado por um grande pensador. E ainda
acrescento um último ponto forte. Bichat explicará como – uma vez que há dois tipos de morte,
natural e violenta – em ambos os casos a vida animal e a orgânica não se desvanecem, não
desaparecem do mesmo modo. Assim, ele tem uma grade dupla. Tento criar uma estrutura
lógica: distinção entre vida orgânica e vida animal e, por outro lado, entre morte violenta e
morte natural, tendo em conta que, nas duas mortes, o fim da vida orgânica e da vida animal
não acontece do mesmo modo, nem na mesma relação. No entanto, não tenho tempo de
desenvolver tudo isso, talvez o faça se acabarmos Foucault. Voltarei a Foucault e Heidegger,
Foucault e Bichat, Foucault e Nietzsche.
Bem, o último ponto é como Bichat inverte completamente a concepção da morte
clássica. Ele o faz de três maneiras. Primeira maneira: a ideia de que, tal como os sonos parciais,
o animal, o animal humano não deixa de passar por mortes parciais. Há um pluralismo das
mortes que se opõe totalmente à ideia de morte como instante indivisível, instante último.
Pluralismo das mortes. E toda parte final de seu livro consistem em estudar, nas mortes
violentas, os três tipos de morte: pulmonar, cardíaca e cerebral. Esses tipos não esgotam a lista
das mortes diversas, mas são os três grandes centros mortais: pulmões, coração, cérebro. Assim,
esse é o primeiro aspecto, um tipo de partição [partiellisation] da morte.
18
Segundo ponto: a morte em geral [tout court] será resultante dessas mortes parciais. Em
nome disso, Bichat pôde colocar – como diz Foucault quando o analisa – uma coextensividade
da vida e da morte e oferecer sua grande definição de morte que faz com que os clássicos
zombem dele. Justamente porque eles não podem compreender, não pertencem ao mesmo
terreno. A vida é o conjunto de funções que resistem à morte. Para um clássico isso não tem
sentido. Muitos dizem que é uma fórmula estúpida. Deixa de sê-lo se pensarmos a morte não
em termos de instante que termina a vida, mas em termos de forças coextensivas à vida. Daí a
fórmula de Foucault quando comenta Bichat: “o vitalismo aparece tendo como pano de fundo
esse ‘mortalismo’”.10
Portanto, primeiro princípio: multiplicidade das mortes; segundo: coextensividade da
morte à vida; terceiro: modelo de morte violenta e destituição do modelo da morte natural. A
morte violenta se definindo pelo mais simples, segundo Bichat, o que vai do centro à periferia.
Saibam que as unhas e o cabelo continuam a crescer após a morte, bem como os processos de
excreção e digestão continuam a acontecer. A morte violenta vai do centro à periferia, enquanto
a morte natural vai da periferia ao centro. Por essa razão posso dizer que Foucault,
estranhamente, no seu relato sobre Bichat em Nascimento da clínica, não se interessa muito,
nem sei se ele menciona este esquema surpreendente em que a morte violenta torna-se modelo
de morte.
Por outro lado, ele insiste muito sobre a coextensividade da vida à morte e sobre o
caráter plural das mortes em Bichat. Mas, realmente, acredito que, se Foucault fala bem de
Bichat, é porque ele reconhece nele – ainda que não o diga – a primeira, a entrada na literatura
médica e filosófica da nova concepção de morte. De tal modo que, também aqui, quando se
encontra em Foucault perpetuamente o tema que traduzo vagamente sob a expressão de “o
vivente, ser para morte”, creio que, na medida em que estas precisões têm interesse, seria
historicamente errado associar, por essa via, Foucault a Heidegger ou mesmo a Bichat. A
origem dessa ideia de o vivente como ser para a morte é muito mais numa ligação, numa
concepção da morte pessoal em Foucault, e essa concepção se baseia numa espécie de afinidade
profunda com Bichat. Está bem, está bem.
Antes de descansarmos, o terceiro ponto para o qual a morte está inscrita no homem
quando surge a forma homem, fazendo com que essa forma seja fundamentalmente precária.
No limite, ela sequer será transformada, abatida do fora; ela é trabalhada por uma precariedade
10
FOUCALT, M. Nascimento da clínica. Op. cit., p. 166.
19
fundamental, essencial, interna. Como vimos da última vez, a forma homem só pode surgir na
dispersão das línguas, do ponto de vista da linguística; na disseminação dos seres vivos e de
seus planos de organização, do ponto de vista da biologia; na disparidade dos modos de
produção, do ponto de vista da economia política. Em As palavras e as coisas, no capítulo sobre
o homem, Foucault insiste enormemente sobre esse ponto, de fato fundamental.
Eu diria que esse ponto não tem equivalente em Nietzsche. É muito próprio de Foucault
mostrar que a forma homem, no século XIX, só se constituiu na relação com uma tripla
dispersão: dispersão das línguas, dos viventes, dos modos de produção. E a linguística não se
apresenta como ciência; lembrem-se disso, ela só considera a linguagem como objeto porque
há uma dispersão das línguas. A biologia só pode considerar a vida como objeto porque há uma
dispersão dos planos de organização da vida. A economia política só pode pensar o trabalho
como objeto porque há dispersão dos modos de produção. Por toda parte, a dispersão das
formações é a condição das novas objetividades científicas. Diante disso, Foucault pode dizer
– retomo As palavras e as coisas, sempre essa página que é tão bonita e insólita: a crítica do
conhecimento é a ontologia da aniquilação dos seres, texto exato: “a ontologia do aniquilamento
dos seres vale como crítica do conhecimento”.11 Vejam, a constituição dos saberes positivos no
século XIX, linguística, biologia, economia política, os saberes positivos sobre o homem, se
quiserem, a constituição das ciências humanas só pôde descobrir seu objeto através de uma
dispersão fundamental. Dispersão das línguas, dos modos de produção das línguas sem os quais
a linguagem nunca poderia ser tratada como objeto de ciência; dispersão dos modos de
produção sem os quais o trabalho nunca poderia ser tratado como objeto de ciência.
Então, por que a única reflexão sobre o conhecimento é, ao mesmo tempo, uma
ontologia do aniquilamento dos seres? Foi preciso que segmentos e planos inteiros de viventes
desaparecessem. Línguas tiveram que morrer em virtude dessa dispersão fundamental como
condição das ciências. Foi preciso que viventes colapsassem, se aniquilassem, assim como
modos de produção desmoronassem. Donde a arqueologia, a paleontologia e até mesmo a
etnologia vivem sob esta profecia: a crítica do conhecimento é uma ontologia do aniquilamento
dos seres.
A grande época de Cuvier é a do desaparecimento dos viventes dos quais só restam os
fósseis; desaparecimento das línguas das quais só restam indícios de raízes. Não só línguas
mortas, mas também línguas perdidas, o que é pior. Etnologia: a descoberta de genocídios como
11
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. Op. cit. p. 383.
20
o indiano. Não há razão para ir tão longe como os fósseis. Por toda parte, as ciências do homem
se constituíram sobre o modo de um conhecimento que implicava a dispersão e o
desaparecimento de planos de organização, de civilizações, de línguas etc. Tanto que a única
crítica do conhecimento é a ontologia desse desaparecimento dos seres, ontologia do
aniquilamento. Também aqui faz parte de um ponto de vista evidentemente vitalista,
completamente oposto a Heidegger. Já não se trata de fundar os seres ou o existente, mas de
uma tarefa diferente, a de revelar as formas em sua precariedade, disseminação e, por
conseguinte, a única ontologia é a do aniquilamento dos seres.
Com mais forte razão, para retomar a questão, a forma homem era fundamentalmente
precária, de três maneiras: perda de identidade, inscrição na morte violenta, dispersão. Deve-se
chorar por ela? Pode-se sempre mantê-la, lidar com ela, mas, cada vez mais, os acontecimentos
que acontecem já não passam por ela. É necessário chorar? Podemos sempre conservar a forma
homem, pode-se conformar a ela. Entretanto, cada vez mais os eventos não passam por ela.
Mais uma vez, tomamos a questão: para além do bem e do mal não significa para além do bom
e do mau. Há o bom e há o mau Ora, antes de chorar sobre a morte de Deus – supondo que
Deus esteja morto, o que ainda se duvida –, a forma Deus está morta. Compreendam, não é a
questão de Deus, nem a do homem, mas forma Deus e forma homem. Por isso, antes de chorar,
precisa-se perguntar se correu tudo bem. A forma Deus não era festa, hein? Quando as pessoas
choram a morte de Deus, a questão se coloca: a forma homem foi uma libertação para a vida, o
trabalho, a linguagem? Ou terá sido uma maneira de aprisionar a vida, o trabalho e a linguagem?
Se assim o for, não haverá razão para pedir outra forma. A forma homem soube pelo menos
garantir o homem existente da morte violenta?
Bem, nunca homens existentes morreram de morte violenta tanto quanto sob a forma
homem. Por isso, sim, é necessário dizer: ouçam, concordo, os direitos humanos, mas enfim...
foi um período. Por essa razão, se se anuncia o aparecimento de uma forma qualquer, de uma
forma de pensamento, qualquer que seja, tender-se-ia a dizer: bem, não pode ser pior. Só que
perguntar isso equivale a dizer: se é verdade que a forma homem nutriu todas as mortes
violentas do homem existente, aprisionou a vida, o trabalho, a linguagem, haveria uma outra
forma possível que libertaria no homem – sublinho sempre, é meu tema – a vida, o trabalho e a
linguagem e que o protegeria, o homem existente, de todas as mortes violentas, ou de um certo
número de mortes violentas? Está em construção, desenhando-se.
Agora, neste momento, este é o último ponto que quero abordar ou retomar, pois penso
que desta vez será mais claro. Vocês sentem o que eu queria dizer há pouco sobre o
21
superdobramento. Após a idade do desdobramento, a forma Deus, e a da dobra, a forma homem,
chamaremos de a idade do superdobramento, da qual dependeria a forma super-homem. Aqui,
mais uma vez, evidentemente, se se não quer cair na história em quadrinhos, tocá-la, é preciso
ser muito discreto, pois não é fácil, temos que nos contentar com as indicações de Foucault. Ele
se pergunta nas páginas 397-8 de As palavras e as coisas: o que está acontecendo? O que está
acontecendo com a morte do homem? Foucault afirma: claro que, no máximo, são questões às
quais não é possível responder. Nietzsche não falava muito sobre o super-homem. É preciso
deixá-las em suspenso aqui onde elas se colocam, sabendo apenas que a possibilidade de
colocá-las abre, sem dúvida, um pensamento futuro.
Em outras palavras, só se pode oferecer esboços e esboços não funcionais, exatamente
como na embriologia. Um esboço embriológico ainda não é funcional. Um estágio embrionário
ainda não é funcional. Então, temos que correr riscos. Gostaria de avançar um pouco mais. O
que seria o superdobramento? Significa três coisas. Com quais novas forças do fora as forças
no homem entram em relação? Segunda questão: como essa nova relação de forças ou novo
composto remete a um terceiro movimento geológico, que pode ser chamado de
superdobramento? Terceira questão: como dele decorre essa nova forma chamada por
Nietzsche de super-homem? A forma super-homem significa, de fato, algo de extremamente
simples e que, novamente, não pode dizer que seja famosa. Simplesmente não haverá
potencialidades que não estavam na forma homem. Evidentemente, hoje há potencialidades que
não são compreendidas na forma homem. Bem, é isso que vamos ver.
Segunda observação: não lhes escapa o que deixamos, de acordo com Foucault, que
detestava a história universal, tomamos apenas uma ilha minúscula para nossas três formas,
pois, o que seria, por exemplo, das formações asiáticas? Há uma forma e qual forma? E as
formações asiáticas são múltiplas. E as formações americanas? E quanto às formações antigas,
gregas, latinas? Hipóteses surgem: será que as forças no homem puderam se combinar com
forças vegetais, forças animais? Eu apostaria nisso, combinações estranhas, insólitas
combinações entre as forças no homem e forças animais, na Índia, por exemplo. Mas, por fim,
prestemos homenagem a Foucault. Creio que Foucault nunca se considerou suficientemente
competente para falar das formações orientais, exceto das alusões muito rápidas sobre a arte
erótica na Ásia e sempre se recusou de entrar nesse tema, porque não se considerava
competente. Mesmo com o Renascimento. O que é a formação Renascimento, antes da idade
clássica? Bom, tudo isso é infinito. Não é necessário tomar tudo isto, forma Deus, homem,
super-homem como... é uma estreita sucessão, estreita sequência numa pequena ilha da história.
22
Vamos continuar nessa pequena ilha. Estamos tentando fixar este problema por aqui, à
maneira de Foucault. A forma homem implica a dispersão dos viventes, do trabalho e da
linguagem. Essa dispersão é como a marca da finitude dessas três forças, vida, trabalho e
linguagem. Em outras palavras, o homem se congrega em uma forma quando a vida, o trabalho
e a linguagem se dispersam. É muito simples. O pensamento de Foucault sob esta forma é muito
endurecido, mas, felizmente, ele mesmo o endureceu sob esta forma. Em As palavras e as
coisas, ele diz: o homem se congrega quando a vida, o trabalho e a linguagem se dispersam.
Decorre daí imediatamente a questão sobre o super-homem: o que acontece quando, e
se, a vida, o trabalho e a linguagem se congregam? O homem se dispersa. Vejam, é uma
expressão endurecida, mas nos faz compreender o problema. Se o homem se congrega quando
a vida, o trabalho e a linguagem se dispersam, seria normal que ele se dispersasse se a vida, o
trabalho e a linguagem se congregassem. E ele o diz por extenso. Leio lentamente As palavras
e as coisas: o que acontece se a linguagem “surge com cada vez mais insistência, em uma
unidade que devemos, mas que ainda não podemos pensar?” Ele continua, “o homem se
constituiu”, a forma homem apareceu. “Tendo o homem se constituído quando a linguagem
estava votada à dispersão, não vai ser ele disperso quando a linguagem se congrega?”.12
Vejam, pelo que sei, é a primeira indicação e, praticamente, a única que Foucault
oferecerá sobre o aparecimento de uma nova forma: “quando a linguagem se congrega”. O que
ele quer dizer? Por que é tão curioso? Preciso comentar muitas coisas sobre esse texto. O
comentário seria infinito. Esse texto levanta dois problemas. Ele afirma: “quando a linguagem
se congrega”, a forma homem foi constituída quando a linguagem estava dispersa e sob a
condição de uma dispersão das línguas. Logo, se a linguagem se congrega, haverá uma outra
forma. Duas questões: primeira, em que [Foucault] vê hoje sintomas segundo os quais a
linguagem se congrega em uma nova força, em uma nova potência; segunda, por que ele o diz
da linguagem e não das duas formas de finitude? Isso porque ele afirma em um trecho: atenção,
hoje em dia a língua tende a se congregar em uma unidade e não sabemos ainda pensar... Ele
diz: “hoje em dia, quando a linguagem tende a se congregar em uma unidade ainda impensável,
então aponta uma forma diferente da forma homem, e ele não acrescenta: hoje, quando a vida
se congrega em uma unidade e ainda não sabemos sequer pensar, e hoje quando o trabalho se
congrega em uma unidade e ainda não sabemos pensar. De repente, Foucault concede um
privilégio à linguagem, o que é muito embaraçoso. Embaraçoso porque, de uma certa maneira,
12
Ibid., p. 534.
23
todo seu pensamento, incluído na teoria dos enunciados, era destituir a linguagem de seu
privilégio. É muito embaraçoso, não sei se vocês pensam assim também, mas tudo se resolverá.
Retomemos o primeiro aspecto: o que significa “hoje” em oposição ao século XIX? A
linguagem tende a se congregar enquanto estava dispersa na multiplicidade das línguas, tal
como exigia a linguística. A linguística só podia fazer da linguagem seu objeto através da
dispersão das línguas. “Hoje a linguagem tende a se congrega”, o que quer dizer? Pois bem, o
tema de Foucault deve nos tocar, isto é, concernir um pouco a todos. É verdade que a linguística
só pôde se constituir como ciência pressupondo a dispersão das línguas. Bom, ele acrescenta,
uma vez dito que a linguística reduzia a linguagem à dispersão das línguas, ela suscitava
compensações, diz ele, contrapartidas a esse estatuto. Dispersão das línguas: a linguística
suscitava compensações, e estas não eram a linguística que as oferecia, mas uma disciplina
completamente diferente que compensaria a linguística e suas exigências. E Foucault chama
essa disciplina de literatura, compreendida como literatura moderna. E entre as páginas mais
interessantes de As palavras e as coisas, ele esboça o tema seguinte: não pense que há entre a
linguística moderna e a literatura moderna um acordo, complementaridade.
Evidentemente, compreendemos muito bem o que Foucault quer dizer: não ponhamos
o significante na literatura. O significante é um assunto da linguística, a literatura tem um
processo bem diferente. O significante não tem nada para fazer na literatura moderna. Essa é
uma boa notícia. Significa que a literatura moderna não é o correlato da linguística, mas, sim,
a compensação da linguística. Em que sentido ela compensa as exigências da linguística? A
linguística exige a dispersão das línguas, a literatura moderna, em consequência, reconstituirá
uma potência de agrupamento [rassemblement] da linguagem. A fórmula da literatura moderna
é da linguagem congregada.
Esse ponto começa a nos interessar. Como é possível definir a literatura moderna como
linguagem congregada? Bem, Foucault afirma que a literatura moderna não se ocupa do que as
palavras designam, nem do que as palavras significam. Ela também não se ocupa mais do que
constitui o significante na língua. Ela congrega a linguagem para além de todas essas direções.
Ela se ocupa unicamente – aqui vocês encontram um tema que já foi desenvolvido em Foucault
– do fato de que há linguagem, e, para além do que ela quer dizer, a literatura moderna não se
preocupa com o que quer dizer a linguagem. E mais, ele chega a dizer que ela não se ocupa das
sonoridades da linguagem.
O que congrega a linguagem? É o ato de escrever. O ato de escrever e a potência do
agrupamento da linguagem contra a linguística. É uma ideia muito curiosa. Por isso a mesma
24
literatura compensa a linguística. Enquanto a linguística exige a dispersão das línguas, a
literatura exige o agrupamento da linguagem no ato de escrever. A descoberta de um “há a
linguagem” [il y a le langage], o ser da linguagem. É vago esse “há a linguagem”. O fim de As
palavras e as coisas será sobre a descoberta de que há linguagem, esse nova potência que se
pode denominar “literatura moderna”. Em outras palavras, a literatura moderna tem por função
fazer circular o murmúrio anônimo no qual cada autor toma seu lugar. Lembrem-se, quando
falávamos de enunciado, vimos tudo isso.13 O ato de escrita não se realiza em conformidade
com a linguística, mas em complemento, compensação da linguística. O ato de escrever
congrega a linguagem em um “há” [il y a], em um Ser da linguagem. Já não há linguagem na
literatura, porque ela não vale, nem pelo que designa, nem pelo que significa, nem por seus
meios significantes. A linguagem só tem que se voltar sobre si em um retorno perpétuo. Essa é
a fórmula da literatura moderna em As palavras e as coisas: “a linguagem não lhe resta senão
recurvar-se num perpétuo retorno sobre si”.14
Vejam que isso começa a dar fundamento ao que queria chamar no início de
superdobramento. Tudo se passa como se a linguagem estivesse agora superdobrada [surplié].
Ela se recurva em um perpétuo retorno sobre si. Qual é a compensação à linguística e à
dispersão das línguas? Resposta de Foucault: “a compensação é a literatura moderna tomada
no ato de escrever, como descoberta do ser da linguagem do há da linguagem. Uma linguagem
sem sonoridades nem interlocutores, onde a linguagem nada mais tem a dizer senão a si própria,
nada mais a fazer senão cintilar no esplendor de seu ser”.15 Foucault descobre dois inspiradores
principais desse agrupamento da linguagem e da nova época que ele demarcará ao definir a
literatura moderna: Mallarmé e Nietzsche.
No século XIX, “o ser da linguagem achou-se como que fragmentado. Mas, com
Nietzsche, com Mallarmé, o pensamento foi reconduzido, e violentamente, para a própria
linguagem, para seu ser único e difícil. Toda curiosidade de nosso pensamento se aloja agora
na questão: o que é a linguagem? Como contorná-la para fazê-la aparecer em si mesma e em
sua plenitude?”.16 Bom. Avanço um pouco mais no livro, na última vez que ele definirá a
literatura moderna, desta vez com uma lista mais detalhada. Ele diz: “o ser da linguagem ou
agrupamento da linguagem se opera quando a linguagem tende para seu próprio limite, às
margens do que a limita. E qual é o limite? “Nessa região onde ronda a morte, onde o
13
Cf. DELEUZE, G. As formações históricas. Op. cit., quarta aula.
14
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. Op. cit., p. 416.
15
Loc cit.
16
Ibid., pp. 421-2.
25
pensamento se extingue, onde a promessa da origem recua indefinidamente, esse novo modo
de ser da literatura...”.17 Então tomo ao pé da letra, o novo modo de ser da literatura seria o
agrupamento da linguagem na medida em que cada língua, à sua maneira, manejada pela
literatura, tenderia para o limite da linguagem. E o limite da linguagem, Foucault nos diz
misteriosamente, mas de maneira em que se reconhece suas afinidades com um número de
autores, é aqui onde ronda a morte, a extinção do pensamento, o recuo da origem.
“Esse novo modo de ser da literatura”, este “tensor” que conduz a linguagem a seu
próprio limite, era preciso que “fosse desvelado nas obras de autores como as de Artaud ou de
Roussel e por homens como eles. Em Artaud, a linguagem, recusada como discurso e retomada
na violência plástica do choque e remetida ao grito, ao corpo torturado, à materialidade do
pensamento, à carne. Em Roussel, a linguagem, pulverizada por um acaso sistematicamente
manejado, conta indefinidamente a repetição da morte e o enigma das origens desdobradas. E,
como essa prova das formas da finitude na linguagem não pudesse ser suportada, ou como se
ela fosse insuficiente, foi no interior da loucura que ela se manifestou.” Como para descobrir a
linguagem, temos uma definição mais estrita. A linguagem, o agrupamento da linguagem é a
tensão da linguagem para “esta região informe, muda, não-significante, onde a linguagem pode
liberar-se. E é realmente neste espaço assim posto a descoberto que a literatura, com o
surrealismo primeiramente – o que significa que ele gostava do surrealismo apenas pela metade
– (mas sob uma forma ainda bem travestida), depois, cada vez mais puramente, com Kafka,
com Bataille, com Blanchot, se deu como experiência”.18
O agrupamento da linguagem, quando ela tende para o seu limite, isto é, “esta região
informe, muda, não significante”, irá se apresentar sob a forma de uma tripla experiência:
experiência da morte (pensem em Blanchot), experiência do pensamento impensável (Artaud),
experiência da repetição (aqui ele pensa Roussel, mas poderiam ser vários outros), experiência
da finitude tomada na abertura. Isso parece importante porque é uma finitude em uma nova
figura, “tomada na abertura” (veremos o que isso quer dizer). Então, ao mesmo tempo que eu
acho esses textos esplêndidos, de alguma forma, ele termina As palavras e as coisas e nos lança
apelos: “sigam-me”.
Apenas recordo: esse agrupamento da linguagem inaugura a terceira idade, a idade do
super-homem, e se efetuaria na literatura moderna, na medida em que esta põe a linguagem em
tensão, a faz tender para seu próprio limite, para “essa região muda, informe, não significante”.
17
Ibid., p. 530.
18
Ibid., pp. 530-1.
26
Bem, vou tentar tornar tudo isso concreto, se ainda não o é o bastante. Penso que ele fez sua
lista. O que há de comum em um certo número de autores? Se não são os seus, cada um toma o
seu. Seguramente, Foucault tem razão: um dos atos fundadores da literatura moderna é o livro
de Mallarmé, livro que este nunca projetou, explicou como deveria funcionar e que, de certa
maneira, nunca escreveu. Esse livro é um texto essencial que devemos ler, possui uma bela
introdução e uma boa explicação de Jacques Scherer. É um livro que, a rigor, dobra em todo os
sentidos. Dito de outro modo, o livro de Mallarmé é uma combinatória, refere-se às leituras.
Cada leitura opera uma dobragem do livro. Daí a enorme importância que Mallarmé dá à ideia
de volume em sua reflexão sobre o livro. Se considerar o livro de Mallarmé como coexistência
de combinações, perguntar-me-ei para o que tendem essas combinações? Qual é o limite dessas
combinações múltiplas? Se quiserem um pouco mais concreto ainda, vão às páginas de
Foucault. Passo a outros autores.
Se é verdade que o surrealismo realmente travestiu as coisas, em contrapartida houve
um movimento muito potente que admiramos profundamente, que foi abatido pelo surrealismo,
chamado de dada. O que faz o dada? Sua operação literária é também a occisão da literatura,
ou seja, tensão da linguagem para seu próprio limite, sendo dada o nome mágico que figura o
limite da linguagem, o nome que não tem sentido. Toda a linguagem, ser da linguagem, a
linguagem se congrega tendendo-se para dada. Quando Artaud diz: escrevo para afásicos,
significa senão que o ser da linguagem e a linguagem se congregando na direção de um limite
que é a afasia? Mallarmé dizia “a mutilada”, fazer a linguagem tender para a mutilação, para a
afasia, para a gagueira. Bem, como dada, para fazer a linguagem tender para si, toma esse
agrupamento da linguagem? Um de seus meios preferidos – o surrealismo o herdará, mas Deus
não o inventará, pois em vão se procura o que o surrealismo pôde realmente inventar – , antes
de tudo, será pedir emprestado um método de colagem, que me parece quase uma forma simples
de dobragem. E a colagem não começou na pintura, mas simultaneamente com ela, na maior
parte das vezes com o uso de pedaços de jornais, textos escritos e na literatura. A colagem é um
agrupamento. Se retomar os textos de Foucault, ver-se-á que a colagem dadaísta era, na verdade,
um agrupamento da linguagem para fazê-la tender para um limite que era dada.
Não há nenhuma dificuldade em saltar um grande autor americano conhecido por todos,
chamado Burroughs. Por que sua obra se apresenta como um agrupamento da linguagem? Para
liberar a linguagem, mas de quê? Isso nos interessa porque nos conduz ao problema do poder,
no entanto, antes de tudo, o livro de Mallarmé já se apresentava como que tendo um alcance
político. As colagens de dada se apresentavam como luta ativa contra o poder. O agrupamento
27
da linguagem em Burroughs aconteceu em nome de uma luta contra novos e terríveis poderes
de controle. E os dois métodos fundamentais invocados por ele foram os métodos de bases,
chamados por ele de cut-up e de fold-in.19 O primeiro, forma simples; o segundo, forma
elaborada, complexa. Não digo que são métodos suficientes. Vocês sabem que o fold-in é a
dobra em si, a rigor, é o superdobramento. Que a linguagem se recubra, dobre as páginas do
texto, corte-as, induza novas relações, congregue a linguagem em função dos cortes, cut-up,
dos redobramentos, fold-in.
Estou contente de haver uma palavra como essa, é a prova de que nada inventei. Escreva
bem fold-in. É o superdobramento. Fazer a linguagem passar, fazer passar o superdobramento
na linguagem. Nesse momento, a linguagem é congregada e tende para seu próprio limite, sendo
bem definida por Foucault: “a região muda, não significante, afásica etc. Mas, nesse meio
tempo, há todas as outras figuras. Há, se considerarmos os autores de Foucault, Roussel e sua
proliferação infinita de frases. Como vimos, este surpreendente processo de Roussel em que ele
introduz um parêntese, uma frase sendo dada, no parêntese, um segundo parêntese com duas
curvas. Depois um terceiro parêntese com três curvas. Ele irá fazer proliferar a frase sobre si
mesma, introduzindo sempre um parêntese precedente, de modo que a frase arrancada recue no
sistema dos parênteses à medida que avança no sistema do fora dos parênteses. Agrupamento
de toda linguagem para que ela tenda para seu próprio limite, a saber, a fuga infinita dos
parênteses.20
Falamos sobre isso, desta vez é mais um método de proliferação por parênteses, a frase
por parênteses. É um método de derivação onde, em cada da decomposição de uma palavra,
corresponderá a uma cena virtual. É realmente audiovisual. Por exemplo, como vimos,
“saloperie”21: [la salle aux prix] etc. As derivações de Brisset também são agrupamentos da
19
“Seja o método do cut-up de Burroughs: a dobragem de um texto sobre outro, constitutiva de raízes múltiplas e
mesmo adventícias (dir-se-ia uma estaca), implica uma dimensão suplementar à dos textos considerados”.
DELEUZE, G. GUATTARI, F. Mil platôs v. I. Op. cit., p. 13. Compare-se esse exemplo com essa colocação
importante de Foucault sobre a relação entre signo e interpretação: “A ideia de que a interpretação precede os
signos implica que o signo não seja um ser simples e benevolente, como era ainda o caso no século XVI, quando a
pletora dos signos, o fato de que as coisas se assemelhavam, provavam simplesmente a boa vontade de Deus, e
separavam o signo do significado somente por um véu transparente. Ao contrário, a partir do XIX, a partir de Freud,
de Marx e de Nietzsche, parece-me que o signo se tornará malevolente [...] Os signos são interpretações que
procuram se justificar, não o inverso. Assim funciona a moeda, tal como é definida na Crítica da economia política
e sobretudo no primeiro livro de O capital. É assim que funciona o sintoma em Freud. Em Nietzsche, as palavras,
a justiça, as classificações binárias do Bem e do Mal, e portanto os signos, são máscaras. [...] Agora poderá se
organizar no interior do signo todo um jogo de conceitos negativos, de contradições, de oposições, em suma, o
conjunto desse jogo de forças reativas que Deleuze analisou tão bem em seu livro sobre Nietzsche”. “Nietzsche,
Freud, Marx”. In: Dits et écrits v. I. Op. cit., pp. 600-1.
20
Cf. DELEUZE, G. As formações históricas, op. cit., quarta aula.
21
Cf. supra, aula de 7 de janeiro de 1986.
28
linguagem em torno das palavras chaves, de tal maneira que a linguagem tende para sua maneira
de dizer Dada. O dada de Brisset croa, croa [croa, croa], uma vez que seu antepassado é a rã
[grenouille] e tudo deriva dela.
Bom, é uma tentativa interessante. Os mais loucos nunca são os que pensa. Mallarmé é
um dos maiores loucos da linguagem que começa a proliferar. Já o assimilamos, ainda bem,
mas se voltarmos na atitude de um contemporâneo de Mallarmé que pode ser lido em uma frase
dele, é uma nova sintaxe. Esse grande autor que congrega a linguagem, sua definição: ele cria
uma sintaxe. Então é fácil criar palavras. Vocês sabem, a terminologia não é muito difícil, mas
criar construções, uma vez dito que não se deve atribuir nada de incorreto na construção. Isso
significa ter um gênio na literatura: criar uma nova sintaxe. Aqueles que definem o grande
escritor como o guardião da sintaxe, obviamente apenas medem sua própria mediocridade. Não
há grande escritor que não tenha criado uma sintaxe, a começar por Mallarmé. No entanto, digo
que os mais loucos são os que não se percebem assim. Com Brisset, com Roussel dá para ver,
com Mallarmé quase se vê, e com Péguy – este último coloco eminentemente em minha lista.
A loucura da linguagem que representa o sistema, a criação por Péguy, o sistema de
repetições, ou que normalmente, para um leitor normal, deveria ser dita numa frase, será dito
em setenta frases que se sucedem, cada uma com uma variação minúscula. O que é este estilo
que nunca teve equivalente? Que nunca o mais terá, porque a proliferação de Roussel, em minha
opinião, é muito insana do que a espécie de repetição, de maneira a fazer a língua andar a pé.
Para qual limite estas espécies de iterações de Péguy e essa repetição da frase tendem?
Compreendam, Foucault diz: “fazer a linguagem tender para um limite é o congregar”. É
evidente que uma repetição da frase faz a linguagem tender para um limite.
Muito bem, podemos citar outros entres aqueles cujo estilo faz com que eles sejam os
grandes da literatura moderna. Obviamente o caso Céline era extremamente impressionante. O
que é a tensão de Céline? O agrupamento da linguagem em Céline? Céline começa por dois
romances geniais: Viagem ao fim da noite e Morte a crédito. Neles, já se observa uma sintaxe
extraordinária. Os imbecis anunciam que essa sintaxe consiste em ter encontrado as virtudes da
linguagem falada. Ele não via por que passaria tanto tempo e lhe custaria tanto sofrimento a
sintaxe que estava produzindo, se ela fosse toda feita de linguagem falada. Se bastasse
simplesmente ligar uma coisa aqui para ter Céline, seria perfeito. Mas acontece que não é tão
simples e, nos próximos romances, vemos claramente que ele procura algo, só que não sabemos
o quê. Quem poderia dizer exceto ele? E ele não podia dizê-lo. Vem o terceiro grande romance
de Céline, Guignol’s band. Ele encontrou e depois não mudará de fórmula. Já encontrar algo
29
na ordem da sintaxe é tão cansativo que ele explicou bem, que não pode encontrar duas coisas.
Nesse momento, percebemos que ele estava à procura antes. O que temos em Guignol’s band?
Vocês irão compreender imediatamente para aqueles que sabem pouco ou não sabem nada.
Leio para vocês apenas indicando os signos dessa sintaxe. Ele descreve, sucessivamente,
uma menina dançando, pequenas meninas dançando nas ruas de Londres. E depois, por outro
lado, ele tinha uma ideia simples sobre as crianças, havia esperança. Ele dizia sempre que as
crianças eram boas porque havia uma esperança de que se tornassem menos sacanas do que
seus pais, mas que a esperança não era muito grande, e que mesmo assim era preciso aproveitá-
la. Depois há uma atmosfera de pessoas suspeitas, homens... então, uma menina que dança e
homens e depois é assim: ele sinaliza cada detalhe da pontuação ao longo de sua leitura,
“menina preciosa, animada com músculos de ouro... saúde mais viva! Salta fantasticamente de
um lado ao outro de nossas tristezas! No início do mundo, as fadas deviam ser bastante jovens
para ordenar loucuras... A terra então toda em maravilhas caprichosa e povoada de crianças
todas em seus jogos e pequenas coisas e redemoinhos e pacotilhas! Risos dispersam! Danças
de alegria! Rondas prevalecem! Lembro-me, assim como ontem, de seus truques, das farândolas
travessas ao longo destas ruas de angústia nestes dias de sofrimento e de fome... Bendita seja
sua memória! Rostinho doces! Duende ao frágil sol! Miséria! Ireis sempre correr por mim,
gentilmente a turbilhonar, anjos risonhos no escuro da idade, tais em suas vielas de outrora,
assim que fechar os olhos... no momento covarde onde tudo se desvanece... Assim será a Morte
por si dançante um pouco mais... expirando música do coração... rua Lavender! Praça Daffodil!
Avenida Grumble! Escorregadias passagens de angústia... O tempo nunca ao belo fixo, a ronda
e a farândola dos poços de névoa entre Poplar e Leeds Barking... Pequenos duendes do sol,
tropa ligeira despenteada, esvoaçando de uma sombra a outra! Facetas ao cristal de seu riso,
cintilante por todo lado... e depois sua audácia provocante... de um perigo a outro! Mina de
medo diante dos pesados cervejeiros... Piaffant alazão esmagando o eco... Paturant peludo todo
enorme... Da casa Guiness and Co de uma torre para outra! Menina de sonho! Mais viva que
um falcão ao vento... Navegue! Vire para o fundo!”.22
22
"mutine fringante fillette aux muscles d’or !... Santé plus vive !... Bondis fantasque d’un bout à l’autre de nos
peines ! Tout au commencement du monde, les fées devaient être assez jeunes pour n’ordonner que des folies...
La terre alors tout en merveilles capricieuse et peuplée d’enfants tout à leurs jeux et petits riens et tourbillons et
pacotilles ! Rires éparpillent !... Danses de joie !... Rondes emportent ! Je me souviens tout comme hier de leurs
malices... de leurs espiègles farandoles au long de ces rues de détresse en ces jours de peine et de faim... Grâce
soit de leur souvenir ! Frimousses mignonnes ! Lutins au fragile soleil ! Misère ! Vous vous élancerez toujours
pour moi, gentiment à tourbillonner, anges riants au noir de l’âge, telles en vos ruelles autrefois dès que je fermerai
les yeux... au moment lâche où tout s’efface... Ainsi sera la Mort par vous dansante encore un tout petit peu...
expirante musique du cœur... Lavender Street !... Daffodil Place !... Grumble Avenue !... suintants passages de
30
O livro é feito apenas dessa maneira ao mesmo tempo que é um romance muito
divertido. Ele descreve uma multidão que faz fila em diante das portas do consulado. Os
consulados estão todos reunidos no mesmo bairro, em todas as cidades. “Eles são pelo menos
uma dúzia de consulados, de todos os países... Em tordo das árvores! Todos em volta da praça...
Como um carrossel! Uns contra os outros! Este! O Russo! O Maior! A multidão se amontoa
diante da porta... Eu encharco! Lavro! Esforço-me imensamente! Estou reprimido! Sucumbo-
me! Afogo-me na massa de russos! Ele fuma! Ele cospe! Trata-me mal! Estou travado! Lamento
bólido!23” É tão formidável, de repente, “lamento bólido”. Compreendem? Isso quero dizer,
medito sobre “lamento bólido” porque serve como exemplo, parece que ele desfaz toda sintaxe,
em benefício de uma justaposição. Não há mais sintaxe, nem verbo, justaposição de adjetivos
e de substantivos. No entanto, sua escolha pelo adjetivo coexistente com um substantivo vale
para toda uma sintaxe. De repente, “lamento bólido”. É surpreendente como efeito de estilo.
“Estou travado... lamento bólido! Eu caio como estou!” Em outras palavras, para qual limite a
linguagem tender-se-á [?] A linguagem será congregada sob qual forma? Agrupamento da
linguagem sob a forma “justaposição de interjectivas”, sendo cada interjectiva separada por três
pequenos pontos: o signo mágico: ponto de exclamação. Na justaposição, no interior de cada
interjectiva, de um adjetivo e de um substantivo, nascerá uma linha sintáxica, exatamente como
eu dizia na música: às vezes temos uma linha melódica que sai de duas notas. A linha sintáxica
sairá de dois átomos. Claro que, quando qualquer idiota quiser fazer Céline, ele faz da
linguagem falada, é um desastre.
E ele assinala em Cummings formas que, na linguística, se chamam de gramaticais, isto
é, incorretas gramaticalmente ou que não respondem às regras da gramática. Formas
agramaticais. Tomo um exemplo. Num poema de Cummings vocês encontram a fórmula, cujo
nome é He danced his did. No poema, isso torna-se um esplendor. De repente, lê-se, o poema
é muito belo. Depois, por outro lado, tudo é tendido para o surgimento de uma forma
agramatical [?]. Isso não existe em nenhuma língua, a começar pelo inglês e o americano, não
détresse... Le temps jamais au bien beau fixe, la ronde et la farandole des puits à brouillard entre Poplar et Leeds
Barking... Petits lutins du soleil, troupe légère ébouriffée, voltigeante d’une ombre à l’autre !... facettes au cristal
de vos rires... étincelantes tout autour... et puis votre audace taquine... d’un péril à l’autre !... Mine d’effroi tout
au-devant des lourds brasseurs... Piaffant alezans broyant l’écho... Paturant poilus tout énormes... De la maison
Guiness and Co d’un beffroi vers l’autre !... Fillette de rêve !... Plus vive que fauvette au vent... Voguez !...
Virevoltez aux venelles".
23
"Ils sont au moins une douzaine de consulats... de tout pays... Autour des arbres !... Tout le tour du square...
Comme au manège !...Les uns contre les autres !... Celui-là ! Le russe ! Le plus énorme ! La foule s’entasse devant
la porte... Je bourre... Je laboure !... Je m’acharne... Je suis refoulé !... Je succombe !... Je croule dans la masse des
russes !... Il fume... Il crache !... Il me traite affreux !... Je suis freiné... navré bolide".
31
pode existir. Não pode haver construção did com o pronome possessivo he. [?] mostra muito
bem que podemos ter construções gramaticais corretas que seriam do tipo: he did his dance, fez
sua dança, se quisermos palavra por palavra. Ou então, segunda fórmula correta: he danced, ele
dançava, his dance, ele dançava sua dança. Terceira fórmula correta segundo [?], he danced
what he did, ele dança tal como fez.
Bem, três fórmulas corretas, vou alinhá-las, vejam que há uma delas que compreende
did, he did his dance; há outra que compreende também did. Alinhamo-las, como as
sobrepusemos, fazemo-las tender para um limite e obtemos uma espécie de barbarismo, a
fórmula agramatical: he danced his did. Se quisermos, no caso do poema de Cummings, a
fórmula agramatical tem exatamente o mesmo papel que a interjectiva em Céline. Esta é a
maneira como organizamos um conjunto de linguagem, congregamo-la fazendo tender para um
limite. Então eu não diria mais, como Foucault há pouco, que o limite seria a morte, mas a
fórmula agramatical, a fórmula gaguejante, afásica. Esse é realmente o limite da linguagem.
Peço-lhes que reflitam para a próxima aula. Eu termino esta aula com uma pergunta: será se
podemos – não digo que essa seja a única definição possível – definir a literatura moderna
assim? Isso me parece corresponder à hipótese de Foucault, a literatura moderna seria definida
como uma operação que, cada vez, congrega a linguagem para fazê-la tender para um limite do
tipo “invenção de uma sintaxe que tende para a fórmula agramatical”.
Portanto, encerrei a primeira parte de minha tarefa. Em qual sentido Foucault fala de um
novo modo de ser da linguagem na literatura moderna? Mas tropeçamos no problema seguinte:
por que isso se reserva à linguagem e por que ele não diz também: a idade moderna, idade após
o homem, constitui-se sobre um agrupamento semelhante da vida e do trabalho? Por que apenas
a linguagem é a única que se congrega? Quando, talvez, haja a mesma razão para dizer: há
também agrupamento da vida e do trabalho. Por que Foucault não quer isso? Temos razões para
querê-lo, desejá-lo? Bem, acredito que está ficando mais claro.
32
GILLES DELEUZE
AULA 9
Aula 9: 25 de março de 1986
Estamos bem, pois terminamos essa longa história das relações saber-poder. Na
conclusão, tratamos de um problema geral ligado aos dois eixos, saber e poder: que relação
existe entre o conjunto de forças e as formas? Não voltarei a este ponto, a não ser que vocês me
peçam. Vimos que, para um período histórico muito breve, as formas mudam de acordo com as
forças postas em jogo no período.
Num primeiro caso, as forças no homem (não explicarei novamente o que são as forças
no homem) entravam em relação com as forças de fora, forças de tal natureza, cuja forma que
correspondia a esse conjunto de forças era ou podia se apresentar como a forma Deus. Nesse
sentido, a idade clássica pensava sob a forma Deus, significando que as forças no homem
entravam em relação com forças de elevação ao infinito. Demos a esse movimento arqueológico
do pensamento correspondente à formação clássica o nome de desdobramento [dépli],
mecanismo do desdobramento ou da disposição [déploiement]. Disposição em quadro, em
séries prolongáveis, em contínuo.1 Vimos em seguida que houve uma espécie de mutação na
relação de forças por volta do final do século XVIII e que se ampliou no XIX. Dessa vez, as forças
no homem não se desdobravam numa relação com forças de elevação ao infinito, que são
precisamente forças de desdobramento, de disposição, mas, ao contrário, redobravam-se
[répliaient] sobre forças vindas de fora [du dehors], forças de finitude, e essa finitude se
encontrava fora do homem. Era a finitude da vida, do trabalho, da linguagem.
Vimos que seguramente toda a configuração do saber mudava. Não é mais a era da
análise das riquezas, mas da economia política; não mais a era da história natural do vivente,
1
Na idade clássica, a ordenação do que é empírico está ligada ao princípio do “contínuo do ser”. É por isso que se
pode aplicar, em geral, a atribuição (como “forma do juízo”) e a articulação (como “recorte geral dos seres”).
Noutras palavras, é “a superfície sem ruptura do ser” que explica que juízo e significado se remetam um ao outro
num espaço liso e “autorizem assim uma linguagem, um sistema da natureza e o movimento ininterrupto das
riquezas”: as representações se assemelham e evocam umas às outras, os seres naturais se assemelham, as
necessidades do homem correspondem à sua satisfação. Cf. As palavras e as coisas. Op. cit., pp. 284-5. Foucault
vê nesse princípio do continuum o momento “metafisicamente forte” do pensamento clássico, no qual a relação
entre o ser e a representação é não problemática graças à linguagem e ao quadro: “[...] no ponto de encontro entre
a representação e o ser, lá onde se entrecruzam natureza e natureza humana – nesse lugar onde hoje cremos
reconhecer a existência primeira, irrecusável e enigmática do homem –o pensamento clássico faz surgir o poder
do discurso. Isto é, da linguagem na medida em que ela representa – a linguagem que nomeia, que recorta, que
combina, que articula e desarticula as coisas, tornando-as visíveis na transparência das palavras. Nesse papel, a
linguagem transforma a sequência das percepções em quadro e, em retorno, recorta o contínuo dos seres em
caracteres. Lá onde há discurso, as representações se expõem e se justapõem, as coisas se reúnem e se articulam.
A vocação profunda da linguagem clássica foi sempre a de constituir “quadro”: quer fosse como discurso natural,
recolhimento da verdade, descrição das coisas, corpus e conhecimentos exatos, ou dicionário enciclopédico”. Ibid.,
p. 428.
2
mas da biologia; não mais a era da gramática geral, mas da filologia. O que poderíamos chamar
de cientificidades gerais da idade clássica, o geral sendo uma ordem, é substituído por
cientificidades baseadas na comparação, o comparado substitui o geral sob a forma de uma
economia comparada, de uma filologia comparada, de uma biologia ou anatomia comparada.
Nesse nível, quando as forças no homem entram em relação com forças da finitude, ou, se
preferirem, quando as ordens de infinito do século XVII, da idade clássica, são substituídas pelas
raízes da finitude – vida, trabalho, linguagem –, muda-se a forma sob a qual o pensamento se
dá. A forma não é mais “Deus”. Ainda que esta subsista em muitas coisas, o acento é posto
sobre a forma “homem”.
Bem, espero que isso tenha se tornado claro. Quero retomar a questão nesse ponto,
porque é um problema no qual embarcamos com Foucault. Esse é um ponto que me parecia
delicado, complicado, complexo, em As palavras e as coisas: quando as forças no homem se
redobram sobre as forças da finitude – vida, trabalho, linguagem –, estas lhe impõem uma
dispersão. Dispersão das línguas, dos modos de produção e dos planos de vida. Em outras
palavras, quando surge a forma “homem”, derivada da nova relação de forças, o homem existe
conforme a dispersão das línguas, dos modos de produção e dos planos da vida. A esse respeito,
veja o que diz o texto impactante na página 397 desse livro: “tendo o homem se constituído
quando a linguagem estava votada à dispersão”.2 Logo adiante, na mesma página, a mesma
ideia tem outra expressão: “o homem compôs sua própria figura nos interstícios de uma
linguagem em fragmentos.” O que isso significa? Significa: a dispersão das línguas... Mas é
apenas das línguas? O texto fala apenas da dispersão das línguas que, como podem
compreender, é consequência da finitude da linguagem, ou seja, a dispersão das línguas é o
correlato da forma homem.
Assim, coloca-se quase por necessidade lógica, por encadeamento lógico, a questão de
uma terceira forma, após o século XIX, que não seria a forma Deus nem a forma homem, e sim
do seguinte modo: se as linguagens se reunissem, o homem não seria substituído por outra
forma? Se é verdade que a forma homem tem por correlata a dispersão das línguas, se por outras
razões a linguagem se reunir, então a forma homem não desmoronaria? Ela [a forma homem]
conhecia sua grandeza quando a linguagem se dispersou.
2
O período completo é: “Tendo o homem se constituído quando a linguagem estava votada à dispersão, não vai
ele ser disperso quando a linguagem se congrega?”. Ibid., p. 535.
3
Ora, procurei mostrar na última aula que a tese3 de Foucault, parece-me muito
interessante, é a de que no fim do século XIX começa a haver um agrupamento [rassemblement]
da linguagem sob a ação de novas forças. Ele apresentará esse agrupamento da linguagem como
sendo a constituição de um ser da linguagem, de um “há” linguagem. Entretanto, ele não fará
disso uma aventura na linguística, isso é essencial. É por esse motivo que Foucault se opõe a
toda a corrente que lhe é contemporânea. Se a linguagem se reúne, não é em proveito ou por
obra da linguística. Por quê? Porque esse agrupamento se dá em função de novas forças,
diferentes das que animavam a linguística. Na concepção de Foucault, a linguística não se
separava da dispersão das línguas. Se a linguagem se reúne, prefigurando assim o surgimento
de uma nova forma, não é pelo lado da linguística que acontece esse agrupamento, mas por um
lado completamente diferente: da literatura.
Sem dúvida, a literatura como literatura moderna não está sem relação com a linguística.
Mas, segundo Foucault, não é a relação que o estruturalismo acreditou ver quando buscou uma
espécie de unidade entre linguística e literatura. A relação é completamente diferente. A relação
é de compensação, diz Foucault. A literatura moderna, longe de se unir à linguística, define-se
como tal porque compensa algo que pesava sobre a linguística. O que pesava sobre a linguística
era que encontrava sua condição na dispersão das línguas, portanto não podia atingir um “ser”
da linguagem.
Vocês me diriam: mas sim, ela [a linguística] podia atingir componentes universais.
Suponhamos que os fonemas sejam considerados componentes universais. Sim, são
componentes, mas não é isso que permite um agrupamento da linguagem ou a descoberta de
um ser da linguagem, pois esses componentes existem somente na medida em que se atualizam
em línguas irredutíveis. Como dizia Jakobson desde o início, se tomarmos um conjunto
problemático, podemos dizer que ele está presente numa multiplicidade de línguas. Sim, mas
não pode se atualizar conjuntamente. Uma língua será sempre definida por um sistema de
escolhas dentro do conjunto dos fonemas e dos traços distintivos, mas nunca uma única língua
atualiza o conjunto das potencialidades da linguagem.
3
“É que toda a epistémê moderna – aquela que se formou por volta do fim do século XVIII e serve ainda de solo
positivo ao nosso saber, aquela que constituiu o modo de ser singular do homem e a possibilidade de conhecê-lo
empiricamente – toda essa epistémê estava ligada ao desaparecimento do Discurso e de seu reino monótono, ao
deslizar da linguagem para o lado da objetividade e ao seu reaparecimento múltiplo. Se essa mesma linguagem
surge agora com insistência cada vez maior numa unidade que devemos, mas não podemos ainda pensar, não será
isto o sinal de que toda essa configuração vai agora deslocar-se, e que o homem está em via de perecer, na medida
em que brilha mais forte em nosso horizonte o ser da linguagem? Tendo o homem se constituído quando a
linguagem estava votada à dispersão, não vai ele ser disperso quando a linguagem se congrega [rassemble]?”. Ibid.
pp. 434-5.
4
Foucault, por seu lado, diz que o que assegura e opera um agrupamento da linguagem
ou uma instauração do ser da linguagem não é a linguística, mas a literatura como literatura
moderna. Procurei mostrar o porquê. Não é portanto pela unidade com a linguística que –
terceiro momento – se dá o agrupamento do ser da linguagem, é pela compensação da
linguística. Insisto um pouco porque me parece que corre-se o risco de desconsiderar essa ideia
que rompe, que se opõe ao que se diz correntemente. No meu modo de ver, há uma espécie de
oposição entre linguística e literatura.
Na última aula, arrisquei-me ao afirmar em que consiste a compensação. A literatura
moderna é uma coisa completamente diferente da linguística e opera num modo completamente
diverso. A objeção imediata poderia ser que a literatura moderna opera com as línguas
nacionais, opera portanto na dispersão das línguas. Sim, mas não é essa a questão. Procurei
mostrar que a literatura moderna, naquilo que a define como grande e moderna, tendia às
línguas empregadas ou passava por estas, verdadeiros vetores, e que esses vetores tendiam
àquilo que se poderia chamar – reencontramos uma noção de Foucault – não de alguma coisa
que estaria fora da linguagem (por exemplo, as ideias puras), mas na direção de um fora da
linguagem. Esses vetores não tendiam nem para algo que estaria na linguagem nem para algo
que estaria fora da linguagem. Eles tendiam para um fora [un dehors] da linguagem.
Esse fora da linguagem é o que eu chamava4 de agramaticais [agrammaticaux].5 As
construções agramaticais constituem como que um limite da linguagem. Vocês veem bem a
diferença entre os agramaticais e os fonemas? Estes são estritamente interiores à linguagem. As
ideias puras são destinadas a estar fora da linguagem. Mas os agramaticais são limites da
linguagem na direção dos quais as variações gramaticais tendem.
Procurei dar exemplos, muito diferentes. De Joyce, Céline. Pode-se também tomar
autores que Foucault gostava muito, Roussel, Brisset e tantos outros de quem não falei.
Poderíamos voltar a isso, mas não é a questão agora. Vê-se bem... ou melhor, não sei se há um
vago pressentimento, que a literatura moderna opera um tipo de desacoplamento da linguística.
4
“É isso o estilo, ou antes, a ausência de estilo, a assintaxia, a agramaticalidade: momento em que a linguagem
já não mais se define pelo que ela diz, e ainda menos pelo que a torna significante, mas por aquilo que a faz correr,
fluir, romper-se – o desejo. Porque a literatura é exatamente como a esquizofrenia: um processo e não uma meta,
uma produção e não uma expressão”. DELEUZE G. GUATTARI, F. O anti-Édipo. Op. cit., p. 180. Grifo nosso.
5
Trata-se de superar, de relevar ou minorar o poder descritivo da linguagem narrativa, escapando à força dessa
função da linguagem. Os procedimentos descritos por Deleuze na aula anterior – a fórmula de Bartleby I would
prefer not – indicam um poder de dissipar, “desterritorializar”, esgotar os significados em proveito de um
murmúrio. É a conhecida fórmula de Deleuze da subtração, o “n – 1”. Daí Deleuze falar numa “literatura menor”.
Cf. o capítulo “O que é uma literatura menor” in: DELEUZE G., GUATTARI, F. Kafka. Por uma literatura menor.
Trad. Júlio C. Guimarães. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
5
Foucault diz: é por compensação, mas eu digo mais, é para marcar a originalidade desse
pensamento; é por desacoplamento da linguística que a literatura moderna constitui um ser da
linguagem, fazendo-a tender para seu próprio limite agramatical, ao passo que a linguística
permanecia ligada aos componentes internos da linguagem.
E vejo uma confirmação dessa minha interpretação em As palavras e as coisas, na
página 395, quando Foucault afirma acerca da literatura moderna: “esta região informe, muda,
não-significante onde a linguagem pode liberar-se”.6 Essa região muda, informe, ou seja, não
formada, não gramaticalmente formada. “Não-significante”, ou seja, no sentido forte, o que não
remete ao significante, onde a linguagem pode se libertar. Libertar-se em que sentido?
Precisamente na literatura. A linguagem é atravessada por vetores ou tensores que a fazem
tender na direção de seu próprio fora, não para algo que lhe seja exterior, mas para seu próprio
fora, da linguagem.7 Eis o ponto onde estávamos.
Estamos então diante do problema: como definir a terceira forma ou terceira idade de
acordo com a idade clássica e a idade humanista [âge humaniste] do século XIX? Por enquanto,
ela se define assim: novas forças surgem vindas de fora, e a primeira dessas forças é o ser da
linguagem. Produz-se um agrupamento do ser. Eis o primeiro dado: produz-se um agrupamento
do ser da linguagem que não decorre da linguística do século XIX. É um dado novo. Esse dado
é suficiente para nos fazer dizer que uma nova forma surge e que não é Deus nem o homem,
mas que seria algo como o superhomem? Eu não sei. Imediatamente eu disse que é preciso
desenvolver essa ideia de Foucault. Por que não dizer a mesma coisa das outras duas formas da
finitude? A tripla raiz da finitude vida-trabalho-linguagem. O que Foucault acabou de dizer
acerca de uma terceira idade da linguagem, não é preciso dizer o mesmo acerca da vida e do
trabalho e nos mesmos termos? Mas o que significa dizer “nos mesmos termos”? A biologia do
XIX só descobriu a forma da finitude por meio da dispersão dos planos de vida [?]. Para nós,
modernos, do mesmo modo que para a linguagem, não se realizará um agrupamento da vida ou
uma descoberta de um ser da vida que a põe em relação, não com um exterior, mas com seu
próprio fora e daí reúne o ser da vida? E não é preciso dizer o mesmo acerca do trabalho? O
trabalho como força de finitude que não existia no século XIX, na era humanista do XIX, e, sob
a forma da dispersão dos modos de produção, não vai integrar ou tender a integrar em nosso
mundo moderno um agrupamento do ser do trabalho que coloca o trabalho em relação com seu
6
As palavras e as coisas. Op. cit., p. 532.
7
“Le langage, c’est ce vide, cet extérieur à l’intérieur duquel il ne cesse de parler: ‘L’éternel ruissellement du
Dehors’”. FOUCALT, M. “Distance, aspect, origine” [1963]. In: Dits et écrits v. I, p. 285. Cf. tb. id., “La pensée
du déhors” [1966]. In: ibid., p. 519.
6
próprio fora? Não é preciso estender às duas forças da finitude, a vida e o trabalho, o que
Foucault acabou de dizer sobre a linguagem, e sob as mesmas condições? Ou seja, se a literatura
reúne um ser da linguagem, não é por meio de uma aliança com a linguística, mas por
compensação da linguística. Do mesmo modo, se a vida reúne um ser da vida, se reúne em um
ser da vida, não é em aliança com a biologia ou por meio da evolução da biologia, mas em
compensação da biologia e em desacoplamento da biologia. E se o trabalho reúne um ser do
trabalho, não é em aliança com a economia política, mas numa espécie de compensação, de
ruptura ou desacoplamento.
Eis minha primeira questão. Vamos prosseguir com muita calma, vamos
progressivamente. Vejam a vantagem dessa hipótese... Ainda não expliquei em que consiste
esse ser da vida e o do trabalho. Vimos vagamente e não digo mais pelo momento. Digo
“vagamente” porque falamos de superhomem. Aprenderemos que o superhomem não é uma
coisa maior do que... Deus, o homem. Não se deve fazer toda uma história... O drama é que
querem fazer uma história do superhomem, mas, vejam, não é uma história.
Antes de saber em que consiste esse alargamento da hipótese de Foucault, qual seria sua
vantagem? Notem que haveria então uma nova figura das forças de fora. Novo ser da linguagem
descoberto no fora da linguagem, novo ser do trabalho, da vida. Parece-me que o que torna essa
hipótese interessante, sedutora, é pensar a necessidade de invocar uma aventura da linguagem
para dar conta da formação “superhomem”, ou seja, dessa forma que não é Deus nem homem.
Essa hipótese é muito sedutora. Mas tenho mesmo assim um pequeno incômodo: trata-se de
uma questão da literatura, e não temos nenhuma razão para crer que a literatura seja a sua
questão. Quero dizer que não temos motivo para crer que a literatura seja uma coisa tão séria a
ponto de ser autônoma e uma espécie de gueto, ou os avatares da literatura não produziriam
perturbações alhures. Não consigo ver uma literatura que tivesse um privilégio enquanto a vida
e o trabalho, não. Por isso, a tendência em generalizar a hipótese de Foucault me parece
interessante.
De repente, sentimos um choque. Vejam, é delicado. Foucault realmente diz que – e é
um tema que ele apenas esboça, são textos muito curtos – o tema que ele acaba de esboçar
acerca da literatura não pode ser transportado para a vida e o trabalho? Ele diz que a literatura
é capar de operar um desacoplamento da linguística e que vai fundar uma nova era. É
precisamente a sua tese. Ele não diz que ao mesmo tempo a vida e o trabalho operam
desacoplamentos análogos. Diz tão pouco que termina por dizer o contrário, que a vida e o
trabalho não podem fazer [o desacoplamento]. Somente a literatura o faz.
7
Isso me perturba muito. Pode haver muitos motivos, mas vejo somente dois, ao menos
levando em conta os que são apresentados em As palavras e as coisas. Este é um grande livro,
feito de momentos muito fortes e de momentos... não digo fracos... Vejo duas razões para o
livro reservar à linguagem algo que recusa à vida e ao trabalho, ou seja, a força que constitui
um ser ou um agrupamento. A primeira razão está nas páginas 315-6. Ela me deixa perplexo.
Eu as leio: “essa dispersão [éparpillement] impõe à linguagem, se não um privilégio, ao menos
um destino que parece singular quando comparado ao do trabalho ou ao da vida”. [Um destino
singular] não é muito distante de um privilégio. Em seguida, lembrem-se de que a biologia se
constituiu sobre a dissociação do quadro da história natural no século XVIII, ou seja, afirmando
a dispersão dos planos da vida, rompendo a série contínua: “quando o quadro da história natural
foi dissociado, os seres vivos não foram dispersados, mas reagrupados, ao contrário, em torno
do enigma da vida”.8 Neste ponto eu reajo: pode um enigma reagrupar? Pois é próprio do
enigma, parece-me, deixar profundamente problemática a questão do reagrupamento das coisas
enigmáticas, senão ele não seria enigmático. Em todo caso, os seres vivos não foram
dispersados. Entretanto, na análise em que retomei todas essas passagens importantes de As
palavras e as coisas, Foucault fala da heterogeneidade dos planos da vida em Cuvier, e que ele
a considerava o ato fundador da biologia. Mas essa heterogeneidade dos planos da vida em
Cuvier impunha uma dispersão do vivente. Não digo que seja contraditório; os seres vivos não
foram completamente dispersados da mesma forma que as línguas o foram, mas permaneceram
agrupados em torno do enigma da vida.
E Foucault continua: “quando a análise das riquezas desapareceu, todos os processos
econômicos se reagruparam em torno da produção e do que a tornava possível”.9 Aqui também
fico pensativo, pois “o que a tornava possível” eram condições radicalmente diversas. É uma
coisa complicada... Não procuro contradizer Foucault, mas lhes comunicar meu estado de
ânimo com relação a esse texto. Ele diz que quando a dispersão se impõe à linguagem, é algo
muito particular que vale somente para a linguagem, pois a dispersão do vivente, por outro lado,
não impede a vida de permanecer agrupada em torno de um enigma da vida. E a dispersão dos
processos econômicos não impede a economia de permanecer agrupada em torno da produção
e do que a tornava possível.
Foucault continua: “em contrapartida, quando a unidade da gramática geral – o discurso
– se dissipou, então a linguagem apareceu segundo modos de ser múltiplos, cuja unidade, sem
8
As palavras e as coisas. Op. cit., p. 419.
9
Loc. cit.
8
dúvida, não podia ser restaurada”.10 O discurso, tal como aparecia na idade clássica, dissipou-
se em proveito da diversidade das línguas e da filologia comparada, ao passo que a linguagem
apareceu segundo seres múltiplos cuja unidade, sem dúvida (o “sem dúvida” parece-me muito
curioso), não podia ser restaurada. Subentendido: exceto por um movimento completamente
diferente, a literatura moderna... Se eu tentar resumir, e compreendam que é uma questão que
coloco, não vejo nada além de “é assim, porque é assim”. Por que a vida não tinha necessidade
de recompor seu ser ou reuni-lo por meio de um desacoplamento? Por que o trabalho não tinha
necessidade de reunir seu ser por meio de um desacoplamento? Exatamente como a linguagem
teve necessidade de reunir seu ser por um desacoplamento da literatura com a linguística. Ao
final dessa primeira razão, vejo que me dizem: “de fato, é assim” e não compreendo por quê.
A segunda razão está nas páginas 306-7. Neste caso, ela não vai na perspectiva de um
paralelo geral, linguagem de um lado, vida e trabalho, de outro, e sim mais diretamente no
quadro de um paralelo linguagem/vida. O argumento de Foucault é: quando, no século XIX, a
vida tornou-se histórica, adquiriu historicidade, foi apenas secundariamente. A prova disso não
é a composição dos viventes, mesmo que seja diversa, que impôs uma historicidade da vida,
uma história da vida, mas sim a relação do vivente com o meio. É todo um tema em Cuvier, por
exemplo, das condições de existência. Assim, a biologia do XIX descobre as composições do
ser vivo, mas não se trata ainda das composições internas do vivente que impõem uma
historicidade da vida, mas da composição dos organismos em seu meio. Logo, é por intermédio
dos meios que a vida ganha uma historicidade. Isso é evidente em Darwin. Mas já é verdade
em Lamarck. A historicidade que Lamarck atribui ao ser vivo tem a ver com o que ele chama
de condições. Ele é o primeiro a fazer uma grande teoria das condições de existência,
diferentemente de uma simples teoria da ação do meio sobre o vivente, e é neste nível que
aparece a historicidade da vida.
Por outro lado, diz Foucault, a linguagem é diretamente e imediatamente posta [saisi]
num movimento de historicidade. Em outras palavras, a filologia do XIX descobre
imediatamente que a linguagem é diacrônica, de modo que, para descobrir a linguagem como
sincrônica, ele acrescenta na página 305, foi preciso esperar Saussure,11 que, estranhamente, é
forçado por isso a restaurar alguma coisa da idade clássica e da concepção clássica da
10
Loc. cit.
11
“Ao ser separada daquilo que ela representa, a linguagem certamente aparecia, pela primeira vez, na sua
legalidade própria, e, no mesmo movimento, ficava-se votado a só poder apreendê-la na história. Sabe-se bem que
Saussure só pôde escapar a essa vocação diacrônica da filologia, restaurando a relação da linguagem com a
representação, disposto a reconstituir uma “semiologia” que, à maneira da gramática geral, define o signo pela
ligação entre duas ideias”. Ibid., p. 407.
9
linguagem. Mas a linguagem é primeiramente descoberta como força histórica, sem passar pelo
elemento intermediário do meio.
Isso me parece mais uma razão. Aqui também eu confesso... e não é uma objeção... não
vejo por que... [interrupção na gravação] Foucault dizer: a vida, para se tornar histórica, tem
necessidade do meio, ao passo que a linguagem não tem. Não vejo n’As palavras e as coisas
nenhuma outra razão para assegurar esse privilégio à linguagem, esse destino singular, como
ele diz. Logo, encontramos, de todo modo, duas hipóteses... No ponto onde estamos, podemos
considerar uma hipótese estrita, que corresponde à letra de Foucault, e uma hipótese ampliada,
generalizada, que abandona por um instante a letra de Foucault, mas com o único objetivo,
talvez, de tornar mais clara a própria conclusão. E esta será comum às duas hipóteses, a saber:
o advento de uma terceira forma que não é Deus nem homem, e que esse advento depende
apenas do fator agrupamento de um ser da linguagem (hipótese restrita) ou depende (hipótese
ampliada) do agrupamento dos três aspectos: ser da linguagem, ser da vida, ser do trabalho,
cada um dos três possuindo sua relação com seu fora. Assim, não é preciso fazer drama.
Neste ponto, eu quero escolher a hipótese ampliada para, em seguida, retomar a letra de
Foucault. E repito o motivo da escolha: se se fala de algo tão importante quanto uma forma de
pensamento nova que não é nem Deus nem o homem, e que depende somente da literatura,
parece-me que falta algo, a começar pela relação da literatura com a vida e o trabalho. Pois a
própria literatura é indissoluvelmente ligada com a vida tout court e com o trabalho tout court.
No final do nosso último encontro, Comtesse me dizia que compreende por que Foucault
dá esse privilégio ou esse destino singular à linguagem. Vamos ouvi-lo então.
[COMTESSE] [longa passagem inaudível] Por que reservar esse reagrupamento à linguagem? Por
que não um reagrupamento da vida e do trabalho? Foucault diz que a linguagem que se recolhe
na literatura é uma força da linguagem fora da representação. Insiste no fato de que o
pensamento moderno descobrirá algo que se tornará a colocação e o instrumento de uma nova
representação do sistema de escritura da língua, como fora relativo da significação
representativa, esta mesma sempre dirigida – segundo Foucault – pelo modo segundo a qual a
linguagem é “redobrada” [redoublé] na representação. Além disso, a literatura não pode, diz
Foucault, ser pensada a partir duma teoria da significação. Ele a define não somente como
agrupamento, mas como um modo de remontar a função representativa da linguagem em seu
ser bruto. O ser bruto da linguagem difere então da profundidade da organização, por exemplo
da organização como sistema [?] diacrônico da língua, assim como do sistema escritural que
põe a língua.
10
Segundo o texto de Foucault, que não foi bem compreendido, pode-se aproximar da
linguagem em questão a partir do espaço que ela mesma lhe dedica. O que Foucault descobre
fundamentalmente em As palavras e as coisas, e que transforma ou subverte o pensamento
clássico como lugar assegurado do saber, é que não se pensa e se sabe – qualquer que seja a
figura do saber ou a forma de pensamento – senão a partir de um espaço já linguístico que, ao
mesmo tempo, distribui todos os saberes de uma formação histórica determinada; o
desdobramento ou o redobramento dos saberes se impõe em sua forma ou sua figura fundadoras
relativas.
O espaço da linguagem, da episteme – que ele chama com diversos nomes, ora de saber
fundamental da linguagem, ora de ordem muda do saber, rede secreta, a priori histórico – não
é fundamento de verdade nem terreno de saber, mas fundação, subsolo, camada arqueológica
anterior a toda diferença ou oposição entre teoria e prática.
Trata-se da célebre tese de Foucault: se se quer opor a prática à especulação pura, em
qualquer caso, ambas representam um único e mesmo saber fundamental em uma cultura e um
momento dados; há sempre uma única episteme que define as condições de possibilidade de
todo saber, aquilo que se manifesta numa teoria ou o que está silenciosamente investido numa
prática. O espaço da linguagem não é o pensamento do ser, ou seja, o pensamento de uma
verdade, de uma forma fundadora ou duma figura constituinte. Ele desconstrói [...] o primado
ou a prioridade de uma epistemologia. Ele não é o pensamento, mas somente um evento de
pensamento da linguagem no qual se repete formalmente ou se reproduz sempre a relação do
signo, do sentido e uma lei da linguagem que assegura justamente essa relação do signo e do
sentido, tornando-a, como toda lei, constante. Dito doutra maneira, em toda cultura, era e
formação existe sempre um sentido dos signos ou uma lei da linguagem, um jogo dos signos
medido pelo sentido, custodiado pela lei. Os signos podem se conjugar ao mundo como
superfície textual. Eles podem se separar ou se retirar do mundo para conjugarem-se à cena
representativa da ordem, do encadeamento das razões ou das ideias; podem fugir da
representação para designar seu fora irredutível, exprimir uma profundidade finita. De todo
modo, eles excedem a conjugação semântica dos signos que se repete sempre pela lei da
linguagem. É apenas a conjunção semântica que muda de forma, mas ela mesma não cessa de
se repetir na série disjuntiva dos eventos de pensamento da linguagem. O que varia dum espaço
de linguagem a outro é somente a função do signo, o lugar do sentido, o estatuto da lei, a forma
da conjunção e, talvez, a figura da disjunção.
11
Segundo a lei das semelhanças, o Renascimento é um campo textual de signos seculares,
naturais, opacos, de modo que falar não é ver, mas se esforçar para ler o texto cifrado, simbólico
do mundo, tentar marcar a semelhança com o texto sagrado do livro, ou seja, a diferença sagrada
do sentido como qualquer outro.
Em segundo lugar, há um estatuto, um sentido interno aos signos, representativo,
arbitrário, neutro, transparente, segundo a lei da ordem ou da diferença com relação ao livro
sagrado. E justamente faz com que falar não seja ver, mas olhar à distância segundo a ótica
reflexiva do poder de se representar, de julgar, de pôr em série, de classificar, de formar um
quadro representativo, desdobrado.
Em terceiro lugar, na idade moderna, não há mais um sentido interior, mas exterior ou
um fora finito profundo, exterior à representação, ou fora do dentro pleno, transparente. Sentido
profundo, justamente. Signos agora representativos, expressivos, segundo a lei do tempo, da
diferença inclusiva como lei da significação representativa. O tempo, diz Foucault, é para a
linguagem seu modo interno de análise, não é seu lugar de nascimento. Isso faz com que falar
não seja ver, mas elaborar as significações representativas, exprimir organizações complexas,
até descobrir sistemas estruturais como o próprio fora desses significantes.
Em outras palavras, os espaços de linguagem não se induzem nem se deduzem uns dos
outros, não são descritos como uma sedimentação natural das camadas geológicas, nem existem
uma biologia dos saberes, pois cada espaço é uma base frágil, uma fundação que não se sustenta,
um subsolo móvel, um espaço devotado a afundar ou a desmoronar. A série diferencial dos
espaços das linguagens é uma série de crises, de cortes e rupturas estranhos, de
descontinuidades enigmáticas, de eventos que surgem e desaparecem subitamente sem
nenhuma evolução natural, nenhuma passagem histórica regrada, nenhum devir dialético. O
paradoxo da descontinuidade, a aporia da mutação brusca abrem-se somente ao enigma da
relação do evento de pensamento da linguagem, ou seja, da episteme, chamada por Foucault de
erosão do fora. De fato, nenhum espaço de linguagem pode dar conta de si por si, não pode ser
razão de si, inscrever-se num princípio de razão. Um espaço de linguagem surge e desaparece
sob o efeito de um fora inaudito, exposto à erosão do fora, à pressão subterrânea que o corrói,
fissura, fratura, produz sua quebra e seu desmoronamento. Cada espaço de linguagem, cada
evento de pensamento da linguagem, cada tipo de episteme se abre e fecha de fora, abre e fecha
o fora, a linguagem outra do fora. A abertura e o fechamento do fora, do espaço do fora, é o
jogo secreto do surgir e do desaparecer de todo espaço de jogo da máquina cultural de uma
época.
12
O que se repete é a disjunção da série de eventos de pensamento da linguagem e do
espaço do fora. Nenhum evento de pensamento da linguagem, nenhum saber como
desdobramento ou redobramento do evento e nenhuma verdade fundadora logram pensar ou
efetivar o fora, o espaço do fora, a linguagem do fora, o fora da linguagem. O fora da linguagem,
diz Foucault, não designa, permanece sempre impensado no coração do pensamento. A
literatura12 procura reunir em seu movimento de retorno ao ser bruto da linguagem não a língua,
nem a organização da língua, e nem mesmo os espaços epistêmicos de linguagem, mas
justamente a linguagem do fora como fora da linguagem. E o espaço do fora tem relação não
apenas com a literatura, mas com o evento genealógico da história da loucura. Evento desse
espaço do fora que desfaz quase que antecipadamente a conjunção imemorial dos signos e do
sentido segundo uma lei epistêmica de linguagem. Evento no início da história da loucura, na
alta Idade Média, no final do século XV, um vórtice abissal de forças, signos desatados, efeitos
de intensidade violenta, evento de uma demência pura, insustentável, insuportável e que se
anulará na história da loucura, a história da reserva infinita de um saber incomensurável do
próprio evento genealógico. A história da loucura, a história da diferença especular com o
louco, diferença exclusiva com o desatinado, da diferença inclusiva do doente mental, porque
no século XV, na Alta Idade Média, produz-se justamente esse evento genealógico da história
da loucura como evento sempre recoberto pela série de binaridades [binairitées] que constituem
a história. É um impulso irresistível, uma potência irrefreável que emerge, que explode num
gigantesco delírio que invade tudo, erupção violenta de loucura com figuras alucinatórias
intensas e aterrorizantes.
Segundo Foucault, é uma escansão tríplice. Primeiramente, na loucura irruptiva, no
evento do espaço do fora, na explosão da violência, da loucura, da besta, a besta domada,
adestrada, socializada, volta, ressurge, se impõe e domina o homem.13 A loucura já é este devir-
12
“Ora, é essa experiência que reaparece na segunda metade do século XIX e que está no coração mesmo da
linguagem, tornada – ainda que nossa cultura busque sempre refletir a si como se detivesse o segredo de sua
interioridade – o centelhamento do fora: em Nietzsche, quando ele descobre que toda a metafísica do Ocidente
está ligada não apenas à sua gramática (o que já se sabia aproximadamente desde Schlegel), mas àqueles que,
sustentando o discurso, detém o direito à palavra; em Mallarmé, a linguagem aparece como demissão daquilo que
ele nomeia [...] o movimento no qual desaparece aquele que fala; em Artaud, toda linguagem discursiva é
convocada a se desenrolar na violência do corpo e do grito, e que o pensamento, abandonando a interioridade
faladora da consciência, torna-se energia material, sofrimento da carne, perseguição e dilaceramento do próprio
sujeito; Em Bataille, o pensamento, ao invés de ser discurso da contradição ou do inconsciente, torna-se o do
limite, da subjetividade rompida, da transgressão; em Klossowski, é a experiência do duplo, da exterioridade dos
simulacros, da multiplicidade teatral e demente do eu [moi]”. FOUCAULT, M. “La pensée du dehors”. In: Dits et
écrits v. I. Op. cit., p. 523.
13
Comtesse interpreta com liberdade esta passagem de História da loucura: “No pensamento da Idade Média, as
legiões de animais, batizados definitivamente por Adão, ostentavam simbolicamente os valores da humanidade.
Mas no começo da Renascença, as relações com a animalidade se invertem: a besta se liberta, escapa do mundo
13
besta do homem, devir que se multiplica e se dispersa numa multiplicidade que Foucault chama
de multiplicidade de animais delirantes, que especifica essa multiplicidade, explosão da
potência liberada de toda diferença sagrada. O devir-besta, os devires-animais delirantes,
apagam os grandes nomes – e não somente as formas fundadoras – Deus ou homem. É um
apagamento que se tornará insuportável e que será reapropriado justamente pelas formas
fundadoras de Deus e do homem, como formas fundadoras, ou supostamente fundadoras, dos
saberes. Mas quando o homem enquanto nome se apaga nos devires, os animais, diz Foucault,
tornam-se a natureza secreta do homem.
Em segundo lugar, a irrupção da besta, a loucura animal que explode, coincide com a
explosão termodinâmica da Terra, com a deflagração da natureza, diz Foucault, com o
deslocamento da potência da natureza. A terra arde e vomita seus mortos, as estrelas se apagam
e caem numa catástrofe cósmica inaudita. Toda vida, diz Foucault, se desfaz e sobrevém a morte
[...]
Em terceiro lugar, o aniquilamento do mundo, a potência cósmica que se conjuga à
explosão da Terra ou ao deslocamento da natureza libera então o que Foucault chama de o
delírio da destruição pura, delírio que é exasperação extrema do devir-besta ou a intensificação
dos devires-animais, a intensidade violenta ou selvagem que não cessa de aumentar. Foucault
insiste no furor universal dos animais delirantes, em sua fúria devastadora e uivos dementes,
seus gritos desmesurados, seu rosnar vingativo, seu voluptuoso devorar, sua rubra carnificina.14
Foucault não diz apenas da história da loucura e da história do tempo, desses modos de
integração, de diferenciação como saída violenta do evento múltiplo, multiplicado pela potência
irruptiva da loucura. Ele não fala simplesmente do tempo como autor do esquecimento, nem do
esquecimento do esquecimento, tampouco do tempo ou da história da loucura como espaço
simples de um poder de recusa, de exclusão e de segregação, de um poder de apropriação e
reapropriação da loucura, de arrazoar a loucura segundo uma figura de maestria ou dominação,
ou segundo formas fundadoras de saber. Ele não fala do tempo como de um poder de onde se
extrairia um saber, ou ainda não se contenta de tratar do jogo entre as estratégias e os arquivos,
do jogo complexo da cultura, do qual as sociedades têm necessidade para sobreviver.
da fábula e da ilustração moral a fim de adquirir um fantástico que lhe é próprio. E, por uma surpreendente
inversão, é o animal, agora, que vai espreitar o homem, apoderar-se dele e revelar-lhe sua própria verdade. Os
animais impossíveis, oriundos de uma imaginação enlouquecida, tornaram-se a natureza secreta do homem”. Op.
cit., p. 25.
14
Em O anti-Édipo, Deleuze e Guattari não associam a loucura a uma descida em direção à animalidade, mas à
uma criatividade, uma “bricolagem” produtiva.
14
Foucault não exclui o evento genealógico da história da loucura, apenas não se contenta
em registrá-lo para acentuar precisamente o desmoronamento do sentido, a explosão, o
deslocamento ou os efeitos do delírio de destruição pura ou de cancelamento do mundo. Pois o
evento genealógico da loucura, que pertence ao fora como fora do espaço da linguagem, não é
mudo, define-se não como aquilo que acontece, mas, ao contrário, diz respeito àquilo que se
produz no que acontece, ou seja, no que se reproduz ou se repete. Dito doutro modo, antes
mesmo que um poder se exerça para rejeitar ou anular o evento, reduzi-lo ao que acontece, antes
mesmo que um saber surja a partir desse poder para fixá-lo, solidificá-lo e consolidá-lo, para
Foucault, o evento do espaço do fora também repete um saber ou uma linguagem. Ele é,
enquanto evento, o refúgio de um saber oculto ou o segredo de uma linguagem perdida. Os
animais ditos delirantes são, para Foucault, os elementos de um saber difícil, fechado, esotérico.
Nesse saber fechado, guardado, detido pelos loucos, perfila-se o que será a crueza da realização
final. Esse saber do evento genealógico da história da loucura como evento do espaço do fora,
esse saber estranho é o da potência desatada da loucura, da intensidade violenta do desejo, e
anuncia o que Foucault chama de última felicidade e o castigo supremo.15 Esse saber anuncia a
catástrofe, o desmoronamento fulgurante, o advento de uma noite onde a razão do mundo é
devorada.16 Não se quer saber nada do que sabe o louco, deseja-se que o louco não possa dizer
o que sabe e é isso que requer o gesto do poder por meio de sua exclusão, de sua rejeição, de
sua segregação; constitui-se o saber fechado e estranho do evento da loucura como um saber
interdito, anterior ao poder e ao saber que se extrai desse poder. Com relação ao espaço do fora
e à linguagem desse espaço, o poder se elabora, o não saber radical da linguagem, ou seja, a
vontade de ignorar o corpo da loucura.17
15
“O que anuncia esse saber dos loucos? Sem dúvida, uma vez que é o saber proibido, prediz ao mesmo tempo o
reino de Satã e o fim do mundo; a última felicidade e o castigo supremo, o todo-poder sobre a terra e a queda
infernal. A Nau dos Loucos atravessa uma paisagem de delícias onde tudo se oferece ao desejo, uma espécie de
Paraíso renovado, uma vez que nela o homem não mais conhece nem o sofrimento nem a necessidade”. História
da loucura, pp. 26-7.
16
“É o grande sabá da natureza: as montanhas desmoronam e tornam-se planícies, a terra vomita os mortos, os
ossos afloram sobre os túmulos; as estrelas caem, terra pega fogo, toda forma de vida seca e morre. O fim não tem
valor de passagem e de promessa; é o advento de uma noite na qual mergulha a velha razão do mundo”. Ibid., p.
27.
17
É útil referir-se ao prefácio da primeira edição de História da loucura (suprimido nas edições seguintes), onde
Foucault esclarece sua tese: dar conta da existência de um “grau zero da história da loucura, onde ela é experiência
indiferenciada, experiência ainda indiferenciada [non partagée] da separação [partage]” entre razão e loucura.
Pode-se dizer: nem linguagem, nem julgamento, nem grito, nem juízo. Fazer a história da loucura, portanto,
significará: “fazer um estudo estrutural do conjunto histórico – conceitos, instituições, medidas legais e policiais,
conceitos científicos – que mantêm cativa uma loucura cujo estado selvagem nunca pode ser restaurado em si
mesmo; mas na falta desta pureza primitiva inacessível, o estudo estrutural deve remontar à decisão que liga e
separa razão e loucura; deve buscar descobrir a troca perpétua, a obscura raiz comum, o confronto original que dá
sentido à unidade, bem como à oposição, do são e do insensato”. FOUCAULT. M. “Préface”. In: id. Folie et
15
[DELEUZE] É perfeito, uma intervenção notável e que responde precisamente ao nosso
problema: por qual razão Foucault dá à linguagem esse destino singular com relação à vida e
ao trabalho? Não desejo de modo algum fazer objeção à intervenção de Comtesse, assim como
ele não faz à minha linha de leitura. Vocês já têm os elementos para decidir e é possível que
alguns dentre vocês tenham outros elementos. Não há razão para nos restringirmos a duas
hipóteses. A vantagem da versão de Comtesse é que ela respeita inteiramente a letra de
Foucault. Eu gostaria somente de acrescentar algumas observações que fazem com que, apesar
do que disse Comtesse, mantenha-se a possibilidade de uma hipótese mais ampla. Mas não é
para impô-la a vocês, pois, de todo modo, as duas hipóteses se reencontram como numa
bifurcação. Tento seguir a ordem do que Comtesse disse.
O primeiro ponto de Comtesse retoma com um rigor e honestidade absolutos o problema
que eu acabei de pôr e o aceita tal qual o elaboro: por que esse destino singular da linguagem?
Não tenho nada a acrescentar, então.
O segundo ponto consiste em indicar imediatamente que não é surpreendente que
Foucault trate a literatura desacoplada da linguística, pois a literatura compreendia a linguagem
sob uma potência que não era de natureza linguística. Notadamente, a literatura não tratava da
linguagem do ponto de vista da designação nem da significação, nem mesmo do ponto de vista
do significante. Comtesse nos lembrou da importância do termo ser bruto da linguagem em
Foucault e estou inteiramente de acordo, pois também o que eu propus consistia em definir esse
ser bruto, independentemente de qualquer referência à designação, ao significado e ao
significante. Eu pensava encontrá-lo nesses vetores que tendem para um fora da linguagem.
Portanto, creio que meu acordo com Comtesse sobre esse ponto é completo, exceto por
uma nuance. Eu compreendo muito bem que a literatura moderna não toma a linguagem no
nível dos componentes linguísticos nem no das significações. Mas, quando eu pergunto por que
não há um ser bruto da vida, entendo igualmente que um tal ser bruto só poderia ser descoberto
em desacoplamento com os organismos e que, da mesma forma que a linguagem da qual a
literatura se ocupa, transborda a dimensão do significar, o ser bruto da vida de que se ocuparia
esta terceira figura, se ela existisse, ultrapassaria igualmente a organização da vida. E do mesmo
modo para o trabalho. Parece-me então que esse ponto também não resolve o impasse entre
uma hipótese estreita ou ampliada. Por que a vida não seria capaz de uma operação semelhante
que desvelaria um ser bruto, assim como a linguagem na literatura?
Déraison. Histoire de la folie à l'âge classique, Paris: Plon, 1961, pp. I-XI. Reproduzido em Dits et écrits v. I. Op.
cit., pp. 160 e 165.
16
O terceiro ponto forte da intervenção de Comtesse – que revela diferenças significativas
entre nós – consiste em afirmar que não se deve crer que a linguagem seja uma força como as
outras, ou que o espaço da linguagem seja um espaço como os outros, ou que – e voltamos ao
ponto onde estávamos – tudo isso seja um estrato entre os outros. Se há então um destino da
linguagem, é porque, de fato, não se pode abordá-lo com justiça por meio da geologia,
retomando uma expressão de Comtesse. Ou será a base das bases, o que quiserem, mas não uma
base. E não é um saber, diz Comtesse. Então talvez a vida seja um saber, o trabalho seja um
saber, um saber-viver e um saber-fazer, mas a linguagem não é um saber, não é um saber-falar,
é outra coisa, diz Comtesse. Em sua expressão mais simples e menos lírica, ele diz: é uma
condição de possibilidade, é a própria condição de possibilidade de todo saber. Por isso, sem
dúvida, não se pode dizer que ela seja um estrato, uma base. É a condição de possibilidade de
todo saber.
Estou de acordo. Mas isso não me satisfaz, porque condição tem muitos sentidos. E
mesmo se isso não satisfaz a Comtesse, ele sempre poderá corrigir a expressão condição de
possibilidade dizendo que possibilidade é um termo improvisado. Qualquer que seja o sentido
ou a precisão que se dê à expressão: a linguagem não é um saber. A linguagem não é um saber,
mas a condição de... reticências, a condição de possibilidade, digamos, de todo saber. Sim, mas
e depois? Fica excluído meu problema do ponto de vista da hipótese mais ampla? Porque, desse
ponto de vista, condição é como finitude, há muitos sentidos para o termo condição assim como
há muitas raízes da finitude. Se em filosofia eu uso a expressão razão suficiente,
aproximadamente como equivalente de condição, recordo-me imediatamente de um grande
texto de Schopenhauer que se chama Sobre a raiz quádrupla do princípio de razão suficiente.
Em suma, há muitas razões. Eu admito facilmente quando Comtesse diz que a linguagem é a
condição de todo saber. Não sei se estou convencido, mas entendo o que isso quer dizer. Por
outro lado, não compreenderia se dissesse que condição de possibilidade esgota todo o sentido
da palavra condição.
Se eu retomar a lista das ratio de Schopenhauer, vejo que há uma raiz (dita em latim)
cognoscendi, ou seja, uma condição de conhecimento. Não é a mesma coisa, mas digamos que
seja uma condição do saber. Mas há também uma conditio fiendi, condição do devir. E uma
conditio agendi, uma condição do fazer. Nesse nível eu reencontro meu problema. Posso
conceder a Comtesse tudo o que quiser a propósito de um privilégio da linguagem ou de um
destino singular da linguagem. Digo somente que isso não exclui minhas dúvidas, ao contrário,
meus impulsos me levam a uma hipótese ampliada. Pois, se é verdade que a linguagem é, ou
17
pode ser chamada de condição de possibilidade de todo saber, a vida não é – a partir do
momento em que o saber não é só dito e falado – uma ratio fiendi de todo saber? E o trabalho
não é conditio agendi do saber? De modo que, na medida em que haveria uma tripla raiz da
condição, eu poderia dizer que há outras duas potências, vida e trabalho, exatamente o que
Comtesse reservou à linguagem. Com essa simples restrição, é claro, que não é o mesmo sentido
da palavra condição.
Eu repito, não estou dizendo que tenho razão. Digo apenas que vejo a possibilidade de
manter uma hipótese ampliada e vejo razões que tornariam necessária sua manutenção.
Quarta observação: confirma a anterior e diz respeito ao que chamo de diferenças
essenciais entre a minha leitura de Foucault e a de Comtesse. Comtesse retomou com grande
exatidão e, em vários momentos, fez até mesmo uma espécie de litania num momento muito
brilhante de sua intervenção, falar não é ver. Falar não é ver e a cada vez ele mostrou em que
isso consiste. Mas vejo que, a cada vez, era uma forma de expulsar o ver. Ele disse: falar não é
ver, por exemplo, é ler. É muito interessante, mas era uma maneira de sobredeterminar o falar.
Quanto à potência de ver, ele não reconheceu nenhum domínio e nenhuma força particular.
Creio que se pode muito bem ler Foucault dessa forma. Desde o início destas aulas sobre
Foucault, meu objetivo foi propor uma outra interpretação de falar não é ver [interrupção na
gravação]. [Comtesse?] pôs radicalmente em questão tudo o que eu disse no primeiro trimestre.
Não vejo nenhum inconveniente, eu sempre lhes disse que podem escolher outra interpretação.
Mas creio que, no nível desse quarto ponto, a verdadeira diferença entre a minha leitura e a de
Comtesse seja sobre o que significa a colocação falar não é ver.
Eu diria que a leitura de Comtesse tenha mais a ver com Blanchot do que com Foucault.
Não tenho certeza, mas em todo caso ele deu uma interpretação muito blanchoniana de falar
não é ver. Eu creio na irredutibilidade do ver em Foucault. Isso é uma confirmação para mim
de que a linguagem não tem um destino singular. Ou melhor, tudo tem um destino singular. A
linguagem tem um destino singular porque ver tem um destino singular.
O último ponto, em minha opinião, muito complexo. A verdadeira razão do primado,
diz Comtesse, em resumo, é esta: é preciso dizer não apenas que o espaço da linguagem é o
único a ser condição (eu repito, não me parece evidente, que o espaço da linguagem seja o único
a ser condição, tudo depende do sentido de condição), mas ele ia mais longe em seu único
ponto, o mais longo de sua intervenção. Nesse ponto, quando ele diz não apenas que o espaço
da linguagem é o único a estar em relação com o fora, com o que Foucault chama de fora, essa
espécie de potência que ainda não vimos, que abordamos, mas que ainda não procuramos em
18
que ela... Mas que sentimos quando, e aqui Foucault... Comtesse estaria completamente de
acordo, eu suponho, o fora não tem nada a ver com o mundo exterior, é uma enésima potência,
mas Comtesse diz que é precisamente o espaço da linguagem, ou é precisamente a linguagem
em sua potência que constitui o espaço do fora. Em outras palavras, é por aqui que passa o
verdadeiro enfrentamento com o fora, ou é o lugar privilegiado com o fora. E aqui eu
compreendo o que Comtesse disse. Novamente não vejo por que dizer isso. Não vejo por que a
vida – eu retomo – não tenda na direção de um espaço que seja inteiramente vetorizado para e
sobre uma relação com o fora. Não vejo por que não há um fora da vida tanto quanto há um
fora da linguagem, e que, por isso, como diz Comtesse tão bem, seria uma vida do fora [de
dehors], assim como há uma linguagem do fora.
Quando chegarmos lá, será talvez o caso de repelir a noção de fora como potência
última. Mas no fundo não é evidente, sobretudo porque, à força de querer mostrar que a
linguagem tecia esse espaço do fora e enfrentava o fora em seu espaço, Comtesse fez irromper
o problema da loucura, que ele pode pensar, com maior ou menor razão, que percorre toda a
obra de Foucault.
Ora, quando ele nos falou da loucura, o que me impactou foi que ele não parou de
convocar – para tratar daquilo que ele chamava de explosão da loucura, de uma razão para além
da razão –, de invocar a natureza, a vida, a besta. É claro, ele se recuperou, tudo isso fazia parte
da linguagem do fora. Mas eu recomeço: por que dizer isso? Ou, por que dizer somente isso,
por que fazer todo o tempo como se a vida, sob suas formas exacerbadas, pertencesse à
linguagem do fora, sem afirmar ao mesmo tempo que a linguagem do fora pertence ao mais
profundo da vida? Senão, por que Comtesse teria necessidade de falar de uma verdadeira
explosão da natureza? Ele poderá dizer que tudo isso é ainda palavra do fora, mas, vocês sabem,
não vejo por que considerar que o processo da loucura passa pela linguagem ou encontra nela
um destino singular e não encontra na vida e no trabalho um destino singular.
Não digo de modo algum... e é a essência de minha reação à Comtesse, ele vê somente
um sentido para uma palavra como condição, um único sentido para além de toda condição,
mas as condições são múltiplas; novamente, há uma condição, uma condição da vida, tal como
uma condição do falar. E há diferentes “para além da condição”.
Se considerarem a experiência mais... Se vocês considerarem o que sentimos, quaisquer
que sejam nossas aventuras individuais, o que sentimos da loucura quanto captamos que ela nos
diz respeito, não veem que isso concerne não apenas a linguagem, em qualquer sentido que a
tomem, mesmo no sentido desse poder profundo que nos atravessa e do qual falava Comtesse,
19
mas que a vida nos atravessa não menos e que há um vitalismo da loucura, não menos do que
há uma linguagem da loucura e que há um trabalho da loucura?
Se eu tivesse uma crítica a Comtesse, ela seria muito modesta. Há algo mais belo do que
a loucura: sair dela, e é aqui que há vida, trabalho, linguagem. Caso contrário, a loucura não
teria muita coisa para nos ensinar, seria derrisório, a grandeza começa no momento que se sai
dela. E como se sai dela? Como ela se manifesta quando não se está bem, e como se manifesta
quando se está melhor? É evidente que se já se manifesta de fora, em certa maneira de falar,
sim, é verdade, queremos ir para fora da linguagem, apontamos vetores para fora da linguagem.
Mas tudo falha, nossos vetores se rompem, ficamos afásicos e nada acontece. Neste caso, na
potência da linguagem, vocês sabem, passamos ao lado. Procuramos fabricar um objeto,
escrever uma página. Como distinguir o ser bruto do trabalho do ser bruto da linguagem?
Já viram um esquizofrênico escrever? Imagino que sim. Viram como a página é
entulhada e como há certa dor nesse processo? Essa carga [bourrage], como se se quisesse pôr
algo numa caixa. Empregamos o termo carregamento [bourrage] para indicar que concerne a
linguagem do esquizofrênico.18 Mas quando o esquizofrênico toma um objeto, quando constrói
algo, sua produção também é rica, plena. Um dos mais bonitos textos de Michaux é a descrição
de uma mesa fabricada por um esquizofrênico,19 que ele nunca termina de fazer e à qual sempre
acrescenta alguma coisa. Quanta dor há nesse contínuo acrescentar! E a vida, o que é a vida na
loucura?
Não falo de tudo o que Comtesse disse sobre as bestas e o devir-besta, porque são coisas
para as quais Félix Guattari e eu já demos nossa contribuição. Mas quando falávamos – coisa
que Foucault não faz – de devires-animais20 que percorrem a loucura e a esquizofrenia, nós
associávamos esses atos fundamentalmente a uma potência de vida que era a vida na
esquizofrenia, algo indissociável da natureza, da vida, da linguagem.21 Creio que Comtesse fez
uma retomada surpreendente, pois em seu momento mais lírico, enfiado na produção da
18
“Dir-se-ia que o esquizofrênico passa de um código a outro, que ele embaralha todos os códigos, num
deslizamento rápido, conforme as questões que se lhe apresentam, jamais dando seguidamente a mesma
explicação, não invocando a mesma genealogia, não registrando da mesma maneira o mesmo acontecimento, e até
aceitando o banal código edipiano, quando este lhe é imposto e ele não está irritado, mas sempre na iminência de
voltar a entulhá-lo com todas as disjunções que esse código se destina a excluir”. O anti-Édipo. Op. cit., p. 29.
19
Henri Michaux, Les Grandes épreuves de l’esprit, Paris: Gallimard, 1966, p. 159.
“Tal como estava era uma mesa feita de pedaços, como foram feitos certos desenhos de esquizofrênicos, desenhos
ditos entulhados”. O anti-Édipo. Op. cit., p. 17.
20
Cf. DELEUZE, G. GUATTARI, F. “1730: devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível”. In: Mil platôs, vol.
4, op. cit.
21
“Não pretendemos fixar um polo naturalista da esquizofrenia. O que o esquizofrênico vive especificamente,
genericamente, de modo algum é um polo específico da natureza, mas a natureza como processo de produção”. O
anti-Édipo, p. 14.
20
natureza, no desmoronar da vida etc., assim mesmo ele explicou que tudo isso passava pelo
espaço da linguagem. Eu retomo minha observação: sim, ele tem razão, isso passa pelo espaço
da linguagem sob o ponto de vista, digamos, da condição de possibilidade, mas isso passa pelo
espaço da vida do ponto de vista da ratio fiendi, da condição do devir, e passa pelo trabalho do
ponto de vista da conditio agendi, da condição do fazer. Mas o louco, vocês sabem, não é
alguém que fala, que persegue uma experiência com a palavra, mas é quem está lançado numa
experiência dolorosa relativa à vida, ao trabalho, à linguagem.
Em função dessas observações e sem disputar o que disse Comtesse, que me parece de
uma qualidade muito alta, vocês têm agora os elementos de duas hipóteses possíveis, no que
diz respeito ao texto de As palavras e as coisas. De certa maneira, Comtesse tem razão,
evidentemente, porque é verdade que Foucault reserva um destino singular à linguagem nesse
livro. Se eu quisesse então salvar a minha hipótese ampliada – é o que eu faço, aliás –, seria
preciso lançar mão de outros textos de Foucault. E Comtesse também se deu o direito de usar
abundantemente História da loucura para esclarecer esse problema em As palavras e as coisas.
Assim, eu invocaria todos os textos que me parecessem não terem sido tão notados por Foucault
(falaremos disso depois da Páscoa) e que testemunham uma espécie de vitalismo muito
profundo. É por esse motivo que eu sublinhei a importância dos textos sobre Bichat, sobre a
vida e a morte em Foucault. Por exemplo, as grandes páginas sobre Bichat que terminam com
essa frase: “o vitalismo aparece tendo como pano de fundo esse ‘mortalismo’”.22 Achei
necessário lhes dizer na última aula sobre o livro de Bichat, pois nos colocou num lugar onde a
potência de vida se chocava com a morte de maneira muito diferente da linguagem; não se
tratava da linguagem, mas do inverso: a linguagem passava por essa região. Agora, resta-nos
concluir a minha hipótese alargada para reencontrar o acordo, pois as duas hipóteses têm
aproximadamente o mesmo resultado, o surgimento de uma nova forma de vida que não é Deus
nem o homem. Podemos prosseguir ou vocês querem fazer uma pequena pausa? Alguém tem
algo a dizer? É complicado, hein? Mas eu gosto, pois é complicado, mas não diz respeito ao
essencial. Não é o essencial porque se mudarmos um pouco a hipótese restrita, poderemos
chegar a um acordo. Eu cederia um pouco e Comtesse também. Mas ele não gosta de
compromissos...
Bem... meditemos. Dois minutos de meditação. Às vezes sou assim. No silêncio... o
silêncio é tão... é formidável. Quando poderemos nos calar? Havia um professor de economia
22
FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Op. cit., p. 166.
21
política no início do século XX que dava cursos cada vez mais curtos, com silêncios cada vez
mais longos. Era formidável! [alguns segundos de silêncio] Disseram-me que Lacan... eu nunca
ouvi Lacan, ou melhor, sim, uma vez, na província. Dizem que Lacan fazia uma espécie de
silêncio enorme entre duas frases. Está bem, mas é preciso saber fazê-lo, é preciso técnica
[risadas]. É muito difícil [vinte segundos de silêncio] Um exercício de silêncio antes das férias.
Vejam que o silêncio é tão estranho que é um problema de pós-graduação. Em qual sentido
falar é uma agressão ao outro? É uma agressão. Por exemplo, se falam comigo antes que tenha
tomado o café de manhã. Mas há pessoas que se levantam falando... Um curso deve ser uma
violência para quem fala e para quem escuta. Bem, continuemos.
Bem, a hipótese ampliada... Eu queria verdadeiramente vulgarizar o superhomem. De
fato, creio que seja uma noção grotesca, o superhomem, se não se acrescenta isso: o
superhomem é algo muito simples. Ademais, é errado crer que o superhomem seja um advento
esplendido que liquida os velhos problemas. De modo algum. É preciso conceber... aqui eu
forço um pouco os textos de Nietzsche, mas como não é um curso sobre ele, não há problema.
O superhomem tem suas dificuldades. Nem tudo era belo sob a forma Deus, nem tudo era belo
sob a forma homem. Mas nem tudo é belo sob a forma superhomem. Não se deve acreditar que
o superhomem surge com os problemas resolvidos. Ele terá que se bater com os restos de Deus,
sobretudo durante toda a idade do homem. É o que Nietzsche chama de o último Papa. E a idade
do homem é inseparável do último Papa, ou seja, o problema não está completamente resolvido,
a luta continua.
Se tomarmos os textos de Nietzsche sobre o superhomem, teremos que lidar com o que
Nietzsche chama de ora “o” ora “os” último(s) homem(s) e que, portanto, sob cada forma, há
sempre uma espécie de agitação considerável, de modo que não esperem que o superhomem
seja prodigioso. É outra coisa. Procuremos dizer o que ele é. Foucault não usa a palavra
superhomem com frequência, e quando a usa, ele a remete a Nietzsche, não a usa por sua própria
conta. Mas o que ele usa por sua própria conta é uma forma de vida que não seria mais nem
Deus nem homem. Assim, por comodidade e em virtude do perfeito conhecimento de Nietzsche
por Foucault, eu digo, para ir mais rapidamente, “o superhomem”.
Há uma primeira dimensão do superhomem. Vemos uma primeira força constituinte do
superhomem, a força de agrupamento ou do ser da linguagem quando a literatura se desacopla
da linguística, no sentido que Comtesse empregou. De fato, a literatura desde então se torna
uma força real. E acrescento, unicamente em função de minha hipótese ampliada: suponhamos
– e cabe a vocês julgarem – que a vida seja capaz de um tal movimento, agrupamento de um
22
ser bruto da vida desacoplado da biologia. Vocês sabem, essa é nossa hipótese ampliada. Assim
como a força de reunião da linguagem salta na literatura, desacopla-se da linguística, a força de
agrupamento da vida se desacopla e salta na biologia molecular.
Vocês poderiam dizer que a biologia molecular é algo abstrato. No fundo, o que ela tem
a ver com o superhomem? É uma interpretação cientificista do superhomem. Não, seria
estupido me fazer dizer isso. Eu não considero a biologia molecular simplesmente uma ciência
nem um saber, mas o resultado de uma nova avaliação da vida. O que implica numa ciência é
verdadeiramente a descoberta do que podemos chamar de código genético. A descoberta do
código genético é um salto para fora da biologia, separação da biologia. Assim como o ser bruto
da linguagem saltava fora das designações e das significações, o código genético e os
componentes das cadeias genéticas se separam do problema da organização e do organismo. É
uma biologia molecular, eu repito, mas é também toda uma outra avaliação da forma da vida, a
vida se reúne num ser bruto, feito pelas cadeias do corpo humano. Ademais, assim como não
se tratava de linguagem constituída por fonemas, não se trata da vida constituída por células ou
microcélulas, são realmente um fora da vida. É a vida que descobre seu fora.
Alguém diria que só posso compreender cientificamente se sou biólogo, mas posso
compreendê-lo doutra maneira. Em que consiste um ser bruto da vida? É sobretudo que todos
dos esquemas da evolução mudam, ou estão mudando. Um dos esquemas profundos da
evolução no século XIX era a evolução que vai do menos diferenciado ao mais diferenciado.
Vocês sabem que a biologia molecular visa os esquemas de evolução de uma forma
completamente diferente, a saber, que vão de uma linha diferenciada para uma outra linha não
menos diferenciada. Ou então esquemas de evolução que vão de uma linha mais diferenciada
para uma outra menos diferenciada, ou seja, há evoluções colaterais, o que é formidável, pois
seria ininteligível para o século XIX evoluções colaterais ou até mesmo evoluções retrógradas.
O que isso significa? É toda a corrente das experiências atuais das quais todos
dependeremos, ou seja, as experiências nas quais a evolução encontra um agente privilegiado,
um destino singular no vírus, a saber, um vírus que pode portar um fragmento do código em
linhagem de um código completamente diverso. Por exemplo, um fragmento de código do
babuíno é levado para a cadeia do código genético do gato. Como disse Jacob, é o tipo de
evolução colateral por intermédio de um vírus que não é um tradutor. Isto é essencial, o vírus
não traduz um fragmento de código num outro, ele faz melhor, pois se houvesse tradução seria
ainda a velha biologia. Ele faz uma captura de código, de um outro código, em um código dado.
Aqui vemos aparecer a ideia, a vaga ideia, de uma espécie de ser bruto da vida. Jacob diz em A
23
lógica da vida23 que a maneira moderna de reconstituir – eu cito de memória – os amores
abomináveis caros à Idade Média, o homem e o babuíno, o coelho e... não me lembro. Bom. O
exemplo mais bonito é o da vespa e da orquídea, pois essas criaturas não têm nada a ver uma
com a outra. Uma captura um fragmento de código da outra, portanto vai do vegetal para o
animal e vice-versa. Aqui eu veria uma espécie de equivalente ao ser bruto da vida, cujo saber
correspondente seria a biologia molecular.
Do mesmo modo, assim como é preciso que a vida se separe da biologia e salte num
outro elemento, n’algo que é a biologia molecular, eu diria o mesmo para o trabalho. Um ser
do trabalho, um ser bruto do trabalho, nós sabemos todos hoje em dia o que é. São as máquinas
ditas de terceira espécie. Na idade clássica, na idade de Deus, eram as máquinas simples e os
mecanismos de relojoaria, eram os instrumentos [outils] de Deus, as máquinas de Deus. Deus
era experimentado pelo movimento de relojoaria... eu exagero... corrijam-me vocês mesmos. A
idade humanista foi a idade da finitude com máquinas energéticas, como a máquina a vapor.
As forças no homem se redobram sobre as forças do fora que são forças da finitude. É a grande
idade da termodinâmica.
As máquinas de terceira espécie são cibernéticas e informáticas. Por pouco que
saibamos sobre elas, é exagero dizer que é a prefiguração de um ser bruto do trabalho? É o vetor
por meio do qual o trabalho se encontra confrontado com seu próprio fora. E isso implica uma
separação em relação à economia e ao trabalho humano, exatamente como a biologia molecular
implica uma separação em relação à biologia, exatamente como a literatura moderna – no
sentido proposto por Foucault – implica uma separação em relação à linguística. Aqui encontra-
se novamente o esquema de minha tripla raiz. É a revanche da literatura contra a linguística, do
código genético contra os organismos, grande revanche dos vírus. O superhomem e seus vírus,
isso é surpreendente. Há bons vírus. O problema é domesticá-los. Em seguida, a revanche do
silício sobre o carbono, sim, o trabalhador humano está na base do carbono, como seu
organismo. As máquinas de terceira geração. Eu lhes dizia que este é um problema apaixonante:
por que a vida passou pelo carbono? Por que não outro elemento? Por que não o silício, que
tem propriedades maravilhosas? Bem, dizem que o silício não poderia funcionar... Entretanto,
há vantagem numa vida com base no silício, uma vida indexada com o silício era uma vida
maravilhosa, mas não estável, eis o que nos dizem. Isso não impede que o silício encontre sua
23
JACOB, F. a lógica da vida. Uma história de hereditariedade. Trad. Ângela Loureiro de Souza. São Paulo:
Graal, 2001.
24
estabilidade nas máquinas de terceira espécie. A revanche do silício sobre o carbono é talvez a
mais importante, é por isso que eu me apego tanto à minha tripla raiz.
Eu diria então que o superhomem não é complicado, é aquele que enfrenta essa nova
tríplice raiz, essa nova tríplice força: a força dos agramaticais no ser reunido [rassemblé] da
linguagem, a força das cadeias genéticas no ser reunido da vida, a força do silício no ser reunido
do trabalho. E o que isso quer dizer?
Para terminar, minha única questão é se tudo isso, por mais vago que seja, autoriza-me
a anunciar uma nova forma? Sim. De fato, as forças no homem entram em relação com novas
forças. Essas forças não são mais aquelas da finitude nem da elevação ao infinito. Na falta de
coisa melhor, eu lhes proporia chamá-las de forças do finito ilimitado, que se definiriam assim:
elas se dão cada vez que há uma situação de força, na qual um número finito de componentes
oferece um número ilimitado de combinações. Não pensem que isso queira dizer que tudo
depende de uma combinatória. A combinatória é um caso especial dessa combinação de forças.
E qual seria a operação fundamental desse enfrentamento das forças no homem com
essas novas forças, cujo silício é um dos [?]. Tínhamos dobra e redobra [pli e repli]. Vamos nos
servir de uma palavra, superdobramento [surpli], que seria uma dobra muito especial que o
século XIX não podia prever e é exatamente a dobra sobre o fora, a dobra sobre essa linha do
fora da qual acabamos de falar hoje e que ainda não enfrentamos realmente.
Como eu vejo o superdobramento? Ele seria essa operação sobre a linguagem que vimos
na última aula, principalmente quando eu recordava do termo de Burroughs, de seus métodos
de superdobramento operador sobre a linguagem. É o problema fundamental das cadeias no
código genético: como elas se dobram e como se redobram. Como isso acontece? O que faz
como que uma cadeia se dobre em um dado momento? Não há obras de divulgação sobre o
código genético. No domínio da biologia molecular, a fórmula, o caso típico do que chamo de
superdobramento, é a dupla hélice de Watson, que foi uma das bases da biologia molecular.
Desde Watson se desenvolveram todos esses problemas de dobramento de superdobramento da
cadeia, a partir do momento no qual tudo depende precisamente dessas dobras. E em seguida
as possibilidades que o silício apresenta de dobra, aquilo que se chama de memória e de
superdobrar memórias sobre um espaço microscópico.
Eu poderia fundamentar a hipótese – aqui vou rapidamente – de um mecanismo de
superdobramento distinto tanto da dobra quanto da redobra. Eu poderia fundá-la de muitas
maneiras. Eu a indico de passagem, podemos voltar a ela mais tarde. Se vocês me concedem
essa hipótese, isso definiria um novo conjunto de forças, um novo complexo forças no homem
25
/ forças de fora. É evidente que disso decorre outra forma, nem Deus nem homem. E eu repito
que não há nada para lamentar nem para celebrar, pois não é o silício que nos fará felizes. Não
há nada a lamentar porque, como eu dizia, a forma homem... Se podemos então mudar um
pouco a forma, não é mau. Quero dizer que o homem não existiu muito plenamente sob a forma
Deus nem sob a forma homem. E acrescento que ele não existirá muito bem sob a forma
superhomem. Essas alianças monstruosas com o silício nos põem em alerta. As alianças com o
ser da linguagem não são sempre felizes pois passam pela loucura.
Bem, o que podemos dizer acerca da forma superhomem? Eu tomo um belo texto. Eu
poderia tê-lo buscado em Nietzsche, mas ele vem doutro lugar. O superhomem poderia ser: “ele
é encarregado da humanidade”, ou seja, ele é encarregado das formas no homem. É isso o
superhomem, “ele é encarregado da humanidade, dos próprios animais”.24 Eu diria que a versão
científica de “encarregado dos próprios animais” é o código genético. Que um vírus faça
núpcias com um babuíno, com um coelho e tudo mais. Mas um vírus controlado, hein? Se vocês
não o controlarem, ele irá... Bom. Ele é encarregado dos próprios animais. É muito simples, o
homem encarregado dos animais é o superhomem. E não significa [?] São Francisco de Assis,
que tem uma importância enorme na história do cristianismo; Francisco de Assis já era talvez
o encarregado dos próprios animais, não foi por acaso que era tido como o idiota da aldeia. Era
o bobo do cristianismo. Não teria sido a primeira ou uma das primeiras aproximações do homem
novo, do superhomem?
E Rimbaud continua: “se o que ele traz de lá possui forma, ele dá forma; se é disforme
ele dá a não-forma”.25 Eu acrescento isso como segunda característica [do superhomem]. O
superhomem é muito simples, é aquele encarregado das próprias rochas. Vocês me
perguntariam: o que é a rocha? A rocha é o domínio do silício. O homem encarregado do
inorgânico, das próprias rochas. É sua união com o silício.
E o texto continua: “encontrar uma língua”. Primeiro tema: “encarregado da
humanidade e dos próprios animais”. Segundo tema: “dar forma se há forma correspondente”,
mas “se é disforme ele dá a não-forma”. Terceiro tema: “encontrar uma língua”, uma língua
que não seja nem o discurso clássico, nem a linguística. Encontrar uma língua é fazer literatura.
Bom. Esse texto é a carta a Paul Démeny de 15 de maio de 1871.
Neste ponto eu poderia apenas concluir dizendo que o superhomem nada designa, senão
a terceira forma, que surge quando a composição das forças muda. A forma Deus correspondia
24
Rimbaud, Carta a Paul Démeny. Cf. supra, aula 7, nota 29.
25
Ibid.
26
a uma certa composição de forças, idem à forma homem. A forma superhomem corresponde a
uma terceira composição de forças. É o elenco infinito das forças, segundo as civilizações,
segundo os períodos... Em todo caso, creio que terminamos com as relações saber-poder [?]
Seria preciso voltar agora a um âmbito que em aparência seria o mais obscuro, o domínio
do direito, porque, contrariamente ao que se diz sobre os direitos do homem, faz muito tempo
que a evolução do direito vai noutra direção. Aqui também eu reencontro a letra de Foucault,
que diz: se tentarmos resumir numa palavra a evolução do direito desde o fim do século XIX,
[?] é preciso considerar que o tema do direito não é mais a pessoa no homem, mas o vivente no
homem. E posso dizer que se há um lugar que testemunha em favor de um desaparecimento da
forma homem, é justamente o próprio direito. O que há de direitos no homem não é mais a
pessoa, é o ser vivo.26 O que quer dizer que o verdadeiro sujeito do direito se tornou o vivente
no homem? É liberar a vida no homem, liberar a linguagem no homem, liberar o trabalho no
homem. Liberar a vida no homem, sim, durante todo o século XIX a forma homem foi uma
maneira de aprisionar a vida. Quando eu falo de um vitalismo em Foucault, quero dizer que
desde o final de A vontade de saber surge um grande chamado para esse tema: como liberar a
vida no homem? O direito e a luta política não se confundem, mas têm algo em comum na
medida em que o direito tende sempre a tomar como sujeito não a pessoa humana, mas a vida,
o vivente. E, por outro lado, a luta política, voltando-se contra o direito, tem cada vez mais
como objeto liberar a vida no homem. Esses elementos me parecem evidentes em Foucault, ele
foi sensível a eles desde A vontade de saber. Retornaremos a eles depois das férias [de Páscoa].
Descansem bastante.
26
“Uma outra consequência deste desenvolvimento do biopoder é a importância crescente assumida pela atuação
da norma, às expensas do sistema jurídico da lei. [...] um poder que tem a tarefa de se encarregar da vida terá
necessidade de mecanismos contínuos, reguladores e corretivos”. FOUCAULT, M. História da sexualidade v. I:
a vontade de saber. Op. cit., p. 135.
27
GILLES DELEUZE
MICHEL FOUCAULT: O PODER
AULA 10
Dissemos que Foucault examina somente períodos históricos muito curtos. Procuramos
compreender a sucessão num período curto de três formas: a forma Deus, que corresponde à
idade clássica, a forma homem, do final do século XVIII ao XIX, e a forma que nomeamos, por
conveniência e por causa das alusões de Foucault a Nietzsche, “superhomem” ou forma de um
futuro próximo. Vocês se lembram de nosso tema: essa história de superhomem não é tão
grotesca nem tão complicada quanto a apresentam e significa algo muito específico. Ou seja,
de certa maneira, as formas Deus, homem, superhomem são expressão de relações de forças
determináveis, de modo que nosso título geral podia ter sido: quando as forças no homem
entram em relação... com reticências porque há uma variável. Quando as forças no homem
entram em relação com as forças vindas de fora, segundo a natureza das forças de fora, o
composto de forças é a forma Deus. O composto de forças é sempre uma forma. Ele será, num
caso, a forma Deus; noutro caso, a forma homem e, em outro, o que pode ser chamado de forma
superhomem.
Na última aula, tentamos caracterizar essa forma superhomem como forma do futuro, e
que essa forma decorre de uma relação de forças. Mas qual? Quando as forças no homem –
vejam, o superhomem não é um monstro – liberam no próprio homem um ser da vida, da
linguagem, do trabalho. Então, não volto a esse assunto. Tentamos dizer como um ser do
trabalho era, de certa maneira, o silício; um ser de linguagem era, de certa maneira, a literatura,
no sentido moderno da palavra; um ser da vida era, de certa maneira, o código genético, com
toda uma nova concepção de biologia e da própria vida. Bom. Alguma dúvida? Então
concordamos que não há necessidade de voltar.
Eu fiz alusão muito rapidamente a um grande texto de Rimbaud que, de algum modo,
coincide fortemente com os grandes textos de Nietzsche a este respeito – quando Rimbaud
esboça o homem do futuro, na grande carta a Demeny, ordinariamente chamada de A carta do
vidente [La lettre du voyant].1 É uma palavra bonita, “vidente”. O que essa carta diz? Há um
parágrafo – vocês vão encontrá-lo em qualquer edição das cartas de Rimbaud – que me interessa
particularmente porque desenvolve três ideias, três pontos. Ele diz que esse homem do futuro é
o homem, exatamente como eu digo que é o superhomem: trata-se das forças no homem. E a
qual potência essas forças podem ser elevadas? Entendam, significa que a forma homem não
esgota as forças no homem. A forma homem corresponde apenas a certo grau de potência
1
Deleuze se refere à carta de Rimbaud a Paul Demeny de 15 de maio de 1871.
[puissance] das forças no homem. Se, por alguma razão, as forças no homem atingirem outro
grau de potência, teremos uma forma diferente da forma homem. Não é complicado, essa
história do superhomem me parece muito simples e clara. É violentamente poético, mas também
um conceito muito rigoroso, muito preciso, tudo está em conjunto.
N’A carta do vidente, o parágrafo ao qual eu me refiro é construído em três pontos: o
homem do futuro é apresentado como – aqui é a própria expressão de Rimbaud – “encarregado
dos próprios animais” [chargé des animaux mêmes]. Esse é o primeiro ponto. Eu diria: é aquele
homem que libera em si um ser da vida. Segundo ponto: ele é encarregado do informe, diz
Rimbaud, ou seja, do inorgânico, o que chamei, por conveniência, de a vingança do silício sobre
o carbono. Ele é encarregado das próprias rochas. A rocha é onde reina o silício, o reinado do
inorgânico. Eu dizia que, sob condições que nem Rimbaud nem Nietzsche poderiam prever, é
verdadeiro o que se diz atualmente sobre as máquinas de terceira espécie, a saber, a vingança
do silício em relação ao carbono orgânico. Em algum momento, talvez até mesmo neste ano,
eu deveria oferecer uma aula sobre as relações silício-carbono, porque há muito tempo que os
biólogos mais interessantes, ou cosmobiólogos, colocam esta questão: por que a vida passou
pelo carbono e não por outra coisa? É um problema apaixonante para a química. Se estudassem
química, isso poderia lhes interessar: por que o carbono? É aqui que a filosofia se junta à
ciência. A questão “por quê?”, quando se diz que não há porquê, não é verdade. E por quê?
Para quê? Bem, é um problema da razão suficiente. A pergunta “por que a vida passou pelo
carbono e não por outra coisa”, não poderia funcionar de outra forma, põe em jogo todos os
tipos de questões, a contingência da vida.
Por exemplo, se nos dissessem: o silício, as cadeias de silício não são estáveis. É vago,
depende em quais condições. O que define a estabilidade de uma cadeia? Bem, hoje é
formidável! Vejam como podemos colocar o problema das relações vida-máquina,
especialmente no que diz respeito as máquinas modernas? São os chamados chips, elementos
fundamentais das máquinas da terceira espécie, constituídos de silício. As máquinas de terceira
espécie representam uma verdadeira vingança do silício sobre o carbono. O silício apresenta
vantagens inegáveis. Poderíamos conceber máquinas de terceira espécie em carbono. Além do
mais já nos anunciam, pois os computadores futuros, as máquinas do futuro voltarão ao
carbono. Dizem que os verdadeiros robôs serão orgânicos. É como um desvio, seria muito belo
como figura – estamos aqui em plena profecia, profetizando.
Vejam, há máquinas de terceira espécie, fundadas no silício, máquinas modernas que
representam, a grande vingança do silício. Há uma guerra de elementos químicos. O carbono
sufocou tudo no que diz respeito ao orgânico. Tudo passou pelo carbono, mas os outros
elementos protestam. Há o vagido dos outros elementos na noite do mundo. Logo, vingança do
silício por meio de nossa tecnologia. O robô, a máquina de feedback, o computador são a
vingança do silício. E anunciam que os verdadeiros robôs do futuro serão um retorno ao
carbono, robôs orgânicos.
Tudo isso para dizer que é o homem que libera as forças do informe, as forças do silício.
Bem, o superhomem é tão complicado quanto isto, mas não mais... E não me digam que reduzo
ao cientificismo a história do superhomem... Não! Porque a relação com o silício é incorporada
em algumas tecnologias, mas ultrapassa bastante a tecnologia. As histórias do uso do silício
ultrapassam infinitamente a ciência, pois vão animar as formas de arte e envolvem toda uma
condição humana, ou pós-humana, supra-humana ou sobre-humana, como quiserem. Estou
muito interessado porque Rimbaud, depois de dizer: “o homem encarregado dos próprios
animais”, acrescenta “o homem encarregado do informe”, e acredito que é necessário traduzir
“informe” ao pé da letra: inorgânico, a rocha. E acrescenta, finalmente, “encarregado da
língua”. Ele diz: uma nova linguagem universal. Por que ele o diz? Porque não é um retorno à
linguagem universal do século XVII. O que seria uma nova linguagem universal? Ele o diz: a
alma sobre alma. É curioso porque é uma expressão tão próxima daquela que Artaud usará, uma
linguagem que vai da alma a alma. E vimos que, de certa forma, ela poderia definir a literatura
moderna.
Desse modo, para agrupar as três noções – “encarregado dos próprios animais”,
“encarregado do informe” e “encarregado da nova linguagem” –, Rimbaud tem uma expressão
admirável: “o pensamento que pendura o pensamento e puxa [tirant]”, seria a fórmula de uma
espécie de gancho do pensamento. É lindo! “o pensamento que pendura o pensamento e puxa”,
o crocheteiro [le crocheteur]2 do pensamento. O superhomem como crocheteiro do pensamento
tem três braços: o informe ou ser do trabalho, a literatura ou o ser da linguagem, os próprios
animais ou o ser da vida. Vejam A carta do vidente, de Rimbaud. Então, onde estávamos?
Alguma dúvida? Está tudo claro? Bom. Então vamos seguir!
Eu acredito que fomos longe demais. Temos que retornar para coisas mais modestas
antes de acabarmos. Vamos ser mais modestos, inclinemo-nos para um domínio menos lírico,
recuemos, porque me parece que existe em Foucault e que também encontraremos, deslocada,
uma análise semelhante no nível do que poderíamos chamar de “três formações jurídicas”. É
isto que me interessa hoje. Três formações jurídicas em que, talvez, poder-se-ia descobrir a
2
Crocheteur significa também aquele que arromba fechaduras.
sucessão das três formas sob um outro aspecto: forma Deus, forma homem, forma de algo
porvir. Elas seriam como três estados do direito. Então é isso! Pergunta na plateia?
PERGUNTA: Tenho uma pergunta sobre a forma Deus, sobre a forma composta Deus. Gostaria
de saber como pode haver uma forma composta “Deus” e ao mesmo tempo um conceito de
homem, pois, na Idade Média, havia um conceito de homem e na idade clássica outro conceito
de homem, de animal racional.
DELEUZE: Sim...
PERGUNTA: E uma segunda pergunta. Em seu curso, você disse que Kant trata do conhecimento,
do processo de conhecer, a partir do ponto de vista do finito, ou seja, não se pode conhecer a
partir do infinito, não se pode mais conhecer do mesmo ponto de vista pelo qual Deus conhece
as coisas. Essa era a inovação, a revolução kantiana. Mas a forma composta é sempre um ponto
de vista ontológico, ou seja, compõe-se uma forma Deus, homem, superhomem. Por outro lado,
o livro de Heidegger sobre Kant3 consiste em tratar o tema sob um ponto de vista
epistemológico. Na idade clássica, conhecemos a verdade do ponto de vista de um deus
hipotético, mas agora conhecemos a verdade, conhecemos as coisas e dizemos a verdade a partir
dos a priori do espaço e do intelecto. Como se pode conciliar esses dois pontos de vista? Para
mim não é muito claro.
DELEUZE: a primeira pergunta, eu compreendo. A segunda, não está muito clara para mim.
Repita-a, por favor!
PERGUNTA: Com Kant compreendemos os processos de conhecimento a partir de um ponto de
vista finito, ou seja, não se pode conhecer as coisas como Deus as conhece. Na idade clássica,
o conhecimento do verdadeiro era aquele tal como era produzido por Deus. O homem conhecia
a verdade quando se punha do ponto de vista de um deus hipotético, que existia e dizia a verdade
sobre as coisas. Trata-se de um ponto de vista, não de uma questão de forma, da forma Deus ou
da forma homem. Trata-se de conhecer de pontos de vista diferentes: ponto de vista Deus, ponto
de vista homem. Mas não é uma forma. É o próprio homem que se põe do ponto de vista de
Deus, que conhece todas as coisas.
DELEUZE: hummm. É interessante. Sim, pode-se dizer assim. Bem, então, essa foi a segunda
pergunta, e a primeira?
PERGUNTA: É sobre a forma composta Deus, quando existe ao mesmo tempo o conceito de
homem. Um conceito de homem é somente as forças no homem? É assim?
3
HEIDEGGER, M. Kant e o fim da metafísica. Op. cit.
DELEUZE: Você diz com razão: toda época, seja qual for, tem um determinado conceito de
homem. Sim, com certeza! Por outro lado, não significa que se pensa relacionando o conjunto
dos conceitos à forma homem. Logo, suponho que se distinguirá o conceito e a forma dizendo
que, em cada época, sempre há conceitos. Há, por exemplo, um conceito de homem, de animal
etc. Mas a forma é aquilo a que se relaciona esse conjunto dos conceitos, como sua condição
para serem pensados. Certo?
Então, em cada época, há um conceito de homem; por exemplo, nos gregos, vocês
encontram vários, inclusive conceitos de homem animal racional, animal político etc. Eu
observo que – vou mais rapidamente – o século XVII, a idade clássica, rompe com esse tipo de
conceito de homem, pretende substituí-lo por outro tipo. Por exemplo, Descartes se recusa
explicitamente a definir o homem como um animal racional. Aliás, é muito interessante em
Descartes, que diz: não significa um animal racional porque é necessário já saber o que significa
animal e o que significa ser racional. É dar-se demasiados pressupostos, é preciso definir o
homem de outro modo. Que haja conceitos de homem que mudam, sem problema. Mas digo:
na idade clássica, o conceito de homem, qualquer que seja, refere-se a uma forma que,
necessariamente, não pode ser a forma homem, ou seja, a forma que permite pensar os conceitos
não pode ser a forma homem, mas a forma Deus. Mas não é só... o que você acrescenta é muito
abstrato. Você diz que é a forma Deus que nos permite pensar conceitos na idade clássica,
porque o conhecimento tem por modelo as coisas tais como são conhecidas por Deus. Tem
razão, mas é abstrato. Não explica o que há de vivo num pensamento ou em um século. Creio
que poderíamos atribuir de fato uma razão mais profunda da qual a sua apenas decorreria. Essa
razão mais profunda não é a mesma que a idade clássica pensa do infinito. Pois, pensar a partir
do infinito, a teologia da Idade Média já o fez. O que torna realmente algo novo na idade clássica
é que os clássicos são incomparáveis, lançam-se numa tentativa que, realmente, lhes pertence.
Não é tanto pensar o infinito ou a partir dele, o que é bastante diferente. Mas você pode dizer
isso que já está... já é São Tomás ou muitas correntes de Idade Média.
O que me parece incomparável – e eu falo por conta própria, pois não é o aspecto que
interessa a Foucault, mas que lhe dá razão de todo modo – é que o século XVII continua a
distinguir ordens do infinito, isso que é [?]. Pensem que era muito original, à primeira vista,
quando se dizia o infinito, e que havia ordens de infinidade distintas e como lidar com ordens
de infinito. Para um homem clássico, tudo é infinito, mas não no mesmo sentido e do mesmo
modo. É uma tarefa um pouco louca colocar ordem no infinito. Por isso, para mim, os grandes
textos do século XVII – e por isso permanecem eternamente modernos – são aqueles que tentam
distinguir ordens do infinito: “por favor não confundam este infinito aqui com aquele lá”. Para
introduzir uma ordem nos infinitos, eles mobilizam tudo, a teologia, a matemática, a física, as
ciências, as artes. Distinguir ordens do infinito. E toda a angústia do XVII não é apenas o medo
de se perder no infinito, mas de ser submergido por infinitos nos quais não se pode pôr ordem.
Vejam, a situação do homem, no século XVII, é que o homem perdeu todo o centro e
vemos isso muito bem em Pascal. Se aparece particularmente em Pascal, é em virtude do gênio
pascaliano, mas isso está em todos [do século XVII]. Não há mais centro. Todo o início de
Descartes, nas Meditações, é: onde vou encontrar um centro? Então, eles poderão encontrá-lo
na medida em que ordenam infinitos. Se há uma ordem nos infinitos – um primeiro infinito, um
segundo, um terceiro etc. –, talvez possamos reconhecê-los e reconhecer o homem em todos
esses infinitos. De modo que o homem será pensado, evidentemente, em sua relação com os
infinitos, isto é, com a forma Deus, porque todas as ordens do infinito devem decorrer da forma
Deus. Todas as ordens do infinito decorrem diversamente da forma Deus. Por exemplo, o
infinito do mundo, é óbvio que não existiria, nem seria se o mundo não tivesse sido criado por
Deus. Logo, é um infinito de efeito, enquanto a infinidade do próprio Deus é um infinito por si.
Deus é infinito por si mesmo, ao passo que o mundo é infinito por sua causa (que é Deus), não
é o mesmo infinito, já são duas ordens do infinito. Então, qual é a situação do homem? O
homem está no mundo, participa do infinito do mundo, mas à imagem de Deus. É necessário
encontrar o lugar do homem nessas ordens do infinito. E pensar o homem será atribuir o lugar
ou os lugares que ele tem em função da forma Deus.
Assim, o que é pensado, de fato, é a forma Deus. Não há forma homem pela simples
razão de que é apenas a limitação, em alguns aspectos, da forma Deus. Para ter a forma homem,
basta dizer quais aspectos de Deus se encontram limitados para constituir a forma homem. A
resposta de Descartes é célebre: “as forças no homem são o entendimento [l’entendement] e a
vontade; a vontade no homem é infinita tanto quanto em Deus”. Assim, no nível da vontade,
não há diferença. Em Descartes, muito estranhamente, a vontade não suporta a finitude.4 Por
outro lado, o homem tem apenas um entendimento finito. Deus tem um entendimento infinito.
Em outras palavras, o homem se definirá pelo entendimento finito,5 sendo este uma simples
4
Cf. a 4a meditação de Descartes: “C'est à savoir de cela seul que la volonté étant beaucoup plus ample et plus
étendue que l'entendement, je ne la contiens pas dans les mêmes limites, mais que je l'étends aussi aux choses que
je n'entends pas”.
5
Em A hermenêutica do sujeito, Foucault trata da seguinte questão: o que é preciso para o sujeito conhecer? Para
conhecer, deve o sujeito realizar alguma transformação espiritual, uma reconversão de caráter, uma mudança de
olhar? Foucault afirma que o sujeito cartesiano (e kantiano) é aquele capaz de verdade, cujo acesso não requer
nenhuma mudança, “basta que o sujeito seja o que ele é para ter, pelo conhecimento, um acesso à verdade que lhe
é aberto por sua própria estrutura de sujeito. Parece-me então ser isto que, de maneira muito clara, encontramos
em Descartes, a que se junta, em Kant, se quisermos, a virada suplementar que consiste em dizer: o que não somos
acontece, dizem uns aos outros: não se pode mais dizer que A é A, porque não se pode saber se
A existe. Quem podia lhes dizer se A existe? Deus. Se Deus está morto, se a forma Deus
desmoronou, A também desmorona. A só é A se existir A. Eis que o princípio de identidade
recebe um pequeno complemento que arruinará sua formulação. A é A? Sim, claro, desde que
haja A. O que nem sequer significa: se A exis