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O MUNDO DA ECONOMIA
UM MUNDO SEM ALMAS
CRATO-CEARÁ
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SUMÁRIO
PRIMEIRA PARTE
SEGUNDA PARTE
TERCEIRA PARTE
ECONOMIA E POLÍTICA
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INTRODUÇÃO
CONVITE AO PENSAR
O dia começava a amanhecer, quando JR terminou de ler a última página de O Mundo
da Economia: um mundo sem alma. Tinha aula no primeiro horário de Introdução à
Economia. Estava ansioso para conversar com sua turma sobre este livro, pois pretendia
adotá–lo como texto básico. Pena que já fazia quase um mês de aula e alguns alunos já
tinham comprado o livro de Paul Krugman que ele escreveu em parceria com Robin
Wells; um calhamaço de quase mil páginas. Não iria ser nada fácil convencer toda
turma a adquirir um novo livro.
JR levantou–se e deixou o livro junto com a chave do carro. Queria ter certeza de que
não esqueceria de levá–lo para a universidade. Estava muito ansioso. O Mundo da
Economia: um mundo sem almas, que tanta atenção lhe consumira durante à noite
passada, causou–lhe uma imensa alegria. Tudo o que ele já fazia em sala de aula estava
ali, naquele livro.
De repente, JR olhou para o relógio e tomou um grande susto. Estava atrasado. Correu
para o banheiro e tomou uma ducha de água fria. Não havia mais tempo para fazer a
barba. Resolveu ir para a universidade assim mesmo. Afinal, não seria a primeira vez
que iria chegar na sala de aula desmazelado.
Pegou o livro e correu para o carro. Deu partida e logo estava no campus universitário.
A passos largos, dirigiu–se à sala dos professores e foi direto para o seu escaninho onde
sempre deixava o livro de Introdução de Economia de Krugman e Wells. Pegou–o e se
dirigiu às pressas para a sala de aula, onde seus alunos, com cara de sono, o
aguardavam. Muitos estavam ali porque queriam realmente aprender; outros estavam
apenas à caça de um título de formação universitária, pois ainda alimentavam o sonho
de que o mercado de trabalho os esperava de portas abertas, quando concluíssem o
curso de Economia.
– Bom dia, gente. Como foi o final de semana? – pergunta JR. – Aproveitaram para
estudar ou foram se divertir tomando cachaça e se deliciando com as músicas
“sertanejas” apelativas, sem melodias e poemas, o tão distantes das poesias do sertão
como espaço de saudade, dos Luis Gonzagas da vida? Mesmo assim são cantores
“geniais”, pois conseguem embrutecer mais ainda o espírito de vocês e, mesmo assim,
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ganhar muito dinheiro. Mas vamos deixar de conversa. Hoje eu trouxe uma novidade.
Não é bem uma novidade porque o que tenho para mostrar, vocês já conhecem de sobra,
pois é algo muito parecido com a metodologia que eu utilizo nas minhas aulas.
Como de sempre, todos ficaram calados, olhando para ele com cara de poucos amigos.
Se uma mosca caísse na sala, certamente se conseguiria ouvir o barulho de sua queda.
Mas, apesar do estado de espírito desanimador de seus alunos e alunas, perguntou se
eles estavam curiosos em saber qual era a novidade que ele tinha para lhes apresentar.
– Gente, como vocês não vão falar mesmo, – diz JR, com certa irritação – vou lhes
contar qual é a novidade. Estão vendo este livro aqui? É um livro de Introdução à
Economia. Vou adotá–lo como texto básico de nossas aulas. Que acham?
Esperou mais um pouco até que uma aluna, com cara de enjoou, olhou para ele e lhe
disse:
– Por que, minha querida? Você ainda me pergunta? Eu já falei por diversas vezes que
se não quiserem agir como papagaios, se desejam ter opinião própria, vocês devem ler
vários autores sobre mesmo assunto. Isso faz com que aprendam a pensar com mais
fundamento e criticidade.
- Bem –, diz JR - farei uma recapitulação do que já vimos do livro do Krugman e Wells,
para que vocês, quando começarem a ler O mundo da Economia: um mundo sem almas,
possam compreender quão diferente é o mundo da Economia deste livro daquele
apresentado por aqueles dois autores. Com certeza, vocês não precisarão fazer muito
esforço intelectual para perceber que se trata de duas leituras radicalmente distintas de
um mesmo objeto de estudo. A revisão que proponho a fazer do Livro de Krugman e
Wells já adianta tal divergência. Diferentemente de O Mundo da Economia..., que parte
do homem como um sujeito social, historicamente determinado por um conjunto de
relações sociais, e, que por isso, só pode ser apreendido como individuo integrante de
determinada classe social; aqueles autores trabalham com um conceito abstrato de
homem, reduzido a um ser unicamente preoccupado com a busca pela riqueza, para
quem o mundo se resume unicamente à sua vida comercial.
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Mas isso, vocês poderão constatar na revisão que eu vou fazer. Vamos logo diretamente
à questão. Peço-lhes paciência e atenção, pois, embora aqueles autores vejam a
Economia como uma ciência, como diria G. Myrdal, que não vai além do “senso
comum refinado”, mesmo assim, é preciso estar atento para descobrir o viés que a vida
do dia a dia não mostra. Pelo contrário, a vida cotidiana
se manifesta como anonimidade e como tirania de um poder impessoal que dita a cada
indivíduo seu comportamento, modo de pensar, gosto e seu protesto contra a banalidade. A
anonimidade da vida cotidiana, expressa no sujeito dessa anonimidade, que é alguém-
ninguém, encontra seu correlato na anonimidade dos agentes históricos, os chamados
History-Makers, de tal maneira que os acontecimentos históricos afinal se revelam como
obra de ninguém e obra de todos, como resultado da comum anonimidade da cotidianidade
e da História (...). A familiaridade é um obstáculos ao conhecimento; o homem sabe
orientar-se no mundo que lhe está mais próximo, no mundo da preocupação e da
manipulação, mas “não se orienta” em s mesmo, porque se perde no mundo manipulável,
com e se identificando Karel.1976.,p.73/74).
Não satisfeito com essa forma apressada de como aqueles autores expõem o conceito de
Economia, JR pede a seus alunos para o acompanharem na leitura de uma passagem do
capítulo II, do mesmo livro, na qual Marshall define a Economia como uma ciência
preocupada com o
estudo dos homens tal como vivem, agem e pensam nos assuntos ordinários da vida. Mas
diz respeito, principalmente, aos motivos que afetam, de um modo mais intenso e constante,
a conduta do homem na parte comercial de sua vida (...). Contudo, o motivo mais constante
para a atividade dos negócios é o desejo de remuneração, a recompensa material do
trabalho (Marshall, 1982, . 33).
Uma leitura cuidadosa dessa passagem, comenta JR, revela que o homem de que fala
Marshall é, na verdade, um “mítico homem de negócios”; um homem preocupado
unicamente em administrar sua empresa da forma mais racional possível. Ora, se o que
importa é analisar o comportamento do indivíduo em sua vida comercial diária, como
ele conduz e administra seu negócio, é claro que a concepção dos Princípios de
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Economia se fundamenta numa visão microeconômica da sociedade capitalista. Vejam
vocês, meus queridos e minhas queridas alunas, – diz JR – essa perspectiva
microeconômica salta aos olhos quando examinamos como Marshall analisa a
distribuição de renda, isto é, a contribuição de cada fator de produção na geração da
riqueza. Vamos ver como Joan Robinson, que foi uma dentre muitos ilustres aluno(a)s
de Marshall, descreve como seu antigo mestre pensa essa questão. De acordo com ela, é
assim mesmo que entende o autor de o Princípios de Economia,
– Mas como se mede a parte da riqueza que cabe a cada fator de produção? – pergunta
JR com o propósito de arrancar seus alunos da apatia em que se encontravam. Abre o
manual de Krugman e Wells na parte em que eles explicam como se determina a oferta
de trabalho; isto é: a quantidade de trabalho que cada trabalhador está disposto a
oferecer no mercado. Noutras palavras, como cada um contribui para a produção e, em
consequência, a parte que lhe cabe da riqueza gerada. Vamos acompanhá–los de perto.
É um trecho relativamente longo, mas é importante que vocês atentem como eles
desenvolvem seus argumentos, pois, embora não o digam, seguem o mesmo raciocínio
defendido por Marshall, no capítulo I, do livro Quatro, dos Princípios de Economia.
– Vamos lá, gente, abram o livro na página 458. É aí que eles tentam demonstrar como
se determina a oferta de trabalho. Embora o não digam, essa demonstração pressupõem
o fluxo circular da renda, que eles apresentaram no capítulo 2, página 32. Estão
lembrados? – pergunta JR à sua “animada” turma. Como ninguém nem diz que sim nem
diz que não, ele começa a leitura do texto de Krugman e Wells onde eles afirmam que
no mercado de trabalho, o papel das firmas e dos domicílios é o inverso do que é nos
mercados de bens e serviços. Um bem como trigo é ofertado por firmas e demandado por
domicílios; mas o trabalho é demandado por firmas e ofertado pelos domicílios (Krugman
e Wells,2011, p. 458).
– Que coisa! – exclama JR. – Esses economistas transformam a realidade num mundo
de perfeita harmonia e felicidade. Para eles, tudo é muito simples: de um lado estão as
famílias, que demandam bens e serviços e ofertam seus fatores de produção; de outro,
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firmas que ofertam bens e serviços e demandam os serviços dos fatores de produção.
Como vocês podem perceber, – continua JR – não há donos de empresas, pois no
universo das famílias estão os donos dos fatores de produção, que vivem da venda de
seus serviços para firmas imaginárias, que produzem bens e serviços para os donos dos
meios de produção (trabalho, capital e terra), isto é, para as famílias. Nem uma palavra
sobre como os possuidores da terra adquiriam suas propriedades, nem como os donos
do capital formaram seu patrimônio.
Não é preciso nenhum conhecimento de Economia para saber que essa relação entre os
fatores de produção, de um lado, e as firmas, de outro, não passa de uma simplificação
grosseira e, até mesmo distorcida, do senso comum. Realmente, quem são os
indivíduos que ofertam trabalho para as firmas? De que mundo vieram? Serão obra da
natureza, que determinou que parte da humanidade deviria viver da venda do seu
trabalho e a outra parte, da venda de seus fatores de produção (terra e capital)? Outra
coisa: as empresas, que estão do lado direito do fluxo circular da renda, não têm donos?
O fluxo mostra que não, pois os donos dos fatores de produção, terra, trabalho e capital,
estão todos do lado esquerdo do fluxo, oferecendo seus serviços para empresas fictícias.
Que coisa mais estranha! Marx está com a razão, quando afirma que no assim chamado
fluxo circular da renda a felicidade
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de um escolástico com Deus-Pai, Deus-Filho e Deus-Espírito Santo é a mesma do
economista vulgar com terra-renda, capital-juro e trabalho-salário. É que essa é a forma
em que estas relações, na aparência, se apresentam diretamente interligadas e assim
existem nas ideias e na consciência dos agentes de produção capitalistas, destas prisioneiras
(Marx, 1980.Vol.III. ,p.1540).
Krugman e Wells talvez nem sequer se dão conta de que assim procedendo tornan-se
porta vozes dos interesses das classes dominantes, quanto
E não poderiam pensar diferente, pois como os economistas em geral, Krugman e Wells
não têm interesse em explicar a gênese histórica de como nasceu esse mundo do fluxo
circular da renda, com sua forma trinitária terra-renda, capital-lucro e trabalho-salário.
Não passa pela cabeça deles, mostrar o movimento histórico que criou esse mundo,
pois, para eles, o capitalismo é uma eterna forma de produção. Coisa que Adam Smith
já tinha como dada ao definir o homem como um ser da troca.
- Mas vamos voltar ao final do trecho citado há pouco do livro de Krugman e Wells, diz
JR-, no qual eles se perguntam “como as pessoas decidem quanto trabalho ofertar?”,
para, em seguida, esclarecerem que
na prática, a maioria das pessoas tem um controle limitado sobre os seus horários de
trabalho: ou se aceita um emprego que implica trabalhar um número estabelecido de horas
por semana ou não se tem emprego nenhum. Para entender a lógica da oferta de trabalho,
contudo, convém deixar o realismo de lado por um instante e imaginar um indivíduo que
possa escolher trabalhar tantas horas quanto queira (Krugman e Wells, 2011, p. 458).
– Prestem muita atenção nesse trecho, gente. Atentem bem para as seguintes passagens:
(1) os indivíduos têm controle, ainda que limitado, sobre o número de horas que
desejam trabalhar; (2) para entender a lógica que rege a oferta de trabalho, Krugman e
Wells pedem aos seus leitores que esqueçam como as coisas acontecem no mundo real.
Em seguida, JR convida seus alunos, para com ele, a analisarem cada uma dessas
passagens.
– A primeira (1), – diz ele – é uma agressão à inteligência do homem, por mais obtusa
que seja uma criatura humana. Qualquer trabalhador sabe muito bem que ele não tem
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nenhum controle sobre o número de horas que despende em seu trabalho, seja ele um
trabalhador formal, com carteira de trabalho assinada, ou um trabalhador de aplicartiivo.
Quanto à segunda passagem (2), Krugman e Wells pedem ao leitor para que abandone,
com eles, o mundo real para se refugiar num mundo idealizado, que só existe na cabeça
deles. Só assim, dizem eles, é possível entender a lógica que rege a determinação da
jornada diária de trabalho. Sendo assim, é preciso criar um mundo imaginário, uma
ficção teórica, para dizer como de fato se comporta o trabalhador no mundo real.
por que um indivíduo assim não trabalharia tantas horas quanto possível? Porque os
trabalhadores são seres humanos também e têm outros usos para seu tempo. Uma hora
gasta no trabalho é uma hora que não é gasta em outras atividades presumivelmente mais
prazerosas. Assim, a decisão sobre quanto trabalho ofertar envolve uma decisão sobre a
alocação do tempo: quantas horas dedicar a diferentes atividades (Krugman e Wells, 2011,
p. 458).
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Em seguida, Krugman e Wells detalham melhor como age o trabalhador ao ofertar mais
ou menos trabalho no mercado. Sempre baseado nos Princípios de Economia de
Marshall, embora sobre isso nada digam, explicam que
trabalhando, as pessoas obtêm uma renda que podem usar para comprar bens. Quanto
mais horas um indivíduo trabalha, mais bens ele pode comprar. Mas esse aumento do
poder de compra ocorre às custas de uma redução no tempo de lazer, o tempo gasto sem
trabalho (...). E, embora o bem comprado gere utilidade, o lazer também. De fato, podemos
imaginar o próprio lazer, como um bem normal, que a maioria das pessoas gostaria de
consumir mais quando sua renda aumenta (Krugman e Wells, 2011, p. 458).
– Como vocês podem perceber, – diz JR – eles pressupõem que os agentes econômicos
são racionais, e como tais estão sempre ponderando qual a melhor escolha a fazer, seja
na compra de um bem ou na oferta de um serviço. Neste último caso, eles agem tal e
qual como se comporta um consumidor racional. Como assim?
fazendo uma comparação marginal, é claro (...). Imagine Clive, que gosta tanto de lazer
quanto dos bens que o dinheiro pode comprar. E suponha que seu salário seja $10 por
hora. Ao decidir quantas horas quer trabalhar, ele tem de comparar a utilidade marginal
de uma hora adicional de lazer com a utilidade adicional que ele obtém de $10 em bens. Se
$10 em bens acrescenta mais à sua utilidade total do que uma hora de lazer, ele pode
aumentar a sua utilidade total renunciando a uma hora de lazer a fim de trabalhar uma
hora adicional. Se uma hora extra de lazer acrescentar à sua utilidade total mais do que
$10 de renda, ele pode ele pode aumentar sua utilidade total trabalhando uma hora a
menos a fim de ganhar uma hora de lazer (Krugman e Wells, 2011, p. 458).
ponto de escolha ótima de oferta de trabalho de Clive, sua utilidade marginal de uma hora
de lazer é igual à utilidade marginal que ele obtém dos bens que seu salário horário pode
comprar (Krugman e Wells, 2011, p. 458).
– E é, assim – conclui JR – que se determina a parte da renda gerada que cabe a cada
trabalhador. O mesmo raciocínio que se aplica ao capital. Este estará disposto a
contratar uma unidade adicional de trabalho até o ponto em que o seu lucro se igualhe
ao valor do produto marginal.
Depois dessa rápida exposição, JR pergunta para seus alunos e alunas o que acharam de
tudo que ele expôs. Como ninguém lhe respondia, convidou–os para um exercício de
imaginação. Apontou para um aluno e lhe perguntou o que ele faria se um dia assumisse
o Ministério da Economia.
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– Será que você usaria essa teoria que acabei de apresentar para tomar suas decisões
como ministro? Veja o caso do atual ministro. Você já o viu falando de produtividade
marginal do trabalho? Claro que não. Mas com certeza, você já o viu, por diversas
vezes, justificando a necessidade de uma reforma trabalhista, previdenciária e
administrativa. São todas reformas que tiram do trabalhador os seus direitos,
conquistados a duras penas e precariza ainda mais suas relações trabalhistas. O
resultado não poderia ser outro. O trabalhador, não só no Brasil, mas também em todo o
mundo, tem cada vez menos poder de barganha diante do capital. A teoria que
acabamos de apresentar, que ensina que o trabalhador sempre pondera quanto de lazer
está disposto abrir mão em troca de uma maior quantidade de bens que seu salário irá
proporcionar, está a anos luz distante da realidade do mundo do trabalho.
Em seguida, JR convida a turma para voltar ao início do livro de Krugman e Wells, para
que todos possam ter uma melhor ideia do mundo por eles apresentado em seu manual
de Introdução. Depois de apresentarem o conceito de economia, na página seguinte,
imaginam o que aconteceria se
você pudesse transportar um americano do período colonial para os dias de hoje (...). O que
o viajante do tempo acharia espantoso? (Krugman e Wells, 2011, p.2).
certamente o mais espantoso seria a prosperidade da América moderna – o leque dos bens
e serviços que as famílias comuns podem adquirir. Olhando toda essa riqueza, nosso colono
transplantado do século XVIII indagaria: ‘Como posso ter uma parte disso’? Ou talvez
perguntasse: ‘Como minha sociedade pode obter uma parte disso’ (Krugman e Wells, 2011,
p.2).
JR sabe que não é difícil imaginar qual seja a resposta. Diante do espanto do viajante do
tempo, Krugman e Wells afirmam que para chegar onde chegou, a América do Norte
precisou
Quanto a isso, JR não tem dúvida. O sistema de que falam Krugman e Wells não
poderia ser outro que não o mercado. Não por acaso, eles intitulam essa parte do texto
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de A Mão Invisível. Trata–se de uma expressão usada pelo pai do liberalismo
econômico, Adam Smith, para expressar que o mercado é, por excelência, a instituição
mais eficiente na alocação dos recursos da sociedade. É isso mesmo o que aqueles
autores desejam externar. É verdade. Na passagem que vem logo depois da citação
acima, eles afirmam que
nossa economia deve estar fazendo alguma coisa certa e o viajante no tempo gostaria de
cumprimentar o responsável. Mas, adivinhe. Não há ninguém responsável. Os Estados
Unidos têm uma economia de mercado (grifo deles) em que a produção e o consumo são
resultados de decisões descentralizadas das empresas e dos indivíduos. Não há autoridade
central dizendo às pessoas o que produzir e para onde transportar. Cada produtor
individual faz o que pensa ser mais lucrativo; cada consumidor compra o que escolhe
(Krugman e Wells, 2011, p.2).
Depois de lida essa passagem, JR chama atenção da sala de aula para que analise, com
ele, os pressupostos que estão aí implícitos. Em primeiro lugar sobressai–se a ideologia
de que o mercado é a melhor, senão a única instituição capaz de alocar os recursos da
sociedade da forma mais eficiente possível. Em segundo lugar, que os recursos da
economia são escassos. Quanto à defesa ideológica que esses autores fazem do
mercado, salta à vista quando afirmam que “a produção e o consumo são resultado de
decisões descentralizadas”, de decisões de uma economia de mercado. Com efeito, no
parágrafo seguinte asseveram que “a alternativa para uma economia de mercado é uma
economia de comando. A União Soviética, dizem eles, são uma prova do que dizem. Lá,
enquanto durou o chamado socialismo real, as coisas não “funcionaram muito bem”.
Isso prova, certamente diriam eles, que a razão está com Smith, para quem a economia
vai bem e progride com o tempo se os indivíduos são livres para aplicarem o seu capital
como bem desejarem, sem interferência de nenhum poder que decida, por eles, as
decisões que somente eles são capazes de tomarem.
– Quer dizer, então, que o Estado não despenha nenhum papel no funcionamento da
economia? – pergunta JR. – Se essa questão fosse dirigida a Krugman e Wells, diriam
que Estado é importante para manter a estabilidade da moeda e promover políticas de
anticíclicas. Ir além disso, significa que a intervenção estatal estaria interferindo em
atividades que são próprias do mercado; do setor privado.
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Respondem que a compra sempre impõe uma escolha porque, diante a diversidade de
bens existentes, o consumidor não pode ter tudo o que deseja. Por que não? Para
responder essa questão, Krugman e Wells convida o leitor para que ele
– Afinal de contas, por que o consumidor é mesmo obrigado a escolher quando decide
comprar algum bem? – pergunta JR a seus alunos e alunas. – Vocês entenderam?
Uma aluna lá do fundo da sala levanta o braço e responde que é porque existem
milhares de produtos, e ninguém dispõe de espaço e tempo para comprar todos os bens
ofertados. Outro aluno diz que a escolha é uma necessidade que se impõe porque o
consumidor tem um orçamento limitado, como assim dizem Krugman e Wells naquela
passagem.
– Quer dizer, então, que se não houvesse restrição de espaço, se meu apartamento não
fosse pequeno, eu poderia comprar tudo o que eu quisesse? – pergunta JR dirigindo–se à
sua turma. E continua questionando:– Se minha renda não fosse limitada, eu poderia
comprar tudo o que desejo? É gente, nossos autores não foram felizes em explicar por
que a compra de um produto sempre impõe uma escolha. Ora dizem que a escolha é
uma necessidade imperativa por conta de restrição de espaço; ora afirmam que é por
causa da limitação renda. Assim fica difícil conhecer a verdadeira causa por que a
escolha se impõe toda vez que um indivíduo decide comprar alguma coisa. – comenta
JR.
Sem se darem conta de que sua argumentação não explica a verdadeira causa que obriga
o consumidor a escolher, Krugman e Wells mudam o foque da questão. Agora, afirmam
que a “escolha” se impõe porque os recursos são escassos. Tanto assim é que logo em
seguida, abrem a próxima seção que traz como título os recursos são escassos.
– Observem –, diz JR. – À primeira vista parece que eles são mais cuidadosos. Mas só à
primeira vista. Nossos autores ainda continuam pondo acento na limitação de renda
como fator que obriga os consumidores a escolherem que bens comprar. Vamos
acompanhar mais de perto o raciocínio que desenvolvem a seguir. Eles começam com a
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seguinte afirmação: “Você não pode ter sempre o que quer”. – Por quê? – pergunta JR.
– A resposta vem em seguida, quando eles explicam que
todo mundo gostaria de ter uma casa bonita (e uma faxineira) , dois ou três carros de luxo
e férias frequentes em hotéis chiques. Mas, mesmo em um país risco como os Estados
Unidos, não são muitas as famílias que podem ter tudo isso. E, assim, elas precisam
escolher – ir à Disneylândia este ano ou comprar um carro melhor, conformar–se com um
jardim bem pequeno ou aceitar muito tempo no ônibus e viver numa área em que o terreno
é mais barato (Krugman e Wells, 2011, p.6).
– Uma leitura cuidadosa desse trecho mostra que nossos autores continuam com
raciocínios ambíguos. – comenta JR. – Numa parte dessa passagem, aqueles autores
afirmam que “não são muitas as famílias que podem ter tudo isso”. Ah, aí está a
primeira ambiguidade cometida por eles. – diz JR. – Aquelas famílias que não têm
limitação de renda podem ter tudo o que desejam. Com efeito, não dá para imaginar um
Bill Gates da vida tendo que escolher qual a opção mais barata para ele: comprar um
frango de padaria ou jantar no restaurante mais caro da cidade.
– Mas, vamos continuar examinando a passagem citada acima. – diz JR. – Depois que
nossos autores dizem que não são muitas as famílias que podem ter tudo isso, em
seguida, tiram do bolso do colete um conectivo para ligar essa assertiva com a que se
segue: E, assim, elas precisam escolher – ir à Disneylândia este ano ou comprar um
carro melhor. – Como assim? – pergunta, JR. – Como Krugman e Wells podem inferir
da proposição de que são poucas as famílias que podem comprar tudo que desejam, a
ideia “assim, elas precisam escolher...?”.
JR chama mais uma vez a atenção de seus alunos e alunas, para dizer que isso não é o
que mais importa. Mais do que isso, interessa agora analisar aquela passagem ambígua
sob novo prisma, isto é, sob a perspectiva lógica que sustenta o enunciado dos autores
em questão.
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escassos para a maioria da população, asseveraram que essa sentença não tem validade
para aquelas famílias muito ricas. Sem que se deem conta do que afirmam, Krugman e
Wells acabam por confirmar o que Hume e Popper defendiam. Para esses filósofos,
quem assevera, com base na experiência de um número limitado de observação, que os
recursos são escassos, não tem como sustentar sua assertiva de que todos os recursos
são escassos. De um número limitado de observações singulares não é possível daí
extrair um enunciado universal. Noutras palavras, de um ponto de vista lógico, não se
pode inferir enunciados universais a partir de observações singulares. Com efeito,
partindo de Hume, Popper chega a conclusão de que
não importa quantas instâncias de cisnes brancos possamos ter observado, isto não justifica
a conclusão de que todos os cisnes são brancos (Popper, 1980, p. 3).
– Mas essa é uma questão metodológica que não preocupa nossos autores. – Comenta
JR. – Eles partem do enunciado de que os recursos são escassos; porém, veem–se
obrigados a reconhecer que, para certas pessoas, os recursos não são escassos, como no
exemplo de Bill Gates.
- Peço desculpas se insisto em chamar a atenção de vocês para questões dessa natureza,
meus caros e minhas caras alunas. Minha intenção, – continua JR. – é tão somente
advertir que não podemos omitir a discussão sobre as bases epistemológicas e
metodológicas que dão sustentação às nossas argumentações. Principalmente quando se
está em jogo a responsabilidade de conduzir aqueles que estão entrando no mundo da
Economia pela porta de uma disciplina introdutória. A importância dessa disciplina é
fundamental porque ela é o alicerce que sustenta todo o edifício do saber que vocês vão
apropriar a partir daí.
– Depois do parágrafo que abre com a assertiva “Você não pode ter sempre o que
quer”, Krugman e Wells mudam o tom do discurso. Prestem bem atenção, gente,
porque, agora, eles começam perguntando “Por que os indivíduos têm de fazer
escolhas?”, para responder que a razão disso se deve ao fato de
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que os recursos são escassos. Recurso é qualquer coisa que pode ser usada para produzir
alguma outra coisa. Listas de recursos de uma economia em geral começam com terra,
trabalho (o tempo disponível dos trabalhadores), capital (maquinaria, construção e outros
ativos produtivos fabricados pelo homem) e capital humano (as conquistas educacionais e
habilidades dos trabalhadores). Um recurso é escasso quando sua quantidade disponível
não é suficiente para satisfazer todos os usos que a sociedade quer fazer deles (Krugman e
Wells, 2011, p.6).
– Vamos lá, minha gente! – insiste JR, com seus alunos e suas alunas, – Observem que
agora a restrição é geral. Todos têm de fazer escolhas, não mais porque a renda é
limitada, mas, sim, porque os recursos são escassos. Aqui, também, vamos nos deparar
com alguns problemas. Para aqueles autores, como vocês podem observar no trecho que
acabo de ler, os recursos escassos são a terra, o trabalho e o capital, isto é, os fatores de
produção. Muito interessante! Vocês não acham? – questiona JR.
– Deixa para lá. – responde JR, voltando a atenção para o texto. – Vamos continuar. Ao
restringir a escassez aos fatores de produção, nossos autores deixam de fora recursos
tais como água, a variedade de energia fóssil, matérias–primas etc. Mas, deixemos isso
de lado e vamos analisar se os fatores de produção são realmente escassos. Vamos
começar pelo fator trabalho. Pode–se afirmar que o trabalho é escasso? Ora, se
examinarmos as estatísticas da Organização Internacional do Trabalho (OIT), veremos
que, hoje, existem, no mundo, mais de 200 milhões de pessoas desempregadas. Um
contingente do tamanho da população do Brasil. É claro que a crise agravou o
desemprego bastante expressivo. Mas não podemos esquecer que o capital sempre
dispõe, e hoje, mais do que nunca, de um exército industrial de reserva à sua disposição,
do qual lança mão em períodos de crescimento acelerado da economia. Ao contrário do
que pensam Krugman e Wells, é o capital que determina o tamanho da força de trabalho
em atividade e o volume de uma reserva de trabalhadores de prontidão para ser utilizada
nos períodos de prosperidade econômica.
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Mas, quanto ao fator capital (maquinaria, construção e outros ativos produtivos), JR
chama atenção de que não tem sentido afirmar que se trata de um fator escasso. O
capital não é um estoque disponível de máquinas e equipamentos que as empresas
utilizam para a produção de bens e serviços. Mesmo se assim fosse, todas as empresas
trabalham com capacidade ociosa; isto é: nunca utilizam plenamente a sua capacidade
produtiva.
Tendo chegado nesse ponto, Krugman e Wells apresentam no capítulo 2 alguns modelos
econômicos a partir dos quais eles constroem uma representação ideal da realidade. Um
economista interessado em investigar o que é o dinheiro, imagina, por exemplo, um
sistema de trocas que se desenvolveu nos campos de prisioneiros durante a Segunda
Guerra Mundial, em que os cigarros se tornaram o meio através do qual eles
conseguiam as coisas desejadas. Cigarro passou a ser, portanto, a moeda de troca, a
moeda de compra, porque era o bem mais escassos nos campos de concentração.
Além do caráter bizarro do exemplo dos cigarros, o dinheiro não nasce da escassez. Até
mesmo para a teoria mais ortodoxa, a teoria quantitativa da moeda, o volume de
dinheiro em circlução é regulado pelo Estado.
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Mas, como a sociedade decide o que deve ser produzido? Mais alimentos ou mais
armas? Krugman e Wells não têm dúvidas. Até já responderam essa questão, quando o
viajante no tempo, o colono do século XVIII, imaginado por eles, espantado com
espetáculo de bens à disposição das pessoas, pergunta quem é o responsável por toda
aquela riqueza, que enchia seus olhos de admiração. Krugman e Wells se apressam em
dizer para o viajante que “não há ninguém responsável. Os Estados Unidos têm uma
economia de mercado em que a produção e o consumo são resultados de decisões
descentralizadas das empresas e dos indivíduos”.
– Bem, gente, acredito que essa breve exposição seja suficiente para que vocês tenham
uma boa ideia de como Krugman e Wells entendem a Economia – diz JR. – Aliás - ,
continua ele, - eu já tinha feito essa exposição, só que, agora, o fiz problematizando os
pressupostos metodológicos e epistemológicos que sustentam o discurso da
apresentação que eles fazem dessa ciência. E o fiz com a intenção de chamar a atenção
de vocês para o que vamos encontrar em O Mundo da Economia.
O Mundo da Economia abre suas portas para receber um viajante no tempo, que vem de
outra galáxia, com a intenção de avaliar o progresso no ensino de Economia. É um
alienígena que já conhece a Terra de outras incursões que fez por aqui, com o mesmo
intento do de agora. Chega numa daquelas noites em que o calor não permite a
ninguém um sono reparador. Por coincidência ou não, estaciona sua nave numa casa em
que se encontrava um recém-formado em Economia.
18
Assim como Krugman e Wells traz um colono do século XVIII para visitar um
shopping numa grande cidade norte-americana, o viajante alienígena vem sem cartão de
visita, vem movido pela curiosidade de avaliar a aprendizagem das ciências
econômicas. Enquanto o colono sente-se embevecido com aquele mundo de
mercadorias, o alienígena quer saber por que tudo aquilo, que deixava enfeitiçado o
pobre colono, tinha preço.
É partir daí que o alienígena começa seu diálogo com seu anfitrião impremeditado, que
acabara de receber o diploma de Economista. Conversa se inicia falando de coisas que
são de todo mundo conhecidas. Mas, o alienígena, diferentemente do colono, não quer
falar do senso comum refinado; pelo contrário, o que ele pretende mostrar é que as
verdades do senso são sempre paradoxais quando julgadas à luz das verdades
científicas.
-Mais isso, minha gente, diz JR, - é coisa para ser conferida ao longo desse semestre.
– Vamos, primeiro, ler livro! Vamos nele mergulhar de corpo e alma, como se fora um
grande lago. Mas nada de pressa para atravessá–lo de um só folego. Não se alcança a
verdade do conceito de Economia logo no início, porque a verdade não está no começo,
ela é processo e, por isso, só aparece depois de um longo trabalho de apresentação de
toda uma arquitetura conceitual.
JR
Verão de 2021
19
1. O ESTRANHO O MUNDO DOS HOMENS
Era noite alta quando Washington foi subitamente arrancado dos braços de Morfeu.
Banhado de suor, correu para janela do quarto. Abriu as portinholas escancarando
suas duas bandas: cada uma para um lado. Uma rajada de vento soprou seu rosto
enxarcado de suor, causando–lhe uma sensação de alívio e frescor. Sentindo–se mais
confortado, Washington espichou o pescoço para fora do quarto e olhou para o céu. O
brilho das estrelas iluminou o cubículo onde ele descansava da longa viagem que fizera
da capital até o alto sertão central; lugar onde nascera e que sempre visitava nessa época
do ano, para matar a saudade dos pais e dos amigos que ainda teimavam em viver
naquelas brenhas quase desérticas.
Não demorou muito para a claridade das estrelas se apagar. Um clarão incandescente
desceu do céu e entrou quarto adentro deixando Washington praticamente às cegas.
Tremendo dos pés à cabeça, voltou para cama e ficou sentado até sua visão começar a
divisar as coisas ao seu redor. Passado algum tempo, o medo se foi. Washington
continuava sentado à beira da cama, quieto; quase em estado catatônico. Ficou assim
até sentir a presença de alguém aproximando–se e sentando–se ao seu lado. Quis falar,
mas foi contido pelo visitante que lhe pediu calma, pois não queria amedrontá–lo; só
desejava descansar um pouco da longa viagem que fizera pelo espaço sideral até chegar
ali. Era um viajante de outro mundo que percorria as galáxias para aprender com os
habitantes de planetas diferentes do seu. Sabia que Washington era recém–formado em
economia. Por isso, foi logo perguntando–lhe:
– Sou conhecido por Washington, mas meu nome de batismo é George Washington
Ferreira da Silva.
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– Hum, é um nome esquisito. – retrucou o visitante.
– É mesmo. Você tem razão, – respondeu–lhe Washington – mas essa bizarrice, que
carrega meu nome, devo à minha mãe. Quando ainda era moça, ganhou uma nota de 1
dólar e ficou muito impressionada com o desenho daquele homem estampado naquela
cédula. Achou–o muito parecido com o seu avô. Quando soube que se tratava da figura
do primeiro presidente norte–americano, seu coração quse saiu pela boca de tanta
alegria. Muito tempo depois, quando eu já era menino feito, ela me contou que naquele
dia prometeu a si mesma que iria batizar o seu primeiro filho com o nome de George
Washington. Tinha extremo fascínio por tudo que era dos Estados Unidos. Quem a
conhece, sabe muito bem que ela tem guardado num baú dois álbuns cheios de fotos de
atores e atrizes de Hollywood. Vez ou outra, a vejo folheando as páginas amareladas de
suas lembranças de menina–moça. Tem retrato de tudo que foi e ainda são considerados
ícones do cinema Hollywoodiano. Tem retratos de Ingrid Bergman, Audrey Hepburn,
Sophia Loren, Olivia de Havilland, Elizabeth Taylor, Ava Gardner, John Travolta,
George Clooney, Kirk Douglas, Victor Mature, John Wayne, Clarck Gable, Marlon
Brando, etc..
Depois dessa rememoração, Washington, em tom jocoso, diz que sua mãe lhe dera um
nome partido ao meio: metade norte–americano e metade brasileiro.
– Que pena! Porque minha mãe não nasceu nos Estados Unidos da América do Norte.
Talvez hoje eu fosse um egresso da Universidade de Chigago. O jeito é me conformar,
quem sabe se um dia eu não consigo uma bolsa de estudo para fazer o doutorado por lá!
O viajante percebe o pesar de seu anfitrião e resolve desviar o rumo da conversa. Pede-
lhe licença para fazer mais algumas perguntas sobre a forma de organização da
produção e distribuição da riqueza da sociedade em que ele vive.
Começa perguntando como as pessoas adquirem as coisas que usam para se alimentar,
vestir–se, casa para morar e tudo mais do que precisam para viver. - Como elas
conseguem tudo isso?
Washington ficou intrigado com esse tipo de indagação. Achou-a bastante bucólica. Por
isso, não pensou duas vezes: virou–se para seu curioso visitante com certo ar de
deboche, estufou o peito com toda força dos pulmões e disparou:
21
– Ora, ora essa... comprando. Como mais poderia ser?
– Será mesmo que meu caro anfitrião não sabe que o mundo conhecido pelas ciências é
muito diferente do mundo que todos acreditam conhecer? Se alguém perguntasse por
que os corpos caem, que diria ele? Será que responderia que caem porque são pesados?
Tenho cá minhas dúvidas, que insistem em continuar me incomodando como se
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quisessem confirmar que estou certo. Será que essa pobre criatura, que acaba de
concluir um curso de nível superior, não sabe que os corpos caem por causa da lei da
gravidade e não porque são pesados?
– Por que vocês precisam de dinheiro para comprar as coisas que necessitam?
– Essa é de lascar – pensou Washington, xingando seu visitante celestial com todos os
palavrões que lhe viam à mente. Só depois de um esforço descomunal, conseguiu conter
os excessos de seu espírito irascível; olha para o viajante do outro mundo e lhe responde
a contragosto: – porque sem dinheiro ninguém pode comprar as coisas que precisa para
satisfazer suas necessidades. Todo mundo age assim! Dinheiro existe para facilitar a
vida da gente.
– Será que eu precisaria de dinheiro para comprar escravos, num mundo em que essa
barbaridade já não mais existe? – pensa o visitante com seus botões. Temendo
provocar a ira de seu anfitrião, resolve não lhe perguntar nada disso. Melhor continuar
com a conversa, com o devido cuidado para não o provocá-lo mais ainda.
23
pode comprar o que precisa para matar sua fome, para se vestir, para morar, para matar
a sede, para ir ao cinema, para viajar etc.
Essas meditações do visitante demonstram que as coisas que o homem deseja para
satisfazer suas necessidades nem sempre foram mercadorias. Somente com a destruição
do feudalismo e com a chegada do capitalismo é que a riqueza aparece “como uma
enorme coleção de mercadoria”. Quando tudo que existe, existe como mercadoria,
ninguém pode viver sem dinheiro para comprar as coisas.
Como a maioria de seus colegas, Washington não tinha a minha ideia de que existe
uma diferença histórica abismal entre o conceito bens e o conceito de mercadorias.
Ele, como todo mundo, está tão acostumado com mundo em que vive, que nem se dá
conta de que é filho de uma sociedade em que os bens e serviços assumem a forma de
mercadoria. Por isso, Washington não questiona mais o fato de que sem dinheiro, não se
come, não se bebe, nem tampouco se pode viajar, ir ao cinema etc. Nem mesmo lhe
causa estranhamento quando a justiça desapropria um pobre de sua palhoça para
restituir ao proprietário o terreno sobre o qual o pobre desgraçado construiu sua morada
feita com compensado, lona e papelão. Muito menos lhe causa indignação saber que o
dono do terreno mora numa cobertura com mais de 500 metros quadrados e que vive da
especulação imobiliária. Ninguém diz nada, pois tudo isso virou rotina. Contra esse
estado de coisas a única saída é apelar para a justiça divina, pedir a Deus que ampare os
desvalidos, como canta o grande Adoniram Barbosa, com sua voz rouca, a “sua saudosa
maloca”. Assim:
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Apreciar a demolição
Que tristeza que eu sentia
Cada táuba que caía
Doía no coração
- Você está certo, Adoniran, os “homis tá cá razão”. Num mundo onde tudo que existe,
existe como mercadoria, não é a Bíblia que é sagrada, mas sim, a propriedade privada.
Desde o século XVI, quando os portugueses se abalançaram mar adentro e aqui
chegaram, dividiram esse imenso território entre doze capitanias hereditárias, e
entregaram aos nobres que gozavam da confiança do rei D. João III (1502–1557).
O visitante resolve dar asas à sua imaginação e começa a aprofundar suas reflexões.
Inicia destacando que foi a partir de 1530 que tem início, de fato, a exploração das terras
da colônia portuguesa. Aqueles herdeiros, agraciados com o título de proprietário pelo
rei de Portugal, fizeram sua fortuna colhendo o que nunca plantaram. Com efeito,
chegaram aqui com seus trabalhadores acorrentados pelo pescoço: seus escravos, a
quem cabia produzir a riqueza, não para si, mas, sim, para seus donos. Foram eles que
fizeram a lei para protegê-los contra quem ameaçasse invadir suas propriedasdes. Para
tanto, instituíram a lei n. 601, de 18 de setembro de 1850, amplamente conhecida como
Lei de Terras, dispositivo legal que, pela primeira vez, tratou de regulamentar a questão
fundiária no Império do Brasil. Esse ato determinou que a única forma de acesso às
terras devolutas da nação fosse através da compra ao Estado em hasta pública,
garantindo, entretanto, a revalidação das antigas sesmarias, que era até então a forma de
doação da terra por parte do Estado à iniciativa particular – prática existente desde os
tempos coloniais. Essa lei definiu também penas para aqueles que se apossassem
indevidamente de terrenos públicos ou privados e neles pusessem fogo ou derrubassem
25
mato, sendo estes casos sujeitos a expulsão, prisão de seis meses a dois anos, além de
pesadas multas.
O quwe importa por ora, é saber que ma vez proprietários, eternamente proprietários. O
mundo muda, as sociedades criam novos direitos para proteger os mais pobres. No
entanto, a propriedade continua sendo um direito fundamental, uma instituição
inviolável, pois ela é a pedra de toque do mundo capitalista. Com efeito, no capítulo I,
Artigo 5º da Constituição Federal, de 1988, que dispõe sobre os Direitos e Garantias
Fundamentais do indivíduo, está escrito no inciso XXII que “é garantido o direito de
propriedade”. No inciso seguinte, XXIII, lê–se que “a propriedade atenderá a sua função
social”. Caso não o faça, o incisivo XXIV determina que “a lei estabelecerá o
procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse
social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos
nesta Constituição”.
Não é preciso nenhum esforço intelectual para perceber que o Artigo 5º da CF,
notadamente o inciso XXIV, transformou–se num preceito escrito que não se cumpriu,
ou que nunca teve autoridade, nem valia. Numa linguagem pé no chão: o que preceitua
o inciso XXIV não passou de letra morta, malgrada a luta dos movimentos sociais pelo
direito à terra. Por isso, não adianta lamentar nem pedir conforto a Deus, pois o mundo
tem dono. Quem não é dono de terras, de bancos, de empresas, não tem outra saída que
não vender a propriedade que traz em seu corpo: a sua força de trabalho. Essa é a única
mercadoria de que dispõem os despossuídos de propriedade para vendê–la no mercado
em troca de um salário; e isso quando encontra quem a compre.
O viajante tinha conhecimento de tudo isso. Sabia muito bem que o dinheiro só se
tornou uma coisa inevitável, sem qual ninguém pode comprar o que precisa, quando o
produto do trabalho do homem virou mercadoria. Sabia também que a propriedade não
é produto do trabalho pessoal; se fosse assim, os escravos seriam, hoje, os donos do
Brasil, pois foram eles que criaram a riqueza dos barões do açúcar e do café.
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A conclusão óbvia que daí se infere é a de que o trabalhador não é o dono das coisas
que ele produz. Pergunte a um padeiro de uma grande panificadora a quem pertence o
pão que ele produz. Ele não pensaria duas vezes: “pertence ao meu patrão”, diria ele.
“Se eu quiser levar algum pão para minha casa, terrei que fazer o que todo mundo o faz;
tenho que comprar o pão que eu mesmo produzi”. Pior do que isso, é o fato de que é
com a venda do produto criado por seus trabalhadores, que os patrões pagam seus
salários. Ao contrário do que pensa o senso comum, não é o patrão que paga o salário de
seu empregado, mas, sim, é este que paga seu próprio salário.
Nesse mundo em que o trabalhador não é dono das coisas que produz, resta a Zé
Ramalho, como o fez Adorian Barbosa, tão somente lamentar a sorte daqueles vivem da
venda de sua força de trabalho.
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Era quatro condução
Duas pra ir, duas pra voltar
Essa canção termina com um apelo aos desfortunados para que eles parem de lamentar
sua condição de vida, pois até mesmo Deus, que criou a terra, encheu os rios, não
deixou nada faltar, “na maioria das casas/(...) também não pode entrar”.
Que pena que o mundo seja assim! No entanto, pelo menos uma lição deixa essa
canção. Ela mostra que a cidadania não depende da Lei; não basta ter um registro civil
de nascimento; tampouco uma carteira profissional sem registro de contrato de trabalho.
Pois a realidade ensina que cidadão é aquele que tem propriedade; que tem casa para
morar; que tem condições de oferecer uma boa educação aos seus filhos; que possa
dispor de bons advogados para defender seus direitos etc.
“seja o que for que ele retire do estado que a natureza lhe forneceu e no
qual o deixou, fica-lhe misturado ao próprio trabalho, juntando-se-lhe algo
que lhe pertence, e, por isso mesmo, tornando-o propriedade dele.
Retirando-o do estado comum em que a natureza o colocou, anexou-lhe por
esse trabalho algo que exclui do direito comum de outros homens" (Locke,
1978, p.45).
A propriedade aparece, assim, como uma instituição natural, pois é, igualmente, produto
de uma outra propriedade natural do homem: o seu trabalho pessoal. Partindo deste
pressuposto, Locke passa, então, a investigar como se determina o valor da propriedade.
Por meio de um raciocínio engenhoso, ele descobre que o valor das coisas, as quais o
homem retira da natureza, deve-se ao trabalho despendido por ele (homem) para delas
se apropriar. Para demonstrar que o trabalho, é, portanto, a medida de valor das coisas,
ele recorre ao seguinte exemplo:
29
tão-só à natureza quanto ao que se atribui ao trabalho, verificaremos que
em muito deles noventa e nove centésimos têm-se de levar à conta o
trabalho" (Locke, 1978,p.50).
É interessante observar que o trabalho não é a única fonte de valor. Como se pode notar
no trecho acima citado, além do trabalho, Locke computa, no valor das coisas, uma
parcela devida à natureza. Leva, portanto, em consideração a utilidade que a mãe
natureza dá aos produtos. Apenas dessa dupla determinação do valor, Locke tinha
consciência de que o trabalho tendia a crescer sua participação na formação do valor, na
medida em que a divisão social do trabalho avançasse. É o que se pode depreender
numa passagem em que ele distingue com clareza, embora não se refira explicitamente
aos conceitos, a diferença entre trabalho vivo e trabalho morto. Depois de argumentar
que é o trabalho que atribui maior parte do valor à terra, ele conclui dizendo que
Daí se pode concluir, sem muito esforço intelectual, que o trabalho é a fonte da
propriedade, e que seu valor é determinado pela extensão do trabalho de cada um,
isto é, pelo esforço que cada indivíduo despendeu para criar suas coisas – sua
propriedade.
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Mas, se é assim, como se explica a desigualdade social? A resposta que se encontra em
Locke é simples: para ele, a concentração da propriedade em mãos de uma minoria se
deve a invenção do dinheiro. É o que ele deixa transparecer nessa passagem, na qual
afirma que
seja lá como for, ao que não quero dar importância, ouso afirmar
corajosamente o seguinte: - a mesma regra de propriedade, isto é, que
todo o homem deve ter tanto quanto possa utilizar, valeria ainda no
mundo sem prejudicar a ninguém, desde que existisse terra bastante
para o dobro dos habitantes, se a invenção do dinheiro e o tácito acordo
dos homens, atribuindo um valor à terra, não tivesse introduzido - por
consentimento - maiores posses e o direito a elas... Idem.Ibidem.,p.4/49).
Se o homem não tivesse inventado o dinheiro, ah, que bom seria o mundo; não
haveria desigualdade social, não haveria fome, não haveria guerra, nem assinatos
etc. Infelizmente, essa invenção possibilitou que uns poucos pudessem possuir
mais do lhe permitia a extensão do seu trabalho pessoal, individual. Noutras
palavras, poderia comprar a propriedade dos outros e, assim, construir um enorme
patrimônio.
Bem que se poderia perguntar a Locke porque somente uma minoria tem dinheiro
para comprar a propriedade dos outros indivíduos. Nem de longe Locke se
preocupou em formular tal questão. Para ele, o dinheiro é um fato.
31
alguns direitos elementares, tais como direito à saúde (embora se morra na fila de espera
por um atendimento médico), à educação (embora a escola pública esteja longe do
ideal), à liberdade de ir e vir (desde que a maioria reconheça seu lugar), à
inviolabilidade da intimidade, da vida privada (para aqueles que não moram em favelas)
etc. Mesmo assim, a propriedade continua sendo reconhecida como uma instituição
natural e e inviolável. Ninguém pode se apossar da propriedade alheia, por maior que
seja a necessidade de quem pratica um ato dessa natureza. Mesmo considerando que a
propriedade esteja em desuso há muito tempo, se alguém se apossa dela, vem a lei e
despeja o “invasor” para reintegração de posse. Daí, talvez, se exlique a resignação de
Adoniram e de Zé Ramalho diante da frieza da justiça que mandou derrubar palhoça de
um, e impediu o outro de matricular a filhinha no colégio que ajudou a construir.
Depois dessa longa digressão, o viajante não se conteve e brada com todas as letras que
de perto, nada é natural. Infelizmente, Washigton via tudo de longe, para ele tudo é
muito natural, porque desde que se entende por gente, o mundo sempre foi assim. Daí a
razão de sua irritação com as perguntas aparentemente triviais do visitante, para quem,
no mundo dos homens, nada é como aparenta ser à perimeira vista. Por isso, o viajante
resolveu retomar a leitura de A Riqueza das Nações, escrito em 1776, só que desta vez,
retirou também de sua maleta um exemplar de O Capital, de Karl Marx, cuja primeira
edição veio a público em 1867. Folheou as páginas iniciais da primeira dessas obras e
encontrou, no capítulo II, uma passagem em que seu autor diz que, num mundo em que
todos os produtos criados pelo trabalho do homem são mercadorias, cada indivíduo
32
Após uma pequena pausa, olhou para seu anfitrião e observou: – Que mundo esquisito é
esse de vocês, meu bom anfitrião? – e continuou fazendo referência a passagem que
acabara de ler. – Agora fica claro porque vocês têm de comprar tudo o que precisam. É
porque tudo o que vocês produzem assume a forma de mercadoria, uma coisa destinada
à venda. Por isso o mundo de vocês é tão desumano, como diz o autor de A Riqueza
das Nações. Solidariedade, bondade, humanidade, são sentimentos que as pessoas não
levam em conta em suas relações umas com as outras. Que coisa, meu bom anfitrião! O
modo de agir de vocês, como diria a filosofia, é uma verdadeira contradição
performativa, pois suas ações são a negação do que afirmam. Pregam o amor, a
solidariedade, a humanidade, mas jogam fora esses atributos em nome do interesse
próprio.
Passado algum tempo, o curioso visitante relembra que Washigton havia lhe dito que o
dinheiro é um simples meio de troca e lhe pede maiores explicações. Já esquecido da
vergonha que passara há pouco, Washigton, num tom professoral, acrescenta:
– O dinheiro é produto de uma convenção social, que atribuiu ao ouro a função de servir
de moeda de compra e venda. Com o tempo, o ouro foi destituído de sua função e foi
substituído por pedaços de papel, as chamadas cédulas impressas pelo Estado. Mais
confiante, Washigton foi mais longe. Todo empolgado com seu conhecimento sobre o
dinheiro, acrescentou que este, além de servir de meio de troca, é unidade de conta e
reserva de valor.
Extenuado pelo esforço que fizera, Washigton se vira para seu visitante e exclama: – Aí
está o que a Economia ensina sobre o dinheiro, meu caro viajante!
Tomado pela sensação de quem havia respondido com todo rigor o que lhe fora
perguntado, Washigton não cabia em si de contentamento. Tinha certeza de que agora
seu visitante daria o assunto do dinheiro por encerrado.
33
Pobre coitado! Mal acabara de colher os louros de seus ensinamentos sobre o dinheiro,
foi sacudido com uma enxurrada de outras questões.
– Certamente você deve ter lido A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, de J.
Maynard Keynes, (Keynes, 1985), para quem, o dinheiro é um ativo estratégico para a
economia monetária da produção. Você poderia me explicar o que esse autor quis dizer
com isso? – insiste o viajante que não se conformou com a explicação que lhe fora
dado pelo jovem Washigton. E, como não obteve resposta, o viajante resolveu
apresentar seus argumentos sobre o assunto. Para não ferir o ego do seu anfitrião, o
visitante começa sua exposição assim:
– Dizer que o dinheiro é um artivo estratégico parace que tem a ver com o
comportamento dos investidores. Durante a viagem que fiz até chegar aqui, li que esse
autor considera que os investidores pensam duas vezes antes de tomar suas decisões.
Ponderam sempre se seria melhor não abrir mão da liquidez, isto é, do dinheiro, ou se
deveriam investir seu bom dinheirinho na esperança de receber futuros rendimentos, que
calculados a preços de hoje, podem se mostrar bem mais vantajosos. – E acrescenta – Se
estou certo, meu caro o jovem, dinheiro é uma coisa muito mais complicada do que
você me ensinou. Você concorda com comigo? – pergunta o visitante.
O jovem Washigton que havia jogado fora as vestes da humildade, volta a vesti–las e
vê–se instado a dizer que não se interessou muito pela questão do dinheiro. Sentiu–se
obrigado a confessar para seu curioso visitante que não leu Keynes.
– Nunca me dei ao trabalho de ler um autor tão complicado como esse – confessa
Washigton. – A teoria por ele elaborada é causa de controvérsias sem fim. Só o título
de sua obra, “A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda”, desanima qualquer
leitor a lê–la do começo ao fim.
34
Pobre coitado, exclamou o viajante para si próprio. Meu pobre anfitrião nem de longe
desconfia de que os livros didáticos trazem um dedo apontado para o leitor, com uma
mensagem insultante que poderia ser assim expressa: “você é burro. Deixe que eu
penso por você; lhe dou tudo mastigadinho. Você não precisa perder tempo com coisas
tão difíceis, traduzo–as para você”.
Washigton não é uma exceção! Como ele, para a maioria dos estudantes esse tipo
insulto não choca mais ninguém, pois todos se habituaram viver num mundo em que a
produção de saberes é uma produção feita de migalhas. Com efeito, o homem
converteu–se num homo ignotus, caiu num estado de anorexia intelectual. Já não lê
mais os grandes clássicos da Economia e da Filosofia, que edificaram o pensamento
político da modernidade. Prefere os manuais didáticos, que lhe poupam o aborrecimento
de pensar. Também não leu Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa,
Kafka, Drumond, Fernando Pessoa, Shakespeare, dentre outros. Caso tenha
oportunidade de se deparar com um livro desses monstros da literatura nacional e
mundial, desanima com o tamanho do seu volume; se lê as primeiras páginas, logo cai
em desânimo e o abandona por um texto que fale de bruxaria, esoterismo e coisas do
gênero. Há muito que o homem perdeu o gosto pela leitura. Já não lê mais textos
demorados, que exijam dele o mínimo esforço para compreendê–los; prefere textos que
o dispensem de pensar, pois é mais cômodo que outros o façam por ele, que
simplifiquem para ele tudo que demanda tempo para ser compreendido; se possível, que
reduzam as teorias sistêmicas, complexas, em meia dúzia de enunciados, que caibam em
poucas páginas.
Num mundo assim, encontrar alguém que leia a Teoria Geral de Keynes é quase um
milagre. Há muito que os clássicos da filosofia, da economia política, da sociologia,
todos eles estão nas bancas de revistas, para ser lidos em 90 minutos. A obra de uma
vida inteira, como a de Kant, Hegel, Marx, Smith, Ricardo, por exemplo, é condensada
em poucas e ligeiras palavras. Alguns trechos de fácil compreensão são selecionados
para o leitor citá–los e, assim, pousar de intelectual diante de uma plateia tão ignorante
quanto ele. Num mundo assim, em que quase todos se tornaram cegos, quem tem um
olho é rei. Daí porque muitos autores não precisam de muitos esforços para se tornarem
conhecidos do público.
35
– Por isso é que simplificaram a teoria de Keynes em poucas equações matemáticas –,
exclamou o viajante. Sem mais se dirigir a seu anfitrião, comenta para si mesmo o que
fizeram com sua obra. Sabe muito bem que em 1937, um economista britânico, John
Richard Hicks, professor da universidade de Oxford, elaborou uma síntese entre a teoria
neoclássica e a Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, através de uma
formalização matemática que ficou conhecida como modelo IS/LM.
– Ora, esse tipo de modelo termina por desfigurar a teoria de Keynes. – critica o viajante
com um ar de descontentamento. Em seguida, ele resolve resumir o que significa o
modelo IS/LM. Explica que a curva IS mostra a relação entre as diversas taxas de juros
e do produto, ao longo da qual a poupança (S) é igual ao investimento (I). A curva LM,
por sua vez, expressa a relação entre os diferentes níveis de produção e taxas de juros,
com a pressuposição de que a oferta de moeda (M) é igual a demanda de moeda (L).
Onde essas duas curvas se interceptam, tem–se o ponto de equilíbrio entre a produção (o
lado real da economia) e a taxa de juros (o lado monetário da economia).
Depois desse resumo, o visitante do outro mundo olha para seu anfitrião, o Sr.
Washigton e brada: – isso não passa de uma simplificação grosseira da Teoria Geral de
Keynes. No entanto – acrescenta, com certa ironia –, há de se reconhecer que o modelo
IS–LM é muito interessante para os alunos de macroeconomia, pois de maneira lúdica,
lhes ensina como se constrói essas curvas e como podem com elas brincar de fazer
políticas econômicas. Deslocando a curva IS para cima ou para baixo, o aluno aprende
como se faz políticas fiscal e monetária.
– Esse é o lado bom do modelo, se é que há realmente alguma coisa de bom nisso tudo,
meu caro Washigton. No entanto, não se pode deixar de examinar o reverso da
medalha. O Keynes que aparece nesse modelo IS–LM é um Keynes desfigurado,
irreconhecível. Sua teoria não cabe em poucas equações matemáticas. O princípio de
demanda efetiva, que é o ponto central em torno do qual gira a sua teoria e a crítica que
ele faz à economia neoclássica, é obliterado no modelo elaborado por John Hicks. Com
efeitos, uma leitura cuidadosa do capítulo 3 de sua obra que, aliás, traz como título “O
Princípio de Demanda Efetiva”, não deixa dúvidas. Nesse capítulo, o leitor encontra que
esse princípio revela que 1) o consumo de bens finais depende do crescimento da renda
(salários e lucros); 2) que o crescimento no volume de emprego depende do aumento
36
nos investimentos, e estes, por sua vez, 3) dependem da eficiência marginal de capital
(taxa de lucratividade esperada) e das taxas e juros; e, finalmente, que, 4) as despesas
em bens de consumo e bens de investimentos somam–se para determinar o nível de
renda. Visto que o consumo é uma variável dependente da renda, esta passa a ser
determinada fundamentalmente pelas despesas em investimentos. Em consequência, o
investimento é a variável privilegiada na análise keynesiana do funcionamento da
dinâmica da economia capitalista, e que, por isto mesmo, o investimento é o elemento
dinamizador na geração de emprego.
37
para dizer, de forma simplificada, do dinheiro, da liquidez, que está em suas mãos, do
capital monetário que possui.”
- Daí, cara Washington, a extrama instabilidade nas decisões de investir -, diz visitante.
É essa instabilidade, continua o visitante, - que é responsável pelos ciclos econômicos
da economia capitalista, que se manifestam alternadamente por fases de recessão–
depressão–recuperação. As crises que se fazem acompanhar por um incremento no
desemprego, não podem, portanto, ser atribuídas a uma redução no consumo de bens
finais pelos consumidores. Elas são resultado, em primeira instancia, das oscilações dos
níveis de investimento. Entende–se, agora, porque ocorre desemprego. Nas fases
recessivas, a redução dos investimentos (principal determinante do crescimento da
renda) implica queda no nível de renda e consumo, resultando em desemprego. Sendo o
investimento o principal determinante do crescimento econômico, é ele a variável chave
explicativa da insuficiência da demanda efetiva, e não o consumo de bens finais, como
querem fazer crer as teorias subconsumistas, que creditam ao consumo final o elemento
dinamizador do processo de acumulação. Para Keynes, a produção de bens de consumo
final é dependente do que se passa nos setores de bens de capital (máquinas,
equipamentos, etc). Isto está claro no próprio enunciado do princípio de demanda
efetiva, que afirma ser o consumo dependente da renda e que esta última é determinada
pelos gastos capitalista, pelos investimentos.
– Por mais simplificada que tenha sido minha exposição da teoria de Keynes, com
certeza ela é bem mais rica do que apresenta o modelo IS–LM. Este modelo mutila a
sua teoria. Mas isso, meu caro Washigton, vou deixar para que os futuros alunos de
macroeconomia descubram.
38
– Espero que não me julgue um sujeito esnobe, um presunçoso, que veio do espaço para
exibir conhecimentos em matérias que são próprias de sua formação. Longe disso, caro
Washigton, minha intenção foi mostrar o que se dá quando se pensa com cabeça dos
outros. Quero dizer, com livros didáticos. Estes podem até ser de alguma utilidade, mas
não devem substituir a leitura do próprio autor – conclui o visitante.
– Mas vamos voltar à questão do dinheiro, meu caro e bom anfitrião. Você deve estar
lembrado do exemplar de O Capital, de Karl Marx, que eu havia tirado da minha
maleta, juntamente com um exemplar de A Riqueza das Nações, de Adam Smith. Pois
bem, deixe–me, agora expor resumidamente porque, para Marx, o dinheiro é, antes de
tudo, poder de disposição privado sobre a riqueza social; ele é poder.
O viajante sabe que a teoria do dinheiro em Marx é bastante complexa. Por isso, tenta
apresentar apenas os aspectos mais gerais dessa teoria. Começa destacando que a
categoria dinheiro aparece já no livro I, capítulo I, da seção 3, que tem como título A
Forma de Valor ou o Valor de Troca. Aí, como o próprio Marx o diz, sua intenção é
“realizar o que jamais foi tentado pela economia burguesa, a saber, provar a gênese
dessa forma–dinheiro, portanto, seguir de perto o desenvolvimento da expressão valor
contida na relação de valor das mercadorias, desde sua forma mais simples e opaca até a
ofuscante forma–dinheiro. Com isso, desaparece, ao mesmo tempo, o enigma do
dinheiro” (Marx, 2017, Liv.I,p. 125).
– Vejo que você, caro Washigton, não parece nada satisfeito com o que Marx diz nessa
passagem. Deve achá–la muito abstrata, de difícil compreensão. E você tem toda razão.
Mas, vamos tentar esclarecer o que esse autor quer de fato dizer.
O visitante começa sua exposição, esclarecendo que quando Marx diz que sua intenção
é realizar o que a economia burguesa nunca tentou fazer, seu objetivo é demonstrar que
o dinheiro é uma necessidade nascida da contradição interna da mercadoria. Todo
mundo sabe, diz o visitante – que se alguém deseja uma garrafa de água para matar sua
sede, somente poderá satisfazer essa sua necessidade se tiver dinheiro para comprá–la.
Não somente água, mas também qualquer outra coisa destinada a satisfazer uma
necessidade qualquer, tem de ser comprada para poder ser utilizada. A utilidade de uma
coisa de nada vale, se, primeiro, não se pagar por ela.
39
– É assim o mundo em que vocês humanos vivem – concluiu o visitante. – É um
mundo, como já dizia Adam Smith, onde tudo que é produzido é produzido como
mercadoria. Lembra daquela passagem, Washigton, que citei de A Riqueza das Nações,
lá no começo de nossa conversa? – pergunta o viajante. Nessa passagem, – continua ele
– esse autor diz, com todas as letras, que as pessoas só podem desfrutar do valor de uso
das coisas que precisam, se, primeiro, pagar para obter essas coisas. Na verdade, o que
esse autor quer dizer é que tudo que existe tem um valor de uso e um valor de troca.
– É daí que parte Marx para demonstrar a necessidade do dinheiro – continua o visitante
com sua explanação. Para ele, a mercadoria tem um duplo aspecto: ele é valor de uso e
valor. Essas duas propriedades das mercadorias se incluem e se excluem mutuamente.
Se incluem porque ninguém estaria disposto a produzir sapatos, por exemplo, se eles
não tivessem alguma utilidade. Se excluem, porque seu produtor produziu sapatos para
vender, para trocá–los por outras coisas. A única coisa que lhe interessa é valor de troca
daquilo que ele produziu. O produtor de sapatos não tem um pingo amor pelo que
produz; para ele é indiferente produzir sapatos ou veneno; ele quer produzir uma coisa
que tenha valor, para vendê–la no mercado. Foi para isso que ele investiu seu bom
dinheirinho comprando matérias–primas, máquinas, contratando trabalhadores etc.
Consequentemente, os sapatos não têm nenhuma utilidade para ele, não produziu para
utilizá–los, mas, sim, para vendê–los. Por sua vez, quem comprou os sapatos, comprou–
os porque eles têm valor de uso, têm utilidade para ele. Caso contrário, não os teria
comprado.
O visitante continua sua exposição, insistindo em deixar claro que a mercadoria sapatos,
por exemplo, é uma coisa que tem duas qualidades distintas: ela tem valor de uso e
valor de troca. Para quem a produziu, só importa o valor de troca; para quem comprou,
o que interessa é o valor de uso dessa mercadoria. Com um pouco mais de atenção,
percebe–se que o dinheiro nasce dessa contradição da mercadoria de ser valor de uso e
valor de troca ao mesmo tempo. Com efeito, se o produtor de sapatos não vende sua
mercadoria, ele terá prejuízos e poderá até mesmo vir a falir. Do lado do consumidor, as
coisas se passam de forma diferente. Se ele tem dinheiro, ele poderá comprar seus
sapatos de outros produtores, pois são muitos os produtores de sapatos. Mas ele só
poderá comprar seus sapatos, se tiver dinheiro.
40
É da contradição entre valor de uso e valor de troca, que Marx parte para derivar a
categoria de dinheiro. Nascido dessa contradição, que toda e qualquer mercadoria
carrega dentro si, o dinheiro se torna o representante universal da riqueza geral, o
equivalente geral, pois todas as coisas que existem, precisam ser transformadas em
dinheiro. Caso isso não aconteça, não é a mercadoria que sofre as consequências, mas,
sim, o seu produtor.
O visitante do outro mundo sabe que sua apresentação da teoria do dinheiro em Marx
estar longe de esgotar a exposição que o autor de O Capital apresenta na seção III,
capítulo I, do Livro I. Mesmo assim, dá–se por satisfeito em ter mostrado que o dinheiro
nasce da contradição entre valor de uso e valor de troca das mercadorias. Enquanto a
riqueza da sociedade continuar dominada pela produção de mercadorias, o dinheiro
continua reinando de forma soberana. Sem ele, não se tem acesso a nada nesse mundo,
seja comida, roupa, diversão, saúde etc. Até mesmo para quem acredita em Deus, sabe
que sem dinheiro ninguém poderá comemorar o aniversário de nascimento de Jesus,
pois não poderá comprar o peru da Sadia, a Coca–Cola e os presentes para seus
familiares e amigos.
O visitante do outro mundo sabe que sua tarefa está longe ser concluída. Entretanto, se
dá por satisfeito ter mostrado que o dinheiro dá ao homem o que ele não pode realizar
com suas forças materiais e espirituais. E por ser assim, o homem se torna escravo do
dinheiro. Até mesmo o poeta e dramaturgo Shakespeare (1564–1616) tinha consciência
disso. Não é sem razão que Marx cita um trecho de uma de sua obra, o Timão de
Atenas, onde se lê:
“O que eu sou e consigo não é determinado de modo algum (...) pela minha
ninha individualidade. Sou feio, mas posso comprar para mim a mais bela
41
mulher. Portanto, não sou feio, pois o efeito da fealdade, sua força
repelente, é anulado pelo dinheiro. Eu sou – segundo a minha
individualidade – coxo, mas o dinheiro me proporciona vinte e quatro pés;
não sou, portanto, coxo; sou um ser humano mau, sem honra, sem
escrúpulos, sem espírito, mas o dinheiro é honrado e, portanto, também o
seu possuidor.” (MARX, 2010, p.159).
Essa é a sociedade do ter; uma sociedade na qual o homem somente é, se ele tem; se não
tem, ele não é nada. Por isso, de acordo com Marx, o poder que cada indivíduo exerce
sobre a atividade dos outros ou sobre a riqueza social existe nele como o proprietário de
valores de troca, de dinheiro. “Seu poder social, assim como seu nexo com a sociedade,
[o indivíduo] traz consigo no bolso” (Marx, 2011, p. 157).
O viajante olha para seu anfitrião, e se dá conta de que Washigton parecia extasiado
com o que ele acabara de expor. Faz uma longa pausa a espera de algum comentário da
parte dele. Como ele não se dispôs a falar, o visitante se volta para ele e comenta:
– Por hoje, é bom pararmos por aqui. Vamos descansar e amanhã, mais dispostos,
continuaremos nossa conversa.
No dia seguinte, o viajante acordou cedo. Procurou Washigton e o viu agarrado com seu
notebook, pesquisando artigos sobre o dinheiro. – Olha, parece que meu anfitrião se
interessou em estudar mais sobre o que discutimos ontem à noite – comenta o visitante
consigo mesmo. Mas, logo em seguida, dirige–se ao seu anfitrião para sugerir uma nova
pauta de discussão. Mas o faz perguntando–lhe o seguinte: – Washigton, o mundo
sempre foi assim? Será que já existiu sociedades em que o produto do trabalho do
homem não assumia a forma de mercadoria? O que desejo saber é se o homem sempre
teve de pagar pelos bens que necessita para satisfazer suas necessidades.
Esperou pela resposta de seu anfitrião. Porém ela não veio. – Será que esse pobre
doutor nunca estudou história econômica? Pelo que demonstrou até aqui, sou obrigado
a confessar que, para ele, história e economia são duas ciências distintas – pensou o
visitante. O silêncio de Washigton já dizia tudo: ele nunca chegou a estudar se existiu
outras formas de sociedade onde nem tudo era mercadoria. Se o tivesse feito, como já
mostrei antes, ele teria descoberto que a história registra a existência de civilizações em
que os bens não eram produzidos para serem vendidos, mas, sim, para o consumo da
42
própria comunidade. Aliás, nem é preciso ir muito longe, para saber que na sociedade
feudal, por exemplo, o grosso da produção é para o autoconsumo; não era mercadoria.
Foi então que o visitante achou por bem convidar Washigton para acompanhá–lo numa
rápida investigação sobre a gênese histórica da sociedade dominada pela produção de
mercadorias. Ainda com seu notebook aberto na página do Google, o paciente anfitrião
concordou com seu visitante. Antes, porém, lhe perguntou de onde ele veio, que faz
para viver, qual é o seu nome e um sem número de perguntas que fervilhava em sua
cabeça.
– Calma, meu bom doutor. Eu venho do futuro, do ano 2090, mas já estive por aqui
antes. Minha função, na nave que viajo pelo universo, atravessando as mais diversas
galáxias, é colher dados sob a forma de vida, costumes, moral, organização política, etc
dos países em que me hospedei. Durante minha estada no seu planeta Terra, visitei todas
as grandes bibliotecas e guardei, no meu computador de pulso, todo conhecimento
acumulados por vocês. Voltei para o futuro e só agora estou de volta ao passado;
retornei para ver como vocês evoluíram desde a última vez que estive por aqui. Mas
vamos nos concentrar na proposta que acabei de te fazer. Vamos investigar como
nasceu a sociedade capitalista. Espero explicar com essa investigação o que os livros de
Introdução à Economia nunca fizeram, nem tentaram fazer, que é demonstrar como
nasceu a propriedade capitalista e com ela a divisão da sociedade entre capitalistas e
trabalhadores, isto é, entre os donos da propriedade dos meios de produção e os
deserdados de propriedade.
– Ah, já faz um bom tempo, preciso até atualizar os dados que coletei antes de eu voltar
para o futuro. Vim agora, já com todo esse conhecimento que você pôde constatar.
Mas, deixe–me dizer o meu nome. Eu sou metade vulcão e metade humano. Meu nome
é Spock.
– Tudo bem – respondeu Washigton. Vamos discutir como nasceu esse mundo em que
nós terrestre vivemos. Estou curioso para ouvir suas explicações.
43
– Vamos lá, então. Vou só ligar meu computador de pulso, para assistirmos juntos o
desenrolar da gênese que deu origem a essa estranha sociedade em vocês vivem.
– Pronto, liguei o computador. Podemos nos sentar para ler o texto que preparei para
essa exposição?
– Claro, claro que sim. – diz Washigton, sem medo de esconder sua ansiedade.
– Spock aciona uma tecla de seu computador de pulso, e uma tela se abre diante dele e
de seu anfitrião, com um texto que se inicia com uma citação de um dos maiores
escritores da literatura mundial, García Márquez, que em 1982, recebeu o prêmio nobel
de literatura pelo conjunto de sua obra.
Depois de ler esta citação, Spock olha para Washigton e diz que doravante ele irá deixar
o texto falar por si só, uma vez que foi ele mesmo quem o elaborou.
Quem não já leu Thomas Morus (1478–1535), considerado como um dos grandes
humanistas do renascimento? Em 1516, ele escreveu um opúsculo que o intitulou de A
Utopia. Escrito em forma dialogal, Rafael aparece como o seu Sócrates teórico.
Convidado a participar de um banquete em sua homenagem, organizados pelos grandes
criadores de carneiros, na Inglaterra, Rafael é interpelado a explicar a causa que leva as
pessoas a roubarem. Sem pestanejar, olha para seus anfitriões e lhes responde à queima–
44
roupa: – “Os inumeráveis rebanhos de carneiros que cobrem hoje toda a Inglaterra”,
responde–lhes de um só golpe. E complementa,
estes animais, tão dóceis e tão sóbrios em qualquer outra parte, são entre
vós de tal sorte vorazes e ferozes que devoram mesmo os homens e
despovoam os campos, as casas e as aldeias. “De fato, a todos os pontos do
reino, onde se recolhe a lã mais fina e mais preciosa, acorrem, em disputa
do terreno, os nobres, os ricos e até santos abades. Essa pobre gente não se
satisfaz com as rendas, benefícios e rendimentos de suas terras; não está
satisfeita de viver no meio da ociosidade e dos prazeres, às expensas do
público e sem proveito para o Estado. Eles subtraem vastos tratos de terra
da agricultura e os convertem em pastagens; abatem as casas, as aldeias,
deixando apenas o templo para servir de estábulo para os carneiros.
Transformam em desertos os lugares mais povoados e mais
cultivados(MORUS, 2011: p. 28–29).
Thomas Morus enxergou longe. Pode–se dizer que ele foi um contemporâneo teórico de
um presente ainda muito distante do tempo em que viveu. Seu gênio brilha justamente
porque foi capaz de ter identificado o fechamento dos campos, essa forma embrionária
da propriedade burguesa, como a principal causa do empobrecimento do solo e do
despovoamento de vastas áreas, antes habitadas e ocupadas com a produção de
alimentos para o homem. Não está aí a origem da questão ecológica, que hoje ameaça
destruir a vida no Planeta Terra?
Quase dois séculos depois, Jean–Jacques Rousseau (1712–1778), buscava as causas que
deram origem a desigualdade entre os homens. Encontra–as na fundação da propriedade
privada, tal como assim Morus diagnosticara as mazelas do seu tempo. Para ele,
É a partir da fundação da sociedade civil, que Rousseau constrói sua crítica social. Para
ele, a sociedade que nasce da propriedade privada
45
... manterá com ela um permanente conflito que, para ele, é a fonte de todos
os males e defeitos que os homens sofrem. Para o autor, as enganadoras
luzes da iluminação não só não iluminam como ocultam a sua transparência
natural. Na sua compreensão, o desenvolvimento das ciências e das artes
bem como do comércio estreitam, por um lado, os laços da sociedade pelo
interesse pessoal, mas, por outro lado, afrouxam os verdadeiros laços sobre
os quais deveria ser formada a sociedade que são a estima e a benevolência.
Ou seja, se a estima e a benevolência são os fatores que levam os homens a
imediatamente se ligarem, a interposição entre eles das coisas e dos
interesses, produzidos pelo progresso da ciência, das artes e do comércio,
apagam esse relacionamento imediato, pois os homens, a partir de então,
passam a se relacionar mediatizados pelas coisas e os interesse delas
decorrentes que tem origem na instituição da propriedade. É daí que
procedem os males e as desgraças às quais os homens estão submetidos. A
felicidade dos homens passa a depender dos objetos. Eis o caminho ao qual
o homem foi arrastado pelo processo de civilização. O homem não procura
mais a felicidade em si, na sua existência compartilhada com os seus
semelhantes. Tornou–se escravo das coisas. A crítica central de Rousseau
será a denúncia desta alienação e a busca do retorno e da conciliação do
homem com a natureza. Este é o alvo permanentemente perseguido pela
obra rousseauniana, mas explicitamente formulada nos seus trabalhos de
cunho político e sempre mesclada de ardor e paixão. Na perspectiva de sua
obra, Rousseau deixa transparecer a necessidade de conceber a origem e as
causas do mal, que produziram o homem dividido e pervertido, além da
crença na sua reconciliação com a natureza e com seus semelhantes através
da construção de um modelo de comunidade que, corrigindo o erro
localizado da desigualdade, possibilite a recuperação de sua humanidade
mediante a construção de um projeto comum de sociedade baseada na
homogeneidade e na liberdade”. (Vicente, 1997 p.46–47)
46
Ora, se num mundo em que o produto do trabalho pertence integralmente ao seu
produtor, ninguém estará disposto a renunciar ao que produziu se em troca não receber
algo de igual valor. Nessa situação, a troca é troca de valores iguais. Smith
compreendeu muito bem que a troca é sempre troca de valores iguais, de valores
equivalentes. Mas, se é assim, como de valores iguais surge a mais–valia? É aí que
começa a sua dor de cabeça.
Para explicar a origem da mais–valia, Smith vê–se obrigado a negar o princípio que
rege a igualdade da troca, o assim chamado princípio da equivalência. Ao proceder
dessa forma, acaba por negar a própria troca, uma vez que esta é sempre uma troca de
valores iguais. Realmente, não tem sentido uma troca em que um indivíduo A, por
exemplo, que gastou 20 horas de trabalho para produzir sua mercadoria, troque–a com a
mercadoria de um indivíduo B, que dispendeu apenas 10 horas de trabalho para produzi-
la.
Não tendo como resolver esse problema, Smith vê–se obrigado a anular o princípio da
equivalência, para poder explicar a origem da mais–valia. Com efeito, diz ele,
Para evitar esse estasdo de coisas, Smith tenta justificar moralmente a desigualdade da
troca entre capitalistas e trabalhadores. Para ele, o lucro é uma recompensa devida ao
47
trabalho do capitalista. Mas, que tipo de trabalho é esse? Uma possível resposta seria a
de que se trata de uma recompensa pelo trabalho de organização e inspeção do
empreendimento. Será isso mesmo? Pode até ser; entretanto, um exame mais cuidadoso
do conjunto da obra de Smith mostra que o lucro é uma recompensa devida ao trabalho
passado, acumulado pelos capitalistas há muito tempo, há muitas gerações que se
sucederam no tempo.
Esse trabalho acumulado ao longo de várias gerações tem uma história. Houve um
tempo em que havia duas espécies de gente. De um lado, um bando de preguiçosos, e,
de outro, um grupo de pessoas laboriosas e parcimoniosas. Aqueles que nasceram
marcados pelo desejo da ambição trabalharam e economizaram; os que vieram ao
mundo, inclinados a viver do ócio e da preguiça não acumularam nem formaram
nenhum patrimônio. Quem tinha ojeriza ao trabalho, nada acumularam com o passar do
tempo. Diferemente, aqueles que tinha amor ao trabalho formaram seu patrimônio, que
cresceu com o passar dos anos, com a sucessão de várias gerações. Está assim
justificada a divisão da sociedade entre proprietários e deserdados de propriedade. É o
que sugere Smith ao justificar a necessidade da interferência do Estado para proteger a
propriedade privada contra a invasão por parte daqueles que não têm nenhum
patrimônio. Acompanhando sua justificação, lê–se que,
Não é sem razão, a crítica mordaz de Marx que dirige Smith. Em tom anedótico zomba
do autor de A Riqueza das Nações que acreditava que
“Numa época muito remota, havia, por um lado, uma elite laboriosa,
inteligente e sobretudo parcimoniosa, e, por outro, uma súcia de vadios a
dissipar tudo o que tinham e ainda mais.” (MARX, 2017: L. I., p. 785).
48
Os liberais se valem até mesmo de meios anedóticos para justificar o direito de
propriedade. Para Smith a propriedade tem um estatuto natural, visto que é produto de
uma propriedade natural que nasce com o homem: seu trabalho. Por isso, tudo o que ele
consegue amealhar com seu trabalho pode atribuir o predicado de ser sua propriedade,
constituindo–se num direito sagrado, porque natural, e que, por isso mesmo, não pode
ser violado por aqueles que passaram a vida entregues aos prazeres e confortos
imediatos do presente. Esse direito natural há que ser velado e protegido pelo Estado,
pois
a fartura dos ricos excita a indignação dos pobres, que muitas vezes são
movidos pela necessidade e induzidos pela inveja a invadir a posse daqueles
[proprietários]. Somente sob a proteção do magistrado civil, o proprietário
dessa propriedade valiosa [...] pode dormir à noite com segurança.”
(SMITH, 1996: V.II, p. 389).
Agora tudo se esclarece de vez: o lucro e a renda da terra têm um estatuto natural,
fundado no que se poderia chamar de uma acumulação primitiva pessoal de capital.
Aqueles que trabalharam e acumularam tornaram–se, no presente, os proprietários das
terras e do capital; os que esbanjaram e dissiparam os frutos do seu trabalho, devem
pagar pelo pecado que cometeram. Como? - Trabalhando para aqueles que no passado
não mediram esforços para construir seu patrimônio. Por isso, ao dar emprego a esse
bando de vagabundos, que no passado dissiparam tudo que produziam, os capitalistas
têm todo o direito de exigir deles uma recompensa, na forma de lucro ou de renda, pelo
suor que tiveram de derramar para construir o seu patrimônio.
49
serem menos numerosos, podem associar–se com maior facilidade; além
disso, a lei autoriza ou pelo menos não os proíbe, ao passo que para aos
trabalhadores ela proíbe. Não há leis no Parlamento que proíbam a
combinar uma redução dos salários; muitas são, porém, as leis do
Parlamento que proíbem as associações para aumentar salários".
Independentemente das leis promulgadas pelo Parlamento, a luta de classes,
no que concerne à determinação do nível salarial, é, em geral, favorável à
classe capitalista, pois esta tem capacidade para suportar as conseqüências
de uma paralisação, por exemplo, na produção, por conta de uma greve por
exemplo. É o que diz Smith, ao concluir seu raciocínio: "Um proprietário
rural, um agricultor ou um comerciante, mesmo sem empregar um
trabalhador sequer, conseguiriam geralmente viver um ano ou dois com o
patrimônio que já puderam acumular. Ao contrário, muitos trabalhadores
não conseguem subsistir uma semana, poucos conseguiriam subsistir um
mês e dificilmente algum conseguiria subsistir um ano. A longo prazo, o
trabalhador pode ser tão necessário ao seu patrão, quanto este o é para o
trabalhador; porém esta necessidade não é tão imediata.” (SMITH, 1996:
V.I. p. 118–119).
Nem por isso Smith deixa de reconhecer que a grande maioria daqueles que vivem do
salário está condenada a uma vida miserável, por conta dos efeitos negativos da divisão
técnica do trabalho. Num tom de indignação e reprovação comenta que
Entretanto, essa denúncia de Smith não passa de uma exigência moral, na medida em
que se trata de uma denúncia sentimental. De fato, o autor de A Riqueza das Nações,
depois de denunciar os efeitos perversos da divisão do trabalho, acrescenta que esse é o
estado
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em que inevitavelmente caem os trabalhadores pobres – isto é, a grande
maioria da população – a menos que o governo tome algumas providências
para impedir que tal aconteça.” (SMITH, 1983: V.II, p. 215).
Será que o Estado não poderia intervir esse estado de coisas? A única coisa que o
Estado poderia fazer seria dar à classe dos trabalhadores educação básica. No entanto,
Smith é obrigado a reconhecer que os trabalhadores jovens, em idade escolar,
Diante desse estado de coisas, não há outra saída senão a de se curvar aos imperativos
dos fatos. Daí a crítica resignativa de Smith, diante dos efeitos desumanizadores da
divisão do trabalho. E não poderia ser diferente, uma vez que, para ele, não há
possibilidades de uma sociabilidade alternativa ao mundo existente. Para ele, o homem
nasceu para viver numa sociedade comercial, na qual a divisão do trabalho é a mola
mestra do seu desenvolvimento. A sociedade capitalista é o melhor dos mundos
possíveis. Se é assim, o máximo que se pode esperar da sociedade é que esta minimize
os efeitos negativos da divisão do trabalho por meio de uma educação geral. A
felicidade humana tem um preço: a desumanização daqueles que são obrigados a viver
de salários. É o preço a pagar pelo progresso.
Para subverter esse mundo feito de miseráveis, de um lado, e de ricos, de outro, essa
luta não pode tirar sua poesia do passado, como ensina o Marx de 1852, em O 18 de
Brumário. No entanto, não se deve esquecer que o capitalismo “nasce escorrendo
51
sangue e lama por todos os poros, da cabeça aos pés”. Esquecer o passado e aceitar
passivamente o presente, é o mesmo que eternizar o modo de produção capitalista; é,
como diz Pecqueur com razão, “decretar a mediocridade geral”. [...] a pré–
história do capital compreende uma série de métodos violentos, dos quais
passamos em revista somente aqueles que marcaram época como métodos
da acumulação primitiva do capital. A expropriação dos produtores diretos
é consumada com o mais implacável vandalismo e sob o impulso das paixões
mais infames, abjetas e mesquinhamente execráveis.” (MARX, 2017: L.I.
p.831).
ser absorvido pela manufatura emergente com a mesma rapidez com que
fora trazido ao mundo. Por outro lado, os que foram repentinamente
arrancados de seu modo de vida costumeiro tampouco conseguiam se
ajustar à disciplina da nova situação. Converteram–se massivamente em
mendigos, assaltantes, vagabundos, em parte por predisposição, mas na
maioria dos casos por força das circunstâncias. Isso explica o surgimento,
em toda a Europa ocidental, no final do século XV e ao longo do século XVI,
de uma legislação sanguinária contra a vagabundagem. Os pais da atual
classe trabalhadora foram inicialmente castigados por sua metamorfose,
que lhes fora imposta, em vagabundos e paupers. A legislação os tratava
como delinquentes “voluntários” e supunha depender de sua boa vontade
que eles continuassem a trabalhar sob as velhas condições, já inexistentes.”
(MARX: 2017, L.I. p.787))
Essa expropriação violenta está registrada na história; ela não pode ser apagada
enquanto perdurar esse modo de produção feito de suor, lágrimas, sangue e fogo. Não se
pode, portanto, esquecer um passado no qual a transformação dos produtores
Ao descrever esse processo, é claro que Marx não estava expondo uma teoria histórico–
filosófica sobre a marcha geral pela qual deveria passar toda a humanidade. Sua
52
intenção foi tão somente traçar um esboço da gênese do capitalismo na Europa
ocidental. Bem diferente foi o nascimento do capitalismo fora da Europa. Na Índia, na
África e no Brasil, por exemplo, o surgimento do capitalismo adquiriu singularidades
específicas, próprias desses países, que estão longe do processo histórico que teve lugar
na Europa.
Nem por isso, a dor do parto foi menos dolorosa. Desde o início, esse imenso
continente, chamado América Latina, teve suas veias rasgadas para escoar a riqueza
arrancada de seu solo. Seu destino foi traçado pelas grandes metrópoles europeias, que
impôs ao mundo uma divisão internacional do trabalho, em que alguns países
Não é exagero desse autor uruguaio afirmar que a América Latina é “a região de veias
abertas”, por onde escoa, até hoje, a sua riqueza para fora de suas fronteiras. Não sem
razão, em seu clássico Formação do Brasil Contemporâneo, Caio Prado Junior inicia
sua investigação sobre a dformação do Brasil com a pergunta pelo sentido da
colonização. Como Eduardo Galeano, CPJ entende que, no seu conjunto,
53
O Brasil nasce como uma imensa empresa comercial, cujo principal objetivo foi o de
produzir mercadorias que tivessem valores no mercado internacional. A mineração foi
uma das atividades mais lucrativas para a metrópole portuguesa. Não menos importante,
foi a produção de açúcar, algodão e café.
Nascida com esse objetivo, a economia brasileira deveria assim continuar a ser uma
economia voltada para fora. Não sem razão, entre 1500 até os anos 30 do século XX, a
economia brasileira foi de natureza, eminentemente, agrário–exportadora.
54
De lá para cá, já se passaram quase quatro décadas. Se vivo fosse, CPJ ainda teria algo
a dizer sobre o Brasil de hoje? Manteria sua tese de que, em sua essência, o Brasil não
só continua a ser um país periférico e dependente, como também caminha em direção ao
passado? É óbvio que se vive noutro contexto, bem diferente daquele que ele tinha
diante dos olhos à época em que redigia seu clássico A revolução brasileira. Mas,
mesmo que o Brasil atualmente tenha alcançado um novo patamar na divisão
internacional do trabalho, bem mais sofisticado e desenvolvido do que fora no passado,
com certeza, ele não teria dúvidas em afirmar que o Brasil mantém, e até mesmo
aprofundou, sua condição de país dependente, na medida em que os principais centros
decisórios de produção e de investimentos continuam fora de suas fronteiras. Sua pauta
de exportações dispensa maiores comentários.
Estaria, çportanto, o Brasil voltando a ser uma colônia de exploração? Não como fora
no passado, isto é, uma economia organizada para servir exclusivamente aos interesses
de sua metrópole. No entanto, seu processo de industrialização não libertou sua
economia dos grilhões da dependência. Ao contrário, até mesmo reforçou sua condição
de país periférico e dependente, tal como assim pensava CPJ.
Traduzido em termos numéricos, em três séculos foram consumidos entre 4,8 milhões a
5 milhões de negros trazidos da África. Arrancados de sua terra natal, foram
acorrentados e jogados nos porões de navios negreiros e despejados numa terra estranha
e hostil. Não entendiam o que lhes diziam seus feitores, mas o açoite de seus chicotes
traduzia suas ordens. Não só os negros, mas também os índios foram utilizados
largamente pelos senhores de engenhos. De acordo com Schwartz, no seu clássico
Segredos Internos,
56
réis, que mal chegava a um terço do salário de um barqueiro comum,
contudo até mesmo essa quantia muitas vezes nunca era paga (schwartz,
1988: p.51–52).
A utilização dos indígenas para o trabalho escravo se fez presente de maneira precoce.
Com efeito, “o contato intensivo dos europeus nas aldeias e nos engenhos”, continua
Schwartz,
Darcy Ribeiro, em um dos seus últimos livros, O Povo Brasileiro, não deixa dúvida
quanto as tais consequências. Para ele, quando o europeu chegou por aqui, havia cerca
de 5 milhões de indígenas em 1500. Segundo Ribeiro, esse número caiu para 4 milhões
em um século.
57
homem branco continuam matando a população mindigena brasileira, que é a verdadeira
dona das terras sobre as quais repousa esse gigante chamado Brasil.
Ignorar esse processo, que deu origem ao capitalismo, varrendo para baixo do tapete do
esquecimento, é aceitar o presente órfão de história. Quem ainda hoje sente na pele as
dores do parto dessa acumulação primitiva, que acontece do lado de cá das bandas do
Atlântico, não esquece jamais a sua origem. A escola de samba da Mangueira deu um
tapa com luva de pelúcia na cara dos dirigentes das instituições do trabalho e da
sociedade em geral, quando desfilou na avenida cantando o que a história “oficial” não
conta e que os movimentos sociais parecem não lembrar mais.
Brada Mangueira!
Com suas singularidades, que nunca podem ser esquecidas, assim nasceu o capitalismo
nos dois lados do Atlântico, “escorrendo sangue e lama por todos os poros da cabeça
aos pés”, como diz Marx.
- Com isso, meu caro Washington, podemos dar por encerrada a história de como
nasceu a sociedade capitalista. – comenta Spock. – Uma sociedade, – continua ele –
que, como vimos no início da nossa conversa, é caracterizada por uma forma de
sociabilidade na qual os indivíduos só existem como possuidores de mercadorias. Quem
não dispõe de nada para trocar por coisas que precisa para satisfazer suas necessidades,
só tem duas alternativas: depender da caridade alheia ou simplesmente roubar de quem
tem.
58
Assim, Spock encerra a sua longa exposição sobre o processo de acumulação primitiva
que deu origem ao nascimento da sociedade capitalista, aqui no Brasil, e fora dele: na
Europa.
- Infelizmente – diz Spock – não vou poder estar presente nessa nova empreitada. Vou
te deixar um texto que elaborei antes de chegar aqui na Terra. Peço desculpas por isso,
mas tenho outros Planetas para visitar. A missão que me deram não me deixa tempo
para de descansar.
- Mas vamos assumir um compromisso, meu amigo – pediu Spock: - espero que leia
com cuidado o texto que preparei especialmente para isso. Quando eu estiver de volta
para o futuro, passo por aqui para conversarmos um pouco sobre o restante de nossa
discussão. Tudo bem, para você, Washington?
Quando Whasington abriu o texto, viu o bilhete deixado por seu visitante. Nele estava
escrito que
59
do do que todos os outros sentidos, o sentido da visão. Não somente
objetivamos a ação, mas mesmo quando não se visa nenhuma ação,
preferimos a visão (...) a todos os demais sentidos, isto porque, de todos os
sentidos, é a visão o que melhor cntribui para o nosso conhecimento das
coisas e o revela uma multiplicidade de distinções” (Aristóteles, etafísica,
2012, p.41).
- Até breve, meu amigo -, gritou Spock de dentro de sua nave. - Leia o texto que deixei;
quando eu passar de voltar por aqui, vamos ter muito o que conversar.
Washington correu para seu quarto, ansioso para ler o texto que seu visitante lhe
deixara. Ficou surpreso com o que viu. Antes de apresentar os assim chamodos
paradigmas da economia, Spock faz uma longa digressão sobre a filosofia das ciências.
Começa com Hume, passa por Karl Popper até chegar a Thomas Khum, que é o autor a
quem se deve a teoria dos paradigamas nas ciências. Mas, uma curiosidade aguçava
ainda mais o espírito de Washington para ler o texto do seu amigo. Se pergunta por que
ele começou sua exposição com David Hume (1711-1776)? Não conhecia esse autor,
pois no curso de economia não se fala desse pensador, que abalou profundamente as
bases sobre as quais se edificam as ciências: a experiencia. Mesmo assim, quis saber
por que Spock não iniciou sua apresentação diretamente com Thomas Khum (1992-
1996), que é considerado como o principal teórico da concepção de paradigmas? Outra
coisa o intrigava mais ainda: por que Karl Popper (1902-1994) estava ali entre Hume e
Khum.
E foram todas essas dúvidas que motivaram Whasington a se entregar de corpo e alma
na leitura do texto deixado por Spock.
Mãos à obra!
SEGUNDA PARTE
60
1.1. RAZÃO E EXPERIENCIA NA CONSTRUÇÃO DO SABER DAS CIENCIAS
MODERNAS
A lógica é a ciência mais difícil; não tem a ver com intuições, nem sequer,
com a geometria, com representações sensíveis abstractas, mas com
abstracções puras, e exige uma força e hábito de se retirar para o puro
pensamento, o reter nele e nele se mover. Por outro lado, poderia
considerar-se como a mais fácil, porque o seu conteúdo nada mais é do que
o puro pensar e as suas determinações ordinárias, e estas são ao mesmo
tempo as mais simples e o que há de elementar. São também o que há de
mais conhecido: o ser, o nada, etc., especificação, grandeza, etc., ser-em-si,
uno, múltiplo, etc. No entanto, este conhecimento familiar dificulta antes o
estudo da lógica; por um lado, facilmente se crê que não vale a pena ocupar-
se do que já é conhecido; por outro, trata-se de o conhecer de um modo
inteiramente diverso e até oposto ao modo como já é conhecido (Hegel,
1969.,p.89).
Apesar do seu grau de complexidade expresso nessa epígrafe, nela Hegel confessa que
filosófica tem a tarefa de repensar os conceitos que são utilizados instintivamente pelos
homens. Suas categorias são, portanto, pensamentos, isto é, formas conceituais com as
quais o homem se apodera do mundo e o manipula. Com a diferença de que não toma as
categorias tais como aparecem em seu uso cotidiano. Ao contrário disso, A Ciência da
Lógica pretende repensar tais categorias explicitando o movimento mediador, que se
encontra nelas subjacente e esquecido pelo senso comum. Como assim? Quando o
homem fala do dinheiro, por exemplo, a única coisa que lhe vem à cabeça é que se trata
de uma matéria, uma quantidade de papel ou moeda metálica, que lhe serve para
adquirir os bens necessários à sua sobrevivência. Nem desconfia que o dinheiro é, antes
de tudo, um conceito que expressa uma forma de relacionamento entre os homens, e
que, por isto, não é simplesmente matéria, é, também, uma forma social e, como tal,
expressão de diversas formas de relacionamento entre os homens. Com efeito, o
dinheiro que o capitalista utiliza para contratar trabalhadores é muito diferente do
dinheiro que estes utilizam para comprar os bens e serviços de que necessitam. No
primeiro caso, o dinheiro é capital, pois o seu proprietário o gastou, pagando salários,
para poder ganhar mais dinheiro; trata-se, portanto, de uma relação de exploração entre
duas classes: capitalistas e trabalhadores. Por sua vez, o salário, que o trabalhador
61
despende, para comprar roupa, calçados, comida, etc., é apenas um simples meio de
troca com o qual adquire o que necessita para viver.
Salta aos olhos que nem tudo que está aí, que pode ser tocado, sentido e percebido, é o
que parece ser à primeira vista. Há mais coisas por trás do dinheiro do que pensam as
pessoas que dele se utilizam todos os dias. Por quê? Porque tudo que está aí, aqui e
agora, só o é pela mediação. Com efeito, até mesmo o fato de o autor deste texto estar
aqui e agora diante deste computador, esta sua atividade imediata é mediada por toda
uma história de vida e do contexto social em que ela se insere. Não há, portanto,
conhecimento imediato. Todo saber imediato é produto do saber mediado.
Mas disso o homem comum nem se dá conta. O mundo se lhe apresenta ao pensamento
como se fora a realidade mesma, não porque está ao alcance do seu conhecimento
sensorial (ver, sentir, tocar), mas porque o aspecto fenomênico da realidade é produto
natural da sua práxis cotidiana. Esta cria “o pensamento comum” por meio do qual o
homem manipula as coisas no seu dia-a-dia. Em sua práxis cotidiana, vive esquecido na
imediatidade do seu agir; na maioria das coisas que faz todos os dias, age, como diria
Max Weber, em surda semiconsciência ou inconsciência (Weber,1988.V.I.,p.13) de
tão acostumado que está em agir sempre da mesma maneira. É o que acontece com a
linguagem em seu uso cotidiano. Quando alguém afirma, por exemplo, “vou viajar
para São Paulo”, não se apercebe de que, ao pronunciar essa frase, precisa fazer uso
das regras gramáticas (sujeito, verbo e predicado), se pretende ser compreendido pela
pessoa a quem se dirige. Não o sabe, mas o faz naturalmente porque interiorizou de tal
forma essas simples regras, que não precisa pensar nelas, para depois falar. Usa-as
automaticamente.
O senso comum está tão familiarizado com o mundo em que vive que se esquece de
perguntar pelo sentido do que faz, pelo porquê de assim agir e não de outra forma. Seu
interesse é prático, imediato. Quem entra num ônibus, não tem a mínima ideia do
mecanismo que permite esse veículo pôr-se em marcha. Para ele, o que importa é poder
contar com esse meio de transporte, no lugar e hora certos. “Quem o produziu?”, “por
que foi produzido?”, “poderia ser outro meio de locomoção?”, são perguntas que não
despertam nem a curiosidade daqueles que produziram o ônibus nem a de quem dele faz
uso para se deslocar de um ponto da cidade para outro.
62
O senso comum não pergunta, portanto, pelo sentido das coisas, pelo porquê que assim
são. Pelo contrário, suas perguntas são práticas, imediatas. O homem do dia-a-dia quer
saber, por exemplo, “que dia é hoje?”, “que horas são?”, “onde fica a Avenida 13 de
maio?”, “quanto vou ganhar nesse meu emprego”, “qual é minha função?”, “qual é
a duração da jornada de trabalho?”.
Tomado pelos afazeres do dia-a-dia, o homem comum não se dá conta de que por trás
dessas perguntas pressupõe “crenças silenciosas”, que ele nem desconfia que as
pressupõem sempre que afirma ou nega alguma coisa, julga ou pede alguma
informação. Não desconfia porque está tão familiarizado com o mundo, tão acostumado
com a vida que leva, que, para ele, a realidade que é, é a que tem sob seus pés, que pode
sentir, tocar, ver. Se há mais coisas que estão para além de sua percepção imediata, não
tem interesse em saber, pois não lhe faz falta para se orientar no seu mundo, tomar suas
decisões diárias e agir.
Mas esse mundo tão familiar ao senso comum não é o verdadeiro mundo. Lembre-se
que o mundo não se mostra diretamente ao homem tal qual o é. Se fosse assim, não
precisaria fazer ciência. Se a verdade das coisas fosse a tradução direta do que as
pessoas percebem, seria legitimo declarar como verdade que o sol é menor do que a
terra, porque todos o veem assim; que um corpo cai porque é pesado e não porque é
atraído pela força da gravidade.
Se as coisas que o homem percebe fossem tal qual capta suas sensações imediatas, que
serventia teria as ciências? Nenhuma, pois, se fosse assim, a aparência e a essências dos
fenômenos seriam idênticas. Mas não o são. “Um corpo tem uma certa cor não porque é
colorido, mas porque dependendo de sua composição química e física, reflete a luz de
uma determinada maneira”.
Obviamente, o homem comum não precisa saber dessas coisas. Quem se dirige a uma
loja para comprar um carro, escolhe aquele que mais agradar aos seus olhos. Se mora
numa região de clima muito quente, certamente, escolherá uma cor que não absorva
tanto calor. Coisa que ele sabe por experiência própria, e não porque determinadas
propriedades químicas e físicas têm capacidade de absorver ou refletir mais ou menos
calor.
63
Porque a aparência e a essência das coisas não coincidem, e filosofia e as ciências são
necessárias. São duas formas distintas de conhecer o mundo. A filosofia é mais velha
do que as ciências e tem seu berço de nascimento na Grécia Antiga, enquanto as
ciências só começam aparecer, como uma forma de conhecimento separada da filosofia,
com o despertar do mundo moderno. Mas tal diferença não é coisa para ser discutida
aqui. Por ora, importa se ocupar das ciências, saber como estas conhecem o mundo;
como estas sabem o que julgam saber.
Uma coisa é certa: o conhecimento produzido pelas ciências é mais rico e bem mais
complexo do que imagina e pensa o senso comum. Na verdade, julgado à luz do senso
comum, o conhecimento produzido pelas ciências, como diria Marx, é o oposto do
conhecimento adquirido pelo homem em sua práxis cotidiana, utilitária e imediata.
Com efeito, o conhecimento que o senso comum tem da realidade é uma forma de saber
subjetivo, uma vez que tal conhecimento se funda nos sentimentos e opiniões
individuais, que variam de uma pessoa para outra. Além disso, trata-se de uma forma de
saber qualitativa, pois o homem comum julga as coisas como grandes ou pequenas,
pesadas ou leves, com sabor ou com odor.
Mesmo assim, o senso comum estabelece relações e causa e efeito. A experiência dota o
homem comum de condições que lhe permitem descobrir relação de causalidade entre
as coisas. Quem não conhece o velho proverbio “onde há fumaça, há fogo”; o fogo
queima; passar por baixo de escada, dar azar.
Muito diferente são as verdades científicas. Estas são formadas por um corpo de
enunciados mediante os quais captam-se as estruturas universais e necessárias das
coisas investigadas. Vale dizer: os conceitos com os quais trabalham as ciências têm de
ser obrigatoriamente objetivos, universais e necessários. Caso contrário, o saber
científico não passaria de um mero jogo de opiniões.
64
A despeito de tais diferenças, as ciências dividem com o senso comum a ideia de que
todo e qualquer conhecimento parte de determinados pressupostos, que são tomados
como dados, isto é, não problematizados.
E assim, o conhecimento tornou-se um conhecimento relativo, uma vez que seu objeto
de investigação é apenas uma fatia da realidade. Consequentemente, as ciências são
obrigadas a assumir certos pressupostos que elas não podem demonstrá-los. A
economia, por exemplo, parte do pressuposto de que essa ciência tem por objetivo criar
as condições para o desenvolvimento do bem-estar do homem. Infelizmente, como essa
ciência se ocupa apenas de uma parte da realidade, seu objeto de estudo, o homem,
transcende as fronteiras do que seu campo de estudo. Um exemplo mais didático é o
conceito da lei da oferta e da demanda. Quando os economistas dizem que a demanda
varia inversamente às variações de preços, acrescentam que isso vale somente se se
abstrair dessa lei despe o homem de suas características estéticas de gosto, de sua
65
cultura, preferências, religião etc. O homem que a economia aí se refere é um homem
abstraído de suas características humanas, tal qual um peixe fora d´água.
É aí que entra a filosofia para justificar os pressupostos das ciências. Trata-se de uma
problematização daquilo que o conhecimento científico aceita como dado.
À primeira vista, para quem está abrindo as primeiras portas do curso de Economia,
soa-lhe inaudito, assombrosamente inaudito, o título que abre esta seção. Mas o impacto
que esse primeiro contato possa causar ao leitor, começa a perder seu ar pasmoso e
obscuro quando ele se der conta de que o conhecimento do conhecimento científico não
é nada mais do que uma problematização filosófica das condições de possibilidades do
conhecimento científico; do conhecimento das ciências, tais como economia, sociologia,
história, geografia, física química, biologia etc. Noutras palavras, trata-se de um
conhecimento dos pressupostos dos quais partem as ciências, que admitem como dados
para construção do seu edifício teórico.
Difícil? Por mais que assim pareça, a coisa se descomplica quando se tem presente que
as ciências, assim como o senso comum, partem de pressupostos que elas tomam como
dados. Pressupostos, como antes referido, que se impõem como necessários, uma vez
que conhecimento científico é uma forma de saber fragmentado da realidade. O Direito,
por exemplo, é uma ciência que pressupõe a liberdade, a paz e harmonia entre os
homens. Mas, o que é liberdade? Ela se resume simplesmente à livre manifestação da
vontade dos indivíduos em suas relações contratuais?
Claro que não. A liberdade é muito maior e mais abrangente do que a livre manifestação
da vontade dos homens em suas relações contratuais. Muito diferente do que pensa a
filosofia política liberal, que tem em Hobbes e Locke seus maiores expoentes, ser livre,
66
como assim entendiam esses pensadores do direito natural, não é unicamente fazer da
liberdade individual um parâmetro para medir as liberdades dos outros, como postula a
máxima de que diz “que minha liberdade começa, onde termina a sua”. Trata-se aí de
uma liberdade negativa, no sentido de que o outro não está “incluído na minha
liberdade”.
É nesse sentido que tal pressuposto escapa a qualquer demonstração científica. O direito
é uma ciência como as demais: ela estuda apenas uma dimensão da vida humana. No
caso da medicina, essa problemática torna-se ainda mais patente. Com efeito, como diz
Weber,
É o que se pode também constatar no caso da Economia. Esta ciência, por exemplo,
ocupa-se apenas com aqueles fenômenos que ocorrem em consequência da busca pela
riqueza. Ela recorta uma dimensão da realidade humana, para explicar e predizer, como
diria Mill, unicamente
As ciências, portanto, em virtude de seu saber relativo, não podem, portanto, e nem têm
interesse em demonstrar seus pressupostos. Para falar de economia, o economista não
67
precisa possuir conhecimentos epistemológicos e metodológicos. Seria bom que os
tivesse, pois para fazer ciência com consciência, como diria Edgar Morin, a
epistemologia é fundamental, na medida em que ela revela as bases sobre as quais se
edificam as ciências. Infelizmente, estas trabalham independentemente de seus
pressupostos metodológico, pois tais conhecimentos, como assim admitem Weber e
Popper, não fazem com que alguém se transforme, por exemplo, num bom economista,
num excelente historiador ou mesmo em um célebre jurista. Afinal, como dizem esses
dois autores, é apenas delimitando e resolvendo problemas concretos é que se fundam as
ciências.
68
necessidades de acumulação de capital para suas metrópoles. O canhão, e bússola e a
imprensa, três grandes invenções, foram saudadas por Bacon com uma verdadeira
revolução, na medida em que permitia ao capital navegar pelos mares com segurança e
subjugar os povos ao redor do mundo ao seu domínio.
Era o parto que trouxe à luz burguesia mercantil, que vem ao mundo “escorrendo
sangue e lama por todos os poros. Para se afirmar como força social dominante, como
assim descrevem Marx e Engels, no Manifesto Comunista, a burguesia teve de destruir
as relações feudais, patriarcais e religiosas até então dominantes. Nas palavras dos
fundadores do socialismo científico, a burguesia
Tudo o que era sólido e estável começa a se espatifar no ar. Assim também acontece
com as certezas e as verdades do conhecimento. Nada escapa ao poder inquisidor do
69
homem moderno; este não mais aceita como certo e definitivo o saber herdado da
antiguidade, nem tampouco o da época medieval. Ele quer explicação para tudo. Por
isso,
Tudo o que era sólido se espatifou no ar. A produção cultural da antiguidade e da época
medieval também caiu na noite dos tempos para não mais voltar. Daí o clima de
incertezas e de insegurança vivido pelo homem moderno. Este não mais confia na
tradição, isto é, na autoridade do pensamento filosófico grego; muito menos no
pensamento religioso medieval.
Não sem razão, todo grande pensador tem como preocupação primeira investigar a
capacidade de conhecimento do homem; o que este pode conhecer e como pode fundar
o seu conhecimento; isto é, como pode dar razões ao que conhece. Noutras palavras, as
incertezas e inseguranças levam o homem moderno a se preocupar com as condições
que tornam possíveis a produção do conhecimento.
70
Duas grandes orientações epistemológicas surgem para dar resposta ao problema do
conhecimento: o empirismo, que funda a produção do conhecimento na evidencia da
experiência; e o racionalismo, que faz da razão o alicerce sobre o qual deve se apoiar o
edifício das ciências. Segundo assim entende Granger, as principais vertentes do
pensamento moderno são.
É nesse contexto que a filosofia passa a cumprir um novo papel. Diferentemente do que
fora no passado, com o advento da modernidade, ela abdica de sua função de falar do
mundo, para se dedicar à tarefa de fundamentar os conhecimentos das ciências que
falam do mundo, como a economia, geografia, física, biologia, história, psicologia etc.
71
encontrar somente uma coisa que seja certa e indubitável (Descartes.
1979.p.91).
Essa coisa certa indubitável de que fala descartes, esse porto seguro, é o cogito (o
pensar); é o primeiro princípio, ponto de partida para descoberta de inúmeras verdades,
e é, ele mesmo, uma verdade, que não depende de nenhuma outra verdade.
Um ser perfeito pode ser a sua própria causa, ao contrário de um ser imperfeito. A ideia
de perfeição posta na razão sugere a existência de um ser perfeito, pois seria
contraditória a existência da perfeição sem um ser perfeito que a tenha criado.
72
Assim, a existência de uma ideia de perfeição que existe em nossa mente, comprova a
existência de um ser perfeito que a criou e a colocou em nossa razão, ou seja, um ser
que pode ser chamado de Deus.
Um ser perfeito pode ser a sua própria causa, ao contrário de um ser imperfeito. A idéia
de perfeição posta na razão sugere a existência de um ser perfeito, pois seria
contraditória a existência da perfeição sem um ser perfeito que a tenha criado.
Assim, a existência de uma idéia de perfeição que existe em nossa mente, comprova a
existência de um ser perfeito que a criou e a colocou em nossa razão, ou seja, um ser
que pode ser chamado de Deus.
Nesse texto, valendo-se de uma cativante narrativa pessoal, ele descreve como chegou a
descoberto do “eu penso”. Tomado por excessiva precaução, faz questão de advertir os
seus leitores de que o seu desígnio
não é ensinar aqui o método que cada qual deve seguir para bem conduzir sua
razão, mas apenas mostrar de que maneira me esforcei por conduzir a minha.
Os que se metem a dar preceitos devem considerar-se mais hábeis do que
aqueles a quem as dão; e, se falham na menor coisa, são por isso censuráveis.
Mas, não propondo este escrito senão como uma história, ou, se o preferirdes,
como uma fábula, na qual, entre alguns exemplos que se podem imitar, se
encontrarão talvez também muitos outros que se terá razão de não seguir,
espero que ele será útil a alguns, sem ser nocivo a ninguém, e que todos me
serão gratos por minha franqueza (Descartes. 1979.,p.30).
Por que tanta precaução? A resposta Descartes apresenta logo na primeira parte do DM,
quando resolve negar tudo o que aprendera dos seus mestres, todos educados na
filosofia escolástica, para partir em busca da descoberta de uma nova e verdadeira
ciência, até então desconhecida de todos. Um rompimento com todo conhecimento
ensinado nas escolas, soava como um verdadeiro ato de rebeldia. Descartes sabia disso.
Por isso, esperou pelo tempo certo, que veio quando ele atingiu certa idade que lhe
73
muito mais verdade nos raciocínios que cada qual efetua no que respeitante aos
negócios que lhe importam, e cujo desfecho, se julgou mal, deve puni-lo logo em
seguida, do que naqueles que um homem de letras faz em seu gabinete, sobre
especulações que não produzem efeito algum e que não lhe trazem outra
consequência senão talvez a de lhe proporcionarem tanto mais vaidade quanto
mais distanciadas do senso comum, por causa do outro tanto de espírito e
artifício que precisou empregar no esforço de torná-las verossímeis. E eu
sempre tive um imenso desejo de aprender a distinguir o verdadeiro do falso,
para ver claro nas minhas ações e caminhar com segurança nesta vida
(Descartes, DM., p.33).
74
De há muito observara que, quanto aos costumes, é necessário às vezes
seguir opiniões, que sabemos serem muito incertas, tal como se fossem
indubitáveis, como já foi dito acima; mas, por desejar então ocupar-me somente com a
pesquisa da verdade,
Depois, examinado com atenção o que eu era, e vendo que podia supor
que não tinha corpo algum e que não havia qualquer mundo, ou qualquer lugar onde eu
existisse, mas que nem por isso podia supor que não existia; e que, ao contrário, pelo
fato mesmo de eu pensar em duvidar da verdade das outras coisas, seguia-se mui
evidente e mui certamente que eu existia; ao passo que, se apenas houvesse cessado de
pensar, embora tudo o mais que alguma vez imaginara fosse verdadeiro, já não teria
razão alguma de crer que eu tivesse existido; compreendi por aí que eu era uma
substância cuja essência ou natureza consiste apenas no pensar, e que, para ser,
não necessita de nenhum lugar, nem depende de qualquer coisa material. De sorte
que esse eu, isto é, a alma, pela qual sou o que
sou, é inteiramente distinta do corpo e, mesmo, que é mais fácil de conhecer do que
ele, e, ainda que este nada fosse, ela não deixaria de ser tudo o que é (p.46/47).
75
Aí, no Discurso do Método, como também em suas Meditações, Descartes deixa claro
que, para conhecer o mundo, primeiro, há que se avaliar a capacidade ou faculdade do
conhecimento. Que o diga Silva, para quem conhecimento, para Descartes,
a primeira realidade que é dada a um sujeito pensante não poderia ser outra senão
o próprio pensamento. Essa prioridade é que determina que Descartes estabeleça
um fundamento único para o conhecimento. Se puder ser estabelecido alguma
forma de concordância entre as ideias do sujeito e o mundo exterior, esse acordo
se constituirá a partir da hegemonia do sujeito [Silva, p. 9].
77
Como então estabelecer esse fundamento único para o conhecimento? Como demonstrar
que a subjetividade é a única fonte e sede do conhecimento? Como, portanto, Descartes
demonstra que o pensamento é a única fonte de verdade? Mediante o exercício da
dúvida metódica. Pondo em dúvida tudo o que existe no mundo, Descartes descobre que
a única coisa de que não pode duvidar é o ato de duvidar, de estar a duvidar de tudo que
existe.
Para chegar a esse ponto fixo e seguro, é necessário precisar o caminho que vai da
dúvida à subjetividade enquanto princípio de certeza. Mas, até onde vai a dúvida? Ela é
um processo que pode ser esgotado em si mesmo? É possível permanecer na dúvida?
Acompanhando Silva, ele esclarece que a dúvida só é permanente para o cético. Mas,
para Descartes, explica ele,
tal permanência não poderia ser fruto de uma paralisação da própria dúvida, ou
do processo de interrogação. Isso porque o aprofundamento da dúvida leva ao
desvendamento da instância original da dúvida e, assim, do próprio pensamento.
Quando aquele que dúvida se dá conta de que a dúvida é um determinado
exercício do pensamento, percebe ao mesmo tempo que a dúvida atinge o seu ponto
limite. Por isso, só posso permanecer na dúvida se não a radicalizo
suficientemente: se não a faço voltar-se contra si mesma. O limite da dúvida é a
descoberta do pensamento [Silva, p.51].
Ora, duvidar é pensar; portanto, enquanto durar o exercício da dúvida, o pensamento
continua pensando. De todas as coisas postas em dúvida, somente de uma não se pode
duvidar: a do ato de pensar. Silva descreve esse processo da seguinte forma:
78
menos como ser pensante. Disso não posso duvidar, pois é a própria dúvida que
engendra esta constatação: penso, logo existo. O maior dos céticos não pode negá-
la, sob pena de negar a própria possibilidade de duvidar [Silva, p.52].
Segue-se daí que o ser que se alcança, mediante o exercício da dúvida metódica, é o
próprio pensamento. De fato, para pensar, a única coisa exigida é pensar. Com efeito, o
pensamento não só tem uma prioridade conceitual, como também ontológica: ele é
atributo principal do sujeito pensante.
Agora tudo fica mais claro: no exercício da dúvida metódica, a existência que se chega é
a existência do pensamento. Isso significa, argumenta Silva,
que se fosse tomada qualquer outra função do que suponho que seja o Eu para
concluir a partir daí a existência, o argumento não teria o mesmo valor. Não
poderíamos dizer, por exemplo: eu respiro, logo existo, pois este argumento
depende da demonstração de que é verdade que eu respiro para que se possa
associar o ato de respirar à existência. Agora, se acho ou sinto que respiro e
79
concluo então que existo, o argumento é válido, mas precisamente porque se
estabelece a partir da representação e, na verdade, se mantém dentro dela [...]. E
isso vale para todos os argumentos semelhantes, o que indica que pensamento e
existência do pensamento são indissociáveis. É isso o que significa a descoberta de
si mesmo como ser pensante [Silva, p.54].
A prioridade da alma sobre o corpo é muito clara. Descartes não deixa nenhuma dúvida
quanto o alcance do conhecimento sensível ou natural. O conhecimento não depende
dos sentidos, da percepção sensorial das coisas, pois, para esse filósofo, os sentidos
enganam e, por isso, não podem ser tomados como fonte do conhecimento. Somente a
subjetividade conhece como as coisas são; ela é a fonte única e segura do conhecimento.
80
nem a mão numa nem o intelecto, deixados a si mesmos, logram muito.
Todos os feitos se cumprem com instrumentos e recursos auxiliares, de que
dependem, em igual medida, tanto o intelecto quanto as mãos (Bacon,
1984.,p.13).
No entanto, não se deve esquecer que a mente não é uma entidade autônoma, que extrai
de suas próprias entranhas a matéria-prima com a qual conhece o mundo empírico,
como assim entende Descartes. Não, não é assim que pensa Bacon. Para esse pensador,
o intelecto deixado entregue a si mesmo não vai além da produção de meros sofismas.
Como ele mesmo o diz,
81
Se é assim para Bacon, então, é claro que o sujeito não vai à natureza de mãos vazias.
Para conhecê-la, ele tem que, primeiro, munir-se de certas regras procedimentais, pois
sem isso a pesquisa se faria às cegas, sem norte nem rumo. Consequentemente, a
experiência não se reduz à simples observação. Ela é construída, na medida em que não
pode prescindir de um método de investigação de coleta e ordenação organizadas dos
fatos, como precondição para estabelecer uma primeira ordem na caótica realidade da
natureza. Com efeito, Bacon tinha consciência de que a ciência, como apropriadamente
faz lembrar Oliveira,
Daí a precaução de Bacon ao definir o seu método de pesquisa. Para ele, o método
Apoiado nos sentidos, o trabalho da mente pode ser utilizado pela observação. Sem esse
trabalho, a investigação teria que avançar às cegas pelos labirintos infindáveis da
natureza.
82
Mas isso, exigia de Bacon uma avassaladora crítica aos filósofos clássicos, que o levou
a romper com uma tradição filosófica de mais de dois mil anos e com a religião da
época. Contra a filosofia clássica, ele introduz a perspectiva indutiva da experiência,
isto é, é através da observação criteriosa da realidade que o intelecto pode inferir, de um
número limitados de casos examinado, uma lei geral válida para todos os fenômenos
semelhantes aos que foram objetos de exame. Noutras palavras, a pretensão de Bacon
era de como elevar o conhecimento dos casos particulares para o geral. Acreditava,
assim, que poderia criar uma filosofia que favorecesse a humanidade com seus métodos
experimentais, totalmente a favor de ciência moderna, fundada numa forma de saber
teórico e prático.
Mas isso não era trabalho nada fácil de ser realizado. Bacon tinha pela frente a difícil
tarefa de livrar o mundo do feitiço, de dissolver os mitos e a imaginação, que
impediam o homem tornar-se senhor de si mesmo. Era preciso rasgar o véu do
encantamento, isto é, desencantar o mundo para abrir suas portas ao saber racionalmente
construído. Bacon tinha consciência de que a formação de noções e axiomas pela
indução seria, sem dúvida, o remédio próprio para livrar a mente dos mitos, ou, do que
ele chama de ídolos, que a impedia o sujeito seguir pela via segura do conhecimento.
Noutras palavras, o que Bacon aí diz é nada mais do que são as percepções dos sentidos
e da mente, tomadas como verdade, que pertencem apenas ao homem e não ao universo.
Em segundo lugar, ele apresenta os ídolos da caverna, pois cada homem tem uma
“caverna ou uma cova”, como ele mesmo o diz, que corrompe a luz da natureza, seja
devido à natureza singular de cada um, seja devido à educação, seja pela leitura dos
livros ou pela autoridade de quem se respeita e admira. Em consequência disso, os
83
indivíduos adquirem percepções erradas em relação ao mundo e as coisas que os
cercam.
Esse tipo de ídolo lembra o mundo das fake news. Com a diferença de que estas foram
deliberadamente produzidas para distorcer a realidade, enquanto as distorções
provocadas pelos ídolos da tribo nascem por ignorância, por falta de um conhecimento
capaz de penetrar nas profundezas insondáveis, aos olhos do senso comum, da natureza.
Com o desencantamento da mente, isto é, com a expulsão dos ídolos que distorcem o
intelecto humano, Bacon pode, então, apresentar seu programa de investigação para
conhecer a natureza, que ele, assim, resume:
Ao comentar essas duas vias para conhecimento da verdade, Bacon mostra que
tanto uma como a outra via partem dos sentidos e das coisas particulares e
terminam nas formulações da mais elevada generalidade. Mas é imenso
aquilo em que discrepam. Enquanto uma perpassa na carreira pela
experiência e pelo particular, a outra aí se detém de forma ordenada, como
cumpre. Aquela, desde o início, estabelece certas generalizações abstratas e
inúteis; esta se eleva gradualmente àquelas coisas que são realmente as mais
comuns na natureza (Bacon.1984.,p.17).
84
A primeira via é o que Bacon chama de método de “antecipações da natureza”; a
segunda via, ele designa por “interpretações da natureza”. Entre essas duas vias, as
antecipações não vão além de um conhecimento superficial da natureza, enquanto a
segunda via permite conhecer, com profundidade, os segredos da natureza. É o que
diz o autor do Novum Organum, quando afirma que
Para uma interpretação clara e produtiva da natureza, Bacon lança mão das quatro
causas aristotélicas, que são a causa material, formal, eficiente e final. Para
compreender como operam essas causas, é interessante tomar o exemplo que Aristóteles
usa de uma estátua. A causa material é o mármore ou bronze do qual é feito a
estátua; a causa formal será o retrato de uma pessoa ou de uma figura mítica; a causa
eficiente ou motora será o escultor que esculpiu a estátua; a causa final mostra a
finalidade para qual a estátua foi esculpida; se é o rosto de uma divindade, ela foi
moldada para ser posta num templo, para servir ao culto daquela divindade; esta é a
finalidade para qual o escultor criou a estátua.
85
Dessas quatro causas, Bacon exclui a causa final, pois, para ele, diferentemente de
Aristóteles, a natureza não é regida por leis teleológicas. Noutras palavras, se para o
filósofo grego tudo que existe tem um fim, logo, a finalidade da chuva seria a de regar a
terra para florescer a vegetação.
Depois de excluir a causa final do rol das causas que permitem investigar e, assim,
interpretar a natureza, Bacon adverte que
86
poderemos dizer ter colocado nas mãos dos homens, como justos e fiéis
tutores, as suas próprias fortunas, estando o intelecto emancipado e, por
assim dizer, liberto da minoridade; daí, como necessária, segue-se a reforma
doestado da humanidade bem como a ampliação do seu poder sobre a
natureza. Pelo pecado o homem perdeu a inocência e o domínio das
criaturas. Ambas as perdas podem ser reparadas, mesmo que em parte,
ainda nesta vida; a primeira com a religião e com a fé, a segunda com as
artes e com as ciências (Bacon.1984.,p.230).
A aposta de Bacon nas no poder das artes e das ciências pode ser expressa
concretamente naquelas três grandes descobertas que mudaram o mundo:
consequências foram de tal ordem que não consta que nenhum império,
nenhuma seita, nenhum astro tenham tido maior poder e exercido maior
influência sobre os assuntos humanos que esses três inventos mecânicos
(Bacon.1984.,p.88).
É interessante observar que nessas três últimas passagens Bacon falar do poder que o
uso da ciência capacita o homem a dominar a natureza e, assim, o destino de toda a
humanidade. Mas, quem é esse homem de quem fala o autor do Novum Organum?
Posto nesses termos, parece que todos os homens serão igualmente beneficiados com o
progresso das ciências e das artes. Mas as coisas são bem assim como pensa Bacon. Não
existe esse homem de quem ele fala. O homem assim considerado não passa e uma
abstração vazia, falsa. Falar do homem sem se referir às classes sociais nas quais ele
está inserido, revela-se falso. Por sua vez, essas classes sociais são uma palavra vazia se
se desconhece os elementos em que elas se baseiam. Ora, as classes sociais, por sua
vez, são uma relação social entre uma classe de vendedores de força de trabalho, como
única mercadoria de que dispõem seus integrantes, e uma outra classe que lhe contrapõe
na condição de dona dos meios de produção.
Sem essa contextualização, as ciências aparecem como uma força a serviço de todos os
homens sem distinção. Ora, numa sociedade dividida em classes sociais, as ciências
estão a serviço da classe dominante, que dela se serve para impor seu projeto de
sociedade ligada a seus interesses. Assim, a descoberta da pólvora, da bússola e da
87
imprensa, que Bacon saúda como as três maiores invenções, que vieram para tirar o
homem da sua minoridade e de seu estado de isolamento continental, na verdade foram
postas a serviços da burguesia nascente, que pôde então se atirar mar adentro e explorar
continentes antes desconhecidos. O canhão serviu-lhe de passaporte para entrar em
terras nunca dantes visitadas. A imprensa foi apropriada para servir de meios de
comunicação da classe dominante.
O uso dessas três grandes invenções deixou seu rastro de sangue e fogo, cujas pegadas
ainda hoje continuam jorrando sangue pisado por todos os caminhos abertos pelas bolas
incandescentes dos canhões dos primeiros conquistadores. As veias da América Latina
foram aberta desse os remotos tempos em que os europeus, movidos por uma insaciável
sacri auri fames, maldita fome por ouro, aqui chegaram nessa comarca chamada
América Latina, como diz Galeano, que em sua narração conta que nesta parte do
mundo
Ora, sem contextualizar o termo autoritário de falam Adorno e Popper, não se pode dar
crédito à tese que eles defendem. Não existe, em si, uma ciência autoritária oposta a
uma ciência democrática. É o uso da ciência que terá como consequência a criação de
um mundo autoritário.
Hume abre o seu Tratado da Natureza Humana constatando que a metafísica parecia
uma arena, onde os filósofos só entravam em acordo para discutir. Nada ignoravam,
nada aprovavam; viviam zombando uns dos outros. Todos julgavam-se dono da
verdade, pois cada um estava reduzido às suas próprias ideias. Nesse contexto, diz
Hume, não era necessário um conhecimento muito profundo
para se descobrir quão imperfeita é a atual condição de nossas ciências. Mesmo a plebe
lá fora é capaz de julgar, pelo barulho e vozerio que ouve, que nem tudo vai bem aqui
dentro. Não há nada que não seja objeto de discussão e sobre o qual os estudiosos não
manifestem opiniões contrárias. A questão mais trivial não escapa à nossa controvérsia,
e não somos capazes de produzir nenhuma certeza a respeito das mais importantes.
Multiplicam-se as disputas, como se tudo fora incerto; e estas disputas são conduzidas
de maneira mais acalorada, como se tudo fora certo. Em meio a todo esse alvoroço, não
é a razão que conquista os louros, mas a eloquência; e ninguém precisa ter receio de não
encontrar seguidores para suas hipóteses, por mais extravagantes que elas sejam, se for
hábil o bastante para pintá-las em cores atraentes. A vitória não é alcançada pelos
89
combatentes que manejam o chuço e a espada, mas pelos corneteiros, tamborileiros e
demais músicos do exército (Hume,2001,p.19/20).
Que fazer, então, diante dessa situação? Para Hume só havia uma saída. Segundo ele,
o único meio para obter de nossas investigações filosóficas o êxito que delas esperamos
é abandonar o tedioso e extenuante método seguido até hoje e, ao invés de nos
apossarmos, de quando em vez, de um castelo ou um povoado de fronteira, rumarmos
diretamente para a capital, para o centro dessas ciências, ou seja, para a própria natureza
humana: senhores desse centro, poderemos esperar alcançar uma fácil vitória por toda a
parte. Partindo daí, poderemos estender a nossa conquista sobre todas as ciências, mais
intimamente ligada à vida humana, para depois proceder ulteriormente no
aprofundamento daquelas que são objetos de mera curiosidade. Não há questão de
alguma importância cuja solução não esteja abrangida na ciência do homem e não há
nenhuma questão que possa ser resolvida com certeza se antes não nos assenhorearmos
daquela ciência. Assim, preparando-nos para explicar os princípios da natureza humana,
nós na realidade visamos um sistema de todas as ciências, construído sobre uma base
quase inteiramente nova, a única sobre a qual podemos nos apoiar com segurança
(Idem.Ibidem,.p.21/22).
Mas como a mente deve proceder para conhecer o mundo? Qual é o seu fundamento? A
resposta é de todos conhecida: a experiência e a observação são as bases sobre as quais
todo o conhecimento deverá se edificar. Daí a crítica escrachada que dirige à metafísica
ao mandar lançar ao fogo todo e qualquer tratado que não se fundamente na matemática
ou na experiência (Idem.Ibidem.,p.21/22).
90
II. A TEORIA DAS IDEIAS E O EMPIRISMO IDEALISTA DE HUME
Antes de mais nada é mister esclarecer que a doutrina humeana das ideias se funda no
pressuposto de que a mente só pode ter acesso a percepções. Somente a partir delas é
que se pode ter alguma noção do mundo externo. Sendo assim, o homem jamais será
capaz de sair da esfera das percepções para conceber uma realidade diferente da que lhe
é dada pelos sentidos. Mesmo que seu pensamento se aventure a criar coisas que nunca
viu ou ouviu, como por exemplo, a ideia de sereia, tais coisas não passam de uma
combinação fantasiosa de percepções reais feita pela imaginação
(Idem.Ibidem,.p.36/37).
Sabendo disso, o que Hume entende por percepções? De acordo com o que foi afirmado
há pouco, as percepções são os únicos objetos com os quais a mente lida, podendo ser
divididas em impressões (que são as percepções fortes e intensas) e ideias, - que são as
percepções mais fracas. É o que se lê na seguinte passagem da Investigação:
Hume não se preocupa em explicar a distinção entre impressões e ideias porque, para
ele, qualquer pessoa sabe a diferença entre sentir e pensar. Trata-se de uma questão de
grau, pois todo homem é capaz de interpretar tal diferença em termos de força ou
fraqueza de suas percepções. Quando estas são produto imediato das sensações, paixões
e emoções, está-se no campo das impressões; ao passo que o pensamento e o raciocínio
são feitos de ideias, enquanto imagens fracas de alguma impressão sentida num tempo
passado.
poderia ser comparada à semelhança entre um objeto e sua imagem especular, visto que
ambos têm as mesmas características. Neste sentido, as percepções podem ser ditas
duplas, isto é, aparecem como impressões e como ideais (Smith, 1995,p.50).
Essa duplicidade das percepções implica uma outra relação entre as ideias e as
impressões. Realmente, se as ideias são reflexo de alguma sensação ou impressão
passadas, é óbvio que estas últimas são as causas das primeiras, isto é: das ideias. Sendo
assim, pode-se inferir que a ideia simples é uma cópia de uma impressão simples.
Para demonstrar que as impressões são as causas das ideias, Hume apresenta dois
exemplos. No primeiro, depois de constatar que há uma conexão constante entre as
ideias e impressões simples, procura, em seguida, saber de que lado está a dependência
entre elas. Seu argumento:
para dar a uma criança uma ideai do escarlate ou da laranja, do doce ou do amargo,
apresento-lhe os objetos, ou, em outras palavras, transmito-lhe essas impressões; mas
92
nunca faria o absurdo de tentar produzir as impressões excitando as ideias (Hume,
2001.p. 29).
Alguém poderia objetar que esse exemplo dado por Hume não tem nenhum caráter de
necessidade e universalidade. Não é prova para demonstrar que as ideias simples
dependem das impressões simples. Mas que diria Hume sobre isso? A resposta está na
investigação. Para se prevenir contra tal objeção, argumenta que aqueles que dizem que
a impressão simples não é a causa da ideia simples
têm apenas um método, e em verdade fácil, para refutá-la: mostrar uma ideia que, em
sua opinião, não deriva desta fonte. Incumbir-nos-ia então, se quiséssemos preservar
nossa doutrina, de mostrar a impressão ou percepção mais viva que lhe corresponde
(Hume, 2004.,p. 37).
se ocorre que o defeito de um órgão prive uma pessoa de uma classe de sensação,
notamos que ela tem a mesma incapacidade para formar ideias correspondentes. Assim,
um cego não pode ter noção das cores nem um surdo dos sons (Idem.Ibidem,.p.37).
Reconstruindo o caminho até então percorrido por Hume, viu-se que ele começa com a
definição de percepção. Partindo daí, analisa como as percepções se dividem em ideias
e impressões para, em seguida, investigar o seu grau de complexidade, isto é: a natureza
simples e complexa das percepções. Depois disso, examina as relações de semelhança e
de conexão entre ideias e impressões. Descobre, então, que toda e qualquer ideia
simples é uma cópia de uma impressão semelhante.
Mas isso ainda não encerra de todo o inventário genético da teoria humeana das ideias.
Pressupondo que elas são cópias de impressões semelhantes, Hume precisa que as ideias
se dividem em duas espécies: ideias de memórias e ideias de imaginação. As primeiras
guardam, em diferentes graus, vestígios das impressões a que correspondem. Por isso,
estão presas à ordem e à forma das impressões originais.
93
Não é o que acontece com as ideias de imaginação. A imaginação goza de uma
liberdade quase ilimitada, que lhe permite decompor e recompor as ideias como bem
quiser. Mas não faz isto de maneira desordenada, caótica, pois, se assim o fosse, as
fábulas e poesias não passariam de um amontoado de ideias sem sentido. Deve,
portanto, existir alguns princípios que a imaginação deve observar para compor suas
ideais, pois, diz Hume,
Mas quais são esses princípios de associação das ideias de que fala Hume nesta citação?
Ele mesmo responde. Em suas próprias palavras,
as qualidades que dão origem a tal associação, e que levam a mente (...) de uma ideia a
outra, são três, a saber: semelhança, contiguidade e causa e efeito (Hume, 2001, 35).
Não é preciso muito esforço para entender a função desses princípios. A apresentação
do projeto humeano de saber, item "a" desta seção, deixou claro que a pretensão de
Hume é construir uma nova ciência fundada unicamente no método experimental. Única
alternativa, segundo assim entende, para combater a metafísica; ciência especulativa,
cujas ideias e conceitos não podem ser demonstrados, pois transcendem o mundo da
experiência.
Nessa tarefa, o princípio da cópia joga um papel fundamental, pois toda ideia não
fundada em raciocínios experimentais deve ser atirada ao fogo, pois "não contém senão
sofismas e ilusões". Segundo Smith, esta não é a única função do princípio da cópia.
Para ele,
Hume não afirma que a função do princípio da cópia é apenas, sobretudo, a de rejeitar
os conceitos filosóficos, mas antes a de investigar a origem da suposta ideia que lhes
corresponde para determinar o seu significado. Caso não se descubra essa origem nas
94
impressões, então o conceito será rejeitado como carente de significado e, caso seja
descoberta, a realidade da ideia está assegurada e sua natureza esclarecida (Smith,
1995,p.172).
ao trazer as ideias para uma luz tão clara, podemos razoavelmente esperar remover
toda a disputa que possa surgir com respeito a sua natureza e realidade
(Idem.Ibidem,.p.172).
Mesmo que Smith tenha razão, e decerto a tem, isto não invalida a ideia de que o
princípio da cópia tem como função rejeitar os conceitos metafísicos. Além dessa
função, o papel do princípio da cópia, como entende esse autor, é o de procurar a
impressão original de uma ideia com a finalidade de esclarecer seu significado.
Mas, quanto ao princípio da imaginação, qual é a sua função? Vistos que os princípios
que regem a imaginação são da ordem de três (semelhança, contiguidade e causa e
efeito), eles têm como função explicar como funciona o mundo, pois é mediante a união
e a articulação das percepções que se conhece a realidade. Portanto, diferentemente do
princípio da cópia, os da imaginação têm a função de apreender o mundo mediante a
articulação das relações entre as percepções.
Nesse sentido, pode-se dizer que o mundo que o homem conhece é um mundo
construído com ideias. De fato, se os únicos objetos que estão presentes na mente são as
95
percepções e as ideias nada mais são do que cópias de algo presente na mente, então, o
homem não tem como formar a ideia de alguma coisa diferente das percepções. Mas
isto não nega as bases empíricas do projeto de saber de Hume? Não, pois todas as
relações entre as percepções são derivadas da experiência e da observação. Ademais, o
princípio da cópia limita o conhecimento da realidade ao campo da experiência, uma
vez que toda ideia simples é uma cópia de uma impressão semelhante. Entretanto, esse
empirismo está confinado à reflexão sobre as percepções, que são os únicos objetos de
que dispõe a mente. Dessa reflexão depende as doutrinas da causalidade e do mundo
exterior. A relação entre causa e efeito, por exemplo, é construída mentalmente, pois da
percepção de um objeto, a imaginação, por força do hábito, é levada à ideia do outro. A
relação é, portanto, entre percepções; não entre estas e os objetos externos.
Isto posto, convém perguntar a Hume como ele aplica a teoria das ideias ao
conhecimento do mundo. Para os propósitos que se tem em mente, será dada atenção
especial à relação de causalidade. E isto, por duas razões: primeiro, porque esta relação
é a base sobre a qual são construídas as ciências, pois do seu conhecimento depende a
capacidade do homem de controlar eventos e governar o futuro. Segundo, porque o
conceito de causalidade é o mais importante conceito da metafísica.
Para Hume, há dois tipos de conhecimento. O que se refere às relações de ideias e o que
concerne às relações de fato. Do primeiro tipo, diz Hume,
96
Mesmo que jamais houvesse existido um círculo ou triângulo na natureza, as verdades
demonstradas por Euclides conservariam para sempre sua certeza e evidência (Hume,
2004, p. 53).
Quanto às ideias de fato, Hume comenta que são diferentes das relações de ideias, isto é,
sua verdade e evidência não são da mesma natureza das exigidas pelas ideias de razão.
Questões de fato, como ele o diz,
não são apuradas da mesma maneira, e tampouco nossa evidência de sua verdade, por
grande que seja, é da mesma natureza que a precedente. O contrário de toda questão de
fato permanece sendo possível, porque não pode jamais implicar contradição, e a mente
o concebe com a mesma facilidade e clareza, como algo perfeitamente ajustável à
realidade. Que o sol não nascerá amanhã não é uma proposição menos inteligível nem
implica mais contradição que a afirmação de que ele nascerá; e seria vão, portanto,
tentar demonstrar sua falsidade. Se ela fosse demonstrativamente falsa, implicaria uma
contradição e jamais poderia ser distintamente concebida pela mente. (Hume,
2004.,p.53/54).
É dentro do campo das ideias de fato que Hume desenvolve a sua teoria da causalidade.
Isto porque, para ele, todos os raciocínios que se referem aos fatos parecem fundar-se na
relação de causa e efeito. Apenas por meio desta relação, diz ele, ultrapassamos os
dados da nossa memória e de nossos sentidos.
(b) DA CAUSALIDADE
Os elementos da análise que estão presente na relação de causa e efeito são (i) a
impressão dos sentidos ou da memória, (ii) a inferência e (iii) a ideia associada. Destes,
cabe destacar a inferência, pois dela depende a associação entre a causa e o efeito. Mas
não se pode deixar de comentar, ainda que de maneira apressada, algumas observações
sobre a impressão que ocasiona o raciocínio causal. A este respeito, são dignas de nota
as análises de Hume sobre a origem das impressões sensíveis. Segundo ele, esta origem
é totalmente desconhecida, podendo ser atribuída ao objeto externo, a Deus ou a mente.
Por isso, é impossível provar a existência do mundo material a partir das percepções.
Mas isto não tem importância e nem o constrange, pois, segundo ele,
97
podemos sempre fazer inferências partindo da coerência de nossas percepções, sejam
estas verdadeiras ou falsas, representem elas a natureza de maneira correta ou sejam
meras ilusões dos sentidos (Hume, 2001,p. 113)
Com isso, Hume declara, com todas as letras, o caráter mentalista de sua teoria. Suas
análises, esclarece Smith,
dizem respeito tão somente às percepções em nossa mente e ao modo como estão
organizadas, estando toda a relação com a realidade, com a natureza das coisas ou com
a verdade excluída de consideração (...). Suas análises da relação de causa e efeito não
implicam outra coisa além das impressões e ideias na mente (Smith, 1995,p.77).
conhecimento dessa relação não se obtém, em nenhum caso, por raciocínios a priori,
porém nasce inteiramente da experiência quando vemos que quaisquer objetos
particulares estão constantemente conjugados entre si (Hume, 2004.p.49/50).
Além disso, a relação entre causa e efeito não é singular. Uma causa pode produzir
vários efeitos, como mostra o exemplo abaixo. Se é assim, por que preferir um efeito a
outro? É o que Hume força o leitor a se perguntar diante da seguinte situação:
98
se qualquer objeto nos fosse mostrado, e se fôssemos solicitados a pronunciar-nos sobre
o efeito que resultará dele, sem consultar observações anteriores; de que maneira, eu vos
indago, deve o espírito proceder nesta investigação? Terá de inventar ou imaginar
algum evento que considera como efeito do objeto; e é claro que esta invenção deve ser
inteiramente arbitrária. O espírito nunca pode encontrar pela investigação e pelo mais
minucioso exame o efeito na suposta causa. Porque o efeito é totalmente diferente da
causa e, por conseguinte, jamais pode ser descoberto nela [...]. Quando vejo, por
exemplo, que uma bola de bilhar desliza em linha reta na direção de outra, mesmo se
suponho que o movimento na segunda me seja acidentalmente sugerido como resultado
de seu contato ou impulso, não posso conceber que cem diferentes eventos poderiam
igualmente resultar dessa causa? Não podem ambas as bolas permanecer em absoluto
repouso? Não pode a primeira bola voltar em linha reta ou ricochetear na segunda em
qualquer linha ou direção? Todas essas suposições são compatíveis e concebíveis. Por
que, então, deveríamos dar preferência a uma que não é mais compatível ou concebível
que o resto? Todos os nossos raciocínios a priori nunca serão capazes de nos mostrar
fundamento para esta preferência (Idem.Ibidem,.p.,p.58).
Para convencer de uma vez por toda que as relações de causa e efeito somente podem
ser descobertas pela experiência, Hume argui que, sendo o efeito totalmente diferente da
causa,
o espírito nunca pode encontrar pela investigação e pelo mais minucioso exame o efeito
na suposta causa (...). O movimento na segunda bola de bilhar é um evento distinto do
movimento na primeira, já que não há na primeira o menor indício da outra
(Idem.Ibidem,.p.p.58).
Conclusão:
todo efeito é um evento distinto de sua causa. Portanto, não poderia ser descoberto na
causa e deve ser inteiramente arbitrário concebê-lo ou imaginá-lo a priori. E mesmo que
o efeito tenha sido sugerido, a conjunção de efeito com sua causa deve parecer
igualmente arbitrária, visto que há sempre outros efeitos que para a razão devem parecer
igualmente coerentes e naturais. Em vão, portanto, pretenderíamos determinar qualquer
evento particular ou inferir alguma causa ou efeito sem a observação da experiência
(Idem.Ibidem,.p.59).
99
Ora, se a relação de causa e efeito só é dada pela experiência, então, uma causa última
está fora do alcance do espírito. Este não pode ir além da observação. É assim mesmo
que pensa Hume. Para ele,
Segue-se de tudo isso que é apenas pela experiência que se pode inferir a existência de
um objeto da existência de outro. Hume explica a natureza dessa experiência nos
seguintes termos:
100
A relação de causa e efeito apoia-se, portanto, unicamente na experiência. Quando os
sentidos são despertados pela presença de um objeto qualquer, imediatamente a mente
recorda de sua conjunção frequente com outro, com base na experiência passada. Nessa
operação, a mente infere a ideia de um objeto a partir de uma impressão presente. Há,
portanto, aí, uma inferência. Ela é puramente mental, pois não há nada nas qualidades
sensíveis dos objetos externos que mostre uma ligação entre eles. É a mente que liga
uma impressão presente com a ideia de outro objeto, que outrora aparecia sempre
conjuntamente com o que está sendo observado ou lembrado.
Se é o espírito que realiza essa inferência, de que faculdade ele se serve para realizá-la?
Qual é a faculdade responsável pelo raciocínio experimental, que conecta uma
impressão presente à ideia de um objeto denominado de causa ou efeito? A razão ou a
imaginação? Para Hume, esta questão é central para resolver de uma vez por toda a
questão de saber se é a inferência que depende da conexão ou é esta que depende
daquela. Depois de mostrar que a conjunção constante entre dois objetos não é
suficiente para fazer declarar que um é a causa e o outro é o efeito, ele se pergunta pela
natureza dessa relação. Em suas próprias palavras, propõe a seguinte questão:
tendo visto que a transição que fazemos de uma impressão, presente à memória ou aos
sentidos, para a ideia de um objeto que denominamos causa ou efeito está fundada na
experiência passada e em nossa lembrança de sua conjunção constante, a próxima
questão é: a experiência produz a ideia por meio do entendimento ou da imaginação? É
a razão que nos determina fazer a inferência, ou uma certa associação e relação de
percepções? Se fosse a razão, ela o faria com base no princípio de que os casos de que
não tivemos experiência devem se assemelhar aos casos de que tivemos experiência, e
de que o curso da natureza continua sempre uniformemente o mesmo. A fim de
esclarecer essa questão, portanto, passemos ao exame de todos os argumentos que
podem supostamente fundamentar essa proposição (Idem.Ibidem,.p.117/18).
A resposta que Hume dá a essa questão é de todos conhecida. Para ele, não é a razão
que produz os raciocínios experimentais. Se o fosse, ela seria capaz de demonstrar que o
curso da natureza deve permanecer uniformemente o mesmo e que o futuro deve ser
conforme ao passado, isto é; que eventos não observados serão semelhantes aos que
foram objeto de alguma experiência no passado. Tal inferência não é possível; não pode
ser demonstrada. A prova disso, arremata ele, é a de que a mente sempre pode conceber
101
que qualquer efeito se segue de uma causa; logo, se tudo o que se pode conceber é
possível, então, não pode ser demonstrado como falso. Com efeito, da mesma maneira
que alguém pode experimentar o fato de que eu estou aqui e agora diante dessa
máquina, pode também experimentar o contrário: que eu não estou aqui e agora diante
dessa máquina. Pode, igualmente, conceber distintamente estes dois fatos, sem que isso
implique qualquer contradição; o contrário de um fato é sempre possível. É assim
mesmo que Hume demonstra porque a inferência, que leva o espírito a transitar da
impressão de um objeto à ideia de outro, não se funda na razão. Em suas próprias
palavras, diz ele:
nosso método anterior de raciocínio nos convencerá facilmente de que não pode haver
nenhum argumento demonstrativo para provar que os casos de que não tivemos
experiência se assemelham àqueles de que tivemos experiência. Podemos ao menos
conceber uma mudança no curso da natureza, o que é prova suficiente de que tal
mudança não é absolutamente impossível (Idem.Ibidem,.p.118).
Hume vai mais longe ainda para demonstrar que os raciocínios concernentes a causas e
efeitos não são produzidos pela razão. Não só esta, diz ele, é incapaz de provar que o
curso da natureza tem de continuar uniformemente o mesmo, como também nenhum
argumento tirado da experiência é capaz de demonstrar essa uniformidade. Caso seja
tentado, não se pode evitar cometer uma petição de princípio; isto é: um raciocínio
circular. Como assim? A resposta que se encontra em Hume é a de que todo
conhecimento empírico é derivado da relação de causa e efeito. Esta, por sua vez,
funda-se na experiência; e os raciocínios experimentais pressupõem que o futuro é
conforme o passado. Se é assim, argumentar que o futuro será igual ao passado, com
base em conhecimentos derivados da experiência, é voltar ao ponto de partida e assim
pressupor o que se pretendia demonstrar.
Hume demonstra, assim, que a inferência causal não pode ser teoricamente justificada,
pois os argumentos demonstrativos, como também os conhecimentos derivados da
experiência, não são capazes de provar que o futuro será igual ao passado. Noutras
palavras, não há como provar que o curso da natureza segue uma mesma uniformidade.
102
transitar da impressão de um objeto para a ideia de outro objeto. Mas em que se funda a
imaginação para operar essa transição? Hume tem a resposta. Para ele,
apenas o COSTUME nos determina a supor que o futuro seja conforme ao passado.
Quando vejo uma bola de milhar se mover em direção a outra, minha mente é
imediatamente levada pelo hábito a seu efeito usual, e antecipa minha visão,
concebendo a segunda bola em movimento. Não há nada nesses objetos, considerados
de modo abstrato e independentemente da experiência, que me leve a formar uma tal
conclusão; e mesmo eu ter tido a experiência repetida de vários efeitos dessa espécie,
não há nenhum argumento que me determine a supor que o efeito será conforme à
experiência passada. Os poderes pelos quais os corpos operam são inteiramente
desconhecidos. Só percebemos suas qualidades sensíveis; e que razão temos para que
os mesmos poderes estarão sempre em conjunção com as mesmas qualidades sensíveis
(Idem.Ibidem,.p.689/90).
É o costume, portanto, que determina a mente supor que o futuro será conforme o
passado. Por meio da conjunção constante entre dois objetos, o espírito adquire o hábito
de passar, na imaginação, da percepção de um para a ideia do outro. O costume
constitui-se, assim, no princípio explicativo da causalidade. Deste princípio depende
todo o conhecimento do mundo sobre as questões de fato e de existência, uma vez que
estas se fundam na relação de causa e efeito.
103
verdades, mesmo que estas sejam problemáticas, isto é: puramente hipotéticas e
provisórias.
Mas qual é a origem da crença? Pode-se crer em qualquer coisa que a imaginação cria
ou inventa? Se essa pergunta fosse dirigida a Hume, sua resposta, decerto, seria
negativa. Para ele, a crença deve estar ancorada em algum fato da experiência, pois,
caso contrário, ela seria destituída de todo e qualquer fundamento. Vale a pena deixar
que ele próprio justifique sua resposta. Literalmente, diz ele,
deve ser conveniente notar que, embora nossas conclusões derivadas da experiência nos
leva além de nossa memória e de nos assegurem da realidade de fatos que ocorrem em
lugares mais distantes e em épocas remotas, é necessário que um fato esteja sempre
presente aos sentidos e à memória, do qual podemos de início partir para tirar
conclusões. Se um homem encontrasse em num país deserto os remanescentes de
edifícios suntuosos, concluiria que o país, em tempos remotos, tinha sido cultivado por
habitantes civilizados; mas, se nada dessa natureza lhe ocorresse, jamais poderia
chegar a semelhante inferência. Pela história, conhecemos os eventos de épocas
passadas; todavia, devemos prosseguir consultando os livros que contêm esses
ensinamentos e, a partir daí, remontar nossas inferências de um testemunho a outro até
chegar às testemunhas oculares e aos expectadores desses eventos remotos. Numa
palavra, se não partirmos de um fato presente à memória ou aos sentidos, nossos
raciocínios serão puramente hipotéticos; e seja qual for o modo como estes elos
particulares estejam ligados entre si, toda a cadeia de inferência não teria nada que
lhe servisse de apoio e jamais por meio dela poderíamos chegar ao conhecimento de
uma existência real. Se vos perguntasse por que acreditais em determinado fato que
relatais, deveis indicar-me alguma razão; e esta razão será um outro fato em conexão
com o primeiro. Entretanto, como não podeis proceder desta maneira in infinitum,
deveis finalmente terminar por um fato presente a vossa memória ou aos vossos
sentidos, ou deveis admitir que vossa crença é inteiramente sem fundamento Hume,
2004,p. 63).
Mas as ideias produzidas pela imaginação estão, também, de alguma forma, ancoradas
na experiência, pois o seu poder criador não ultrapassa a faculdade de combinar, de
transpor, aumentar ou diminuir os materiais que foram fornecidos à mente pelos
sentidos. Realmente, quando o espírito concebe a ideia de um cavalo virtuoso, por
104
exemplo, o faz combinando a ideia de virtude, própria do ser humano, com a figura de
cavalo, que é um animal bem conhecido.
não há nada mais livre do que a imaginação humana; embora não possa ultrapassar o
estoque primitivo de ideias fornecidas pelos externos e internos, ela tem poder ilimitado
para misturar , combinar, separar e dividir estas ideais em todas as variedades da ficção
e da fantasia imaginativa e novelesca. Ela pode inventar uma série de eventos com
toda a aparência de realidade, pode atribuir-lhes um tempo e um lugar particulares,
concebê-los como existentes e descrevê-los com todos os pormenores que
correspondem a um fato histórico, no qual ela acredita com a máxima certeza. Em que
consiste, pois, a diferença entre tal ficção e a crença? Ela não se localiza simplesmente
em uma ideia particular anexada a uma concepção que obtém nosso assentimento, e
que não se encontra em nenhuma ficção conhecida. Pois, como o espírito tem
autoridade sobre todas as suas ideias, poderia voluntariamente anexar esta ideia
particular a uma ficção e, por conseguinte, seria capaz de acreditar no que lhe
agradasse, embora se opondo a tudo que encontramos numa experiência diária.
Podemos, quando pensamos, juntar a cabeça de um homem ao corpo de um cavalo,
mas não está em nosso poder acreditar que semelhante animal tenha alguma vez
existido (Idem.Ibidem,.p.65 .
105
A crença não é, portanto, uma ideia. Ela é uma maneira de sentir, isto é, de conceber as
ideias. A crença nasce do hábito que, ao transportar a mente de uma impressão para a
ideia correlata, cria o sentimento de que a ideia correlata existe de fato.
No geral, aí está o cerne da teoria do conhecimento de Hume, seu tratado lógico, sobre o
qual devem se fundar todas as ciências. Estas nascem, portanto, do hábito de associar
ideias em consequência da repetição da experiência. Do conhecimento de causas deriva
todo o conhecimento teórico, posto que esta relação não só é a mais forte de todas, mas
dela depende a capacidade humana de controlar eventos e governar o futuro.
Mas visto que essa relação depende unicamente da associação e relação de percepções
realizadas pela mente, que a faz acreditar que o futuro será conforme o passado, tanto a
universalidade como a necessidade, pretendidas pela razão, não passam de meros
hábitos psíquicos. Consequentemente, as ciências não vão além de um arranjo
conjectural. Noutras palavras, não há verdade nas ciências; estas são uma mera questão
de crença, criada pelo hábito. Não sem razão, para Chauí, Hume transforma a
ciência numa ilusão. Ela diz porque:
ciência, mero hábito psicológico ou subjetivo, torna-se afinal uma ilusão, e a realidade
tal como é em si mesma (isto é, a realidade objetiva) jamais poderá ser conhecida pela
nossa razão. Basta, por exemplo, que um belo dia eu ponha um líquido no fogo e, em
lugar de vê-lo ferver e aumentar de volume, eu o veja gelar e diminuir de volume, para
que toda ciência desapareça, já que ela depende de repetição, da frequência, do hábito
de sempre percebermos uma certa sucessão de fatos à qual, também por hábito, demos o
nome de princípio da causalidade (Chauí, 1994.,p. 74).
106
círculo de Viena, o chamado positivismo lógico, que estabelece os limites entre ciência
e pseudociência, na base da distinção entre proposições com e sem significado. Tal
distinção se estabelece por meio do princípio da verificabilidade. Para saber se uma
proposição tem ou não sentido, basta verificar se o que ela enuncia pode ser constatado
via observação. Se alguém diz , por exemplo, que está chovendo, basta sair fora de casa
para ver se tal coisa é verdadeira ou não. Caso seja confirmado que chove, a proposição
tem sentido; caso contrário, trata-se de uma assertiva falsa.
não poderia ter inferido da fluidez e transparência da água que ela o sufocaria, nem da
luminosidade e calor do fogo que este poderia consumi-lo. Nenhum objeto jamais
revela, pelas qualidades que aparecem aos sentidos, nem as causas que o produziram,
nem os efeitos que dele provirão; e tampouco nossa razão é capaz de extrair, sem
auxílio da experiência, qualquer conclusão referente à existência efetiva de coisas ou
questões de fato (Hume, 2004,p.56).
Como visto antes, Hume faz questão de demarcar a diferença entre as relações de ideias
e as relações de fato. Do primeiro tipo são as ciências da geometria, álgebra e
aritmética, em suma, toda afirmação que é intuitiva ou demonstrativamente certa. Que
o quadrado da hipotenusa é igual ao quadrado dos dois lados é uma proposição que
expressa uma relação entre essas grandezas. Que três vezes cinco é igual à metade de
trinta expressa uma redação entre esses números. Proposições desse tipo podem ser
descobertas pela simples operação do pensamento, independentemente do que possa
existir em qualquer parte do universo. Mesmo que jamais houvesse existido um círculo
ou triângulo na natureza, as verdades demonstradas por Euclides conservariam para
sempre sua certeza e evidência” (Hume, 2004, 53).
107
Quanto às relações de fato, diz Hume,
estas não são apuradas da mesma maneira, e tampouco nossa evidência de sua verdade
por grande que seja, é da mesma natureza que a precedente. O contrário de toda questão
de fato permanece sendo possível, porque não pode jamais implicar contradição, e a
mente o concebe com a mesma facilidade e clareza, como algo perfeitamente ajustável à
realidade. Que o sol não nascerá amanhã não é uma proposição menos inteligível nem
implica mais contradição que a afirmação de que ele nascerá; e seria vão, portanto,
tentar demonstrar sua falsidade. Se ela fosse demonstrativamente falsa, implicaria uma
contradição e jamais poderia ser distintamente concebida pela mente (Hume, 2004,
53/54).
Diferentemente das relações de ideias, o contrário das relações de fato é sempre possível
porque o contrário de um fato não implica contradição. O exemplo dado por Hume, de
que o sol não nascerá amanhã é tão inteligível quanto a afirmação de que ele nascerá
amanhã, mostra que as verdades obtidas pela indução não são infalíveis. O fato de mil
observações, por exemplo, mostrarem que um evento sempre vem acompanhado por
outro, não garante que a observação mil e uma se repetirá igualmente como as mil
observadas anteriormente.
Isso significa que, por maior que seja o número de casos singulares observados, não se
pode daí inferir uma lei geral válida para todos os outros eventos que não foram ainda
observados.
Com isso, Hume abriu o caminho para Popper jogar por terra a concepção de ciência
fundada na indução. Pois, diz este último,
de um ponto de vista lógico, está longe de ser óbvio que estejamos justificados ao inferir
enunciados universais a partir dos singulares, por mais elevado que seja o número destes
últimos; pois qualquer conclusão obtida desta maneira pode sempre acabar sendo falsa:
não importa quantas instâncias de cisnes brancos possamos observar, isso não justifica a
conclusão de que todos os cisnes são brancos (Popper, 1980.,p. 3).
108
A indução não pode, portanto, ser utilizada como critério de demarcação entre a ciência
e as pseudociências (metafísica). Nem poderia, pois, Hume, diz Popper, estava
perfeitamente certo ao afirmar
que não é possível justificar logicamente a indução. Ele considerava que não pode haver
argumentos lógicos válidos que nos permitam demonstrar que ≤ aqueles casos de que
não tivemos qualquer experiência se assemelham àqueles de que tivemos ≥.
Consequentemente, ≤ mesmo após a observação de uma frequente ou constante
conjunção de objetos, não temos nenhuma razão para fazer qualquer inferência a
respeito de qualquer objeto para além daqueles de que já tenhamos tido experiência ≥”
(Popper, 2018, p. 99).
Mas isso ainda não é tudo. Se é a partir da indução que são produzidos enunciados de
caráter universal, então, como se explica a universalização, se ela deriva da experiência,
da observação de casos singulares? Só existe uma resposta possível: com base num
sem-número de outras observações singulares. Mas, então, dirá Popper, tal
procedimento joga “...por terra a tentativa de basear o princípio da indução na
experiência, uma vez que ela deve conduzir a uma regressão infinita” (Popper, 1980, p.
5).
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109
3.1. A CONCEPÇÃO DA FISIOCRACIA DA NARTUREZA DA RIQUEZA
CAPITALISTA
Em A Riqueza das Nações, Livro IV, Sistemas de Economia Política, Adam Smith
dedica nove capítulos ao estudo do sistema mercantilista e o da economia fisiocrata.
Desses novos capítulos, apenas um é reservado à fisiocracia que ele denomina de
Sistemas Agrícolas.
Não é disso que se trata. Smith tem outras razões para dedicar mais espaço ao estudo do
mercantilismo. A maior delas é que os mercantilistas, com suas políticas econômicas,
criaram uma série de obstáculos ao desenvolvimento e prosperidade das nações. Daí por
que o autor de A riqueza das Nações sentiu-se na obrigação de desmantelar, com sua
crítica, todos os argumentos defendidos por essa corrente de economistas, que pregavam
o protecionismo e um conjunto de medidas práticas de intervencionismo estatal na
economia. Isto, para Smith, era um atentado ao princípio da mão invisível, segundo o
qual cada indivíduo sabe melhor do que um punhado de homens, ou uma assembléia de
notáveis, onde deve aplicar seu capital da forma mais lucrativa.
Mas ao contrário do que fez Smith, aqui se dará maior importância a fisiocracia, pois foi
esse sistema, como espera-se mostrar mais adiante, que lançou as bases da moderna
economia capitalista. Pois coube aos fisiocratas o mérito de deslocar a pesquisa da
origem do excedente econômico da circulação para a produção.
Mesmo assim cabe comentar alguns aspectos do sistema mercantilista. De acordo com
Smith, esse sistema se pauta pela máxima de que um homem rico vale muito dinheiro,
110
enquanto um homem pobre vale pouco dinheiro. É essa mesma máxima que rege a
doutrina econômica dos mercantilistas. Para eles, uma nação rica é aquela que detém
uma grande quantidade de ouro e prata em poder do soberano, pois tais metais são os
representantes universais da riqueza. Quem detém ouro e prata pode ter acesso a
qualquer tipo de riqueza.
Se assim é, então, a riqueza de uma nação depende de uma política que favoreça a
entrada de tais metais e reduza sua saída ao máximo possível. Daí a doutrina da balança
comercial favorável. Para tanto, seria necessário que o estadista adotasse políticas que
coibissem as importações e favorecessem as exportações. Quanto mais protegido o
mercado interno da invasão de produtos externos, mais próspera e rica seria a nação.
Essa doutrina econômica pressupõe, obviamente, que nas trocas entre as nações uma
ganha o que a outra perde. Ora, se a troca implica um jogo de ganhos e perdas, não
poderá haver criação de excedente dentro das fronteiras de um país, pois o que um
indivíduo ganha como vendedor de um produto qualquer, por exemplo, perde na
condição de comprador. Consequentemente, toda a política do Estado deve,
preferencialmente, se concentrar no comércio exterior. Daí a corrida das nações ricas,
primeiramente Portugal e Espanha, seguidos depois pela Inglaterra e a França, para
colonizar o mundo. O monopólio de comercio com suas colônias seria uma das
condições para favorecer um saldo comercial em favor da metrópole.
Adam Smith era radicalmente contra essa prática de soma zero, isto é, o que uma nação
ganha implica prejuízo para a sua parceira de troca. Não sem razão, impôs-se a tarefa de
demonstrar que o comércio pode ser benéfico para os parceiros de troca. Mostra que
uma nação bem melhor faria se se concentrasse na produção daqueles bens que ela tem
vantagens naturais comparadas com as demais nações. Como exemplo, oferece o caso
da Escócia. Este país poderia se dedicar à plantação de uvas para produção de vinhos e
trocá-los por produtos que outros países produzem em melhores condições.
Na verdade, o que Smith aí adianta é o princípio das vantagens comparativas, que será
objeto de estudo aprofundado por parte de David Ricardo. Seja como favor, o autor de
A Riqueza das Nações, contra os mercantilistas, argumenta que o comércio, mesmo
dentro das fronteiras de uma nação, não implica num jogo de soma zero.
111
Consequentemente, a bandeira mercantilista do protecionismo é um argumento
falacioso.
E assim procede Smith nos oitos capítulos que dedica à critica contra os mercantilistas.
Comenta uma a uma as práticas dessas doutrinas com o intento de demonstrar que são
todas elas falaciosas.
Decerto que sim. Ninguém melhor do que o próprio Marx para responder a essa
questão. Para o autor de O Capital, coube aos fisiocratas o mérito de deslocaram da
circulação para a produção imediata a pesquisa sobre a origem do excedente econômico
e, assim, lançarem os fundamentos da análise da produção capitalista. Foram os
primeiros economistas a analisarem o capital dentro do horizonte burguês. No entanto,
Marx não deixa de reparar que essa análise comete um erro do qual participaram todos
os economistas da Economia Política Clássica: tomaram o capital como uma relação
social que rege por igual todas as formas sociais de produção. Noutras palavras, a
fisiocracia transforma a forma capitalista de produção numa forma eterna de produção,
isto é, numa forma a-histórica de produção.
112
As outras figuras são formadas pela classe estéril, que compreende os produtores
urbanos (artesão, comerciantes, serviçais etc) e os que vivem da renda, dos impostos e
dos dízimos. Estes últimos são os aristocratas, os proprietários de terá e o clero.
Mas o caráter capitalista da economia fisiocrata é mais claro quando se sabe que, para
Quesnay, particularmente, a economia é governada por um sistema de leis que se
assemelham à ordem natural. Elas são, na verdade, leis perpétuas e inalteradas. Os
homens podem ignorá-las, na formulação das leis positivas, mas não impunemente; sem
as observar, a sociedade jamais poderá atingir o máximo de bem-estar. Daí que, para
ele, seu sistema é elaborado para ensinar não só o que o governo não deve fazer, como
também o que pode fazer de acordo com a ordem natural. Deixar que a economia
funcione de acordo com suas leis naturais é o melhor que pode fazer o governo. Isto não
quer dizer que o melhor que governo pode fazer é não fazer nada. Não é disto que se
trata. Cabe ao Estado criar uma infraestrura básica que permite o livre curso da riqueza,
como também remover todos os obstáculos que possam interferir na ordem natural das
coisas.
113
defrontam com o arrendatário agrícola na condição de simples assalariados, e que, por
isso, são obrigados a vender sua força de trabalho para poder sobreviver. Como o valor
que criam durante o processo de produção é maior do que o valor que lhes é pago na
forma de salário, dessa diferença, diz Marx, nasce a mais-valia. Esta é apropriada
integralmente pelo dono da terra na forma de renda. Consequentemente, a mais-valia,
ainda de acordo com o autor de O Capital, só pode vir do trabalho não-pago, do trabalho
excedente criado durante a produção.
Rolf Kuntz (1982) censura essa leitura que Marx faz dos fisiocratas, pois entende que
este pensador está a atribuir ao trabalho excedente, não-pago, à origem da mais mais-
valia. Ora, comenta Kuntz, o excedente vem unicamente da fertilidade da terra; é um
puro dom da natureza e não do trabalho aplicado na produção agrícola.
Kuntz tem razão. Mas é preciso qualificar melhor a crítica que ele dirige à leitura que
Marx faz da fisiocracia. Este não nega que, para os fisiocratas, o excedente econômico é
um presente da natureza. Reconhece, em diversas passagens de Teorias da Mais-Valia,
que o excedente gerado pelo trabalhador agrícola é um puro dom da terra que ela dá a
quem a cultiva. Mas, acrescenta Marx, esse presente não fica com quem cultivou a
terra, que deveria ser o seu verdadeiro dono. Ele vai parar nas mãos dos proprietários
que apenas colhe o que não plantou. Não foi a este que a natureza doou seu presente,
mas, sim, a quem nela aplicou trabalho, isto é, o arrendatário capitalista.
Por isso, Marx entende que o excedente econômico de que fala os fisiocratas se
configura como apropriação do trabalho alheio não-pago.
Certamente, Kuntz não concordaria com essa análise de Marx. Diria que o autor de O
Capital esquece-se de que, para os fisiocratas, os donos da propriedade são o herdeiro
legitimo do dom da natureza, uma vez que eles estão amparados em princípios morais e
legais. Como o diz o próprio Turgot, inclusive citado por Marx, quando existia terra
suficiente para cada indivíduo cultivá-la com seu próprio trabalho, não havia
pagamento de renda. Esta surge a partir do momento quando toda a terra encontra
apropriada em um punhado mãos de particulares. Os que chegaram depois que toda a
terra estava dividida entre seus donos, não podiam mais reclamar sua porção. Viram-se,
114
então, obrigados, a vender sua força de trabalho em troca de um salário. Estes não têm
mais direito de apropriar dos dons naturais da terra. O presente que ela oferece aos
homens cabe a quem chegou primeiro.
Essa justificação moral, tão a gosto do pensamento liberal, não é não suficiente para
negar a exploração de uma classe por outra. Pode até escamoteá-la; jamais negá-la,
como se terá oportunidade de demonstrar mais adiante.
Enquanto não se chega lá, adiante-se que Quesnay e seus discípulos transformaram o
proprietário de terra num verdadeiro capitalista. Com efeito, para o desenvolvimento do
capital, a primeira condição é que o trabalhador se dissocie da propriedade fundiária e
que a terra se contraponha a ele como poder autônomo, independente, isto é, que
pertença a uma classe particular. Esta, para os fisiocratas, é a classe dos proprietários, e
a estes pertences todo o excedente gerado pelo trabalho.
Ainda que Marx tenha razão, não se pode esquecer que o arrendatário, aos olhos de
Quesnay, aparece como figura central em sua teoria. Para ele, “são as riquezas do
arrendatário que fertilizam as terras, multiplica os rebanhos, atraem e fixam os
habitantes dos campos e fazem a força e a prosperidade da nação”.
Que seja! Mas, para Quesnay, são as despesas dos proprietários, seu consumo, que faz a
riqueza circular para mantê-la ativa e crescente, como diria Adam Smith. Se estes as
desviam para fins que não seja o consumo, poupam suas rendas, por exemplo, cessa o
progresso e toda a nação se empobrece. Afinal, de seu consumo depende a
sobrevivência das demais classes sociais.
115
O Quadro Econômico descreve um esquema de reprodução simples, ou seja, sem
acumulação. O estoque de capital já está constituído e apenas se repõe, ano após ano,
enquanto a produção se repete sempre na mesma escala. Que o diga o autor do Quadro.
Ele parte da suposição de um vasto reino cujo território, inteiramente cultivado de
acordo com as melhores técnicas, proporciona, anualmente, uma reprodução no valor de
cinco bilhões. Pressupõe ainda que a economia funciona sob o regime de livre
concorrência e com uma inteira segurança da propriedade.
Quesnay supõe que no início do ano, toda a produção agrícola do ano anterior, cinco
bilhões, se encontra nas mãos dos arrendatários, assim distribuídos: três bilhões de
alimentos e dois bilhões de matérias-primas. Para a reprodução desses cinco bilhões
foram necessários custos de três bilhões: dois bilhões para subsistência dos
trabalhadores e um bilhão para matérias-primas. O excedente que fica com os
proprietários resulta da diferença entre os cinco bilhões de produto e os três bilhões de
gastos, isto é: dois bilhões de rendimentos.
Por sua vez, a produção de manufaturas tinha um valor de dois bilhões: um bilhão de
alimentos e um bilhão de matérias-primas. Os custos seriam também de dois bilhões
uma vez que essa classe não produz excedente.
116
II. Estes compram um bilhão de alimentos da classe produtiva e bilhão de bens
manufaturados da classe estéril (artesãos, comerciantes, artífices etc.);
III. A classe estéril, por sua vez, com esse um bilhão recebido dos proprietários,
compra alimentos da classe produtiva (arrendatários);
V. esta classe (estéril) terá, agora, o valor de sua produção reconstituído: um bilhão
de alimentos e um bilhão em moeda;
VI. resultado: todo o valor da produção se encontra, agora, nas mãos da classe
produtiva, para reiniciar o processo de reprodução.
INTRODUÇÃO
Não é exagero afirmar que a Economia Política é filha de uma época em que o
capitalismo ainda estava longe de se constituir como um modo de produção plenamente
desenvolvido. E não é mesmo. Num tempo em que a França ainda era uma economia
praticamente feudal, François Quesnay sobressai-se como um verdadeiro Aristóteles da
modernidade. Se, para Marx, o gênio desse filósofo “brilha em sua descoberta de uma
117
relação de igualdade na expressão de valor de duas mercadorias”, o talento de Quesnay
notabiliza-se em sua análise da interdependência do fluxo circular de renda e das
despesas entre as classes sociais, como assim descreve no seu famoso Quadro
Econômico. Referindo-se a Marx, Kuntz destaca que, para o autor de O Capital, “a
genialidade extrema dos fisiocratas” foi descrever a produção do capital como
reprodução, discriminando como seus momentos a circulação monetária, a geração da
renda e os vários passos da troca. Além disso, ao deslocarem da circulação para a
produção imediata a pesquisa sobre a origem do excedente lançaram os fundamentos da
análise da produção capitalista” (Kuntz, 1982,p. 20).
Não seria despropositado afirmar que Quesnay e seus pares realizaram uma verdadeira
revolução copernicana, ao deslocarem a análise do excedente econômico da circulação
para a produção. Não só por isso. Também porque foram capazes de apreender a
economia como uma totalidade em que as diferentes formas da riqueza somente podem
ser devidamente compreendidas em sua interdependência circular, como assim mostra o
Quadro Econômico.
118
valor é determinado pela quantidade de trabalho incorporada na produção das
mercadorias, ora defende a ideia de que o valor (neste caso, o salário do trabalho)
depende da quantidade de trabalho que ele pode comandar.
Não sem razão, Ricardo toma como sua principal tarefa livrar a Economia Política das
incoerências em que esta ciência se viu enredada nas mãos de Smith. Sem isto a teoria
do valor estaria fadada ao descrédito; uma vez que Adam Smith, ao fazer uso de dois
conceitos de valor, acaba por ferir o princípio lógico de não-contradição. Ora, quem
desobedece a esse princípio, põe em xeque a própria racionalidade do discurso
científico. Que o diga Aristóteles, para quem “é evidente que é impossível para o
mesmo indivíduo supor, ao mesmo tempo, que a mesma coisa é e não é posto que o
indivíduo que cometesse esse erro estaria mantendo duas opiniões contrárias ao mesmo
tempo” (Aristóteles, 212. p. 11). Além desse erro lógico, Ricardo censura Smith por
ter limitado o princípio de que o valor é determinado pela quantidade de trabalho a um
rude e primitivo estado da sociedade em que não há acumulação de capital nem
apropriação da renda da terra.
Ricardo intenta corrigir tais deficiência e contradições da teoria de Smith, mas não é de
todo bem-sucedido, como será investigado na segunda parte deste trabalho. Mas seja
como for, em suas mãos, a Economia ganha um status mais rigorosamente científico.
Assim, Adam Smith e Ricardo apreenderam o sistema capitalista como totalidade, que é
conexão dos diferentes elementos que compõem a produção e reprodução da riqueza
social como um todo. Entenderam, assim, que a participação na riqueza dos não-
trabalhadores – capitalistas, banqueiros e proprietários de terra – depende
119
exclusivamente da apropriação do trabalho realizados por quem vive da venda de sua
força de trabalho em troca de um salário.
É óbvio que essa totalidade é totalidade formal, porque a conexão das diferentes formas
de riqueza é pensada como uma redução do pensamento. É este que, varando a
superfície imediata dos fenômenos, descobre o que está oculto por trás das formas
aparentes de riqueza. Mesmo assim, Smith e Ricardo, partindo da desordem aparente
que reina na economia, conseguiram construir uma representação da sociedade
capitalista como totalidade, pois foram capazes de compreender a regularidade imanente
que rege os movimentos irregulares do mercado - a lei do valor. Assim, puderam
mostrar que todas as formas de riqueza repousam sobre um elemento comum - o
trabalho, de onde tudo emana: salário, lucro, renda da terra e juros. Não por menos,
Hegel, em sua Filosofia do Direito, parte justamente dessa totalidade construída pelos
clássicos da economia, para compreender, a partir daí, como o sistema de carecimentos
produz, por sua própria dialética interna, um sistema universal de interdependência, no
qual cada particular só se afirma como tal quando mediado pelo metabolismo da troca
engendrado pela totalidade da divisão social do trabalho.
Esse saber crítico, por isso desinteressado, é posto em xeque tão logo a luta de classes
assumiu formas cada vez mais ameaçadoras. A ideia de que trabalho é a única fonte de
riqueza soava como um verdadeiro escândalo e um horror aos olhos da burguesia e de
seus porta-vozes. Com efeito, se o trabalho é a única fonte geradora da riqueza, o
lucro, consequentemente, só pode ser explicado como uma apropriação não paga do
trabalho alheio, como apropriadamente demonstra Adam Smith no capítulo VI de A
Riqueza das Nações.
120
Diante dessa verdade, se fez ouvir por toda a Europa o soar do sino fúnebre da
economia cientifica burguesa.
121
nenhuma aos serviços prestados pelos capitais, ele exagera a influência da divisão do
trabalho, ou melhor, da separação das ocupações. Não que essa Influência seja nula nem
mesmo medíocre, mas suas maiores maravilhas nesse gênero não resultam da natureza
do trabalho: devem-se ao uso que se faz das forças da natureza. O desconhecimento
desse princípio impediu-o de estabelecer a verdadeira teoria das máquinas em relação à
produção da riqueza" (Say, 1983. P. 54). Para esse discípulo, é a utilidade o verdadeiro
fundamento do valor, e não o trabalho. Literalmente assim ele se expressa: "o valor que
os homens atribuem às coisas tem seu primeiro fundamento no uso que delas podem
fazer” (Say, 1983.,p.68). Mais adiante conclui que "só há, portanto, verdadeira produção
de riqueza onde existe criação ou aumento de utilidade" (Say, 1983.p.69).
Com seu Tratado de Economia Política, publicado em 1803, Say abriu as portas para
revolução marginalista, que substituiu a teoria do valor-trabalho pela teoria do valor-
utilidade. Desta perspectiva, é a utilidade que determina o valor; não mais o trabalho
empregado na produção. Ora, se o trabalho perde sua centralidade na determinação do
valor, não se pode mais falar de exploração; o lucro não aparece mais, como o era para
os clássicos, como uma apropriação gratuita do excedente de valor criado pelo
trabalhador.
122
Embora se trate de uma introdução, não e de todo descabido adiantar, ainda que em
linhas gerais, as ideias defendidas pelos marginalistas. A intenção é tão somente tentar
despertar no leitor o interesse pela leitura do texto do começo ao fim.
Jevons publica seu livro no mesmo ano em que Menger traz a público os seus Princípios
de Economia Política; 1871. Assim como Menger, Jevons e Walras dividem a ideia de
que o valor dos bens é determinado pela utilidade, isto é, pela capacidade que as coisas
têm de satisfazer necessidades humanas. Embora as necessidades sejam ilimitadas, cada
necessidade considerada isoladamente tem limites, uma vez que que a satisfação
proporcionada por cada coisa decresce com o seu consumo. Noutras palavras, com
aumento do consumo de certo bem, por exemplo, a satisfação obtida tende a diminuir
até o ponto em que a última quantidade consumida não mais agregue nenhuma unidade
adicional de utilidade. Neste ponto de saturação, isto é, de satisfação plena da
necessidade, a utilidade proporcionada pela última unidade consumida determina o
valor do bem em causa, o que equivale a dizer que, em geral, o valor dos bens é
determinado pela utilidade marginal.
[1] este conceito trabalha com variações discretas para a mensuração do grau de
utilidade. Por exemplo, se um indivíduo adquire uma camisa, a segunda unidade deste
bem terá, para ele, menor utilidade que a primeira; e assim por diante.
se a economia deve ser, em absoluto, uma ciência, deve ser uma ciência matemática
[...]. Minha teoria de Economia é de caráter puramente matemático. Mais ainda,
acreditando que as quantidades com as quais lidamos devem estar sujeitas a variação
contínua, não hesito em usar o ramo apropriado da ciência matemática, não obstante
123
envolva a consideração ousada de quantidades infinitesimais. A teoria consiste no
cálculo diferencial aos conceitos familiares de riqueza, utilidade, valor (Jevons, 1983,
p.30).
Raciocínio absurdo? - Não, para quem considera a Economia uma ciência matemática;
uma ciência que busca explicar os fatos econômicos mediante a aplicação do cálculo
diferencial. É assim mesmo que procede esta ciência, quando analisa o comportamento
do consumidor. Para tanto, é suficiente dispor das quantidades de bens consumidos por
ele e, então, mediante o auxílio do cálculo diferencial, encontra-se um ponto de
equilíbrio no qual este indivíduo deverá estar plenamente satisfeito. Como assim? Não
se pode esquecer que a economia constrói seu edifício teórico sobre o pressuposto de
que os recursos são escassos. Para o consumidor individual, a escassez é dada por sua
renda; esta é restrição que o obriga a escolher, dentre a diversidade de bens existentes
no mercado, aqueles que lhes proporcionarão o maior prazer, decorrente do seu
consumo, e o menor sacrifício, por conta do fato de ter de pagar por esses bens. Assim,
o consumidor estará em equilíbrio quando adquirir de cada bem certa quantidade em
que o ganho de utilidade daí decorrente se iguala a perda de utilidade, correspondente às
quantidades de utilidade da moeda que teve de abrir mão para adquirir sua cesta de
consumo. Generalizando esse comportamento para os consumidores, a Economia vê
cada agente econômico preocupado unicamente com a saciação do seus desejos de
consumo, ou seja, com a maximização de sua satisfação e a minimização de seu
sacrifício, visto que o prazer impõe aos indivíduos certas cotas de sofrimento, uma vez
que se pressupõe que os bens são escassos; há que se pagar por eles.
124
Ora, se a Economia é uma ciência matemática, seu objeto de investigação, o
comportamento racional dos agentes econômicos, deve ser purificado de toda e qualquer
determinação subjetiva, para ser tratado como uma grandeza puramente analítica. Vale
dizer, o comportamento dos agentes econômicos de carne e osso deve ser reduzido a
mecânica de uma máquina, para que se possa calcular o ponto de equilíbrio em que um
suposto consumidor maximiza sua satisfação e minimiza seu sofrimento;
[2] Menger pensa completamente diferente. Para ele, a economia não trabalha com
quantidades, como assim entende Jevons; pelo contrário, diria ele, a economia
investiga a essência dos fenômenos, que não pode ser revelada mediante a aplicação de
equações matemáticas. É o que se depreende das objeções que dirige a Walras,
censurando-o por transformar a economia numa ciência matemática, assim como fizera
Jevons. Kauder (Kauder, 1992, p.118) resume essas principais objeções, mediante o
uso de um quadro comparativo no qual contrapõe as convicções de Menger ao que este
autor austríaco julga de errado em Walras. Esse quadro pode ser apresentado mais ou
menos assim:
ERROS DE WALRAS
CONVICÇÕES DE MENGER
125
b - Equações matemáticas não permitem compreender as leis exatas
da economia.
[3] Apesar do abismo metodológico que separa Menger de Jevons, ele divide com este
último a ideia de que
(c) os bens econômicos são escassos, sem o que seria impensável a própria teoria do
valor. De fato, se os bens fossem ilimitados em quantidade, não teriam valor, pois os
indivíduos não seriam obrigados a atribuir maior ou menor importância a um bem
com relação aos demais;
Mas, como Menger sabe que os recursos são escassos? Da mesma forma que pensa
Jevons, muito embora o autor austríaco investigue mais a fundo o princípio de que os
bens são escassos. Da mesma forma que pensa Jevons, Menger diria que qualquer
pessoa sabe que não pode dispor de tudo o que necessita, pois a experiência do dia-a-dia
mostra que as coisas são limitadas. Há de se considerar também que, se os bens fossem
ilimitados, os indivíduos não teriam por que escolher entre um bem e outro ou ponderar
em adquirir mais de um bem em detrimento de outro. Em consequência, não haveria
126
bens econômicos; os homens não teriam por que se preocupar com o atendimento de
suas necessidades; não teriam por que entrar em conflito uns com os outros, pois, se os
bens fossem ilimitados, a apropriação seria um ato livre; todos poderiam dispor do que
quisesse sem prejuízo dos demais.
Decorre, daí, que nenhuma ordem social poderá suprimir a propriedade privada.
Uma nova ordem social poderia apenas, diz Menger,
fazer com que, em lugar das atuais pessoas, outras viessem a utilizar as quantidades de
bens econômicos disponíveis para o atendimento de suas necessidades, mas nunca
conseguiria evitar que houvesse outras pessoas cuja demanda não seria atendida, ou só
parcialmente atendida, e contra as quais a sociedade seria, de qualquer forma, obrigada
a colocar barreiras de proteção à legítima propriedade adquirida por outros (Menger,
1983,p. 271).
127
natureza, que determina a economia e suas relações com as instituições da sociedade:
propriedade, Estado, dinheiro etc;
[3] Como Walras, Jevons entende que a Economia é uma ciência matemática, por
excelência; todos os seus conceitos podem e devem ser representados analiticamente.
Acontece que na sociedade, o homem não só é marcado por uma diversidade de
paixões, mas também em sua atividade econômica, desempenha diferentes papéis: de
consumidor, empresário, dona de casa, proprietário de terra, trabalhador etc. Se é
assim, como é possível, então, representar analiticamente o homem como objeto da
Economia? - Reduzindo os diferentes indivíduos concretos a mera entidade abstrata: o
suposto agente econômico racional. Tal homogeneização permite ao economista
transformar todos os sentimentos dos indivíduos em indicadores de prazer e sofrimento,
para que possa, então, analisar o comportamento do trabalhador do mesmo modo que
analisaria o da dona de casa ou o do empresário. É assim mesmo que procede Jevons,
para quem o comportamento do trabalhador não é diferente de como age o empresário.
De acordo com sua concepção, o trabalhador só estaria disposto a trabalhar mais, caso
sacrificasse parte do seu tempo livre. Noutras palavras, o trabalhador só estaria disposto
a abrir mão de parte do seu tempo ocioso, se o desconforto de trabalhar mais fosse
recompensado pelo aumento de sua renda, de modo a lhe proporcionar melhor bem-
estar material. Assim também age o empresário, que se priva do prazer de desfrutar de
sua riqueza atual, para aumentar seu patrimônio futuramente; portanto, o sacrifício da
abstinência deverá ser recompensado com maior riqueza no futuro;
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[5] Menger não faz uso desse de tipo de restrições hipotéticas, visto não trabalhar com
representações idealizadas da realidade. Diferentemente de Jevons, para ele, as
necessidades humanas são históricas, isto é, os bens podem até perder sua utilidade se as
necessidades mudam, por conta de alterações no gosto das pessoas. É o que acontece,
por exemplo, com o consumo de fumo. Uma mudança no gosto dos consumidores pode
levar tanto ao desaparecimento da necessidade de consumir esse bem, quanto também à
necessidade de consumir certos bens que entram direta e indiretamente na produção do
fumo. Neste sentido, a economia é uma atividade dinâmica, em que o tempo joga papel
determinante no curso dos fenômenos econômicos. Não só isto: como visto antes,
Menger considera o tempo um fator essencial a ser observado, pois o conceito de
causalidade é inseparável do conceito de temporalidade. Por isto, quanto mais complexa
se torna a cadeia produtiva, mais se distanciam as conexões entre os bens de produção e
os de consumo final, advindo, então, a incerteza econômica quanto ao curso corrente e
futuro da produção. Daí a necessidade de planejar a atividade econômica, de modo que
os agentes econômicos possam calcular antecipadamente,
tanto as quantidades dos diversos de que precisarão para atender às suas necessidades,
como os períodos de tempo nos quais ocorrerá sua demanda concreta de cada bem;
esse cálculo pode ser feito com a exatidão exigida de conformidade com os fins
práticos visados, exatidão que é suscetível de aumentar cada vez mais (Menger, 1983,
p.266).
[6] Para Jevons não há nenhuma relação entre o conceito de tempo de causalidade; por
conseguinte, o tempo não poderá causar nenhum desencontro entre a produção de bens
de ordem superior e de consumo. Consequentemente, não haveria incertezas
econômicas, já que o tempo não pode provocar nenhuma desproporcionalidade na
produção de bens. Daí a hipótese teórica de um mercado perfeito, em que não há lugar
para incertezas nem expectativas quanto ao curso corrente e futuro da economia.
Não poderiam ser tão diferentes os resultados a que chegam Jevons e Menger. Para o
primeiro, o mundo da economia é um mundo totalmente transparente; nele não há
incertezas nem crises; todos têm perfeito conhecimento de suas necessidades e de como
satisfazê-las. Se é assim, nada é exigido do indivíduo; este age sob o império do
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princípio da utilidade, que manda que cada um maximize sua satisfação e minimize seus
sacrifícios. Por paradoxal que pareça, porque age racionalmente, o indivíduo não pensa.
Realmente, num mundo de total transparência, o indivíduo não tem por que se
preocupar sobre o curso presente e futuro da produção e distribuição da riqueza. Muito
menos precisa tomar posição a respeito das coisas e das pessoas com quem convive,
uma vez que cada indivíduo concreto é reduzido à figura de um consumidor abstrato,
conceitualmente construído.
Não é assim que pensa Menger. Para ele, o mundo da economia é marcado pela
incerteza, que aumenta à medida que a economia se desenvolve e se torna mais
complexa. Em consequência, ninguém tem perfeito conhecimento do mercado, o que
vai exigir dos indivíduos um comportamento ativo e não passivo, como é o agente
racional de Jevons.
É nessa mesma direção que Feijó entende as razões que separam a teoria subjetiva do
valor de Menger da mesma teoria partilhada por Jevons e Walras. Fundamentado em
estudos de muitos comentaristas da obra de Menger, Feijó assim se expressa:
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muito distintos e ligados a raízes filosóficas inteiramente díspares: o utilitarismo
empirista na Inglaterra, a filosofia aristotélica na Áustria e a filosofia cartesiana na
França. Esses três países possuíam diferentes níveis de desenvolvimento econômico, de
modo que é implausível relacionar os trabalhos desses autores com mudanças na
estrutura de produção nacional ou nas relações entre as classes sociais(Feijó,
2000,p.41).
Não há dúvida de que o contexto histórico-social contribuiu para que esses dois autores
tivessem distintas concepções da ciência econômica; entretanto a filiação filosófica
de cada um deles parece ter sido muito mais importante do que tais condições.
Jevons, como será visto, transforma a economia numa ciência preocupada com a
descrição dos fenômenos da vida cotidiana, da ação dos indivíduos em sua vida
comercial. Para ele, a economia deve se aferrar à superfície imediata da vida econômica,
para descrevê-la mediante o uso de modelos matemáticos.
Mais do que isso, Jevons acaba por decretar a morte do homem como objeto de
preocupação da Economia, e, assim, termina por transformar essa ciência numa forma
de saber irracional. Com efeito, para ele, o que está em jogo é tão somente a relação
unilateral do indivíduo com as coisas. Consequentemente, não há mais relação entre os
indivíduos e destes com as coisas. É negar a própria existência do homem de carne e
osso; é decretar a sua morte, como ser carente; como ser que só pode se afirmar pela
mediação do outro, ainda que o outro seja considerado apenas meio para a realizar de
seus fins particulares.
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4. ECONOMIA E POLÍTICA
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