Você está na página 1de 79
CLASSICISMO A época do Classicismo principia em 1527, quando SA de Miranda, regressando da Itélia, divulga em Portugal os novos ideais estéticos; e termina em 1580, quando falece Camées e Portugal se trensfere para o dominio da Espanha. Constituin- dose na facéta estética da Renascenga, o movimento cléssico, assim chamado porque objetivava a imitaco dos antigos gregos ¢ latinos, deu margem ao cultivo da poesia, da historiografia, da literatura de viagens, da novelistica, do teatro classico e da pro- sa doutrindria. A grande figura do tempo & Luis Vaz ve Canoes Teria nascido em 1524 ou 1525, nio se sabe se em Lisboa, Alenguer, Coimbra ou Santarém. | Originério de uma familia fidalga da Galiza, & possfvel que na juventude freqiientasse a Corte © algum curso escolar. Nese tempo, travaria contacto com escritores antigos e modernos, como Homero, Virgilio, Ovi- dio, Petrarca, Boscin, Garcilaso e outros. Gracas a seus dotes pessoais, 6 de crer que houvesse motivado paixto em D. Maria, filha de D. Manuel e irma de D, Joio TIT, ¢ em Catarina de Ataide (que aparece em sua poesia sob o anagrama de Natércia). Talvez, por isso, afastese do convivio palaciano, até que segue para Ceuta, em'1549, como soldado. Perdendo um tho em com- bate, regressa a Lisboa, e na procissto de Corpus Christi (1552), fere Goncalo Borges, servidor do Paco, Escapando da prisio sob promessa de engajarse mo corpo de tropa sediado no Orien- te, viaja para a fndia em 1553, Em 1556, da baixa e assume 0 cargo de “provedor dos bens de defuntos e ausentes” em Ma- cau, onde teria composto parte dOs Lusiadas. Acusado de pre- varicar, vai a Goa para defenderse, mas naufraga na fox do Rio Mccom, ocasiao em que, segundo a lenda, salvou Os Lusiadas a e perdeu Dinamene, sua companheira. Em Goa, é préso e sélto (1863). Em _ 1567, esta em Mocgambique, novamente encarcerado por dividas, Liberto, vive miseravelmente, até que Diogo do Couto consegue propiciarihe condigdes de regresso & Patria. La che gando a 2 de abril de 1569, em 1572 da a piblico Os Lusiadas, pelo que passa a fazer jus a uma pensdo de 15000 réis anuais. Nem por isso foge do infortiinio: morre pobre e abandonado, a 10 de junho de 1580. Escreveu poesia lirica e épica, de recorte medieval (redondilhas), ¢ classica (sonetos, oitavas, sextinas, éalogas, cangdes, elegias, Os Lusiadas), e teatro popular e classico (Auto de Filodemo, El-Rei Seleuco e Anfitrides), REDONDILHAS Morte Detealga vei pera a fonte Lianor pela verdura; Vai fermosa, ¢ néo segura. Voutas Leva na eabega 0 pote, testo nas mios de prata, Cinta de fina escarlata, Sainho de chamalote; Traz a vasquinha de cote, Mais branca que a neve pura: Vai fermosa, e nfo segura. Descobre a touca a garganta, Cabelos de ouro entrancado, Fita de cdr de encarnado, “Tao linda que o mundo expanta, Chove nela graga tanta, Que di graga 3 fermosura: Vai fermosa, ¢ no segura. * More ALusI0 Perdigio perden a pena, Nao hé mal que the nao venha. Vouras Perdigio que o pensamento Subiua um alto lugar, Perde a pena do voar, Ganha a pena do tormento, Nio tem no ar nem no vento Asas com que se sustenh: ‘Nao hé mal que he no venha. * Quis voar a uma alta torre, Mas achou-se desasados E, vendo-se depenado, De puro penado morre. Se a queixumes se socorre Langa no fogo mais lenk: Nao hi mal que the nao venha. (Obras Completas, pref. e notas de Hernani Cidade, 3+ ed., Lisboa, Liv. S4 da Costa Ed. 119621, vol. I, pp. 133 ¢ 154.) A primeira observagio que cumpre fazer, relacionese com a estrutura e o rétulo dessas redondilhas, assim chamadas gen’- ricamente porque construidas em versos redondilhos maiores (versos de sete sflabas). Denominam-se vilancetes, corresponder- tes aos vilancicos espanhdis, e caracterizam-se por uma estrofe, © mote (= motivo), de sua lavra ou alheio, seguida de voltas ou glosas, isto é, de estrofes que comentam 'o mote © que pos- suem geralmente sete versos, des quais o tiltimo aproveita um verso’do mote, como tal ou adaptado. Camées, langando mao do gas na cintura" (Morais, Grande Dicionério da Lingua Portu- guésa. 10 ed., 12 vols, Lisboa, Confluéncia [1949-1968], vol. XI, . 545.); de cote = de uso didrio. vilancete por influxo do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, atendia ao bifrontismo renascentista na sua face medievalizante, Notese, todavia, que o lirismo dos vilancetes (e de poemas dc semelhante caréter) representa a iltima floragio da poesia medieval, o que significa ter servido de ponte de ligaco com a poesia cultivada no século XVI, sob a inspiracio dos clissicos. Por isso, Camées, como se pode ver nos dois exemplos, acentua as notas de paradoxo ¢ antitese emergentes na lirica quatro- centista. E acentus-as em razdo de seu inato pendor para cla- borar conceitos e idéias. Assim, o popularismo tipico do vilan- cete, ainda evidente nas duas pecas camonianas pelo assunto e seus ingredientes pldsticos, atenuase por uma espécie de con- ceptualismo que pressagia nitidamente 0 advento da poesia barréca. Observe-se, no caso do primeiro vilancete, popular pe- la protagonista © pelo sentimento amoroso néle expresso, como © poeta nao dissimula sua tendéncia basica: 0 verso que serve de estribilho (“Vai fermosa, e nio segura”) e outras imagens de comparacdo (“Mais branca que a neve pura”; “‘Chove nela graca tanta, / Que da graca & fermosura") pdem-na logo de manifesto. E 0 vilancete seguinte, sustentado iodo éle no jége de palavras em tdro da ambigua conotagdo do vocabulo “pena”, pronuncia ainda mais o contémo intelectualizado que adquire ‘essa forma poética nas maos de Camées. Inclusive, o protagonista (0 per digo) parece simbolizar o préprio poeta, que, pelo “pensamen- to / Subiu a um alto lugar”. Num caso out noutro, sentimo-nos pe- rante um poeta ambivalente, indeciso entre 0 descontraimento © 0 realismo da cantiga de amigo, ¢ 0 conceptualismo aprendido com Petrarca e estimulado pelos mestres cldssicos. Apesar dis- 50, ou em virtude disso, os vilancetes promovem dois momentos de aliciante beleza lirica, gragas A sua musicalidade cantante festiva e a um pensamento unissono, que perduram para além da Ieitura ou da audi SONETOS Sete anos de pastor Jacé servia Labio, pai de Raquel, serrana bela; Mas nao servia 20 pai, servia a ela, E a cla s6 por prémio’pretendia. 70 Os dias, na esperanga de um sé dia, Passava, contentando-se com vé-la; Porém 0 pai, usando de cautela, Em lugar de Raquel Ihe dava Lia. Vendo o triste pastor que com enganos Lhe fora assim negada a sua pastbra, Como se a nao tivera merecida, Comega de servir outros sete anos, Dizendo: — Mais servira, se no f6ra Para tio longo amor io curta a vidal 2 Um mover de olhos, brando piedoso, Sem ver de qué; um riso brando honesto, Quase forcado; um doce ¢ humilde gesto, De qualquer alegria duvidoso; Um despejo quieto e vergonhoso; Um repouso gravissimo € modesto; Uma pura bondade, manifesto Indicio da alma, limpo e gracioso; Um encolhide ousar; uma brandura; Um médo sem ter culpa; um ar sereno; Um longo € obediente sofriment Esta foi a celeste formosura Da minha Circe, e 0 magico veneno Que pide transformar meu pensamento, 3 ‘Transforma-se 0 amador na cousa amada, Por virtude do muito imaginar; Nio tenho logo mais que desejar, Pois em mim tenho a parte descjada. Se nela est minha alma transformada, Que mais deseja o corpo de alcangar? Em si sdmente pode descansar, ois consigo tal alma est liada. Mas esta linda e pura semidéia, 7 72 Que, como o acidente em seu sujeito, Assim com a alma minha se conforma, Esti no pensamento como idéia; E 0 vivo € puro amor de que sou feito, Como a matéria simples busca a forma, 4 Busque Amor novas artes, ndvo engenho. Pera matar-me, € novas esquivancas; Que nio pode tirar-me as esperancas, Que mal me tiraré o que eu nao tenho. Olhai de que esperangas me mantenho! ‘Véde que perigasas segurancas! Que no temo contrastes nem mudangas, Andando em bravo mar, perdido o lenho. Mas, conquanto nio pode haver desg6sto ‘Onde esperanca falta, If me esconde Amor um mal, que mata © no se ve; Que dias hé que na alma me tem pdsto ‘Um nio sei qué, que nasce nfo sei onde, Vem nio sei como, € déi nao sei por qué. 5 Alma minha gentil, que te partiste Tio cedo desta vida, descontente, Repousa If no Céu eternamente E viva eu cf na terra sempre triste. Se lé no assento etéreo, onde subiste, Meméria desta vida se consente, Nao te esquecas daquele amor ardente Que j4 nos olhos meus tio puro viste, E se vires que pode merecer-te Alguma cousa a dor que me ficou Da migoa, sem remédio, de perder-te, Roga a Deus, que teus anos encurtou, ‘Que tio cedo de ci me leve a ver-te, Quio cedo de meus olhor te levou. 6 Amor é fogo que arde sem se vers E ferida que déi € nao se sente; E um contentamento descontente; E dor que desatina sem doer; E um nao querer mais que bem querer; E solitério andar por entre a gente; E nunca contentirose de contentes E cuidar que se ganha em se perder; £ querer estar préso por vontade; servir a quem vence, o vencedor; £ ter com quem nos mata lealdade. Mas como causar pode seu favor Nos coragdes humanos amizade, Se tio contrério a si é 0 mesmo Amor? (Ibidem, pp, 194, 197, 198, 205, 213, ¢ 232.) Tais sonetos, dos mais perfeitos de quantos produziu Ca- mées e dos mais belos da Lingua, apresentam pontos de cor tacto naquilo que diz respeito & estética cléssica. Em prime ro lugar, pelo fato de obedecerem a0 princtpio da imitacao, quer dizer, da aceitacao de modelos pré-existentes & elaboracdo da obra de arte, sejam éles os escritores grecolatinos, sejam os modernos que Thes seguiram as pegadas. Eo acatamento de moldes pressupunha, inclusive, 0 empréstimo de versos intei- ros ou de temas, Em troca, exigiase que o poeta imitador ins- tilasse originalidade, o “engenho e arte” de que fala Camoes, na substancia poética recebida de fora. Sdmente nos mays poe- tas a imitago coagia ou abastardava a inspiragdo; nos grandes, constituia estimulo para criar obras pessoais, quid superiores as dos modelos imitados. Camdes colocase neste Segundo gru- po: praticou o principio da imitacio com tdda a liberdade de seu_génio poético, e no raro suplantou os mestres, Assim, 0 sonéto ni 1 terseia inspirado no sonéto de Petrarca que se inicia com o verso “Per Rachel ho servito e non per Lia”, e no Génesis, XIX, 25. O sonéto n 2 deve terse baseado no de Petrarca que comeca com o seguinte verso: “Grazie ch'a poch’l Ciel largo destina”.. O mesmo ocorre com 0 sonéto n’ 3 (cf. Pe- Llamante nell’'amato si trasforma") © com 0 sonéto ve ne 5 (cf. Petrarca, “Questa anima gentil che si diparte” ¢ “Anima bella, da quel nodo sciolta”). Em segundo lugar, observese 0 racionalismo: embora se trate de sonetos lirico-amoresos, per- cebese que 0 poeta nao se abandona ao fluxo emocional ou sentimental. Este, € dbvio que existe ¢ que irriga os poemas desde 2 primeira A iiltima palavra, mas aparece controlado, guiado pela Razo, que evita qualquer extravasamento desne- cessirio. Com feito, vigiado pela Razio, que os classicos eri- giam em faculdade matriz no conhecimento do mundo e dos séres, 0 sentimento ou a emosio contémse nos limites do equi- librio e da harmonia, que por Seu turno constituem outras carac- teristicas da estética clissica evidentes nos sonetos. Ora, o equilibrio © a harmonia conduzem a impressio de absolut € universatidade: realmente, 0 poeta atenua os impulsos do seu “eu”, quer dizer, de sua vida subjetiva particular, em favor de uma visdo impéssoal ou objetiva e universal, que pressupde absolutes de beleza, de bem e de verdade. Por isso, interessa-the mais a Mulher que a mulher (ou esta como reflexo daquela), mais 0 Amor que o amor (ou éste como refiexo daquele), ¢ assim por diante. Atentese ainda para o cardter discursivo ‘ou conceptual dos sonetos: através duma dialética cerrada, o poeta procura comunicarnos antes um pensamento acérca do Amor e da Mulher que um sentimento déles. Todo 0 jogo das imagens ‘que sustenta os poemas serve apenas como meio de expressio aos pensamentos, que se encadeiam num crescendo em forma de silogismo, que culmina no ultimo verso (o fecho de ouro), em que o poeta esculpe o seu conceito a propésito da matéria dos poemas. Os sonetos n." 4 6 ilustram, mais do que os ot tros, essa tendéncia do poeta para buscar compreender e con- ceituar 0 proceso amorvso. Como, verdadeiramente, 0 amor consiste num sentimento vag, inconceitudvel, ndo Ihe resta ou- tro recurso sendo apelar para as antiteses e os paradoxos pe- trarqueanos e pré-barrocos: 0 Amor é “Um ndo sei qué, que nasce néio sei onde, / Vem nfo sei como, e déi nio sei por qué”; "6 fogo que arde sem se ver”, etc. Enfretanto, notese que a perqui- rigao dum conceito sObre 0 Amor enraiza-se noutra faceta da mun- dividéncia camoniana e mesmo clissica: 0 neoplatonismo, oa me- Thor, a revivescéncia das doutrinas de Platéo acérea do Amor, co- mo 'se estampam nO Banguete. Segundo 0 seu pensar, a ver dadeira realidade reside no mundo das idéias, e 0 mundo sensivel se afigura apenas um aglomerado de sombras vagas, lembrancas do outro; e “o Amor é um ser intermediario entre os deuses os mortais, ¢ filos6fo; éle nos inspira o desejo de ter sempre © bem; sua ago € uma geragio que garante aos mortais a imor 4 talidade que thes & possivel” (José Cavalcante de Sousa, ‘“Introdu- cdo” a O Banguete, S. Paulo, Difusio Européia do Livro, 1966, P. 54). Désse modo, torne-se transparente a fala de Jacé ao final de sete anos de trabalho para Labao, pai de Raquel: “Mais ser- vira, se nao fora / Para to longo amor tio curta a vidal”. fi que seu amor transcendia 0 plano histérico em que éle vivia e projetavase para uma zona ideal, infensa & astiicia e A malicia de Labao: Jaco teria sua amada custasse 0 que custasse, pols seu sentimento nio era da carne mas do espfrito, e éste participava da esfera inteligivel onde assiste, a0 ver de Platio, a realidade de tudo; éle vivia smente para ¢ pelo amor, € a servidéo podia atingirthe o corpo, nunca a alma, que gozava de plenitude em razao do sentiment que o ligava a Raquel; a rigor, éle servia a ela, a si préprio ou a0 Amor, nao a Labio; por isso, servia resig- nado e contente. Esse neoplatonismo ainda se manifesta Iim- pido no sonéto n? 5, provavelmente dedicado a Dinamenc, em que 0 poeta contempla a Bem-Amada transubstanciada em puro espirito, "Id no assento etéreo”, por via do muito amar. O ap’ lo dos sentidos, se existe, volvese em expectaco da alma, em visio de transcendéncias, em volipia de emigrar para as regides imaterials onde mora Dinamene. No caso, 0 Céu ¢ Deus devem ser entendidos antes como absolutes miticos ou filoséficos que religiosos ou catélicos. Aqui, o pensamento platonico se faz cris- talino e exclusive, 0 mesmo niio acontecendo com o sonéto n. 3, de intrincada tessitura e de contetido polivalente e discutfvel. Por isso, vamos apenas aflorar a questa0. O sonéto gravita em trno da doutrina platonica da idéia e da doutrina aristotélica da forma, Como se sabeambas colidiam na sua concepgio do real: enquanto a primeira o situava na idéia, a outra o situava na ‘matéria que se contém na forma. No poema camoniano, os doi conceitos completamse ao invés de repelir-se: pelo pensamento, © apaixonado (“o amador”) se transforma “na coisa amada' realizando assim a filosofia aristotélica, Mas a “cousa amada’ composta a uma de corpo ¢ espirito (“linda e pura semidéia” ajustada & alma do poeta (“com a alma minha se conforma”) da mesma maneira que 0 “acidente” (ou o adjetivo) adere intima- mente ao “sujeito” (ou 0 substantivo), “esté no pensamento como idéia’, isto é, 0 poeta possui, no pensamento, a idéia do Amor ¢ da Amada, jamais o Amor e a Amada corporificados (teoria plato- nica). Por isso, 0 amor se apoderou do poeta (“o vivo e puro amor de que sou feito") dum modo andlogo aquele em que a “materia simples busca a forma”, ou seja, em que a substancia para (a "matéria” no conceito arisiotélico) implica obrigatoria- mente numa “forma” (ainda conforme Aristételes), pois uma no 5 existe sem a outra. Vé-se, por conseqiiéncia, que as doutrinas platénica e aristotélica se complementam: o poeta diligencia conciliar o amor como idéia e 0 amor como forma, ambos en carnados numa mulher ou na Mulher, visto ansiar pelo amor em sua integralidade € universalidade. | Noutros térmos, Camoes concebe ou procura o amor na sua expressio plena, em que se misturam ao mesmo tempo apelos sensuais e espirituais. Quanto ao sonéto n: 2, encerra um retrato da mulher amada por Ca mbes, talvez Dinamene, Tratase de um acabado retrato clas- sico:’ menos que descricao exterior ou fisica, temos uma des- crigo interior, psicolégica. Sémente os olhos, e no na cér ou no formato mas no movimento, o “‘riso brando e honesto” sio referidos, e, assim mesmo, dum jeito que de pronto enfraquece a mencio direta feita pelo poeta. No mais, a mulher é divisada hierdtica, em “repouso gravissimo e modesto” e com “um ar sereno", como um alto relévo da estatuéria renascentista, referta de qualidades morais, incorpérea, etérea, iluminada por dentro. 0 retrato, classico por todos ésses pormenores e pela metéfora estruturada com fundamento na figura mitolégica da Circe, res- pira um “misto de simplicidade, bondade, melancolia suavissima, docura, serenidade, melindrosa timidez, que bem parece 0 nosso Poeta copiou do natural” (Hernani Cidade, Camdes. O Lirieo. 2* ed, rev. ¢ ampl, Lisboa, Bertrand, 1952, p. 135). CANGAO Junto de um sco, fero e estéril monte, Indtil e despido, calvo, informe, Da Natureza em tudo aborrecido ‘Onde nem ave voa ou fera dorme, Nem rio claro corre ou ferve fonte, Nem verde ramo faz doce ruido; Cujo nome, do vulgo introduzido, E Félix, por antifrase infelice; © qual a Natureza Situou junto 4 parte Onde um brago do mar alto reparte Abéssia da ardbica aspereza, Onde fundada j4 foi Berenice, Ficando a parte donde © Sol, que nela ferve, se lhe esconde; 76 Néle aparece o cabo com que a coita ‘Africana, que vem do Austro correndo, Limite faz, Arémata chainado. Arémata, outro tempo, que, volvendo Os Céus, a ruda lingua mal composta Dos prdprios outro nome lhe tem dado; Aqui, no mar, que quer apressurado Entrar pela garganta déste brago, ‘Me trouxe um tempo € teve Minha fera ventura, Aqui, nesta remota, Aspera e dura Parte do Mundo, quis que a vida breve Também de si deixasse um breve espaco, Por que ficasse a vida Pelo Mundo cm pedagos repartida. Aqui me achei gastando uns tristes dias, Tristes, forgados, maus e solitérios, Trabalhosos, de dor e de ira cheios; Nio tendo tio-simente por contrérios A vida, 0 sol ardente e 4guas frias, Os ares grossos, férvidos € feios, ‘Mas os meus pensamentos, que sio meios Pera enganar a prépria Natureza, ‘Também vi contra mi, ‘Trazendo-me 4 meméria Alguma jé passada ¢ breve gléria Que eu j& no Mundo vi, quando vivi, Por me dobrar dos males a asperezs, Por mostrar-me que havia No Mundo muitas horas de alegria. Aqui estive eu com ésses pensamentos Gastando 0 tempo ¢ a vidas os quais to ako Me subiam nas asas, que caia E vide se seria leve o salto!) De sonhados ¢ vios contentamentos, Em desesperagio de ver um di Aqui o imaginar se convertia ‘Num stibito chorar ¢ nuns suspiros Isto s6 que soubesse, me seria Descanso pera a vida que me fica; Com isto afagaria 0 sofrimento. Ah! Senhora! Senhora! Que tio rica Estais, que, c4 tio longe, de alegria Me sustentais com dece fingimento! Em vos afigurando © pensamento, Foge todo o trabalho ¢ téda a pena. Sé com vossas lembrangas, ‘Me acho seguro © forte Contra 6 rosto feroz da fera Morte, E logo se me juntam esperancas Com que a fronte, tornada mais serena, Torna os tormentos graves Em saudades brandas ¢ suaves. Aqui com elas fico. perguntando ‘Acs ventos. amoresos, que respiram Da parte donde estais, por vés, Senhora; As aves que ali vam, se vos viram, Que fazieis, que estaveis praticando, Onde, como, com quem, que dia ¢ que hora? Ali a vida cansada se melhora, Toma novos esp'ritos, com que venga A Fortuna e Trabalho, $6 por tornar a ver-vos, Sé6 por ir a servir-vos ¢ queres-vos. Diz-me 0 Tempo que a tudo dard talhos Mas 0 Desejo ardente, que detenca Nunca sofreu, sem tento Me abre as chagas de névo ao sofrimento. Assi vivo; ¢ se alguém te perguntasse, Cangio, como nio mouro, PodesIhe responder que porque mouro.* (Ibidem, vol. II, pp. 289293) © Onde fundada jé foi Berenice = cidade asidtica fundada por Ptolomeu, em homenagem 2 sua mulher, uma princeta judia; Dos préprios outro nome the tem dodo — Guandafui 9 Condenado ao “destérro” no Oriente, como Ovidio, um de seus mestres, fora no Ponto Euxino, Camées vibra, num momento de intensa e profunda desolacdo, as cordas mais finas de sua sen- sibilidade e alcanca o auige de sua poesia lirica de ordem refle xiva: @ a Cangao n’ IX. A situago do poeta se evidencia logo na segunda estrofe: “Junto de um séco, fero © estéril monte” se localiza 0 Cabo Guardafui, aonde a fortuna o langara com sua magoa. Dai decorre o primeiro aspecto digno de nota: a pre senga da Natureza. Esta, como se sabe, era ocasional, estitica externa na lirica trovadoresca. Foi preciso que Petrarca a edescobrisse” para que ela ganhasse o papel moderno que en trou a representar desde entio. Cames, seguindo na sua esteira, € remontando aos classics, também ‘emoldura o seu drama com um acidente geografico asidtico (0 que ¢ raro em sua poe sia). Com isso, estabelece uma identidade entre 0 conflito que © habita e 0 contexto natural. Todavia, evitese interpretar essa identidade como preniincio da equagio estatuida pelo romAnti- co ea natureza, em que ela era encarada como confidente, con- solo e varidvel de acOrdo com a alma do artista. No caso pre- sente, trata-se duma coincidéncia apenas, como se 0 poeta pro- curasse e encomtrasse um local fisico adequado, pela caréncia de vegetago ou de qualquer indicio de vida, & expensio de sua tremenda ebulicSo interior. & inegavel, porém, que a mol- dura paisagistica se presta admiravelmente para sugerir 0 clima emotive do poeta: ao descritivo da paisagem fisica corresponde a desolacdo em que éle vive mergulhado. Equacio tipicamente camoniana e cldssica em sua grandeza e universalidade, por- quanto “da amargura por suas decepcdes pessoais, éle chega A amargura pelo sentimento da incompeténcia e precariedade mo- ral inerentes & condigao humana”, de forma que “a angistia do individuo nZo se torna agora senfo a expressiio parcial da an- gistia da espécie. O sofrimento no é de um, mas de todos, 0 vicio nda esta no particular, mas no geral”. (Cristizno Martins, Camées, Rio de Janeiro, Americ Ed. [1944], p. 155 e 160). Ou seJa: no seu “exilio” transparece didfana a causa de sempre, 0 mal de amar alguém distanciado no espaco ou na classe social. Entretanto, seu sofrimento amoroso, acrescentado ao do afasta- mento em terras orientais, longe esta de ocasionar uma confissdo superficial e um lamento facil. Ao contrario, ganha colorido de verdadeita desolacdo prometéica, como se 0 poeta, amarrado a5 pedras inertes do Cabo Guardafui, tivesse de expiar um tor- mento interminivel, no qual se estampa a prépria solidéo do Homem em face do seu destino, da natureza passiva e adusta € dos préprios deuses. Sobretudo em face da natureza: observe-se 80 que disso mesmo © poeta tem conscisneia, ao confidenciar que "os meus pensamentos ... sio meios / Pera enganar a pré- pria Natureza", e que “€ste irado mar, gritando, amanso!", Per cebe-se que Camées, como clissico que era, situava a tdnica de sua cosmoviséo no pensamento, na Razdo, ¢ nao fora, déle, ou melhor, na Natureza. Por fim, atente-se para o fato de se tratar dum poema de indole reflexiva em tOrno da causa de sempre dos seus tormentos — 0 Amor —, agora engrandecido pelas dores da prolongada auséncia ¢ da enorme distancia geo- grifica, e tornado, de sibito, um padecimento que se amplifica Dara representar a magoa de todo ente em idénticas condigdes: sea destino amoroso também simboliza o universal paradoxo de amare atormentarse. Désse modo, na Cangio n° IX 0 posta plasma, na sua solidio, desesperacdo e anguistia sentimental, o drama ‘do proprio Homem perante o seu destino e sua nsia de comunicarse ¢ permanecer para além da “fera Morte”. Que se trata dum poema de feicdo classica, parece no haver a menor dtivida: basta ter corrido os olhos pelo comentario aos sonetos para percebélo. Na sua falta, notem-se, como claros indices, 0 racionalismo estéico do quadro e o absolutismo meio alegérico assumido por certas palavras em maitscula, como Des- tino, Fado, Fortuna, Trabalho, Morte, Estrélas, Céu. 5 LUSIADAS Publicada em 1572 ¢ contendo 10 cantos, que enfeixam 102 estncias em oitava-rima (com rima em abababee), ou 8816 ver- sos decassilabos herdicos (com cestra na 2. silaba, ou 3., ou 4: 3° € 10), — a epopéla camoniana divide-se em trés partes: a Introdugdo, que ocupa as 18 primeiras estincias, repartese em Proposigdo’ (estancias 1-3), ou seja, 0 assunto do poema “As armas e os bardes assinalados", “Cantando espalharei por téda fnvocacdo (estancias 45) as Tagides, musas do Rio Tejo; © Oferecimento (estancias 618) ao Rei D. Scbastiio, que subven- cionou a publicacéo da obra; a Narraedo (Canto I, estancia 19 — Canto X, estincia 144) e Epilogo (Canto X, estincias 145-156). Visto a epopsia basear-se na viagem de Vasco da Gama as Indias, a Narracdo principia com as caravelas navegando no Oceano fndico. Realiza-se 0 Concilio dos Deuses no Olimpo, € Venus consegue yencer Baco ¢ obter permissio para que os na- vegantes prossigam caminho. Chegam a Mocambique, onde, com a ajuda de Vénus, se desvencilham das ciladas de Baco. Na chegada a Mombaca, repete-se a cena. Até que aportam a 81 ‘Melinde, cujo rei, vindo & nau capiténia, pede a0 Gama que Ihe narre a histéria ‘do seu pafs. Descrita a Europa, o nauta en- ceta sua naracio com a fundagdo da Lusitania por Luso, passa por D. Henrique de Borgonha e continua com os principais even- tos histricos: 9 de Egas Moniz, a batalha de Ourique, a batalha do Salado, Inés de Castro, a batalha de Aljubarrota, a tomada de Ceuta, 0 sonho profético de D. Manuel, os preparativos da viagem e’a largada das naus. A seguir, 0 Gama relata os inci- dentes da primeira parte da viagem: 0 Fogo de Santelmo, a aventura do Veloso, 0 Gigante Adamastor, a chegada a Melinde. Partindo as naus, Baco incita os ventos contra elas: durante a calmaria, contase 0 caso dos Doze de Inglaterra. Desatada a tempestade, Vénus decide abrandila enviando ninfas amorosas ao encontro dos ventos enfurecicos. Chegada a Calicute, temo da viagem. Desembarcado, Vasco da Gama ¢ acolhido festiva- mente pelo Samorim, enquanto Paulo da Gama recebe a bor- do da nau capitania 0 Catual e decifrathe o sentido das figuras desenhadas nas bandeiras. Alcancado. 0 objetivo, retornam & Patria. Em caminho, arribam & Ilha dos Améres, onde so re- compensados de suas’ fadigas com os favores das’ ninfas locais. E Tétis conduz Vasco da Gama ao t6po da ilha, de onde Ihe descortina a “maquina do mundo” € 0 destino glorioso do povo portugués, Partida. Regresso a Portugal. Epflogo, melancé- Tico e triste. 0 episédio que se vai ler, é referente ao Gigante Adamastor, situado no Canto V, entre as estincias 37 e 60: [Gicawre Ansnusror] Porém j4 cinco Ssis eram passados Que dali nos partiramos, cortando Os mares nunca de outrem navegados, Prasperamente 0s ventos assoprando, Quando uma noite, estando descuidados Na cortadora proa’vigiando, Uma nuvem, que os ares escurece, Sébre nossas caberas aparece. ‘Tio temerosa vinha ¢ carregada, Que pbs nos coragSes um grande médos Bramindo, o negro mar de longe brada, 82 Como se desse em vio nalgum rochedo. “O Potestade (disse) sublimada: Que ameago divino ou que segrédo Este clima e éste mar nos apresenta, Que mor cousa parece que tormenta?” Nio acabava, quando uma figura Se nos mostra no ar, robusta ¢ valida, De disforme e grandiscima estatura; rosto carregado, a barba esquilida, Os olhos encovados, € a postura Medonha ¢ mi e a cér terrena e pilide; Cheias de terra ¢ crespos os cabelos, A boca negra, os dentes amarelos. ‘Tao grande era de membros, que bem posso Certificar-te que éste era 0 segundo De Rodes estranhissimo Colosso, Que um dos sete milagres foi do mundo. Cum tom de voz nos fala, horrendo € grosio, Que pareceu stir do mar profundo. Arrepiam-se as carnes ¢ 0 cabelo, A mim e a todos, s6 de ouvielo e vé-lo. E disse: “O gente ousada, mais que quantas No mundo cometeram grandes cousas, Tu, que por guerras cruas, tais ¢ tantas, E por trabalhos vos nunca repousas, Pois os vedados téminos quebrantas E navegar meus longos mares ousas, ‘Que eu tanto tempo hé j4 que guardo ¢ tenho, Nunca arados de estranho ou préprio Jenh Pois vens ver os segredos escondidos Da natureza e do fimido elemento, A nenhum grande humano concedidos De nobre ou de imortal merecimento, Ouve os danos de mim apercebidos Esto a teu sobejo atrevimento, Por todo o largo mar ¢ pola terra Que inda h4s de subjugar com dura guerra, Br Sabe que quantas naus esta viagem Que tu fazes, fizerem, de atrevidas, Thimiga terdo esta paragem, Com ventos ¢ tormentas desmedidas! E da primeira armada, que passage Fizer por estas ondas insofridas, Eu farci de improviso tal castigo, Que seja mor o dano que o perigo! Aqui espero tomar, se nio me engano, De quem me descobriu suma vinganea, E niio se acabari $6 nisto o dano De vossa psrtinace confianga: Antes, em vossas naus vereis, cada ano, Se € verdade o que meu juizo aleanca, Nanfrigios, perdigées de téda sorte, Que o menor mal de todos seja a morte! E do primeiro Tlustre, que a ventura Com fama alta fizer’tocar os Céus, Serei cterna € nova sepultura, Por juizos incdgnitos de Deus. Aqui por da ‘Turca armada dura Os soberbos ¢ présperos troféus; Comigo de seus danos 0 ameaca A destrufda Quiloa com Mombaca. Outro também vird, de honrada fama, Liberal, cavaleiro ¢ namorado, E consigo trard a fermosi dama Que Amor por grio mercé Ihe ter4 dado, Triste ventura e negro fado os chama Neste terreno meu, que, duro e irado, Pera verem trabalhos excessivos, Verio morrer com fome os filhos earos, Em tanto amor gerados nascidos; Verio os Cafres, Asperos € avaros, Tirar 4 linda dama seus vestidos; Qs cristalinos membros e preclaros A calma, a0 frio, 20 ar, vero despidos, Depois de ter piseda, longamente, Cos delicados pés a areia ardente, E verdo mais os olhos que escaparem De tanto mal, de tanta desventura, Os dois amantes miseros ficarem Na férvida ¢ implacdvel espessura. Ali, depois que as pedras abrandarem Com lgrimas de dor, de mégoa pura, Abracados, as almas ‘soltarao Da fermosa ¢ misérrima prisio.” Mas ia por diante 0 monstro horrendo, Dizendo nossos Fados, quando, algado, Lhe disse eu: “Quem é tu? Que ésse estupendo Corpo, certo, me tem maravilhado!” A béca ¢ os olhos negros retorcendo F, dando um espantoso e grande brado, ‘Me respondeu, com voz. pesada © amara, Como quem da pergunta Ihe pesara: “Eu sou aquéle oculto ¢ grande Cabo A quem chamais yds outros Tormentério, Que nunca a Prolomeu, Pompénio, Estrabo, Plinio, € quantos passaram fui notério, Aqui t6da a Africana costa acabo Neste meu nunca visto Promontério, Que pera o Pélo Antirtico se estende, AX quem vossa ousidia tanto ofende! Fui dos filhos aspérrimos da Terra, Qual Enctlado, Egeu e 0 Centimano; _ Chamei-me Adamastor, ¢ fui na guerra Contra 0 que vibra os raios de Vuleano; Nio que pusesse serra sbbre serra, Mas, conquistando as ondas do Occano, Fui capitio do mar, por onde andava A armada de Netuno, que eu buscava. 5 86 Améres da alta espdsa de Peleu ‘Me fizeram tomar tamanha emprésa. ‘Tédas as Deusas desprezei do Céu, $6 por amar das Aguas a Princesa. Um dia a vi, co as filhas de Nereu, Sair nua na praia: e logo présa ‘A vontade senti de tal maneira, Que inda nao sinto cousa que mais queira. Como fésse impossivel alcangé-la, Pola grandeza feia de meu gesto, Determine! por armas de tomé-la E a Déris éste caso manifesto. De médo a Deusa entio por mim Ihe fala; Mas ela, com fermoso iso honesto, Respondeu: “Qual seré 0 amor bastante De Ninfa, que sustente o dum Gigante? Contudo, por livrarmos 0 Oceano De tanta guerra, eu buscarei_maneira Com que, com minha honra, escuse 0 dano,” Tal resposta me torna a mensageira. Eu, que cair nao pude neste engano (Que é grande dos amantes a cegueira), Encheram-me, com grandes abondangas, O peito de desejos e esperancas. JA néscio, ja da guerra desistindo, ‘Uma noite, de Déris prometida, Me aparece de longe o geo lindo Da branca Tétis, tinica, despida. Como doudo corri, de longe, abrindo Os bragos pera aquela que era vida Déste corpo, e comeco os olhos belos A Ihe beijar, as faces e os cabelos. Oh! Que nio sci de nojo como o conte! Que, erendo ter nos bragos quem amava, Abracado me achei cum duro monte De Aspero mato ¢ de espessura brava. Esando cum penedo fronte a fronte, Que eu polo rasto angélico apertava, Nao fiquei homem, no, mas mudo ¢ quédo , junto dum penedo, outro penedo! © Ninfa, a mais fermosa do Oceano, Ji que minha presenga no te agrada, Que te custava ter-me neste engano, Ou fésse monte, nuvem, sonho ou nada? Daqui_ me parto, irado © quase insano Da mégoa e da desonra ali passada, A buscar outro mundo, donde nao visse Quem de meu pranto e de meu mal se risse, Eram ja neste tempo meus Irmios Vencidos ¢ em miséria extrema postos, E, por mais segurar-se os Deuses vios, Alguns a varios montes sotopostos. E, como contra o Céu no valem mios, Eu, chorando andava meus desgostos, Comecei a sentir do Fado inimigo, Por meus atrevimentos, o castigo, Converte-se-me a carne em terra dura; Em penedos os ossos se fizeram; Estes membros, que vés, ¢ esta figura Por estas longas dguas ce estenderam. Enfim, minha grandissima estatura Neste remoto Cabo converteram Os Deuses; e, por mais dobradas m&goas, Me anda Tétis cercando destas Aguas.” Assim contava; ¢, cum medonho chéro, Sitbito de ante os olhos se apartou. Desfer-se a nuvem negra, ¢ cum sonoro Bramido muito longe 0 mar soou. Ey, levantando as mios ao santo céro Dos Anjos, que tio longe nos guiou, A Deus pedi que removesse os duros Casos, que Adamastor contow futures. * (Qs lusladas, ed. org. por Emanuel P, Ramos, Porto, Porto Edit,, 5. d., Canto V, est. 37-60.) Este episddio, de capital importancia no conjunto dOs Lu sladas, encerra um mito cuja procedéncia se perde nas trevas da propria Histéria. Na Odisséia, Homero o cristaliza pela. pri- meira vez, na figura do gigante Polifemo (Herndni Cidade, Luis de Camdes. 0 Fpico, 2+ ed., melh., Lisboa, Revista da Fa: culdade de Letras de Lisboa, 1953, p. 127). Em verdade “a trans- formagéo de um titi em promontério igualmente na Mitologia tinha sua origem. # lembrar o Atlas, gigante filho de Jupiter € de Climene, encarregado de sustentar 0 Céu sdbre os ombros © que um dia foi convertido em monte, ao ver a cabeca de Medusa” (Idem, ibidem). E Sidénio Polinar (séc. V. d. C.) foi 0 primei que deu o nome de Adamastor a um gigante (José Maria Rodri- gues, nota a Os Lusfadas, Lisboa, Imprensa Nacional (19311, pp. CXLIV-CXLV). Quanto aos riscos que a travessia ocednica pa- * cinco Sdis = cinco dias; De Rodes estranhtsstmo Colosso = estatua de Apolo, na Ths de Rodes, “um dos sete milagres do mundo”; milagrés = maravilhas; umido elemento = mar; apercedidos preparades; Quem me descobriu = Bartolomeu Dias; primeiro ilus- tre = D. Franciseo de Almeida (1450-1510), primeiro vice-rel da India, que morreu no Cabo da Boa Esperanca. num combate tra- vado com 0s cafres, quando procurava reabastecer os navios que comandava de volta 2 Patria: fol enterrado na praia, apenas eo- berto de areis; pord = depord; outro também vird = Manuel de Sousa Sepiilveda (1600/1505-1852), fidalgo portugués que nou- fragou a0 largo do Cabo de Boa Esperanca, com sua mulher, Leonor de Sa, “fermosa dama”, e seus filhos; ao contrério do que afirma Camées na estrofe que comeca com “E vero mais es olhos que escaparem”, mortos pelos cafres a mulher e os filhos, Septilveda enterrou-os na areia e deixou-se morrer sobre ‘as sepulturas, comido por tigres; Fermosa e misérrima prisao corpo; Ptolomeu = gedgrato grego do século II d. C; Pompénio = Pompinio Mela, geégrafo romano do século II d. C.; Estrabo Estrabfio, geégrafo, grego, que viveu no século Ta, C. ed. C Plinio = Plinio, © Velho, clentista romano do século Td. C.; En- eélado, Eyeu 2 0 Centimaro — gigantes; O que vibra os reine de Vulecno = Jupiter; Espéea de Peleu = Tétis, ninfa, deusa das Aguas, filha de Noreu e de Déris; Deusa = Déris; meneageira — nojo = sotrimento; meus irmios = os demais gigantes. revia oferecer para a imaginagio antiga e medieval, sabe-se que tal crenea deixou rastro em historiadores portuguéses, como vr mos em Rui de Pina (v. p. 46). Todavia, consideramse Joio de Barros (Décadas, I, Liv. V, cap. II), a Histéria TrdgicoMart- tima e Fernio Lopes de Castanheda (Histéria do Descobrimen- to € Conquista da India pelos Portuguéses) como algumas das fontes possiveis do episddio do gigante Adamastor. Este, consti- tui o miicleo dramético e simbélico dOs Lusfadas: 1) norteado por sua clarividéncia raro empanada, 0 poeta insereo preci: mente no meio da epopéia, como a Ihe servir de eixo ou a in- sinuar que 0 Cabo da Boa Esperanca marcava a metade da viagem e 0 seu ponto crucial; 2) 0 episédio representa, a mew ver, 0 estégio mais elevado atingido por Camdes em matéria de grandioso ¢ de maravilhoso: a solenidade trégiea ¢ espetaculosa da fala do Adamastor casa-se coerentemente com a mistura de ficgdo € realidade que compoe a personalidade do gigante; com efeito, nfio hd, nOs Lusiadas, outro episédio to pleno em sua grandiosidade épica e em que o plano do maravilhoso-e o plano histérico se concatenem de modo tio admirdvel. Por outro la- do, néle. se aglutinam, segundo dois “movimentos” sinfénicos, a epicidade altissonante das profecias ¢ ameacas do gigante, € a elegia liricoamorosa das esténcias finais. Aqui, nessa duali- dade em que imerge o “pobre” gigante, o principal significado simbélico do episédio, que o torna tinico e fundamental no con- junto do poema: a férca indémita das armas, a intemeridade frente ao perigo e aos combates herdicos, aliada a uma in- génita debilidade para os lances amorosos, ou uma capacidade alterada para enternecerse por amor até se volver em pedra, ou seja, anulado totalmente, em sacrificio A benvamada. Se. melha que © episédio, com retratar as duas faces dOs Lusiadas, ainda expressa de mancira transparente 0 proprio bindmio mo ral e psicoldgico do portugués, dividido entre a acio ecuménica € 0 sentimentalismo amoroso. Ou, como 0 mesmo Cambes asse- vera no Fpflogo do poema, dirigindose a D. Sebastiio: “Para servirvos, brago as armas feito, / Para cantar-vos, mente as Mu- sas dada” (Canto X, estdincia CLV). E, ao mesmo tempo que trans- posicao da antinomia psiquica do portugues, o episédio do Ada- mastor igualmente contém a mitificacéo das dificuldades que a Natureza opunha A penetragdo lusa ‘por mares nunca dantes navegados” ¢ do seu maldgro ante a impavidez dos nautas qua- trocentistas: nesse caso, Tétls simbolizaria a propria blandicia € sentimentalidade do portugués vencendo a fortaleza dum enor- me e medonho gigante; ou simbolizaria, na sua pequenez, a bre- vidade geografica de Portugal, enquanto Adamastor seria’ a ima- 9 gem da terrificante vastiddo maritima, afinal submetida e do- ‘mesticada pela perseveranca ¢ asticia lusitanas, Assim, a fan- tasia mitica e a realidade histérica se consorciam, como pos. tulava 0 idedrio renascentista, num episddio onde nfo se sabe mais que admirar, se o arroubo épico © profético da primeira parte, se a plangéncia da segunda, Seia como fér, tratase duma pas. sagem de rara fulgurdncia poctica, perfeita’na sua unidade in- terior ¢ na sua forma, onde nao se nota “nenhuma palavra ini: til, nenbuma expressio que no seja a mais perfeitamente adap- tada & realizagdo plastica da figura ¢ dar cco as raivas em que estremece ou & elegia em que, por fim, amorosamente abranda’* (Hernani Cidade, ibidem, p. 129) A Poesia Oscilando entre os temas clissicos e 0s medievais, a poesia quinhentista, ofuscada pelo brilho dureo de Camées, mantevese em altura apenas mediana, Embora m= merosos, poucos poetas tém cabimento nesta antologia, Sd de Miranda Francisco de Sé de Miranda nasceu em 1481 € faleceu em 1558. Introduziu o Classicismo em Portugal. Embora fidalgo e gozando de regalias junto & Corte, viveu grande parte da vida na sua quinta da Tapada, no Minho, sempre cercado de muito prestigio © respeita, Escreveu “trovas A maneira antiga", poesia classica © pecas de teatro. TROVA Comigo me desavim, sou pésto em todo perigo; nnfio posso viver comigo nem posso fugir de mim. Com dor, da gente fugia, amtes que esta assim crescesie; agora jf fugiria de mim, se de mim pudesse, ‘Que meio espero ou que fim do vio trabalho que sigo, pois que trago a mim comigo, tamanho imigo de mim? + Amigo = inimigo, 90 SONETOS 1 sol & grande, caem coa calma as aves, do tempo em tal sazo, que séi ser frias esté Agua que do alto cai acordar-m'-ia do sono nao, mas de cuidados graves. © cousas, thdas vas, tdas mudaves, qual é tal coragdo qu’em v6s confia? Passam os tempos vai dia trés dia, incertos muito mais que ao vento as naves, Eu vira j& aqui sombras, vira fléres, vi tantas Aguas, vi tanta verdura, as aves tédas cantayam d’améres. Tudo é séco © mudo; ¢, de mistura também mudando:miew fiz doutras cbres: tudo 0 mais renova, isto é sem cura! 2 Quando eu, senhora, em ys os olhos ponho, € veo o que nio vi nunca, nem cri que houvesse cf, recolhe-se a alma a si € vou tresvariando, como em sonho. Isto passado, quando me disponho, e me quero afirmar se foi assi, pasmado ¢ duvidoso do que vi, espanto As vézes, outras m/avergonho. Que, tornando ante vés, senhora, tal, quando m’era mister tanVoutr'ajuda de que me valerei se alma nao val? on Esperando por ela que me acuda, € no me acode, ¢ esti cuidando em al, afronta 0 coracao, a lingua € muda, (Obras Completas, not. ¢ pref. por M. Ro- drigues Lapa, Lisboa, S4 da Costa, 1942, pp. 8, 318 © 319.) Apesar de o primeiro poema ser & “medida velha” (quer dizer; & mancira medieval), os trés apresentam varios pontos de contacto, através dos quais se poe de manifesto a personali- lidade grave e reflexiva de S4 de Miranda: uma melancolia ten- ssa, seriissima, de quem prescruta nas profundezas da alma hu- mana suas rechnditas inquictacdes, e afoga em desalento qual- quer gésto de amar e de viver. Estéica, cétice, desiludida, a mundividéncia do poeta, integrada perfeitamente nos quadros da cultura classica, radica num intimo anseio de encontrar algo de perdurével para além da fugacidade césmica, © amparase numa linguagem castica e viva, ndo obstante o andamento do verso nem sempre revele fluéncia ou espontaneidade. Dos trés poemas, 0 sonito n’ 1 é 0 mais conhecido, mercé da concen- trada © magoada beleza que encerra. Depois de Camées, é de rer que Sé de Miranda tenha sido 0 poeta portugués que mais sofreu na carne e nos sentidos os desencontros de cultura € as fremendas mudancas determinadas pelo advento da Tdade Mo- lerna. Antonio Ferreira Nasceu em 1528 ¢ faleceu em 1569, Formado em Direito em Coimbra, seguiu & risca os ensinamentos de Sa de Miranda e tornouse o doutrinador do Classicismo portugués, por intermédio de suas Cartas a Péro de Andrade Caminha, a Diogo Bernardes e a D. Simo da Silveira, Poeta, sua produgdo lirica, sob o titulo de Poemas Lusitanos, sb- mente velo a piblico em 1598, ¢, comedidgrafo, escreveu tres peas, A Castro, Bristo e Ciaso. SONETOS 1 © alma pura, em quanto c& vivias, ‘Alma Ié onde vives j4 mais pura, 92 Por que me desprezaste? quem to dura Te tomou ao amor, que me devias? Isto era, 0 que mil vézes prometias, Em que minha alma estava tio segura, Que ambos juntos uma hora desta escura Noite nos subiria aos claros dias? Como em tio triste cércere me deixaste? Como pude cu sem mim deixar partir-te? Como vive éxte corpo sem sua alma? Ah! que 0 caminho tu bem mo mostraste, Porque correste 4 gloriosa palmal Triste de quem nao mereceu seguir-te! 2 Co alma nos Céus pronta, o esprito inteiro, Leve o semblante, a vista graciosa, Aquela, antes da morte, jé gloriosa Esperava 0 combate derradeiro. De santa fé armada, e verdadeiro Amor divino, venceu a espantosa Morte, que nela parcceu fermosa, E nova estréla a fez, no Céu terceiro. E tomando-me a mio léda, ¢ risonha, Meu doce amigo (diz) vinda ¢ minh‘hora, Quem nos assim cd atou, soltou o nd. Quem mais cuida que vive, ésse mais sonha. Lé onde se nao geme, nem se chora, Tamara mais est'alma, 0 corpo é pé. (Poemas Lusitanos, 2 vols» pret, © notas de Marques Braga, Lisboa, S4 da Costa, 1939, vol. I, pp. 64’ ¢ 71.) 93 Estes dois sonetos, dentre os mais bem logrados de quantos compds Antdnio Ferreira, dizem bem das caracterfsticas prin- cipais do poeta: auséncia’de maior comocéio ou emocio, tendén- cia a0 monocérdico (evidente, no caso, pela repeticio do tema da morte nos dois poemas), certo racionalismo beirando ao cere- bralismo, filosofismo a S4'de Miranda, rigor formal e purismo de linguagem que parecem tolher o vo livre da imaginacao, Poeta mais para admirar que para sentir, quando o lemos de- pois de Camées e de S4 de Miranda nao podemos deixar de en- carélo como epigono, embora epigono que levou ao extremo do fanatismo seu amor pela Lingua Fortuguésa. A custa de despojar a inspiracdo e o talhe do verso, afastou-se das perspectivas fran- queadas pela estética cléssica ‘¢ acabou sendo um classico de- masiado ortodoxo para avancar rumo ao Barroco e fazer vibrar © Ieitor de hoje menos preocupado com pureza vernacular: sem le, contudo, ficaria incompleta a visio da poesia quinhentista portuguésa. Diogo Bernardes Nasceu em 1530. Com catorze anos, recebeu ordens menores. Aulico da Corte de D. Se- bastido, acompanhou o monarca A Africa e tomou parte na ba- tatha de Aledcer-Quibir. Publicou trés volumes de poesia: Vée rias Rimas do Bom Jesus (1554), Rimas Vérias — Fléres do Lima (1596) © O Lima (1596). Como ‘tantos poetas do tempo, cultivor a poesia tradicional, de fei¢ao medieval, e a poesia da’ “medida nova", de contérno’ classico. Faleceu em 1605. SONETOS 1 Horas breves de meu contentamento Nunca me pareceu, quando vos tinha, Que vos visse tornadas tao asinha, Em tio compridos dias de tormento, Aquelas trres, que fundei no vento, vento as levou jé que as sustinha, Do mal, que me ficou, a culpa é minha, Que sobre cousas vis fiz fundamento. Amor com rosto ledo, ¢ vista branda Promete quanio déle se deseja, Tudo possivel faz, tudo segura: Mas dés que dentro n'alma reina, e manda, Como na minha fz quer que se veja, Quio fugitivo é qui pouco dura. 2 ‘As plantas rindo estio, esto vesidas De verde variado de mil céres, Cantam tarde, € manha os seus améres As aves, que @’Amor andam vencidas. ‘As neves, j4 nos montes derretidas, Regam nos baixos vales novas fléres, Alegram as cantigas dos pastéres ‘As Ninfas pelos bosques escondidas: (© tempo que nas cousas pode tanto, ‘A graca que por éle a terra perde, torna com mais graga, ¢ fermosura. Sé pera mim nem flor, nem erva verde, Nem Agua clara tem, nem doce canto, Que tudo falta a quetn falta ventura, (Obras Completas, pref. e notas de Marques Braga, Lisboa, S4’da Costa, 1945, vol. I, pp. 58 ¢ 47.) Este dois sonetos apenas documentam 0 lado cléssico da fisionomia poética de Diogo Bernardes. No primeiro, 0 tema do amor, considerado em sua efemeridade, subordinase A ané- lise racionalista do sentimento afetivo que nos habituamos a encontrar em CamBes e noutros poetas coevos. Embora falte maior originalidade e maior tensio dramética ao sonéto, per- cebese uma altura da emoyao e do pensamento filoséfico © um bem logrado travejamento dos versos que fazem lembrar Camées. No segundo, topamos com notas especificas da poesia de Diogo Bernardes: o tema bucélico, inspirado na regio do Lima (no Mi- nho), de que éle provinha, e sua resignac&o, de provado recor- fe ctistio, que a presenga'da mitclogia pag& ndo empana nem destréi, Assim, 0 poeta se destaca dentre os seus contemporé- 95 neos quando explora temas coerentes com sua inféncia bucé- lica € 0 seu temperamento cristo. Crisiévdo Fatcdéo Presumese que tenha sido o autor da égloga Crisfal (1554), entre outras coisas pelo fato de 0 titulo da composigéo ser formado da juncéo da primeira sflaba do seu nome e do sobrenome. Sua vida permanece ro- deada de mistério, apenas se sabendo que teria estado em missio diplomatica na Itdlia ¢ ter sido capitio da fortaleza de Arguim. CRISFAL Como era de hébito nas églogas quinhentistas, 0 Crisfal consta de trés partes: uma introducdo, em que 0 autor sinte- tiza os infortinios amorosos do pastor Crisfal; um mondtogo, em que o protagonista lamenta seus padecimentos e narra um sonho: em viagem, encontra Naténio, com o qual segue para a Serra da Estréla; encontra Helena € ouvelhe os queixumes; a seguir, encontra Maris, dialogam ¢ apaixonam-se, mas Maria julga ‘que devam separarse; Crisfal desperta, pleno de mé- g0as; um epilogo, em que o autor toma de névo a palavra para concluir a égloga. O trecho que se vai ler corresponde & intro- dugao: Entre Sintra a mui prezada € Serra de riba Tejo que Arrébida é chamada perto donde o rio Tejo se mete n’égua salgada: Houve um pastor e pastéra que com tanto amor se amaram como males Ihe causaram éte bem que nunca fora pois foi o que nio cuidaram. A ela chamavam Maria € a0 pastor Crisfal a0 qual de dia em dia © bem se tornou em mal que @le tdo mal_merecia: Sendo de pouca idade 96 que 0 dia que nao se viam se via na saudade © que ambos se queriam. Algumas horas falavam andando 0 gado pascendo ¢ entdo se apascentavam os olhos que em se vendo mais famintos thes ficavai E conquanto era Maria pequena: tinha cuidado de guardar melhor que 0 gado que lhe Crisfal dizia mas enfim foi mal guardado. Que depois de assim viver nesta vida e neste amor, depois de alcangado ter maior bem pera mor dor, enfim se houve de saber: Por Joana outra past6ra que a Crisfal queria bem mas o bem que de tal vem no ser bem maior bem fra por no ser mal a ninguém. ‘A qual logo aquéle dia que soube de seus amBres as parentes de Maria fez certos e sabedores de tudo quanto sabia: Crisfal nfo era entio dos bens do mundo abastado ‘nao se ver tanto sentiam tanto como do cuidado que por curar da paixio nao curava do seu gado. E como em a baixeza do sangue ¢ pensamento é certa esta certeza cuidar que o merecimento cstava sé em ter riqueza: Inquiriram que teria ¢ do amor nfo curaram em que bem se descontaram riquezas se faleciam por males que sobejavam. Entio descontentes disto Jevaram-na a longes terras esconderam-na entre umas serras onde 0 sol nao era visto ¢ a Crisfal deixaram guerras: ‘Além da dor principal pera mor pena Ihe dar puseram-na em lugar mau pera dizer seu mal mas bom pera 0 chorar. Ali os dias passava em mégoas da alma safdas dizer, a quem longe estava e chorava por perdidas as horas que nao chorava: Em vale mui solitério sombrio € saudoso sendo monte temeroso pera o chdro necessério era a vida mui danoso, izer © que éle sentia em que queira no me atrevo nem o chorar que fazia mas as palavras que escrevo Go as que dle dizia. ‘Obras, prop. © rev. por A. Braamea Sreire ‘apr, por Gafolina’ Michaglis de Vasconcelos, 2° ed. Coimbra, Imprensa da Universidade, 1932, pp. 257260.) Cabs, inicialmente, lembrar que a égloga ¢ uma composi- Ao pottica dialogada e de carater bucélico ou pastoril. Criada 98 por Teécrito e Virgilio, a égloga foi introduzida em Portugal com 0 Classicismo. Embora a primeira parte do Crisfal no constitua o fragmento mais sugestivo e rico do poema (60 a fala do pastor), nela se percedem alguns pontos dignos de nota, a comecar da utilizagio do redondilho maior, verso que por si s6 gera um ritmo espontineo, fécil, como se 0 poeta estivesse em coléquio com os leitores. "Sendo o amor a causa-motriz da égloga em geral, observese que o afastamento dos namorados decorre de que “'Crisfal no era entéo / dos bens do mundo abastado”: parece que estamos presenciando o principio da ges- tacio da novelistica camiliana no seu afluente passional. O perene chorar, suspirar e queixarse, além de consistir num cli- ché dentro das églogas, se explica pelo clima antropocéntrico motivado pela Renascenca: os pastdres so antes simbolos de situagdes humanas permanentes que ficcdes ornamentais e ar- tificiosas, come virdo a ser no século XVIII com o Arcadismo. O Teatro © teatro classico, conquanto inaugurado por S4 de Miranda (Estrangeiros foi escrita em 1526), ndo al- cancot nivelarse ao teatro vicentino. Primeiro, cultivouse a comédia classica, e s6 mais tarde apareceu a tragédie. Afora Sé de Miranda, ‘enquadram-se neste capitulo Anténio Ferreira, Jorge Ferreira de Vasconcelos e Henrique Aires Vitéria. Antonio Ferreira Como se sabe, escreveu tris pecas de teatro: duas comédias, Bristo e Cioso, publicadas em 1622, © uma tragédia, A Castro ou, com o titulo completo, Tra- gédia de D. Inés de Castro, dada a lume em 1587, e que cons- titui a expressio maxima do teatro cldssico em Portugal e uma das obras acabadas e superiores da dramaturgia portuguésa de todos 0s tempos. A CASTRO Dividese em cinco atos, em tudo obedientes aos cAnones clissicos, 2 comesar da unidade de tempo, lugar e aco. Ba- seandose na interpretacio de Garcia de Resende e na tradicao oral, Antonio Ferreira convoca para a cena Inés de Castro, D. Pedro ¢ Afonso IV, na qualidade de protagonistas centrais, cer cados de personagens secundérias, como os conselheiros do Rei, Ama e 0 Céro, que assume a fungio que detinha no teatro gre- collatino, ou seja, a de comentar a agéo e aconselhar ou desacon- selhar 0 procedimento das personagens, Comecando préxima 99 do epflogo da desgraca que se abateu sobre Inés de Castro e D. Pedro, a peca principia com os receios da heroina, logo con- firmados’ pelo Céro, Reunidos, 0s conselheiros persuadem 0 Rei a permitir que executem a’ desditosa amante do Principe: constitui 9 ponto alto da pega (ou catdstase, no dizer dos gre- 0s ¢ latinos), localizado no ato IV, que se 1é a seguir. Morta Inés, D, Pedro, entdo longe dela, jura vinganca, e a peya ter mina, © tema de Inés de Castro, por influéncia da glosa de An- ténio Ferreira, teve larga voga nos séculos seguintes, dentro e fora das fronteiras de Portugal, chegando a provocar, entre outras, uma pega do francés Houdar de la Motte, com 0 mesmo nome, publicada em 1723, e que gozou de enorme prestigio em toda a Europa do tempo. Pacheco El-Rei_ Céro Castro. Coelho Pacheco A presteza em tal caso, é bom seguro, E piedade, Seuhor, ser crucza, Cerra os olhos a légrimas, e mégoas, Que te podem mover dessa constancia. Rei Esta & que a mim se vem: 6 rosto digno De mais ditosos fados! Céro Eis a morte Vem. Vai-te entregar a ela: vai depress, Terds que chorar menos. Castro Vou, amiga: Acompanhai-me yés, amigas minhas, Ajudai-me a pedir misericérdia, 100 Choral o desemparo déstes fiilhos Tio tenros, e inocentes. Filhos tristes, Védes aqui © pai de vesso pai, Eis aqui vosio v6, nosso senhor; lhe a mio, pedi-lhe piedade De vés, desta mie vossa, cuja vida Vos vem, filhos, roubar, Coro Quem pode ver-te, Que aio chore, ¢ s'abrande? Castro Meu senhor, Esta € a mie de teus netos. Bes sio Filhos daquele filho, que tanto amas. Esta é aquela coitada mulher fraca, Contra quem yeas armado de crucza. Aqui me tens. Bastava teu mandado Para cu segura, ¢ livre esperar, Em ti, ¢ em minh'inocéncia confiada. Escusards, Senhor, todo éste estrondo Diarmas, ¢ Cavaleiros; que nao foge, Nem se teme a inoctncia da justiga. E quando meus pecados me acusaram, A ti f6ra buscar: a ti tomara Por vida em minha morte: agora vejo Que tu_me yens buscar. Beijo estas maos Reais tio piedosas: pois quiseste Por ti vir-te informar de minhas culpas. Conhece-mas, Seahor, como bom Rei, Como clemente, ¢ justo, e como pai De tcus vassalos todos, a quem nunca Negaste piedade com justica. Que vés em mim, Senhor? que vés em quem Em tuas mios se mete tio segura? Que fiiria, que ira esta & com que me buscas? ‘Mais contra imigos vens, que cruelmente Trandassem tas terras destruindo 101 102 A ferro, e fogo. Eu treme, Senhor, tremo De me ver ante ti, como me vejo. Mulher, méca, inocente, serva tua, Tio s6, sem por mim ter quem me defenda, Que a lingua nao s‘atreve, o espirito treme Ante tua presenga, porém possam Estes mogos, teus netos, defender-me. Elles falem por mim, éles sds ouve: Mas nio te falardo, Senhor, com Magua, Que inda nao podem: falam-te coas almas, Com suas idades tenras, com seu sanguc, Que € teu, te falario: seu desamparo Tresté pedindo vida, nio tha negues. Teus netos sio, que nunca téqui viste: E. vé-los em tal tempo, que thes tolhes A. gloria, e 0 prazer, qu’em seus espiritos Lhe esté Deus revelando de te verem. Rei Tristes foram teus fados, Dona Inés, ‘Triste ventura a tua. Castro Antes ditosa, Senhor, pois que me vejo ante teus olhos Em tempo tao estreito: poe-nos ora, Como nos outros séis, nesta coitad: Enche-os de piedade com justica. Vens-me, senhor, matar? Por que me matas? Rei Teus pecados te matam: cuida néles. Castro Pecados meus! a0 menos contra ti Nenhum, meu Rei, me acusa. Contra Deus Me podem acusat muitos: mas éle ouve As vozes d’alma triste, em que Ihe pede Piedade. O Deus justo, Deus benigno, Que no mata, podendo com justia, ‘Mas d4 tempo de vida, ¢ espera tempo Sé para perdoar: assim’ o fazes, Assim o fizeste sempre: pois no mudes Agora contra mim teu bom costume. Rei Tua mote m'estio outras muitas vidas Pedindo com clamores. Pacheco Foge 0 tempo. Castro ‘Oh! triste, triste! meu senhor, nio me ouves? Sossega tua firia, nao a sigas. Nunca conselhou bem: munca deu tempo De remédio a algum mal a ira. Sempre Traz arrependimento sem remédio. Ouve minha razio, minh’inocéncia. Culpa é, senhor, guardar amor constante ‘A quem mo tem? se por amor me matas, Que farés a0 imigo? amei teu filho, Nao o matei, Amor amor merece; Estas so minhas culpas: estas queres Com morte castigar? em que a merego? Pacheco Dona Inés, contra ti é a sentenga dada, Despede essa tu'alma désse corpo Em bom estado, e seja prestemente. Nio tenhas que chorar mais, que sé a morte, 103 104 Castro © meus amigas, por que nao tirais ELRei de ira tamanha? a vds me vou, Em_vés busco socorro: ajudai-me ora Pedir-lhe piedade. 6 Cavaleiros, Que as tristes prometestes defender, Defendei-me, que mouro injustamente. Se me vés nio defendeis, vés me matais. Coelho Por mégoa dessas Iégrimas te rogo Que éste tempo, que tens, inda que estreito, ‘Tomes para remédio de tu’alma. O que el-Rei em ti faz, faz com justica, Nés © trazemos c4, ndo com tengio De sermos em ti crus: mas de salvarmos Este Reino, que pede esta tua morte, Que nunca, § Deus, quiscra que tal meio Nos féra necessirio. A el-Rei perdoa, Que crueza nao faz: se a nds fazemos, Por ti ante o gra Deus serd pedida Vinganca _justa, se te nao parece Que perdio merecemos nas tengdes, Com que el-Rei conselhamos. G ditosa, Dona Inés, tua morte! pois sé nela Se ganha uma geral vida a todo Reino. Bem vés por tua causa como estava, ‘Além désse pecado, em que te tinha © Infante forcada (que assim o cremos) Mas pois para remédio é necessério A morte sus, ou tua, ¢ necessirio Que tu sofras a tua com paciéncia, Que isso te ficaré por maior gléria Que aquela, que esperavas cé do Mundo. E quanto mais injusta te parece, Tanto mais justa gloria 1d terds, Onde tudo s¢ paga por medida, Nés, que a teu partcer mal te matamos, Nio viveremos muito: i nos tens Antes de muito tempo antésse trono Do gri Juiz, onde daremos conta Do mal, que te fazemos. Nio ouviste Jé das Romas, ¢ Gregas com que esfér Morreram muitar s6 por gléria sua Morte pois, Castro, morte de vontade, Pois no pode deixar de ser tua morte, Castro Triste pritica, triste! cru conselho ‘Me dis. Quem o ouvira? mas pois {4 mouro, Ouve-me, Rei senhor: cuve primeizo A derradeira voz dest’alma triste. Co éstes teus pés me abrago, que nio fujo. Aqui me tens segura. Rei Que queres? Castro Que te posso querer, que tu nao vejas? Pergunta-te 2 ti mesmo o que me fazes, A causa, que te move a tal rigor. Dou tua consciéncia em minha prova. S’os olhos de teu filho s'enganaram Com o que viram em mim, que culpa tenho? Paguci-the aquéle amor com outro amor, Fraqueza costumada em todo estado. Se contra Deus pequei, contra ti nao. ‘Nio soube defender-me, dei-me tsda Nao a imigos teus, ndo a traidores. ‘A que alguns teus segredos descobrisse Confiados a mim. mas a teu filho Principe déste Reino. Vé que forcas Podia cu ter contra tamanhas f6rcas. Nio cuidava, senhor, que vofendia. 105 106 Defenderas-mo tu, obedecera, Inda que o grandamor nunca se forga. Igualmente foi sempre entre nés ambos: Igualmente trocamos nossas almas. Esta que te ora fala, é de teu filho. Em mim matas 2 éle, éle pede Vida par'éstes filhos concebidos Em tanto amor. Nao. vés como parecem Aquele filho teu? Senhor meu, matas ‘Todos, a mim matando: todos morrem. Nio sinto j4 nem choro minha morte Inda que injustamente assim me busca, Inda que éstes meus dias assim corta Na sua flor indigna de tal golpe: Mas sinto aquela morte triste, ¢ dura Para ti, e para o Reino, que tio certa Vejo naquele amor, que esta me causa, Nio viverd teu filho, dé-lhe a vida, Senhor, dando-ma a mim: que eu me irei logo Onde nunca apareca; mas levando Estes penhéres seus, que no conhecem Outros mimos, ¢ tétas sendo estas, Que cortar-lh’ora queres; ai meu filhos, Chorai, pedi justiga aos altos Céus. Pedi misericérdia a vosso av6 Contra vés tio cruel, meus inocentes, Ficareis cA sem mim, sem vosso pai, Que nao poderé ver-vos sem me ver. Abracai-me, meus filhos, abracai-me. Despedi-vos dos peitas, que mamastes. Estes sds foram sempre: j4 vos deixam. ‘Ah jé vos desampara esta mie vossa. Que acharé vosso pai, quando vier? Achar-vos-4 to sds, sem vossa mit Nio verd quem buscava: verd cheias ‘As casas, € paredes de meu sangue. Ah vejo-te morrer, senhor, por mim, Meu senhor, j4 que eu mouro, vive tu. Isto te pego, € rogo: vive, vive. Ampara éstes teus filhos, que tant’amas. E pague minha morte seus desastres, Se alguns os esperavam. Rei senhor, Pois podes socorrer a tantos males, Socorre-me, perdoa-me, Nao posto Falar mais. Nio me mates, nfo me mates. Senhor, nio te merego. Rei © mulher forte! Vencestes-me, abrandastes-me, Eu te deixo, Vive, enquanto Deus quer. Céro Rei piedoso, Vive tw, pois perdoas; moura aquéle Que sua dura tengao leva adiante.* (Poemas Lusitanos, 2. yols. pref. ¢ notas de Marques Braga, Lisboa, S4 da Costa, 1940, vol. I, pp. 272-282.) A vista do ato IV dA Castro, que j4 sabemos constituir o clt max dramatico da peca, podemos fazer as seguintes observagées: tratase de teairo poético, no s6 porque composto em versos ‘como pela interpretagao lirica da figura de Inés e suas longas tiradas declamatérias; hierdticas, as personagens semelham altos- -relevos que de repente conquistassem vida mas nao o movimento; € que a agio cede Ingar & densidade © & intensidade do conflito em que se debatem as personagens, visto que 0 drama, com ser de fundo ético, est4 dentro delas e nao fora; a solenidade da lin- guagem, ao mesmo tempo que promove uma atmosfera de eleva~ cio e grandeza a0 redor dos figurantes, confere & desdita de Inés um sentido mitico, como se no didlogo se jogassem des nos inexorivelmente pré-tracados pelos deuses: ésse determi- nismo corresponde a uma das mais tipicas caracteristicas da tra- gédia classica; aqui, nesta peca, a malograda amante de D. Pedro evolui em nobreza, em altruismo e em amor aos filhos, relativamente & imagem delineada por Garcia de Resende ¢ que serviu de modélo para AntOnio Ferreira; atentese para a + séis = costumas; romds = romanas; semhor = D. Pedro 1. 17 total auséncia de Constanga, espésa de D. Pedro, e para a mi- niicia de 9 dramaturgo parecer isentar Afonso IV da culpa, ao menos por omissio ou cumplicidade, que Ihe caberia no assas- sinio de Inés (observemse a ultima fala do Rei e a do Coro); embora o autor da peca concebesse a heroina com téda a liber- dade Ifrica que Ihe era possivel dentro dos quadros estéticos do Classicismo, reparese que nio descura de assinalar a causa, apa- Tente ou real, que teria movido os conselheiros do Rei a defen- derem a pena capital como exclusiva solucio do impasse criado pela relaco amorosa entre Inés e D. Pedro: éles declaram que pedem “esta tua morte” para “salvarmos / ste Reino", “pois sé nela / Se ganha uma geral vida a todo Reino”; na defesa, Inés nos elucida acérca do porqué os ministros do Rei se assa- nharam contra ela: “Nao soube defender-me, deime téda. / No a imigos teus, no a traidores. / A que alguns teus segredos des- cobrisse / confiados a mim, mas a teu filho / Principe déste Reino”; seja esta ou qualquer outra a causa da sentenga final contra Inés, o importante da cena reside na altitude do magoado sofrimento da protagonista e 0 seu completo despojamento, no qual transparece a propria esséncia humana a desvestirse de seus trapos para surgir integra e pura como deve ser no interior de cada um: Inés nos comove ainda hoje porque no seu tormento sentimos que ascendemos um pouco acima de tudo que impede © livre despertar do melhor que trazemos dentro de nés; nisso, cumpre-se outra exigéncia do teatro clissico grecolatino: a ca- tarsis, ou purificagao pelo ato de contemplar e assimilar situa- des humanas “exemplares”, A Historiografia A. historiografia quinhentista refletiu, nos seus propésitos e realizacdes, o clima provo- cado pela euforia dos descobrimentos ¢ a ressurrei¢ao do espf- Tito clissico. Visio macroscépica da Patria, epicidade, imita- co. dos antigos, estilo literario, ufania consistem nalguns dos Seus aspectos caracteristicos. Representam-na: Joao de Barros, Damifio de Géis, Diogo do Couto, Fernio Lopes de Castanheda, Antonio Galvio, € outros. Joao de Barros Nasceu por volta de 14%. Aulico de D. Joo Ill, exerceu varias e altas fungées adminis- trativas. Faleceu em 1570. Cultivou a ficgdo (Crénica do Im- perador Clarimundo, 1520), 0 pensamento filoséfico (Répica Pnefma, 1532), a gramatica (Gramdtica da Lingua Portuguésa, 1540), a historiografia (Décadas, 1552, 1553 e 1563), na qual me- lhor realizou suas virtualidades de escritor culto ¢ sereno. 108 DECADAS Joo de Barros concebeu uma ampla Histéria de Portugal, que abrangesse trés aspectos, conquista, navegacdo e comércio, © primeiro dos quais se fragmentaria conforme as Areas de dominio portugués, ou seja, Europa, Asia, Africa e Santa Cruz (ou Brasil). Como escolhesse historiar os acontecimentos segun- do lapsos de tempo rigorosos, isto é, de dez em dez anos, a obra foi batizada com 0 nome de Décadas. Em vida, 0 escritor ape nas publicou trés, referentes & Asia (1552, 1553 e 1563); apés sua morte, surgiram mais quatro. 0 trecho que se vai ler, corres ponde’& Primeira Década, Livro IV, Capitulo X, intitulado “Como por indiistria dos mouros Vasco da Gama e os que com éle estavam foram retetidos. E depois de recolhidos aos na- vios ¢ postos em terra Diogo Dias e Alvaro de Braga também foram presos: até que o Samori mandou prover niss € 0s €x- pediu de todo”: Os mouros, quando souberam o que el-Rei mandava a Vasco da Gama, nao ficaram mui satisfeitos, porque todo seu trabalho era ordenar que os seus navios féssem metidos no fundo, com fundamento que ficando a gente em terra poucos © poucos os iriam gastando, e para executar éste propSsito, fizeram com 0 Catual que os retivesse e obrigasse a tirar os navios em terra, para de noite Ihe porem fogo. O Catual, como em tudo queria comprazer aos mouros, le- vou Vasco da Gama fora de Calecute, mostrando que 0 acom- panhavam até o meio caminho de sua embarcagio, e secretamente tinha mandado aos oficiais de clRei que estavam em Capocate, onde se expedi déle que o retivessem, como homens que fa- ziam aquilo por razio de seus offcios. Quando le viu que o retinham, bem Ihe pareceu ser mais inddstria dos mouros que mandado pelo Samori, € porque pudesse ir ter,a sua noticia comecou de se queixar gravemente com os mi- nistros do caso, os quais responderam que éle se queixava mas sem causa do que a éles tinham em o reter, como oficiais que cram de el-Rei, obrigados a olhar o bem e seguranga da terra. Porque a éle nao o retinham com tenga de o querer anojar, mas com receio de éle fazer algum nojo A gente da terra. Depois 109 que se visse em os navios, segundo se dizia que éles fizeram hos portos por onde vinham que se éle ¢ os seus cram gente pa- cffica deviam usar 0 costume daquelas partes, principalmente na- quele tempo do inverno, varando seus navios em terra ¢ nio es- tar sempre com a vérga de alto como gente que tinha Gnimo de cometer algum mal, ‘Ao que Vasco da Gama respondeu, que os seus navios eram de quilha € nio de feicao dos da terra, e por isso era cou- sa impossivel poderem ser varados, por nio haver ali os apare- Thos que no reino de Portugal havia para aquela necessidade. Finalmente tanto aporfiaram sbbre 0 varar dos navios, ou que deixasse em terra alguns homens com mercadoria, € isto em modo de reféns, enquanto o Samori 0 nio despachava, dizendo que a gente do mar lho requeria, para poderem ir pescar segu- ramente déles, que conveio a Vasco da Gama deixar em terra com alguma pouquidade disse que levavam para compra de man- timentos a Diogo Dias, por feitor, Alvaro Braga por escrivio, Fernio Martins, lingua, ¢ quatro homens do seu servigo, até ver em que parava 0 despacho do Samori Os ministros desta obra tanto que por ela ficaram seguros, consentiram que Vasco da Gama se embarcasse, mas quanto a dar modo para que Diogo Dias comprasse alguma cousa, tudo cram artificios para o no poderem fazer, de mancira que por espaco de seis ou sete dias, les se haviam por presos € nio por feitdres. Até que A frga de queixumes de Vasco da Gama acudiu © Catual, que era o autor destas cousas, ¢ mandou-se desculpar a Ae, fingindo nao ser disso sabedor, e porém, que os oficiais ti- ham razio, por quanto o Sameri o nio tinha de todo despachado. E que, por haver pouco que comprar ou vender naquele lugar, tie miannayt lever" op teur felts a Calccue onde Levia Sipse de tudo, portanto, Ihe parecia bom conselho que éle com os seus navios se f6sse 20 pbrto da cidade por ser mais perto onde esta- va o Samori para seus negécios serem mais em breve despachados. Vasco da Gama, pésto que sentisse que todos éstes artificios eram dilagdes para o deter até a vinda das naus de Meca, segun- do Ihe tinha dito 0 mouro Mongaide (o qual j& neste tempo escondidamente vinha comunicar com dle), todavia, porque estan- do mais perto de el-Rei por meio do mesmo Mongaide lhe pode- io ria mandar algum recado, ¢ mais saber 0 que se fazia com Diogo Dias e Alvaro de Braga, foi-se com os navios pOr ante a cidade de Calecute, onde soube por Moncaide que, se os mouros nao temeram poder com isso indignar o Samori, j4 0s tiveram morto, Vasco da Gama, vendo &ste negécio tio danado que o Sa- mori era mudado dos pagos donde the falara para mais longe sem haver comemoragio de seu despacko, e que éles nfo ti- nham outro meio para o requerer sento Mongaide, que j4 no ousava comunicar com éles, senio dando a entender aos mouros que era espia, ajuntou-se com Paulo da Gama, Nicolau Coelho, € 0s principais da companhia dos navios, ¢ teve conselhos sébre ‘que devia fazer. E determinaram-se que no devia esperar mais resposta de el-Rei que os desenganos que the tinka dado em palavras, ¢ no modo de os expedir, deixando-os em poder de seus inimigos tanto tempo sem lhe mandar resposta, Assentado éste_conselho, escreveu, Vasco da Gama por Mongaide a Diogo Dias que o mais secreto que pudessem para tal dia ante manhi se viessem & praia, porque ali achariam ba- téis para os recolher, pero, como os mouros tinham vigia sobre les, tanto que os sentiram saltaram com les ¢ os prenderam, tomando-Ihes quanta fazenda levavam. Vasco da Gama, vendo que a maldade dos mouros no se po- dia remediar com a paciéncia e sofrimento que com éles teve, nem tinha esperangas de algum despacho de el-Rei, houve & mio vinte €, tantos pescadores que vinham pescar 20 mar, € com éles se féz. 4 vela, que foi para os mouros grande prazer vendo alvoro- ado todo 0 gentio com a grita ¢ brados das mulheres déises pescadores. A nova do qual caso tanto que foi a0 Samori, pisto que os mouros por seus meios 0 queriam indignar contra os nossos, di- zendo que por ali veria quem éles eram, todavia, por ter sen- tido © ddio que Ihe tinham, antes de se determinar em outra cousa, mandou dois homens principais dos geatios sem sus- peita que Ihe viesem saber como aquéle negécio passava. Por 65 quais sendo informado, como aquilo parecia ser mais repre- silia por ox seus homens que the os mouros prenderam que por outra causa, ¢ mais que éle capitéo andava A vela uma volta ao mar ¢ outra A terra como quem queria fazer raziio de si, se 0 fi- zessem com @le, tornou logo a enviar stes mesmos homens que ul levassem ante éle Diogo Dias ¢ 0s outros, que com tle esta- ‘vam, com os quais teve pratica sBbre 0 modo de seu despacho, E mandou-lhe que escrevessem a Vasco da Gama que tratasse bem os homens que tomaram, porque le ¢ seus companheiros esta- vam mui bem tratados em poder déle Samori, ¢ por éles Ihe queria mandar 0 despacho. ‘Vasco da Gama, com esta carta, ficou mui contente, pero, te- mendo alguma malicia dos mouros, duas ou trés vézes se fz na volta do mar ¢ outras tantas surgiu diante da cidade, porque as partes a que tocava a liberdade da gente que tinha tomado, clamassem 20 Samori sua liberdade a tréco dos nossos. Finalmente, pela informacio que teve da verdade, despachou Diogo Dias mandando por éle a Vasco da Gama uma carta que escreveu a e-Rei Dom Manuel, em que Ihe dizia como recebera outra sua, e ouvira seu embaixador ¢ lhe respondera, que a causa de sua partida por aquéle modo, foram diferengas antigas dente cristios ¢ mouros. Que éle teria muito contentamento de sua amizade, e do comércio das cousas do seu reino, podendo ser sem aquéles escindalos, porque os mouros, éle os havia por naturais do seu reino por ser gente mui antiga naquele auto do comércio. Com a qual carta ¢ algumas cousas que deu a Diogo Dias fo expediy, mandando Aquele dois senhores gentios que 0 entre- assem a Vasco da Gama com a fazenda que Ihe era tomada, ¢ mavesse déle os pescadores que tinha em represdlia. O que les fizeram com algumas cautelas no modo da entrega, que- rendo ainda os mouros usar de suas maldades, mas com tudo recolhidos todos os nossos, por causa de alguma fazenda que Ihe nio quiseram entregar, Vasco da Gama reteve certos indios que trouxe consigo ¢ assim o fiel Moncaide, partindo logo aquéle dia, que eram vinte € nove de agésto, havendo setenta ¢ quatro dias que chegara Aquela cidade Calecute.* (Décadas, 4 vols., sel, pref, € notas de Antonio. 'Baiéo, Lisboa, Sd da Costa, 1945, vol. I) pp. 7479.) * samori = samorim, rei de Celecute; expediu = despachou, des- pediu; lingua = intérprete; ministros = executantes; pero = mas. U2 Este capitulo das Décadas serviu de fonte para Cambes des- erever nOs Lusiadas 9 encontro entre Vasco da Gama e 0 Sa- morim de Calicute, como se encontra no Canto VIII, estancias 79 e seguintes, € no ‘Canto IX, estdncias 1 a 12. Obviamente, o poeta recorria so historiador porque desejava fundamentar a Parte veridica da sua epopéia, mas também porque divisava na obra de Jodo de Barros um sopre épica semelhante aquele que diligenciava insuflar nos seus versos. Dirseia que, ao basear-se no texto das Décadas, Camdes denunciava a existéncia dum material historiogréfico ja preparado pela imaginagio para co- laborar nos propésitos estéticos que tinha em mira. De qual- quer modo, af demora a primeira caracterfstica da historiogra- fia de Jodo de Barros, perceptivel no modo como desenha o comportamento de Vasco da Gama e seus companheiros sualiza-os como herdis no desemperho de grandiosas facanhas. ‘as mais das vézes ultrapassando a frca humana, e nio como ho- mens, valorosos sim, por sua coragcm ¢ astiicia, mas homens. Essa_amplificacéo epicizante dos protagonistas vincula-se a ou- tras incidéncias que tiram a Joio de Barros 0 respeito que a Ferndo Lopes, por sua fidedignidade, se deve ainda hoje, mas Ihe atribuem outro mérito, o de escritor, valido pelo estilo e sua equi valente mundividéncia generosa ¢ idealista. No recusando gar 0 didlogo, pésto sem o arranjo novelesco que éste adquirira nas crOnicas de Ferndo Lopes, 0 estilo de Joao de Barros, castigo ¢ simples apesar do influxo ‘da sintaxe latina e de pecar pela falta de maior yariedade ou dum ritmo dramético mais vibrante, pressagia a prosa limpida ¢ escorreita dos escritores seiscentistas. Damido de Géis Nasceu em 1502. Cultissimo, viajado, entreti- nha amizade com Lutero, Erasmo Melanchton, Luis Vives, Alberto Diirer (que Ihe pintou o retrato), o que Ihe trouxe fatais dissabores no fim da vida, Em 1545, apés lon- ga permanéncia no estrangeiro, regressou & Patria e'trés anos mais tarde fol nomeado GuardaMor da Torre do Tombo, Nes- sas funcOes, € por incumbéncia de D. Henrique, escreveu a Cré- nica do Felicissimo Rei D. Manuel (1566-1567), em cuja cérte passara a juventude Ainda publicou a Crénica do Principe D. Joao (1567). Moldando seus escritos conforme um amplo humanis- mo que as viagens e as leituras Ihe ensinaram e a conscléncia Ihe ditava, acabou caindo em desgraca perante 2 Inquisicdo. Cruel- mente processado, nio resistiu aos padecimentos e veio a falecer em I n3 CRONICA DO FELICISSIMO REI D. MANUEL Publicada em 1566 e 1567, trata do reinado de D. Manuel, ‘ou seja, de acontecimentos havidos entre os fins do século XV € 0 primeiro quartel do século XVI, em Portugal e, sobretudo, na Asia e na Africa, tendo por nicleo Vasco da Gama, Pedro Alvares Cabral, Tristdo da Cunha e outros. Essa preferéncia pe- los aspectos ultramarinos do reinado de D. Manuel resultaria pro- vavelmente de o cronista ter de aceitar as injungdes da Inquisicao, a qual ainda o forcou a reescrever ou emendar varias passegens, julgadas desairosas aos seus protagonistss. Quando nfo. penas alheias “emendaramdhe” o texto e deformaram-he 0 pensamento em mais de um passo. Nem por isso escapou da sanha inqul- sitorial. Entretanto, capitulos houve em que o historiador como que burlou o policiamento da censura e néles pode instilar o su espirito libérrimo c amante da yerdade pura ¢ simples. Esté no caso o trecho em que revela condoerse da injusta persegui- do movida contra os judeus, gesto afinal muito coerente com 0 seu humanismo hicido, aberto aos quatro ventos e defensor do livre exame dos problemas. Constitui o capitulo CI da pri- meira parte, volume IIf, intitulado “De como El-Rei mandou Tristio da Cunha 4 fadia por capitio de uma armada, c do alevantamento que sc cm Lis- boa féz contra 0s cristios-novos": Antes que El-Rei fSsse de Lisboa pera Almeirim, ordenou de mandar Tristéo da Cunha A india por capitio de uma armada, da qual, e do que nesta viagem {éz se dird adiante, no ano de mil, © quinhentos, ¢ oito, em que tomou. Pelo que nestes dous capitulos, que sio os derradeiros desta primeira parte tratarei_ de um tumulto, € alevantamento, que se os dezenove de abril déste ano de mil, ¢ quinhentos, ¢ seis, em domingo da Pascoela fz em Lisboa contra os crist@os-novos, que foi pela maneira seguin- te, No mosteiro de Sio Domingos da dita cidade est uma ca~ pela'a que chamam de Jesus, e nela um crucifixo, em que foi entio visto um sinal, a que davam cbr de milagre, conquanto os que se na igreja acharam julgavam ser o contririo, dos quais um cristio-névo disse que The parecia uma candeia acesa que estava posta no lado da imagem de Jesus, o que ouvindo alguns homens baixos 0 tiraram pelos cabelos arrasto fora da igreja. ¢ 0 mataram, e queimaram logo 0 corpo no rossio. Ao qual alvo- 114 régo acudiu muito povo, a quem um frade f&z uma pregagio convocando-o contra ot cristios-novos, apés 0 que. sairam dous frades do mosteiro, com um ctucifixo nas mos bradando, heresia, heresia, o que imprimiu tanto em muita gente estrangei- ra, popular, marinheiros de naus, que entio vieram de Holanda, Zelandia, Hoestlindia, ¢ outras partes, assim homens da terra, da mesma condigio, e pouca qualidads, que juntos mais de qui- nhentos, comegaram 2 matar todolos crist@os-novos que achavam pelas ruas, ¢ 0s corpos mortos, ¢ meias vivos langavam, ¢ quei- mavam em fogucitas quc tinham sido feitas na ribeira, ¢ no rossio a0 qual negécio Ihes serviam escravos, ¢ mogos, que com muita diligéncia acarretavam lenha, e outros materiais pera acen- der 0 fogo, no qual domingo da Pascocla mataram mais de qui- nhentas pesioas. A esta turma de maus homens, ¢ dos frades, quem sem temor de Deus andavam pelas ruas concitando 0 povo esta tamanha crusldade, se ajuntaram mais de mil homens da terra, da qualidade dos outros, que todos juntos a segunda-fei- ra continuaram nesta maldade com mor crueza, e por j4 nas ruas no acharem nenhuns cristios-novos, foram cometer com vaivéns, € escadas, as casas em que viviam, ou onde sabiam que estavam, e tirando-os delas arrasto pelas ruas, com seus filhos, mulheres, ¢ filhas, os langavam de mistura vivos, e mortos nas fogueiras, sem nenhuma piedade, e era tamanha a crueza que até nos meninos, € nas criangas que estavam no berco a execu- tavam, tomando-os pelas pernas fendendo-os em pedagos, © es- borrachando-os de arremésso nas paredes, Nas quais cruezas se no esqueciam de Ihes meter a saco as casas, e roubar todo 6 ouro, e enxovais que nelas achavam, vindo o negécio a tanta solugio, que das igrejas tiravam muitos homens, mulheres, mogos, mégis, déstes inocentes, desapegando-os dos sacrérios, e das imagens de Nosso Senhor, e de Nossa Senhora, ¢ outros santos, com que 0 médo da morte os tinha abracados, ¢ dali os iravam, matando, ¢ queimando misticamente sem nenhum te mor de Deus assim a elas como a éles. Neste dia pereceram mais de mil almas sem haver na cidade quem ousasse de resis- tir, pola pouca gente de sorte que nela havia por estarem os mais dos honrados fora, por caso da peste. E se os alcaides, ¢ outras justigas queriam acudir a tamanho mal, achavam tanta resistencia, que cram forgados a se recolher a parte onde esti- vessem seguros, de lhes nao acontecer 0 mesmo que aos crist@os- US -novor, Havia entre os portuguéses, que andavam cncarniga- dos neste tio feio, e inumano trato tals, que por se_vingarem de Sao, © malquenense qhe Gohan oom aigoas ection Enon, davam a entender aos estrangeiros que cram cristdot-novos, ¢ fas ruas, ou em suas casas onde os iam saltear os matavam, sem em tamanha desaventura se poder por ordem. Passado éxe dia, que. cio equal dette pietsegil eB) tornatam §:tEren felte Bese danados homens a prosseguir cin sua crueza, mas nfo tanto como nos outros dias porque jé nao achavam quem matar, por todolos eristioe-novos que escaparam desta tamanha frla, terem postos em salvo, por pessoas honradas, e piedotas que nisso trabalharam tudo o que néles foi, ¢ o tempo, ¢ desordem déles lhes péde conceder, sem poderem evitar que nfo pereceseem neste tu multo mais de mil, e novecentas almas, que tanto se achou per conta que mataram éstes maus, e perversos homens, no que pisisram @ ror park daquee dia to qual & tarde seudivim & Gidade Aurch da Silva regeder,. D. Alvaro. de Castro gover: nador, com 2 gente que puderam ajuntar de suas valias sendo {A quase acabada, ¢: pacificn-o furor desta gente, cansada de matar, € desesperada de poder fazer mais roubos, dos que j4 ham feitos. Esta nova ordem deram a El-Rei na vila de Avis, indo de Abrantes visitar a Infanta D, Beatriz sua mis, que estava em Beja de que foi muito triste, e anojado, pelo que pera se prover em tamanha ‘desordem logo dali mandou o Prior do Crato, e D. Diogo L&bo, Baro de Alvito com pedéres, pera castigarem os que achassem ‘culpados, dos quais muitos {o- ram presos ¢ enforcados per justica, principalmente dos naturais, porque os estrangelros cam os roubos, & despojes que levavam se acolhtram a suas naus, e se foram nelas cada uma pera donde era, ‘Ass doua fredex que andaram.com-o cricifiza: pela cidade raram as ordens, e per sentenca foram queimades. E El-Rei mandou proceder por seu procurador contra os da cidade, © ema; obieitls-delx de questo. perdéramo oflcioy:-e'es fazends, ¢ contra a cidade, e térmo foi dada sentenca, 2 qual ime pareceu de substincia pera se por de verbo a verbo no ca- ploulo sequinte.” (Cronica d'ELRei D. Manuel, Lisboa, Bi- Blgteca de Clisscas Portuguéscs, 1908, pp. * Zelindia, Hoestléndia = Paises Baixos; a stco = 2 saque. 16 Percebese, pela simples leitura déste capitulo, que Damiao de Géis, do prisma historiogréfico, diferia substancialmente de Joao de Barros, Historiador na mais rigorosa acepgio do térmo, da cstirpe de Ferndo Lopes, Damido de Gols empresta & ver dade dos fatos funcdo primacial na sta visio das coisas ¢ dos homens. A verdade somase o realismo, que nao cede ante os pormenores mais trégicos ou arrepiantes, muito embora deixe transparecer nitidamente para que lado pende o fiel da ba langa: sua simpatia estd com os cristdosnovos impiedosamen- te massacrados pela populagdo supersticiosa, tacanha e precon- eituosa. Observese que o morticinio se originoa de um cris- téo-ndve haver sido objetivo e veraz no considerar o “milagre” nada mais que fruto de “uma candeia acesa que estava posta no lado da imagem de Jesus”. Mas fol o bastante para que 0 ‘obscurantismo, lavrando em “homens baixos”, se voltasse contra a evidéncia, apontada pelo cristéondvo, com o fanatismo que The € peculiar, e fésse encontrar apoio em frades néo menos ébrios de furor antisemitic, Em suma: o espfrito “velho”, mis- ticamente enfurecido e cego, a oporse ao “névo”, liicido e aberto para as realidades contingentes, e decorrente dos ventos refor- madores soprados pela Renascimento. Percebese, ainda, que © cronista procura isentar D. Manucl de qualquer culpa no des vario popular e fradesco, inclusive acentuando a justiga que se praticou contra os matadores dos cristaos-novos, nao obstante ficasse longe de cobrir todo 0 mal cometido, porquanto, para 08 1900 cristéosndvos chacinados, apenas alguns poucos “cristios lindos” foram sentenciados. © humanismo de Damido de Gdis, em tudo prenunciando o racionalismo setencentista e acompa- nhando o desassombro de certos contemporiness, como, por exemplo, Giordano Bruno, se exprime num estilo que, nem por direto e despojado, deixa de ser adequado & matéria de sua crénica, Menos literdria e ufanista que a de Joao de Barros, a concepcio da Histéria de Damiao de Géis engloba conceitos de verdade € coragem moral ainda vélidos para a edificagio das consciéncias de hoje. A Literatura A euforia dos descobrimentes gerou, como se sabe, de Viagens a crénica ultramarina, encetada por Azurara, ¢ i também uma avalanche de documentos oscilantes entre a ficgo mais desabrida e a historiografia mais fidedigna, Parte dessa varia biblioteca informativa das novas terras entre- vistas velo a ser coletada na Histéria TrdgicoMaritima (2 vols., 17351736), por iniciativa de Bernando Gomes de Brito (16882). Outros autores no género: Jerénimo Corte-Real, Francisco Al- U7 vares, Fernio Cardim, Fenio Mendes Pinto, ete. ste ultimo € 0 mais importante de todos, Ferndo Mendes Pouco se conhece de sua vida, salvo naquilo Pinto que sua obra contém de autobiogrifico. De origem humilde, teria nascido entre 1510 ¢ 1514, faleceu em 1583. Entre 1537 ¢ 1358, viajou pelo Oriente e Afri- ca, entregue as mais inverossimeis aventuras, desde ser cativo treze vézes, vendido dezessete, até subir As fungdes de embai- xador. transunto dessas andancas, recolheu-o na Peregrina- $40, que esereveu nos derradciros anos de existéncia, © que sd- mente viria A luz duas décades apés sua morte (1614). PEREGRINAGAO © titulo da obra, longo como era habito naqueles recuados tempos, declara o seguinte: Peregrinagaio de Fernio Mendes Pinto, em que dé conta de muitas e muito estranhas cousas que viu € ouvix no reino da China, no da Tartdria, no do Sur- nam, que vulgarmente se chama Sido, no do Calaminhdo, no de Pegu, no de Martaviio, e em outros muitos reinos ¢ senhorios das partés orientais, de que nestas nossas do Ocidente hd muito pou a ou nenhuma noticia. E também se dd conta de muitos casos particulares, etc., etc. 0 enovelamento dos episddios constituintes da obra, ¢ 0 seu transcorrer numa geografia imagindria © se gundo uma cronologia confusa, se manifestam pelo mero enun- ciar do titulo. Fugido de casa, 0 nosso heréi metese numa ca- ravela, que & logo depois apreendida por corsirios franceses nas cercanias de Setibal, Liberto numa praia alentejana, entra no servigo de D. Jorge, filho bastardo de D. Jofo II. Em 1337, se~ gue para a India, onde tem coméo a sua fantéstica peregrina- ¢40, em grande parte vivida na companhia do pirata Anténio de Faria, protagonista central do episédio seguinte, dos mais pito- rescos ¢ incriveis de quantos compdem o relato'de Ferndo Men- des Pinto, localizado entre os capitulos LXXV ¢ LXXVIL, int tulados “Como chegamos a esta ilha de Calemplui e da maneira ordem, sitito e fabrica dela”. “Do mais que Antonio de Faria pas- sou nesta ermida até se embarcar”. "Como esta primeira noite fo- mos sentides, ¢ por que causa, e do mais que sucedeu sdbre isso”: Dobrada, como tenho dito. esta ponta de Guinaitardo, descobri- ‘mos adiante, obra de duas léguas, uma terra rasa a modo de 18 lizira, situada no meio do rio, a qual, segundo as mostras de fora, podia ser de pouco mais de uma légua em roda. Antdnio de Faria se chegou bem a ela, com muito alvorégo misturado com nao pequeno receio, por que até entie nao enten- dera ainda o grande perigo em que se metera, a si € a todos, e, sendo j& passadas mais de trés horas da noite, surgiu, obra de um tiro de bergo dela. E como a manha foi clara, juntos em conselho todos ‘0s que para isso foram chamados, assentaram que, visto como uma cousa tio grandiosa como aquela, e que de i mostrava um aparato e majetade tamanha, nao’ parecia possivel que estivesse sem alguma gente que a guardasse, thes parecia bom eonselho que, com todo silencio posivel, te 10" deasse primeiro téda por fora para se ver as entradas que tinha, ou que impedimento podia ter a_nossa desembarcacio, € que, segundo o que visse, se determinaria 0 que se avin de hanes Com esta resolugdo se mandou Anténio de Faria levar, ¢, sem estrondo nem rumor nenhum, se chegou bem & terra.” E rodeando-a t6da, a viu bem A sua vontade, ¢ notou particular- mente nela tudo o que a vista podia alcangar. Era esta ilha téda fechada em roda com um terrapleno de cantaria de jaspe de vinte ¢ seis palmos em alto, feito de léjeas to primas ¢ bem assentadas que todo 0 muro parecia uma s6 pega, cousa de que todos se espantaram muito, porque até entio io tinham visto em nenhuma parte, nem da India nem de fora dela, cousa que se parecesse com aquela. Este muro vinha criado de todo o fundo do rio até chegar acima a 4gua em altura de outros vinte ¢ seis palmos, de maneira que a sua altura era de cingiienta e dois palmos. E em cima, no andar do terra- pleno, em que o muro acabava a sua altura, tinha uma borda da mesma cantaria, roliga como cordio de frade, da grossura de um barril de quatro almudss, que a cingia téda em roda, ssbre a qual iam assentadas umas grades de l:tao feitas a0 tOmo, que por quartéis de seis em seis bracas fechavam nuns balatistres do mesmo lato, em cada um dos quais estava um {dolo de mulher com uma bola redonda nas maos, que por entio se nio pode entender 0 que isto significava. Destas grades a dentro ia uma fileira de grandissima quan- tidade de monstros de ferro coado, que a modo de danga, com as mios dadas de uns aos outros, fechavam t6da a redondeza da n9 ilha, que, como digo, seria de quase uma légua em roda. Déstes monstruosos {dolos a dentro, pela mesma ordem e fileira em que éles cingiam esta lizira, havia outra de arcos, de obra riquissima, em que os olhos tinham assaz que ver ¢ em que se deleitar. E tudo o mais daqui para dentro era um bosque de laranjeiras ands muito basto, sem outra mistura de drvore nenhuma, no meio do qual estavam fabricadas trezentas ¢ sessenta ermidas, dedicadas aos deuses do ano, de que esta gentilidade nas suas histrias con- ta grandes patranhas em retificagio de sua cegueira. Mais acima obra de um quarto de légua, sbre um téso que a terra fazia para a banda do leste, apareciam uns edificios com sete frontarias de casas a modo de igrejas, todos d’alto a baixo, quanto a vista podia alcangar, cozidos em ouro, com suas tor- res muito altas, que, segundo o que parecia, deviam ser campa- nirios, e por fora duas ruas de arcos que cingiam éstes edifi- ios. Os quais arcos eram do mesmo teor das sete frontarias das casas, € todos desde 0 mais alto do espigio dos coruchéus até baixo, cozidos em ouro, pelo qual de todos se julgou que devia isto de ser algum templo muito suntuoso e de grandissima ri- queza. Depois de ser recolhida t8da a présa que ali havia, ¢ mandada As embarcagées, pareceu bem a todos nZo se bulir por entio com mais nada, assim por ndo sabermos a terra. como por ser {4 quase noite, esperando que ao outro dia © poderfamos fazer mais 4 nossa vontade. E perguntado [o ermitio] se vinham os reis da China Aquele lugar algum ano, ou em que tempo, respondeu que nio, porque © tei, por ser filho do Sol, @le podia absolver a todos ninguém © podia condenar a éle. E perguntado se tinham aquéles ermities alguma maneira de armas, respondeu que nao, porque os que pretendiam caminhar para o Céu, nao Ihes eram necessérias ar- mas para ofender, seno pacitncia para sofrer. E perguntado por que cause estava aquela prata naqueles caixdes de mistura com aquéles ossas, disse que porque era esmola que aquéles defuntos levavam consigo, para 1k no Céu da Lua se valerem dela em 120 suas necessidades, E depois de the perguntarem outras muitas cousas, perguntando-lhe tltimamente se tinham mulheres. res- pondeu que os que houvessem de dar vida 4 alma lhes era muito necessirio nfo gastarem dos deleites da carne, porque claro estava que no favo doce do mel se criava a abelha que bicando escandalizava e magoava aos que 0 comiam, Antinio de Faria abragando-o entio, € pedindo-the muitos perdses a seu modo, que des chamam de charachina, se veio embarcar j4 quase noite, com determinagio de a0 outro dia tornar a cometer as outras ermidas, onde tinha por novas que havia uma muito grande quantidade de prata e alguns {dolos de ouro, Mas nossos pecados nos tolheram vermos 0 efeito dis- to que com tanto trabalho ¢ risco das vidas tinhamos procurado havia passante de dous meses ¢ meio, como logo se dird. Depois de ser embarcado Aaténio de Faria ¢ nés todos com le, que seria j6 quase as Ave-Marias, nos passamos a remo 3 outra parte da ilha, € surtos dela obra ‘de um tiro de falco, nos dcixamos assim estar até quase meia-noite, com determinasio, como jf atrds disse, de tanto que 20 outro dia {Osse manha tor- narmos a sair em terra, e cometer as capelas dos jazigos dos Reis, que estavam de nds menos de um quarte de Igua, para nelas carregarmas ambas as embarcagdes. Porém, Anténio de Faria, sem fazer caso do que éles diziam [os chins, que imprecavam contra os invasores], saltou em terra com seis homens de espadas rodelas, ¢ subiu pelas escadas do cais acima, quase afrontado ¢ fora de si. E_ subindo desatina damente por cima das grades, de que téda a ilha, como j& disse, era cercada, correu como doudo de uma parte para a outra, sem sentir cousa alguma, ¢ tornando-se 3s embarcacées muito afron- tado, praticou com todos sdbre o qu: nisto se devia de fazer. E depois de se darem muitas razées, que éle néo queria acei- tar, Ihe fizeram os mait dos soldados requerimento que em to- do o caso se partisse logo. E éle, receoso de haver algum motim, respondeu que assim o faria, mas que para sua honra Ihe convinha primeiro saber o de que havia de fugit, e que portanto Ihes pedia 121 muito por merce que o quisessem ali esperar, porque queria ver se podia tomar alguma Kngua que certificasse mais na verdade desta suspeita, E que para isso Ihes no pedia mais de espaco que s6 meia hora, Yisto como ainda havia tempo para tudo an- tes que fSsse manha. E querendo-lhe alguns dar algumas razdes contra isto, as nao quis ouvir, mas deixando-os assim a todos com Ihes tomar primeiro as mensigens, ¢ Ihes dar juramento nos San- tos Evangelhos, se meteu, cos seis que levava, por dentro do ar- voredo do bosque. E caminhando por éle mais de quatro tiros de espingarda, ouviu diante tanger um sino, ¢ atinando, pelo tom, onde era, foi dar numa ermida muito mais nobre ¢ rica que a outra em que o dia dantes tinhamos entrado, na qual estavam dous homens quase ambos de uma idade, vestidos em trajos de religiosos ¢ com suas contas a0 pescoco, por onde inferiu que eram ermitaes. E dando néles de sibito os tomou a ambos, de que um ficou tio pasmado que muito tempo néo falou a propétito. Dos nossos feis, of quatro entraram na ermida, ¢ apanharam do altar um {do- Jo de prata de bom tamanho, com uma mitra d'ouro na cabesa, € uma roda na mio, que nfo soubemos determinar 0 que signi- ficava. E tomaram mais trés candeciros de prata com suas ca- deias muito compridas. E tormando-se Anténio de Faria a recolher muito depressa, cos dois ermities quase a rasto, ¢ com as bécas tapadas, chegow onde as embarcagbes estavam, ¢ recolhido nelas se féz. logo vela com muita pressa, ¢ se foi pelo rio abaixo. E fazendo perguntas a um dos dous que ia mais em seu acirdo, ¢ com grandes ameagas se mentisse, respondeu que era verdade que um santo homem de uma daquelas ermidas por nome Pilau Angiroo chegara ié muito de noite 2 casa do jazigo dos Reis, e batendo muito apressadamente 3 porta dera um grito muito alto dizen- do: — “O gentes tristes ¢ ensopadas na bebedice do sono da car- ne, que professastes com juramento solene a honra da deusa Amida, prémio rico de nosso trabalho, ouvi, ouvi, ouvi 0 mi- serdvel que nunca nascera! Sabei que sio entradas gentes ¢s- trangeiras do cabo do mundo, com barbas compridas € corpos de ferro, na casa dos vinte ¢ sete pilares, de que um santo mem que me isto disse era vassoura do’ chao, e roubando nela © tesouro dos santos, botaram com desprézo seus ossos no meio da terra, € os contaminaram com escarros podres ¢ fedorentos, 12

Você também pode gostar