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FRANCISCO TEIXEIRA & AQUILES CHAVES

O MUNDO DA ECONOMIA
UM MUNDO SEM ALMAS

CRATO-CEARÁ

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SUMÁRIO

PRIMEIRA PARTE

O ESTRANHO MUNDO DOS HOMENS

1. UM VISITANTE DE OUTRO MUNDO


2. ARQUEOLOGIA DE UMA MEMÓRIA ESQUECIDA

SEGUNDA PARTE

A TRAJETÓRIA DA ECONOMIA E SEUS PARADIGMAS

1. EPISTEMOLOGIA DA ECONOMIA: RAZÃO E EXPERIÊNCIA NA


CONSTRUÇÃO DO SABER DAS CIENCIAS MODERNAS

2. A CONCEPÇÃO DA FISIOCRACIA DA NATUREZA DA RIQUEZA


CAPITALISTA
3. SMITH E RICARDO: A TEORIA DO VALOR TRABALHO E A
ORIGEM DO LUCRO
4. TEORIA DO VALOR UTILIDADE
5. SPOCK: DE VOLTA PARA O FUTURO

TERCEIRA PARTE
ECONOMIA E POLÍTICA

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INTRODUÇÃO
CONVITE AO PENSAR
O dia começava a amanhecer, quando JR terminou de ler a última página de O Mundo
da Economia: um mundo sem alma. Tinha aula no primeiro horário de Introdução à
Economia. Estava ansioso para conversar com sua turma sobre este livro, pois pretendia
adotá–lo como texto básico. Pena que já fazia quase um mês de aula e alguns alunos já
tinham comprado o livro de Paul Krugman que ele escreveu em parceria com Robin
Wells; um calhamaço de quase mil páginas. Não iria ser nada fácil convencer toda
turma a adquirir um novo livro.

JR levantou–se e deixou o livro junto com a chave do carro. Queria ter certeza de que
não esqueceria de levá–lo para a universidade. Estava muito ansioso. O Mundo da
Economia: um mundo sem almas, que tanta atenção lhe consumira durante à noite
passada, causou–lhe uma imensa alegria. Tudo o que ele já fazia em sala de aula estava
ali, naquele livro.

De repente, JR olhou para o relógio e tomou um grande susto. Estava atrasado. Correu
para o banheiro e tomou uma ducha de água fria. Não havia mais tempo para fazer a
barba. Resolveu ir para a universidade assim mesmo. Afinal, não seria a primeira vez
que iria chegar na sala de aula desmazelado.

Pegou o livro e correu para o carro. Deu partida e logo estava no campus universitário.
A passos largos, dirigiu–se à sala dos professores e foi direto para o seu escaninho onde
sempre deixava o livro de Introdução de Economia de Krugman e Wells. Pegou–o e se
dirigiu às pressas para a sala de aula, onde seus alunos, com cara de sono, o
aguardavam. Muitos estavam ali porque queriam realmente aprender; outros estavam
apenas à caça de um título de formação universitária, pois ainda alimentavam o sonho
de que o mercado de trabalho os esperava de portas abertas, quando concluíssem o
curso de Economia.

– Bom dia, gente. Como foi o final de semana? – pergunta JR. – Aproveitaram para
estudar ou foram se divertir tomando cachaça e se deliciando com as músicas
“sertanejas” apelativas, sem melodias e poemas, o tão distantes das poesias do sertão
como espaço de saudade, dos Luis Gonzagas da vida? Mesmo assim são cantores
“geniais”, pois conseguem embrutecer mais ainda o espírito de vocês e, mesmo assim,

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ganhar muito dinheiro. Mas vamos deixar de conversa. Hoje eu trouxe uma novidade.
Não é bem uma novidade porque o que tenho para mostrar, vocês já conhecem de sobra,
pois é algo muito parecido com a metodologia que eu utilizo nas minhas aulas.

Como de sempre, todos ficaram calados, olhando para ele com cara de poucos amigos.
Se uma mosca caísse na sala, certamente se conseguiria ouvir o barulho de sua queda.
Mas, apesar do estado de espírito desanimador de seus alunos e alunas, perguntou se
eles estavam curiosos em saber qual era a novidade que ele tinha para lhes apresentar.

– Gente, como vocês não vão falar mesmo, – diz JR, com certa irritação – vou lhes
contar qual é a novidade. Estão vendo este livro aqui? É um livro de Introdução à
Economia. Vou adotá–lo como texto básico de nossas aulas. Que acham?

Esperou mais um pouco até que uma aluna, com cara de enjoou, olhou para ele e lhe
disse:

– Professor, o senhor não já adotou um livro? Por que mais outro?

– Por que, minha querida? Você ainda me pergunta? Eu já falei por diversas vezes que
se não quiserem agir como papagaios, se desejam ter opinião própria, vocês devem ler
vários autores sobre mesmo assunto. Isso faz com que aprendam a pensar com mais
fundamento e criticidade.

- Bem –, diz JR - farei uma recapitulação do que já vimos do livro do Krugman e Wells,
para que vocês, quando começarem a ler O mundo da Economia: um mundo sem almas,
possam compreender quão diferente é o mundo da Economia deste livro daquele
apresentado por aqueles dois autores. Com certeza, vocês não precisarão fazer muito
esforço intelectual para perceber que se trata de duas leituras radicalmente distintas de
um mesmo objeto de estudo. A revisão que proponho a fazer do Livro de Krugman e
Wells já adianta tal divergência. Diferentemente de O Mundo da Economia..., que parte
do homem como um sujeito social, historicamente determinado por um conjunto de
relações sociais, e, que por isso, só pode ser apreendido como individuo integrante de
determinada classe social; aqueles autores trabalham com um conceito abstrato de
homem, reduzido a um ser unicamente preoccupado com a busca pela riqueza, para
quem o mundo se resume unicamente à sua vida comercial.

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Mas isso, vocês poderão constatar na revisão que eu vou fazer. Vamos logo diretamente
à questão. Peço-lhes paciência e atenção, pois, embora aqueles autores vejam a
Economia como uma ciência, como diria G. Myrdal, que não vai além do “senso
comum refinado”, mesmo assim, é preciso estar atento para descobrir o viés que a vida
do dia a dia não mostra. Pelo contrário, a vida cotidiana

se manifesta como anonimidade e como tirania de um poder impessoal que dita a cada
indivíduo seu comportamento, modo de pensar, gosto e seu protesto contra a banalidade. A
anonimidade da vida cotidiana, expressa no sujeito dessa anonimidade, que é alguém-
ninguém, encontra seu correlato na anonimidade dos agentes históricos, os chamados
History-Makers, de tal maneira que os acontecimentos históricos afinal se revelam como
obra de ninguém e obra de todos, como resultado da comum anonimidade da cotidianidade
e da História (...). A familiaridade é um obstáculos ao conhecimento; o homem sabe
orientar-se no mundo que lhe está mais próximo, no mundo da preocupação e da
manipulação, mas “não se orienta” em s mesmo, porque se perde no mundo manipulável,
com e se identificando Karel.1976.,p.73/74).

Sem mais demoras, JR inicia a apresentação do livro de Krugman e Wells com a


definição do conceito de Economia por eles defendido. Como dissera na primeira
exposição que fizera no início do semestre, JR enfatiza mais uma vez que esses autores
se valem de Alfred Marshall (1842–1924), de seus Princípios de Economia (1890), para
apresentar a definição do objeto de estudo dessa ciência. Toma o primeiro capítulo do
livro Primeiro e lê a mesma passagem citada por Krugman e Wells, na qual Marshall
afirma que a economia é “um estudo da humanidade nos negócios comuns da vida”
(Marshall, apud Krugman e Wells 2011, p. 1).

Não satisfeito com essa forma apressada de como aqueles autores expõem o conceito de
Economia, JR pede a seus alunos para o acompanharem na leitura de uma passagem do
capítulo II, do mesmo livro, na qual Marshall define a Economia como uma ciência
preocupada com o

estudo dos homens tal como vivem, agem e pensam nos assuntos ordinários da vida. Mas
diz respeito, principalmente, aos motivos que afetam, de um modo mais intenso e constante,
a conduta do homem na parte comercial de sua vida (...). Contudo, o motivo mais constante
para a atividade dos negócios é o desejo de remuneração, a recompensa material do
trabalho (Marshall, 1982, . 33).

Uma leitura cuidadosa dessa passagem, comenta JR, revela que o homem de que fala
Marshall é, na verdade, um “mítico homem de negócios”; um homem preocupado
unicamente em administrar sua empresa da forma mais racional possível. Ora, se o que
importa é analisar o comportamento do indivíduo em sua vida comercial diária, como
ele conduz e administra seu negócio, é claro que a concepção dos Princípios de

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Economia se fundamenta numa visão microeconômica da sociedade capitalista. Vejam
vocês, meus queridos e minhas queridas alunas, – diz JR – essa perspectiva
microeconômica salta aos olhos quando examinamos como Marshall analisa a
distribuição de renda, isto é, a contribuição de cada fator de produção na geração da
riqueza. Vamos ver como Joan Robinson, que foi uma dentre muitos ilustres aluno(a)s
de Marshall, descreve como seu antigo mestre pensa essa questão. De acordo com ela, é
assim mesmo que entende o autor de o Princípios de Economia,

as forças do mercado distribuíam os recursos da melhor maneira possível entre os diversos


usos alternativos. Daí o conceito de distribuição da renda baseado na justiça natural dos
trabalhadores baseados na justiça natural. Isto é, a contribuição dos trabalhadores para a
produção se refletiria nos salários, enquanto a contribuição do capital para a produção
estaria nos lucros. Isso seria justo, direito e natural (Robinson, apud Ottolmy Strauch,
1982).

– Mas como se mede a parte da riqueza que cabe a cada fator de produção? – pergunta
JR com o propósito de arrancar seus alunos da apatia em que se encontravam. Abre o
manual de Krugman e Wells na parte em que eles explicam como se determina a oferta
de trabalho; isto é: a quantidade de trabalho que cada trabalhador está disposto a
oferecer no mercado. Noutras palavras, como cada um contribui para a produção e, em
consequência, a parte que lhe cabe da riqueza gerada. Vamos acompanhá–los de perto.
É um trecho relativamente longo, mas é importante que vocês atentem como eles
desenvolvem seus argumentos, pois, embora não o digam, seguem o mesmo raciocínio
defendido por Marshall, no capítulo I, do livro Quatro, dos Princípios de Economia.

– Vamos lá, gente, abram o livro na página 458. É aí que eles tentam demonstrar como
se determina a oferta de trabalho. Embora o não digam, essa demonstração pressupõem
o fluxo circular da renda, que eles apresentaram no capítulo 2, página 32. Estão
lembrados? – pergunta JR à sua “animada” turma. Como ninguém nem diz que sim nem
diz que não, ele começa a leitura do texto de Krugman e Wells onde eles afirmam que

no mercado de trabalho, o papel das firmas e dos domicílios é o inverso do que é nos
mercados de bens e serviços. Um bem como trigo é ofertado por firmas e demandado por
domicílios; mas o trabalho é demandado por firmas e ofertado pelos domicílios (Krugman
e Wells,2011, p. 458).

– Que coisa! – exclama JR. – Esses economistas transformam a realidade num mundo
de perfeita harmonia e felicidade. Para eles, tudo é muito simples: de um lado estão as
famílias, que demandam bens e serviços e ofertam seus fatores de produção; de outro,

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firmas que ofertam bens e serviços e demandam os serviços dos fatores de produção.
Como vocês podem perceber, – continua JR – não há donos de empresas, pois no
universo das famílias estão os donos dos fatores de produção, que vivem da venda de
seus serviços para firmas imaginárias, que produzem bens e serviços para os donos dos
meios de produção (trabalho, capital e terra), isto é, para as famílias. Nem uma palavra
sobre como os possuidores da terra adquiriam suas propriedades, nem como os donos
do capital formaram seu patrimônio.

Não é preciso nenhum conhecimento de Economia para saber que essa relação entre os
fatores de produção, de um lado, e as firmas, de outro, não passa de uma simplificação
grosseira e, até mesmo distorcida, do senso comum. Realmente, quem são os
indivíduos que ofertam trabalho para as firmas? De que mundo vieram? Serão obra da
natureza, que determinou que parte da humanidade deviria viver da venda do seu
trabalho e a outra parte, da venda de seus fatores de produção (terra e capital)? Outra
coisa: as empresas, que estão do lado direito do fluxo circular da renda, não têm donos?
O fluxo mostra que não, pois os donos dos fatores de produção, terra, trabalho e capital,
estão todos do lado esquerdo do fluxo, oferecendo seus serviços para empresas fictícias.

Que coisa mais estranha! Marx está com a razão, quando afirma que no assim chamado
fluxo circular da renda a felicidade

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de um escolástico com Deus-Pai, Deus-Filho e Deus-Espírito Santo é a mesma do
economista vulgar com terra-renda, capital-juro e trabalho-salário. É que essa é a forma
em que estas relações, na aparência, se apresentam diretamente interligadas e assim
existem nas ideias e na consciência dos agentes de produção capitalistas, destas prisioneiras
(Marx, 1980.Vol.III. ,p.1540).

Krugman e Wells talvez nem sequer se dão conta de que assim procedendo tornan-se
porta vozes dos interesses das classes dominantes, quanto

mais se [limitam], na realidade, a traduzir as noções comuns numa linguagem doutrinária.


Por isso, quanto mais alienada a forma em que concebe as formações da produção
capitalista, tanto mais se aproxima da base das noções comuns, tanto mais se acha no seu
elemento (Marx.1980.Vol.III.,p.1540).

E não poderiam pensar diferente, pois como os economistas em geral, Krugman e Wells
não têm interesse em explicar a gênese histórica de como nasceu esse mundo do fluxo
circular da renda, com sua forma trinitária terra-renda, capital-lucro e trabalho-salário.
Não passa pela cabeça deles, mostrar o movimento histórico que criou esse mundo,
pois, para eles, o capitalismo é uma eterna forma de produção. Coisa que Adam Smith
já tinha como dada ao definir o homem como um ser da troca.

- Mas vamos voltar ao final do trecho citado há pouco do livro de Krugman e Wells, diz
JR-, no qual eles se perguntam “como as pessoas decidem quanto trabalho ofertar?”,
para, em seguida, esclarecerem que

na prática, a maioria das pessoas tem um controle limitado sobre os seus horários de
trabalho: ou se aceita um emprego que implica trabalhar um número estabelecido de horas
por semana ou não se tem emprego nenhum. Para entender a lógica da oferta de trabalho,
contudo, convém deixar o realismo de lado por um instante e imaginar um indivíduo que
possa escolher trabalhar tantas horas quanto queira (Krugman e Wells, 2011, p. 458).

– Prestem muita atenção nesse trecho, gente. Atentem bem para as seguintes passagens:
(1) os indivíduos têm controle, ainda que limitado, sobre o número de horas que
desejam trabalhar; (2) para entender a lógica que rege a oferta de trabalho, Krugman e
Wells pedem aos seus leitores que esqueçam como as coisas acontecem no mundo real.

Em seguida, JR convida seus alunos, para com ele, a analisarem cada uma dessas
passagens.

– A primeira (1), – diz ele – é uma agressão à inteligência do homem, por mais obtusa
que seja uma criatura humana. Qualquer trabalhador sabe muito bem que ele não tem

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nenhum controle sobre o número de horas que despende em seu trabalho, seja ele um
trabalhador formal, com carteira de trabalho assinada, ou um trabalhador de aplicartiivo.
Quanto à segunda passagem (2), Krugman e Wells pedem ao leitor para que abandone,
com eles, o mundo real para se refugiar num mundo idealizado, que só existe na cabeça
deles. Só assim, dizem eles, é possível entender a lógica que rege a determinação da
jornada diária de trabalho. Sendo assim, é preciso criar um mundo imaginário, uma
ficção teórica, para dizer como de fato se comporta o trabalhador no mundo real.

Que coisa mais sem propósito!

– Vocês poderiam contestar minha crítica, argumentando que Krugman e Wells,


primeiro, constroem uma hipótese, para depois testá–la, isto é, para verificar se ela
existe na realidade; ou, para falar de acordo com Popper, se tal hipótese é confirmada ou
negada pela experiência. – diz JR se dirigindo à sala de aula. – Mas eles, meus queridos
e minhas queridas alunas, não explicam como constroem esse mundo imaginário. Não
falam de hipótese, nem tampouco de tipo ideal. Muito menos dizem tratar–se de um
modelo simplificado do mundo real. Acredito, meus caros e caras alunas, se eu não
tivesse chamado a atenção vocês, vocês não teriam sequer percebido que a maneira
como esses autores determinam a oferta de trabalho está fundada numa ficção teórica,
completamente estranha à realidade. O próprio pressuposto subjacente à determinação
do quanto de trabalho que as pessoas desejam ofertar, que é fluxo circular da renda, é
um modelo tão simplificado do mundo real, que se poderia dizer que se trata de uma
verdadeira quimera.

Mas vamos continuar acompanhando como Krugman e Wells demonstram a


determinação da oferta de trabalho. – pede JR a seus alunos e alunas “ávidos” de
conhecimento. Depois de convidar o leitor a deixar para trás o mundo real, eles abrem o
parágrafo seguinte perguntando

por que um indivíduo assim não trabalharia tantas horas quanto possível? Porque os
trabalhadores são seres humanos também e têm outros usos para seu tempo. Uma hora
gasta no trabalho é uma hora que não é gasta em outras atividades presumivelmente mais
prazerosas. Assim, a decisão sobre quanto trabalho ofertar envolve uma decisão sobre a
alocação do tempo: quantas horas dedicar a diferentes atividades (Krugman e Wells, 2011,
p. 458).

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Em seguida, Krugman e Wells detalham melhor como age o trabalhador ao ofertar mais
ou menos trabalho no mercado. Sempre baseado nos Princípios de Economia de
Marshall, embora sobre isso nada digam, explicam que

trabalhando, as pessoas obtêm uma renda que podem usar para comprar bens. Quanto
mais horas um indivíduo trabalha, mais bens ele pode comprar. Mas esse aumento do
poder de compra ocorre às custas de uma redução no tempo de lazer, o tempo gasto sem
trabalho (...). E, embora o bem comprado gere utilidade, o lazer também. De fato, podemos
imaginar o próprio lazer, como um bem normal, que a maioria das pessoas gostaria de
consumir mais quando sua renda aumenta (Krugman e Wells, 2011, p. 458).

– Como vocês podem perceber, – diz JR – eles pressupõem que os agentes econômicos
são racionais, e como tais estão sempre ponderando qual a melhor escolha a fazer, seja
na compra de um bem ou na oferta de um serviço. Neste último caso, eles agem tal e
qual como se comporta um consumidor racional. Como assim?

fazendo uma comparação marginal, é claro (...). Imagine Clive, que gosta tanto de lazer
quanto dos bens que o dinheiro pode comprar. E suponha que seu salário seja $10 por
hora. Ao decidir quantas horas quer trabalhar, ele tem de comparar a utilidade marginal
de uma hora adicional de lazer com a utilidade adicional que ele obtém de $10 em bens. Se
$10 em bens acrescenta mais à sua utilidade total do que uma hora de lazer, ele pode
aumentar a sua utilidade total renunciando a uma hora de lazer a fim de trabalhar uma
hora adicional. Se uma hora extra de lazer acrescentar à sua utilidade total mais do que
$10 de renda, ele pode ele pode aumentar sua utilidade total trabalhando uma hora a
menos a fim de ganhar uma hora de lazer (Krugman e Wells, 2011, p. 458).

– Que bela demonstração! – exclama JR. – A imaginação de Krugman e Wells só não é


maior porque, de certa forma, é uma cópia do que Marshall já havia idealizado. Mas, só
mais uma coisa. É preciso ainda, mostrar que o

ponto de escolha ótima de oferta de trabalho de Clive, sua utilidade marginal de uma hora
de lazer é igual à utilidade marginal que ele obtém dos bens que seu salário horário pode
comprar (Krugman e Wells, 2011, p. 458).

– E é, assim – conclui JR – que se determina a parte da renda gerada que cabe a cada
trabalhador. O mesmo raciocínio que se aplica ao capital. Este estará disposto a
contratar uma unidade adicional de trabalho até o ponto em que o seu lucro se igualhe
ao valor do produto marginal.

Depois dessa rápida exposição, JR pergunta para seus alunos e alunas o que acharam de
tudo que ele expôs. Como ninguém lhe respondia, convidou–os para um exercício de
imaginação. Apontou para um aluno e lhe perguntou o que ele faria se um dia assumisse
o Ministério da Economia.

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– Será que você usaria essa teoria que acabei de apresentar para tomar suas decisões
como ministro? Veja o caso do atual ministro. Você já o viu falando de produtividade
marginal do trabalho? Claro que não. Mas com certeza, você já o viu, por diversas
vezes, justificando a necessidade de uma reforma trabalhista, previdenciária e
administrativa. São todas reformas que tiram do trabalhador os seus direitos,
conquistados a duras penas e precariza ainda mais suas relações trabalhistas. O
resultado não poderia ser outro. O trabalhador, não só no Brasil, mas também em todo o
mundo, tem cada vez menos poder de barganha diante do capital. A teoria que
acabamos de apresentar, que ensina que o trabalhador sempre pondera quanto de lazer
está disposto abrir mão em troca de uma maior quantidade de bens que seu salário irá
proporcionar, está a anos luz distante da realidade do mundo do trabalho.

Em seguida, JR convida a turma para voltar ao início do livro de Krugman e Wells, para
que todos possam ter uma melhor ideia do mundo por eles apresentado em seu manual
de Introdução. Depois de apresentarem o conceito de economia, na página seguinte,
imaginam o que aconteceria se

você pudesse transportar um americano do período colonial para os dias de hoje (...). O que
o viajante do tempo acharia espantoso? (Krugman e Wells, 2011, p.2).

A resposta vem carregada de um sentimento de orgulho por tudo que a América do


Norte fez para transformar aquela colônia num dos mais ricos países do mundo. É o que
se depreende quando esses autores afirmam que

certamente o mais espantoso seria a prosperidade da América moderna – o leque dos bens
e serviços que as famílias comuns podem adquirir. Olhando toda essa riqueza, nosso colono
transplantado do século XVIII indagaria: ‘Como posso ter uma parte disso’? Ou talvez
perguntasse: ‘Como minha sociedade pode obter uma parte disso’ (Krugman e Wells, 2011,
p.2).

JR sabe que não é difícil imaginar qual seja a resposta. Diante do espanto do viajante do
tempo, Krugman e Wells afirmam que para chegar onde chegou, a América do Norte
precisou

de um sistema que funcione bem para coordenar as atividades produtivas – as atividades


que criam os bens e serviços que as pessoas desejam e que fazem chegar aos que querem. É
esse tipo de sistema que temos em mente quando falamos da economia. E a análise
econômica é o estudo das economias, tanto no nível do indivíduo como da sociedade em seu
conjunto (Krugman e Wells, 2011, p.2).

Quanto a isso, JR não tem dúvida. O sistema de que falam Krugman e Wells não
poderia ser outro que não o mercado. Não por acaso, eles intitulam essa parte do texto

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de A Mão Invisível. Trata–se de uma expressão usada pelo pai do liberalismo
econômico, Adam Smith, para expressar que o mercado é, por excelência, a instituição
mais eficiente na alocação dos recursos da sociedade. É isso mesmo o que aqueles
autores desejam externar. É verdade. Na passagem que vem logo depois da citação
acima, eles afirmam que

nossa economia deve estar fazendo alguma coisa certa e o viajante no tempo gostaria de
cumprimentar o responsável. Mas, adivinhe. Não há ninguém responsável. Os Estados
Unidos têm uma economia de mercado (grifo deles) em que a produção e o consumo são
resultados de decisões descentralizadas das empresas e dos indivíduos. Não há autoridade
central dizendo às pessoas o que produzir e para onde transportar. Cada produtor
individual faz o que pensa ser mais lucrativo; cada consumidor compra o que escolhe
(Krugman e Wells, 2011, p.2).

Depois de lida essa passagem, JR chama atenção da sala de aula para que analise, com
ele, os pressupostos que estão aí implícitos. Em primeiro lugar sobressai–se a ideologia
de que o mercado é a melhor, senão a única instituição capaz de alocar os recursos da
sociedade da forma mais eficiente possível. Em segundo lugar, que os recursos da
economia são escassos. Quanto à defesa ideológica que esses autores fazem do
mercado, salta à vista quando afirmam que “a produção e o consumo são resultado de
decisões descentralizadas”, de decisões de uma economia de mercado. Com efeito, no
parágrafo seguinte asseveram que “a alternativa para uma economia de mercado é uma
economia de comando. A União Soviética, dizem eles, são uma prova do que dizem. Lá,
enquanto durou o chamado socialismo real, as coisas não “funcionaram muito bem”.
Isso prova, certamente diriam eles, que a razão está com Smith, para quem a economia
vai bem e progride com o tempo se os indivíduos são livres para aplicarem o seu capital
como bem desejarem, sem interferência de nenhum poder que decida, por eles, as
decisões que somente eles são capazes de tomarem.

– Quer dizer, então, que o Estado não despenha nenhum papel no funcionamento da
economia? – pergunta JR. – Se essa questão fosse dirigida a Krugman e Wells, diriam
que Estado é importante para manter a estabilidade da moeda e promover políticas de
anticíclicas. Ir além disso, significa que a intervenção estatal estaria interferindo em
atividades que são próprias do mercado; do setor privado.

Em seguida, JR chama a atenção da turma para o segundo pressuposto, isto é, de que os


recursos são escassos. – Vocês devem estar lembrados daquela passagem do trecho em
que Krugman e Wells dizem que “cada consumidor compra o que escolhe”. Mas por
que ele é obrigado a escolher? – questiona JR. – Os autores do texto não têm dúvidas.

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Respondem que a compra sempre impõe uma escolha porque, diante a diversidade de
bens existentes, o consumidor não pode ter tudo o que deseja. Por que não? Para
responder essa questão, Krugman e Wells convida o leitor para que ele

entre numa grande loja de departamento ou supermercado. Há milhares de produtos


diferentes à disposição, e é bem pouco provável que você, ou qualquer outro, tenha
condições de comprar tudo que deseja. De qualquer modo, o espaço que você tem no seu
dormitório ou apartamento é dado, não estica. Então, você vai comprar outra estante de
livros ou uma geladeira pequena? Dadas as limitações do seu orçamento e do seu espaço,
você tem de escolher entre qual produto comprar e qual deixar na prateleira (Krugman e
Wells, 2011, p.6).

– Afinal de contas, por que o consumidor é mesmo obrigado a escolher quando decide
comprar algum bem? – pergunta JR a seus alunos e alunas. – Vocês entenderam?

Uma aluna lá do fundo da sala levanta o braço e responde que é porque existem
milhares de produtos, e ninguém dispõe de espaço e tempo para comprar todos os bens
ofertados. Outro aluno diz que a escolha é uma necessidade que se impõe porque o
consumidor tem um orçamento limitado, como assim dizem Krugman e Wells naquela
passagem.

– Quer dizer, então, que se não houvesse restrição de espaço, se meu apartamento não
fosse pequeno, eu poderia comprar tudo o que eu quisesse? – pergunta JR dirigindo–se à
sua turma. E continua questionando:– Se minha renda não fosse limitada, eu poderia
comprar tudo o que desejo? É gente, nossos autores não foram felizes em explicar por
que a compra de um produto sempre impõe uma escolha. Ora dizem que a escolha é
uma necessidade imperativa por conta de restrição de espaço; ora afirmam que é por
causa da limitação renda. Assim fica difícil conhecer a verdadeira causa por que a
escolha se impõe toda vez que um indivíduo decide comprar alguma coisa. – comenta
JR.

Sem se darem conta de que sua argumentação não explica a verdadeira causa que obriga
o consumidor a escolher, Krugman e Wells mudam o foque da questão. Agora, afirmam
que a “escolha” se impõe porque os recursos são escassos. Tanto assim é que logo em
seguida, abrem a próxima seção que traz como título os recursos são escassos.

– Observem –, diz JR. – À primeira vista parece que eles são mais cuidadosos. Mas só à
primeira vista. Nossos autores ainda continuam pondo acento na limitação de renda
como fator que obriga os consumidores a escolherem que bens comprar. Vamos
acompanhar mais de perto o raciocínio que desenvolvem a seguir. Eles começam com a

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seguinte afirmação: “Você não pode ter sempre o que quer”. – Por quê? – pergunta JR.
– A resposta vem em seguida, quando eles explicam que

todo mundo gostaria de ter uma casa bonita (e uma faxineira) , dois ou três carros de luxo
e férias frequentes em hotéis chiques. Mas, mesmo em um país risco como os Estados
Unidos, não são muitas as famílias que podem ter tudo isso. E, assim, elas precisam
escolher – ir à Disneylândia este ano ou comprar um carro melhor, conformar–se com um
jardim bem pequeno ou aceitar muito tempo no ônibus e viver numa área em que o terreno
é mais barato (Krugman e Wells, 2011, p.6).

– Uma leitura cuidadosa desse trecho mostra que nossos autores continuam com
raciocínios ambíguos. – comenta JR. – Numa parte dessa passagem, aqueles autores
afirmam que “não são muitas as famílias que podem ter tudo isso”. Ah, aí está a
primeira ambiguidade cometida por eles. – diz JR. – Aquelas famílias que não têm
limitação de renda podem ter tudo o que desejam. Com efeito, não dá para imaginar um
Bill Gates da vida tendo que escolher qual a opção mais barata para ele: comprar um
frango de padaria ou jantar no restaurante mais caro da cidade.

– Mas, vamos continuar examinando a passagem citada acima. – diz JR. – Depois que
nossos autores dizem que não são muitas as famílias que podem ter tudo isso, em
seguida, tiram do bolso do colete um conectivo para ligar essa assertiva com a que se
segue: E, assim, elas precisam escolher – ir à Disneylândia este ano ou comprar um
carro melhor. – Como assim? – pergunta, JR. – Como Krugman e Wells podem inferir
da proposição de que são poucas as famílias que podem comprar tudo que desejam, a
ideia “assim, elas precisam escolher...?”.

JR chama mais uma vez a atenção de seus alunos e alunas, para dizer que isso não é o
que mais importa. Mais do que isso, interessa agora analisar aquela passagem ambígua
sob novo prisma, isto é, sob a perspectiva lógica que sustenta o enunciado dos autores
em questão.

Quando Krugman e Wells afirmam que as famílias precisam escolher, à exceção


daquelas que são muito ricas, estão defendo a ideia de que a escolha é uma necessidade
universal incontornável porque os recursos são escassos? É o quie oressupõe a
argumentação deles. Mas é aí que JR descobre o caráter precário e hipotético desse
enunciado. De fato, que necessidade incontornável é essa que tem validade para
algumas famílias e para outras, não? Só pode trata–se de um enunciado universal de
extensão arbitrária, para falar nos termos de Kant. Para deixar mais claro ainda, são os
próprios autores que assim o dizem. Com efeito, quando afirmam que os recursos são

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escassos para a maioria da população, asseveraram que essa sentença não tem validade
para aquelas famílias muito ricas. Sem que se deem conta do que afirmam, Krugman e
Wells acabam por confirmar o que Hume e Popper defendiam. Para esses filósofos,
quem assevera, com base na experiência de um número limitado de observação, que os
recursos são escassos, não tem como sustentar sua assertiva de que todos os recursos
são escassos. De um número limitado de observações singulares não é possível daí
extrair um enunciado universal. Noutras palavras, de um ponto de vista lógico, não se
pode inferir enunciados universais a partir de observações singulares. Com efeito,
partindo de Hume, Popper chega a conclusão de que

não importa quantas instâncias de cisnes brancos possamos ter observado, isto não justifica
a conclusão de que todos os cisnes são brancos (Popper, 1980, p. 3).

– Mas essa é uma questão metodológica que não preocupa nossos autores. – Comenta
JR. – Eles partem do enunciado de que os recursos são escassos; porém, veem–se
obrigados a reconhecer que, para certas pessoas, os recursos não são escassos, como no
exemplo de Bill Gates.

- Peço desculpas se insisto em chamar a atenção de vocês para questões dessa natureza,
meus caros e minhas caras alunas. Minha intenção, – continua JR. – é tão somente
advertir que não podemos omitir a discussão sobre as bases epistemológicas e
metodológicas que dão sustentação às nossas argumentações. Principalmente quando se
está em jogo a responsabilidade de conduzir aqueles que estão entrando no mundo da
Economia pela porta de uma disciplina introdutória. A importância dessa disciplina é
fundamental porque ela é o alicerce que sustenta todo o edifício do saber que vocês vão
apropriar a partir daí.

- Um alicerce mal construído, não pode sustentar uma edificação sólida.

– Mas vamos continuar nossa avaliação da questão da escolha como necessidade


incontornável que todos os agentes econômicos têm de se submeter. – diz JR.

– Depois do parágrafo que abre com a assertiva “Você não pode ter sempre o que
quer”, Krugman e Wells mudam o tom do discurso. Prestem bem atenção, gente,
porque, agora, eles começam perguntando “Por que os indivíduos têm de fazer
escolhas?”, para responder que a razão disso se deve ao fato de

15
que os recursos são escassos. Recurso é qualquer coisa que pode ser usada para produzir
alguma outra coisa. Listas de recursos de uma economia em geral começam com terra,
trabalho (o tempo disponível dos trabalhadores), capital (maquinaria, construção e outros
ativos produtivos fabricados pelo homem) e capital humano (as conquistas educacionais e
habilidades dos trabalhadores). Um recurso é escasso quando sua quantidade disponível
não é suficiente para satisfazer todos os usos que a sociedade quer fazer deles (Krugman e
Wells, 2011, p.6).

– Vamos lá, minha gente! – insiste JR, com seus alunos e suas alunas, – Observem que
agora a restrição é geral. Todos têm de fazer escolhas, não mais porque a renda é
limitada, mas, sim, porque os recursos são escassos. Aqui, também, vamos nos deparar
com alguns problemas. Para aqueles autores, como vocês podem observar no trecho que
acabo de ler, os recursos escassos são a terra, o trabalho e o capital, isto é, os fatores de
produção. Muito interessante! Vocês não acham? – questiona JR.

– O que, professor? – pergunta um aluno que começava a despertar da indiferença em


que estava mergulhada desde o começo da aula.

– Deixa para lá. – responde JR, voltando a atenção para o texto. – Vamos continuar. Ao
restringir a escassez aos fatores de produção, nossos autores deixam de fora recursos
tais como água, a variedade de energia fóssil, matérias–primas etc. Mas, deixemos isso
de lado e vamos analisar se os fatores de produção são realmente escassos. Vamos
começar pelo fator trabalho. Pode–se afirmar que o trabalho é escasso? Ora, se
examinarmos as estatísticas da Organização Internacional do Trabalho (OIT), veremos
que, hoje, existem, no mundo, mais de 200 milhões de pessoas desempregadas. Um
contingente do tamanho da população do Brasil. É claro que a crise agravou o
desemprego bastante expressivo. Mas não podemos esquecer que o capital sempre
dispõe, e hoje, mais do que nunca, de um exército industrial de reserva à sua disposição,
do qual lança mão em períodos de crescimento acelerado da economia. Ao contrário do
que pensam Krugman e Wells, é o capital que determina o tamanho da força de trabalho
em atividade e o volume de uma reserva de trabalhadores de prontidão para ser utilizada
nos períodos de prosperidade econômica.

– Como se isso não bastasse, – continua JR – a economia entrou numa fase de


acumulação em que o crescimento econômico não mais se faz acompanhar
imediatamente do crescimento do emprego. O mundo vive uma fase de crescimento
com desemprego. Mas, ao que parece, nossos autores não estão preocupados com isso.

16
Mas, quanto ao fator capital (maquinaria, construção e outros ativos produtivos), JR
chama atenção de que não tem sentido afirmar que se trata de um fator escasso. O
capital não é um estoque disponível de máquinas e equipamentos que as empresas
utilizam para a produção de bens e serviços. Mesmo se assim fosse, todas as empresas
trabalham com capacidade ociosa; isto é: nunca utilizam plenamente a sua capacidade
produtiva.

Tendo chegado nesse ponto, Krugman e Wells apresentam no capítulo 2 alguns modelos
econômicos a partir dos quais eles constroem uma representação ideal da realidade. Um
economista interessado em investigar o que é o dinheiro, imagina, por exemplo, um
sistema de trocas que se desenvolveu nos campos de prisioneiros durante a Segunda
Guerra Mundial, em que os cigarros se tornaram o meio através do qual eles
conseguiam as coisas desejadas. Cigarro passou a ser, portanto, a moeda de troca, a
moeda de compra, porque era o bem mais escassos nos campos de concentração.

Além do caráter bizarro do exemplo dos cigarros, o dinheiro não nasce da escassez. Até
mesmo para a teoria mais ortodoxa, a teoria quantitativa da moeda, o volume de
dinheiro em circlução é regulado pelo Estado.

Mas, o primeiro modelo que eles apresentam é o da curva de possibilidades de


produção, com o qual eles pretendem oferecer uma ideia do crescimento econômico.
Para tanto, imaginam um gráfico no qual eles apresentam as possibilidades de produção
de uma economia simples. No eixo das ordenadas, representam a quantidade de
alimentos produzida pela sociedade, medida em toneladas. No eixo das abcissas, a
quantidade armas produzidas pela economia.

Pressupondo que os recursos são escassos,


os deslocamentos ao longo da curva
mostram que para se obter mais alimentos,
a sociedade terá de renunciar certa
quantidade de armas. Se, ao contrário,
preferem mais armas, terá de reduzir a
produção de alimentos.

17
Mas, como a sociedade decide o que deve ser produzido? Mais alimentos ou mais
armas? Krugman e Wells não têm dúvidas. Até já responderam essa questão, quando o
viajante no tempo, o colono do século XVIII, imaginado por eles, espantado com
espetáculo de bens à disposição das pessoas, pergunta quem é o responsável por toda
aquela riqueza, que enchia seus olhos de admiração. Krugman e Wells se apressam em
dizer para o viajante que “não há ninguém responsável. Os Estados Unidos têm uma
economia de mercado em que a produção e o consumo são resultados de decisões
descentralizadas das empresas e dos indivíduos”.

– Vocês devem estar lembrados dessa passagem. Certo? – Pergunta JR.

Em seguida, Krugman e Wells apresentam um outro modelo simplificado do sistema


econômico. Lançam mão do célebre e batido fluxo circular da renda, que JR já havia
comentado quando apresentou a curva de oferta de trabalho. Trata–se uma
representação tão distante da realidade, que até mesmo a mais inocente criatura diria
que aquele fluxo nada tem em comum com o mundo em que vivem as pessoas dotada
do mínimo de bom senso.

– Bem, gente, acredito que essa breve exposição seja suficiente para que vocês tenham
uma boa ideia de como Krugman e Wells entendem a Economia – diz JR. – Aliás - ,
continua ele, - eu já tinha feito essa exposição, só que, agora, o fiz problematizando os
pressupostos metodológicos e epistemológicos que sustentam o discurso da
apresentação que eles fazem dessa ciência. E o fiz com a intenção de chamar a atenção
de vocês para o que vamos encontrar em O Mundo da Economia.

O Mundo da Economia abre suas portas para receber um viajante no tempo, que vem de
outra galáxia, com a intenção de avaliar o progresso no ensino de Economia. É um
alienígena que já conhece a Terra de outras incursões que fez por aqui, com o mesmo
intento do de agora. Chega numa daquelas noites em que o calor não permite a
ninguém um sono reparador. Por coincidência ou não, estaciona sua nave numa casa em
que se encontrava um recém-formado em Economia.

Era tudo que o alienígena precisava para fazer seu trabalho.

18
Assim como Krugman e Wells traz um colono do século XVIII para visitar um
shopping numa grande cidade norte-americana, o viajante alienígena vem sem cartão de
visita, vem movido pela curiosidade de avaliar a aprendizagem das ciências
econômicas. Enquanto o colono sente-se embevecido com aquele mundo de
mercadorias, o alienígena quer saber por que tudo aquilo, que deixava enfeitiçado o
pobre colono, tinha preço.

É partir daí que o alienígena começa seu diálogo com seu anfitrião impremeditado, que
acabara de receber o diploma de Economista. Conversa se inicia falando de coisas que
são de todo mundo conhecidas. Mas, o alienígena, diferentemente do colono, não quer
falar do senso comum refinado; pelo contrário, o que ele pretende mostrar é que as
verdades do senso são sempre paradoxais quando julgadas à luz das verdades
científicas.

No lugar do abstrato homem comercial, preocupado com a administração de seu


negócio, o homem de O Mundo da Economia é um ser historicamente determinado, que
pertence a uma determinada classe social, vivendo num mundo que lhe aparece de ponta
cabeça, na medida em que trata-se de uma forma de sociedade em que as coisas são
mais importantes do que as pessoas.

-Mais isso, minha gente, diz JR, - é coisa para ser conferida ao longo desse semestre.

– Vamos, primeiro, ler livro! Vamos nele mergulhar de corpo e alma, como se fora um
grande lago. Mas nada de pressa para atravessá–lo de um só folego. Não se alcança a
verdade do conceito de Economia logo no início, porque a verdade não está no começo,
ela é processo e, por isso, só aparece depois de um longo trabalho de apresentação de
toda uma arquitetura conceitual.

Sem o exercício da paciência do conceito, não se chega à verdade.

- Bem, gente, tá na hora – diz JR - até a próxima semana.

JR
Verão de 2021

19
1. O ESTRANHO O MUNDO DOS HOMENS

1.1. UM VISITANTE DE OUTRO MUNDO

Era noite alta quando Washington foi subitamente arrancado dos braços de Morfeu.
Banhado de suor, correu para janela do quarto. Abriu as portinholas escancarando
suas duas bandas: cada uma para um lado. Uma rajada de vento soprou seu rosto
enxarcado de suor, causando–lhe uma sensação de alívio e frescor. Sentindo–se mais
confortado, Washington espichou o pescoço para fora do quarto e olhou para o céu. O
brilho das estrelas iluminou o cubículo onde ele descansava da longa viagem que fizera
da capital até o alto sertão central; lugar onde nascera e que sempre visitava nessa época
do ano, para matar a saudade dos pais e dos amigos que ainda teimavam em viver
naquelas brenhas quase desérticas.

Não demorou muito para a claridade das estrelas se apagar. Um clarão incandescente
desceu do céu e entrou quarto adentro deixando Washington praticamente às cegas.
Tremendo dos pés à cabeça, voltou para cama e ficou sentado até sua visão começar a
divisar as coisas ao seu redor. Passado algum tempo, o medo se foi. Washington
continuava sentado à beira da cama, quieto; quase em estado catatônico. Ficou assim
até sentir a presença de alguém aproximando–se e sentando–se ao seu lado. Quis falar,
mas foi contido pelo visitante que lhe pediu calma, pois não queria amedrontá–lo; só
desejava descansar um pouco da longa viagem que fizera pelo espaço sideral até chegar
ali. Era um viajante de outro mundo que percorria as galáxias para aprender com os
habitantes de planetas diferentes do seu. Sabia que Washington era recém–formado em
economia. Por isso, foi logo perguntando–lhe:

– Meu bom rapaz, permita–me perguntar qual é o seu nome?

– Sou conhecido por Washington, mas meu nome de batismo é George Washington
Ferreira da Silva.
20
– Hum, é um nome esquisito. – retrucou o visitante.

– É mesmo. Você tem razão, – respondeu–lhe Washington – mas essa bizarrice, que
carrega meu nome, devo à minha mãe. Quando ainda era moça, ganhou uma nota de 1
dólar e ficou muito impressionada com o desenho daquele homem estampado naquela
cédula. Achou–o muito parecido com o seu avô. Quando soube que se tratava da figura
do primeiro presidente norte–americano, seu coração quse saiu pela boca de tanta
alegria. Muito tempo depois, quando eu já era menino feito, ela me contou que naquele
dia prometeu a si mesma que iria batizar o seu primeiro filho com o nome de George
Washington. Tinha extremo fascínio por tudo que era dos Estados Unidos. Quem a
conhece, sabe muito bem que ela tem guardado num baú dois álbuns cheios de fotos de
atores e atrizes de Hollywood. Vez ou outra, a vejo folheando as páginas amareladas de
suas lembranças de menina–moça. Tem retrato de tudo que foi e ainda são considerados
ícones do cinema Hollywoodiano. Tem retratos de Ingrid Bergman, Audrey Hepburn,
Sophia Loren, Olivia de Havilland, Elizabeth Taylor, Ava Gardner, John Travolta,
George Clooney, Kirk Douglas, Victor Mature, John Wayne, Clarck Gable, Marlon
Brando, etc..

Depois dessa rememoração, Washington, em tom jocoso, diz que sua mãe lhe dera um
nome partido ao meio: metade norte–americano e metade brasileiro.

– Que pena! Porque minha mãe não nasceu nos Estados Unidos da América do Norte.
Talvez hoje eu fosse um egresso da Universidade de Chigago. O jeito é me conformar,
quem sabe se um dia eu não consigo uma bolsa de estudo para fazer o doutorado por lá!

O viajante percebe o pesar de seu anfitrião e resolve desviar o rumo da conversa. Pede-
lhe licença para fazer mais algumas perguntas sobre a forma de organização da
produção e distribuição da riqueza da sociedade em que ele vive.

Começa perguntando como as pessoas adquirem as coisas que usam para se alimentar,
vestir–se, casa para morar e tudo mais do que precisam para viver. - Como elas
conseguem tudo isso?

Washington ficou intrigado com esse tipo de indagação. Achou-a bastante bucólica. Por
isso, não pensou duas vezes: virou–se para seu curioso visitante com certo ar de
deboche, estufou o peito com toda força dos pulmões e disparou:

21
– Ora, ora essa... comprando. Como mais poderia ser?

– Comprando! – exclamou o visitante misterioso. Você quer dizer que consegue as


coisas que deseja pagando por elas? – e continou, com certo ar de perplexidade: – É isso
mesmo, Washington? Vocês têm de pagar por tudo que precisam para satisfazer suas
necessidades, sejam elas provenientes do estômago ou da fantasia? Se você deseja ir ao
cinema, há que comprar um ingresso para assistir ao filme que pretende ver? Se sente
vontade de comer pipocas, para degustá–las enquanto se deslumbra com as aventuras de
um tal Rambo, tem de pagar também por isso? Vocês são muito esquisitos. Como
alguém perde seu precioso tempo assistindo um personagem feito de um monte de
músculos, sem camisa, com uma faca, um arco e algumas flexas matando qualquer
pessoa que por acaso julgue inimiga do Tio Sam, isto é, dos Estados Unidos da América
do Norte? Você não acha tudo isso muito esquisito? – pergunta o viajante com cara de
quem considera muito bizarro o fato de alguém ter que pagar para poder ter direito de
usufruir da utilidade das coisas que deseja consumir.

Washington não entendeu o porquê dessa indagação carregada de espanto do seu


misterioso visitante. Afinal, era uma questão tão evidente, tão simples – matuta o jovem
anfitrião de nome partido ao meio. Com ar de bazófia, comenta com seu botões: –
quanta bobagem, até mesmo as crianças não titubeariam em responder tamanha
obviedade, pois quando querem alguma coisa pedem aos seus pais para comprar. Como
é que um ‘sujeito’ desses, que se diz conhecer quase todas as galáxias do Universo, não
sabe de uma besteira dessa.

Enquanto Washington continuava entregue às suas indagações, seu visitante se


perguntava: – será que essa criatura que vive num planeta em que o homem já visitou a
lua, Marte e outros tantos confins do universo, não sabe que as coisas que as pessoas
julgam conhecer tão bem, não são verdadeiramente conhecidas? Foi então que se
lembrou da lição que um pensador do século XIX deixou aos seus leitores advertindo–
os de que “a ciência seria supérflua se a forma de manifestação e a essência das coisas
coincidissem imediatamente”.

– Será mesmo que meu caro anfitrião não sabe que o mundo conhecido pelas ciências é
muito diferente do mundo que todos acreditam conhecer? Se alguém perguntasse por
que os corpos caem, que diria ele? Será que responderia que caem porque são pesados?
Tenho cá minhas dúvidas, que insistem em continuar me incomodando como se

22
quisessem confirmar que estou certo. Será que essa pobre criatura, que acaba de
concluir um curso de nível superior, não sabe que os corpos caem por causa da lei da
gravidade e não porque são pesados?

Ocupados com suas reflexões, Washington e seu visitante pareciam esquecidos um do


outro. O silêncio foi quebrado quando seu o voltou a lhe perguntar:

– Por que vocês precisam de dinheiro para comprar as coisas que necessitam?

– Essa é de lascar – pensou Washington, xingando seu visitante celestial com todos os
palavrões que lhe viam à mente. Só depois de um esforço descomunal, conseguiu conter
os excessos de seu espírito irascível; olha para o viajante do outro mundo e lhe responde
a contragosto: – porque sem dinheiro ninguém pode comprar as coisas que precisa para
satisfazer suas necessidades. Todo mundo age assim! Dinheiro existe para facilitar a
vida da gente.

– Será que eu precisaria de dinheiro para comprar escravos, num mundo em que essa
barbaridade já não mais existe? – pensa o visitante com seus botões. Temendo
provocar a ira de seu anfitrião, resolve não lhe perguntar nada disso. Melhor continuar
com a conversa, com o devido cuidado para não o provocá-lo mais ainda.

O viajante é um homem afeito às mais diversas situações, é um verdadeiro diplomata.


Guardou para si mesmo a certeza de que seu anfitrião não sabia porque é preciso ter
dinheiro para comprar as coisas necessárias à satisfação das necessidades humanas. E
continuou a pensar que se Washington ao menos fizesse um esforço para se recordar
das aulas de história, quando ainda cursava a escola de nível médio, certamente se
lembraria que na sociedade feudal, por exemplo, os produtos do trabalho humano não
eram produzidos para serem vendidos. E não eram porque nesse mundo quase toda
produção era destinada a satisfazer diretamente as necessidades dos produtores; as
coisas não eram produzidas para ser vendidas no mercado. A maioria dos produtos do
trabalho dos homens não assumiam a forma de mercadoria. Consequentemente, dinheiro
era uma coisa rara, praticamente a maioria da população dele não precisava, pois tudo o
que desejava era produzido diretamente para o consumo e não para ser vendido. Tudo
isso muda, quando o produto do trabalho humano já traz em sua marca de nascença que
foi produzido para o mercado. É a partir daí que tudo vira mercadoria. É então que o
dinheiro se impõe como uma necessidade inexorável, pois quem não tem essa coisa não

23
pode comprar o que precisa para matar sua fome, para se vestir, para morar, para matar
a sede, para ir ao cinema, para viajar etc.

Essas meditações do visitante demonstram que as coisas que o homem deseja para
satisfazer suas necessidades nem sempre foram mercadorias. Somente com a destruição
do feudalismo e com a chegada do capitalismo é que a riqueza aparece “como uma
enorme coleção de mercadoria”. Quando tudo que existe, existe como mercadoria,
ninguém pode viver sem dinheiro para comprar as coisas.

Como a maioria de seus colegas, Washington não tinha a minha ideia de que existe
uma diferença histórica abismal entre o conceito bens e o conceito de mercadorias.
Ele, como todo mundo, está tão acostumado com mundo em que vive, que nem se dá
conta de que é filho de uma sociedade em que os bens e serviços assumem a forma de
mercadoria. Por isso, Washington não questiona mais o fato de que sem dinheiro, não se
come, não se bebe, nem tampouco se pode viajar, ir ao cinema etc. Nem mesmo lhe
causa estranhamento quando a justiça desapropria um pobre de sua palhoça para
restituir ao proprietário o terreno sobre o qual o pobre desgraçado construiu sua morada
feita com compensado, lona e papelão. Muito menos lhe causa indignação saber que o
dono do terreno mora numa cobertura com mais de 500 metros quadrados e que vive da
especulação imobiliária. Ninguém diz nada, pois tudo isso virou rotina. Contra esse
estado de coisas a única saída é apelar para a justiça divina, pedir a Deus que ampare os
desvalidos, como canta o grande Adoniram Barbosa, com sua voz rouca, a “sua saudosa
maloca”. Assim:

“Se o sinhô não está lembrado


Dá licença de contá
Que aqui onde agora está
Esse adifício arto
Era uma casa velha
Um palacete abandonado

Foi aqui seu moço


Que eu, Mato Grosso e o Joca
Construímos nossa maloca
Mas um dia, eu nem quero me alembrá
Veio os homis c'oas ferramenta
Que o dono mandô derrubá

Peguemos tudo as nossas coisas


E fumos pro meio da rua

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Apreciar a demolição
Que tristeza que eu sentia
Cada táuba que caía
Doía no coração

Mato Grosso quis gritá


Mas em cima eu falei
Os homis tão cá razão
Nós arranja outro lugar
Só se conformemos quando o Joca falou
Deus dá o frio conforme o cobertor

E hoje nós pega páia nas gramas do jardim


E pra esquecê, nós cantemos assim
Saudosa maloca, maloca querida
Dim–dim donde nós passemos os dias feliz de nossa vida
Saudosa maloca, maloca querida
Dim–dim donde nós passemos os dias feliz de nossas vidas.”

- Você está certo, Adoniran, os “homis tá cá razão”. Num mundo onde tudo que existe,
existe como mercadoria, não é a Bíblia que é sagrada, mas sim, a propriedade privada.
Desde o século XVI, quando os portugueses se abalançaram mar adentro e aqui
chegaram, dividiram esse imenso território entre doze capitanias hereditárias, e
entregaram aos nobres que gozavam da confiança do rei D. João III (1502–1557).

O visitante resolve dar asas à sua imaginação e começa a aprofundar suas reflexões.
Inicia destacando que foi a partir de 1530 que tem início, de fato, a exploração das terras
da colônia portuguesa. Aqueles herdeiros, agraciados com o título de proprietário pelo
rei de Portugal, fizeram sua fortuna colhendo o que nunca plantaram. Com efeito,
chegaram aqui com seus trabalhadores acorrentados pelo pescoço: seus escravos, a
quem cabia produzir a riqueza, não para si, mas, sim, para seus donos. Foram eles que
fizeram a lei para protegê-los contra quem ameaçasse invadir suas propriedasdes. Para
tanto, instituíram a lei n. 601, de 18 de setembro de 1850, amplamente conhecida como
Lei de Terras, dispositivo legal que, pela primeira vez, tratou de regulamentar a questão
fundiária no Império do Brasil. Esse ato determinou que a única forma de acesso às
terras devolutas da nação fosse através da compra ao Estado em hasta pública,
garantindo, entretanto, a revalidação das antigas sesmarias, que era até então a forma de
doação da terra por parte do Estado à iniciativa particular – prática existente desde os
tempos coloniais. Essa lei definiu também penas para aqueles que se apossassem
indevidamente de terrenos públicos ou privados e neles pusessem fogo ou derrubassem

25
mato, sendo estes casos sujeitos a expulsão, prisão de seis meses a dois anos, além de
pesadas multas.

Com a regulamentação legal da propriedade, a justiça está do lado de quem é


proprietário, pois, como diria, Tomas Hobbes, só se pode falar de injustiça onde há lei.
É, portanto, injusto se apropriar das coisas alheias. Quem o faz está transgredidindo a
lei. – Mas isso – comenta o vioajante – nós vamos ver mais adiante.

O quwe importa por ora, é saber que ma vez proprietários, eternamente proprietários. O
mundo muda, as sociedades criam novos direitos para proteger os mais pobres. No
entanto, a propriedade continua sendo um direito fundamental, uma instituição
inviolável, pois ela é a pedra de toque do mundo capitalista. Com efeito, no capítulo I,
Artigo 5º da Constituição Federal, de 1988, que dispõe sobre os Direitos e Garantias
Fundamentais do indivíduo, está escrito no inciso XXII que “é garantido o direito de
propriedade”. No inciso seguinte, XXIII, lê–se que “a propriedade atenderá a sua função
social”. Caso não o faça, o incisivo XXIV determina que “a lei estabelecerá o
procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse
social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos
nesta Constituição”.

Não é preciso nenhum esforço intelectual para perceber que o Artigo 5º da CF,
notadamente o inciso XXIV, transformou–se num preceito escrito que não se cumpriu,
ou que nunca teve autoridade, nem valia. Numa linguagem pé no chão: o que preceitua
o inciso XXIV não passou de letra morta, malgrada a luta dos movimentos sociais pelo
direito à terra. Por isso, não adianta lamentar nem pedir conforto a Deus, pois o mundo
tem dono. Quem não é dono de terras, de bancos, de empresas, não tem outra saída que
não vender a propriedade que traz em seu corpo: a sua força de trabalho. Essa é a única
mercadoria de que dispõem os despossuídos de propriedade para vendê–la no mercado
em troca de um salário; e isso quando encontra quem a compre.

O viajante tinha conhecimento de tudo isso. Sabia muito bem que o dinheiro só se
tornou uma coisa inevitável, sem qual ninguém pode comprar o que precisa, quando o
produto do trabalho do homem virou mercadoria. Sabia também que a propriedade não
é produto do trabalho pessoal; se fosse assim, os escravos seriam, hoje, os donos do
Brasil, pois foram eles que criaram a riqueza dos barões do açúcar e do café.

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A conclusão óbvia que daí se infere é a de que o trabalhador não é o dono das coisas
que ele produz. Pergunte a um padeiro de uma grande panificadora a quem pertence o
pão que ele produz. Ele não pensaria duas vezes: “pertence ao meu patrão”, diria ele.
“Se eu quiser levar algum pão para minha casa, terrei que fazer o que todo mundo o faz;
tenho que comprar o pão que eu mesmo produzi”. Pior do que isso, é o fato de que é
com a venda do produto criado por seus trabalhadores, que os patrões pagam seus
salários. Ao contrário do que pensa o senso comum, não é o patrão que paga o salário de
seu empregado, mas, sim, é este que paga seu próprio salário.

Receoso de que se dissesse isso para Washington, ele o chamaria de comunista, o


viajante retira de uma maleta metálica um exemplar de A Riqueza das Nações, do
grande Adam Smith ( 1723-1790). Abre-o no capítulo VI, do Volume I, e ler para seu
anfitrião a seguinte passagem:

no momento em, que o patrimônio ou capital se acumulou nas mãos de


pessoas particulares, algumas delas naturalmente empregarão esse capital
para contratar pessoas laboriosas, fornecendo-lhes matérias-primas e
subsistência a fim de auferir lucro com a venda do trabalho dessas pessoas
ou com aqueilo que este trabalho acrescenta ao valor desses materiais. Ao
trocar-se o produto acabado po dinheiro ou por trabalho, ou por outros
bens, além do que pode ser suficiente para pagar o preço dos materiais e os
salários dos trabalhadores, deverá resultar algo para pagar os lucros do
empresário (Smith, 1985, p. 77-78).
- Veja meu caro Washington, diz o visitante, Smith não poderioa ter sido mais claro
nessa passagem, que acabei de ler para você. Aí, ele, que é considerado como o pai do
liberalismo econômico, diz com todas as letras que o valor criado pelo trabalhador
“além do que pode ser suficiente para pagar o preço dos materiais e os salários dos
trabalhadores, deverá resultar algo para pagar os lucros do empresário”. Mais
diretamente, o que aí ele diz é que o trabalhador é obrigado a criar um valor para seu
patrão, cuja grandeza deve ser sufiente para pagar o seu salário e o lucro do seu
empregador.

Nesse mundo em que o trabalhador não é dono das coisas que produz, resta a Zé
Ramalho, como o fez Adorian Barbosa, tão somente lamentar a sorte daqueles vivem da
venda de sua força de trabalho.

Tá vendo aquele edifício, moço?


Ajudei a levantar
Foi um tempo de aflição

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Era quatro condução
Duas pra ir, duas pra voltar

Hoje depois dele pronto


Olho pra cima e fico tonto
Mas me vem um cidadão
E me diz, desconfiado
Tu tá aí admirado
Ou tá querendo roubar?

Meu domingo tá perdido


Vou pra casa entristecido
Dá vontade de beber
E pra aumentar o meu tédio
Eu nem posso olhar pro prédio
Que eu ajudei a fazer

Tá vendo aquele colégio, moço?


Eu também trabalhei lá
Lá eu quase me arrebento
Fiz a massa, pus cimento
Ajudei a rebocar

Minha filha inocente


Vem pra mim toda contente
Pai, vou me matricular
Mas me diz um cidadão
Criança de pé no chão
Aqui não pode entrar

Essa canção termina com um apelo aos desfortunados para que eles parem de lamentar
sua condição de vida, pois até mesmo Deus, que criou a terra, encheu os rios, não
deixou nada faltar, “na maioria das casas/(...) também não pode entrar”.

Que pena que o mundo seja assim! No entanto, pelo menos uma lição deixa essa
canção. Ela mostra que a cidadania não depende da Lei; não basta ter um registro civil
de nascimento; tampouco uma carteira profissional sem registro de contrato de trabalho.
Pois a realidade ensina que cidadão é aquele que tem propriedade; que tem casa para
morar; que tem condições de oferecer uma boa educação aos seus filhos; que possa
dispor de bons advogados para defender seus direitos etc.

- E assim mesmo que o liberalismo vê o mundo, diz o viajante olhando para


Washington.
28
Para dá prova do que diz, o visitante tem entre as mãos um exemplar do Segundo
Tratado Sobre o Governo, do filósofo John Locke (1632-1704), considerados por
muitos como o verdadeiro pai do liberalismo político. Para esse pensador, a
propriedade privada é produto do trabalho individual, do esforço pessoal que cada
indivíduo realizou para amealhar seu patrimônio, tal como assim também pensa Smith.
Foi assim desde sempre; desde quando Deus expulsou Adão e Eva do paraíso, e os
amaldiçou a viver daí em diante do suor do seu próprio rosto. Mas “Deus é bom, nunca
abandona seus filhos”. Castigou Adão e Eva, mas, no entanto, lhes deu a Terra e tudo
ela contém para sustentá-los e prover o conforto de sua existência e a de seus
descendentes. Esse mito é o pressuposto de onde parte Locke para explicar a origem da
propriedade privada. Com efeito, para esse filósofo, Deus quando deu “o mundo aos
homens em comum", doou também, ao mesmo tempo, a cada homem uma propriedade
natural que se encontra inseparavelmente ligada a ele: seu trabalho, ou seja, sua
capacidade de transformar a natureza para produzir os bens e serviços necessários à sua
sobrevivência na face da terra. Consequentemente,

“seja o que for que ele retire do estado que a natureza lhe forneceu e no
qual o deixou, fica-lhe misturado ao próprio trabalho, juntando-se-lhe algo
que lhe pertence, e, por isso mesmo, tornando-o propriedade dele.
Retirando-o do estado comum em que a natureza o colocou, anexou-lhe por
esse trabalho algo que exclui do direito comum de outros homens" (Locke,
1978, p.45).
A propriedade aparece, assim, como uma instituição natural, pois é, igualmente, produto
de uma outra propriedade natural do homem: o seu trabalho pessoal. Partindo deste
pressuposto, Locke passa, então, a investigar como se determina o valor da propriedade.
Por meio de um raciocínio engenhoso, ele descobre que o valor das coisas, as quais o
homem retira da natureza, deve-se ao trabalho despendido por ele (homem) para delas
se apropriar. Para demonstrar que o trabalho, é, portanto, a medida de valor das coisas,
ele recorre ao seguinte exemplo:

considere qualquer um a diferença que existe entre um acre de terra


plantada com fumo ou cana-de-açúcar, semente de trigo ou cevada e um
acre da mesma terra em comum sem qualquer cultura e verificará que o
melhoramento devido ao trabalho constitui a maior parte do valor
respectivo. Acho que será cálculo muito modesto dizer que, dos produtos da
terra úteis à vida do homem, nove décimos devem-se ao trabalho; ainda
mais, se avaliarmos exatamente tudo quanto nos chega às mãos para o nosso
uso e calcularmos as diversas despesas correspondentes, tanto o que se deve

29
tão-só à natureza quanto ao que se atribui ao trabalho, verificaremos que
em muito deles noventa e nove centésimos têm-se de levar à conta o
trabalho" (Locke, 1978,p.50).
É interessante observar que o trabalho não é a única fonte de valor. Como se pode notar
no trecho acima citado, além do trabalho, Locke computa, no valor das coisas, uma
parcela devida à natureza. Leva, portanto, em consideração a utilidade que a mãe
natureza dá aos produtos. Apenas dessa dupla determinação do valor, Locke tinha
consciência de que o trabalho tendia a crescer sua participação na formação do valor, na
medida em que a divisão social do trabalho avançasse. É o que se pode depreender
numa passagem em que ele distingue com clareza, embora não se refira explicitamente
aos conceitos, a diferença entre trabalho vivo e trabalho morto. Depois de argumentar
que é o trabalho que atribui maior parte do valor à terra, ele conclui dizendo que

é a ele que devemos a maior de todos os produtos úteis da terra; por


tudo isso a palha, farelo e pão desse acre de trigo valem mais do que o
produto de um acre de terra realmente boa mas abandonada, sendo o
valor daquele o efeito do trabalho. Não é simplesmente o esforço do
lavrador, a labuta do ceifador e o suor do pedreiro que têm de
concluir no pão que comemos; o trabalho dos que amansaram os bois,
extraíram e prepararam os ferros e as mós, derrubaram as árvores e
prepararam a madeira empregada no arado, no moinho, no forno ou
em outros utensílios quaisquer, que são em grande parte
indispensáveis a esse trigo, desde que foi semente a plantar-se até
transformar-se em pão, terá de computar-se à conta do trabalho, e
receber-se como efeito deste; a natureza e a terra fornece somente os
materiais de menor valor em si Idem.Ibidem, p. 51).

Daí se pode concluir, sem muito esforço intelectual, que o trabalho é a fonte da
propriedade, e que seu valor é determinado pela extensão do trabalho de cada um,
isto é, pelo esforço que cada indivíduo despendeu para criar suas coisas – sua
propriedade.

Ora, ora, se o valor da propriedade depende da extensão do trabalho individual, isto é,


do esforço que cada um realiza para produzir seus bens, então,

"nenhum trabalho do homem podia tudo dominar ou de tudo apropriar-se,


nem a fruição consumir mais do que uma pequena parte, de sorte que era
impossível para qualquer homem, dessa maneira, usurpar o direito de outro
ou adquirir para si uma propriedade com prejuízo do vizinho, que ainda
disporia de espaço para a posse tão boa e extensa(Idem,Ibidem.,p.48).

30
Mas, se é assim, como se explica a desigualdade social? A resposta que se encontra em
Locke é simples: para ele, a concentração da propriedade em mãos de uma minoria se
deve a invenção do dinheiro. É o que ele deixa transparecer nessa passagem, na qual
afirma que

seja lá como for, ao que não quero dar importância, ouso afirmar
corajosamente o seguinte: - a mesma regra de propriedade, isto é, que
todo o homem deve ter tanto quanto possa utilizar, valeria ainda no
mundo sem prejudicar a ninguém, desde que existisse terra bastante
para o dobro dos habitantes, se a invenção do dinheiro e o tácito acordo
dos homens, atribuindo um valor à terra, não tivesse introduzido - por
consentimento - maiores posses e o direito a elas... Idem.Ibidem.,p.4/49).

Se o homem não tivesse inventado o dinheiro, ah, que bom seria o mundo; não
haveria desigualdade social, não haveria fome, não haveria guerra, nem assinatos
etc. Infelizmente, essa invenção possibilitou que uns poucos pudessem possuir
mais do lhe permitia a extensão do seu trabalho pessoal, individual. Noutras
palavras, poderia comprar a propriedade dos outros e, assim, construir um enorme
patrimônio.

Bem que se poderia perguntar a Locke porque somente uma minoria tem dinheiro
para comprar a propriedade dos outros indivíduos. Nem de longe Locke se
preocupou em formular tal questão. Para ele, o dinheiro é um fato.

Sua preocupação era de outra natureza. Sabia que a desigualdade de riqueza


poderia criar um estado de perpetua inquietação social. Para evitar que isso
tornasse impossível a vida em sociedade, Locke advoga a criação do Estado, pois
somente sob proteção dessa instituição os proprietários poderiam dormir à noite
sem medo de ver sua propriedade invadida. Essa instituição nasce, portanto,
com a função proteger a propriedade. Que ele mesmo o diga Locke, para quem,

o objetivo grande e principal (...) da união dos homens em comunidade,


colocando-se eles sob o governo, é a preservação da propriedade
(Idem.Ibidem,p. 82).
Ora, se a função primordial do Estado é proteger a propriedade dos cidadãos, Locke
entende a cidadania como um atributo da propriedade. Obviamente, com o
desenvolvimento da sociedade e o aprimoramento das instituições, as constituições
ampliaram o escopo do direito, e hoje a população em geral tornou-se detentora de

31
alguns direitos elementares, tais como direito à saúde (embora se morra na fila de espera
por um atendimento médico), à educação (embora a escola pública esteja longe do
ideal), à liberdade de ir e vir (desde que a maioria reconheça seu lugar), à
inviolabilidade da intimidade, da vida privada (para aqueles que não moram em favelas)
etc. Mesmo assim, a propriedade continua sendo reconhecida como uma instituição
natural e e inviolável. Ninguém pode se apossar da propriedade alheia, por maior que
seja a necessidade de quem pratica um ato dessa natureza. Mesmo considerando que a
propriedade esteja em desuso há muito tempo, se alguém se apossa dela, vem a lei e
despeja o “invasor” para reintegração de posse. Daí, talvez, se exlique a resignação de
Adoniram e de Zé Ramalho diante da frieza da justiça que mandou derrubar palhoça de
um, e impediu o outro de matricular a filhinha no colégio que ajudou a construir.

Depois dessa longa digressão, o viajante não se conteve e brada com todas as letras que
de perto, nada é natural. Infelizmente, Washigton via tudo de longe, para ele tudo é
muito natural, porque desde que se entende por gente, o mundo sempre foi assim. Daí a
razão de sua irritação com as perguntas aparentemente triviais do visitante, para quem,
no mundo dos homens, nada é como aparenta ser à perimeira vista. Por isso, o viajante
resolveu retomar a leitura de A Riqueza das Nações, escrito em 1776, só que desta vez,
retirou também de sua maleta um exemplar de O Capital, de Karl Marx, cuja primeira
edição veio a público em 1867. Folheou as páginas iniciais da primeira dessas obras e
encontrou, no capítulo II, uma passagem em que seu autor diz que, num mundo em que
todos os produtos criados pelo trabalho do homem são mercadorias, cada indivíduo

terá maior probabilidade de obter o que quer, se conseguir interessar a seu


favor a autoestima dos outros, mostrando–lhes que é vantajoso para eles
fazer–lhe ou dar–lhe aquilo de que ele precisa. É isto o que faz toda pessoa
que propõe um negócio a outra. Dê–me aquilo que eu quero, e você terá isto
aqui, que você quer (...). É dessa forma que obtemos uns dos outros a
grande maioria dos serviços de que necessitamos. Não é da benevolência do
açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos nosso jantar, mas
da consideração que eles têm pelo seu próprio interesse. Dirigimo–nos não à
sua humanidade, mas à sua autoestima, e nunca lhes falamos das nossas
próprias necessidades, mas das vantagens que advirão para eles (SMITH,
1996: p. 74).

Ao findar a leitura desse trecho, o visitante fechou o livro e o guardou cuidadosamente.

32
Após uma pequena pausa, olhou para seu anfitrião e observou: – Que mundo esquisito é
esse de vocês, meu bom anfitrião? – e continuou fazendo referência a passagem que
acabara de ler. – Agora fica claro porque vocês têm de comprar tudo o que precisam. É
porque tudo o que vocês produzem assume a forma de mercadoria, uma coisa destinada
à venda. Por isso o mundo de vocês é tão desumano, como diz o autor de A Riqueza
das Nações. Solidariedade, bondade, humanidade, são sentimentos que as pessoas não
levam em conta em suas relações umas com as outras. Que coisa, meu bom anfitrião! O
modo de agir de vocês, como diria a filosofia, é uma verdadeira contradição
performativa, pois suas ações são a negação do que afirmam. Pregam o amor, a
solidariedade, a humanidade, mas jogam fora esses atributos em nome do interesse
próprio.

Washigton ouvia seu interlocutor calado. Envergonhado, cobriu–se com as vestes da


humildade e descobriu que nem tudo que reluz é ouro. E não é mesmo, caro Washigton.
Se tudo que reluzisse fosse ouro, o mundo não precisaria de geólogos.

Passado algum tempo, o curioso visitante relembra que Washigton havia lhe dito que o
dinheiro é um simples meio de troca e lhe pede maiores explicações. Já esquecido da
vergonha que passara há pouco, Washigton, num tom professoral, acrescenta:

– O dinheiro é produto de uma convenção social, que atribuiu ao ouro a função de servir
de moeda de compra e venda. Com o tempo, o ouro foi destituído de sua função e foi
substituído por pedaços de papel, as chamadas cédulas impressas pelo Estado. Mais
confiante, Washigton foi mais longe. Todo empolgado com seu conhecimento sobre o
dinheiro, acrescentou que este, além de servir de meio de troca, é unidade de conta e
reserva de valor.

Extenuado pelo esforço que fizera, Washigton se vira para seu visitante e exclama: – Aí
está o que a Economia ensina sobre o dinheiro, meu caro viajante!

Tomado pela sensação de quem havia respondido com todo rigor o que lhe fora
perguntado, Washigton não cabia em si de contentamento. Tinha certeza de que agora
seu visitante daria o assunto do dinheiro por encerrado.

33
Pobre coitado! Mal acabara de colher os louros de seus ensinamentos sobre o dinheiro,
foi sacudido com uma enxurrada de outras questões.

– Certamente você deve ter lido A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, de J.
Maynard Keynes, (Keynes, 1985), para quem, o dinheiro é um ativo estratégico para a
economia monetária da produção. Você poderia me explicar o que esse autor quis dizer
com isso? – insiste o viajante que não se conformou com a explicação que lhe fora
dado pelo jovem Washigton. E, como não obteve resposta, o viajante resolveu
apresentar seus argumentos sobre o assunto. Para não ferir o ego do seu anfitrião, o
visitante começa sua exposição assim:

– Dizer que o dinheiro é um artivo estratégico parace que tem a ver com o
comportamento dos investidores. Durante a viagem que fiz até chegar aqui, li que esse
autor considera que os investidores pensam duas vezes antes de tomar suas decisões.
Ponderam sempre se seria melhor não abrir mão da liquidez, isto é, do dinheiro, ou se
deveriam investir seu bom dinheirinho na esperança de receber futuros rendimentos, que
calculados a preços de hoje, podem se mostrar bem mais vantajosos. – E acrescenta – Se
estou certo, meu caro o jovem, dinheiro é uma coisa muito mais complicada do que
você me ensinou. Você concorda com comigo? – pergunta o visitante.

O jovem Washigton que havia jogado fora as vestes da humildade, volta a vesti–las e
vê–se instado a dizer que não se interessou muito pela questão do dinheiro. Sentiu–se
obrigado a confessar para seu curioso visitante que não leu Keynes.

– Nunca me dei ao trabalho de ler um autor tão complicado como esse – confessa
Washigton. – A teoria por ele elaborada é causa de controvérsias sem fim. Só o título
de sua obra, “A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda”, desanima qualquer
leitor a lê–la do começo ao fim.

– É uma leitura muita chata e difícil –, acrescenta Washigton em seguida. – Quem


precisa perder tempo com um autor como esse, se há vários manuais de
macroeconomia, fáceis e didáticos? – conclui ele.

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Pobre coitado, exclamou o viajante para si próprio. Meu pobre anfitrião nem de longe
desconfia de que os livros didáticos trazem um dedo apontado para o leitor, com uma
mensagem insultante que poderia ser assim expressa: “você é burro. Deixe que eu
penso por você; lhe dou tudo mastigadinho. Você não precisa perder tempo com coisas
tão difíceis, traduzo–as para você”.

Washigton não é uma exceção! Como ele, para a maioria dos estudantes esse tipo
insulto não choca mais ninguém, pois todos se habituaram viver num mundo em que a
produção de saberes é uma produção feita de migalhas. Com efeito, o homem
converteu–se num homo ignotus, caiu num estado de anorexia intelectual. Já não lê
mais os grandes clássicos da Economia e da Filosofia, que edificaram o pensamento
político da modernidade. Prefere os manuais didáticos, que lhe poupam o aborrecimento
de pensar. Também não leu Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa,
Kafka, Drumond, Fernando Pessoa, Shakespeare, dentre outros. Caso tenha
oportunidade de se deparar com um livro desses monstros da literatura nacional e
mundial, desanima com o tamanho do seu volume; se lê as primeiras páginas, logo cai
em desânimo e o abandona por um texto que fale de bruxaria, esoterismo e coisas do
gênero. Há muito que o homem perdeu o gosto pela leitura. Já não lê mais textos
demorados, que exijam dele o mínimo esforço para compreendê–los; prefere textos que
o dispensem de pensar, pois é mais cômodo que outros o façam por ele, que
simplifiquem para ele tudo que demanda tempo para ser compreendido; se possível, que
reduzam as teorias sistêmicas, complexas, em meia dúzia de enunciados, que caibam em
poucas páginas.

Num mundo assim, encontrar alguém que leia a Teoria Geral de Keynes é quase um
milagre. Há muito que os clássicos da filosofia, da economia política, da sociologia,
todos eles estão nas bancas de revistas, para ser lidos em 90 minutos. A obra de uma
vida inteira, como a de Kant, Hegel, Marx, Smith, Ricardo, por exemplo, é condensada
em poucas e ligeiras palavras. Alguns trechos de fácil compreensão são selecionados
para o leitor citá–los e, assim, pousar de intelectual diante de uma plateia tão ignorante
quanto ele. Num mundo assim, em que quase todos se tornaram cegos, quem tem um
olho é rei. Daí porque muitos autores não precisam de muitos esforços para se tornarem
conhecidos do público.

35
– Por isso é que simplificaram a teoria de Keynes em poucas equações matemáticas –,
exclamou o viajante. Sem mais se dirigir a seu anfitrião, comenta para si mesmo o que
fizeram com sua obra. Sabe muito bem que em 1937, um economista britânico, John
Richard Hicks, professor da universidade de Oxford, elaborou uma síntese entre a teoria
neoclássica e a Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, através de uma
formalização matemática que ficou conhecida como modelo IS/LM.

– Ora, esse tipo de modelo termina por desfigurar a teoria de Keynes. – critica o viajante
com um ar de descontentamento. Em seguida, ele resolve resumir o que significa o
modelo IS/LM. Explica que a curva IS mostra a relação entre as diversas taxas de juros
e do produto, ao longo da qual a poupança (S) é igual ao investimento (I). A curva LM,
por sua vez, expressa a relação entre os diferentes níveis de produção e taxas de juros,
com a pressuposição de que a oferta de moeda (M) é igual a demanda de moeda (L).
Onde essas duas curvas se interceptam, tem–se o ponto de equilíbrio entre a produção (o
lado real da economia) e a taxa de juros (o lado monetário da economia).

Depois desse resumo, o visitante do outro mundo olha para seu anfitrião, o Sr.
Washigton e brada: – isso não passa de uma simplificação grosseira da Teoria Geral de
Keynes. No entanto – acrescenta, com certa ironia –, há de se reconhecer que o modelo
IS–LM é muito interessante para os alunos de macroeconomia, pois de maneira lúdica,
lhes ensina como se constrói essas curvas e como podem com elas brincar de fazer
políticas econômicas. Deslocando a curva IS para cima ou para baixo, o aluno aprende
como se faz políticas fiscal e monetária.

– Esse é o lado bom do modelo, se é que há realmente alguma coisa de bom nisso tudo,
meu caro Washigton. No entanto, não se pode deixar de examinar o reverso da
medalha. O Keynes que aparece nesse modelo IS–LM é um Keynes desfigurado,
irreconhecível. Sua teoria não cabe em poucas equações matemáticas. O princípio de
demanda efetiva, que é o ponto central em torno do qual gira a sua teoria e a crítica que
ele faz à economia neoclássica, é obliterado no modelo elaborado por John Hicks. Com
efeitos, uma leitura cuidadosa do capítulo 3 de sua obra que, aliás, traz como título “O
Princípio de Demanda Efetiva”, não deixa dúvidas. Nesse capítulo, o leitor encontra que
esse princípio revela que 1) o consumo de bens finais depende do crescimento da renda
(salários e lucros); 2) que o crescimento no volume de emprego depende do aumento

36
nos investimentos, e estes, por sua vez, 3) dependem da eficiência marginal de capital
(taxa de lucratividade esperada) e das taxas e juros; e, finalmente, que, 4) as despesas
em bens de consumo e bens de investimentos somam–se para determinar o nível de
renda. Visto que o consumo é uma variável dependente da renda, esta passa a ser
determinada fundamentalmente pelas despesas em investimentos. Em consequência, o
investimento é a variável privilegiada na análise keynesiana do funcionamento da
dinâmica da economia capitalista, e que, por isto mesmo, o investimento é o elemento
dinamizador na geração de emprego.

– Ao mesmo tempo que o nível de produção, de consumo e de emprego depende do


investimento, não se deve esquecer que este é extremamente instável – ressalta o
visitante. - E não poderia ser diferente, continua, continua ele. Numa economia
monetária, as decisões dos capitalistas em gastar na implantação de fábricas,
equipamentos e instalações, dependem das previsões que eles fazem acerca do futuro, e
tais previsões são extremamente precárias. Keynes ressalta esse caráter de incertezas da
economia enfaticamente no capítulo 12 de sua obra, quando assevera que “o fato mais
destacado na matéria é a extrema precariedade dos dados em que terão de basear–se os
nossos cálculos das rendas prováveis. O nosso conhecimento dos fatores que governarão
a renda de um investimento alguns anos mais tarde é, em geral, muito limitado e com
frequência desdenhável [...]. As bases do nosso conhecimento para calcular a renda
provável dos próximos dez anos, ou mesmo cinco [...], se reduzem a bem pouco e, às
vezes, a nada.” Kynes, 1985, p. 203).

– Essa instabilidade, na verdade, – comenta o visitante do outro mundo – diz respeito ao


fato de que as decisões de investimentos, na sociedade capitalista, são decisões que têm
que ser tomadas numa economia monetária. E o que significa uma economia monetária?
– pergunta o visitante, para responder que não se trata de uma economia no sentido de
que o dinheiro é considerado como uns simples meios de troca, mas, sim, diz respeito a
uma economia é o lucro monetário. Por isso, arremata o viajante, - o dinheiro aparece
como o ativo estratégico da sociedade. A decisão de investimento, portanto, é uma
decisão problemática porque investir significa renunciar ao dinheiro, da posse desse
ativo estratégico, pois, ao mesmo tempo, o dinheiro é uma reserva de valor. Quando o
capitalista decide gastar para gerar emprego e gerar renda, ele está permanentemente
“avaliando a lucratividade produtiva desse investimento com o uso que ele pode fazer

37
para dizer, de forma simplificada, do dinheiro, da liquidez, que está em suas mãos, do
capital monetário que possui.”

- Daí, cara Washington, a extrama instabilidade nas decisões de investir -, diz visitante.
É essa instabilidade, continua o visitante, - que é responsável pelos ciclos econômicos
da economia capitalista, que se manifestam alternadamente por fases de recessão–
depressão–recuperação. As crises que se fazem acompanhar por um incremento no
desemprego, não podem, portanto, ser atribuídas a uma redução no consumo de bens
finais pelos consumidores. Elas são resultado, em primeira instancia, das oscilações dos
níveis de investimento. Entende–se, agora, porque ocorre desemprego. Nas fases
recessivas, a redução dos investimentos (principal determinante do crescimento da
renda) implica queda no nível de renda e consumo, resultando em desemprego. Sendo o
investimento o principal determinante do crescimento econômico, é ele a variável chave
explicativa da insuficiência da demanda efetiva, e não o consumo de bens finais, como
querem fazer crer as teorias subconsumistas, que creditam ao consumo final o elemento
dinamizador do processo de acumulação. Para Keynes, a produção de bens de consumo
final é dependente do que se passa nos setores de bens de capital (máquinas,
equipamentos, etc). Isto está claro no próprio enunciado do princípio de demanda
efetiva, que afirma ser o consumo dependente da renda e que esta última é determinada
pelos gastos capitalista, pelos investimentos.

– Em síntese, meu caro Washigton –, continua o visitante –, a dinâmica da economia é


ditada pelos gastos dos capitalistas. Quanto mais eles gastam contratando trabalhadores,
comprando matérias–primas, máquinas etc., mais eles ganham. São eles, portanto, que
decidem se vale a pena ou não abrir mão de seu bom dinheirinho para investir e, assim,
fazer crescer o nível de renda da economia, que se faz acompanhar pelo crescimento do
consumo e do emprego.

– Por mais simplificada que tenha sido minha exposição da teoria de Keynes, com
certeza ela é bem mais rica do que apresenta o modelo IS–LM. Este modelo mutila a
sua teoria. Mas isso, meu caro Washigton, vou deixar para que os futuros alunos de
macroeconomia descubram.

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– Espero que não me julgue um sujeito esnobe, um presunçoso, que veio do espaço para
exibir conhecimentos em matérias que são próprias de sua formação. Longe disso, caro
Washigton, minha intenção foi mostrar o que se dá quando se pensa com cabeça dos
outros. Quero dizer, com livros didáticos. Estes podem até ser de alguma utilidade, mas
não devem substituir a leitura do próprio autor – conclui o visitante.

– Mas vamos voltar à questão do dinheiro, meu caro e bom anfitrião. Você deve estar
lembrado do exemplar de O Capital, de Karl Marx, que eu havia tirado da minha
maleta, juntamente com um exemplar de A Riqueza das Nações, de Adam Smith. Pois
bem, deixe–me, agora expor resumidamente porque, para Marx, o dinheiro é, antes de
tudo, poder de disposição privado sobre a riqueza social; ele é poder.

O viajante sabe que a teoria do dinheiro em Marx é bastante complexa. Por isso, tenta
apresentar apenas os aspectos mais gerais dessa teoria. Começa destacando que a
categoria dinheiro aparece já no livro I, capítulo I, da seção 3, que tem como título A
Forma de Valor ou o Valor de Troca. Aí, como o próprio Marx o diz, sua intenção é
“realizar o que jamais foi tentado pela economia burguesa, a saber, provar a gênese
dessa forma–dinheiro, portanto, seguir de perto o desenvolvimento da expressão valor
contida na relação de valor das mercadorias, desde sua forma mais simples e opaca até a
ofuscante forma–dinheiro. Com isso, desaparece, ao mesmo tempo, o enigma do
dinheiro” (Marx, 2017, Liv.I,p. 125).

– Vejo que você, caro Washigton, não parece nada satisfeito com o que Marx diz nessa
passagem. Deve achá–la muito abstrata, de difícil compreensão. E você tem toda razão.
Mas, vamos tentar esclarecer o que esse autor quer de fato dizer.

O visitante começa sua exposição, esclarecendo que quando Marx diz que sua intenção
é realizar o que a economia burguesa nunca tentou fazer, seu objetivo é demonstrar que
o dinheiro é uma necessidade nascida da contradição interna da mercadoria. Todo
mundo sabe, diz o visitante – que se alguém deseja uma garrafa de água para matar sua
sede, somente poderá satisfazer essa sua necessidade se tiver dinheiro para comprá–la.
Não somente água, mas também qualquer outra coisa destinada a satisfazer uma
necessidade qualquer, tem de ser comprada para poder ser utilizada. A utilidade de uma
coisa de nada vale, se, primeiro, não se pagar por ela.

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– É assim o mundo em que vocês humanos vivem – concluiu o visitante. – É um
mundo, como já dizia Adam Smith, onde tudo que é produzido é produzido como
mercadoria. Lembra daquela passagem, Washigton, que citei de A Riqueza das Nações,
lá no começo de nossa conversa? – pergunta o viajante. Nessa passagem, – continua ele
– esse autor diz, com todas as letras, que as pessoas só podem desfrutar do valor de uso
das coisas que precisam, se, primeiro, pagar para obter essas coisas. Na verdade, o que
esse autor quer dizer é que tudo que existe tem um valor de uso e um valor de troca.

– É daí que parte Marx para demonstrar a necessidade do dinheiro – continua o visitante
com sua explanação. Para ele, a mercadoria tem um duplo aspecto: ele é valor de uso e
valor. Essas duas propriedades das mercadorias se incluem e se excluem mutuamente.
Se incluem porque ninguém estaria disposto a produzir sapatos, por exemplo, se eles
não tivessem alguma utilidade. Se excluem, porque seu produtor produziu sapatos para
vender, para trocá–los por outras coisas. A única coisa que lhe interessa é valor de troca
daquilo que ele produziu. O produtor de sapatos não tem um pingo amor pelo que
produz; para ele é indiferente produzir sapatos ou veneno; ele quer produzir uma coisa
que tenha valor, para vendê–la no mercado. Foi para isso que ele investiu seu bom
dinheirinho comprando matérias–primas, máquinas, contratando trabalhadores etc.
Consequentemente, os sapatos não têm nenhuma utilidade para ele, não produziu para
utilizá–los, mas, sim, para vendê–los. Por sua vez, quem comprou os sapatos, comprou–
os porque eles têm valor de uso, têm utilidade para ele. Caso contrário, não os teria
comprado.

O visitante continua sua exposição, insistindo em deixar claro que a mercadoria sapatos,
por exemplo, é uma coisa que tem duas qualidades distintas: ela tem valor de uso e
valor de troca. Para quem a produziu, só importa o valor de troca; para quem comprou,
o que interessa é o valor de uso dessa mercadoria. Com um pouco mais de atenção,
percebe–se que o dinheiro nasce dessa contradição da mercadoria de ser valor de uso e
valor de troca ao mesmo tempo. Com efeito, se o produtor de sapatos não vende sua
mercadoria, ele terá prejuízos e poderá até mesmo vir a falir. Do lado do consumidor, as
coisas se passam de forma diferente. Se ele tem dinheiro, ele poderá comprar seus
sapatos de outros produtores, pois são muitos os produtores de sapatos. Mas ele só
poderá comprar seus sapatos, se tiver dinheiro.

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É da contradição entre valor de uso e valor de troca, que Marx parte para derivar a
categoria de dinheiro. Nascido dessa contradição, que toda e qualquer mercadoria
carrega dentro si, o dinheiro se torna o representante universal da riqueza geral, o
equivalente geral, pois todas as coisas que existem, precisam ser transformadas em
dinheiro. Caso isso não aconteça, não é a mercadoria que sofre as consequências, mas,
sim, o seu produtor.

O visitante do outro mundo sabe que sua apresentação da teoria do dinheiro em Marx
estar longe de esgotar a exposição que o autor de O Capital apresenta na seção III,
capítulo I, do Livro I. Mesmo assim, dá–se por satisfeito em ter mostrado que o dinheiro
nasce da contradição entre valor de uso e valor de troca das mercadorias. Enquanto a
riqueza da sociedade continuar dominada pela produção de mercadorias, o dinheiro
continua reinando de forma soberana. Sem ele, não se tem acesso a nada nesse mundo,
seja comida, roupa, diversão, saúde etc. Até mesmo para quem acredita em Deus, sabe
que sem dinheiro ninguém poderá comemorar o aniversário de nascimento de Jesus,
pois não poderá comprar o peru da Sadia, a Coca–Cola e os presentes para seus
familiares e amigos.

O visitante do outro mundo sabe que sua tarefa está longe ser concluída. Entretanto, se
dá por satisfeito ter mostrado que o dinheiro dá ao homem o que ele não pode realizar
com suas forças materiais e espirituais. E por ser assim, o homem se torna escravo do
dinheiro. Até mesmo o poeta e dramaturgo Shakespeare (1564–1616) tinha consciência
disso. Não é sem razão que Marx cita um trecho de uma de sua obra, o Timão de
Atenas, onde se lê:

“Ouro faiscante, ouro (...). Só com isto eu deixaria o negro, branco; o


repelente, belo; o injusto, justo; o baixo, com nobreza; o novo, velho, e
corajoso o pulha (...). Este escravo amarelo os sacrossantos votos anula e
quebra, lança a bênção nos malditos, amável deixa a lepra, dá estado aos
ladrões e lhes concede títulos e homenagens lado a lado dos senadores, faz
que novamente se case a viúva idosa. [...] Vamos, poeira maldita, prostituta
comum da humanidade.” (MARX, 2017: p.205, ).

Num mundo assim, diz Marx,

“O que eu sou e consigo não é determinado de modo algum (...) pela minha
ninha individualidade. Sou feio, mas posso comprar para mim a mais bela

41
mulher. Portanto, não sou feio, pois o efeito da fealdade, sua força
repelente, é anulado pelo dinheiro. Eu sou – segundo a minha
individualidade – coxo, mas o dinheiro me proporciona vinte e quatro pés;
não sou, portanto, coxo; sou um ser humano mau, sem honra, sem
escrúpulos, sem espírito, mas o dinheiro é honrado e, portanto, também o
seu possuidor.” (MARX, 2010, p.159).

Essa é a sociedade do ter; uma sociedade na qual o homem somente é, se ele tem; se não
tem, ele não é nada. Por isso, de acordo com Marx, o poder que cada indivíduo exerce
sobre a atividade dos outros ou sobre a riqueza social existe nele como o proprietário de
valores de troca, de dinheiro. “Seu poder social, assim como seu nexo com a sociedade,
[o indivíduo] traz consigo no bolso” (Marx, 2011, p. 157).

O viajante olha para seu anfitrião, e se dá conta de que Washigton parecia extasiado
com o que ele acabara de expor. Faz uma longa pausa a espera de algum comentário da
parte dele. Como ele não se dispôs a falar, o visitante se volta para ele e comenta:

– Por hoje, é bom pararmos por aqui. Vamos descansar e amanhã, mais dispostos,
continuaremos nossa conversa.

No dia seguinte, o viajante acordou cedo. Procurou Washigton e o viu agarrado com seu
notebook, pesquisando artigos sobre o dinheiro. – Olha, parece que meu anfitrião se
interessou em estudar mais sobre o que discutimos ontem à noite – comenta o visitante
consigo mesmo. Mas, logo em seguida, dirige–se ao seu anfitrião para sugerir uma nova
pauta de discussão. Mas o faz perguntando–lhe o seguinte: – Washigton, o mundo
sempre foi assim? Será que já existiu sociedades em que o produto do trabalho do
homem não assumia a forma de mercadoria? O que desejo saber é se o homem sempre
teve de pagar pelos bens que necessita para satisfazer suas necessidades.

Esperou pela resposta de seu anfitrião. Porém ela não veio. – Será que esse pobre
doutor nunca estudou história econômica? Pelo que demonstrou até aqui, sou obrigado
a confessar que, para ele, história e economia são duas ciências distintas – pensou o
visitante. O silêncio de Washigton já dizia tudo: ele nunca chegou a estudar se existiu
outras formas de sociedade onde nem tudo era mercadoria. Se o tivesse feito, como já
mostrei antes, ele teria descoberto que a história registra a existência de civilizações em
que os bens não eram produzidos para serem vendidos, mas, sim, para o consumo da

42
própria comunidade. Aliás, nem é preciso ir muito longe, para saber que na sociedade
feudal, por exemplo, o grosso da produção é para o autoconsumo; não era mercadoria.

Foi então que o visitante achou por bem convidar Washigton para acompanhá–lo numa
rápida investigação sobre a gênese histórica da sociedade dominada pela produção de
mercadorias. Ainda com seu notebook aberto na página do Google, o paciente anfitrião
concordou com seu visitante. Antes, porém, lhe perguntou de onde ele veio, que faz
para viver, qual é o seu nome e um sem número de perguntas que fervilhava em sua
cabeça.

– Calma, meu bom doutor. Eu venho do futuro, do ano 2090, mas já estive por aqui
antes. Minha função, na nave que viajo pelo universo, atravessando as mais diversas
galáxias, é colher dados sob a forma de vida, costumes, moral, organização política, etc
dos países em que me hospedei. Durante minha estada no seu planeta Terra, visitei todas
as grandes bibliotecas e guardei, no meu computador de pulso, todo conhecimento
acumulados por vocês. Voltei para o futuro e só agora estou de volta ao passado;
retornei para ver como vocês evoluíram desde a última vez que estive por aqui. Mas
vamos nos concentrar na proposta que acabei de te fazer. Vamos investigar como
nasceu a sociedade capitalista. Espero explicar com essa investigação o que os livros de
Introdução à Economia nunca fizeram, nem tentaram fazer, que é demonstrar como
nasceu a propriedade capitalista e com ela a divisão da sociedade entre capitalistas e
trabalhadores, isto é, entre os donos da propriedade dos meios de produção e os
deserdados de propriedade.

– Mas quando você esteve por aqui – perguntou Washigton?

– Ah, já faz um bom tempo, preciso até atualizar os dados que coletei antes de eu voltar
para o futuro. Vim agora, já com todo esse conhecimento que você pôde constatar.
Mas, deixe–me dizer o meu nome. Eu sou metade vulcão e metade humano. Meu nome
é Spock.

– Tudo bem – respondeu Washigton. Vamos discutir como nasceu esse mundo em que
nós terrestre vivemos. Estou curioso para ouvir suas explicações.

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– Vamos lá, então. Vou só ligar meu computador de pulso, para assistirmos juntos o
desenrolar da gênese que deu origem a essa estranha sociedade em vocês vivem.

– Pronto, liguei o computador. Podemos nos sentar para ler o texto que preparei para
essa exposição?

– Claro, claro que sim. – diz Washigton, sem medo de esconder sua ansiedade.

– Spock aciona uma tecla de seu computador de pulso, e uma tela se abre diante dele e
de seu anfitrião, com um texto que se inicia com uma citação de um dos maiores
escritores da literatura mundial, García Márquez, que em 1982, recebeu o prêmio nobel
de literatura pelo conjunto de sua obra.

1.2. ARQUEOLOGIA DE UMA MEMÓRIA ESQUECIDA

“’Se não voltarmos a dormir, melhor’, dizia José Arcádio Buendia,


de bom humor. “Desse jeito a vida renderá mais”. A índia, porém,
explicou a eles que o mais terrível da enfermidade da insônia não era
a impossibilidade de dormir, pois o corpo não sentia cansaço algum,
mas sua inexorável evolução rumo a uma manifestação mais crítica:
o esquecimento. Queria dizer que quando o enfermo se acostumava
com seu estado de vigília, começavam a se apagar de sua memória as
recordações da infância, depois o nome e a noção das coisas, e por
último a identidade das pessoas e a consciência do próprio ser, até
afundar numa espécie de idiotice sem passado.” (GARCÍA
MÁRQUEZ, 2014: p.52).

Depois de ler esta citação, Spock olha para Washigton e diz que doravante ele irá deixar
o texto falar por si só, uma vez que foi ele mesmo quem o elaborou.

Quem não já leu Thomas Morus (1478–1535), considerado como um dos grandes
humanistas do renascimento? Em 1516, ele escreveu um opúsculo que o intitulou de A
Utopia. Escrito em forma dialogal, Rafael aparece como o seu Sócrates teórico.
Convidado a participar de um banquete em sua homenagem, organizados pelos grandes
criadores de carneiros, na Inglaterra, Rafael é interpelado a explicar a causa que leva as
pessoas a roubarem. Sem pestanejar, olha para seus anfitriões e lhes responde à queima–

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roupa: – “Os inumeráveis rebanhos de carneiros que cobrem hoje toda a Inglaterra”,
responde–lhes de um só golpe. E complementa,

estes animais, tão dóceis e tão sóbrios em qualquer outra parte, são entre
vós de tal sorte vorazes e ferozes que devoram mesmo os homens e
despovoam os campos, as casas e as aldeias. “De fato, a todos os pontos do
reino, onde se recolhe a lã mais fina e mais preciosa, acorrem, em disputa
do terreno, os nobres, os ricos e até santos abades. Essa pobre gente não se
satisfaz com as rendas, benefícios e rendimentos de suas terras; não está
satisfeita de viver no meio da ociosidade e dos prazeres, às expensas do
público e sem proveito para o Estado. Eles subtraem vastos tratos de terra
da agricultura e os convertem em pastagens; abatem as casas, as aldeias,
deixando apenas o templo para servir de estábulo para os carneiros.
Transformam em desertos os lugares mais povoados e mais
cultivados(MORUS, 2011: p. 28–29).

Thomas Morus enxergou longe. Pode–se dizer que ele foi um contemporâneo teórico de
um presente ainda muito distante do tempo em que viveu. Seu gênio brilha justamente
porque foi capaz de ter identificado o fechamento dos campos, essa forma embrionária
da propriedade burguesa, como a principal causa do empobrecimento do solo e do
despovoamento de vastas áreas, antes habitadas e ocupadas com a produção de
alimentos para o homem. Não está aí a origem da questão ecológica, que hoje ameaça
destruir a vida no Planeta Terra?

Quase dois séculos depois, Jean–Jacques Rousseau (1712–1778), buscava as causas que
deram origem a desigualdade entre os homens. Encontra–as na fundação da propriedade
privada, tal como assim Morus diagnosticara as mazelas do seu tempo. Para ele,

O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado


um terreno, lembrou–se de dizer, isto é, meu e encontrou pessoas
suficientemente simples para acredita–lo. Quantos crimes, guerras,
assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que,
arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus
semelhantes: defendei–vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos se
esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a
ninguém!” (ROUSSEAU, 2001: p. 29–30).

É a partir da fundação da sociedade civil, que Rousseau constrói sua crítica social. Para
ele, a sociedade que nasce da propriedade privada

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... manterá com ela um permanente conflito que, para ele, é a fonte de todos
os males e defeitos que os homens sofrem. Para o autor, as enganadoras
luzes da iluminação não só não iluminam como ocultam a sua transparência
natural. Na sua compreensão, o desenvolvimento das ciências e das artes
bem como do comércio estreitam, por um lado, os laços da sociedade pelo
interesse pessoal, mas, por outro lado, afrouxam os verdadeiros laços sobre
os quais deveria ser formada a sociedade que são a estima e a benevolência.
Ou seja, se a estima e a benevolência são os fatores que levam os homens a
imediatamente se ligarem, a interposição entre eles das coisas e dos
interesses, produzidos pelo progresso da ciência, das artes e do comércio,
apagam esse relacionamento imediato, pois os homens, a partir de então,
passam a se relacionar mediatizados pelas coisas e os interesse delas
decorrentes que tem origem na instituição da propriedade. É daí que
procedem os males e as desgraças às quais os homens estão submetidos. A
felicidade dos homens passa a depender dos objetos. Eis o caminho ao qual
o homem foi arrastado pelo processo de civilização. O homem não procura
mais a felicidade em si, na sua existência compartilhada com os seus
semelhantes. Tornou–se escravo das coisas. A crítica central de Rousseau
será a denúncia desta alienação e a busca do retorno e da conciliação do
homem com a natureza. Este é o alvo permanentemente perseguido pela
obra rousseauniana, mas explicitamente formulada nos seus trabalhos de
cunho político e sempre mesclada de ardor e paixão. Na perspectiva de sua
obra, Rousseau deixa transparecer a necessidade de conceber a origem e as
causas do mal, que produziram o homem dividido e pervertido, além da
crença na sua reconciliação com a natureza e com seus semelhantes através
da construção de um modelo de comunidade que, corrigindo o erro
localizado da desigualdade, possibilite a recuperação de sua humanidade
mediante a construção de um projeto comum de sociedade baseada na
homogeneidade e na liberdade”. (Vicente, 1997 p.46–47)

Rousseau não tem dúvidas. A propriedade privada é a causa da miséria e da


desigualdade entre os homens. Pouco anos depois, Adam Smith (1723–1790), mostra a
origem da mais–valia, do lucro, apoiado na ideia de que a propriedade é fruto do
trabalho pessoal. Imagina um mundo no qual não existe a propriedade privada;
consequentemente, um mundo sem patrões nem empregado. Num mundo assim, diz ele,

que precede ao acúmulo de patrimônio ou capital e à apropriação da terra,


a proporção entre as quantidades de trabalho necessárias para adquirir os
diversos produtos parece ser a única circunstância capaz de fornecer
alguma norma ou padrão para trocar esses objetos uns pelos outros (...).
Nessa situação, todo o produto do trabalho pertence ao trabalhador; e a
quantidade de trabalho normalmente empregada em adquirir ou produzir
uma mercadoria é a única circunstância capaz de regular ou determinar a
quantidade de trabalho que ela normalmente deve comprar, comandar ou
pela qual deve ser trocada." (SMITH, 1996: p.101).

46
Ora, se num mundo em que o produto do trabalho pertence integralmente ao seu
produtor, ninguém estará disposto a renunciar ao que produziu se em troca não receber
algo de igual valor. Nessa situação, a troca é troca de valores iguais. Smith
compreendeu muito bem que a troca é sempre troca de valores iguais, de valores
equivalentes. Mas, se é assim, como de valores iguais surge a mais–valia? É aí que
começa a sua dor de cabeça.

Para explicar a origem da mais–valia, Smith vê–se obrigado a negar o princípio que
rege a igualdade da troca, o assim chamado princípio da equivalência. Ao proceder
dessa forma, acaba por negar a própria troca, uma vez que esta é sempre uma troca de
valores iguais. Realmente, não tem sentido uma troca em que um indivíduo A, por
exemplo, que gastou 20 horas de trabalho para produzir sua mercadoria, troque–a com a
mercadoria de um indivíduo B, que dispendeu apenas 10 horas de trabalho para produzi-
la.

Não tendo como resolver esse problema, Smith vê–se obrigado a anular o princípio da
equivalência, para poder explicar a origem da mais–valia. Com efeito, diz ele,

no momento em que o patrimônio ou capital se acumulou nas mãos de


pessoas particulares, algumas delas naturalmente empregarão esse capital
para contratar pessoas laboriosas, fornecendo–lhes matérias–primas e
subsistência a fim de auferir um lucro com a venda do trabalho dessas
pessoas ou com aquilo que esse trabalho acrescenta ao valor desses
materiais. Ao trocar–se o produto acabado por dinheiro ou por trabalho, ou
pero outros bens, além do que pode ser suficiente para pagar o preço dos
materiais e os salários dos trabalhadores, deverá resultar algo para pagar
os lucros do empresário, pelo seu trabalho e pelo risco que ele assume ao
empreender esse negócio.” (SMITH, 1996: p. 102).

Ao eliminar o princípio da equivalência, Smith acaba anulando a própria troca. Com


efeito, só é possível falar de troca de valores iguais; sem isso, a troca se converteria
numa espécie de jogo de esperteza e malandragem: ganha o mais astuto, quem consegue
“passar a perna” no outro. Se fosse assim, a sociedade se transformaria numa
roubalheira generalizada.

Para evitar esse estasdo de coisas, Smith tenta justificar moralmente a desigualdade da
troca entre capitalistas e trabalhadores. Para ele, o lucro é uma recompensa devida ao

47
trabalho do capitalista. Mas, que tipo de trabalho é esse? Uma possível resposta seria a
de que se trata de uma recompensa pelo trabalho de organização e inspeção do
empreendimento. Será isso mesmo? Pode até ser; entretanto, um exame mais cuidadoso
do conjunto da obra de Smith mostra que o lucro é uma recompensa devida ao trabalho
passado, acumulado pelos capitalistas há muito tempo, há muitas gerações que se
sucederam no tempo.

Esse trabalho acumulado ao longo de várias gerações tem uma história. Houve um
tempo em que havia duas espécies de gente. De um lado, um bando de preguiçosos, e,
de outro, um grupo de pessoas laboriosas e parcimoniosas. Aqueles que nasceram
marcados pelo desejo da ambição trabalharam e economizaram; os que vieram ao
mundo, inclinados a viver do ócio e da preguiça não acumularam nem formaram
nenhum patrimônio. Quem tinha ojeriza ao trabalho, nada acumularam com o passar do
tempo. Diferemente, aqueles que tinha amor ao trabalho formaram seu patrimônio, que
cresceu com o passar dos anos, com a sucessão de várias gerações. Está assim
justificada a divisão da sociedade entre proprietários e deserdados de propriedade. É o
que sugere Smith ao justificar a necessidade da interferência do Estado para proteger a
propriedade privada contra a invasão por parte daqueles que não têm nenhum
patrimônio. Acompanhando sua justificação, lê–se que,

“os homens podem viver juntos em sociedade, com um grau aceitável de


segurança, embora não haja nenhum magistrado civil que os proteja da
injustiça [...]. Entretanto, a avareza e a ambição dos ricos e, por outro lado,
a aversão ao trabalho e o amor à tranquilidade atual e ao prazer, da parte
dos pobres, são as paixões que levam a invadir a propriedade [...] adquirida
com o trabalho de muitos anos, talvez de muitas gerações sucessivas.”
(SMITH, 1996: V.III., p. 405).

Não é sem razão, a crítica mordaz de Marx que dirige Smith. Em tom anedótico zomba
do autor de A Riqueza das Nações que acreditava que

“Numa época muito remota, havia, por um lado, uma elite laboriosa,
inteligente e sobretudo parcimoniosa, e, por outro, uma súcia de vadios a
dissipar tudo o que tinham e ainda mais.” (MARX, 2017: L. I., p. 785).

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Os liberais se valem até mesmo de meios anedóticos para justificar o direito de
propriedade. Para Smith a propriedade tem um estatuto natural, visto que é produto de
uma propriedade natural que nasce com o homem: seu trabalho. Por isso, tudo o que ele
consegue amealhar com seu trabalho pode atribuir o predicado de ser sua propriedade,
constituindo–se num direito sagrado, porque natural, e que, por isso mesmo, não pode
ser violado por aqueles que passaram a vida entregues aos prazeres e confortos
imediatos do presente. Esse direito natural há que ser velado e protegido pelo Estado,
pois

a fartura dos ricos excita a indignação dos pobres, que muitas vezes são
movidos pela necessidade e induzidos pela inveja a invadir a posse daqueles
[proprietários]. Somente sob a proteção do magistrado civil, o proprietário
dessa propriedade valiosa [...] pode dormir à noite com segurança.”
(SMITH, 1996: V.II, p. 389).

Agora tudo se esclarece de vez: o lucro e a renda da terra têm um estatuto natural,
fundado no que se poderia chamar de uma acumulação primitiva pessoal de capital.
Aqueles que trabalharam e acumularam tornaram–se, no presente, os proprietários das
terras e do capital; os que esbanjaram e dissiparam os frutos do seu trabalho, devem
pagar pelo pecado que cometeram. Como? - Trabalhando para aqueles que no passado
não mediram esforços para construir seu patrimônio. Por isso, ao dar emprego a esse
bando de vagabundos, que no passado dissiparam tudo que produziam, os capitalistas
têm todo o direito de exigir deles uma recompensa, na forma de lucro ou de renda, pelo
suor que tiveram de derramar para construir o seu patrimônio.

Em consequência, é mais do que natural que o Estado se ponha em defesa da classe


proprietária. Esta pode até mesmo fazer desta instituição um comitê de defesa de seus
negócios, como acontece nos momentos em que intervém como mediadora no conflito
entre empregados e empregadores. Smith tinha plena consciência disto. Para ele, a
relação entre capital e trabalho

depende do contrato normalmente feito entre as duas partes, cujos


interesses, aliás, de forma alguma são os mesmos. Os trabalhadores desejam
ganhar o máximo possível, os patrões pagar o mínimo possível. Os
primeiros procuram associar–se entre si para levantar os salários do
trabalho, os patrões fazem o mesmo para rebaixá–los. Não é difícil prever
qual das duas partes, normalmente, leva vantagem na disputa e no poder de
forçar a outra concordar com as suas próprias cláusulas. Os patrões, por

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serem menos numerosos, podem associar–se com maior facilidade; além
disso, a lei autoriza ou pelo menos não os proíbe, ao passo que para aos
trabalhadores ela proíbe. Não há leis no Parlamento que proíbam a
combinar uma redução dos salários; muitas são, porém, as leis do
Parlamento que proíbem as associações para aumentar salários".
Independentemente das leis promulgadas pelo Parlamento, a luta de classes,
no que concerne à determinação do nível salarial, é, em geral, favorável à
classe capitalista, pois esta tem capacidade para suportar as conseqüências
de uma paralisação, por exemplo, na produção, por conta de uma greve por
exemplo. É o que diz Smith, ao concluir seu raciocínio: "Um proprietário
rural, um agricultor ou um comerciante, mesmo sem empregar um
trabalhador sequer, conseguiriam geralmente viver um ano ou dois com o
patrimônio que já puderam acumular. Ao contrário, muitos trabalhadores
não conseguem subsistir uma semana, poucos conseguiriam subsistir um
mês e dificilmente algum conseguiria subsistir um ano. A longo prazo, o
trabalhador pode ser tão necessário ao seu patrão, quanto este o é para o
trabalhador; porém esta necessidade não é tão imediata.” (SMITH, 1996:
V.I. p. 118–119).

Nem por isso Smith deixa de reconhecer que a grande maioria daqueles que vivem do
salário está condenada a uma vida miserável, por conta dos efeitos negativos da divisão
técnica do trabalho. Num tom de indignação e reprovação comenta que

a ocupação da maior parte daqueles que vivem do trabalho, isto é, a maioria


da população, acaba restringindo–se a algumas operações extremamente
simples, muitas vezes a uma ou duas [...]. O homem que gasta toda sua vida
executando algumas operações simples, cujos efeitos também são, não tem
nenhuma oportunidade para exercitar sua compreensão ou para exercer
seu espírito inventivo no sentido de encontrar meios para eliminar
dificuldades que nunca ocorrem. Ele perde naturalmente o hábito de fazer
isso, tornando–se geralmente tão embotado e ignorante quanto possa ser
uma criatura humana. O entorpecimento de sua mente o torna tão somente
incapaz de saborear ou ter alguma participação em toda conversação
racional, mas também de conceber algum sentimento generoso, nobre ou
terno, e, conseqüentemente de formar algum julgamento justo até mesmo
acerca de muitas obrigações da vida privada [...]. Assim, a habilidade que
ele adquiriu em sua ocupação específica parece ter sido adquirida às custas
de suas virtudes intelectuais, sociais e marciais.” (SMITH, 1983: V.II. p.
213–214).

Entretanto, essa denúncia de Smith não passa de uma exigência moral, na medida em
que se trata de uma denúncia sentimental. De fato, o autor de A Riqueza das Nações,
depois de denunciar os efeitos perversos da divisão do trabalho, acrescenta que esse é o
estado

50
em que inevitavelmente caem os trabalhadores pobres – isto é, a grande
maioria da população – a menos que o governo tome algumas providências
para impedir que tal aconteça.” (SMITH, 1983: V.II, p. 215).

Será que o Estado não poderia intervir esse estado de coisas? A única coisa que o
Estado poderia fazer seria dar à classe dos trabalhadores educação básica. No entanto,
Smith é obrigado a reconhecer que os trabalhadores jovens, em idade escolar,

dispõem de pouco tempo para dedicar à educação. Seus paises dificilmente


têm condições de mantê–los, mesmo na infância. Tão logo sejam capazes de
trabalhar, têm que ocupar–se com alguma atividade, para sua subsistência.
Este tipo de atividade é geralmente muito simples e uniforme para dar–lhes
pequenas oportunidades de exercitarem a mente; ao mesmo tempo, seu
trabalho é tão constante e pesado que lhes deixa pouco lazer e menos
inclinação para aplicar–se a qualquer outra coisa, ou mesmo para pensar
nisso.” (SMITH, 1996: Vol. II. p. 246).

Diante desse estado de coisas, não há outra saída senão a de se curvar aos imperativos
dos fatos. Daí a crítica resignativa de Smith, diante dos efeitos desumanizadores da
divisão do trabalho. E não poderia ser diferente, uma vez que, para ele, não há
possibilidades de uma sociabilidade alternativa ao mundo existente. Para ele, o homem
nasceu para viver numa sociedade comercial, na qual a divisão do trabalho é a mola
mestra do seu desenvolvimento. A sociedade capitalista é o melhor dos mundos
possíveis. Se é assim, o máximo que se pode esperar da sociedade é que esta minimize
os efeitos negativos da divisão do trabalho por meio de uma educação geral. A
felicidade humana tem um preço: a desumanização daqueles que são obrigados a viver
de salários. É o preço a pagar pelo progresso.

Contra esse comportamento condescendente e piedoso de Adam Smith, vale a pena


levantar se os homens devem cumprir resignadamente o seu destino. Não deveriam eles
subverter radicalmente as relações sociais que ela mesmo criaram? Claram que sim.
Acontece que nem sempre eles fazem a sua história como querem; “não a fazem sob
circunstâncias de sua própria escolha e sim sob aquelas com que se defrontam
diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”, brada Marx (Marx, 1997, p. 21).

Para subverter esse mundo feito de miseráveis, de um lado, e de ricos, de outro, essa
luta não pode tirar sua poesia do passado, como ensina o Marx de 1852, em O 18 de
Brumário. No entanto, não se deve esquecer que o capitalismo “nasce escorrendo

51
sangue e lama por todos os poros, da cabeça aos pés”. Esquecer o passado e aceitar
passivamente o presente, é o mesmo que eternizar o modo de produção capitalista; é,

como diz Pecqueur com razão, “decretar a mediocridade geral”. [...] a pré–
história do capital compreende uma série de métodos violentos, dos quais
passamos em revista somente aqueles que marcaram época como métodos
da acumulação primitiva do capital. A expropriação dos produtores diretos
é consumada com o mais implacável vandalismo e sob o impulso das paixões
mais infames, abjetas e mesquinhamente execráveis.” (MARX, 2017: L.I.
p.831).

Fechar os olhos à essa herança, é esquecer que os milhares de camponês expulsos de


suas terras não podiam

ser absorvido pela manufatura emergente com a mesma rapidez com que
fora trazido ao mundo. Por outro lado, os que foram repentinamente
arrancados de seu modo de vida costumeiro tampouco conseguiam se
ajustar à disciplina da nova situação. Converteram–se massivamente em
mendigos, assaltantes, vagabundos, em parte por predisposição, mas na
maioria dos casos por força das circunstâncias. Isso explica o surgimento,
em toda a Europa ocidental, no final do século XV e ao longo do século XVI,
de uma legislação sanguinária contra a vagabundagem. Os pais da atual
classe trabalhadora foram inicialmente castigados por sua metamorfose,
que lhes fora imposta, em vagabundos e paupers. A legislação os tratava
como delinquentes “voluntários” e supunha depender de sua boa vontade
que eles continuassem a trabalhar sob as velhas condições, já inexistentes.”
(MARX: 2017, L.I. p.787))

Essa expropriação violenta está registrada na história; ela não pode ser apagada
enquanto perdurar esse modo de produção feito de suor, lágrimas, sangue e fogo. Não se
pode, portanto, esquecer um passado no qual a transformação dos produtores

em trabalhadores assalariados aparece, por um lado, como a libertação


desses trabalhadores da servidão e da coação corporativa, e esse é único
aspecto que existe para nossos historiadores burgueses. Por outro lado, no
entanto, esses recém libertados só se convertem em vendedores de si
mesmos depois de lhes terem sido roubados todos os seus meios de
produção, assim como todas as garantias de sua existência que as velhas
instituições feudais lhes ofereciam. E a história dessa expropriação está
gravada nos anais da humanidade com traços de sangue e fogo.” (MARX,
2017: L.I. p. 787).

Ao descrever esse processo, é claro que Marx não estava expondo uma teoria histórico–
filosófica sobre a marcha geral pela qual deveria passar toda a humanidade. Sua

52
intenção foi tão somente traçar um esboço da gênese do capitalismo na Europa
ocidental. Bem diferente foi o nascimento do capitalismo fora da Europa. Na Índia, na
África e no Brasil, por exemplo, o surgimento do capitalismo adquiriu singularidades
específicas, próprias desses países, que estão longe do processo histórico que teve lugar
na Europa.

Nem por isso, a dor do parto foi menos dolorosa. Desde o início, esse imenso
continente, chamado América Latina, teve suas veias rasgadas para escoar a riqueza
arrancada de seu solo. Seu destino foi traçado pelas grandes metrópoles europeias, que
impôs ao mundo uma divisão internacional do trabalho, em que alguns países

especializaram–se em ganhar, e outro sem que se especializaram em perder.


Nossa comarca do mundo, que hoje chamamos de América Latina, foi
precoce: especializou–se em perder desde os remotos tempos em que os
europeus do Renascimento se abalançaram pelo mar e fincaram os dentes
em sua garganta. Passaram os séculos e a América Latina aperfeiçoou suas
funções. Este já não é o reino das maravilhas, onde a realidade derrota a
fábula e a imaginação era humilhada pelos troféus das conquistas, as
jazidas de ouro e as montanhas de prata. Mas a região continua
trabalhando como um serviçal. Continua existindo a serviço de necessidades
alheias, como fonte e reserva de petróleo e ferro, cobre e carne, frutas e
café, matérias–primas e alimentos, destinados aos países ricos que ganham,
consumindo–os, muito mais do que a América Latina ganha produzindo–
os.” (GALEANO, 2010: p. 10).

Não é exagero desse autor uruguaio afirmar que a América Latina é “a região de veias
abertas”, por onde escoa, até hoje, a sua riqueza para fora de suas fronteiras. Não sem
razão, em seu clássico Formação do Brasil Contemporâneo, Caio Prado Junior inicia
sua investigação sobre a dformação do Brasil com a pergunta pelo sentido da
colonização. Como Eduardo Galeano, CPJ entende que, no seu conjunto,

e vista no plano, mundial e internacional, a colonização dos trópicos toma o


aspecto de uma vasta empresa comercial, mais completa que a antiga
feitoria, mas sempre com o mesmo caráter que ela, destinada a explorar os
recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio
europeu. É este o verdadeiro sentido da colonização tropical, de que o Brasil
é uma das resultantes; e ele explicará os elementos fundamentais, tanto no
econômico como no social, da formação e evolução históricas dos trópicos
americanos (PRADO JR.,1994: p.31).

53
O Brasil nasce como uma imensa empresa comercial, cujo principal objetivo foi o de
produzir mercadorias que tivessem valores no mercado internacional. A mineração foi
uma das atividades mais lucrativas para a metrópole portuguesa. Não menos importante,
foi a produção de açúcar, algodão e café.

Nascida com esse objetivo, a economia brasileira deveria assim continuar a ser uma
economia voltada para fora. Não sem razão, entre 1500 até os anos 30 do século XX, a
economia brasileira foi de natureza, eminentemente, agrário–exportadora.

Apesar do processo de industrialização pós–30 até a década de 1980, o Brasil ainda


continua preso às malhas daquela divisão internacional do trabalho de que fala Eduardo
Galeano. Com efeito, quase 70% da pauta de exportações brasileiras é constituída de
commodities, isto é, de produtos primários, tais como café, soja, minério, carne,
petróleo, etc. Com razão, Caio Praio Junior pergunta, no adendo que fez, em 1977, ao
seu clássico A Revolução Brasileira, se “somos o mesmo do passado?”. De certa forma,
sim. Pelo menos qualitativamente, responde ele, uma vez que no contexto do mundo
moderno, o Brasil

não representa mais do que um setor periférico e dependente do sistema


econômico internacional sob cuja égide se instalou e originalmente
organizou como colônia a serviço dos centros dominantes do sistema. E em
função dessa situação se estruturou econômica e socialmente. É certo que
deixamos de ser, em nossos dias, o engenho e a “casa grande e senzala” do
passado, para nos tornarmos a empresa, a usina, o palacete e o arranha–
céu; mas também o cortiço, a favela, o mocambo, o pau–a–pique, mal
disfarçados, aqui e acolá, por aquele moderno em que minorias dominantes
e seus auxiliares mais graduados se esforçam com maior ou menor sucesso
por acompanhar aproximadamente, com o teor de suas atividades e trem de
vida, a civilização de nossos dias.” (PRADO JR., 2004: p. 239).

Para, em seguida, concluir que

(...) somos o mesmo do passado. Se não quantitativamente, na


qualidade. Na “substância”, diria a metafísica de Aristóteles.
Embora em mais complexa forma, o sistema colonial brasileiro se
perpetuou e continua muito semelhante. Isto é, na base, uma
economia fundada na produção de matérias–primas e gêneros
alimentares demandados nos mercados internacionais.” (PRADO
JR., 2004: p. 240).

54
De lá para cá, já se passaram quase quatro décadas. Se vivo fosse, CPJ ainda teria algo
a dizer sobre o Brasil de hoje? Manteria sua tese de que, em sua essência, o Brasil não
só continua a ser um país periférico e dependente, como também caminha em direção ao
passado? É óbvio que se vive noutro contexto, bem diferente daquele que ele tinha
diante dos olhos à época em que redigia seu clássico A revolução brasileira. Mas,
mesmo que o Brasil atualmente tenha alcançado um novo patamar na divisão
internacional do trabalho, bem mais sofisticado e desenvolvido do que fora no passado,
com certeza, ele não teria dúvidas em afirmar que o Brasil mantém, e até mesmo
aprofundou, sua condição de país dependente, na medida em que os principais centros
decisórios de produção e de investimentos continuam fora de suas fronteiras. Sua pauta
de exportações dispensa maiores comentários.

Estaria, çportanto, o Brasil voltando a ser uma colônia de exploração? Não como fora
no passado, isto é, uma economia organizada para servir exclusivamente aos interesses
de sua metrópole. No entanto, seu processo de industrialização não libertou sua
economia dos grilhões da dependência. Ao contrário, até mesmo reforçou sua condição
de país periférico e dependente, tal como assim pensava CPJ.

Esse é o destino da periferia capitalista, que nascera para atender as necessidades do


mercado externo e não as do mercado interno. Fernando Novais concorda com CPJ
quando reconhece que

toda a estruturação das atividades econômicas coloniais, bem como a


formação social a que servem de base, definem–se nas linhas de força do
sistema colonial mercantilista, isto é, nas suas conexões com o capitalismo
comercial. E de fato, não só a concentração dos fatores produtivos no
fabrico das mercadorias–chave, nem apenas o volume e o ritmo em que
eram produzidas, mas também o próprio modo de sua produção define–se
nos mecanismos do sistema colonial. E aqui tocamos no ponto nevrálgico; a
colonização, segundo a análise que estamos tentando, organiza–se no
sentido de promover a primitiva acumulação capitalista nos quadros da
economia europeia, ou noutros termos, estimular o progresso burguês nos
quadros da sociedade ocidental. É esse sentido profundo que articula todas
as peças do sistema: assim em primeiro lugar, o regime do comércio de
desenvolver nos quadros do exclusivo metropolitano; daí, a produção
colonial orientar–se para aqueles produtos indispensáveis ou
complementares às economias centrais; enfim, a produção se organiza de
molde a permitir o funcionamento global do sistema. Em outras palavras:
não bastava produzir os produtos com procura crescente nos mercados
europeus, era indispensável produzi–los de modo a que a sua
55
comercialização promovesse estímulos à acumulação burguesa nas
economias europeias. Não se tratava apenas de produzir para o comércio,
mas para uma forma especial de comércio – o comércio colonial; é, mais
uma vez, o sentido último (aceleração da acumulação primitiva de capital),
que comanda todo o processo da colonização. Ora, isto obrigava as
economias coloniais a se organizarem de molde a permitir o funcionamento
do sistema de exploração colonial, o que impunha a adoração de formas de
trabalho compulsório ou na sua forma limite, o escravismo.” (NOVAIS,
1979: p. 97–98).

Como é de todos conhecidos, a escravidão foi a força de trabalho, por excelência,


utilizada para a exploração das colônias no novo mundo. Ela ressurge no momento em
que a civilização ocidental dava passos decisivos para a supressão do trabalho
compulsório, e para a difusão do trabalho livre, isto é, assalariado. Assim, enquanto na
Europa dos séculos XVI, XVII e XVIII, transitava–se da servidão feudal para o trabalho
assalariado, que passou a dominar as relações de produção a partir da revolução
industrial, no ultramar, isto é, nas colônias, o monstro da escravidão reaparecia com
uma intensidade e desenvolvimento inéditos.

A escravidão foi, pois, como o diz Novais,

o regime de trabalho preponderante na colonização do Novo Mundo; o


tráfico negreiro que alimentou, um dos setores mais rentáveis do comércio
colonial. Se à escravidão africana acrescermos as várias formas de trabalho
compulsório, servil e semi–servil etc (...) resulta que estreitíssima era a faixa
que restava, no conjunto do mundo colonial, ao trabalho livre. A
colonização do Antigo Regime foi, pois, o universo paradisíaco do trabalho
não–livre, o eldorado enriquecedor da Europa (Novais, 1979,p. 99).

Traduzido em termos numéricos, em três séculos foram consumidos entre 4,8 milhões a
5 milhões de negros trazidos da África. Arrancados de sua terra natal, foram
acorrentados e jogados nos porões de navios negreiros e despejados numa terra estranha
e hostil. Não entendiam o que lhes diziam seus feitores, mas o açoite de seus chicotes
traduzia suas ordens. Não só os negros, mas também os índios foram utilizados
largamente pelos senhores de engenhos. De acordo com Schwartz, no seu clássico
Segredos Internos,

na Bahia, no início da década de 1580, as aldeias jesuíticas forneceram


cerca de quatrocentos a quinhentos trabalhadores aos colonos, sob um
sistema de trabalho contratado. Os índios recebiam um parco salário de 400

56
réis, que mal chegava a um terço do salário de um barqueiro comum,
contudo até mesmo essa quantia muitas vezes nunca era paga (schwartz,
1988: p.51–52).

A utilização dos indígenas para o trabalho escravo se fez presente de maneira precoce.
Com efeito, “o contato intensivo dos europeus nas aldeias e nos engenhos”, continua
Schwartz,

tornava os índios crescentemente suscetíveis a doenças europeias. A doença,


provavelmente varíola (bexigas), alastrou–se em direção ao norte. Em 1559
ou 1560, matou mais de seiscentos escravos indígenas no Espírito Santo em
tão pouco tempo que precisavam ser enterrados dois corpos em cada cova
(...). A mortandade atingiu um terço de todos os índios nas aldeias jesuíticas
(schwartz, 1988, p. 51).

Darcy Ribeiro, em um dos seus últimos livros, O Povo Brasileiro, não deixa dúvida
quanto as tais consequências. Para ele, quando o europeu chegou por aqui, havia cerca
de 5 milhões de indígenas em 1500. Segundo Ribeiro, esse número caiu para 4 milhões
em um século.

Continua ele. Literalmente,

com a dizimação pelas epidemias das populações do litoral atlântico, que


sofreram o primeiro impacto da civilização pela contaminação das tribos no
interior com as pestes trazidas pelo europeu e pela guerra. No segundo
século, 1600–1700, prossegue a depopulação provocada pelas epidemias e
pelo desgaste no trabalho escravo, bem como o extermínio na guerra,
reduzindo–se a população indígena de 4 milhões para 2 milhões.”
(RIBEIRO, 1995: p.143).

Um verdadeiro genocídio! Quem o diz é o próprio Darcy, para quem

a população original do Brasil foi drasticamente reduzida por um genocídio


de projeções espantosas, que se deu através da guerra de extermínio, do
desgaste no trabalho escravo e da virulência das novas enfermidades que os
acharam (RIBEIRO, 1995: p.144).

O resultado desse genocídio se expressa, hoje, no tamanho da população indígena.


Segundo dados do IBGE, em 2010, o tatal de indíos estava em torno de 800 mil. A
conclusão óbvia que daí se infere é simples: a colonização brasielira matou mais de
quatro milhões de indío. E o que pior, a exploração de garimpo e de outras atividades do

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homem branco continuam matando a população mindigena brasileira, que é a verdadeira
dona das terras sobre as quais repousa esse gigante chamado Brasil.

Ignorar esse processo, que deu origem ao capitalismo, varrendo para baixo do tapete do
esquecimento, é aceitar o presente órfão de história. Quem ainda hoje sente na pele as
dores do parto dessa acumulação primitiva, que acontece do lado de cá das bandas do
Atlântico, não esquece jamais a sua origem. A escola de samba da Mangueira deu um
tapa com luva de pelúcia na cara dos dirigentes das instituições do trabalho e da
sociedade em geral, quando desfilou na avenida cantando o que a história “oficial” não
conta e que os movimentos sociais parecem não lembrar mais.

Brada Mangueira!

Brasil, meu nego


Deixa eu te contar
A história que a história não conta
O avesso do mesmo lugar
Na luta é que a gente se encontra

Brasil, meu dengo


A Mangueira chegou
Com versos que o livro apagou
Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento
Tem sangue retinto pisado
Atrás do herói emoldurado
Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero um país que não está no retrato.

Com suas singularidades, que nunca podem ser esquecidas, assim nasceu o capitalismo
nos dois lados do Atlântico, “escorrendo sangue e lama por todos os poros da cabeça
aos pés”, como diz Marx.

- Com isso, meu caro Washington, podemos dar por encerrada a história de como
nasceu a sociedade capitalista. – comenta Spock. – Uma sociedade, – continua ele –
que, como vimos no início da nossa conversa, é caracterizada por uma forma de
sociabilidade na qual os indivíduos só existem como possuidores de mercadorias. Quem
não dispõe de nada para trocar por coisas que precisa para satisfazer suas necessidades,
só tem duas alternativas: depender da caridade alheia ou simplesmente roubar de quem
tem.

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Assim, Spock encerra a sua longa exposição sobre o processo de acumulação primitiva
que deu origem ao nascimento da sociedade capitalista, aqui no Brasil, e fora dele: na
Europa.

Em seguida, desliga o seu computador de pulso, e convida seu anfitrião para


acompanhá-lo numa outra longa e mais demorada jornada, para investigar o
desenvolvimento e o progresso dessa ciência chamada Economia.

- Infelizmente – diz Spock – não vou poder estar presente nessa nova empreitada. Vou
te deixar um texto que elaborei antes de chegar aqui na Terra. Peço desculpas por isso,
mas tenho outros Planetas para visitar. A missão que me deram não me deixa tempo
para de descansar.

- Mas vamos assumir um compromisso, meu amigo – pediu Spock: - espero que leia
com cuidado o texto que preparei especialmente para isso. Quando eu estiver de volta
para o futuro, passo por aqui para conversarmos um pouco sobre o restante de nossa
discussão. Tudo bem, para você, Washington?

Spock despediu-se de seu anfitrião e preparaou-se para partir. Enquanto acionava os


motores de sua nave, olhou para Washignton e percebeu uma réstea de
desapontamento nos olhos dele. Imaginou que seu anfitrião esperava desfrutar de mais
tempo com ele. Foi então que Spock lembrou-se de Aristóteles e deixou, juntamente
com o texto, um bilhete no qual ele transcreveu as primeiras linhas que abrem a
metafisica daquele filósofo. É um texto que fala quanto o homem deseja conhecer.
Deixou-o como incentivo para Washington se aventurar a ir além da divisão intelectual
de saber, que faz de cada ciência uma ilha isolada do restante dos outros saberes.

“O homem não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo”.

Quando Whasington abriu o texto, viu o bilhete deixado por seu visitante. Nele estava
escrito que

todos os seres humanos naturalmente desejam o conhecimento. Isso é


indicado pelo apreço que experimentamos pelos sentidos, pois
independentemenete do uso destes nós os esrtimamos por si mesmos, e mais

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do do que todos os outros sentidos, o sentido da visão. Não somente
objetivamos a ação, mas mesmo quando não se visa nenhuma ação,
preferimos a visão (...) a todos os demais sentidos, isto porque, de todos os
sentidos, é a visão o que melhor cntribui para o nosso conhecimento das
coisas e o revela uma multiplicidade de distinções” (Aristóteles, etafísica,
2012, p.41).

- Até breve, meu amigo -, gritou Spock de dentro de sua nave. - Leia o texto que deixei;
quando eu passar de voltar por aqui, vamos ter muito o que conversar.

Washington correu para seu quarto, ansioso para ler o texto que seu visitante lhe
deixara. Ficou surpreso com o que viu. Antes de apresentar os assim chamodos
paradigmas da economia, Spock faz uma longa digressão sobre a filosofia das ciências.
Começa com Hume, passa por Karl Popper até chegar a Thomas Khum, que é o autor a
quem se deve a teoria dos paradigamas nas ciências. Mas, uma curiosidade aguçava
ainda mais o espírito de Washington para ler o texto do seu amigo. Se pergunta por que
ele começou sua exposição com David Hume (1711-1776)? Não conhecia esse autor,
pois no curso de economia não se fala desse pensador, que abalou profundamente as
bases sobre as quais se edificam as ciências: a experiencia. Mesmo assim, quis saber
por que Spock não iniciou sua apresentação diretamente com Thomas Khum (1992-
1996), que é considerado como o principal teórico da concepção de paradigmas? Outra
coisa o intrigava mais ainda: por que Karl Popper (1902-1994) estava ali entre Hume e
Khum.

E foram todas essas dúvidas que motivaram Whasington a se entregar de corpo e alma
na leitura do texto deixado por Spock.

A resposta às suas inquietações virá com a leitura do texto.

Mãos à obra!

SEGUNDA PARTE

A TRAJETÓRIA DA ECONOMIA E SEUS PARADIGMAS

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1.1. RAZÃO E EXPERIENCIA NA CONSTRUÇÃO DO SABER DAS CIENCIAS
MODERNAS

1. NEM TUDO QUE RELUZ É OURO

A lógica é a ciência mais difícil; não tem a ver com intuições, nem sequer,
com a geometria, com representações sensíveis abstractas, mas com
abstracções puras, e exige uma força e hábito de se retirar para o puro
pensamento, o reter nele e nele se mover. Por outro lado, poderia
considerar-se como a mais fácil, porque o seu conteúdo nada mais é do que
o puro pensar e as suas determinações ordinárias, e estas são ao mesmo
tempo as mais simples e o que há de elementar. São também o que há de
mais conhecido: o ser, o nada, etc., especificação, grandeza, etc., ser-em-si,
uno, múltiplo, etc. No entanto, este conhecimento familiar dificulta antes o
estudo da lógica; por um lado, facilmente se crê que não vale a pena ocupar-
se do que já é conhecido; por outro, trata-se de o conhecer de um modo
inteiramente diverso e até oposto ao modo como já é conhecido (Hegel,
1969.,p.89).

Apesar do seu grau de complexidade expresso nessa epígrafe, nela Hegel confessa que
filosófica tem a tarefa de repensar os conceitos que são utilizados instintivamente pelos
homens. Suas categorias são, portanto, pensamentos, isto é, formas conceituais com as
quais o homem se apodera do mundo e o manipula. Com a diferença de que não toma as
categorias tais como aparecem em seu uso cotidiano. Ao contrário disso, A Ciência da
Lógica pretende repensar tais categorias explicitando o movimento mediador, que se
encontra nelas subjacente e esquecido pelo senso comum. Como assim? Quando o
homem fala do dinheiro, por exemplo, a única coisa que lhe vem à cabeça é que se trata
de uma matéria, uma quantidade de papel ou moeda metálica, que lhe serve para
adquirir os bens necessários à sua sobrevivência. Nem desconfia que o dinheiro é, antes
de tudo, um conceito que expressa uma forma de relacionamento entre os homens, e
que, por isto, não é simplesmente matéria, é, também, uma forma social e, como tal,
expressão de diversas formas de relacionamento entre os homens. Com efeito, o
dinheiro que o capitalista utiliza para contratar trabalhadores é muito diferente do
dinheiro que estes utilizam para comprar os bens e serviços de que necessitam. No
primeiro caso, o dinheiro é capital, pois o seu proprietário o gastou, pagando salários,
para poder ganhar mais dinheiro; trata-se, portanto, de uma relação de exploração entre
duas classes: capitalistas e trabalhadores. Por sua vez, o salário, que o trabalhador

61
despende, para comprar roupa, calçados, comida, etc., é apenas um simples meio de
troca com o qual adquire o que necessita para viver.

Salta aos olhos que nem tudo que está aí, que pode ser tocado, sentido e percebido, é o
que parece ser à primeira vista. Há mais coisas por trás do dinheiro do que pensam as
pessoas que dele se utilizam todos os dias. Por quê? Porque tudo que está aí, aqui e
agora, só o é pela mediação. Com efeito, até mesmo o fato de o autor deste texto estar
aqui e agora diante deste computador, esta sua atividade imediata é mediada por toda
uma história de vida e do contexto social em que ela se insere. Não há, portanto,
conhecimento imediato. Todo saber imediato é produto do saber mediado.

Mas disso o homem comum nem se dá conta. O mundo se lhe apresenta ao pensamento
como se fora a realidade mesma, não porque está ao alcance do seu conhecimento
sensorial (ver, sentir, tocar), mas porque o aspecto fenomênico da realidade é produto
natural da sua práxis cotidiana. Esta cria “o pensamento comum” por meio do qual o
homem manipula as coisas no seu dia-a-dia. Em sua práxis cotidiana, vive esquecido na
imediatidade do seu agir; na maioria das coisas que faz todos os dias, age, como diria
Max Weber, em surda semiconsciência ou inconsciência (Weber,1988.V.I.,p.13) de
tão acostumado que está em agir sempre da mesma maneira. É o que acontece com a
linguagem em seu uso cotidiano. Quando alguém afirma, por exemplo, “vou viajar
para São Paulo”, não se apercebe de que, ao pronunciar essa frase, precisa fazer uso
das regras gramáticas (sujeito, verbo e predicado), se pretende ser compreendido pela
pessoa a quem se dirige. Não o sabe, mas o faz naturalmente porque interiorizou de tal
forma essas simples regras, que não precisa pensar nelas, para depois falar. Usa-as
automaticamente.

O senso comum está tão familiarizado com o mundo em que vive que se esquece de
perguntar pelo sentido do que faz, pelo porquê de assim agir e não de outra forma. Seu
interesse é prático, imediato. Quem entra num ônibus, não tem a mínima ideia do
mecanismo que permite esse veículo pôr-se em marcha. Para ele, o que importa é poder
contar com esse meio de transporte, no lugar e hora certos. “Quem o produziu?”, “por
que foi produzido?”, “poderia ser outro meio de locomoção?”, são perguntas que não
despertam nem a curiosidade daqueles que produziram o ônibus nem a de quem dele faz
uso para se deslocar de um ponto da cidade para outro.

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O senso comum não pergunta, portanto, pelo sentido das coisas, pelo porquê que assim
são. Pelo contrário, suas perguntas são práticas, imediatas. O homem do dia-a-dia quer
saber, por exemplo, “que dia é hoje?”, “que horas são?”, “onde fica a Avenida 13 de
maio?”, “quanto vou ganhar nesse meu emprego”, “qual é minha função?”, “qual é
a duração da jornada de trabalho?”.

Tomado pelos afazeres do dia-a-dia, o homem comum não se dá conta de que por trás
dessas perguntas pressupõe “crenças silenciosas”, que ele nem desconfia que as
pressupõem sempre que afirma ou nega alguma coisa, julga ou pede alguma
informação. Não desconfia porque está tão familiarizado com o mundo, tão acostumado
com a vida que leva, que, para ele, a realidade que é, é a que tem sob seus pés, que pode
sentir, tocar, ver. Se há mais coisas que estão para além de sua percepção imediata, não
tem interesse em saber, pois não lhe faz falta para se orientar no seu mundo, tomar suas
decisões diárias e agir.

Mas esse mundo tão familiar ao senso comum não é o verdadeiro mundo. Lembre-se
que o mundo não se mostra diretamente ao homem tal qual o é. Se fosse assim, não
precisaria fazer ciência. Se a verdade das coisas fosse a tradução direta do que as
pessoas percebem, seria legitimo declarar como verdade que o sol é menor do que a
terra, porque todos o veem assim; que um corpo cai porque é pesado e não porque é
atraído pela força da gravidade.

Se as coisas que o homem percebe fossem tal qual capta suas sensações imediatas, que
serventia teria as ciências? Nenhuma, pois, se fosse assim, a aparência e a essências dos
fenômenos seriam idênticas. Mas não o são. “Um corpo tem uma certa cor não porque é
colorido, mas porque dependendo de sua composição química e física, reflete a luz de
uma determinada maneira”.

Obviamente, o homem comum não precisa saber dessas coisas. Quem se dirige a uma
loja para comprar um carro, escolhe aquele que mais agradar aos seus olhos. Se mora
numa região de clima muito quente, certamente, escolherá uma cor que não absorva
tanto calor. Coisa que ele sabe por experiência própria, e não porque determinadas
propriedades químicas e físicas têm capacidade de absorver ou refletir mais ou menos
calor.

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Porque a aparência e a essência das coisas não coincidem, e filosofia e as ciências são
necessárias. São duas formas distintas de conhecer o mundo. A filosofia é mais velha
do que as ciências e tem seu berço de nascimento na Grécia Antiga, enquanto as
ciências só começam aparecer, como uma forma de conhecimento separada da filosofia,
com o despertar do mundo moderno. Mas tal diferença não é coisa para ser discutida
aqui. Por ora, importa se ocupar das ciências, saber como estas conhecem o mundo;
como estas sabem o que julgam saber.

Uma coisa é certa: o conhecimento produzido pelas ciências é mais rico e bem mais
complexo do que imagina e pensa o senso comum. Na verdade, julgado à luz do senso
comum, o conhecimento produzido pelas ciências, como diria Marx, é o oposto do
conhecimento adquirido pelo homem em sua práxis cotidiana, utilitária e imediata.

Com efeito, o conhecimento que o senso comum tem da realidade é uma forma de saber
subjetivo, uma vez que tal conhecimento se funda nos sentimentos e opiniões
individuais, que variam de uma pessoa para outra. Além disso, trata-se de uma forma de
saber qualitativa, pois o homem comum julga as coisas como grandes ou pequenas,
pesadas ou leves, com sabor ou com odor.

Além dessas duas características do saber corrente, subjetivo e qualitativo, é próprio do


senso comum ver as coisas apenas de sua perspectiva heterogênea, uma vez que entende
que um “corpo que cai e uma pena que flutua no ar são acontecimentos diferentes”;
como “sonhar com água é diferente de sonhar com uma escada etc” (Chauí, 1994,
p.248);

Mesmo assim, o senso comum estabelece relações e causa e efeito. A experiência dota o
homem comum de condições que lhe permitem descobrir relação de causalidade entre
as coisas. Quem não conhece o velho proverbio “onde há fumaça, há fogo”; o fogo
queima; passar por baixo de escada, dar azar.

Muito diferente são as verdades científicas. Estas são formadas por um corpo de
enunciados mediante os quais captam-se as estruturas universais e necessárias das
coisas investigadas. Vale dizer: os conceitos com os quais trabalham as ciências têm de
ser obrigatoriamente objetivos, universais e necessários. Caso contrário, o saber
científico não passaria de um mero jogo de opiniões.

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A despeito de tais diferenças, as ciências dividem com o senso comum a ideia de que
todo e qualquer conhecimento parte de determinados pressupostos, que são tomados
como dados, isto é, não problematizados.

É assim porque, com o advento da modernidade, as ciências, pouco a pouco, palmearam


todas as dimensões da vida social. Recortaram e mapearam o mundo social, de acordo
com as necessidades do conhecimento de cada área específica da realidade social. Na
medida em que a sociedade se tornou mais complexa, mais dinâmica e com novos
problemas, passou a demandar conhecimentos especializados até então inexistentes. No
campo da produção, a organização do ´processo de trabalho e as previsões sobre a
evolução do mercado criaram a necessidade de uma nova ciência: a economia. A
sociologia, a pedagogia e a administração nasceram para tratar dos problemas de
formação, educação e vigilância dos trabalhadores. Para cuidar das questões de
adaptação do trabalhador e do homem, em geral, à nova forma emergente de
sociabilidade, a psicologia passou a fazer parte do universo do saber científico. Com o
avanço do mercado mundial, a geografia se apresenta como a ciência que tem como
objeto de estudo instruir o homem produtor de mercadorias, para que possa dominar
espaços no cenário do comercio mundial.

Em consequência disso, o conhecimento que outrora tinha em mira a unidade da


totalidade das coisas do mundo, uma compreensão da totalidade da realidade,
desmorona com a erupção de várias formas relativas de conhecimento. Conhecimento
relativo, pois a economia passou a ver o mundo apenas da perspectiva econômica; a
psicologia, da perspectiva da psiquê; a história, da perspectiva dos eventos históricos.

E assim, o conhecimento tornou-se um conhecimento relativo, uma vez que seu objeto
de investigação é apenas uma fatia da realidade. Consequentemente, as ciências são
obrigadas a assumir certos pressupostos que elas não podem demonstrá-los. A
economia, por exemplo, parte do pressuposto de que essa ciência tem por objetivo criar
as condições para o desenvolvimento do bem-estar do homem. Infelizmente, como essa
ciência se ocupa apenas de uma parte da realidade, seu objeto de estudo, o homem,
transcende as fronteiras do que seu campo de estudo. Um exemplo mais didático é o
conceito da lei da oferta e da demanda. Quando os economistas dizem que a demanda
varia inversamente às variações de preços, acrescentam que isso vale somente se se
abstrair dessa lei despe o homem de suas características estéticas de gosto, de sua

65
cultura, preferências, religião etc. O homem que a economia aí se refere é um homem
abstraído de suas características humanas, tal qual um peixe fora d´água.

O homem econômico é, assim, uma perversão do homem como totalidade. O universo


do homem não cabe dentro das fronteiras do mundo da economia. Daí a impossibilidade
de a economia, como ciência, interpretar o sentido último do que é o ser humano. Ela
apenas o pressupõe.

É aí que entra a filosofia para justificar os pressupostos das ciências. Trata-se de uma
problematização daquilo que o conhecimento científico aceita como dado.

2.CONHECIMENTO DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO

2.1 UM BREVE COMENTÁRIO SOBRE O QUE SIGNIFICA


CONHECIMENTO DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO

À primeira vista, para quem está abrindo as primeiras portas do curso de Economia,
soa-lhe inaudito, assombrosamente inaudito, o título que abre esta seção. Mas o impacto
que esse primeiro contato possa causar ao leitor, começa a perder seu ar pasmoso e
obscuro quando ele se der conta de que o conhecimento do conhecimento científico não
é nada mais do que uma problematização filosófica das condições de possibilidades do
conhecimento científico; do conhecimento das ciências, tais como economia, sociologia,
história, geografia, física química, biologia etc. Noutras palavras, trata-se de um
conhecimento dos pressupostos dos quais partem as ciências, que admitem como dados
para construção do seu edifício teórico.

Difícil? Por mais que assim pareça, a coisa se descomplica quando se tem presente que
as ciências, assim como o senso comum, partem de pressupostos que elas tomam como
dados. Pressupostos, como antes referido, que se impõem como necessários, uma vez
que conhecimento científico é uma forma de saber fragmentado da realidade. O Direito,
por exemplo, é uma ciência que pressupõe a liberdade, a paz e harmonia entre os
homens. Mas, o que é liberdade? Ela se resume simplesmente à livre manifestação da
vontade dos indivíduos em suas relações contratuais?

Claro que não. A liberdade é muito maior e mais abrangente do que a livre manifestação
da vontade dos homens em suas relações contratuais. Muito diferente do que pensa a
filosofia política liberal, que tem em Hobbes e Locke seus maiores expoentes, ser livre,

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como assim entendiam esses pensadores do direito natural, não é unicamente fazer da
liberdade individual um parâmetro para medir as liberdades dos outros, como postula a
máxima de que diz “que minha liberdade começa, onde termina a sua”. Trata-se aí de
uma liberdade negativa, no sentido de que o outro não está “incluído na minha
liberdade”.

É nesse sentido que tal pressuposto escapa a qualquer demonstração científica. O direito
é uma ciência como as demais: ela estuda apenas uma dimensão da vida humana. No
caso da medicina, essa problemática torna-se ainda mais patente. Com efeito, como diz
Weber,

o “pressuposto” geral da Medicina assim se coloca: o dever do médico está


na obrigação de conservar a vida pura e simplesmente e de reduzir, o
quanto possível, o sofrimento. Tudo isso é, portanto, problemático. Graças
os meios de que dispõe, o médico mantém vivo o moribundo, mesmo que
este lhe implore pôr fim a seus dias e ainda que os parentes desejem e
devam desejar a morte, conscientemente ou não, porque e já não tem mais
valor aquela vida, porque os sofrimentos cessariam ou porque os gastos
para conservar aquela vida inútil – trata-se, talvez, de um pobre demente –
se fazem pessadíssimos (sic). Só os pressupostos da Medicina e do código
penal impedem o médico de se apartar daquela linha que foi traçada. A
Medicina, contudo, não se propõe a questão de saber se aquela vida merece
ser vivida e em que condições (Weber, 1999.,p.37).

É o que se pode também constatar no caso da Economia. Esta ciência, por exemplo,
ocupa-se apenas com aqueles fenômenos que ocorrem em consequência da busca pela
riqueza. Ela recorta uma dimensão da realidade humana, para explicar e predizer, como
diria Mill, unicamente

essa parte dos fenômenos da sociedade, na medida em que dependem


apenas desta classe de circunstâncias, sem levar em conta quaisquer outras
circunstâncias e, portanto, sem reportar as que levamos em conta às suas
possíveis origens em outros fatos do estado social e sem considerar a
maneira pela qual essas outras circunstâncias podem interferir,
modificando ou anulando, o efeito das primeiras. Pôde assim ser construído
um departamento da ciência que recebeu o nome de Economia Política
(Mill, 1999.,p. 99).

As ciências, portanto, em virtude de seu saber relativo, não podem, portanto, e nem têm
interesse em demonstrar seus pressupostos. Para falar de economia, o economista não

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precisa possuir conhecimentos epistemológicos e metodológicos. Seria bom que os
tivesse, pois para fazer ciência com consciência, como diria Edgar Morin, a
epistemologia é fundamental, na medida em que ela revela as bases sobre as quais se
edificam as ciências. Infelizmente, estas trabalham independentemente de seus
pressupostos metodológico, pois tais conhecimentos, como assim admitem Weber e
Popper, não fazem com que alguém se transforme, por exemplo, num bom economista,
num excelente historiador ou mesmo em um célebre jurista. Afinal, como dizem esses
dois autores, é apenas delimitando e resolvendo problemas concretos é que se fundam as
ciências.

Contra Kant, para quem cabe à filosofia a problematização das condições de


possibilidade do conhecimento científico, Hegel diz algo semelhante, ainda que sua
crítica transcenda o nível da discussão até aqui desenvolvida. Para esse filósofo alemão,
“um ponto de vista fundamental da filosofia crítica”, isto é, da filosofia kantiana, diz
Hegel,

é que, antes de se proceder conhecer (...), importa primeiro investigar a


faculdade de conhecer e ver se ela é capaz de realizar tal tarefa (...). Mas
querer conhecer antes de se conhecer é tão destoante como o sábio
propósito daquele escolástico de aprender a nadar antes de se aventurar à
água (Hegel, 1969. §.p.79).
Mas, ainda que o trabalho das ciências independa de reflexões metodológicas e
epistemológicas, Weber não deixa de reconhecer que tais reflexões são importantes para
ao cultivo das ciências. Sua importância é decisiva, diz ele,

quando, em consequência de deslocamentos notáveis de "pontos de vista", a


partir dos quais uma matéria se converte em objeto de uma exposição,
surge a ideia de que estes novos "pontos de vista" exigem também uma
revisão das formas lógicas, dentro das quais se desenvolvera
tradicionalmente o "cultivo" quase consagrado, levando, obviamente a uma
situação de incerteza sobre a "essência" do próprio trabalho científico
(Weber. 2001.Vol.I.,p. 157).
As transformações trazidas pela modernidade, anunciadas desde o renascimento e
amadurecidas pelo iluminismo, inauguraram uma época de grandes inquietação
políticas, econômicas, sociais, que passaram a demandar novas formas conhecimento,
para responder as exigências dos novos tempos insurgentes. Uma época, como faz
lembrar Eduardo Galeano, em que a burguesia se lançara mar adentro e ficara seus
dentes na garganta dessa comarca chamada América Latina, que nasceu para servir as

68
necessidades de acumulação de capital para suas metrópoles. O canhão, e bússola e a
imprensa, três grandes invenções, foram saudadas por Bacon com uma verdadeira
revolução, na medida em que permitia ao capital navegar pelos mares com segurança e
subjugar os povos ao redor do mundo ao seu domínio.

Era o parto que trouxe à luz burguesia mercantil, que vem ao mundo “escorrendo
sangue e lama por todos os poros. Para se afirmar como força social dominante, como
assim descrevem Marx e Engels, no Manifesto Comunista, a burguesia teve de destruir
as relações feudais, patriarcais e religiosas até então dominantes. Nas palavras dos
fundadores do socialismo científico, a burguesia

rasgou todos os complexos e variados laços que prendiam o homem feudal a


seus superiores naturais, para só deixar subsistir, de homem para homem, o
laço do frio interesse, as duras exigências do pagamento à vista. Afogou os
fervores sagrados da exaltação religiosa, do entusiasmo cavalheiresco, do
sentimentalismo pequeno-burguês nas águas geladas do cálculo egoísta. Fez
da dignidade pessoal um simples valor de troca; substituiu as numerosas
liberdades, conquistadas duramente, por uma única liberdade sem
escrúpulos: a do comércio [...].
Apropriando-se das conquistas das ciências nascentes,

[A burguesia] foi a primeira a provar o que a atividade humana pode


realizar: criou maravilhas maiores que as pirâmides do Egito, os aquedutos
romanos, as catedrais góticas; conduziu expedições que empanaram mesmo
as antigas invasões cruzadas [...].
A burguesia, portanto, conclui Marx,

não pode existir sem revolucionar incessantemente [...] todas as relações


sociais. Essa subversão continua da produção, esse abalo constante de todo
o sistema social, essa agitação permanente e essa falta de segurança
distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Dissolvem-se todas
as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e
de ideias secularmente veneradas; as relações que subsistem tornam-se
antiquadas antes de se consolidarem. Tudo o que era sólido e estável se
desmancham no ar, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são
obrigados finalmente a encarar sem ilusões a sua posição social e as suas
relações com os outros homens [Manifesto Comunista. - São Paulo:
Boitempo, 1998; p. 42/43].

Tudo o que era sólido e estável começa a se espatifar no ar. Assim também acontece
com as certezas e as verdades do conhecimento. Nada escapa ao poder inquisidor do

69
homem moderno; este não mais aceita como certo e definitivo o saber herdado da
antiguidade, nem tampouco o da época medieval. Ele quer explicação para tudo. Por
isso,

tudo é sacudido ou destruído: a unidade política, religiosa e espiritual da


Europa; as afirmações das ciências e da filosofia medieval, calcadas
principalmente em Aristóteles; a autoridade da Bíblia, posta em confronto
com os dados das novas descobertas cientificas; e o prestigio da Igreja e do
Estado, abalado pelo movimento da Reforma e pelas guerras motivadas por
dissidências políticas ou religiosas. Além disso, se o homem europeu
descobre que há ideias bem diversas das que vinham docilmente aceitando
como únicas e verdadeiras, e se passa a saber que há outros povos vivendo
segundo padrões bem diferentes daqueles que lhe pareciam os únicos, é
natural que se espraie uma vaga de descrença e de dúvida (Granger, Giles-
Gaston. Descartes: vida e obra. - São Paulo: Abril Cultural, 1979; p.
VII/VIII).

Tudo o que era sólido se espatifou no ar. A produção cultural da antiguidade e da época
medieval também caiu na noite dos tempos para não mais voltar. Daí o clima de
incertezas e de insegurança vivido pelo homem moderno. Este não mais confia na
tradição, isto é, na autoridade do pensamento filosófico grego; muito menos no
pensamento religioso medieval.

Num mundo, assim, marcado por inseguranças e incertezas, as ciências veem-se


obrigadas a fundamentar a produção dos seus conhecimentos. Só assim, os homens
poderão fiar-se em suas respostas práticas aos problemas que os afligem. Desconfiado
dos conhecimentos herdados do passado, o homem moderno quer ter certeza de que as
novas teorias serão capazes de responder as exigências de seu tempo. Daí porque a
necessidade de fundamentar o conhecimento em bases seguras; pois só assim os homens
poderão assegurar-se de que não serão enganados; poderão, assim, garantir que as
produções teóricas são certas ou verdadeiras.

Não sem razão, todo grande pensador tem como preocupação primeira investigar a
capacidade de conhecimento do homem; o que este pode conhecer e como pode fundar
o seu conhecimento; isto é, como pode dar razões ao que conhece. Noutras palavras, as
incertezas e inseguranças levam o homem moderno a se preocupar com as condições
que tornam possíveis a produção do conhecimento.

70
Duas grandes orientações epistemológicas surgem para dar resposta ao problema do
conhecimento: o empirismo, que funda a produção do conhecimento na evidencia da
experiência; e o racionalismo, que faz da razão o alicerce sobre o qual deve se apoiar o
edifício das ciências. Segundo assim entende Granger, as principais vertentes do
pensamento moderno são.

É nesse contexto que a filosofia passa a cumprir um novo papel. Diferentemente do que
fora no passado, com o advento da modernidade, ela abdica de sua função de falar do
mundo, para se dedicar à tarefa de fundamentar os conhecimentos das ciências que
falam do mundo, como a economia, geografia, física, biologia, história, psicologia etc.

A filosofia vira epistemologia, teoria do conhecimento, ou, se se preferir, conhecimento


do conhecimento científico.

2.2. AS FONTES DO CONHECIMENTO: EXPERIÊNCIA E SUBJETIVIDADE

(a) DESCARTES: A SUBJETIVIDADE COMO FONTE E FUNDAMENTO DO


CONHECIMENTO

René Descartes (1596-1650) é filho desse tempo de efervescência social; um tempo


dominado pela insegurança e incerteza. Não sem razão, seu projeto de saber teve como
preocupação central encontrar um solo seguro para assentar o conhecimento do mundo.
Noutras palavras, sua preocupação foi dominada pela questão da fundamentação do
conhecimento. Mas, como ele enfrentou essa questão? Simplesmente encontrando,
entre as ideias através das quais se conhece as coisas, aquelas sobre as quais não se
poderia delas restar nenhuma dúvida; consequentemente, poderiam ser tomadas como
verdadeiras e, assim, servir de ponto de partida - base ou fundamento – para edificação
de todo conhecimento.

A ideia de encontrar um fundamento sólido para construção do conhecimento é análoga


ao princípio da alavanca de Arquimedes (287a.C-a.C.–212a.C.). Com efeito, Descartes
tem plena consciência dessa semelhança, quando diz que

Arquimedes, para tirar o globo terrestre de seu lugar e transportá-lo para


outra parte, não pedia nada mais exceto um ponto que fosse fixo e seguro.
Assim, terei o direito de conceber altas esperanças, se for bastante feliz para

71
encontrar somente uma coisa que seja certa e indubitável (Descartes.
1979.p.91).

Essa coisa certa indubitável de que fala descartes, esse porto seguro, é o cogito (o
pensar); é o primeiro princípio, ponto de partida para descoberta de inúmeras verdades,
e é, ele mesmo, uma verdade, que não depende de nenhuma outra verdade.

O exercício metódico da dúvida é o caminho para se chegar ao eu penso. É o que ele


demonstra na quarta parte do DM, quando afirma que

de há muito observara que, quanto aos costumes, é necessário às vezes


seguir opiniões, que sabemos serem muito incertas, tal como se fossem
indubitáveis, como já foi dito acima; mas, por desejar então ocupar-me
somente com a pesquisa da verdade, pensei que era necessário agir
exatamente ao contrário, e rejeitar como absolutamente falso tudo aquilo
em que pudesse imaginar a menor dúvida, a fim de ver se após isso, não
restaria algo em meu crédito, que fosse inteiramente indubitável. Assim,
porque os nossos sentidos nos enganam às vezes, quis supor que não havia
coisa alguma que fosse tal como eles nos fazem imaginar. E, porque há
homens que se equivocam ao raciocinar, mesmo no tocante às mais simples
matérias de Geometria, e cometem aí paralogismos, rejeitei como falsas,
julgando que estava sujeito a falhar como qualquer outro, todas as razões
que eu tomara até então por demonstrações. E enfim, considerando que
todos os mesmos pensamentos que temos quando despertos nos podem
também ocorrer quando dormimos, sem que haja nenhum, nesse caso, que
seja verdadeiro, resolvi fazer de conta que todas as coisas que até então
haviam entrado no meu espírito não eram mais verdadeiras que as ilusões
de meus sonhos. Mas, logo em seguida, adverti que, enquanto eu queria
assim pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que
pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade: eu penso, logo
existo, era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições
dos céticos não seriam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem
escrúpulo, como o primeiro princípio da Filosofia que procurava (p. 46).
Seguindo este raciocínio, Descartes afirmou, também, que um ser imperfeito não pode
ser a causa da criação de um ser perfeito, pois o menos não pode ser a causa do mais. A
ideia de perfeição nasce junto com o homem, é uma ideia inata. Resta a ideia de que a
perfeição não tendo sua origem no nada e nem tampouco em um ser imperfeito por
natureza, só pode ter sido posta na razão por um ser perfeito

Um ser perfeito pode ser a sua própria causa, ao contrário de um ser imperfeito. A ideia
de perfeição posta na razão sugere a existência de um ser perfeito, pois seria
contraditória a existência da perfeição sem um ser perfeito que a tenha criado.

72
Assim, a existência de uma ideia de perfeição que existe em nossa mente, comprova a
existência de um ser perfeito que a criou e a colocou em nossa razão, ou seja, um ser
que pode ser chamado de Deus.

Um ser perfeito pode ser a sua própria causa, ao contrário de um ser imperfeito. A idéia
de perfeição posta na razão sugere a existência de um ser perfeito, pois seria
contraditória a existência da perfeição sem um ser perfeito que a tenha criado.

Assim, a existência de uma idéia de perfeição que existe em nossa mente, comprova a
existência de um ser perfeito que a criou e a colocou em nossa razão, ou seja, um ser
que pode ser chamado de Deus.

E, assim, prossegue com sua demonstração:

Nesse texto, valendo-se de uma cativante narrativa pessoal, ele descreve como chegou a
descoberto do “eu penso”. Tomado por excessiva precaução, faz questão de advertir os
seus leitores de que o seu desígnio

não é ensinar aqui o método que cada qual deve seguir para bem conduzir sua
razão, mas apenas mostrar de que maneira me esforcei por conduzir a minha.
Os que se metem a dar preceitos devem considerar-se mais hábeis do que
aqueles a quem as dão; e, se falham na menor coisa, são por isso censuráveis.
Mas, não propondo este escrito senão como uma história, ou, se o preferirdes,
como uma fábula, na qual, entre alguns exemplos que se podem imitar, se
encontrarão talvez também muitos outros que se terá razão de não seguir,
espero que ele será útil a alguns, sem ser nocivo a ninguém, e que todos me
serão gratos por minha franqueza (Descartes. 1979.,p.30).

Por que tanta precaução? A resposta Descartes apresenta logo na primeira parte do DM,
quando resolve negar tudo o que aprendera dos seus mestres, todos educados na
filosofia escolástica, para partir em busca da descoberta de uma nova e verdadeira
ciência, até então desconhecida de todos. Um rompimento com todo conhecimento
ensinado nas escolas, soava como um verdadeiro ato de rebeldia. Descartes sabia disso.
Por isso, esperou pelo tempo certo, que veio quando ele atingiu certa idade que lhe

permitiu sair da sujeição de meus preceptores, deixei inteiramente o estudo das


letras. E, resolvendo-me a não mais procurar outra ciência além daquela que
poderia achar em mim próprio, ou então no grande livro do mundo, empreguei
o resto de minha mocidade em viajar, em ver cortes e exércitos, em frequentar
gente de diversos humores e condições, em recolher diversas experiências, em
provar a mim mesmo nos reencontros que a fortuna me propunha e, por toda
parte, em fazer tal reflexão sobre as coisas que se me apresentavam, que eu
pudesse delas tirar algum proveito. Pois afigurava-se-me poder encontrar

73
muito mais verdade nos raciocínios que cada qual efetua no que respeitante aos
negócios que lhe importam, e cujo desfecho, se julgou mal, deve puni-lo logo em
seguida, do que naqueles que um homem de letras faz em seu gabinete, sobre
especulações que não produzem efeito algum e que não lhe trazem outra
consequência senão talvez a de lhe proporcionarem tanto mais vaidade quanto
mais distanciadas do senso comum, por causa do outro tanto de espírito e
artifício que precisou empregar no esforço de torná-las verossímeis. E eu
sempre tive um imenso desejo de aprender a distinguir o verdadeiro do falso,
para ver claro nas minhas ações e caminhar com segurança nesta vida
(Descartes, DM., p.33).

Na segunda parte do DM, Descartes manifesta como proceder para distinguir o


verdadeiro do falso e, assim, poder caminhar com segurança. Anuncia quatro preceitos
básicos que devem ser rigorosamente observados, para bem conduzir a razão em busca
da verdade. O primeiro deles, diz Descartes, é o

de jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse


evidentemente como tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a
prevenção, e de nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão
clara e tão distintamente a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma
ocasião de pô-lo em dúvida (DM.,p.37).

 Em segunda lugar,

o de dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas


parcelas quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor
resolvê-las (DM.,p.37).
O terceiro,

o de conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais


simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, como por
degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e supondo mesmo uma
ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros (p.38).

Finalmente, o último de tais preceito

o de fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais,


que eu tivesse a certeza de nada omiti (p.38).

74
De há muito observara que, quanto aos costumes, é necessário às vezes
seguir opiniões, que sabemos serem muito incertas, tal como se fossem
indubitáveis, como já foi dito acima; mas, por desejar então ocupar-me somente com a
pesquisa da verdade,

pensei que era necessário agir exatamente ao contrário, e rejeitar como


absolutamente falso tudo aquilo em que pudesse imaginar a menor dúvida, a
fim de ver se após
isso, não restaria algo em meu crédito, que fosse inteiramente indubitável.
Assim, porque os nossos sentidos nos enganam às vezes, quis supor que não
havia coisa alguma que fosse tal como eles nos fazem imaginar. E, porque há
homens que se equivocam ao raciocinar, mesmo no tocante às mais simples
matérias de Geometria, e cometem aí paralogismos, rejeitei como falsas, julgando
que estava sujeito a falhar como qualquer outro, todas as razões que eu tomara
até então por demonstrações. E enfim, considerando que todos os mesmos
pensamentos que temos quando despertos nos podem também ocorrer quando
dormimos, sem que haja nenhum, nesse caso, que seja verdadeiro, resolvi fazer
de conta que todas as coisas que até então haviam entrado no meu espírito não
eram mais verdadeiras que as ilusões de meus sonhos. Mas, logo em seguida,
adverti que, enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso, cumpria
necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, notando que
esta verdade: eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as
mais extravagantes suposições dos
céticos não seriam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem
escrúpulo, como o primeiro princípio da Filosofia que procurava (p. 46).

Depois, examinado com atenção o que eu era, e vendo que podia supor
que não tinha corpo algum e que não havia qualquer mundo, ou qualquer lugar onde eu
existisse, mas que nem por isso podia supor que não existia; e que, ao contrário, pelo
fato mesmo de eu pensar em duvidar da verdade das outras coisas, seguia-se mui
evidente e mui certamente que eu existia; ao passo que, se apenas houvesse cessado de
pensar, embora tudo o mais que alguma vez imaginara fosse verdadeiro, já não teria
razão alguma de crer que  eu tivesse existido; compreendi por aí que eu era uma
substância cuja essência ou natureza consiste apenas no pensar, e que, para ser,
não necessita de nenhum lugar, nem depende de qualquer coisa material. De sorte
que esse eu, isto é, a alma, pela qual sou o que
sou, é inteiramente distinta do corpo e, mesmo, que é mais fácil de conhecer do que
ele, e, ainda que este nada fosse, ela não deixaria de ser tudo o que é (p.46/47).

75
Aí, no Discurso do Método, como também em suas Meditações, Descartes deixa claro
que, para conhecer o mundo, primeiro, há que se avaliar a capacidade ou faculdade do
conhecimento. Que o diga Silva, para quem conhecimento, para Descartes,

não é imediatamente uma relação a ser estabelecida entre o sujeito e as


coisas que o rodeiam, mas antes um problema a ser solucionado para que
então essa relação possa ser bem estabelecida. Os critérios de
reconhecimento, que são as garantias metódicas da verdade, são pensados na
esfera da subjetividade, primeiramente de forma autônoma e independente.
Não é por outra razão que a primeira verdade, paradigma de todas as
outras, será aquele relativamente à própria existência do sujeito enquanto
pensamento. O conhecimento não pode ser imediatamente uma relação entre
o sujeito e o mundo externo porque este deixou de funcionar como princípio
de conhecimento. A primeira realidade que é dada a um sujeito pensante
não pode ser outra senão o próprio pensamento. Essa prioridade é que
determina que Descartes estabeleça um funcionamento único para o
conhecimento. Se puder ser estabelecida alguma forma de concordância
entre as ideias do sujeito e o mundo exterior, esse acordo se constituirá a
partir da hegemonia do sujeito (Silva, 1993.,p.9).

Para Descartes, avaliar a capacidade humana para conhecer é o primeiro e mais


importante problema com o qual tem de se defrontar a filosofia moderna. Por quê?
Porque, para ele, como assim esclarece Domingues,

a batalha da certeza e da incerteza do conhecimento é decidida pelo próprio


sujeito, e funda o conhecimento do limiar da subjetividade (a alma), e nas
Meditações faz da ideia o médium do conhecimento e busca nas suas notas
intrínsecas (clareza e distinção) o index da verdade ou sua medida, agora
uma evidência do pensamento e não da coisa. Esta é a intuição maior que
percorre toda a obra de Descartes. Aplicada ao problema da fundamentação
do conhecimento, ela aparece associada na segunda Meditação à ideia de
encontrar um ponto zero do conhecimento, em analogia ao princípio da
alavanca de Arquimedes: "Arquimedes, para tirar o globo terrestre de seu
lugar e transportá-lo para outra parte, não pedia nada mais, exceto um
ponto que fosse fixo e seguro. Assim, terei o direito de conceber altas
esperanças, se for bastante feliz para encontrar somente uma coisa que seja
certa e indubitável". Esse ponto Albert chama de ponto arquimediano do
conhecimento, e como tal absolutamente legitimado, porque obtido ao fim de
uma cadeia regressiva que vai de verdade em verdade até deter-se nele, e
não postulado como evidência a dispensar toda fundamentação (dê-me uma
alavanca e um ponto firme de apoio que faço mover o mundo", dizia
Arquimedes; "dê-me um fundamento sólido - a ideia clara e distinta - que eu
faço assentar todo o edifício do conhecimento em bases firmes e seguras",
teria dito Descartes) (Domingues.1991.,p.46).
76
Esse é o seu projeto de saber, que procura responder a três questões fundamentais

em torno das quais, como observou Albert, se armou todo o problema do


conhecimento na modernidade: 1) por que fundamentar o conhecimento? Porque
não temos certeza, isto é, porque, quando aspiramos a conhecer alguma coisa,
nada nos assegura de antemão que estamos no elemento da verdade ou se, ao
contrário, nos enganamos; 2) como fundamentar o conhecimento? Simplesmente
encontrando, entre as ideias através das quais conhecemos as coisas, aquelas que
sejam tão firmes e tão sólidas que possam ser tomadas como verdadeiras e, assim,
servir de ponto de partida - base ou fundamento - do conhecimento, delas
deduzindo todo o resto; 3) para que fundamentar o conhecimento? Para conferir
certeza ao conhecimento ou dar caução à verdade - de um lado, garantir que a
verdade foi encontrada; de outro, que a verdade encontrada é certa ou verdadeira
(Domingues, 1991.,p.47).

Nas mãos de Descartes, a filosofia vira teoria do conhecimento, epistemologia, reflexão


sobre a capacidade humana para conhecer.

Das três questões acima expostas, a segunda, "como fundamentar o conhecimento",


deixa transparecer de imediato que a subjetividade é a realidade primeira e fundante de
todo conhecimento. Portanto, para Descartes, o conhecimento não é uma mera relação
do sujeito com o objeto do conhecimento; é antes, uma relação da subjetividade
consigo mesma. Como assim? Para conhecer o mundo, o homem tem de partir de
conhecimentos a priori, de certas idéias inatas, com as quais constrói todo o edifício do
conhecimento das coisas do mundo. Por isso, como apropriadamente esclarece Franklin
Leopoldo e Silva, para Descartes, diz ele,

o conhecimento não é imediatamente uma relação a ser estabelecida entre o


sujeito e as coisas que o rodeiam, mas é antes um problema a ser solucionado
para que então essa relação possa ser bem estabelecida [Silva, 1993; p. 9).
Se é assim, então,

a primeira realidade que é dada a um sujeito pensante não poderia ser outra senão
o próprio pensamento. Essa prioridade é que determina que Descartes estabeleça
um fundamento único para o conhecimento. Se puder ser estabelecido alguma
forma de concordância entre as ideias do sujeito e o mundo exterior, esse acordo
se constituirá a partir da hegemonia do sujeito [Silva, p. 9].

77
Como então estabelecer esse fundamento único para o conhecimento? Como demonstrar
que a subjetividade é a única fonte e sede do conhecimento? Como, portanto, Descartes
demonstra que o pensamento é a única fonte de verdade? Mediante o exercício da
dúvida metódica. Pondo em dúvida tudo o que existe no mundo, Descartes descobre que
a única coisa de que não pode duvidar é o ato de duvidar, de estar a duvidar de tudo que
existe.

Nesse sentido, o papel da dúvida metódica né procurar o fundamento, um ponto fixo e


seguro a partir do qual se possa apoiar a reconstrução da ciência. Esse ponto fixo e
seguro é a subjetividade, e por isso deverá revestir-se das características de princípio e
substancialidade.

Para chegar a esse ponto fixo e seguro, é necessário precisar o caminho que vai da
dúvida à subjetividade enquanto princípio de certeza. Mas, até onde vai a dúvida? Ela é
um processo que pode ser esgotado em si mesmo? É possível permanecer na dúvida?
Acompanhando Silva, ele esclarece que a dúvida só é permanente para o cético. Mas,
para Descartes, explica ele,

tal permanência não poderia ser fruto de uma paralisação da própria dúvida, ou
do processo de interrogação. Isso porque o aprofundamento da dúvida leva ao
desvendamento da instância original da dúvida e, assim, do próprio pensamento.
Quando aquele que dúvida se dá conta de que a dúvida é um determinado
exercício do pensamento, percebe ao mesmo tempo que a dúvida atinge o seu ponto
limite. Por isso, só posso permanecer na dúvida se não a radicalizo
suficientemente: se não a faço voltar-se contra si mesma. O limite da dúvida é a
descoberta do pensamento [Silva, p.51].
Ora, duvidar é pensar; portanto, enquanto durar o exercício da dúvida, o pensamento
continua pensando. De todas as coisas postas em dúvida, somente de uma não se pode
duvidar: a do ato de pensar. Silva descreve esse processo da seguinte forma:

tendo suspendido o juízo acerca do valor de todas as representações, não considero


como verdadeira coisa alguma daquilo que penso. Mas, enquanto assim procedo,
eu mesmo, enquanto pensamento, me afirmo como tal no próprio exercício da
dúvida. Se a própria dúvida existe, então o pensamento, do qual a dúvida é uma
modalidade, existe, e eu mesmo, que duvido, logo penso, existo necessariamente, ao

78
menos como ser pensante. Disso não posso duvidar, pois é a própria dúvida que
engendra esta constatação: penso, logo existo. O maior dos céticos não pode negá-
la, sob pena de negar a própria possibilidade de duvidar [Silva, p.52].

Duvidar significa, portanto, a afirmação do ser pensante, já que a dúvida é pensamento.


De fato, ninguém pode pensar que não pensa: eu penso que não penso é um absurdo.
Segue-se daí, que é pelo exercício da dúvida, como bem explica Silva,

o ser atingido primeiramente é o pensamento: pode ocorrer que o ser que


pensa possua outras propriedades além do pensar; pode ser corporal ou
extenso, por exemplo. No momento isto não está em questão. Não conheço a
totalidade do meu ser, nem todas as propriedades que eventualmente o
compõem. Mas sei com certeza que, enquanto pensamento, existe e não é
corporal, pois vejo claramente não ser o corpo algo necessário para pensar.
Se o meu ser contém algo mais que o pensamento, será através do
pensamento que descobrirei [p. Silva, 54/5].

Segue-se daí que o ser que se alcança, mediante o exercício da dúvida metódica, é o
próprio pensamento. De fato, para pensar, a única coisa exigida é pensar. Com efeito, o
pensamento não só tem uma prioridade conceitual, como também ontológica: ele é
atributo principal do sujeito pensante.

Esta prioridade ontológico-conceitual vem do fato de que o pensamento, para Descartes,


é uma noção primitiva. Mas, que deve se entender por noção primitiva? São aqueles
noções que o intelecto não pode decompô-las em outra noções por serem as mais
simples (ser, número, duração, pensamento e extensão). Como diria Descartes, tais
noções são como modelos originais "sob cujo molde", diz ele, "nós formamos todos os
nossos conhecimentos". Sendo assim, as noções primitivas não pressupõem nenhum
outro conceito, e delas derivam todas as outras noções.

Agora tudo fica mais claro: no exercício da dúvida metódica, a existência que se chega é
a existência do pensamento. Isso significa, argumenta Silva,

que se fosse tomada qualquer outra função do que suponho que seja o Eu para
concluir a partir daí a existência, o argumento não teria o mesmo valor. Não
poderíamos dizer, por exemplo: eu respiro, logo existo, pois este argumento
depende da demonstração de que é verdade que eu respiro para que se possa
associar o ato de respirar à existência. Agora, se acho ou sinto que respiro e

79
concluo então que existo, o argumento é válido, mas precisamente porque se
estabelece a partir da representação e, na verdade, se mantém dentro dela [...]. E
isso vale para todos os argumentos semelhantes, o que indica que pensamento e
existência do pensamento são indissociáveis. É isso o que significa a descoberta de
si mesmo como ser pensante [Silva, p.54].

Segue-se daí que o conhecimento da alma é primeiro em relação ao corpo. A descoberta


do Eu penso mostra que o homem se conhece primeiro como coisa pensante, só depois
como corpo. Há, portanto, uma absoluta independência do pensamento sobre o corpo.
Segundo Silva, isto está

em perfeito acordo com o método, pois é natural, a partir das regras do


conhecimento já estabelecidas, que o espírito, numa simplicidade e autonomia, seja
conhecido antes que os objetos caracterizados por composição e independência,
como é o caso dos conteúdos das percepções sensíveis [Silva, p.55].

A prioridade da alma sobre o corpo é muito clara. Descartes não deixa nenhuma dúvida
quanto o alcance do conhecimento sensível ou natural. O conhecimento não depende
dos sentidos, da percepção sensorial das coisas, pois, para esse filósofo, os sentidos
enganam e, por isso, não podem ser tomados como fonte do conhecimento. Somente a
subjetividade conhece como as coisas são; ela é a fonte única e segura do conhecimento.

(b) BACON: A OBSERVAÇÃO COMO FONTE E FUNDAMENTO DO


CONHECIMENTO

Francis Bacon (1561-1626), considerado como o verdadeiro fundador das ciências


modernas, toma a experiência como a única fonte do conhecimento e critério de
demarcação científica. Neste sentido, para aquele pensador todo conhecimento da
natureza só será digno de credibilidade se tem sua origem na experiência. Isso não quer
dizer que a mente não cumpra nenhuma função na construção do saber. Logo no início
de sua obra, Novum Organum, escrita em 1620, sob a forma de aforismos, ele escreve
que

o homem, ministro da natureza, faz e entende tanto quanto consta, pela


observação dos fatos ou pelo trabalho da mente, sobre a ordem da natureza:
nem sabe nem pode mais (Bacon, 1984., p.13).

No aforismo seguinte, II, ele esclarece que

80
nem a mão numa nem o intelecto, deixados a si mesmos, logram muito.
Todos os feitos se cumprem com instrumentos e recursos auxiliares, de que
dependem, em igual medida, tanto o intelecto quanto as mãos (Bacon,
1984.,p.13).

No entanto, não se deve esquecer que a mente não é uma entidade autônoma, que extrai
de suas próprias entranhas a matéria-prima com a qual conhece o mundo empírico,
como assim entende Descartes. Não, não é assim que pensa Bacon. Para esse pensador,
o intelecto deixado entregue a si mesmo não vai além da produção de meros sofismas.
Como ele mesmo o diz,

o intelecto deixado a si mesmo, na mente sóbria, paciente e grave, sobretudo


se não está impedida pelas doutrinas recebidas, tenta algo na outra via, na
verdadeira, mas com escasso proveito. Porque o intelecto não regulado e sem
apoio é irregular e de todo inábil para superar a obscuridade das coisas
(Bacon, 1984.p.17).

O trabalho do intelecto deve estar, portanto, associado com o trabalho da observação da


natureza. Aliás, é o próprio Bacon que defende essa aliança. De fato, é ele mesmo quem
defende esse casamento do intelecto com a faculdade experimental, quando confessa
que

os que se dedicam as ciências foram ou empíricos ou dogmáticos. Os


empíricos, à maneira das formigas, acumulam e usam as provisões; os
racionalistas, à maneira das aranhas, de si mesmo extraem o que lhe serve
para a teia. A abelha representa a posição intermediária: recolhe a matéria-
prima das flores do jardim e do campo e com seus próprios recursos a
transforma e digere. Não é diferente o labor da verdadeira filosofia, que se
não serve unicamente das forças da mente, nem tampouco se limita ao
material fornecido pela história natural ou pelas artes mecânicas,
conservando intacto na memória. Mas ele deve ser modificado e elaborado
pelo intelecto. Por isso muito se deve esperar da aliança estreita e sólida
(ainda não levada a cabo) entre essas duas faculdades, a experimental e a
racional.

A expressão maior dessa aliança reside no método baconiano de investigação. De


acordo com Rossi, o método é, para Bacon,

um meio de ordenação e de classificação da realidade natural. Não é por


acaso que ele é apresentado como um "fio" capaz de guiar o homem dentro
da "caótica selva" e do "complicado labirinto" da natureza (Rossi.
1992.,p.203).

81
Se é assim para Bacon, então, é claro que o sujeito não vai à natureza de mãos vazias.
Para conhecê-la, ele tem que, primeiro, munir-se de certas regras procedimentais, pois
sem isso a pesquisa se faria às cegas, sem norte nem rumo. Consequentemente, a
experiência não se reduz à simples observação. Ela é construída, na medida em que não
pode prescindir de um método de investigação de coleta e ordenação organizadas dos
fatos, como precondição para estabelecer uma primeira ordem na caótica realidade da
natureza. Com efeito, Bacon tinha consciência de que a ciência, como apropriadamente
faz lembrar Oliveira,

sem um método racional que lhe servisse de guia e de mecanismo de controle


sistemático, avança às cegas, à maneira dos que se perdem na escuridão,
tudo tateando em busca do verdadeiro caminho (Oliveira. 2002., p.102).

A interrogação metódica da natureza é o caminho do progresso das ciências. É assim


mesmo que Oliveira entende o autor do Novum Orgaum, para quem, o maior pecado dos
pesquisadores dos séculos XVI e XVII era o de não disporem

de um método de descoberta e de aperfeiçoamento, que guiasse de maneira


sistemática a busca, o aperfeiçoamento e a expansão do que fossem
experimentados. Faltava-lhes também, segundo o ponto de vista de Bacon,
uma visão global que ajudasse a transpor os limites de cada arte
(Oliveira.2002.,p.102).

Daí a precaução de Bacon ao definir o seu método de pesquisa. Para ele, o método

é tão fácil de ser apresentado quanto difícil de se aplicar. Consiste no


estabelecer os graus de certeza, determinar o alcance exato dos sentidos e
rejeitar, na maior parte dos casos, o labor da mente, calcado muito de perto
sobre aqueles, abrindo e promovendo, assim, a nova e certa via da mente,
que, de resto, provém das próprias percepções sensíveis (Bacon.1984.,p.5/6).

Apoiado nos sentidos, o trabalho da mente pode ser utilizado pela observação. Sem esse
trabalho, a investigação teria que avançar às cegas pelos labirintos infindáveis da
natureza.

82
Mas isso, exigia de Bacon uma avassaladora crítica aos filósofos clássicos, que o levou
a romper com uma tradição filosófica de mais de dois mil anos e com a religião da
época.  Contra a filosofia clássica, ele introduz a perspectiva indutiva da experiência,
isto é, é através da observação criteriosa da realidade que o intelecto pode inferir, de um
número limitados de casos examinado, uma lei geral válida para todos os fenômenos
semelhantes aos que foram objetos de exame. Noutras palavras, a pretensão de Bacon
era de como elevar o conhecimento dos casos particulares para o geral. Acreditava,
assim, que poderia criar uma filosofia que favorecesse a humanidade com seus métodos
experimentais, totalmente a favor de ciência moderna, fundada numa forma de saber
teórico e prático.

Mas isso não era trabalho nada fácil de ser realizado. Bacon tinha pela frente a difícil
tarefa de livrar o mundo do feitiço, de dissolver os mitos e a imaginação, que
impediam o homem tornar-se senhor de si mesmo. Era preciso rasgar o véu do
encantamento, isto é, desencantar o mundo para abrir suas portas ao saber racionalmente
construído. Bacon tinha consciência de que a formação de noções e axiomas pela
indução seria, sem dúvida, o remédio próprio para livrar a mente dos mitos, ou, do que
ele chama de ídolos, que a impedia o sujeito seguir pela via segura do conhecimento.

Bacon atribui ao encantamento da mente a quatro tipos de ídolos. Dentre eles, o


primeiro que ele destaca são os ídolos da tribo que estão fundados na própria natureza
humana, na própria tribo ou espécie humana, como assim ele se refere a esse tipo de
falsa concepção das coisas. Com efeito, diz ele,

é falsa a asserção deque os sentidos do homem são a medida das coisas.


Muito pelo contrário, todas as percepções, tanto dos sentidos como da
mente, guardam analogia com a natureza humana e não com o universo
(Bacon, 1984.,p.21).

Noutras palavras, o que Bacon aí diz é nada mais do que são as percepções dos sentidos
e da mente, tomadas como verdade, que pertencem apenas ao homem e não ao universo.

Em segundo lugar, ele apresenta os ídolos da caverna, pois cada homem tem uma
“caverna ou uma cova”, como ele mesmo o diz, que corrompe a luz da natureza, seja
devido à natureza singular de cada um, seja devido à educação, seja pela leitura dos
livros ou pela autoridade de quem se respeita e admira. Em consequência disso, os

83
indivíduos adquirem percepções erradas em relação ao mundo e as coisas que os
cercam.

Em terceiro lugar, vem os ídolos do foro que se devem, dizem Bacon

ao comércio e consórcio entre os homens. Com efeito, os homens se associam


graças ao discurso e as palavras são cunhadas pelo vulgo. E as palavras,
impostas de maneira impropria e inepta, bloqueiam espantosamente o
intelecto (...). E os homens são, assim, arrastados a inúmeras e inúteis
controvérsias e fantasias (Bacon. 1984.,p.22).

Esse tipo de ídolo lembra o mundo das fake news. Com a diferença de que estas foram
deliberadamente produzidas para distorcer a realidade, enquanto as distorções
provocadas pelos ídolos da tribo nascem por ignorância, por falta de um conhecimento
capaz de penetrar nas profundezas insondáveis, aos olhos do senso comum, da natureza.

Finalmente, Bacon apresenta os ídolos do teatro, que se devem às diversas doutrinas


filosóficas herdadas do passado ensinadas nas escolas. Os ensinamentos de tais
filosofias são consideradas por Bacon como verdadeiros dogmas, verdadeiras fábulas,
que representam o mundo como fictício e teatral.

Com o desencantamento da mente, isto é, com a expulsão dos ídolos que distorcem o
intelecto humano, Bacon pode, então, apresentar seu programa de investigação para
conhecer a natureza, que ele, assim, resume:

só pode haver duas vias para a investigação e para a descoberta da verdade.


Uma, que consiste no saltar-se das sensações e das coisas particulares aos
axiomas mais gerais e, a seguir, descobrirem-se os axiomas intermediários
partir desses princípios e de sua inominável verdade. Esta é a que agora se
segue. A outra, que recolhe os axiomas dos dados dos sentidos e
particulares, ascendendo contínua e gradualmente até alcançar, em último
lugar, os princípios de máxima generalidade. Este é o verdadeiro caminho,
porém ainda não instaurado (Bacon. 1984.,p. 16).

Ao comentar essas duas vias para conhecimento da verdade, Bacon mostra que

tanto uma como a outra via partem dos sentidos e das coisas particulares e
terminam nas formulações da mais elevada generalidade. Mas é imenso
aquilo em que discrepam. Enquanto uma perpassa na carreira pela
experiência e pelo particular, a outra aí se detém de forma ordenada, como
cumpre. Aquela, desde o início, estabelece certas generalizações abstratas e
inúteis; esta se eleva gradualmente àquelas coisas que são realmente as mais
comuns na natureza (Bacon.1984.,p.17).
84
A primeira via é o que Bacon chama de método de “antecipações da natureza”; a
segunda via, ele designa por “interpretações da natureza”. Entre essas duas vias, as
antecipações não vão além de um conhecimento superficial da natureza, enquanto a
segunda via permite conhecer, com profundidade, os segredos da natureza. É o que
diz o autor do Novum Organum, quando afirma que

as antecipações são de muito mais valia para lograr o nosso assentimento,


que as interpretações; pois, sendo coligidas a partir de poucas instâncias e
estas as que mais familiarmente ocorrem, desde logo empolgam o intelecto e
enfunam a fantasia; enquanto que as interpretações, pelo contrário, sendo
coligidas a partir de múltiplos fatos, dispersos e distanciados, não podem, de
súbito; tocar o intelecto, de tal modo que, à opinião comum, podem parecer
quase tão duras e dissonantes quanto os mistérios da fé (Bacon.1984.,p.18).

A interpretação da natureza é o verdadeiro método do conhecimento. Para mostrar como


opera esse método, Bacon, no último aforismo do livro I, CXXX, lembra o leitor que

já é tempo de expor a arte de interpretar a natureza. A propósito devemos


deixar claro que, embora acreditemos aí se encontrarem preceitos muito
úteis e verdadeiros, não lhe atribuímos absoluta necessidade ou perfeição.
De fato, somos da opinião de que se os homens tivessem à mão uma
adequada história da natureza e da experiência, e a ela se dedicassem
cuidadosamente, e se, além disso, se impusessem duas precauções: uma, a de
renunciar às opiniões e noções recebidas; outra, a de coibir, até o momento
exato, o ímpeto próprio da mente para os princípios mais gerais e para
aqueles que se acham próximos; se assim procedessem, acabariam, pela
própria e genuína força de suas mentes, sem nenhum artificio, por chegar à
nossa forma de interpretação. A interpretação é, com efeito, a obra
verdadeira e natural da mente, depois de liberta de todos os obstáculos. Mas
com os nossos preceitos tudo será mais rápido e seguro (Bacon.1984.,p.89).

Para uma interpretação clara e produtiva da natureza, Bacon lança mão das quatro
causas aristotélicas, que são a causa material, formal, eficiente e final. Para
compreender como operam essas causas, é interessante tomar o exemplo que Aristóteles
usa de uma estátua. A causa material é o mármore ou bronze do qual é feito a
estátua; a causa formal será o retrato de uma pessoa ou de uma figura mítica; a causa
eficiente ou motora será o escultor que esculpiu a estátua; a causa final mostra a
finalidade para qual a estátua foi esculpida; se é o rosto de uma divindade, ela foi
moldada para ser posta num templo, para servir ao culto daquela divindade; esta é a
finalidade para qual o escultor criou a estátua.

85
Dessas quatro causas, Bacon exclui a causa final, pois, para ele, diferentemente de
Aristóteles, a natureza não é regida por leis teleológicas. Noutras palavras, se para o
filósofo grego tudo que existe tem um fim, logo, a finalidade da chuva seria a de regar a
terra para florescer a vegetação.

Depois de excluir a causa final do rol das causas que permitem investigar e, assim,
interpretar a natureza, Bacon adverte que

quem conhece a causa de alguma natureza (como a da brancura ou do calor)


somente em determinados sujeitos possui uma ciência imperfeita, que pode
produzir um efeito em apenas determinadas matérias (entre as que são
suscetíveis), esse possui igualmente um · poder imperfeito. E quem conhece
apenas a causa eficiente e a causa material (que são causas instáveis e não
mais que veículos que em certos casos provocam a forma), esse pode chegar
a novas descobertas em matéria algo semelhante e para isso preparada, mas
não conseguir mudar os limites mais profundos e estáveis das. coisas. Mas o
que conhece as formas abarca a unidade da natureza nas suas mais dissímeis
matérias e, em vista disso, pode descobrir e provocar o que até agora não se
produziu, nem pelas vicissitudes naturais, nem pela atividade experimental,
nem pelo próprio acaso e nem sequer chegou a ser cogitado pela mente
humana. Assim é que da descoberta das formas resultam a verdade na
investigação e a liberdade (Bacon.1984.,p.94/95).

A causa formal é, portanto, a principal causa para o trabalho de investigação da


natureza. É esta causa que possibilita, diria Bacon, descobrir os segredos ou a
verdadeira essência da natureza. É, pois, a descoberta da causa formal, isto é, da forma,
que permite o homem a penetrar nos segredos da natureza. O conhecimento dessa causa
é fundamental para que o homem possa dispor dos poderes da natureza e, assim, utilizá-
los para o seu desenvolvimento.

Para descobrir as formas da natureza, Bacon cria as chamadas tábuas de investigação. A


primeira delas é a tábua de presença na qual são registradas e todas as situações ou
instâncias em que determinado fenômeno analisado está presente; na segunda, tábua de
ausência, serão registrados todos os casos em que o fenômeno está ausente, e que
tenham uma certa afinidade com os registros na tábua de presença. Finalmente, vem a
tábua de comparação na qual são apresentados os graus ou comparação do fenômeno
analisado.

Eis aí de forma extremamente simplificada o método baconiano de interpretação da


natureza. Levado a cabo rigorosamente, diz Bacon,

86
poderemos dizer ter colocado nas mãos dos homens, como justos e fiéis
tutores, as suas próprias fortunas, estando o intelecto emancipado e, por
assim dizer, liberto da minoridade; daí, como necessária, segue-se a reforma
doestado da humanidade bem como a ampliação do seu poder sobre a
natureza. Pelo pecado o homem perdeu a inocência e o domínio das
criaturas. Ambas as perdas podem ser reparadas, mesmo que em parte,
ainda nesta vida; a primeira com a religião e com a fé, a segunda com as
artes e com as ciências (Bacon.1984.,p.230).

A aposta de Bacon nas no poder das artes e das ciências pode ser expressa
concretamente naquelas três grandes descobertas que mudaram o mundo:

a arte da imprensa, a pólvora e a agulha de marear. Efetivamente essas três


descobertas mudaram o aspecto e o estado das coisas em todo o mundo: a
primeira nas letras, a segunda na arte militar e a terceira na navegação. Daí
se seguiram inúmeras mudanças e essas (Bacon.1984.,p.88).

Vale recordar, diz Bacon, que a força dessas invenções e suas

consequências foram de tal ordem que não consta que nenhum império,
nenhuma seita, nenhum astro tenham tido maior poder e exercido maior
influência sobre os assuntos humanos que esses três inventos mecânicos
(Bacon.1984.,p.88).

É interessante observar que nessas três últimas passagens Bacon falar do poder que o
uso da ciência capacita o homem a dominar a natureza e, assim, o destino de toda a
humanidade. Mas, quem é esse homem de quem fala o autor do Novum Organum?
Posto nesses termos, parece que todos os homens serão igualmente beneficiados com o
progresso das ciências e das artes. Mas as coisas são bem assim como pensa Bacon. Não
existe esse homem de quem ele fala. O homem assim considerado não passa e uma
abstração vazia, falsa. Falar do homem sem se referir às classes sociais nas quais ele
está inserido, revela-se falso. Por sua vez, essas classes sociais são uma palavra vazia se
se desconhece os elementos em que elas se baseiam. Ora, as classes sociais, por sua
vez, são uma relação social entre uma classe de vendedores de força de trabalho, como
única mercadoria de que dispõem seus integrantes, e uma outra classe que lhe contrapõe
na condição de dona dos meios de produção.

Sem essa contextualização, as ciências aparecem como uma força a serviço de todos os
homens sem distinção. Ora, numa sociedade dividida em classes sociais, as ciências
estão a serviço da classe dominante, que dela se serve para impor seu projeto de
sociedade ligada a seus interesses. Assim, a descoberta da pólvora, da bússola e da

87
imprensa, que Bacon saúda como as três maiores invenções, que vieram para tirar o
homem da sua minoridade e de seu estado de isolamento continental, na verdade foram
postas a serviços da burguesia nascente, que pôde então se atirar mar adentro e explorar
continentes antes desconhecidos. O canhão serviu-lhe de passaporte para entrar em
terras nunca dantes visitadas. A imprensa foi apropriada para servir de meios de
comunicação da classe dominante.

O uso dessas três grandes invenções deixou seu rastro de sangue e fogo, cujas pegadas
ainda hoje continuam jorrando sangue pisado por todos os caminhos abertos pelas bolas
incandescentes dos canhões dos primeiros conquistadores. As veias da América Latina
foram aberta desse os remotos tempos em que os europeus, movidos por uma insaciável
sacri auri fames, maldita fome por ouro, aqui chegaram nessa comarca chamada
América Latina, como diz Galeano, que em sua narração conta que nesta parte do
mundo

havia de tudo entre os indígenas da América: astrônomos e canibais,


engenheiros e selvagens da Idade da Pedra. Mas nenhuma das culturas
nativas conhecia o ferro nem o arado, nem o vidro e a pólvora, nem
empregava a roda, a não ser em pequenos carrinhos. A civilização que se
abateu sobre estas terras, vinda do além-mar, vivia a ex0plosão criadora do
Renascimento: a América aparecia como uma invenção a mais,
incorporada, junto com a pólvora, imprensa papel e bússola, ao
efervescente nascimento da Idade Moderna. O desnível do desenvolvimento
de ambos os mundos explica a relativa facilidade com que sucumbiam as
civilizações nativas. Fernão Cortez desembarcou em Veracruz
acompanhado por mais de 100 marinheiros e 508 soldados; trazia 16
cavalos, 32 bestas, 10 canhões de bronze (...). Bastou-lhe isto. E, entretanto,
a capital dos astecas, Tenochtitláns, era cinco vezes maior do que Madri e
tinha o dobro da população de Sevilha, a maior das cidades espanholas (...).
Os indígenas foram derrotados também pelo assombro. O imperador
Montezuma recebeu, em seu palácio, as primeiras notícias: um grande
“monte” andava mexendo-se pelo mar. Outros mensageiros chegaram
depois ... muito espanto lhe causou ao ouvir como dispara um canhão, como
ressoa seu estrépido, como derruba as pessoas; e atordoavam-se os ouvidos.
E quando cai o tiro, uma bola de pedra sai de suas estranhas: vai chovendo
fogo (...). As bactérias e os vírus foram os aliados mais eficazes. Os europeus
traziam consigo, como pragas bíblicas, a varíola e o tétano, várias doenças
pulmonares, intestinais e venéreas, o tracoma, o tifo, a lepra, a febre
amarela, as cáries que apodreciam as bocas (...). Os índios morriam como
moscas; seus organismos não opunham defesas contra doenças novas. E os
que sobreviviam ficavam debilitados e inúteis (...). Darcy Ribeiro calcula
que mais da metade da população aborigena da América, Austrália e ilhas
oceânicas morreu logo no primeiro contato com os homens brancos
(Galeano.1981.,pp. 28-30).
88
É uma longa citação. Que importa se ela a ideia de que a ciência não tem dono. Tem,
sim. Numa sociedade de classes, como a capitalista, ela está a serviço do capital. Não se
pode, portanto, falar abstratamente com o faz Bacon, para quem as artes e as ciências
são as redentoras da humanidade. Tampouco pode aceitar a ideia de Adorno cuja tese
por ele defendida, partindo de Bacon, é a de que o Iluminismo é autoritário. Ora, o
Iluminismo é um mundo feito de homens, vivendo numa sociedade de classes, na qual
uns poucos são donos da propriedade dos meios de produção material, espiritual e
político. A expressão “o Iluminismo é autoritário” é, portanto, uma expressão falsa, uma
abstração vazia. Muito menos razão tem Popper que acredita que a epistemologia de
Bacon é uma forma abstrata de saber autoritária.

Ora, sem contextualizar o termo autoritário de falam Adorno e Popper, não se pode dar
crédito à tese que eles defendem. Não existe, em si, uma ciência autoritária oposta a
uma ciência democrática. É o uso da ciência que terá como consequência a criação de
um mundo autoritário.

(c) HUME E O DESTERRO DA RAZÃO

Hume abre o seu Tratado da Natureza Humana constatando que a metafísica parecia
uma arena, onde os filósofos só entravam em acordo para discutir. Nada ignoravam,
nada aprovavam; viviam zombando uns dos outros. Todos julgavam-se dono da
verdade, pois cada um estava reduzido às suas próprias ideias. Nesse contexto, diz
Hume, não era necessário um conhecimento muito profundo

para se descobrir quão imperfeita é a atual condição de nossas ciências. Mesmo a plebe
lá fora é capaz de julgar, pelo barulho e vozerio que ouve, que nem tudo vai bem aqui
dentro. Não há nada que não seja objeto de discussão e sobre o qual os estudiosos não
manifestem opiniões contrárias. A questão mais trivial não escapa à nossa controvérsia,
e não somos capazes de produzir nenhuma certeza a respeito das mais importantes.
Multiplicam-se as disputas, como se tudo fora incerto; e estas disputas são conduzidas
de maneira mais acalorada, como se tudo fora certo. Em meio a todo esse alvoroço, não
é a razão que conquista os louros, mas a eloquência; e ninguém precisa ter receio de não
encontrar seguidores para suas hipóteses, por mais extravagantes que elas sejam, se for
hábil o bastante para pintá-las em cores atraentes. A vitória não é alcançada pelos

89
combatentes que manejam o chuço e a espada, mas pelos corneteiros, tamborileiros e
demais músicos do exército (Hume,2001,p.19/20).

Que fazer, então, diante dessa situação? Para Hume só havia uma saída. Segundo ele,

o único meio para obter de nossas investigações filosóficas o êxito que delas esperamos
é abandonar o tedioso e extenuante método seguido até hoje e, ao invés de nos
apossarmos, de quando em vez, de um castelo ou um povoado de fronteira, rumarmos
diretamente para a capital, para o centro dessas ciências, ou seja, para a própria natureza
humana: senhores desse centro, poderemos esperar alcançar uma fácil vitória por toda a
parte. Partindo daí, poderemos estender a nossa conquista sobre todas as ciências, mais
intimamente ligada à vida humana, para depois proceder ulteriormente no
aprofundamento daquelas que são objetos de mera curiosidade. Não há questão de
alguma importância cuja solução não esteja abrangida na ciência do homem e não há
nenhuma questão que possa ser resolvida com certeza se antes não nos assenhorearmos
daquela ciência. Assim, preparando-nos para explicar os princípios da natureza humana,
nós na realidade visamos um sistema de todas as ciências, construído sobre uma base
quase inteiramente nova, a única sobre a qual podemos nos apoiar com segurança
(Idem.Ibidem,.p.21/22).

A pretensão de Hume é clara: para salvar as ciências, o único caminho a seguir é


abandonar o método até então seguido pela metafísica. Para tanto, ele se propõe a
construir um "tratado lógico", que tem como finalidade explicar os princípios e
operações da mente humana, ou seja: sua capacidade de raciocinar. A realização dessa
tarefa exige dele uma investigação dos processos genéticos das ideias, de modo a
descobrir como funciona a mente humana.

Mas como a mente deve proceder para conhecer o mundo? Qual é o seu fundamento? A
resposta é de todos conhecida: a experiência e a observação são as bases sobre as quais
todo o conhecimento deverá se edificar. Daí a crítica escrachada que dirige à metafísica
ao mandar lançar ao fogo todo e qualquer tratado que não se fundamente na matemática
ou na experiência (Idem.Ibidem.,p.21/22).
90
II. A TEORIA DAS IDEIAS E O EMPIRISMO IDEALISTA DE HUME

(a) HUME E SUA CONCEPÇÃO DE MUNDO

Antes de mais nada é mister esclarecer que a doutrina humeana das ideias se funda no
pressuposto de que a mente só pode ter acesso a percepções. Somente a partir delas é
que se pode ter alguma noção do mundo externo. Sendo assim, o homem jamais será
capaz de sair da esfera das percepções para conceber uma realidade diferente da que lhe
é dada pelos sentidos. Mesmo que seu pensamento se aventure a criar coisas que nunca
viu ou ouviu, como por exemplo, a ideia de sereia, tais coisas não passam de uma
combinação fantasiosa de percepções reais feita pela imaginação
(Idem.Ibidem,.p.36/37).

Esse esclarecimento inicial é central para que se possa compreender devidamente a


doutrina humeana das ideias. Realmente, Hume reduz sua doutrina das ideias ao estudo
das relações entre as percepções para conhecer o mundo. Não se trata, portanto, de um
estudo da relação entre as percepções e os objetos dos quais elas são possivelmente seus
produtos. Nem poderia, pois, para Hume, percepção e objeto não são coisas distintas;
uma e outra são a mesma coisa. Consequentemente, pode-se tomar o conceito de objeto
por percepção e vice-versa.

(b) DAS PERCEPÇÕES

Sabendo disso, o que Hume entende por percepções? De acordo com o que foi afirmado
há pouco, as percepções são os únicos objetos com os quais a mente lida, podendo ser
divididas em impressões (que são as percepções fortes e intensas) e ideias, - que são as
percepções mais fracas. É o que se lê na seguinte passagem da Investigação:

podemos... dividir todas as percepções do espírito em duas classes ou espécies, que se


distinguem por seus diferentes graus de força e de vivacidade. As menos fortes e menos
vivas são geralmente denominadas pensamentos ou ideias. A outra espécie não possui
um nome em nosso idioma e na maioria dos outros, porque, suponho, somente com fins
filosóficos era necessário compreendê-las sob um termo ou nomenclatura geral. Deixe-
nos, portanto, usar um pouco de liberdade e denominá-las impressões, empregando esta
palavra no sentido de algum modo diferente do usual. Pelo termo impressão, entendo,
pois, todas as nossas percepções mais vivas, quando ouvimos, vemos, sentimos,
91
amamos, odiamos, desejamos ou queremos. E as impressões diferenciam-se das ideias,
que são percepções menos vivas, das quais temos consciência, quando refletimos sobre
quaisquer das sensações ou dos movimentos acima mencionados (Hume, 2004,p.35/56).

Hume não se preocupa em explicar a distinção entre impressões e ideias porque, para
ele, qualquer pessoa sabe a diferença entre sentir e pensar. Trata-se de uma questão de
grau, pois todo homem é capaz de interpretar tal diferença em termos de força ou
fraqueza de suas percepções. Quando estas são produto imediato das sensações, paixões
e emoções, está-se no campo das impressões; ao passo que o pensamento e o raciocínio
são feitos de ideias, enquanto imagens fracas de alguma impressão sentida num tempo
passado.

As impressões e as ideias não só são distintas, como também são semelhantes. De


acordo com Smith, tal semelhança

poderia ser comparada à semelhança entre um objeto e sua imagem especular, visto que
ambos têm as mesmas características. Neste sentido, as percepções podem ser ditas
duplas, isto é, aparecem como impressões e como ideais (Smith, 1995,p.50).

(c) O PRINCÍPIO DA CÓPIA

Essa duplicidade das percepções implica uma outra relação entre as ideias e as
impressões. Realmente, se as ideias são reflexo de alguma sensação ou impressão
passadas, é óbvio que estas últimas são as causas das primeiras, isto é: das ideias. Sendo
assim, pode-se inferir que a ideia simples é uma cópia de uma impressão simples.

Para demonstrar que as impressões são as causas das ideias, Hume apresenta dois
exemplos. No primeiro, depois de constatar que há uma conexão constante entre as
ideias e impressões simples, procura, em seguida, saber de que lado está a dependência
entre elas. Seu argumento:

para dar a uma criança uma ideai do escarlate ou da laranja, do doce ou do amargo,
apresento-lhe os objetos, ou, em outras palavras, transmito-lhe essas impressões; mas

92
nunca faria o absurdo de tentar produzir as impressões excitando as ideias (Hume,
2001.p. 29).

Alguém poderia objetar que esse exemplo dado por Hume não tem nenhum caráter de
necessidade e universalidade. Não é prova para demonstrar que as ideias simples
dependem das impressões simples. Mas que diria Hume sobre isso? A resposta está na
investigação. Para se prevenir contra tal objeção, argumenta que aqueles que dizem que
a impressão simples não é a causa da ideia simples

têm apenas um método, e em verdade fácil, para refutá-la: mostrar uma ideia que, em
sua opinião, não deriva desta fonte. Incumbir-nos-ia então, se quiséssemos preservar
nossa doutrina, de mostrar a impressão ou percepção mais viva que lhe corresponde
(Hume, 2004.,p. 37).

O segundo exemplo por ele apresentado é o seguinte:

se ocorre que o defeito de um órgão prive uma pessoa de uma classe de sensação,
notamos que ela tem a mesma incapacidade para formar ideias correspondentes. Assim,
um cego não pode ter noção das cores nem um surdo dos sons (Idem.Ibidem,.p.37).

(d) DO PRINCÍPIO DA IMAGINAÇÃO

Reconstruindo o caminho até então percorrido por Hume, viu-se que ele começa com a
definição de percepção. Partindo daí, analisa como as percepções se dividem em ideias
e impressões para, em seguida, investigar o seu grau de complexidade, isto é: a natureza
simples e complexa das percepções. Depois disso, examina as relações de semelhança e
de conexão entre ideias e impressões. Descobre, então, que toda e qualquer ideia
simples é uma cópia de uma impressão semelhante.

Mas isso ainda não encerra de todo o inventário genético da teoria humeana das ideias.
Pressupondo que elas são cópias de impressões semelhantes, Hume precisa que as ideias
se dividem em duas espécies: ideias de memórias e ideias de imaginação. As primeiras
guardam, em diferentes graus, vestígios das impressões a que correspondem. Por isso,
estão presas à ordem e à forma das impressões originais.

93
Não é o que acontece com as ideias de imaginação. A imaginação goza de uma
liberdade quase ilimitada, que lhe permite decompor e recompor as ideias como bem
quiser. Mas não faz isto de maneira desordenada, caótica, pois, se assim o fosse, as
fábulas e poesias não passariam de um amontoado de ideias sem sentido. Deve,
portanto, existir alguns princípios que a imaginação deve observar para compor suas
ideais, pois, diz Hume,

fossem as ideais inteiramente soltas e desconexas, apenas o acaso as juntaria; e seria


impossível que as mesmas ideais simples se reunissem de maneira regular em ideais
complexas (como normalmente faz) se não houvesse algum laço de união entre elas,
algumas qualidades associativas, pela qual uma ideia naturalmente introduz outra
(Hume, 2001, p. 34).

Mas quais são esses princípios de associação das ideias de que fala Hume nesta citação?
Ele mesmo responde. Em suas próprias palavras,

as qualidades que dão origem a tal associação, e que levam a mente (...) de uma ideia a
outra, são três, a saber: semelhança, contiguidade e causa e efeito (Hume, 2001, 35).

(e) FUNÇÃO DO PRINCÍPIO DA CÓPIA E DO PRINCÍPIO DA IMAGINAÇÃO

Não é preciso muito esforço para entender a função desses princípios. A apresentação
do projeto humeano de saber, item "a" desta seção, deixou claro que a pretensão de
Hume é construir uma nova ciência fundada unicamente no método experimental. Única
alternativa, segundo assim entende, para combater a metafísica; ciência especulativa,
cujas ideias e conceitos não podem ser demonstrados, pois transcendem o mundo da
experiência.

Nessa tarefa, o princípio da cópia joga um papel fundamental, pois toda ideia não
fundada em raciocínios experimentais deve ser atirada ao fogo, pois "não contém senão
sofismas e ilusões". Segundo Smith, esta não é a única função do princípio da cópia.
Para ele,

Hume não afirma que a função do princípio da cópia é apenas, sobretudo, a de rejeitar
os conceitos filosóficos, mas antes a de investigar a origem da suposta ideia que lhes
corresponde para determinar o seu significado. Caso não se descubra essa origem nas

94
impressões, então o conceito será rejeitado como carente de significado e, caso seja
descoberta, a realidade da ideia está assegurada e sua natureza esclarecida (Smith,
1995,p.172).

Em seguida, Smith chama Hume em apoio à sua interpretação do princípio da cópia.


Deixando que ele fale, Smith concede-lhe a palavra:

ao trazer as ideias para uma luz tão clara, podemos razoavelmente esperar remover
toda a disputa que possa surgir com respeito a sua natureza e realidade
(Idem.Ibidem,.p.172).

Mesmo que Smith tenha razão, e decerto a tem, isto não invalida a ideia de que o
princípio da cópia tem como função rejeitar os conceitos metafísicos. Além dessa
função, o papel do princípio da cópia, como entende esse autor, é o de procurar a
impressão original de uma ideia com a finalidade de esclarecer seu significado.

Mas, quanto ao princípio da imaginação, qual é a sua função? Vistos que os princípios
que regem a imaginação são da ordem de três (semelhança, contiguidade e causa e
efeito), eles têm como função explicar como funciona o mundo, pois é mediante a união
e a articulação das percepções que se conhece a realidade. Portanto, diferentemente do
princípio da cópia, os da imaginação têm a função de apreender o mundo mediante a
articulação das relações entre as percepções.

(f) O MUNDO DE HUME: UM MUNDO FEITO DE IDEIAS

Aí está, ainda que de forma apressada, a descrição do processo genético de formação


das ideias. Todas oriundas das impressões, as ideias têm como fonte unicamente o chão
da experiência. Quanto a isto, o princípio da cópia não deixa nenhuma dúvida. Seu uso
permite decompor as ideias complexas em ideias simples, revelando assim as
impressões originais das quais são derivadas. Por sua vez, os princípios da imaginação
recompõem as ideias simples em ideias complexas para formar uma imagem do mundo.
Este não passa de uma construção associativa mediante a recomposição das ideias
simples em ideias complexas.

Nesse sentido, pode-se dizer que o mundo que o homem conhece é um mundo
construído com ideias. De fato, se os únicos objetos que estão presentes na mente são as

95
percepções e as ideias nada mais são do que cópias de algo presente na mente, então, o
homem não tem como formar a ideia de alguma coisa diferente das percepções. Mas
isto não nega as bases empíricas do projeto de saber de Hume? Não, pois todas as
relações entre as percepções são derivadas da experiência e da observação. Ademais, o
princípio da cópia limita o conhecimento da realidade ao campo da experiência, uma
vez que toda ideia simples é uma cópia de uma impressão semelhante. Entretanto, esse
empirismo está confinado à reflexão sobre as percepções, que são os únicos objetos de
que dispõe a mente. Dessa reflexão depende as doutrinas da causalidade e do mundo
exterior. A relação entre causa e efeito, por exemplo, é construída mentalmente, pois da
percepção de um objeto, a imaginação, por força do hábito, é levada à ideia do outro. A
relação é, portanto, entre percepções; não entre estas e os objetos externos.

Isto posto, convém perguntar a Hume como ele aplica a teoria das ideias ao
conhecimento do mundo. Para os propósitos que se tem em mente, será dada atenção
especial à relação de causalidade. E isto, por duas razões: primeiro, porque esta relação
é a base sobre a qual são construídas as ciências, pois do seu conhecimento depende a
capacidade do homem de controlar eventos e governar o futuro. Segundo, porque o
conceito de causalidade é o mais importante conceito da metafísica.

III. APLICAÇÃO DA TEORIA DAS IDEIAS AO CONHECIMENTO DO MUNDO

(a) DAS RELAÇÕES DE IDEIAS E DE FATO

Para Hume, há dois tipos de conhecimento. O que se refere às relações de ideias e o que
concerne às relações de fato. Do primeiro tipo, diz Hume,

são as ciências da geometria, álgebra e aritmética, em suma, toda afirmação que é


intuitiva ou demonstrativamente certa. Que o quadrado da hipotenusa é igual ao
quadrado dos dois lados é uma proposição que expressa uma relação entre essas
grandezas. Que três vezes cinco é igual à metade de trinta expressa uma relação entre
esses números. Proposições desse tipo podem sea descobertas pela simples operação do
pensamento, independentemente do que possa existir em qualquer parte.- do universo.

96
Mesmo que jamais houvesse existido um círculo ou triângulo na natureza, as verdades
demonstradas por Euclides conservariam para sempre sua certeza e evidência (Hume,
2004, p. 53).

Quanto às ideias de fato, Hume comenta que são diferentes das relações de ideias, isto é,
sua verdade e evidência não são da mesma natureza das exigidas pelas ideias de razão.
Questões de fato, como ele o diz,

não são apuradas da mesma maneira, e tampouco nossa evidência de sua verdade, por
grande que seja, é da mesma natureza que a precedente. O contrário de toda questão de
fato permanece sendo possível, porque não pode jamais implicar contradição, e a mente
o concebe com a mesma facilidade e clareza, como algo perfeitamente ajustável à
realidade. Que o sol não nascerá amanhã não é uma proposição menos inteligível nem
implica mais contradição que a afirmação de que ele nascerá; e seria vão, portanto,
tentar demonstrar sua falsidade. Se ela fosse demonstrativamente falsa, implicaria uma
contradição e jamais poderia ser distintamente concebida pela mente. (Hume,
2004.,p.53/54).

É dentro do campo das ideias de fato que Hume desenvolve a sua teoria da causalidade.
Isto porque, para ele, todos os raciocínios que se referem aos fatos parecem fundar-se na
relação de causa e efeito. Apenas por meio desta relação, diz ele, ultrapassamos os
dados da nossa memória e de nossos sentidos.

(b) DA CAUSALIDADE

Os elementos da análise que estão presente na relação de causa e efeito são (i) a
impressão dos sentidos ou da memória, (ii) a inferência e (iii) a ideia associada. Destes,
cabe destacar a inferência, pois dela depende a associação entre a causa e o efeito. Mas
não se pode deixar de comentar, ainda que de maneira apressada, algumas observações
sobre a impressão que ocasiona o raciocínio causal. A este respeito, são dignas de nota
as análises de Hume sobre a origem das impressões sensíveis. Segundo ele, esta origem
é totalmente desconhecida, podendo ser atribuída ao objeto externo, a Deus ou a mente.
Por isso, é impossível provar a existência do mundo material a partir das percepções.
Mas isto não tem importância e nem o constrange, pois, segundo ele,

97
podemos sempre fazer inferências partindo da coerência de nossas percepções, sejam
estas verdadeiras ou falsas, representem elas a natureza de maneira correta ou sejam
meras ilusões dos sentidos (Hume, 2001,p. 113)

Com isso, Hume declara, com todas as letras, o caráter mentalista de sua teoria. Suas
análises, esclarece Smith,

dizem respeito tão somente às percepções em nossa mente e ao modo como estão
organizadas, estando toda a relação com a realidade, com a natureza das coisas ou com
a verdade excluída de consideração (...). Suas análises da relação de causa e efeito não
implicam outra coisa além das impressões e ideias na mente (Smith, 1995,p.77).

Ora, se não é possível demonstrar a origem da impressão; se esta é totalmente


desconhecida, que dizer da inferência que liga a causa ao efeito? Como se descobre essa
relação?

A resposta que se encontra em Hume é de todos conhecida. Para ele,

conhecimento dessa relação não se obtém, em nenhum caso, por raciocínios a priori,
porém nasce inteiramente da experiência quando vemos que quaisquer objetos
particulares estão constantemente conjugados entre si (Hume, 2004.p.49/50).

E ele esclarece o porquê:

apresente-se um objeto a um homem dotado, por natureza, de razão e habilidades tão


fortes quanto possível; se o objeto lhe é completamente novo, não será capaz, pelo
exame mais minucioso de suas qualidades sensíveis, de descobrir nenhuma de suas
causas ou de seus efeitos. Mesmo supondo que as faculdades racionais de Adão fossem
inteiramente perfeitas desde o primeiro momento, ele não poderia ter inferido da fluidez
e transparência da água que ela o afogaria, ou da luz ou do calor do fogo, que este o
consumiria (Idem.Ibidem,.p.56).

Além disso, a relação entre causa e efeito não é singular. Uma causa pode produzir
vários efeitos, como mostra o exemplo abaixo. Se é assim, por que preferir um efeito a
outro? É o que Hume força o leitor a se perguntar diante da seguinte situação:
98
se qualquer objeto nos fosse mostrado, e se fôssemos solicitados a pronunciar-nos sobre
o efeito que resultará dele, sem consultar observações anteriores; de que maneira, eu vos
indago, deve o espírito proceder nesta investigação? Terá de inventar ou imaginar
algum evento que considera como efeito do objeto; e é claro que esta invenção deve ser
inteiramente arbitrária. O espírito nunca pode encontrar pela investigação e pelo mais
minucioso exame o efeito na suposta causa. Porque o efeito é totalmente diferente da
causa e, por conseguinte, jamais pode ser descoberto nela [...]. Quando vejo, por
exemplo, que uma bola de bilhar desliza em linha reta na direção de outra, mesmo se
suponho que o movimento na segunda me seja acidentalmente sugerido como resultado
de seu contato ou impulso, não posso conceber que cem diferentes eventos poderiam
igualmente resultar dessa causa? Não podem ambas as bolas permanecer em absoluto
repouso? Não pode a primeira bola voltar em linha reta ou ricochetear na segunda em
qualquer linha ou direção? Todas essas suposições são compatíveis e concebíveis. Por
que, então, deveríamos dar preferência a uma que não é mais compatível ou concebível
que o resto? Todos os nossos raciocínios a priori nunca serão capazes de nos mostrar
fundamento para esta preferência (Idem.Ibidem,.p.,p.58).

Para convencer de uma vez por toda que as relações de causa e efeito somente podem
ser descobertas pela experiência, Hume argui que, sendo o efeito totalmente diferente da
causa,

o espírito nunca pode encontrar pela investigação e pelo mais minucioso exame o efeito
na suposta causa (...). O movimento na segunda bola de bilhar é um evento distinto do
movimento na primeira, já que não há na primeira o menor indício da outra
(Idem.Ibidem,.p.p.58).

Conclusão:

todo efeito é um evento distinto de sua causa. Portanto, não poderia ser descoberto na
causa e deve ser inteiramente arbitrário concebê-lo ou imaginá-lo a priori. E mesmo que
o efeito tenha sido sugerido, a conjunção de efeito com sua causa deve parecer
igualmente arbitrária, visto que há sempre outros efeitos que para a razão devem parecer
igualmente coerentes e naturais. Em vão, portanto, pretenderíamos determinar qualquer
evento particular ou inferir alguma causa ou efeito sem a observação da experiência
(Idem.Ibidem,.p.59).

99
Ora, se a relação de causa e efeito só é dada pela experiência, então, uma causa última
está fora do alcance do espírito. Este não pode ir além da observação. É assim mesmo
que pensa Hume. Para ele,

reconhece-se que a suprema conquista da razão humana é reduzir os princípios


produtivos dos fenômenos naturais a uma maior simplicidade, subordinar os múltiplos
efeitos particulares a algumas poucas causas gerais por meio de raciocínios baseados na
analogia, experiência e observação. Quanto às causas dessas causas gerais, entretanto,
será em vão que procuremos descobri-las; e nenhuma explicação particular delas será
jamais capaz de nos satisfazer. Esses móveis princípios fundamentais estão totalmente
vedados à curiosidade; à investigação humanas. Elasticidade, gravidade, coesão de
partes, comunicação de movimento por impulso – essas são provavelmente as últimas
causas e princípios que nos será dado descobrir na natureza, e devemos nos dar por
satisfeitos se, por meio de um cuidadoso raciocínio e investigação, pudermos reportar os
fenômenos particulares a esses princípios gerais, ou aproximá-los deles
Idem.Ibidem,.p.p.59/60).

Segue-se de tudo isso que é apenas pela experiência que se pode inferir a existência de
um objeto da existência de outro. Hume explica a natureza dessa experiência nos
seguintes termos:

lembramo-nos de ter tido exemplos frequentes da existência de objetos de certa espécie;


e também nos lembramos que os indivíduos de outra espécie de objetos sempre
acompanharam os primeiros, existindo em uma ordem regular de contiguidade e
sucessão em relação a eles. Assim, lembramos de ter visto aquela espécie de objetos que
denominamos chama, e de ter sentido aquela espécie de sensação que denominamos de
calor. Recordamo-nos, igualmente, de sua conjunção constante em todos os casos
passados. Sem mais cerimônias, chamamos à primeira de causa e a segunda de efeito, e
inferimos a existência de uma da existência de outra. Em todos os casos com base nos
quais constatamos a conjunção constante entre causas e efeitos particulares, tanto a
causa como o efeito foram percebidos pelos sentidos, e são recordados. Mas em todos
os casos em que raciocinamos a seu respeito, apenas um é percebido ou lembrado,
enquanto o outro é suprido em conformidade com nossa experiência passada (Hume,
2001.p.116).

100
A relação de causa e efeito apoia-se, portanto, unicamente na experiência. Quando os
sentidos são despertados pela presença de um objeto qualquer, imediatamente a mente
recorda de sua conjunção frequente com outro, com base na experiência passada. Nessa
operação, a mente infere a ideia de um objeto a partir de uma impressão presente. Há,
portanto, aí, uma inferência. Ela é puramente mental, pois não há nada nas qualidades
sensíveis dos objetos externos que mostre uma ligação entre eles. É a mente que liga
uma impressão presente com a ideia de outro objeto, que outrora aparecia sempre
conjuntamente com o que está sendo observado ou lembrado.

Se é o espírito que realiza essa inferência, de que faculdade ele se serve para realizá-la?
Qual é a faculdade responsável pelo raciocínio experimental, que conecta uma
impressão presente à ideia de um objeto denominado de causa ou efeito? A razão ou a
imaginação? Para Hume, esta questão é central para resolver de uma vez por toda a
questão de saber se é a inferência que depende da conexão ou é esta que depende
daquela. Depois de mostrar que a conjunção constante entre dois objetos não é
suficiente para fazer declarar que um é a causa e o outro é o efeito, ele se pergunta pela
natureza dessa relação. Em suas próprias palavras, propõe a seguinte questão:

tendo visto que a transição que fazemos de uma impressão, presente à memória ou aos
sentidos, para a ideia de um objeto que denominamos causa ou efeito está fundada na
experiência passada e em nossa lembrança de sua conjunção constante, a próxima
questão é: a experiência produz a ideia por meio do entendimento ou da imaginação? É
a razão que nos determina fazer a inferência, ou uma certa associação e relação de
percepções? Se fosse a razão, ela o faria com base no princípio de que os casos de que
não tivemos experiência devem se assemelhar aos casos de que tivemos experiência, e
de que o curso da natureza continua sempre uniformemente o mesmo. A fim de
esclarecer essa questão, portanto, passemos ao exame de todos os argumentos que
podem supostamente fundamentar essa proposição (Idem.Ibidem,.p.117/18).

A resposta que Hume dá a essa questão é de todos conhecida. Para ele, não é a razão
que produz os raciocínios experimentais. Se o fosse, ela seria capaz de demonstrar que o
curso da natureza deve permanecer uniformemente o mesmo e que o futuro deve ser
conforme ao passado, isto é; que eventos não observados serão semelhantes aos que
foram objeto de alguma experiência no passado. Tal inferência não é possível; não pode
ser demonstrada. A prova disso, arremata ele, é a de que a mente sempre pode conceber

101
que qualquer efeito se segue de uma causa; logo, se tudo o que se pode conceber é
possível, então, não pode ser demonstrado como falso. Com efeito, da mesma maneira
que alguém pode experimentar o fato de que eu estou aqui e agora diante dessa
máquina, pode também experimentar o contrário: que eu não estou aqui e agora diante
dessa máquina. Pode, igualmente, conceber distintamente estes dois fatos, sem que isso
implique qualquer contradição; o contrário de um fato é sempre possível. É assim
mesmo que Hume demonstra porque a inferência, que leva o espírito a transitar da
impressão de um objeto à ideia de outro, não se funda na razão. Em suas próprias
palavras, diz ele:

nosso método anterior de raciocínio nos convencerá facilmente de que não pode haver
nenhum argumento demonstrativo para provar que os casos de que não tivemos
experiência se assemelham àqueles de que tivemos experiência. Podemos ao menos
conceber uma mudança no curso da natureza, o que é prova suficiente de que tal
mudança não é absolutamente impossível (Idem.Ibidem,.p.118).

Hume vai mais longe ainda para demonstrar que os raciocínios concernentes a causas e
efeitos não são produzidos pela razão. Não só esta, diz ele, é incapaz de provar que o
curso da natureza tem de continuar uniformemente o mesmo, como também nenhum
argumento tirado da experiência é capaz de demonstrar essa uniformidade. Caso seja
tentado, não se pode evitar cometer uma petição de princípio; isto é: um raciocínio
circular. Como assim? A resposta que se encontra em Hume é a de que todo
conhecimento empírico é derivado da relação de causa e efeito. Esta, por sua vez,
funda-se na experiência; e os raciocínios experimentais pressupõem que o futuro é
conforme o passado. Se é assim, argumentar que o futuro será igual ao passado, com
base em conhecimentos derivados da experiência, é voltar ao ponto de partida e assim
pressupor o que se pretendia demonstrar.

Hume demonstra, assim, que a inferência causal não pode ser teoricamente justificada,
pois os argumentos demonstrativos, como também os conhecimentos derivados da
experiência, não são capazes de provar que o futuro será igual ao passado. Noutras
palavras, não há como provar que o curso da natureza segue uma mesma uniformidade.

Conclusão: se a inferência causal não se funda na razão nem tampouco no


entendimento, então, só resta a imaginação, enquanto faculdade que permite a mente

102
transitar da impressão de um objeto para a ideia de outro objeto. Mas em que se funda a
imaginação para operar essa transição? Hume tem a resposta. Para ele,

apenas o COSTUME nos determina a supor que o futuro seja conforme ao passado.
Quando vejo uma bola de milhar se mover em direção a outra, minha mente é
imediatamente levada pelo hábito a seu efeito usual, e antecipa minha visão,
concebendo a segunda bola em movimento. Não há nada nesses objetos, considerados
de modo abstrato e independentemente da experiência, que me leve a formar uma tal
conclusão; e mesmo eu ter tido a experiência repetida de vários efeitos dessa espécie,
não há nenhum argumento que me determine a supor que o efeito será conforme à
experiência passada. Os poderes pelos quais os corpos operam são inteiramente
desconhecidos. Só percebemos suas qualidades sensíveis; e que razão temos para que
os mesmos poderes estarão sempre em conjunção com as mesmas qualidades sensíveis
(Idem.Ibidem,.p.689/90).

É o costume, portanto, que determina a mente supor que o futuro será conforme o
passado. Por meio da conjunção constante entre dois objetos, o espírito adquire o hábito
de passar, na imaginação, da percepção de um para a ideia do outro. O costume
constitui-se, assim, no princípio explicativo da causalidade. Deste princípio depende
todo o conhecimento do mundo sobre as questões de fato e de existência, uma vez que
estas se fundam na relação de causa e efeito.

Mas o conhecimento assim adquirido precisa gozar do assentimento da maioria das


pessoas. Não só basta produzir conhecimento, é preciso que as pessoas acreditem que o
conhecimento é verdadeiro. Por isso, o costume deve não só criar o hábito de transpor a
mente da impressão de um objeto para a ideia de um outro, como também criar o
sentimento de que as pessoas serão levadas a acreditar na existência dessa ideia. É nesse
ponto que Hume introduz a ideia de crença, enquanto condição fundamental na
produção do conhecimento.

A ideia de crença joga papel fundamental na teoria do conhecimento de Hume. De fato,


se, para ele, o conhecimento repousa unicamente na suposição de que o curso da
natureza continuará uniformemente o mesmo, então todo o conhecimento pode ser posto
em dúvida, uma vez que não há nada de absolutamente certo no mundo. E como o
espírito, para agir no mundo, precisa conhecê-lo, ele tem de se agarrar em algumas

103
verdades, mesmo que estas sejam problemáticas, isto é: puramente hipotéticas e
provisórias.

Mas qual é a origem da crença? Pode-se crer em qualquer coisa que a imaginação cria
ou inventa? Se essa pergunta fosse dirigida a Hume, sua resposta, decerto, seria
negativa. Para ele, a crença deve estar ancorada em algum fato da experiência, pois,
caso contrário, ela seria destituída de todo e qualquer fundamento. Vale a pena deixar
que ele próprio justifique sua resposta. Literalmente, diz ele,

deve ser conveniente notar que, embora nossas conclusões derivadas da experiência nos
leva além de nossa memória e de nos assegurem da realidade de fatos que ocorrem em
lugares mais distantes e em épocas remotas, é necessário que um fato esteja sempre
presente aos sentidos e à memória, do qual podemos de início partir para tirar
conclusões. Se um homem encontrasse em num país deserto os remanescentes de
edifícios suntuosos, concluiria que o país, em tempos remotos, tinha sido cultivado por
habitantes civilizados; mas, se nada dessa natureza lhe ocorresse, jamais poderia
chegar a semelhante inferência. Pela história, conhecemos os eventos de épocas
passadas; todavia, devemos prosseguir consultando os livros que contêm esses
ensinamentos e, a partir daí, remontar nossas inferências de um testemunho a outro até
chegar às testemunhas oculares e aos expectadores desses eventos remotos. Numa
palavra, se não partirmos de um fato presente à memória ou aos sentidos, nossos
raciocínios serão puramente hipotéticos; e seja qual for o modo como estes elos
particulares estejam ligados entre si, toda a cadeia de inferência não teria nada que
lhe servisse de apoio e jamais por meio dela poderíamos chegar ao conhecimento de
uma existência real. Se vos perguntasse por que acreditais em determinado fato que
relatais, deveis indicar-me alguma razão; e esta razão será um outro fato em conexão
com o primeiro. Entretanto, como não podeis proceder desta maneira in infinitum,
deveis finalmente terminar por um fato presente a vossa memória ou aos vossos
sentidos, ou deveis admitir que vossa crença é inteiramente sem fundamento Hume,
2004,p. 63).

Mas as ideias produzidas pela imaginação estão, também, de alguma forma, ancoradas
na experiência, pois o seu poder criador não ultrapassa a faculdade de combinar, de
transpor, aumentar ou diminuir os materiais que foram fornecidos à mente pelos
sentidos. Realmente, quando o espírito concebe a ideia de um cavalo virtuoso, por

104
exemplo, o faz combinando a ideia de virtude, própria do ser humano, com a figura de
cavalo, que é um animal bem conhecido.

Se é assim, em que a crença se diferencia da ficção? A resposta que se encontra em


Hume é muito clara: a crença não é uma ideia. Se o fosse, a imaginação poderia unir a
ideia de crença com qualquer outra ideia e crer em qualquer ficção. Para que não
subsista nenhuma dúvida, é melhor deixar a explicação desta questão com o próprio
Hume. Dando-lhe a palavra, ele esclarece que

não há nada mais livre do que a imaginação humana; embora não possa ultrapassar o
estoque primitivo de ideias fornecidas pelos externos e internos, ela tem poder ilimitado
para misturar , combinar, separar e dividir estas ideais em todas as variedades da ficção
e da fantasia imaginativa e novelesca. Ela pode inventar uma série de eventos com
toda a aparência de realidade, pode atribuir-lhes um tempo e um lugar particulares,
concebê-los como existentes e descrevê-los com todos os pormenores que
correspondem a um fato histórico, no qual ela acredita com a máxima certeza. Em que
consiste, pois, a diferença entre tal ficção e a crença? Ela não se localiza simplesmente
em uma ideia particular anexada a uma concepção que obtém nosso assentimento, e
que não se encontra em nenhuma ficção conhecida. Pois, como o espírito tem
autoridade sobre todas as suas ideias, poderia voluntariamente anexar esta ideia
particular a uma ficção e, por conseguinte, seria capaz de acreditar no que lhe
agradasse, embora se opondo a tudo que encontramos numa experiência diária.
Podemos, quando pensamos, juntar a cabeça de um homem ao corpo de um cavalo,
mas não está em nosso poder acreditar que semelhante animal tenha alguma vez
existido (Idem.Ibidem,.p.65 .

No parágrafo seguinte, Hume conclui seu raciocínio para, finalmente, apresentar o


conceito de crença. Em suas próprias palavras, lê-se

que a diferença entre a ficção e a crença se localiza em algum sentimento ou maneira de


sentir, anexado à última e não à primeira, que não depende da vontade e não pode ser
manipulado a gosto (Idem.Ibidem,.p.65).

105
A crença não é, portanto, uma ideia. Ela é uma maneira de sentir, isto é, de conceber as
ideias. A crença nasce do hábito que, ao transportar a mente de uma impressão para a
ideia correlata, cria o sentimento de que a ideia correlata existe de fato.

No geral, aí está o cerne da teoria do conhecimento de Hume, seu tratado lógico, sobre o
qual devem se fundar todas as ciências. Estas nascem, portanto, do hábito de associar
ideias em consequência da repetição da experiência. Do conhecimento de causas deriva
todo o conhecimento teórico, posto que esta relação não só é a mais forte de todas, mas
dela depende a capacidade humana de controlar eventos e governar o futuro.

Mas visto que essa relação depende unicamente da associação e relação de percepções
realizadas pela mente, que a faz acreditar que o futuro será conforme o passado, tanto a
universalidade como a necessidade, pretendidas pela razão, não passam de meros
hábitos psíquicos. Consequentemente, as ciências não vão além de um arranjo
conjectural. Noutras palavras, não há verdade nas ciências; estas são uma mera questão
de crença, criada pelo hábito. Não sem razão, para Chauí, Hume transforma a
ciência numa ilusão. Ela diz porque:

ciência, mero hábito psicológico ou subjetivo, torna-se afinal uma ilusão, e a realidade
tal como é em si mesma (isto é, a realidade objetiva) jamais poderá ser conhecida pela
nossa razão. Basta, por exemplo, que um belo dia eu ponha um líquido no fogo e, em
lugar de vê-lo ferver e aumentar de volume, eu o veja gelar e diminuir de volume, para
que toda ciência desapareça, já que ela depende de repetição, da frequência, do hábito
de sempre percebermos uma certa sucessão de fatos à qual, também por hábito, demos o
nome de princípio da causalidade (Chauí, 1994.,p. 74).

(II) KARL POPPER: CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

1. O MAU INFINITO DA INDUÇÃO

Em 1935, vem a público o primeiro livro de Karl Popper (1902-1994), A Lógica da


Investigação Cientifica, cujo objetivo era apresentar uma análise de como as ciências
empíricas, recorrendo à experiencia e à observação, constroem suas teorias, para, em
seguida, testá-las passo a passo. Na verdade, o confronto maior de Popper é com o

106
círculo de Viena, o chamado positivismo lógico, que estabelece os limites entre ciência
e pseudociência, na base da distinção entre proposições com e sem significado. Tal
distinção se estabelece por meio do princípio da verificabilidade. Para saber se uma
proposição tem ou não sentido, basta verificar se o que ela enuncia pode ser constatado
via observação. Se alguém diz , por exemplo, que está chovendo, basta sair fora de casa
para ver se tal coisa é verdadeira ou não. Caso seja confirmado que chove, a proposição
tem sentido; caso contrário, trata-se de uma assertiva falsa.

Na verdade, o grande embate de Popper é com o método indutivo, que, parte de


enunciados singulares, como descrição dos resultados de observações e experimentos,
passa-se aos enunciados universais, tais como as hipóteses e teorias. Ora, Hume já havia
constatado que toda e qualquer relação de fato são descobertas, não pela razão, mais,
sim, pela experiência e observação. Para saber se o pudim, por exemplo, é doce, há que,
primeiro, prová-lo. Quem nunca comeu pudim, não poderá inferir de suas qualidades
sensíveis que se trata de um doce. A razão não tem como fazer tal inferência. “Adão,
ainda que supuséssemos que suas faculdades racionais fossem inteiramente perfeitas
desde o início”, diz Hume,

não poderia ter inferido da fluidez e transparência da água que ela o sufocaria, nem da
luminosidade e calor do fogo que este poderia consumi-lo. Nenhum objeto jamais
revela, pelas qualidades que aparecem aos sentidos, nem as causas que o produziram,
nem os efeitos que dele provirão; e tampouco nossa razão é capaz de extrair, sem
auxílio da experiência, qualquer conclusão referente à existência efetiva de coisas ou
questões de fato (Hume, 2004,p.56).

Como visto antes, Hume faz questão de demarcar a diferença entre as relações de ideias
e as relações de fato. Do primeiro tipo são as ciências da geometria, álgebra e
aritmética, em suma, toda afirmação que é intuitiva ou demonstrativamente certa. Que
o quadrado da hipotenusa é igual ao quadrado dos dois lados é uma proposição que
expressa uma relação entre essas grandezas. Que três vezes cinco é igual à metade de
trinta expressa uma redação entre esses números. Proposições desse tipo podem ser
descobertas pela simples operação do pensamento, independentemente do que possa
existir em qualquer parte do universo. Mesmo que jamais houvesse existido um círculo
ou triângulo na natureza, as verdades demonstradas por Euclides conservariam para
sempre sua certeza e evidência” (Hume, 2004, 53).

107
Quanto às relações de fato, diz Hume,

estas não são apuradas da mesma maneira, e tampouco nossa evidência de sua verdade
por grande que seja, é da mesma natureza que a precedente. O contrário de toda questão
de fato permanece sendo possível, porque não pode jamais implicar contradição, e a
mente o concebe com a mesma facilidade e clareza, como algo perfeitamente ajustável à
realidade. Que o sol não nascerá amanhã não é uma proposição menos inteligível nem
implica mais contradição que a afirmação de que ele nascerá; e seria vão, portanto,
tentar demonstrar sua falsidade. Se ela fosse demonstrativamente falsa, implicaria uma
contradição e jamais poderia ser distintamente concebida pela mente (Hume, 2004,
53/54).

Diferentemente das relações de ideias, o contrário das relações de fato é sempre possível
porque o contrário de um fato não implica contradição. O exemplo dado por Hume, de
que o sol não nascerá amanhã é tão inteligível quanto a afirmação de que ele nascerá
amanhã, mostra que as verdades obtidas pela indução não são infalíveis. O fato de mil
observações, por exemplo, mostrarem que um evento sempre vem acompanhado por
outro, não garante que a observação mil e uma se repetirá igualmente como as mil
observadas anteriormente.

Isso significa que, por maior que seja o número de casos singulares observados, não se
pode daí inferir uma lei geral válida para todos os outros eventos que não foram ainda
observados.

Com isso, Hume abriu o caminho para Popper jogar por terra a concepção de ciência
fundada na indução. Pois, diz este último,

de um ponto de vista lógico, está longe de ser óbvio que estejamos justificados ao inferir
enunciados universais a partir dos singulares, por mais elevado que seja o número destes
últimos; pois qualquer conclusão obtida desta maneira pode sempre acabar sendo falsa:
não importa quantas instâncias de cisnes brancos possamos observar, isso não justifica a
conclusão de que todos os cisnes são brancos (Popper, 1980.,p. 3).

108
A indução não pode, portanto, ser utilizada como critério de demarcação entre a ciência
e as pseudociências (metafísica). Nem poderia, pois, Hume, diz Popper, estava
perfeitamente certo ao afirmar

que não é possível justificar logicamente a indução. Ele considerava que não pode haver
argumentos lógicos válidos que nos permitam demonstrar que ≤ aqueles casos de que
não tivemos qualquer experiência se assemelham àqueles de que tivemos ≥.
Consequentemente, ≤ mesmo após a observação de uma frequente ou constante
conjunção de objetos, não temos nenhuma razão para fazer qualquer inferência a
respeito de qualquer objeto para além daqueles de que já tenhamos tido experiência ≥”
(Popper, 2018, p. 99).

Mas isso ainda não é tudo. Se é a partir da indução que são produzidos enunciados de
caráter universal, então, como se explica a universalização, se ela deriva da experiência,
da observação de casos singulares? Só existe uma resposta possível: com base num
sem-número de outras observações singulares. Mas, então, dirá Popper, tal
procedimento joga “...por terra a tentativa de basear o princípio da indução na
experiência, uma vez que ela deve conduzir a uma regressão infinita” (Popper, 1980, p.
5).

(c) THOMAS KHUM: OS PARADIGMAS E AS MUDANÇAS DE CONCEPÇÃO DE


MUNDO

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109
3.1. A CONCEPÇÃO DA FISIOCRACIA DA NARTUREZA DA RIQUEZA
CAPITALISTA

(a) INTRODUÇÃO: O COMÉRCIO COMO FONTE DA RIQUEZA

Em A Riqueza das Nações, Livro IV, Sistemas de Economia Política, Adam Smith
dedica nove capítulos ao estudo do sistema mercantilista e o da economia fisiocrata.
Desses novos capítulos, apenas um é reservado à fisiocracia que ele denomina de
Sistemas Agrícolas.

Qual é a razão dessa desproporção? Como doutrina econômica o mercantilismo é mais


importante do que a economia dos fisiocratas? Estes trouxeram menos contribuição do
que os mercantilistas para o estudo da Economia Política?

Não é disso que se trata. Smith tem outras razões para dedicar mais espaço ao estudo do
mercantilismo. A maior delas é que os mercantilistas, com suas políticas econômicas,
criaram uma série de obstáculos ao desenvolvimento e prosperidade das nações. Daí por
que o autor de A riqueza das Nações sentiu-se na obrigação de desmantelar, com sua
crítica, todos os argumentos defendidos por essa corrente de economistas, que pregavam
o protecionismo e um conjunto de medidas práticas de intervencionismo estatal na
economia. Isto, para Smith, era um atentado ao princípio da mão invisível, segundo o
qual cada indivíduo sabe melhor do que um punhado de homens, ou uma assembléia de
notáveis, onde deve aplicar seu capital da forma mais lucrativa.

Mas ao contrário do que fez Smith, aqui se dará maior importância a fisiocracia, pois foi
esse sistema, como espera-se mostrar mais adiante, que lançou as bases da moderna
economia capitalista. Pois coube aos fisiocratas o mérito de deslocar a pesquisa da
origem do excedente econômico da circulação para a produção.

Mesmo assim cabe comentar alguns aspectos do sistema mercantilista. De acordo com
Smith, esse sistema se pauta pela máxima de que um homem rico vale muito dinheiro,
110
enquanto um homem pobre vale pouco dinheiro. É essa mesma máxima que rege a
doutrina econômica dos mercantilistas. Para eles, uma nação rica é aquela que detém
uma grande quantidade de ouro e prata em poder do soberano, pois tais metais são os
representantes universais da riqueza. Quem detém ouro e prata pode ter acesso a
qualquer tipo de riqueza.

Se assim é, então, a riqueza de uma nação depende de uma política que favoreça a
entrada de tais metais e reduza sua saída ao máximo possível. Daí a doutrina da balança
comercial favorável. Para tanto, seria necessário que o estadista adotasse políticas que
coibissem as importações e favorecessem as exportações. Quanto mais protegido o
mercado interno da invasão de produtos externos, mais próspera e rica seria a nação.

Essa doutrina econômica pressupõe, obviamente, que nas trocas entre as nações uma
ganha o que a outra perde. Ora, se a troca implica um jogo de ganhos e perdas, não
poderá haver criação de excedente dentro das fronteiras de um país, pois o que um
indivíduo ganha como vendedor de um produto qualquer, por exemplo, perde na
condição de comprador. Consequentemente, toda a política do Estado deve,
preferencialmente, se concentrar no comércio exterior. Daí a corrida das nações ricas,
primeiramente Portugal e Espanha, seguidos depois pela Inglaterra e a França, para
colonizar o mundo. O monopólio de comercio com suas colônias seria uma das
condições para favorecer um saldo comercial em favor da metrópole.

Adam Smith era radicalmente contra essa prática de soma zero, isto é, o que uma nação
ganha implica prejuízo para a sua parceira de troca. Não sem razão, impôs-se a tarefa de
demonstrar que o comércio pode ser benéfico para os parceiros de troca. Mostra que
uma nação bem melhor faria se se concentrasse na produção daqueles bens que ela tem
vantagens naturais comparadas com as demais nações. Como exemplo, oferece o caso
da Escócia. Este país poderia se dedicar à plantação de uvas para produção de vinhos e
trocá-los por produtos que outros países produzem em melhores condições.

Na verdade, o que Smith aí adianta é o princípio das vantagens comparativas, que será
objeto de estudo aprofundado por parte de David Ricardo. Seja como favor, o autor de
A Riqueza das Nações, contra os mercantilistas, argumenta que o comércio, mesmo
dentro das fronteiras de uma nação, não implica num jogo de soma zero.

111
Consequentemente, a bandeira mercantilista do protecionismo é um argumento
falacioso.

E assim procede Smith nos oitos capítulos que dedica à critica contra os mercantilistas.
Comenta uma a uma as práticas dessas doutrinas com o intento de demonstrar que são
todas elas falaciosas.

(b) FISIOCRACIA: UM FORMA CAPITALISTA DE PRODUÇÃO?

Decerto que sim. Ninguém melhor do que o próprio Marx para responder a essa
questão. Para o autor de O Capital, coube aos fisiocratas o mérito de deslocaram da
circulação para a produção imediata a pesquisa sobre a origem do excedente econômico
e, assim, lançarem os fundamentos da análise da produção capitalista. Foram os
primeiros economistas a analisarem o capital dentro do horizonte burguês. No entanto,
Marx não deixa de reparar que essa análise comete um erro do qual participaram todos
os economistas da Economia Política Clássica: tomaram o capital como uma relação
social que rege por igual todas as formas sociais de produção. Noutras palavras, a
fisiocracia transforma a forma capitalista de produção numa forma eterna de produção,
isto é, numa forma a-histórica de produção.

Mas, em que consiste o caráter capitalista do sistema fisiocrata? Na ideia de que a


economia é regida de acordo com a lógica de mercado. Os escritos de Quesnay,
notadamente o Quadro Econômico, descrevem uma economia em que a agricultura é
apresentada como uma atividade empresarial, extensa e tecnificada, capitalizada e
favorecida por instituições que ele julga adequadas ao funcionamento da economia. O
agente econômico mais dinâmico é representado pela figura do arrendatário, que cultiva
a terra em grande escala e, assim, comanda e multiplica as despesas para aumentar o
excedente. Este é o principal agente da produção, que não negligência nenhum meio,
nenhuma vantagem particular e, assim, agindo acaba por promover o bem geral da
sociedade. Cultivando as melhores terras, gera emprego para os habitantes do campo e
faz multiplicar a riqueza. Agindo de acordo com seu interesse próprio, sabe esperar o
melhor tempo para vender a sua produção. É o capitalista de que fala Smith em seu
clássico A Riqueza das Nações.

112
As outras figuras são formadas pela classe estéril, que compreende os produtores
urbanos (artesão, comerciantes, serviçais etc) e os que vivem da renda, dos impostos e
dos dízimos. Estes últimos são os aristocratas, os proprietários de terá e o clero.

Mas o caráter capitalista da economia fisiocrata é mais claro quando se sabe que, para
Quesnay, particularmente, a economia é governada por um sistema de leis que se
assemelham à ordem natural. Elas são, na verdade, leis perpétuas e inalteradas. Os
homens podem ignorá-las, na formulação das leis positivas, mas não impunemente; sem
as observar, a sociedade jamais poderá atingir o máximo de bem-estar. Daí que, para
ele, seu sistema é elaborado para ensinar não só o que o governo não deve fazer, como
também o que pode fazer de acordo com a ordem natural. Deixar que a economia
funcione de acordo com suas leis naturais é o melhor que pode fazer o governo. Isto não
quer dizer que o melhor que governo pode fazer é não fazer nada. Não é disto que se
trata. Cabe ao Estado criar uma infraestrura básica que permite o livre curso da riqueza,
como também remover todos os obstáculos que possam interferir na ordem natural das
coisas.

(c) CONTRADIÇÕES DO SISTEMA FISIOCRÁTICO: A MÁSCARA FEUDAL E A


ESSÊNCIA CAPITALISTA

Marx comenta, em Teorias da Mais-Valia, Livro I, que foram os fisiocratas os primeiros


a lançarem os fundamentos da análise da produção capitalista, pois deve-se a eles o
deslocamento da pesquisa sobre a origem da mais-valia da circulação para a produção
imediata da produção.

Estabeleceram o princípio de que somente o trabalho aplicado na agricultura cria valor


maior do que os custos de produção (salários, matérias-primas, instrumentos de
produção etc.). Para tanto, os fisiocratas pressupunham que os trabalhadores se

113
defrontam com o arrendatário agrícola na condição de simples assalariados, e que, por
isso, são obrigados a vender sua força de trabalho para poder sobreviver. Como o valor
que criam durante o processo de produção é maior do que o valor que lhes é pago na
forma de salário, dessa diferença, diz Marx, nasce a mais-valia. Esta é apropriada
integralmente pelo dono da terra na forma de renda. Consequentemente, a mais-valia,
ainda de acordo com o autor de O Capital, só pode vir do trabalho não-pago, do trabalho
excedente criado durante a produção.

Rolf Kuntz (1982) censura essa leitura que Marx faz dos fisiocratas, pois entende que
este pensador está a atribuir ao trabalho excedente, não-pago, à origem da mais mais-
valia. Ora, comenta Kuntz, o excedente vem unicamente da fertilidade da terra; é um
puro dom da natureza e não do trabalho aplicado na produção agrícola.

Kuntz tem razão. Mas é preciso qualificar melhor a crítica que ele dirige à leitura que
Marx faz da fisiocracia. Este não nega que, para os fisiocratas, o excedente econômico é
um presente da natureza. Reconhece, em diversas passagens de Teorias da Mais-Valia,
que o excedente gerado pelo trabalhador agrícola é um puro dom da terra que ela dá a
quem a cultiva. Mas, acrescenta Marx, esse presente não fica com quem cultivou a
terra, que deveria ser o seu verdadeiro dono. Ele vai parar nas mãos dos proprietários
que apenas colhe o que não plantou. Não foi a este que a natureza doou seu presente,
mas, sim, a quem nela aplicou trabalho, isto é, o arrendatário capitalista.

Por isso, Marx entende que o excedente econômico de que fala os fisiocratas se
configura como apropriação do trabalho alheio não-pago.

Certamente, Kuntz não concordaria com essa análise de Marx. Diria que o autor de O
Capital esquece-se de que, para os fisiocratas, os donos da propriedade são o herdeiro
legitimo do dom da natureza, uma vez que eles estão amparados em princípios morais e
legais. Como o diz o próprio Turgot, inclusive citado por Marx, quando existia terra
suficiente para cada indivíduo cultivá-la com seu próprio trabalho, não havia
pagamento de renda. Esta surge a partir do momento quando toda a terra encontra
apropriada em um punhado mãos de particulares. Os que chegaram depois que toda a
terra estava dividida entre seus donos, não podiam mais reclamar sua porção. Viram-se,

114
então, obrigados, a vender sua força de trabalho em troca de um salário. Estes não têm
mais direito de apropriar dos dons naturais da terra. O presente que ela oferece aos
homens cabe a quem chegou primeiro.

Conclusão: a renda da terra é, assim, moralmente justificada. Aparece não como


exploração, mas, sim, como o é em Adam Smith (1985) e Locke (1978), uma
recompensa a um trabalho passado, que consumiu vários anos e gerações até o presente.

Essa justificação moral, tão a gosto do pensamento liberal, não é não suficiente para
negar a exploração de uma classe por outra. Pode até escamoteá-la; jamais negá-la,
como se terá oportunidade de demonstrar mais adiante.

Enquanto não se chega lá, adiante-se que Quesnay e seus discípulos transformaram o
proprietário de terra num verdadeiro capitalista. Com efeito, para o desenvolvimento do
capital, a primeira condição é que o trabalhador se dissocie da propriedade fundiária e
que a terra se contraponha a ele como poder autônomo, independente, isto é, que
pertença a uma classe particular. Esta, para os fisiocratas, é a classe dos proprietários, e
a estes pertences todo o excedente gerado pelo trabalho.

Ainda que Marx tenha razão, não se pode esquecer que o arrendatário, aos olhos de
Quesnay, aparece como figura central em sua teoria. Para ele, “são as riquezas do
arrendatário que fertilizam as terras, multiplica os rebanhos, atraem e fixam os
habitantes dos campos e fazem a força e a prosperidade da nação”.

Que seja! Mas, para Quesnay, são as despesas dos proprietários, seu consumo, que faz a
riqueza circular para mantê-la ativa e crescente, como diria Adam Smith. Se estes as
desviam para fins que não seja o consumo, poupam suas rendas, por exemplo, cessa o
progresso e toda a nação se empobrece. Afinal, de seu consumo depende a
sobrevivência das demais classes sociais.

É o que retrata o Quadro Econômico que será, agora, objeto de consideração.

(d) O QUADRO ECONÔMICO: ORIGEM, CIRCULAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO DO


EXCEDENTE ECONÔMICO

115
O Quadro Econômico descreve um esquema de reprodução simples, ou seja, sem
acumulação. O estoque de capital já está constituído e apenas se repõe, ano após ano,
enquanto a produção se repete sempre na mesma escala. Que o diga o autor do Quadro.
Ele parte da suposição de um vasto reino cujo território, inteiramente cultivado de
acordo com as melhores técnicas, proporciona, anualmente, uma reprodução no valor de
cinco bilhões. Pressupõe ainda que a economia funciona sob o regime de livre
concorrência e com uma inteira segurança da propriedade.

Como se pode inferir das pressuposições anunciadas, o Quadro descreve, na verdade,


não a economia existente na França, mas, sim, uma economia que ainda não era, mas
poderia a vir a se tornar a economia que seu autor idealiza. É neste sentido que Kuntz
entende que a analise de Quesnay é uma teoria do desenvolvimento econômico, do que
deveria ser, no futuro, a economia.

Mas como esses cinco bilhões são anualmente reproduzidos?

Quesnay supõe que no início do ano, toda a produção agrícola do ano anterior, cinco
bilhões, se encontra nas mãos dos arrendatários, assim distribuídos: três bilhões de
alimentos e dois bilhões de matérias-primas. Para a reprodução desses cinco bilhões
foram necessários custos de três bilhões: dois bilhões para subsistência dos
trabalhadores e um bilhão para matérias-primas. O excedente que fica com os
proprietários resulta da diferença entre os cinco bilhões de produto e os três bilhões de
gastos, isto é: dois bilhões de rendimentos.

Por sua vez, a produção de manufaturas tinha um valor de dois bilhões: um bilhão de
alimentos e um bilhão de matérias-primas. Os custos seriam também de dois bilhões
uma vez que essa classe não produz excedente.

Como ocorre, então, a circulação desses dois bilhões?

I. Os arrendatários transferem os dois bilhões para as mãos dos proprietários;

116
II. Estes compram um bilhão de alimentos da classe produtiva e bilhão de bens
manufaturados da classe estéril (artesãos, comerciantes, artífices etc.);

III. A classe estéril, por sua vez, com esse um bilhão recebido dos proprietários,
compra alimentos da classe produtiva (arrendatários);

IV. A classe produtiva compra um bilhão de matérias-primas da classe estéril;

V. esta classe (estéril) terá, agora, o valor de sua produção reconstituído: um bilhão
de alimentos e um bilhão em moeda;

VI. resultado: todo o valor da produção se encontra, agora, nas mãos da classe
produtiva, para reiniciar o processo de reprodução.

E assim se dá a reprodução anual da produção.

3.2. TEORIA DO VALOR TRABALHO

3.3. TEORIA DO VALOR UTILIDADE

INTRODUÇÃO

a) ECONOMIA: UM SABER DESINTERESSADO

Não é exagero afirmar que a Economia Política é filha de uma época em que o
capitalismo ainda estava longe de se constituir como um modo de produção plenamente
desenvolvido. E não é mesmo. Num tempo em que a França ainda era uma economia
praticamente feudal, François Quesnay sobressai-se como um verdadeiro Aristóteles da
modernidade. Se, para Marx, o gênio desse filósofo “brilha em sua descoberta de uma
117
relação de igualdade na expressão de valor de duas mercadorias”, o talento de Quesnay
notabiliza-se em sua análise da interdependência do fluxo circular de renda e das
despesas entre as classes sociais, como assim descreve no seu famoso Quadro
Econômico. Referindo-se a Marx, Kuntz destaca que, para o autor de O Capital, “a
genialidade extrema dos fisiocratas” foi descrever a produção do capital como
reprodução, discriminando como seus momentos a circulação monetária, a geração da
renda e os vários passos da troca. Além disso, ao deslocarem da circulação para a
produção imediata a pesquisa sobre a origem do excedente lançaram os fundamentos da
análise da produção capitalista” (Kuntz, 1982,p. 20).

Não seria despropositado afirmar que Quesnay e seus pares realizaram uma verdadeira
revolução copernicana, ao deslocarem a análise do excedente econômico da circulação
para a produção. Não só por isso. Também porque foram capazes de apreender a
economia como uma totalidade em que as diferentes formas da riqueza somente podem
ser devidamente compreendidas em sua interdependência circular, como assim mostra o
Quadro Econômico.

Apropriando-se das conquistas teóricas da fisiocracia, Smith, inicialmente, preocupa-se


em corrigir sua principal debilidade: a redução produção do excedente econômico a
um único setor da economia, isto é, à agricultura. Somente o trabalho investido na
produção agrícola é um trabalho produtivo, porque é o único capaz de aumentar a
riqueza da nação. O trabalho dispendido no comércio, na indústria, e nos serviços, pelo
contrário, não geram riqueza maior do que o dispêndio de capital aplicado nessas
atividades.

Para Adam Smith, porém, não só o trabalho dispendido na agricultura é produtivo,


como também o trabalho empregado na indústria. É o trabalho social geral,
independentemente dos valores de uso em que se incorpore, a mera quantidade de
trabalho necessário, que cria o valor. O valor excedente aparece, agora, em suas formas
de lucro, renda da terra e juros. Com isso, o edifício da Economia Política amplia seu
status de ciência da riqueza e da sua distribuição entre as três classes da sociedade:
trabalhadores, capitalistas e proprietários de terra.

Infelizmente, na construção do edifício teórico da Economia, Smith incorre numa séria


de contradições, notadamente no que diz respeito ao conceito de valor. Ora afirma que o

118
valor é determinado pela quantidade de trabalho incorporada na produção das
mercadorias, ora defende a ideia de que o valor (neste caso, o salário do trabalho)
depende da quantidade de trabalho que ele pode comandar.

Não sem razão, Ricardo toma como sua principal tarefa livrar a Economia Política das
incoerências em que esta ciência se viu enredada nas mãos de Smith. Sem isto a teoria
do valor estaria fadada ao descrédito; uma vez que Adam Smith, ao fazer uso de dois
conceitos de valor, acaba por ferir o princípio lógico de não-contradição. Ora, quem
desobedece a esse princípio, põe em xeque a própria racionalidade do discurso
científico. Que o diga Aristóteles, para quem “é evidente que é impossível para o
mesmo indivíduo supor, ao mesmo tempo, que a mesma coisa é e não é posto que o
indivíduo que cometesse esse erro estaria mantendo duas opiniões contrárias ao mesmo
tempo” (Aristóteles, 212. p. 11). Além desse erro lógico, Ricardo censura Smith por
ter limitado o princípio de que o valor é determinado pela quantidade de trabalho a um
rude e primitivo estado da sociedade em que não há acumulação de capital nem
apropriação da renda da terra.

Ricardo intenta corrigir tais deficiência e contradições da teoria de Smith, mas não é de
todo bem-sucedido, como será investigado na segunda parte deste trabalho. Mas seja
como for, em suas mãos, a Economia ganha um status mais rigorosamente científico.

Apesar de suas debilidades e contradições teóricas, Smith e Ricardo não se deixaram


enfeitiçar pela forma aparente e imediata em que os fenômenos econômicos se
manifestam à consciência imediata dos indivíduos. Pelo contrário, eles partem da
superfície imediata em que aparecem as principais formas de riqueza (salário, lucro,
renda da terra e juros), fixas e independentes entre si, para descobrir que todas essas
formas têm como fonte o trabalho. Vale dizer, essas formas de riqueza, independentes
umas das outras, têm em comum o fato de serem formas de manifestação de uma única
e mesma substância: trabalho humano, que foi o primeiro preço, como dizia Smith, com
o qual “foi comprada toda riqueza do mundo”.

Assim, Adam Smith e Ricardo apreenderam o sistema capitalista como totalidade, que é
conexão dos diferentes elementos que compõem a produção e reprodução da riqueza
social como um todo. Entenderam, assim, que a participação na riqueza dos não-
trabalhadores – capitalistas, banqueiros e proprietários de terra – depende

119
exclusivamente da apropriação do trabalho realizados por quem vive da venda de sua
força de trabalho em troca de um salário.

É óbvio que essa totalidade é totalidade formal, porque a conexão das diferentes formas
de riqueza é pensada como uma redução do pensamento. É este que, varando a
superfície imediata dos fenômenos, descobre o que está oculto por trás das formas
aparentes de riqueza. Mesmo assim, Smith e Ricardo, partindo da desordem aparente
que reina na economia, conseguiram construir uma representação da sociedade
capitalista como totalidade, pois foram capazes de compreender a regularidade imanente
que rege os movimentos irregulares do mercado - a lei do valor. Assim, puderam
mostrar que todas as formas de riqueza repousam sobre um elemento comum - o
trabalho, de onde tudo emana: salário, lucro, renda da terra e juros. Não por menos,
Hegel, em sua Filosofia do Direito, parte justamente dessa totalidade construída pelos
clássicos da economia, para compreender, a partir daí, como o sistema de carecimentos
produz, por sua própria dialética interna, um sistema universal de interdependência, no
qual cada particular só se afirma como tal quando mediado pelo metabolismo da troca
engendrado pela totalidade da divisão social do trabalho.

Entende-se, assim, porque Smith e Ricardo recusaram-se a ser a voz da consciência


prática dos agentes de produção em suas atividades diárias. Sua análise não se deixa
emaranhar nas malhas da esfera da circulação ou do intercâmbio de mercadorias, que
aparece como um verdadeiro “éden dos direitos do homem”, esfera na qual o que reina é
unicamente liberdade, igualdade e propriedade. Liberdade, pois cada um é livre para
permutar suas mercadorias por outras; Igualdade, pois os indivíduos se confrontam no
mercado e aí somente abrem mão de suas mercadorias se, em troca, recebem outras de
igual valor; proprietários, pois cada um dispõe apenas do que é seu, uma vez que cada
indivíduo é reconhecido por seus pares com possuidores de mercadorias.

Esse saber crítico, por isso desinteressado, é posto em xeque tão logo a luta de classes
assumiu formas cada vez mais ameaçadoras. A ideia de que trabalho é a única fonte de
riqueza soava como um verdadeiro escândalo e um horror aos olhos da burguesia e de
seus porta-vozes. Com efeito, se o trabalho é a única fonte geradora da riqueza, o
lucro, consequentemente, só pode ser explicado como uma apropriação não paga do
trabalho alheio, como apropriadamente demonstra Adam Smith no capítulo VI de A
Riqueza das Nações.

120
Diante dessa verdade, se fez ouvir por toda a Europa o soar do sino fúnebre da
economia cientifica burguesa.

A economia política clássica pôde desenvolver sua pesquisa desinteressada durante “o


período em que a luta de classes ainda não estava desenvolvida. Seu último grande
representante, Ricardo, converte afinal, conscientemente, a antítese entre os interesses
de classe, entre o salário e o lucro, entre o lucro e a renda da terra em ponto de partida
de suas investigações, concebendo essa antítese, ingenuamente, como uma lei natural da
sociedade. Com isso, porém, a ciência burguesa da economia chegara a seus limites
intransponíveis” (Marx, 217. p. 85).

Abre-se uma nova página na história da economia política burguesa. “O lugar da


investigação desinteressada foi ocupado pelos espadachins a soldo, e a má consciência e
as más intenções da apologética substituíram a investigação científica imparcial” (Marx,
201.,p.86). A partir de então, os porta-vozes das classes dominantes “dividiram em
duas colunas. Uns, sagazes, ávidos de lucro e práticos, congregaram-se sob a bandeira
de Bastiat, o representante mais superficial e, por isso mesmo, mais bem-sucedido da
apologética economia vulgar; os outros, orgulhosos da dignidade professoral de sua
ciência, seguiram J . S. Mill na tentativa de conciliar o inconciliável. Tal como na época
clássica da economia burguesa, também na época de sua decadência os alemães
continuaram a ser meros discípulos, repetidores e imitadores, pequenos mascates do
grande atacado estrangeiro (Marx, 2017. p.87).

(b) ECONOMIA E A DECRETAÇÃO DA MORTE DO HOMEM

Além das determinações históricas que condicionaram esse movimento de inflexão da


economia, o próprio método analítico dos economistas clássicos (Smith e Ricardo) abriu
caminho para que se destruísse a concepção defendida por eles. Say não teve
dificuldade de alterar o processo de redução das diferentes formas de riqueza (salário,
lucro, renda da terra, juros) à forma única da mais-valia, a trabalho não-pago, uma vez
que, para os clássicos, o valor das mercadoria é determinado unicamente pelo trabalho.
Considerando-se discípulos de Smith, Say se propôs a corrigir “alguns pontos em que
(Smith) parece ter-se enganado, ou que deixou por esclarecer (Say, 1983. p. 54). Um
desses equívocos por ele apontado é o de que "Smith atribui somente ao trabalho a
capacidade de produzir valores (...). Atribuindo pouca importância à ação da terra e

121
nenhuma aos serviços prestados pelos capitais, ele exagera a influência da divisão do
trabalho, ou melhor, da separação das ocupações. Não que essa Influência seja nula nem
mesmo medíocre, mas suas maiores maravilhas nesse gênero não resultam da natureza
do trabalho: devem-se ao uso que se faz das forças da natureza. O desconhecimento
desse princípio impediu-o de estabelecer a verdadeira teoria das máquinas em relação à
produção da riqueza" (Say, 1983. P. 54). Para esse discípulo, é a utilidade o verdadeiro
fundamento do valor, e não o trabalho. Literalmente assim ele se expressa: "o valor que
os homens atribuem às coisas tem seu primeiro fundamento no uso que delas podem
fazer” (Say, 1983.,p.68). Mais adiante conclui que "só há, portanto, verdadeira produção
de riqueza onde existe criação ou aumento de utilidade" (Say, 1983.p.69).

Com seu Tratado de Economia Política, publicado em 1803, Say abriu as portas para
revolução marginalista, que substituiu a teoria do valor-trabalho pela teoria do valor-
utilidade. Desta perspectiva, é a utilidade que determina o valor; não mais o trabalho
empregado na produção. Ora, se o trabalho perde sua centralidade na determinação do
valor, não se pode mais falar de exploração; o lucro não aparece mais, como o era para
os clássicos, como uma apropriação gratuita do excedente de valor criado pelo
trabalhador.

Agora, com a teoria do valor-utilidade, os donos dos meios de produção encontram na


economia uma base científica para ocultar a exploração. Seus porta-vozes podem,
doravante, vender a ideia de que há uma harmonia que rege os interesses dos indivíduos,
na medida em que cada um, trabalhando para si, acaba por promover o interesse geral;
e, assim, todos ganham.

Os fundadores da escola marginalistas, Carl Menger, Jevons e Walras, apropriaram-se


da ideia defendida por Say de que a utilidade é o único e verdadeiro fundamento do
valor; não mais o trabalho. Com isso, e em que pesem as diferenças eles,
intencionalmente ou não, acabaram por transformar economia numa ciência superficial,
voltada para embelezar “os interesses da classe dominante”. Com efeito, assim como a
felicidade de um escolástico vem da sua fé no mistério da Santíssima Trindade, a classe
dominante se regozija com a mistificação das formas de existência da mais-valia na
forma trinitária da riqueza, cuja produção, agora, emana de três fontes distintas: terra-
renda, capital-juro e trabalho salário.

122
Embora se trate de uma introdução, não e de todo descabido adiantar, ainda que em
linhas gerais, as ideias defendidas pelos marginalistas. A intenção é tão somente tentar
despertar no leitor o interesse pela leitura do texto do começo ao fim.

É uma aposta desafiadora. Que seja!

Jevons publica seu livro no mesmo ano em que Menger traz a público os seus Princípios
de Economia Política; 1871. Assim como Menger, Jevons e Walras dividem a ideia de
que o valor dos bens é determinado pela utilidade, isto é, pela capacidade que as coisas
têm de satisfazer necessidades humanas. Embora as necessidades sejam ilimitadas, cada
necessidade considerada isoladamente tem limites, uma vez que que a satisfação
proporcionada por cada coisa decresce com o seu consumo. Noutras palavras, com
aumento do consumo de certo bem, por exemplo, a satisfação obtida tende a diminuir
até o ponto em que a última quantidade consumida não mais agregue nenhuma unidade
adicional de utilidade. Neste ponto de saturação, isto é, de satisfação plena da
necessidade, a utilidade proporcionada pela última unidade consumida determina o
valor do bem em causa, o que equivale a dizer que, em geral, o valor dos bens é
determinado pela utilidade marginal.

Muito embora Menger e Jevons façam da teoria do valor-utilidade o fundamento de


todo o edifício teórico da Economia, há entre eles diferenças nada desprezíveis.
Destacando as que aqui se julgam mais importantes, convém começar com a noção de
utilidade marginal decrescente. Para Menger,

[1] este conceito trabalha com variações discretas para a mensuração do grau de
utilidade. Por exemplo, se um indivíduo adquire uma camisa, a segunda unidade deste
bem terá, para ele, menor utilidade que a primeira; e assim por diante.

Não é assim que Jevons entende o conceito de utilidade marginal decrescente. Ao


contrário de Menger, ele admite a ideia da divisibilidade infinitesimal dos bens. Isto
porque, para ele,

se a economia deve ser, em absoluto, uma ciência, deve ser uma ciência matemática
[...]. Minha teoria de Economia é de caráter puramente matemático. Mais ainda,
acreditando que as quantidades com as quais lidamos devem estar sujeitas a variação
contínua, não hesito em usar o ramo apropriado da ciência matemática, não obstante
123
envolva a consideração ousada de quantidades infinitesimais. A teoria consiste no
cálculo diferencial aos conceitos familiares de riqueza, utilidade, valor (Jevons, 1983,
p.30).

Assim, se o consumo de um bem está sujeito à variações contínuas, sua utilidade


decresce à medida que quantidades infinitesimais são consumidas. Tudo se passa como
se um indivíduo qualquer pudesse aumentar a sua satisfação global consumindo, por
exemplo, doses sucessivas infinitesimais de camisas, até atingir um ponto máximo, a
partir do qual nenhuma unidade adicional desse bem aumentaria a utilidade total; mais
do que isto: qualquer consumo além desse ponto reduziria a utilidade, podendo até
torná-la negativa. Um indivíduo qualquer poderia atingir este ponto, consumindo duas
camisas e uma infinitésima parte de uma terceira, imaginando-se que, com essa última
unidade, sua necessidade de camisas estaria plenamente saciada.

Raciocínio absurdo? - Não, para quem considera a Economia uma ciência matemática;
uma ciência que busca explicar os fatos econômicos mediante a aplicação do cálculo
diferencial. É assim mesmo que procede esta ciência, quando analisa o comportamento
do consumidor. Para tanto, é suficiente dispor das quantidades de bens consumidos por
ele e, então, mediante o auxílio do cálculo diferencial, encontra-se um ponto de
equilíbrio no qual este indivíduo deverá estar plenamente satisfeito. Como assim? Não
se pode esquecer que a economia constrói seu edifício teórico sobre o pressuposto de
que os recursos são escassos. Para o consumidor individual, a escassez é dada por sua
renda; esta é restrição que o obriga a escolher, dentre a diversidade de bens existentes
no mercado, aqueles que lhes proporcionarão o maior prazer, decorrente do seu
consumo, e o menor sacrifício, por conta do fato de ter de pagar por esses bens. Assim,
o consumidor estará em equilíbrio quando adquirir de cada bem certa quantidade em
que o ganho de utilidade daí decorrente se iguala a perda de utilidade, correspondente às
quantidades de utilidade da moeda que teve de abrir mão para adquirir sua cesta de
consumo. Generalizando esse comportamento para os consumidores, a Economia vê
cada agente econômico preocupado unicamente com a saciação do seus desejos de
consumo, ou seja, com a maximização de sua satisfação e a minimização de seu
sacrifício, visto que o prazer impõe aos indivíduos certas cotas de sofrimento, uma vez
que se pressupõe que os bens são escassos; há que se pagar por eles.

124
Ora, se a Economia é uma ciência matemática, seu objeto de investigação, o
comportamento racional dos agentes econômicos, deve ser purificado de toda e qualquer
determinação subjetiva, para ser tratado como uma grandeza puramente analítica. Vale
dizer, o comportamento dos agentes econômicos de carne e osso deve ser reduzido a
mecânica de uma máquina, para que se possa calcular o ponto de equilíbrio em que um
suposto consumidor maximiza sua satisfação e minimiza seu sofrimento;

[2] Menger pensa completamente diferente. Para ele, a economia não trabalha com
quantidades, como assim entende Jevons; pelo contrário, diria ele, a economia
investiga a essência dos fenômenos, que não pode ser revelada mediante a aplicação de
equações matemáticas. É o que se depreende das objeções que dirige a Walras,
censurando-o por transformar a economia numa ciência matemática, assim como fizera
Jevons. Kauder (Kauder, 1992, p.118) resume essas principais objeções, mediante o
uso de um quadro comparativo no qual contrapõe as convicções de Menger ao que este
autor austríaco julga de errado em Walras. Esse quadro pode ser apresentado mais ou
menos assim:

ERROS DE WALRAS

1. A matemática trabalha com quantidades.

2. as leis da troca são expressas matematicamente.

3. A matemática trabalha com fatores mensuráveis, com funções ou fenômenos


independentes.

CONVICÇÕES DE MENGER

a - A economia não trabalha com quantidades; sua tarefa é investigar

a essência do valor, da renda da terra, do lucro etc.

125
b - Equações matemáticas não permitem compreender as leis exatas

da economia.

c - A economia tem de construir um sistema, do mesmo modo como se constrói uma


casa com blocos, os quais correspondem aos elementos simples da economia, a partir
dos quais se reconstrói, no plano teórico, a ciência econômica enquanto um todo
organicamente articulado;

[3] Apesar do abismo metodológico que separa Menger de Jevons, ele divide com este
último a ideia de que

(a) o valor dos bens é determinado por sua utilidade;

(b) a utilidade de um bem qualquer decresce à medida que unidades

adicionais desse bem são consumidas;

(c) os bens econômicos são escassos, sem o que seria impensável a própria teoria do
valor. De fato, se os bens fossem ilimitados em quantidade, não teriam valor, pois os
indivíduos não seriam obrigados a atribuir maior ou menor importância a um bem
com relação aos demais;

Mas, como Menger sabe que os recursos são escassos? Da mesma forma que pensa
Jevons, muito embora o autor austríaco investigue mais a fundo o princípio de que os
bens são escassos. Da mesma forma que pensa Jevons, Menger diria que qualquer
pessoa sabe que não pode dispor de tudo o que necessita, pois a experiência do dia-a-dia
mostra que as coisas são limitadas. Há de se considerar também que, se os bens fossem
ilimitados, os indivíduos não teriam por que escolher entre um bem e outro ou ponderar
em adquirir mais de um bem em detrimento de outro. Em consequência, não haveria
126
bens econômicos; os homens não teriam por que se preocupar com o atendimento de
suas necessidades; não teriam por que entrar em conflito uns com os outros, pois, se os
bens fossem ilimitados, a apropriação seria um ato livre; todos poderiam dispor do que
quisesse sem prejuízo dos demais.

Menger leva mais longe o princípio da escassez para explicar a necessidade da


propriedade privada. Para ele, essa instituição nasce como solução prática para o
problema da oposição de interesses, decorrente da apropriação da riqueza, que é, por
natureza limitada. Daí por que seria impossível eliminar a instituição da propriedade
privada. Esta só poderia ser eliminada, diz Menger,

... se fôssemos capazes de aumentar a quantidade de todos os bens econômicos ao ponto


de se poder atender por completo a demanda de todos os membros da sociedade, ou
então, se fossemos capazes de diminuir as necessidades humanas até o ponto em que as
quantidades disponíveis desses bens fossem suficientes para atender plenamente a todos
(Memnger, 1983, p.271).

Decorre, daí, que nenhuma ordem social poderá suprimir a propriedade privada.
Uma nova ordem social poderia apenas, diz Menger,

fazer com que, em lugar das atuais pessoas, outras viessem a utilizar as quantidades de
bens econômicos disponíveis para o atendimento de suas necessidades, mas nunca
conseguiria evitar que houvesse outras pessoas cuja demanda não seria atendida, ou só
parcialmente atendida, e contra as quais a sociedade seria, de qualquer forma, obrigada
a colocar barreiras de proteção à legítima propriedade adquirida por outros (Menger,
1983,p. 271).

A escassez não é somente um pressuposto sobre o qual se estrutura o discurso


teórico. Ela é, antes de tudo, um princípio da ordem das coisas; um princípio da

127
natureza, que determina a economia e suas relações com as instituições da sociedade:
propriedade, Estado, dinheiro etc;

[3] Como Walras, Jevons entende que a Economia é uma ciência matemática, por
excelência; todos os seus conceitos podem e devem ser representados analiticamente.
Acontece que na sociedade, o homem não só é marcado por uma diversidade de
paixões, mas também em sua atividade econômica, desempenha diferentes papéis: de
consumidor, empresário, dona de casa, proprietário de terra, trabalhador etc. Se é
assim, como é possível, então, representar analiticamente o homem como objeto da
Economia? - Reduzindo os diferentes indivíduos concretos a mera entidade abstrata: o
suposto agente econômico racional. Tal homogeneização permite ao economista
transformar todos os sentimentos dos indivíduos em indicadores de prazer e sofrimento,
para que possa, então, analisar o comportamento do trabalhador do mesmo modo que
analisaria o da dona de casa ou o do empresário. É assim mesmo que procede Jevons,
para quem o comportamento do trabalhador não é diferente de como age o empresário.
De acordo com sua concepção, o trabalhador só estaria disposto a trabalhar mais, caso
sacrificasse parte do seu tempo livre. Noutras palavras, o trabalhador só estaria disposto
a abrir mão de parte do seu tempo ocioso, se o desconforto de trabalhar mais fosse
recompensado pelo aumento de sua renda, de modo a lhe proporcionar melhor bem-
estar material. Assim também age o empresário, que se priva do prazer de desfrutar de
sua riqueza atual, para aumentar seu patrimônio futuramente; portanto, o sacrifício da
abstinência deverá ser recompensado com maior riqueza no futuro;

[4] Para representar, analiticamente, o comportamento do agente econômico, Jevons é


obrigado a lançar mão da hipótese de que o gosto ou as preferências dos indivíduos
permanecem constantes; não mudam com o tempo. Qual é a razão desta hipótese? -
Muito simples: se o gosto do consumidor se alterasse com o tempo, não seria possível
representar, matematicamente, seu ponto de equilíbrio no mercado, isto é, a situação na
qual ele estaria maximizando satisfação e minimizando sacrifícios. De fato, se o gosto
muda com o tempo, se hoje consumidor prefere chá, amanhã café, não haveria como
calcular os acréscimos de utilidade do primeiro bem, que deveriam diminuir à medida
que o consumo de chá aumentasse. Neste caso, a lei da utilidade marginal decrescente
cairia por terra, desmoronado com ela a própria teoria do valor;

128
[5] Menger não faz uso desse de tipo de restrições hipotéticas, visto não trabalhar com
representações idealizadas da realidade. Diferentemente de Jevons, para ele, as
necessidades humanas são históricas, isto é, os bens podem até perder sua utilidade se as
necessidades mudam, por conta de alterações no gosto das pessoas. É o que acontece,
por exemplo, com o consumo de fumo. Uma mudança no gosto dos consumidores pode
levar tanto ao desaparecimento da necessidade de consumir esse bem, quanto também à
necessidade de consumir certos bens que entram direta e indiretamente na produção do
fumo. Neste sentido, a economia é uma atividade dinâmica, em que o tempo joga papel
determinante no curso dos fenômenos econômicos. Não só isto: como visto antes,
Menger considera o tempo um fator essencial a ser observado, pois o conceito de
causalidade é inseparável do conceito de temporalidade. Por isto, quanto mais complexa
se torna a cadeia produtiva, mais se distanciam as conexões entre os bens de produção e
os de consumo final, advindo, então, a incerteza econômica quanto ao curso corrente e
futuro da produção. Daí a necessidade de planejar a atividade econômica, de modo que
os agentes econômicos possam calcular antecipadamente,

tanto as quantidades dos diversos de que precisarão para atender às suas necessidades,
como os períodos de tempo nos quais ocorrerá sua demanda concreta de cada bem;
esse cálculo pode ser feito com a exatidão exigida de conformidade com os fins
práticos visados, exatidão que é suscetível de aumentar cada vez mais (Menger, 1983,
p.266).

[6] Para Jevons não há nenhuma relação entre o conceito de tempo de causalidade; por
conseguinte, o tempo não poderá causar nenhum desencontro entre a produção de bens
de ordem superior e de consumo. Consequentemente, não haveria incertezas
econômicas, já que o tempo não pode provocar nenhuma desproporcionalidade na
produção de bens. Daí a hipótese teórica de um mercado perfeito, em que não há lugar
para incertezas nem expectativas quanto ao curso corrente e futuro da economia.

Não poderiam ser tão diferentes os resultados a que chegam Jevons e Menger. Para o
primeiro, o mundo da economia é um mundo totalmente transparente; nele não há
incertezas nem crises; todos têm perfeito conhecimento de suas necessidades e de como
satisfazê-las. Se é assim, nada é exigido do indivíduo; este age sob o império do

129
princípio da utilidade, que manda que cada um maximize sua satisfação e minimize seus
sacrifícios. Por paradoxal que pareça, porque age racionalmente, o indivíduo não pensa.
Realmente, num mundo de total transparência, o indivíduo não tem por que se
preocupar sobre o curso presente e futuro da produção e distribuição da riqueza. Muito
menos precisa tomar posição a respeito das coisas e das pessoas com quem convive,
uma vez que cada indivíduo concreto é reduzido à figura de um consumidor abstrato,
conceitualmente construído.

Não é assim que pensa Menger. Para ele, o mundo da economia é marcado pela
incerteza, que aumenta à medida que a economia se desenvolve e se torna mais
complexa. Em consequência, ninguém tem perfeito conhecimento do mercado, o que
vai exigir dos indivíduos um comportamento ativo e não passivo, como é o agente
racional de Jevons.

Diante de concepções tão distintas da Economia, convém perguntar: - como dois


autores, que fazem da utilidade a medida do valor, isto é, que partem do mesmo
paradigma, chegam a conclusões tão diferentes sobre os acontecimentos econômicos?
Uma explicação plausível para isto se deve ao fato, talvez, de Menger e Jevons, por um
lado, pertencerem a contextos culturais distintos e, por outro, filiarem-se a matrizes
filosóficas divergentes. É assim mesmo que Oakley entende por que Menger foi capaz
de desenvolver uma teoria subjetiva do valor com características próprias, que o
diferencia dos demais teóricos que fizeram da utilidade o fundamento do valor. Para ele,
o ambiente intelectual vivido por Menger é a razão maior disto. Em primeiro lugar
porque a vida intelectual da Áustria não sofreu influência da filosofia kantiana e
hegeliana; em segundo lugar, onde a filosofia era importante, esta era de origem pré-
kantiana, isto é, de origem aristotélica. Daí a ênfase ontológica da teoria de Menger,
que tinha como preocupação básica os problemas da realidade vivida por ele.

É nessa mesma direção que Feijó entende as razões que separam a teoria subjetiva do
valor de Menger da mesma teoria partilhada por Jevons e Walras. Fundamentado em
estudos de muitos comentaristas da obra de Menger, Feijó assim se expressa:

Jevons, Menger e Walras, mesmo compartilhando elementos teóricos essenciais em


suas teorias, pertenciam a distintos paradigmas ou o que um importante economista
denominou de visões da Economia. Eles estavam inseridos em contextos culturais

130
muito distintos e ligados a raízes filosóficas inteiramente díspares: o utilitarismo
empirista na Inglaterra, a filosofia aristotélica na Áustria e a filosofia cartesiana na
França. Esses três países possuíam diferentes níveis de desenvolvimento econômico, de
modo que é implausível relacionar os trabalhos desses autores com mudanças na
estrutura de produção nacional ou nas relações entre as classes sociais(Feijó,
2000,p.41).

Não há dúvida de que o contexto histórico-social contribuiu para que esses dois autores
tivessem distintas concepções da ciência econômica; entretanto a filiação filosófica
de cada um deles parece ter sido muito mais importante do que tais condições.

Enquanto discípulo confesso de Aristóteles, Menger estava preocupado em descobrir a


essência da vida econômica, as leis que regem a conexão interna dos eventos
econômicos.

Jevons, como será visto, transforma a economia numa ciência preocupada com a
descrição dos fenômenos da vida cotidiana, da ação dos indivíduos em sua vida
comercial. Para ele, a economia deve se aferrar à superfície imediata da vida econômica,
para descrevê-la mediante o uso de modelos matemáticos.

Mais do que isso, Jevons acaba por decretar a morte do homem como objeto de
preocupação da Economia, e, assim, termina por transformar essa ciência numa forma
de saber irracional. Com efeito, para ele, o que está em jogo é tão somente a relação
unilateral do indivíduo com as coisas. Consequentemente, não há mais relação entre os
indivíduos e destes com as coisas. É negar a própria existência do homem de carne e
osso; é decretar a sua morte, como ser carente; como ser que só pode se afirmar pela
mediação do outro, ainda que o outro seja considerado apenas meio para a realizar de
seus fins particulares.

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4. ECONOMIA E POLÍTICA

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