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Plantocracia, despotismo democrático e mobilização

total: qual política?


dystopiamag.com/plantocracia-despotismo-democratico-e-mobilizacao-total-qual-politica

31 de maio de 2021

por Alana Moraes

O paradigma neoliberal da “mobilização dos pobres”

Stefano Harney e Fred Moten lançaram em 2021 o livro “Tudo incompleto”. Os autores
falam sobre o neoliberalismo como uma “Plantocracia Global”: “Os plantocratas tentam
controlar e concentrar toda a terra, toda a água, todo o ar, toda a comida, animais e
plantas. Empurrar pessoas para as fábricas foi apenas uma tática temporária nesse
controle e concentração, não o objetivo do jogo”. Para os autores, o neoliberalismo
emerge como um novo acordo global nos marcos de um “despotismo democrático”. Nesse
acordo – “uma forma inovadora da linha racial global”, os trabalhadores incluídos em
governos, direitos e administrações públicas, seriam assim designados como “brancos”,
“donos da casa própria”, em troca de alinhamentos com as elites de governo contra
pessoas racializadas, precarizadas e seus territórios. Como comenta Angela Mitropoulos:
“em muitos aspectos, então, o que é registrado como o recente aumento da precariedade
é, na verdade, sua descoberta entre aqueles que não o esperavam em virtude da relação
aparentemente inerente e eterna (talvez biológica) entre as características de seus corpos
e sua possível avaliação monetária” (Mitropoulos, 2005 s/p).

O “despotismo democrático” também diz respeito ao que os autores se referem como a


“democratização do despotismo”, ou seja, uma infiltração generalizada no tecido social
inscrita na própria arquitetura das “políticas sociais” que, podemos incluir, funcionam
assim em sua face “protetiva” pela “participação” permanente e pela mobilização de
“maiorias”, se constituindo como “governo moral” dos pobres. Expande-se, como
regulação institucional, o que Foucault chamou de “racismo de Estado” onde adversário
não é mais um “adversário político”, mas é um perigo biológico, uma anomalia do
funcionamento que ameaça “o corpo social” e essa é também “a condição para que se
possa exercer o direito de matar” (Foucault, 1999:306).

Para uma certa imaginação política de esquerda que, mesmo diante do neofascismo,
segue insistindo em pautas como “mais políticas públicas” é mesmo difícil compreender
como o neoliberalismo se infiltrou, como técnica de governo, na gestão de populações
pelas políticas sociais que organizam o socius separando, hierarquizando e fazendo
triagens morais no que seriam os “beneficiários merecedores” e aqueles outros que não se
sacrificaram suficientemente; os “incluídos” na cidadania do consumo, os batalhadores, e
aqueles outros que “fracassaram” na concorrência permanente estabelecida pela
cidadania sacrificial. Ou de outra forma: os “vândalos” que recusam a “participação” e os
“pacíficos” que reconhecem a legibilidade da democracia neoliberal em seus termos.

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Lautier (2009) chama atenção para o fato de que, entre as décadas de 1990 e os anos
2000, a hegemonia das “políticas focalizadas” e de “transferência de renda” girou em
torno da criação de uma categoria: “os pobres”. “Os pobres” seriam “tanto mais
legitimamente os objetos de auxílio que se lhes atribuem, quanto mais se tem em conta
que é esse auxílio que os cria” (Idem). A democracia neoliberal contaria então com a
“estratégia fundada sobre o tríptico moralização/tecnicização/ despolitização da questão
da pobreza” (Ibidem), mas também da pacificação dos conflitos que excediam os termos
inclusão-exclusão.

A “mobilização das maiorias pobres”, mediada por políticas públicas/sociais, também


conformou o horizonte de atuação de muitos movimentos sociais a partir de um
paradigma de “socialização” dos mais pobres pelas próprias condicionantes das políticas
públicas. No caso do Minha Casa, Minha Vida – Entidades, que pude acompanhar de
perto (Moraes, 2020), a arquitetura da política social habitacional exigia que os
movimentos de luta por moradia “habilitados” atuassem a partir de figuras jurídicas
semelhantes às de empresas, regulando condutas nos acampamentos/ocupações e
restituindo a lógica do desempenho e da concorrência na descrição moral de quem é mais
ou menos lutador e, portanto, mais ou menos “merecedor” da “casa própria”. Trata-se
também de um “alinhamento inédito” entre movimentos sociais, “legislação, instituições
públicas, recursos financeiros e cadeia produtiva da construção” (Shimbo, 2016: 119). Em
muitos estudos de avaliação do programa, entretanto, a qualidade da “participação” a ele
atribuído é bastante problemática: “A tendência mais comum é que a formalidade dos
processos de participação dificulte a construção desses importantes laços ao longo do
processo (entre ‘beneficiários’ e ‘movimentos’), com impactos negativos sobre a
sustentabilidade dos empreendimentos” (Nepac-Unicamp, 2015). Os conflitos e
dissensões sobre formas de valorar a “participação”, sobre merecimentos, não
reconhecimento de esforço e disputas internas sobre o gerenciamento de condutas são
muitos.

Muitas vezes, a administração dos cadastros pelos movimentos, recoloca a lógica do


sacrifício e deixa transparecer as muitas contradições das políticas progressistas que
“selecionam” a partir de uma lógica de desempenhos individuais – no que é imaginado
pelos movimentos, muitas vezes, como modo de “conscientização” e “participação” dos
pobres “mais esforçados”, capazes de se sacrificarem pela “conquista” e demonstrarem,
pela mobilização, uma “consciência de classe”. No mesmo sentido, as demonstrações
públicas de “mobilização” dos mais pobres produzidas pelos movimentos sociais
converteram-se em um índice de capital político para acessar os recursos das políticas
sociais, mas também para ocupar cargos governamentais, fechando assim o ciclo de
mobilização permanente da nova governança e suas muitas técnicas de seleção de
“lideranças”. As lutas foram aos poucos sendo convertidas em “demandas”, canalizadas
em complexas máquinas burocráticas entre conselhos, conferências, audiências públicas
reduzidas a expressões de “problemas sociais” e gestão de recursos escassos.

“Reivindicações transformadas em linguagem de Estado” (Leite Lopes, Heredia, 2014: 24)


é o que muitos militantes e ativistas de movimentos sociais chegam a concluir em uma
reflexão sobre a “década participativa” sob administração do PT no governo federal.

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O “despotismo democrático” faz com que organizações, movimentos sociais, os
“ativismos” trabalhem para a governança. Como lembram Stefano Harney e Fred Moten:
A governança é colocar a “democracia para funcionar”. As “políticas sociais”, no contexto
pós-fordista, atuam como prática de “correção, forçando-se com violência mecânica sobre
o incorreto, o não corrigido, aquele que não sabe buscar sua própria correção” (Harney;
Moten, 2013:78). A ideia de “mobilizações permanentes de maiorias” expressa também a
herança militar do despotismo democrático. Como imagem militar, “a mobilização
designa o contrário da aprendizagem porque os exércitos mobilizados têm como primeiro
imperativo não se deixar desacelerar por nada” (Stengers e Pignarre, 2005: 36).

Importante lembrar, como faz Melinda Cooper (2017), que as críticas neoliberais ao
chamado “Estado do Bem-Estar Social”, nos EUA, advieram de um arcabouço crítico
moral cujo sentido era questionar a “irresponsabilidade” da mãe negra, ou das mulheres
pobres que viviam em arranjos não convencionais – com outras mulheres, parentes ou
apenas sem um marido. Rapidamente, os “desvios morais” racializados de arranjos
afetivos múltiplos converteram-se em “custos” e “gastos sociais” que justificariam a crise e
os processos inflacionários (majoritariamente da chamada Escola de Chicago). A autora
retoma o fato de que, muito frequentemente, a inflação da década de 1980 era creditada à
“promiscuidade sexual” e o esgarçamento da “ordem moral” da sociedade, expressão da
corrosão do que seria a “boa família produtiva”. Também por isso, muitas das propostas
políticas à inflação eram sobre restauração da ordem familiar – a pessoa, como “capital
humano”, deve ser gestada e gerida pela família (heterossexual) que, por sua vez, tem por
obrigação regular exercer boas condutas que não onere o Estado.

Também se tratava de restabelecer o primado da “responsabilidade familiar” como local


de acumulação de dívida das famílias e liberalização de crédito – a história do
neoliberalismo contemporâneo passa assim pelos dispositivos morais de regulação da
vida afetiva e sexual dos mais pobres. As “políticas sociais” próprias do neoliberalismo
passam a atuar na reconfiguração da “oikonomia”, afirmando que “o nexo de raça, gênero,
classe, sexualidade e nação” só poderia ser constituído “através da premissa de uma
família adequadamente produtiva” (Mitropoulos, 2012 :28). Como concluem Stefano
Harney e Fred Moten, as “políticas sociais” sob a lógica da “governança neoliberal” são
também um importante e “nova forma de expropriação”.

Mbembe, no seu último ensaio, Brutalismo (2020), define os modos pelos quais o poder
contemporâneo se expressa e se reconfigura como força geomórfica através de processos
de fraturação, de fissuração. O filósofo propõe uma leitura do exercício do poder
contemporâneo a partir de uma dimensão molecular, química nos processos de conversão
do vivo em pura matéria para extração de energia. Energia, na maior parte das vezes, é
uma questão de mobilização de um sistema que produz trabalho. Ele retorna então a
plantation colonial como tecnologia moderna de extração racializada, de confinamento,
exaustão e poderíamos ainda incluir: de simplificação ecológica nos termos do
excepcionalismo humano e da monocultura, de domesticação de mulheres, animais e
plantas, de produção pandêmica. As imaginações sobre democracia foram fagocitadas
pelos dispositivos de propriedade, domesticação, extração e mobilização do
Plantationoceno – nos faltaria agora um esforço coletivo investigativo sobre formas de

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imaginar e sustentar zonas de respiração e liberdade como propõe Denise Ferreira da
Silva (2019) pela implicabilidade profunda da Negridade, eu a cito, retomar a “matéria
imageada como contingência e possibilidade em vez de necessidade e determinabilidade”.

Plantocracia Global e a “inclusão de maiorias” como forma política

Para além de “desdemocratização”, como sugere Wendy Brown (2018), podemos pensar
como o neoliberalismo produziu sua própria forma “democrática” pelo engajamento e
participação das forças progressistas na contenção e mobilização do grande contingente
de “nômades do trabalho”, os pobres, em um momento histórico no qual o trabalho
assalariado perde força e a conflitualidade se desloca perigosamente para além da
oposição capital versus trabalho para se instalar na vida, nas relações que nos constituem,
nos modos pelos quais habitamos o mundo, nas formas pelas quais somos conduzidas a
demonstrar disponibilidade total. Como também lembram Dardot e Laval, “o
neoliberalismo não governa, principalmente, através da ideologia, mas através da pressão
exercida sobre os indivíduos pelas situações de competência que cria. Essa “razão” é
mundial por sua escala e “faz mundo” no sentido de que atravessa todas as esferas da
existência humana sem reduzir-se à propriamente econômica (Dardot; Laval, 2015: 284).

Na América Latina, as forças progressistas, pelo “governo moral dos pobres”, precisaram
dar provas contínuas de que sua “boa gestão” da “paz social” era eficaz na neutralização
dos conflitos. Seja pelo receituário da gestão moral da pobreza das agências multilaterais,
seja pela ação de um aparato repressivo nada desprezível, mas também pela confiança no
chamado “boom das commodities” e suas infraestruturas (hidrelétricas, estradas,
substâncias tóxicas), o progressismo latino-americano neoextrativista apostou todas as
fichas na extração, na destruição de territórios e comunidades, no agronegócio e na
militarização em nome de uma ideia de crescimento e da gramática de “inclusão dos
pobres” como “inclusão de maiorias”, inscrita nos ordenamentos do poder da Plantocracia
Global em suas muitas modulações. No entanto, por toda América Latina constata-se hoje
a equação já bem resumida por Maristela Svampa e que, de certo modo, permitiu o
avanço de governos conservadores na região: mais extrativismo, menos democracia.

A chantagem do “progresso” – dispositivo primordial da plantocracia – é sempre


acompanhada de estratégias de mobilização de uma imaginação de “maiorias” e assim se
apresentam como inevitabilidade – a política, o conflito encontram-se obstruídos pela
afirmação de uma categoria contra a qual não se pode hesitar. Seu êxito consiste em
fabricar uma temporalidade própria, uma flecha do tempo que lança um novo ritmo e um
novo mapa para o tempo geo-histórico. A ideia de progresso, como parte central de seus
sistema de justificação e poder foi capaz de separar um conjunto enorme de modos de
existência como tudo aquilo que deveria ficar para trás, conservado como vestígio de um
passado: atrasado, selvagem, anedótico, minoritário – como aquilo que podia, portanto,
ser exterminado ou usufruído em nome da História. A Plantocracia Global renova seu
projeto de poder revisitando essa história, confere legitimidade aos seus movimentos
fazendo das oposições às extrações, dissensões e recusas um lugar de “irracionalidade” ou
de “escala irrelevante”.

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Mas a natureza dual repressiva-produtiva do neoliberalismo se expressaria também,
como lembra Sztulwark (2019), em seu rechaço agudo em relação aquilo que hesita, o que
cria ruídos na funcionalidade do regime de maiorias, o que ele chama das emergências
dos “sintomas”. O despotismo democrático neoliberal atua por uma forma de organização
espacial, subjetiva e pública que espelha uma pedagogia “civilizacional” amparada na
gramática racializada da inclusão-exclusão ao mesmo tempo que pretende neutralizar os
sintomas de inconformidade, as anomalias. Denise Ferreira vem afirmando tenazmente
que “a adoção da lógica da exclusão pelos programas neoliberais, a qual deve ser corrigida
com medidas de democracia inclusiva, torna o efeito-poder dessa racialidade ainda mais
aparente” (Ferreira da Silva, 2014: 110).

No Brasil, os embates sobre a construção de Belo Monte, iniciados em 2010 – mas


também aqueles em torno de muitas outras grandes obras – podem expressar bem como
uma “política social” pode ser fundamental para a cisão racializada entre aqueles
“merecedores” das “vantagens” do desenvolvimento, da “inclusão” por “compensação” em
um “projeto de nação” e aqueles outros racializados que “atrasam” o bom funcionamento
da marcha do progresso e recusam a “participação” em conselhos gestores e fóruns de
administração dos desastres anunciados. As controvérsias em torno da construção de Belo
Monte revelavam de forma mais nítida que a dissensão política em torno da obra era
mesmo uma divergência de mundos. Transformar indígenas em pobres sempre foi crucial
para a Plantocracia Global: “Porque pobre é um conceito ‘maior’, pobre é maioria, pobre é
um conceito de Estado – um conceito, justamente, ‘estatístico’. Mas acontece que a
imensa maioria estatística dessa maioria pobre é minoria étnica, minoria política, minoria
sexual, minoria racial” (Viveiros de Castro, 2017: 7).

A produção e gestão ativa dessas cisões e imaginações de “maiorias” podem ser


encontradas em outras “políticas sociais” paradigmáticas do governo progressista no
Brasil. A implementação das “unidades de polícias pacificadoras” (UPP’s) também
instauraram uma cisão política/ontológica entre aqueles “responsáveis” que podiam
responder ao “desafio da política de segurança pública” em aliança com uma “polícia
humanizada”, a “participação da comunidade” e a “vontade da maioria” e, do outro lado,
aqueles outros que desconfiavam do avanço da militarização e da exceção em territórios
favelados classificados e criminalizados como “inconsequentes” e “radicais”. Depois disso,
a escalada da policialização do Brasil, o desaparecimento de Amarildo, a aprovação da Lei
Antiterrorismo, passando pela intervenção militar federal no Rio de Janeiro em 2018 e
pela execução de Marielle Franco, indo até a eleição de Bolsonaro, mostraram, entretanto,
que havia na recusa uma perspicácia sensível e que intuía, pela luta coletiva, a catástrofe
por vir. O mesmo pode ser dito pela luta de oposição à Belo Monte que – a partir de uma
luta localizada e delimitada, vista como “irrelevante” e “particular” pôde enxergar as
linhas de força que logo levariam ao poder uma elite do agronegócio, extrativista e
disposta a exterminar qualquer possibilidade de resistência.

Podemos falar sobre um “fenômeno de vidência” nesses movimentos de recusa – recusa


de grandes obras, da militarização racializada, dos consensos do desenvolvimento, recusa
de ser “maioria”. A “vidência” pode ser entendida como uma sensibilidade coletiva
minoritária que se permite ver o imponderado, que hesita e excede os enquadramentos

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impostos pela gestão das posições em um determinado conflito, uma visão que também se
faz com os mortos que já se foram, com a terra, com o corpo, com a natureza e a sobre-
natureza, em muitas pistas desconhecidas pela política moderna. Visto pelas vidências
coletivas de lutas localizadas e seus movimentos de recusa, o bolsonarismo já fazia
mundos bem antes da vitória eleitoral, avançando nas muitas pedagogias da crueldade em
um cotidiano sempre ameaçado.

No fundo, essas lutas já constatavam o futuro pela repetição inequívoca do passado –


corpos sensores. Também, em uma composição de Jota Mombaça e Musa Michelle
Mattiuzzi (2019:15) com o pensamento da Negridade de Denise Ferreira, a “vidência”
pode ser entendida como uma tecnologia óptica da Negridade – uma “luz negra”: “um
conhecimento que demanda outras ferramentas para ser apreendido. A luminosidade da
luz negra revela o que está oculto, transparente em conformidade com a norma. Trazer
esse pensamento nos tempos de hoje é um exercício de experimentação sobre o fazer
futuro e o mundo”.

Pela Plantation Colonial, a história do capitalismo avançou como uma história de


cercamento, confinamento e dispositivos racializados de controle e subjugação. Como
lembra Kathryn Yusoff (2019), o açúcar cultivado pelas pessoas escravizadas na
plantation colonial era o mesmo que oferecia energia para as famílias proletarizadas e
empobrecidas nas minas de carvão da europa assim como todo o dinheiro de pagamento
de indenizações a proprietários de pessoas escravizadas, depois do fim da abolição no
Império Britânico, foi fundamental para os investimentos nas novas indústrias e no
empreendimento em combustíveis fósseis que as sustentou. O mundo dos combustíveis
fósseis foi erguido em nome de uma “maioria” imaginada como “sujeito histórico”
inexorável e seu “avanço” – seja a “nação proletária” soviética ou o “american way of life”,
ambos dependiam da perfuração da terra, destruição de modos de vida e de subjugação
racializada, de neutralização das vidências.

A gramática extrativista, pegando emprestada a definição que o Rob Wallace (2020) pode
ser pensada como a “capacidade de transformar o poder político em acesso exclusivo aos
recursos de outras pessoas”. É o que constitui o bolsonarismo em sua materialidade, bem
expressa na obsessão pelo garimpo, pela soja e pela prisão; é o que articula as elites do
agronegócio às milícias, mas também uma certa imaginação do socius marcada pela visão
“gladiatorial” da concorrência por adaptação. A ideia, frequentemente repetida por
Bolsonaro, de que os mais fracos (racializados) sucumbirão em situações críticas e os mais
fortes, a “maioria”, sobreviverão como resposta de uma “seleção natural”.

Mas o que confere força “a maioria”, qual o corpo, a história e a memória que ela carrega e
pela qual se constitui? A “maioria” seria então um outro nome para a “marcha da
civilização”, para o despotismo da governança? A “maioria” é uma das mais poderosas
ficções de controle das democracias contemporâneas. A “maioria” a ser “mobilizada” e
“demonstrada” como capital político que confere legitimidade à representação e à
governança é sempre uma construção ideológica apresentada como verdade matemática,
ou estatística, um universal que ficcionaliza um regime de poder e que encena e permite a
guerra contra “minorias”, que ordena e classifica tudo que é excesso e diferença.

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Não à toa o bolsonarismo captura tal equação pela radicalização da lógica de mobilização
de “maiorias produtivas”, mas que, no entanto, não se sentem “recompensadas” pelo
sacrifício. O neofascismo não pode prescindir de mobilização e engajamentos
permanentes, muito porque o substrato semiótico que o fundamenta é a ideia de que eles
são o governo da “verdadeira maioria”, a “maioria produtiva”, “participativa”, os corpos
eficientes que devem ser recompensados por sua produção de energia e, para isso,
precisam acabar com aqueles outros que não produzem o suficiente, que não se
mobilizam pela cidadania sacrificial, os corpos-desfuncionais porque próximos demais
dos “personagens conceituais” da recusa colonial da Plantocracia: indígenas, corpos
negros insubmissos, corpos feminilizados desobedientes do regime heterodomésticos-
afetivos, selvagens, os vagabundos, os estranhos. Nos atos bolsonaristas do 1 de maio de
2021, ouvia-se um homem branco de um carro de som: “a oposição não é os trabalhadores
contra os patrões, mas é de quem quer trabalhar contra os que não querem”.

Diante da exaustão pandêmica e dos quase meio milhão de mortos pelo Covid-19 no
Brasil, o bolsonarismo tornava explícito o paradigma da democracia neoliberal e
neocolonial, o “despotismo democrático”: defesa do movimento permanente, da logística,
dos fluxos contínuos, não poder parar. O “lockdown”, a paralisação, o bloqueio, é o que
eles temem. Não só o bolsonarismo, mas muitos outros prefeitos e governadores
reconhecem que a decisão do lockdown é também arriscada eleitoralmente – ou seja, de
certa forma a política constituída hoje é declaradamente uma ameaça à vida. A gestão
pandêmica produzida por Bolsonaro não é meramente reflexo de um “negacionismo” ou
apenas de uma “má gestão” da crise sanitária.

Esse momento crítico que estamos vivendo no Brasil é a declaração de uma fratura
colonial que foi ainda mais aperfeiçoada nos últimos anos, cujo principal efeito pode ser
lido pela impossibilidade radical de um mundo comum, pela obstrução e extermínio das
sensibilidades de vidência. Muitas pessoas que há gerações vem experimentando a
corrosão de infraestruturas coletivas para a garantia da dignidade da vida e que,
especialmente nos últimos anos, foram lançadas em um regime de concorrências e
disponibilidade total no qual as noções de êxito e fracasso individuais imprimiam no
tecido biopolítico uma cidadania neoliberal sacrificial, agora viam-se bloqueadas — pelas
restrições do isolamento — no exercício do desempenho individual. Tal desempenho é o
que permite e constitui, inclusive, boa parte da produção da soberania masculina nas
inscrições de poder da domesticidade, bem vocalizada por Bolsonaro.

Não à toa, por muitas vezes, o vírus é imaginado como uma ameaça à essa soberania
masculina e suas ficções de controle: parar, cuidar seriam “coisas de marica”. “Agir como
um homem” seria encarnar o lugar da guerra sem fim, do fatalismo da concorrência no
qual só os “mais esforçados” vencem. Essas imagens também revelam a conexão direta e
explícita entre o regime sexopolítico e o neoliberalismo neocolonial e concorrencial no
combate à uma vida de cuidados mútuos considerada agora “impotente”, derrotada e
feminilizada.

Retomadas

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Peter Linebaugh (2014), apontando para o que seria uma outra vertente importante do
pensamento de Karl Marx, afirma que foi a partir do “roubo de lenha” que a constatação
da luta de classes mostrou-se de forma mais contundente ao filósofo. A luta de classes
tornaria-se central no pensamento de Marx quando ele se deparou, não com a luta dos
operários dentro das fábricas, mas com um modo de existência que relacionava o uso
comum da terra com uma forma de vida, sem propriedade nem patrão e que passava a ser
criminalizada – a classe que recusa o trabalho, portanto, ao menos o trabalho coercitivo e
disciplinador que se descola da vida, da terra e das relações que nos constituem.

Isabelle Stengers vem sugerindo em seus trabalhos o fato de que o capitalismo sempre
teve menos a ver com a “exploração da força de trabalho”, e mais com um processo
permanente de expropriação do Comum – não só da terra, mas das formas de relação que
sustentam e criam permanentemente a possibilidade desses mundos: saberes, formas
políticas, circulação de conhecimento, cuidados, práticas de cura, relações multiespécies,
cozinhas coletivas, combates, o que não é público-estatal, o que não é privado. O que seria
uma forma política que não se deixa conter nos horizontes da “inclusão” e na “mobilização
de maiorias”, mas que expressa coletivamente a “repugnância pela vida que somos
forçados a viver”? (Comitê Invisível, 2016: 57)

Mas sabemos que a revolta é sempre inadiável. A revolta é a visão que está na pele, é ver
com a pele e com tudo que atravessa – é o momento coletivo e imponderado de retomada
da vidência. “O enigma é como fazemos para não entrar nos cálculos das razões de
governo na hora em que a potência das ruas explode e queima” (Teles, 2019). “Destruição
como performance generativa de uma leitura abolicionista para o mundo” (Mombaça;
Mattiuzzi, 2019). A Amefricanidade rondando a Plantation que Lélia Gonzalez (1988)
intuía como prática existencial e categoria filosófica-política de contra-feitiçaria ao
mundo da Plantocracia e seus muitos dispositivos de denegação, presente “nas revoltas,
na elaboração de estratégias de resistência cultural, no desenvolvimento de formas
alternativas de organização social livre” (Idem: 79). Também na enganação que “assim
como o humor a ela associado cria um espaço de ambiguidades que permite ao sujeito
agir e deslocar-se diante do jogo de forças coercitivas atuando assim como uma potente
arma crítica capaz de lidar com as transformações históricas que o poder político opera”
(Keese, 2017: 129).

Fugitividade, coreografias de combates, esquivas e desejos não representaveis que


investigam práticas, experimentações do que seria uma infrapolítica “revisando o
ativismo não como representação, mas como o fornecimento de infraestrutura para o
movimento, gerando inventividade nômade ao invés de uma expertise Real”
(Mitropoulos, 2012: 120).

Alana Moraes é doutora em antropologia pela museu nacional/ufrj; É pesquisadora do


Laboratório de Tecnologia, Política e Conhecimento (Pimentalab/unifesp); integrante da
Rede Latinoamericana de Estudos em Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavtis) e do
Coletivo Tramadora.

Referências:

8/10
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